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Rocío
IL COMMENDATORE
PENTITI!
DON GIOVANNI
NO!
ABERTURA
PRIMEIRO ATO. Il DISSOLUTO PUNITO
Cena I. Sobre como um pombo estragou meu primeiro aniversário e a ingratidão dos
lobinhos
Cena II. Sobre como alguns shedim erraram sua maldição e minha mãe se uniu aos
alienígenas
Cena III. Sobre como desmontar um violino com uma serra elétrica e ser comunista e
anticomunista em uma tarde
Cena IV. Sobre como apareceu meu Watson-com-saia-hippie e o judeu canalha que
inventou o FMI
Cena V. Sobre a natureza assassina dos genes e as guerras travadas em família
Cena VI. Sobre como limpar seu nome da infâmia e a extinção dos profetas
Cena VII. Sobre como alguns banhistas conseguiram quebrar o Planeta Terra S.A. e a
persistência dos vírus
Cena VIII. Sobre as muitas vidas dos cadáveres e como formar um time de tênis com
comunistas
Cena IX. Sobre como montar uma bomba H com bônus lixo e como cantar a três um
dueto de La Bohème
Cena X. Sobre como influenciar pessoas e trair seus amigos e os corvos que aninham no
coração
SEGUNDO ATO. L’OCCASIONE FA IL LADRO
Cena I. Sobre como visitar Washington à noite e arrastar um cadáver pela lama
Cena II. Sobre como dois economistas conseguiram a pedra filosofal e dois economistas
estrelaram a luta do século
Cena III. Sobre como se apaixonar por uma espiã e engordar com uma dieta de rancor
Cena IV. Sobre como furar uma bolha erótica e a guerra dos mundos
Cena V. Sobre como reconhecer dentes ruins e como encurralar um espião com uma
abóbora
Cena VI. Sobre como formar um casamento perfeito e esbofetear delicadamente seu
Mestre
Cena VII. Sobre como ganhar perdendo e perder ganhando e como montar um pequeno
álbum de família
Cena VIII. Sobre como reconstruir o mundo em um hotel de luxo e a plácida
aposentadoria dos espiões
Cena IX. Sobre como uns gêmeos se apoderaram do mundo e como usar seu filho como
escudo
Cena X. Sobre como investir em bens imóveis sendo comunista e naufragar sem salva-
vidas
TERCEIRO ATO. L’INGANNO FELICE
Cena I. Sobre como salvar o mundo com esparadrapo e como comercializar com vento
Cena II. Sobre como se aquecer no inverno moscovita e como se tornar milionário com
cupons
Cena III. Sobre como ser inteligente e bonito o transforma em herói e ser inteligente e
bonita a transforma em puta
Cena IV. Sobre como atrasar a verdade por meio século e por que Babel caiu
Cena V. Sobre como sobreviver ao fim do mundo
Abertura
CAVATINA DE JUDITH
RECITATIVO
Com mais ou menos palavras, este é o relato de Judith sobre a morte do meu
pai e, como se pode perceber, nunca lhe faltaram palavras. Eu devia ter uns quatro
ou cinco anos quando ela desfiou pela primeira vez diante de mim o episódio e,
mais do que da intromissão do pombo, me lembro do seu tom venenoso, que não
reproduzi com justiça, do seu olhar de aço cravado sobre minha timidez e seus
dedos traçando círculos no ar (as unhas vermelho-vivo), sem o mínimo vestígio de
tato ou de pudor, até que uma de suas palmas, elevada à altura da cabeça, estalava
contra sua gêmea reproduzindo o ranger dos ossos do meu pai no cimento. Às vezes
Judith prolongava sua divagação sobre a miséria, a insônia ou as leituras de seu
falecido marido; outras, adornava o incidente com uma pátina um pouco mais
patética ou mais ridícula (ou as duas coisas), e outras se empenhava em me
demonstrar que a desgraça tinha sido totalmente culpa do meu pai, mas em
nenhum caso omitia apontar que, fora o caráter esquivo, o azar e sua fuga repentina,
Noah era um bom homem, dizendo-o com doses iguais de comiseração e desprezo.
Acontecia assim.
À noite, depois de me cobrir com o edredom, como se fosse me contar um
conto de fadas, ou na hora do almoço, acompanhando um gefilte fisch com khren,
Judith reconstruía os fatos sem admitir perguntas da minha parte. Graças a esta
tática, durante anos a única coisa que eu soube sobre meu pai foram os traços de
caráter exaltados no seu infeliz encontro com o pombo: uma bondade terna para
com os animais e talvez para com as pessoas, certo desinteresse ou descuido para
com os fetos, uma clara propensão à infelicidade e uma afeição pela música clássica
que contrastava com sua vulgar profissão de economista. Impossível tirar da minha
mãe detalhes não incluídos neste relato ou pedir uma prova fotográfica: com uma
única exceção, todas as fotografias dele foram perdidas na mudança posterior ao
enterro, justificava-se ela. Ninguém deveria estranhar que meu pai fosse
praticamente nada para mim: um nome pronunciado a contragosto e a sensação de
ignorar a origem de 50% dos meus genes.
Anos depois, um aproveitador disse que meus conflitos com a autoridade
tinham origem na ausência de uma figura paterna durante a infância. Sublime
tolice: Judith cumpria perfeitamente com a tarefa. Seu gosto pelo gim e pelos
charutos cubanos, suas maneiras ariscas e brutas, sua linguagem de caminhoneiro e
seu gosto pelas brigas, de preferência com pancadas, com quem ousasse contradizê-
la ou enganá-la, bastavam para demonstrar que era mais viril do que qualquer
homem. Ao longo destas páginas voltarei ao seu duplo temperamento de carcereira e
dama da caridade, por enquanto me contentarei em afirmar que, apesar de sua
magreza e da brevidade de sua estatura — aos doze eu já a ultrapassava —, minha
mãe não só conseguia encher um cômodo com sua presença, mas uns três ou quatro
andares. Não pretendo me enfurecer com ela (não ainda). Lembro-me dela como
um terno gnomo judeu, não isento de uma beleza arrepiante, capaz de dobrar um
exército ou de impor sua vontade a uma turma de valentões. Serei mais justo: uma
mulher que se forjou desde pequena — o insaciável clichê da pobreza, pai adúltero e
mãe depressiva — e que não se permitiu se curvar ou se arrepender nem sequer
diante da morte.
Até os quinze ou dezesseis anos, a orfandade, condição que me permitia me
colocar à altura dos infelizes que guardavam as bandeiras ou os corações púrpuras
para entregá-los às mães em cerimônias tão solenes quanto hipócritas, nunca me
feriu. Impossível me gabar de que meu pai fosse um herói morto em combate, como
os dos meus colegas de escola, mas os professores, comovidos pelo meu desamparo,
me reservavam uma benevolência da qual sempre consegui me aproveitar (ao mesmo
tempo que os odiava por me concedê-la). Para o bem ou para o mal, Noah não
interveio na minha educação: uma grande vantagem comparada com os estragos
produzidos na autoestima dos meus colegas pelo contato cotidiano com os idiotas
que os haviam engendrado. Um bom pai, na minha opinião, é aquele que foge dos
filhos o quanto antes.
De Noah Volpi, reitero, nada além do sobrenome. Esse Volpi que na Polônia
se escrevia Wołpe e que depois nós dois arrastamos nesta nação fundada por
bandidos e fanáticos. Pelo menos até que deixei de ser um estúpido desajeitado e me
transformei no único Volpi de que se fala hoje em dia: o Volpi cujo nome vocês,
meus insossos semelhantes, meus podres irmãos, meus curiosos leitores, certamente
terão ouvido amaldiçoar durante os quinze minutos de fama (já alguns anos, para
falar a verdade) em que, acompanhado por fotos de duvidosa procedência, ocupou
um espaço na internet, nos telejornais e nesses moribundos pasquins provincianos,
os jornais. Volpi, o conhecido filantropo e homem de negócios, fundador e
principal acionista do JV Capital Management, um dos fundos de hedge mais
pujantes do início do século XXI, segundo a Bloomberg e a MSNBC; Volpi, o
infatigável benfeitor do Met, da New York City Opera, da Filarmônica de Nova
York, da Juilliard School of Music, do Festival de Salzburgo, do Mariinsky e do
Covent Garden; Volpi, o inquilino habitual dos tabloides e das páginas sociais da
Grande Maçã Podre; Volpi, o estelionatário que, desde outubro de 2008, se
encontra em paradeiro desconhecido depois de defraudar seus investidores em 15
bilhões de dólares: número evidentemente inverossímil. Este sou eu, senhoras e
senhores, distintos membros do júri, e de fato escrevo estas páginas em Paradeiro
Desconhecido, uma doce aldeia costeira que, ao contrário do que eu imaginava, não
conta nem sequer com banda larga (um fugitivo da Interpol não deveria revelar estes
detalhes).
Por que me atrevo a aborrecê-los com meu relato? Soberba? Sem dúvida.
Arrependimento? Nenhum. Autojustificação? A mínima. Digamos que a culpa é do
velho Noah, esse homem que me abandonou quando eu estava para nascer para
depois topar com um pombo e se atirar da altura de onze andares; esse homem que
jamais me acompanhou e que minha mãe se esforçou para apagar da minha
memória; esse homem que foi muito mais que um burocrata desempregado e muito
menos que um personagem secundário na minha história, e na burlesca história que
se concluiu com outra queda, a do Lehman Brothers. De modo que, no final das
contas, devo a esse fantasma mais que um espúrio sobrenome judeu-polonês. Na
solidão de quem tem que peregrinar fugindo de um confim a outro do planeta,
descobri que algo mais poderoso e inextrincável nos une. Noah foi um reticente
símbolo do seu tempo e eu do meu. Ele, do auge do capitalismo. Eu, da sua queda.
E, como pela primeira vez em décadas disponho de uma infinita quantidade de
tempo livre (excetuando a melhor opinião dos guardiões da lei), aceito a
responsabilidade de ser um velho cartógrafo decidido a unir esses dois pontos no
mapa.
Dizem que, justo antes de as ondas fugirem da costa para voltar em uma
diabólica pancada, como aconteceu durante o tsunami que destruiu a costa asiática
em 2004 (cuja magnitude só apreciei no ensurdecedor início de Além da vida, em
que Clint Eastwood se lança em um lamentável espiritismo), o céu se torna
aveludado e luminoso, desprovido de manchas e de nuvens, habitado por uma
luminosidade que, segundo os meteorologistas, é a única antecipação da catástrofe.
Assim se viveu a densa primavera de 2008: uma temporada de abulia e apatia,
morosa e triste, em que apenas uns poucos arautos do desastre, escondidos nas
margens do nosso sistema financeiro (por exemplo, na arcádia dos campi),
vociferavam diante de auditórios semivazios suas profecias segundo as quais não
estávamos diante de uma era de exuberância irracional, nas palavras do Grande
Guru Greenspan, mas de uma bolha de sabão que não demoraria a estourar na nossa
cara. Invejosos. Iludidos. Mentecaptos. As coisas que a gente tinha que ouvir da
boca desses ressentidos. Uma bolha imobiliária? Bobagem. Era claro que nem Ribini
nem Rabini nem nenhum de seus colegas harvardianos ou oxfordianos sabiam do
que estavam falando. Não tiveram oportunidade de examinar os dados oficiais? Nos
Estados Unidos nunca existiu uma bolha imobiliária. Nunca. Elas brotaram de vez
em quando, talvez em lugares específicos como o sul da Flórida, por causa da
especulação de quadrilhas de judeus aposentados. Os bobalhões deveriam ter
destilado suas estatísticas: este grande país, tomado em seu conjunto, nunca sofreu
uma crise no setor imobiliário. O melhor era ignorar ou sossegar os lunáticos e nos
concentrar em administrar aquela irracional e prazerosa exuberância.
Não estou exagerando. Leiam os jornais e ouçam as declarações feitas ao longo
daqueles meses de calma insignificância. Primavera de 2008, incluindo o início do
verão. Descobrirão aqueles que muito em breve iriam se transformar nos impostados
heróis ou nos efêmeros vilões da nossa vil tragicomédia. Todos repetiam o mesmo
mantra: não há com o que se preocupar, o crescimento se manterá, a inflação está
controlada, superaremos este baque e seguiremos em frente. Empresários. Políticos.
Especuladores. Banqueiros. Professores. Funcionários do Tesouro e do Federal
Reserve, do FMI, do Banco Mundial e da ONU. Greenspan, Clinton e Bush filho,
Paulson e Bernanke, Geithner e os CEOS dos nossos pilares financeiros. Como uma
plêiade de cidadãos comuns, como vocês, meus leitores. E eu próprio. Todos nós
mantínhamos a mesma fé, ou isso era o que dizíamos: desta vez será diferente, os
alarmes são falsos, os temores infundados, podemos continuar nos endividando — e
nos enriquecendo — sem trégua, que os mercados, fortes como touros, saberão se
autorregular.
Sem dúvida havia alguns sinais preocupantes, as hipotecas dispararam,
ninguém era capaz de calcular o que aconteceria se deixassem de pagá-las, o
consumo diminuía, mas o capitalismo preconizava a destruição criativa. No pior dos
casos, algumas poucas empresas e instituições de crédito acabariam liquidadas, como
durante o fracasso das pontocom; o preço dos imóveis cairia um pouco e o dos
empréstimos subiria levemente: em todo caso, uma reorganização necessária, um
mínimo ajuste antes da retomada do crescimento. Agora, ex post, é fácil dizer: não
foi assim. Um tsunami. Uma onda que, sem o menor aviso, nem sequer aquela
perturbadora claridade do firmamento, arrasou com todas as nossas certezas — e,
pior ainda, com as nossas fortunas. Não fomos irresponsáveis. Não fomos
predadores nem ambiciosos. Só tivemos azar.
Eu adoraria invocar essas desculpas, acreditar seriamente nelas como Greenspan
e Bush filho, como Paulson e Bernanke, como Geithner e os CEOS dos nossos pilares
financeiros. Reduzir meu arrependimento e minha vergonha — não pelos despejos e
pela pobreza de milhões, mas pela minha imperícia — e moderar a raiva diante das
minhas perdas. Só que, diferentemente desses fidalgos, eu não continuarei fingindo.
Não me move um ataque de honestidade, que meu público jamais admitiria, mas
minha recusa a ser um dos bodes expiatórios de quem agora bate no peito. No
esquema deles, eu sou um criminoso, e eles, por sua vez, apenas cometeram um
erro. Eu sou uma chaga do sistema, aquele que julgam necessário perseguir por meio
mundo como se fosse um torturador ou um criminoso de guerra, enquanto eles, os
funcionários e professores em quem depositamos nossa fé e nossa confiança,
precisam apenas pedir uma desculpa. Deverei ser caçado como um cão ou
exterminado como um rato; eles, em compensação, depois de abaixar um pouco as
carecas e exibir umas condolências apressadas diante de suas vítimas, seus milhões de
vítimas, foram reinstalados em seus cargos de diretores — ou outros equivalentes —
e voltaram a embolsar seus bônus milionários.
Não, senhores, não pretendo tolerar isso. Esta é minha defesa por escrito. Sim,
eu fraudei uma centena de investidores. Sim, entre eles havia recursos de pensões,
universidades, hospitais, dezenas de fundações artísticas e humanitárias. Sim,
enganei meus amigos e os amigos dos meus amigos. Sim, pus em risco meus sócios e
minha família. Sim, sou um canalha e um ladrão, um digno herdeiro de Charles
Ponzi. Sim, aceito que me comparem com Bernie Madoff (exceto, por favor, no
penteado), embora sua fraude supere a minha em dez vezes. Sim, sou um monstro,
um demônio, um perigo para a sociedade. Mas os que me apontam com seus
indicadores flamejantes, enquanto contemplam de seus escritórios o skyline de
Manhattan, saboreando um conhaque ou mordiscando um charuto, não são, juro
pela minha mãe, muito melhores.
TRIO
ÁRIA DE JUDITH
É claro que eu não acreditava neles, meu filho, mas minha avó afirmava tê-los
sentido enquanto revoavam sobre sua cabeça nas noites de lua cheia, lá no shtetl,
pouco antes que os cossacos chegassem. “Irradiam uma luz escura”, repetia a anciã
rangendo as mandíbulas. “Sutis como libélulas, habitam as sombras do porão e as
tocas das toupeiras; se alimentam das escamas que se soltam da nossa pele quando
dormimos. Sabe o que me disseram, Judith? Que eu alcançaria a idade para ver as
asas dos homens.” As outras crianças corriam ao perceber suas verrugas, seu xale
com fedor de queijo rançoso, o cravejar da sua bengala nos degraus. Nesta altura já
morávamos no Brooklyn e, pouco antes de ficar cega, chegou a ver um aeroplano. A
coitada morreu quando eu ainda não tinha cinco anos. Mas ainda me lembro do
calor infernal do cemitério, da sonífera melopeia do rabino, da ausência de lágrimas
no meu rosto. Não voltei a pensar nessas delicadas criaturas até muitos anos depois,
quando finalmente fiquei grávida.
Quando nos conhecemos, seu pai tinha me avisado: “Se há uma coisa de que
tenho certeza é que não quero somar mais infelicidade a esta terra”. Foi a única
condição que ele impôs ao nos casarmos: nos manter estéreis, filhos sem filhos. O
que posso te dizer? Eu estava apaixonada por Noah, aquele jovem frágil e cheio de
projetos; sua severidade e seus ressentimentos só acentuavam meu desejo. Disse que
concordava, eu ainda era muito jovem e buscava o amor, um amor desesperado,
como poderia saber que um dia meu corpo — não meu espírito, meu corpo —
exigiria quebrar essa promessa? Durante os primeiros anos de casamento me atrevi a
mencioná-lo algumas vezes, mas sua teimosia não admitia concessões. O que o tinha
levado a abominar a ideia de ser pai? Impossível questioná-lo: Noah, eu já lhe disse,
era insensível. “O passado não importa, é mentira que dependamos desse peso”, me
dizia. “Só importa o futuro, e no futuro não pretendo me tornar responsável pela
dor de quem nem sequer me pediu a vida, este presente de grego.”
Minha cumplicidade resultou em resignação, depois em obrigação. Deve ser
verdade que as mulheres são governadas pelos instintos. Apesar de não provir de
uma família educada como a dele, mas de um ambiente de comerciantes rústicos, eu
me considerava uma garota intelectual, em perpétua rebeldia frente aos preconceitos
da época. Não vá me pintar na sua cabeça como uma dona de casa resignada
passando lençóis ou temperando almôndegas. Se parti o lombo trabalhando como
vendedora foi para pagar a escola noturna e cavar um futuro à minha medida. Tinha
lido tantos livros quanto o seu pai, ou até mais, e me inspirava nas obras de Emma
Goldman e das sufragistas. Nunca me considerei inferior aos homens e, junto com
aqueles de ideais mais igualitários, eu também tentei melhorar um pouco o mundo.
Não posso dizer que fosse infeliz, mas, quando fiz trinta e cinco, um mal-estar
difuso no ventre e nos seios me invadiu. Um vazio. Apesar da sensibilidade que te
caracteriza, filho, você nunca conseguirá entender: eu mesma demorei muito para
perceber que a natureza dobra qualquer ideologia. Serão os hormônios ou o que
você quiser, um uivo nas vísceras que se traduz em uma voz infantil que perfura os
ouvidos da gente. Não é uma loucura, juro que ouvi sua voz, sua exigência de
nascer, nas minhas entranhas.
Quis conversar com Noah sobre o que estava acontecendo comigo, mas ele,
imerso nas suas próprias inquietações — eram os anos da guerra —, não me deu a
mínima atenção. Imaginei que minha batalha estivesse perdida. Procurei outras
distrações, me dediquei a cuidar dos órfãos, até pensei em adotar um daqueles
infelizes que tinham sido abandonados. Mas o seu grito dentro de mim se tornava
cada vez mais agudo, mais insuportável. Vencemos os nazistas e os japoneses, e
nossa vida se tornou incerta e frustrante, o que só fez aumentar minha vontade de te
conceber enquanto seu pai era vítima de todo tipo de calúnias. Depois de ser
promovido na organização que ele mesmo havia ajudado a construir, do dia para a
noite, foi destituído de seu cargo. Depois de uma vida inteira consagrada ao serviço
público — a perseguir o bem, a brigar pelos interesses de sua pátria —, só conseguiu
um cargo de consultor em uma esfarrapada empresa nova-iorquina. Sei que ele
precisava mais do que nunca de mim, mas eu precisava mais de você.
Como tomei a decisão? Não parei para pensar, nem planejei maliciosamente,
juro. Seu pai saiu muito cedo naquela manhã, tinha um encontro com não sei quem
em Nova Jersey — nunca falava comigo sobre seu trabalho —, e eu fiquei na cama
até bem tarde. Sentia-me aflita, a ponto de sufocar; corri para o banheiro e vomitei
na pia. E então os vi ali, separados na parte de cima do estojo de primeiros socorros:
os preservativos que Noah guardava cuidadosamente (e que, desde que os problemas
aumentaram, quase não tínhamos usado). Não hesitei nem medi as consequências; a
partir desse momento já não agia sozinha; eu gostaria de dizer que nesse momento
se forjou uma aliança entre nós dois, entre o você que estava a ponto de nascer e o eu
que o ajudaria a conseguir isso.
Quando seu pai chegou naquela noite, com a fadiga e o mau humor que lhe
haviam grudado na alma, lhe servi um uísque e implorei que conversássemos sobre o
que estava acontecendo conosco. Para minha surpresa, acabamos conversando com a
mesma desenvoltura de antes da guerra. Desculpei-me por ter me mostrado tão
distante e não apoiá-lo quando mais precisava. Uma verdadeira sedução. Preparei
outros dois drinques e, quando nós dois já estávamos um pouco altos, puxei-o pela
mão e o levei para o quarto. Despimo-nos e eu mesma lhe coloquei o preservativo
(economizo os detalhes). O preservativo que, pela manhã, eu havia furado com uma
tesoura. Confesso que nunca me arrependi desse estratagema, e me concentrei em
esperar a hora em que pudesse comprovar se tinha funcionado.
Talvez por uma íntima vergonha ou um atavismo, resisti a consultar um
obstetra e decidi visitar Charna, uma velha parteira do mesmo shtetl da minha avó
que tinha emigrado para a América. Lembrava que anos atrás minha mãe tinha me
levado ao seu pequeno apartamento no Harlem para consultá-la sobre um assunto
que não quis me detalhar (eu teria uns quinze anos). Batemos na porta, ela nos
recebeu com uma expressão de aborrecimento e nos levou ao seu quarto: uma cama
cercada por uma galeria de rostos camponeses. Não sei o que aconteceu na sala —
reconheci algumas rezas em hebraico e, ao sair, distingui uma chama e a fumaça de
uma vela —, mas minha mãe, que naqueles dias se mostrou mais agitada do que de
costume, esboçava um lânguido sorriso. “Você pode acreditar ou não, Judith”, me
disse na rua, “mas esta mulher é uma santa.”
RECITATIVO
Era uma terça-feira, lembro porque neste dia ela costumava visitar o túmulo do
meu pai, e parecia particularmente cansada. Devorei correndo minha omelete e me
refugiei no meu quarto, teoricamente para terminar meus deveres. Ela leu um pouco
e finalmente se trancou no banheiro. Eu não podia perder nem um segundo, entrei
em silêncio no seu quarto e, cuidando para que não rangesse, abri uma gaveta atrás
da outra sem achar o cofrinho. De repente, quando voltei a olhar, minha mãe estava
na minha frente, pequenina e ameaçadora. Seus olhos projetavam uma aura
avermelhada, como todos os lagartos. Estava perdido.
— É isto o que está procurando? — perguntou com voz calma, mostrando o
cofre que segurava nas mãos (deveria dizer: garras).
— Não — balbuciei.
Primeiro me deu uma lição sobre a privacidade e o respeito aos segredos dos
outros; depois me deu duas sonoras palmadas (senti as escamas sob a pele rugosa das
palmas) e me confinou no meu quarto até segunda ordem. Quase senti alívio: pelo
menos não tinha me devorado.
Mas sua vingança posterior não teve limite. Quando voltei do colégio no dia
seguinte, me pediu que lhe mostrasse minha coleção de gibis. Trêmulo, lhe mostrei
minha ampla variedade de super-heróis e vilões — meus favoritos eram os que se
dividiam entre uma existência cotidiana vulgar, não muito diferente da minha, e
outra cheia de aventuras e perigos —, e ela exigiu meus tesouros mais apreciados:
meus gibis de óvnis e extraterrestres. Displicentemente, Judith folheou um exemplar
de Túnel do tempo, meu preferido. Pensei que o derreteria com sua visão de raios
laser. Mas, em vez disso, mandou colocar todos os gibis em uma mala de couro.
Chorei em silêncio, consciente de que não teria coragem para fugir e me unir à
resistência. Judith me levou a um orfanato e, a fim de me mostrar o valor do
desprendimento e a perversidade da avareza, me obrigou a doar minha coleção de
gibis, dezenas de exemplares acumulados ao longo dos anos. Nunca descobri se ela
era uma invasora extraterrestre ou só uma mãe severa e implacável (hoje acho que
tinha essas duas naturezas). Do que não há dúvida é de que seus métodos de ensino
não obtiveram os resultados que desejava: obrigar-me a renunciar às minhas posses
mais queridas não me transformou em uma pessoa melhor, não me tornou mais
sensível diante da desventura ou da pobreza, não me impulsionou a ser caridoso ou
dadivoso. Ao contrário: se depois doei milhões a todo tipo de causas filantrópicas foi
somente para lavar minha imagem ou diminuir o montante dos meus impostos.
Nessa tarde, enquanto voltávamos de metrô para casa, jurei que algum dia seria
dono da maior coleção de gibis de alienígenas do mundo. Cumpri isso. Com certeza
a polícia a expropriou sem perceber o valor sentimental — e, não nos enganemos,
econômico — que essas revistinhas tinham para mim.
Ah, minha mãe.
DUETO
CABALETTA DE JUDITH
RECITATIVO
Seu pai — o nome original era Noe, parece — nasceu, acho, em 1901, em um
lúgubre apartamento no gueto de Cracóvia, ou pelo menos era isso que ele contava,
pois seus pais o tiraram de lá aos três anos, e eles o relembravam como um lar
arejado e luminoso. Os Wołpe vinham de uma estirpe de alfaiates e curtidores
transformados em pequenos comerciantes. Não se pode dizer que era uma família
rica, pois nesse caso não se justificaria sua emigração americana, mas tampouco
eram miseráveis e, o que é mais relevante, o pai era um homem ilustrado: um
antissocial amante da história e da literatura que, apesar da condição de ferreiro,
chegou a reunir uma pequena, porém nobre, biblioteca.
Quando eu o obrigava a mergulhar nas suas origens, Noah se referia ao pai com
uma mistura de admiração e amargura; ao que parece era um homem tão miserável
quanto expansivo e tão meticuloso quanto irascível, que podia passar horas lhe
contando histórias mitológicas ou açoitá-lo sem piedade pela mais insignificante
falta. Certa noite, remexendo em suas gavetas, vi uma fotografia do velho. Sentado
diante de um aparador de carvalho e algumas porcelanas em sua casa de Nova
Jersey, com sua jaqueta preta e seus óculos ovais — e certa aridez no semblante —,
era idêntico ao seu pai: o mesmo olhar inquisitivo, as mesmas orelhas pontudas e o
mesmo bigodinho. Da mãe sei ainda menos. Uma mulher marcial e reservada, tão
distante e áspera quanto o filho.
Como sempre lhe disse, a única coisa que importava para Noah era a música;
ele nunca teria expressado isso desta forma, pois na maturidade a desprezou como
uma maldição ou um estorvo. Eu acho que, depois da morte de Harry e de sua
injusta demissão do Fundo, a música o fazia pensar no destino que não tinha
seguido, neste destino que, se não fosse por seu escrúpulo e seus medos, teria lhe
proporcionado mais satisfações do que sua fracassada missão de funcionário. Deus
tinha lhe concedido um dom sem limites: um ouvido absoluto. Você herdou o
talento musical do seu pai, embora não se possa comparar com o dele, com aquela
faculdade que lhe permitia distinguir cada nota como outros apreciam as cores. Um
ato de magia. Quando estávamos começando a sair eu lhe indicava a primeira coisa
que ouvia, um miado, o apito de uma fábrica, um grito entrecortado, a buzina de
um carro; seu pai não hesitava e dizia dó ou ré sustenido. Nem sequer se orgulhava. É
como se pedisse que me dissesse se as folhas de uma árvore de bordo são vermelhas
ou se a superfície da lua é branca, qual é o mérito?
Seu avô descobriu esta virtude muito cedo e, com sua mania de perfeição e sua
queda pela arte, permitiu que estudasse violino com um dos tios. Embora não fosse
um Mozart ou um Beethoven, Noah, ao que parece, era capaz de interpretar as
obras deles desde os onze. Agora que você é fã dos concertos e da ópera, entenderá
melhor o que digo. Seu pai encontrou refúgio nos pentagramas; não tirava notas
baixas na escola — destacava-se em matemática —, mas sua habilidade com o
violino era tão incrível que seus novos professores lhe auguraram um futuro de
solista. Aos doze deu seu primeiro recital e recebeu críticas entusiasmadas.
— E o que aconteceu então? — perguntei ao seu pai quando completamos um
mês de namoro.
— Um acidente na mão esquerda — respondeu. — Aos quatorze. Nada
terrível, duas falanges fraturadas. Disseram que depois de um tempo eu voltaria a
tocar se fizesse os exercícios. Mas nessa altura eu já tinha outros interesses.
Nunca confiei na explicação dele. E quais podiam ser esses interesses? Ele se
recusou a aprofundar o assunto. Anos mais tarde, conversando com um dos poucos
amigos que lhe restavam de Nova Jersey, Daniel Arensky — um economista do
Tesouro, robusto e impertinente, que flertava comigo embora eu nunca tenha
chegado a simpatizar com ele — me revelou que essa história era apenas
parcialmente verdadeira. Não tinha sido um acidente: durante uma briga com o pai,
cuja natureza Arensky desconhecia, este tinha fechado uma porta nos dedos dele.
Exatamente como você está ouvindo. Que tipo de pai faria uma coisa dessas?
Imediatamente perguntei a Noah sobre a revelação de Arensky. Ele negou o que o
amigo disse: seu pai nunca o teria machucado, teria que esclarecer isso para Daniel.
Muitos anos depois, pouco antes de nos deixar, Noah voltou a sentir saudade
da sua malograda profissão de violinista. Um dia me confessou que a briga com o
pai tinha acontecido e que a causa havia sido mesmo a música. Seu avô tinha
orgulho do talento do filho, mas, desde que Noah começou a dar recitais em
público, a relação deles se deteriorou, raramente assistia aos concertos e evitava
qualquer menção às suas obras ou compositores favoritos. Seu avô achava que a
música era um passatempo louvável, inclusive apaixonante, mas que devia se manter
assim: um passatempo. Pagara as aulas de Noah para impressionar os parentes ou
para que o garoto passasse um tempo divertido com uma partita de Bach ou uma
sonata de Brahms, mas antes e depois devia se consagrar à única coisa que valia a
pena: sua honesta profissão de comerciante. O velho Volpi não tinha emigrado da
Polônia para Nova Jersey, não tinha realizado uma infinidade de trabalhos infernais,
não tinha economizado para estabelecer seu negócio de ferramentas e nem tinha
progredido até transformá-lo em um empório — três filiais no estado — para que
seu único filho o deixasse apodrecer pela estupidez de embarcar em uma carreira de
músico ambulante.
“Em Cracóvia há garotos com o mesmo talento que você até embaixo das
pedras”, repreendeu-o. “Não nego que a arte pode ser uma alegria, mas há coisas
mais sérias, mais adultas. Um homem, um verdadeiro homem, se esforça para
progredir por seus próprios meios, sem confiar seu futuro a um dom passageiro. A
sociedade é um terreno hostil, meu filho, em que uns competem contra outros e só
os que perseveram são recompensados. Continue tocando seu violino, ninguém
impede isso, mas lembre-se de que é sua obrigação garantir que o negócio familiar
prospere e se multiplique. Não saímos do gueto para virar trovadores, mas para
encontrar um lugar digno no Novo Mundo. Entenda, Noah: nossa obrigação é criar
empregos, crescer, expandir o mercado; você deve se concentrar nisso, o resto é pura
vaidade. Imagino que não vai querer me decepcionar e muito menos decepcionar a
sua mãe. Você é a nossa esperança. Atualmente, as Lojas de Ferragens Volpi
constituem um dos pilares da comunidade judaica de Nova Jersey; quando Deus me
chamar, quero ter certeza de que as deixarei em boas mãos.”
— E então fechou a porta nos seus dedos? — perguntei.
— É óbvio que não. Meu pai era um homem bom — exasperou-se Noah. —
Eu mesmo fiz isso. Só assim conseguiria vencer a tentação, abandonar a ideia de ser
solista e me conformar com o destino que meus pais tinham planejado para mim.
Acho que, se tivesse tido coragem, Noah teria chegado a ser um grande solista,
como Heifetz ou Menuhin, garotos judeus que contaram com o apoio necessário
para desenvolver seu talento. Agora não importa mais. Além de possuir esse controle
sobre suas próprias emoções, seu pai era um rapaz brilhante que podia se destacar
em outros âmbitos. Já lhe disse isso: era um gênio para a matemática e, já afastado
das distrações da música, logo se tornou o primeiro da sua classe. Dizem que entre o
contraponto e o cálculo não há grande distância, você pode me desmentir. Seja
como for, no caso dele a transição se operou de maneira quase natural, sem lugar
para remorso ou amargura. Frente a esse universo de números e teoremas, tão
bonito para Noah quanto um contraponto barroco, seu avô nada tinha a objetar.
Que para o seu pai o mundo real não importasse era um segredo que ele agora
reservava para si próprio; perdido no irreverente terreno dos números, voltava a se
sentir a salvo. E, o que era melhor, sem que ninguém questionasse sua entrega.
Ao terminar o secundário, Noah ganhou uma bolsa para estudar na Faculdade
de Nova Jersey, onde teve aulas de cálculo e matemática avançada e, para continuar
fingindo certa disposição prática, de administração e contabilidade. Algumas tardes,
visitava as lojas de ferragens para colocar em ordem as finanças; a tarefa não ocupava
mais do que algumas horas. O conflito renasceu, como era previsível, no final desses
cursos; graças às suas notas, seus professores lhe prometeram outra bolsa, desta vez
para um doutorado em Columbia. Isso significava se mudar para Nova York, terra
de malfeitores e boêmios, uma coisa que o pai dele nunca aprovaria. Uma nova
disputa esteve a ponto de colocá-los em confronto, mas uma súbita trombose enviou
seu avô ao cemitério, aos sessenta e três anos. Noah pensou em assumir a
administração do negócio; a mãe, uma mulher apagada e cuidadosa que até então
tinha guardado silêncio diante dos dilemas do filho, mandou-o ir para Nova York
estudar seu doutorado.
— É o que você quer — advertiu. — Quando se formar, voltará para cá e me
ajudará com as lojas de ferragens.
Noah se matriculou então em Columbia, disposto a se especializar em
economia, disciplina que combinava sua paixão pelos números e pelos planos
imaginários com a devoção pelos problemas cotidianos que o Velho teria lhe
imposto se ainda estivesse vivo. A mãe morreu pouco depois de Noah se instalar na
Big Apple. Livre de rédeas, passou o controle do negócio familiar a um primo e se
concentrou nos estudos.
Quando começou a passear na frente da nossa vitrine, já fazia alguns anos que
Noah entrara para o Federal Reserve de Nova York, na rua Liberty, como assistente
financeiro. Um trabalho que não o entusiasmava, mas que tampouco detestava (e
preferia não comentar comigo). Dali poderia desenvolver uma sombria e ascendente
carreira de banqueiro.
De onde vinha o compromisso social que distinguiu sua atuação pública, já
que, segundo o retrato que tracei, seu pai parecia bem pouco preocupado pelo seu
entorno? Direi: a Grande Depressão o transtornou. Durante os anos no Federal
Reserve de Nova York descobriu a dor alheia graças às longas caminhadas pelos
subúrbios da cidade. A partir de então nunca mais fechou os olhos diante da penúria
de seus semelhantes. Por isso era cada vez mais incômodo para ele trabalhar em uma
instituição que não aliviava essa miséria. Você acha errado que um homem encontre
a dignidade e se identifique com os pobres? Que alguém sensível e inteligente como
o seu pai saia de si mesmo para se colocar no lugar de quem sofre?
Assim que apareceu uma oportunidade — já estávamos namorando havia
vários meses —, aceitou o cargo que um antigo professor lhe oferecia na
Administração de Seguros Agrícolas criada por Roosevelt. Seu pai era um idealista.
Seu pai queria melhorar o mundo. Isso constitui uma traição ou um pecado? Como
outros jovens de sua geração, confiava em que as reformas do New Deal ajudariam a
atenuar a pobreza de milhões. Quando me detalhou no que consistiria seu trabalho,
juro que senti uma imensa alegria. O Federal Reserve não era um lugar para ele,
para nós.
— Você gostaria de me acompanhar? — me perguntou em uma cafeteria da
Terceira Avenida.
Outra mulher poderia ter sentido que essa proposta carecia de romantismo,
mas eu me senti lisonjeada. Também acreditava em Roosevelt e no New Deal e em
um futuro promissor. Casamos no grande templo situado no número 17 da Eastern
Parkway, acompanhados por alguns poucos familiares (meus). Dois dias depois,
tomamos o trem para Washington, onde alugamos um minúsculo apartamento no
Dupont Circle. Aqueles foram, sem dúvida, os melhores anos do nosso casamento.
DUETO
CAVATINA
RECITATIVO
Embora Lars fosse da minha idade — eu tinha feito treze em março, ele faria
no final de julho —, devia ter o dobro do meu peso e me ultrapassava em dez
centímetros; como seus pais, oriundos da Noruega, mastigava um inglês
macarrônico que provocava riso na Escola de Música do Brooklyn. Antes de
admirar seu nariz reto, o quadrado de sua mandíbula ou a força dos seus bíceps, tive
a oportunidade de ouvi-lo em segredo; ele tomava aulas de violoncelo no cubículo
vizinho e, apesar da cortiça isolante das paredes, era impossível fugir do som pastoso
que extraía das cordas. Abandonei minhas partituras e espiei pela fresta da porta:
aquele jovem corpulento, de pele quase translúcida, olhos de carvão e respiração
ofegante balançava os antebraços em lânguidas arcadas. Em sua maneira desajeitada,
o Cisne de Saint-Saëns se transformava em um traço tão suave quanto efêmero.
Depois disso não desperdiçava uma oportunidade de espiá-lo. Assim que o
professor Anderson me deixava sozinho, constrangido diante da minha ausência de
progressos, me esticava na janelinha. Era incrível que aquele rapaz tosco e
musculoso, que com facilidade teria passado por um arruaceiro ou um jogador de
futebol, fosse dono de tamanha musicalidade e sutileza. Não consegui a coragem
necessária para falar com ele; se eu fosse ele, pensava, não me interessaria me
relacionar com um aluno tão medíocre. Conformei-me de admirá-lo de longe, certo
de que nunca me acolheria no seu círculo de amigos. Depois constatei que Lars era
um cara solitário, pois, embora uma flautista magrinha costumasse persegui-lo, ele ia
embora acompanhado apenas pelo seu cello. Ao terminar a aula decidi segui-lo a
alguns passos de distância. Lars não pareceu perceber minha presença e continuou
em direção à entrada do metrô. Só quando o vi desaparecer na soleira de um
descascado edifício no Queens, empreendi o caminho de volta ao Brooklyn.
— Você também mora em Flushing Meadows? — soltou no dia seguinte.
— Não — gaguejei —, costumo visitar uma tia.
Quando estávamos saindo da escola, Lars me perguntou, com um leve tom de
brincadeira, se naquela tarde também iria visitá-la. Embora tivesse jurado guardar
silêncio — minha verborragia tinha me feito perder vários amigos —, confessei a
verdade no caminho e logo me vi lhe contando a história de Judith e meu falecido
pai violinista. Ele me contou que o pai dele era cozinheiro e que sua mãe tinha
estudado piano em Oslo, mas abandonara a carreira para cuidar dele e da irmã
(também pianista). Em seguida se despediu de mim com um aperto de mão
impróprio de um virtuoso.
Ao chegar em casa, não dissimulei minha excitação. Tenho um novo amigo,
me gabei para Judith, violoncelista. Ela me elogiou, esperando que pudesse me tirar
da influência dos garotos do nosso bairro, e disse que o convidasse para jantar
conosco. Foi Lars quem me convidou à sua casa; sua mãe nos serviu uns sanduíches
e, no final, sua irmã, uma loira tão comprida e branquela quanto ele, de uns vinte
anos, propôs que tocássemos juntos. Eu disse a ela que não estaria à altura e
detestaria estragar a noite. Ela insistiu. Sentamo-nos na sala, onde em um dos cantos
resplandecia um descascado piano vertical, acomodamos suportes e partituras e
fizemos uma primeira leitura de um trio de Schubert. Embora o talento de Lars
superasse o de Ellen (e obviamente o meu), ela marcava o ritmo e as entradas. No
começo os nervos me traíram, mas a cumplicidade dos irmãos Omdal me devolveu a
confiança e consegui acompanhá-los sem tropeçar muito. Embora eu estivesse a
anos-luz de sua precisão e seus fraseios, eles me ajudaram a melhorar as articulações
e dar precisão às arcadas. Ao concluir o último movimento, sua mãe aplaudia.
Judith me advertiu de que, se quisesse que meus amigos voltassem a me
convidar, devia ensaiar muitas horas por minha conta. Descuidei das obras que
devia apresentar no recital do trimestre e me concentrei nas peças que Lars, Ellen e
eu tínhamos escolhido.
— Já sei como chamaremos nosso trio — anunciei. — Trio Omdal.
— Não é o seu sobrenome — riu Lars.
— Trio Omdal é perfeito.
Incorporamos ao nosso repertório alguns trios de Beethoven — até nos
arriscamos com o Fantasma —, um de Brahms e outro de Schumann. A sra. Omdal
nos incentivou a montar um programa completo e a oferecer nosso primeiro
concerto público. Achei uma loucura, mas Lars e Ellen se entusiasmaram.
Escolhemos os três trios do opus 1 de Beethoven e nos demos até maio para prepará-
los: então anunciaríamos na escola a estreia do Trio Omdal.
Embora eu quisesse passar mais tempo a sós com Lars, o trio impunha a
presença da irmã. Eu simpatizava com Ellen — afinal a ideia de tocar juntos tinha
sido dela —, ela sempre era cortês e doce comigo e, apesar de ser dois anos mais
velha que nós, preferia nossa companhia à de suas amigas, mas sem se dar conta
atrapalhava meu convívio com seu irmão. Quando Lars propôs que nos
encontrássemos a sós em uma cafeteria, imaginei que ele talvez sentisse algo
parecido. Depois de pedir uns milk-shakes, me lancei a comentar as distintas versões
discográficas dos trios que apresentaríamos no nosso recital.
— Sinto muito — soltou finalmente, sorvendo as bolhas rosadas. — Em maio
terei uma audição com Fournier e o professor exigiu que eu me concentrasse nisso.
— Ótima notícia! — menti o melhor que pude. — Adiar a estreia do Trio
Omdal até o verão.
— Se tudo correr bem, irei para Genebra em junho.
Terminamos nossas bebidas em silêncio.
— Você pode continuar vindo à nossa casa — acrescentou antes de descer para
o metrô. — Talvez possa ensaiar algumas sonatas com Ellen, você sabe o quanto ela
lhe aprecia.
Continuei visitando sua casa à noite, às vezes líamos uma obra nova, outras ele
me deixava com a irmã e se trancava no quarto. Em vez de demonstrar minha
amargura, propus a Lars que encontrássemos maneiras de relaxar antes da sua
audição. Fomos duas vezes ao cinema, mas depois preferimos nos refugiar na minha
casa, onde passávamos horas ouvindo Casals, Rostropovich e o próprio Fournier.
Na noite anterior à audição o convenci a comemorar antecipadamente. Eu
gostaria de atribuir a mim o mérito do seu fracasso, mas isso não me compete: a
responsabilidade foi toda dele. Bebeu além da conta, mais do que nunca. Quando o
depositei em sua casa, mal conseguia parar de pé. Sua mãe nos repreendeu e tentou
mudar a audição para outra data. Impossível.
Lars compareceu diante de Fournier com umas olheiras arroxeadas, afligido por
uma insidiosa enxaqueca. Segundo todos os presentes, tocou bem, inclusive muito
bem, em especial a sarabanda da segunda suíte de Bach. O aristocrate du violoncel o
felicitou e lhe augurou uma grande carreira. Mas não o levou para Genebra.
Embora Lars e eu continuássemos nos encontrando escondido da sua mãe
(nessa altura a mulher me detestava), nossas reuniões musicais se espaçaram pouco a
pouco. E, como era previsível, o Trio Omdal nunca estreou. Anos mais tarde,
quando olhava o programa de um concerto da Sinfônica de Buffalo — não tinha
encontrado nada melhor para fazer depois de me reunir com uns clientes do que
assistir a algumas toscas interpretações de Quadros de uma exposição e da suíte de O
pássaro de fogo —, vi o nome de Lars Omdal entre os integrantes da orquestra. Seu
suporte era o penúltimo.
CABALETTA
Ayn foi o meu primeiro amor. Corrijo: a primeira mulher por quem me
apaixonei. Uma relação, como se costuma dizer, complicada. Primeiro, porque ela
tinha sessenta e quatro anos e eu dezesseis. E, segundo, porque ela não estava a par
do meu encantamento. Ayn Rand. Um amor à primeira vista: assim que entrei em
seu universo de ingratos e rebeldes confrontados com a perversidade de politiqueiros
e burocratas, muito antes de descobrir os belos ângulos de sua mandíbula, a firmeza
de suas maçãs do rosto ou a serenidade de suas pupilas, reconheci uma alma gêmea.
O maltratado exemplar de A revolta de Atlas que resgatei de um sebo, ou que,
melhor dizendo, me resgatou, se transformou na minha Bíblia. E a exilada russa,
que então ainda perambulava pelos cafés nova-iorquinos (morreria em 1982), foi
minha Guia.
Foi Ayn quem, em uma noite ardente de leitura inesgotável, às escondidas de
Judith e seus preconceitos, me alertou contra o Estado e seus tentáculos. Graças a
ela descartei qualquer sentimentalismo esquerdista e decidi superar John Galt, o
herói que foge da mediocridade e cria uma comunidade de empreendedores nas
montanhas do Colorado. Essa distopia, tão próxima da ficção científica que me
fascinava nessa época, me deu uma lição crucial: somente os que estão dispostos a
defender a autonomia individual e a fugir dos braços do governo merecem ser
chamados de homens livres. Toda essa ladainha sobre defender os deserdados à custa
dos bem-sucedidos e todos esses discursos lacrimogêneos a favor da redistribuição
dos impostos e da intervenção do Estado nas finanças não passavam de subterfúgios
para justificar o totalitarismo. Ayn os tinha sofrido na própria pele quando os
bolcheviques despojaram sua família de suas legítimas propriedades hasteando esses
princípios falsamente igualitários.
Como todo amor atormentado, o meu foi clandestino: Judith nunca teria
aprovado minha paixão por essa mulher que era o avesso dela. Não poderia dizer
que naqueles anos, início dos anos 1970, minha mãe fosse uma revolucionária ou
uma ativista — seu trabalho como secretária não lhe deixava tempo para comícios
—, mas não perdia a oportunidade de insultar Nixon, Ford e os republicanos em
geral, nem de culpar os “obscuros interesses econômicos” ou “o complexo militar-
industrial” de todo o mal que sucedia no planeta. Minha rebelião adolescente, se é
que posso chamá-la assim, se produziu apenas nesse mínimo âmbito ideológico;
diferentemente dela (ou do meu pai), eu não estava disposto a ser parte da massa
anônima e proletária que eles tinham defendido. Como qualquer homem livre, eu
não considerava que o dinheiro fosse um utensílio do diabo. Ao contrário: só o
dinheiro me concederia essa liberdade que Ayn tinha me ensinado a defender frente
às quimeras progressistas.
Minha paixão pelo risco se iniciou, suponho, com as brincadeiras infantis.
Comecei me lançando em patinete de ladeiras cada vez mais empinadas e terminei
apostando quantias estratosféricas, pelo menos para os meus parâmetros
adolescentes, em longas noites de pôquer com a minha turma. Depois descobri que,
mais do que ganhar, me importava ganhar quando arriscava tudo, mesmo à custa de
remexer na bolsa de Judith para saldar minhas dívidas. Felizmente não me
transformei em um jogador profissional ou num destes vagabundos que saem
tropeçando dos cassinos e perdem fortunas nos caça-níqueis porque, mais ou menos
aos dezessete, topei com o livrinho Como comprar ações?, de um tal Louis Engel, e
suas páginas me arrancaram desse lúgubre destino. Além de responder de maneira
simples a perguntas como “quanto custa uma ação?” ou “como fazer negócios com
um broker?”, o texto era um tratado escrito para que o obscuro mundo da Bolsa, até
então dominado por uma elite lenta e doentia, fosse uma prática comum em cada
lar americano. De repente soube para onde dirigir meus impulsos: não ao decadente
território do blackjack ou da roleta, mas ao mundo das ações.
Minha primeira experiência no pregão da Bolsa de Valores de Nova York
equivaleu ao meu primeiro orgasmo. Aquele vaivém maluco, aquele pandemônio de
ligações e vozes cacofônicas, aquela sensação de urgência e de ousadia, de espera e de
perigo, era o mais belo espetáculo que eu já tinha visto. Uma coreografia cósmica.
Desejei apostar o máximo em um toma lá, dá cá, enfrentar o mercado como se fosse
uma fera selvagem e experimentar a comoção de vencê-lo ou a agonia de me ver
destroçado por suas garras. Ainda hoje, entorpecido nesta ilha pedregosa, meu
coração salta ao rememorar aqueles tempos de abundantes lucros e perdas
sangrentas. A maior parte de vocês, prudentes leitores, nunca entenderá o que
significa se entregar de corpo e alma ao risco: é retroceder à pré-história e sofrer a
espera diante de um predador desconhecido. O mercado: esta fera desconcertante e
perigosa. Esse inimigo feroz e implacável. Confesso que desde os dezoito, e até que
fui obrigado a deixar para trás minha vida inteira, nunca parei de brigar com o
mercado. Não é isto o que no fundo distingue um empreendedor de um picareta?
Quando lhe anunciei que tinha sido aceito na NYU e que meu interesse
principal seriam as finanças, Judith me olhou desolada, como se eu tivesse lhe dado
algo parecido com uma punhalada pelas costas. Como era possível que seu único
filho passasse para o lado do inimigo? O que tinha feito de errado? De nada me
serviu animá-la com minhas prosaicas ideias sobre a mão invisível de Adam Smith,
pois Ayn a tinha derrotado de maneira clara e contundente. A partir desse dia minha
mãe não voltou a falar comigo sobre economia ou política e praticamente se
desinteressou dos meus estudos. Ayn, em compensação, continuou sendo minha
Guia. A exilada russa me conduziu pela mão até seus incômodos aliados, Hayek —
com quem nunca simpatizou de todo —, Friedman e a Escola de Chicago. Se com
seus romances e ensaios minha namorada tinha me feito ver que o Estado é o
problema e não a solução, com O caminho para a servidão Hayek me demonstrou
que o Estado jamais disporá do conhecimento de todos os indivíduos, e por isso sua
intervenção na economia constituirá sempre uma ameaça para as nossas liberdades.
Por último, Friedman — um duende capaz de pronunciar as piores maldições com
voz de veludo — me ensinou que as grandes vantagens da civilização, em
arquitetura ou pintura, ciência ou literatura, jamais vieram de um governo
centralizado, e me animou a lutar contra as restrições que os demagogos impõem
aos mercados.
Friedman também me encaminhou para as teorias de um de seus discípulos,
Eugene Fama, e sua hipótese dos mercados eficientes: um assunto muito mais
próximo dos meus interesses práticos. Segundo sua teoria, o preço de uma ação
reflete em termos bastante exatos seu verdadeiro valor. Em outras palavras: em uma
sociedade livre, os distintos agentes econômicos não demorarão a dispor da mesma
informação (sobre certa empresa, por exemplo), que se expressará no mercado pela
única via possível: a alta ou a baixa do preço de suas ações. Se for permitido que a
informação flua com absoluta transparência, os preços refletirão o verdadeiro valor
das ações. Animado por estas ideias, reiniciei meus investimentos na Bolsa com
apostas mais ou menos conservadoras em blue chips. Meus dividendos, como era
previsível, mal superaram a inflação. Mais adiante me inclinei por algumas start-ups
e outras companhias promissoras, esperando achar minha galinha dos ovos de ouro.
O tolo sonho dos jovens. Desse jeito nunca chegaria ao meu primeiro milhão antes
dos trinta.
Em 1973, enquanto eu dava meus primeiros passos na Bolsa, dois fanáticos dos
mercados eficientes, ambos eminentes professores de Chicago, o matemático Fischer
Black e o economista Myron Scholes (auxiliados depois por Bob Merton),
elaboraram uma equação que iria ter um inimaginável impacto sobre o nosso
sistema financeiro (e sobre a minha própria vida).
A fórmula é a seguinte:
Como não pretendo que abandonem prematuramente este livro, queridos
leitores “anuméricos”, tentarei não enredá-los com derivações matemáticas.
Amparados na hipótese dos mercados eficientes, Black, Scholes e Merton
descobriram que esta fórmula permitia calcular a volatilidade das opções.* Sei que
tudo isso soa incompreensível para os ouvidos leigos, então peço que guardem
somente a consequência extrema desta ideia. Teoricamente, a fórmula Black-Scholes
permitia eliminar o risco nas operações realizadas com opções. Permitam-me repetir
isso: eliminar o risco. O sonho de todo apostador, a fantasia de qualquer investidor.
Como alguém como eu não ia ficar apatetadamente fascinado? Nos anos seguintes,
não faria outra coisa além de arrancar as possibilidades desta fórmula. Ayn Rand,
meu primeiro amor, a aristocrata russa que desconfiava tão ferozmente do Estado,
tinha me conduzido ao meu segundo e mais definitivo amor: as opções e os
derivativos financeiros.
Os corpos se estendiam pela Quinta Avenida como uma marejada: braços para
o ar, ombros e torsos nus, pernas de calças tempestuosas, coxas acaloradas, quadris
ziguezagueantes. O espetáculo compensava com vantagens os desconfortos, os
apertões e o mau cheiro no metrô, as advertências da minha mãe, o medo de topar
com algum conhecido da NYU. Não me movia, evidentemente, o menor afã
ideológico, ou por acaso alguém me imagina como um hippie histérico diante das
atrocidades da guerra, subitamente aflito por algumas crianças vietnamitas banhadas
com napalm? Se compareci, foi só porque Norman — sempre tão devoto das causas
nobres — insistiu que eu caminhasse ao seu lado no protesto, e eu não me atrevi a
decepcioná-lo. Depois de perder Lars, aquele garoto um tanto lento e agradável que
tinha nascido e crescido no mesmo bairro do Brooklyn que eu, tinha se
transformado no meu novo ídolo. Sem ser bonito, tinha uns olhos cor de mel pelos
quais era impossível não ficar hipnotizado e, na minha opinião, tinha um único
defeito, pelo menos para quem não achava que a riqueza é vergonhosa: aquele
compromisso social um tanto jactancioso, aquela vontade de denunciar até as mais
recônditas injustiças do planeta. Felizmente, o incômodo progressista era
compensado com sua conversa afável e ardilosa e um súbito interesse pela minha
pessoa que desconcertava tanto sua turma quanto a mim.
No dia em que nos conhecemos, Norman me convidou para umas cervejas
com outros rapazes do bairro, um bando de esfarrapados que na melhor das
hipóteses acabariam como zeladores ou vendedores da Coca-Cola. De todos eles,
Norman era o único que tinha frequentado o college, embora se esforçasse para
dissimular seu sucesso acadêmico como se fosse um estigma no seu expediente
proletário. Sair com seu grupo não se parecia em nada com conversar com meus
colegas da NYU, e digo isso no bom sentido. Talvez nenhum daqueles trogloditas
roçasse o QI de um rato almiscarado, e sua maior aspiração consistiria em se
empanturrar de cachorros-quentes no estádio dos Jets, mas pelo menos não fingiam
a sofisticação dos músicos ou dos universitários com quem eu tinha convivido até
então e que no fundo eram tão primitivos quanto eles.
Os trogloditas, por sua vez, deviam me considerar um mariquinha que além do
mais era, ou tinha sido — eu teria preferido não revelar isso —, violinista. Aqueles
selvagens me olhavam com uma mistura de gozação e pena só atenuada pelo afeto
que seu líder me dispensava. O que eu obtinha de uma horda de perdedores como
aquela? Nada, com certeza. Mas essa ausência de expectativas me permitia baixar a
guarda, enquanto na NYU devia me manter sempre alerta para não corroer a imagem
de dureza que eu ansiava construir para mim. Lá não apenas era obrigado a ser frio e
implacável como a fingir isso sem descanso: um tubarão em tempo integral. Com
Norman e seus camaradas, pelo contrário, não incorrerei na banalidade de dizer que
podia ser eu mesmo, mas pelo menos podia relaxar um pouco, crente de que nenhum
daqueles perdedores se transformaria em meu rival nos negócios.
A manifestação contra a guerra devia parecer tão exótica para os cavernícolas
quanto para mim, mas tampouco queriam decepcionar Norman e estavam dispostos
a passar um tempo divertido ao lado dele, como quando esgotavam suas energias no
basquete ou se enchiam de pipocas diante de uma baboseira do Jerry Lewis. De
modo que me vi de repente ali, não apenas como parte daquele desfile cheirando a
suor e esperanças, mas diretamente encabeçando-o, conduzido por obra do acaso à
frente de suas colunas. Confesso que a experiência não me desgostou: a febre juvenil
dos cantos e palavras de ordem, a maioria impraticáveis ou dementes, me contagiou
de modo natural e não demorei a somar minha voz ao coro que protestava contra o
imperialismo, o complexo militar-industrial e os abusos da CIA. Ao meu lado,
Norman vociferava e me olhava de esguelha, satisfeito com os progressos
revolucionários do seu pupilo.
Embora tivesse decidido me especializar em economia, nessa altura eu não
tinha lido uma única linha de Marx ou de Engels, e muito menos de Lênin ou de
Mao, o trapaceiro da moda, mas estava convencido de que suas ideias eram, na
melhor das hipóteses, fantasias. Pensava — e ainda penso — que uma sociedade em
que o Estado aspira a controlar e fiscalizar toda a atividade econômica está
condenada à barbárie e à paralisia. Dito isso, tampouco me considerava um
encarniçado defensor da nossa democracia, que me parecia — e ainda me parece —
uma plutocracia mascarada em que as manobras de uns poucos impõem candidatos
e programas. Só que na hora de escolher entre um sistema e outro não tinha dúvidas
de que, pelo menos para mim (não sabia se para outros, por exemplo, os camaradas
de Norman, mas sem dúvida para mim), o livre mercado oferecia melhores
oportunidades, enquanto, em uma nação centralizada, com sua multidão de
burocratas e agentes secretos, eu nunca conseguiria uma vida confortável.
Resumindo: não via nenhuma contradição entre acompanhar Norman na sua
passeata anticapitalista, desprezar o capitalismo e me considerar eu mesmo um
capitalista convencido.
Meu horror foi enorme quando na manhã seguinte me vi na primeira página
do Post sob uma manchete que deplorava a falta de patriotismo da juventude
americana. Não havia dúvida: aquele rapazinho de aparência agradável, com o
punho levantado e a boca aberta (para insultar um policial, segundo me lembro), era
eu. O que devia fazer agora? Enterrar-me embaixo da cama até que esquecessem o
incidente? Assim que entrei na sala de aula, me pareceu perceber os insidiosos
cochichos e rumores sobre a minha pessoa. Tentei passar despercebido e evitei
participar das discussões — tinha me distinguido por minhas perguntas
impertinentes e minhas brincadeiras escatológicas —, mas Jim O’Connor, um
irlandês obtuso e teimoso, republicano militante, não demorou a me expor.
— Talvez nosso camarada possa nos ilustrar como encarar o conflito vietnamita
— disse de repente.
Durante todo o semestre eu não cansara de expressar meus veementes pontos
de vista sobre a guerra do Vietnã, tinha dito que se tratava de uma intervenção
ineludível e não economizara insultos contra aqueles que, na nossa intimidada
sociedade do conforto, faziam o jogo dos vermelhos. Meu perfil era o de um
anticomunista raivoso. Que diabos fazia então à frente de uma passeata contra essa
“luminosa ação das nossas tropas”, segundo minha expressão semanas antes? Tentei
sair pela tangente, balbuciei duas ou três desculpas mais ou menos inofensivas, inseri
uma bobagem sobre o humor dos irlandeses e finalmente fiquei calado, esperando
que a desajeitada contrição diminuísse as gozações contra mim. Os olhos de Jim se
encheram de sangue, como acontece com os zumbis dos filmes, enquanto suas
presas se dirigiam para a minha jugular. Imaginei que se aproveitaria da minha
incongruência, esmagaria minha falta de convicções e nos regalaria com um
patriótico sermão contra a hipocrisia. Nada disso. Da sua boca brotou uma acusação
inesperada.
— Mas, enfim — sorriu —, o que se pode esperar de alguém cujo pai era
comunista?
O professor Graystone se apressou a nos solicitar calma e ordenou a Jim que
me pedisse desculpas. O anão obedeceu, mas o estrago estava feito. Apertei sua mão
na frente de todos, como exigiria qualquer manual de comportamento, mas, como
indicam as regras não escritas de qualquer sala de aula, esperei-o na saída. Assim que
distingui seus traços simiescos, me joguei em cima dele, gritando como um pele-
vermelha. Mais ágil que eu, Jim se esquivou da minha investida e acabei de cara
contra uma árvore. O baixinho passou reto e partiu me mostrando seu peludo dedo
médio.
Naquela noite não cedi às pressões de Judith para lhe contar o ocorrido. Tinha
prometido a mim mesmo guardar aquela afronta em segredo até que o tempo a
desbotasse e deixasse de me doer. Por que o silêncio? Uma primeira resposta: eu
tinha vinte anos. Nessa idade a gente se sente mais vulnerável e desprotegido que
nunca. E provavelmente não queria ouvir o que minha mãe poderia me revelar.
Nenhum dos meus colegas voltou a tocar no assunto, sepultado entre os milhares de
insultos trocados diariamente nessas penitenciárias voluntárias, e eu recuperei a paz.
Alguns anos depois do incidente, enquanto devorávamos um suculento
tcholent, me atrevi a perguntar à minha mãe se Noah tinha sido comunista. Sua
resposta — vocês já devem imaginar — foi um histérico não.
Inútil transcrever a briga que se seguiu: todas as rixas familiares são monótonas.
Judith continuou negando com veemência, às vezes com desespero. O seu pai nunca
foi comunista. Repetiu isso várias vezes, como se rezasse. Disse que ele tinha sido um
bom homem, um patriota, como sempre. Finalmente, no entanto, esclareceu uma
coisa: inocente ou não, meu pai tinha sido acusado de ser comunista. E não por um
oligofrênico como Jim O’Connor, mas pelo Comitê de Atividades Antiamericanas
do Congresso. Em meio às suas queixas histéricas, Judith deixou escapar — ou
talvez tenha soltado de propósito — que meu pai não tinha pedido demissão do
Fundo Monetário Internacional, como ela sempre me dissera, mas que o expulsaram
de lá por seu suposto passado comunista.
Minha mãe e eu paramos de nos falar até a cerimônia de formatura, quando
finalmente entendi suas razões. Eu também não queria que dissessem que meu pai
tinha sido comunista e nem sequer que tinha sido acusado de ser (mesmo que fosse
mentira). Minha vida de empreendedor estava apenas começando, por que
contaminá-la com esse lastro? Como Judith durante tanto tempo, eu também quis
me esquecer do meu pai. De sua culpa ou de sua inocência. Minhas preocupações,
já disse, eram outras: ganhar meu primeiro milhão antes dos trinta.
Duas décadas mais tarde, quando estava ajudando Judith a transportar seus
pertences para Vermont — o inóspito lugar onde me convenceu a lhe comprar uma
casinha —, o fantasma do meu pai voltou a me perseguir. Em uma das caixas
descobri, carcomidos pelos cupins e pelo esquecimento, seus cadernos de trabalho.
Assim que abri o primeiro deles — de 1937 — soube que não conseguiria me
desligar de sua história. Além disso, nessa altura já figuravam na minha conta vários
milhões.
* Uma ação é um valor presente; uma opção, um valor futuro. Se eu compro uma ação, compro parte do valor
de uma empresa. Se adquiro uma opção, adquiro a possibilidade de comprar ou vender uma ação (ou um bônus
ou uma divisa ou qualquer outro ativo subjacente) mais adiante. A opção confere o direito, mas não a obrigação,
de comprar ou vender algo enquanto dura o plano estipulado no contrato.
Cena IV. Sobre como apareceu meu Watson-com-saia-hippie e
o judeu canalha que inventou o FMI
DUETO
O que fazer com aquelas páginas? Eram um legado ou uma advertência? Ainda
me pergunto por que, depois de mergulhar pela primeira vez em seus diários, decidi
não continuar como um amável órfão, alheio às aventuras ou desventuras do
homem — este recalcitrante reprodutor — que despencou de uma janela um mês
antes do meu nascimento, mas um filho cada vez mais ansioso para desencavar sua
memória. O paradoxo de que um investidor de Wall Street tivesse sido concebido
com a ajuda de um agente comunista era suficientemente apavorante, mas minha
repentina obsessão por Noah não podia se reduzir a esse simples impulso de
curiosidade intelectual. Não pretendo expor aqui os mecanismos que me obrigaram
a persegui-lo (vocês conhecem de sobra minha repulsa à psicanálise), de modo que
me limitarei a confessar que a perspectiva de que meu pai não fosse apenas o pobre-
diabo pintado por Judith, e sim uma figura mais ambígua, mais complexa, inclusive
mais obscura, deve ter me seduzido irremediavelmente. A História com h maiúsculo
nunca tinha sido um dos meus fortes, sempre me interessei mais pelo futuro e suas
apostas do que pelas brumas do passado, de modo que a única solução foi contratar
uma jovem historiadora, formada em Princeton, para que colaborasse nas “minhas
pesquisas”, como ela as chamou com um tom de ironia.
Desde nossa primeira entrevista, Leah Levitt — vinte e sete anos, tão naïve
quanto lida, democrata, vegana, judia, mas sem as presunções de Rachel ou de
minha mãe — me pareceu a colaboradora ideal. Estava havia vários anos
trabalhando em uma tese de doutorado sobre os acordos de Bretton Woods e,
conforme exibia na exposição de motivos que me enviou, conhecia as maracutaias
do Departamento do Tesouro nos anos 1930 e 1940 como a palma de sua mão.
Assim que entrou no meu escritório — não deixei de reparar na sua blusa ampla,
suas sandálias e seus jeans —, lhe mostrei os diários de Noah como uma isca.
— Então, vai me ajudar a entender o que significam? — perguntei.
Leah tinha um desses sorrisos tímidos que mascaram certa rabugice. Franziu o
nariz coberto de sardas que contrastava com a transparência da sua tez.
— Eu adoraria — hesitou —, mas ainda não sei se…
— Tenho certeza de que este material servirá para sua tese, srta. Levitt. Embora
eu não entenda totalmente as implicações, consigo perceber que se trata de uma
visão única do Tesouro exatamente na época que lhe interessa.
— Noah Volpi foi assistente de White durante vários anos — confirmou ela.
— Seu diário deve ser um documento fascinante.
Não precisei pressionar muito para que aceitasse minha oferta: a quantia que
ofereci pelos seus serviços devia triplicar o valor da bolsa que recebia como estudante
da pós-graduação.
Quando voltamos a nos encontrar no meu escritório, Leah apareceu com uma
sainha multicolorida e sandálias puídas: uma anomalia em meio aos yuppies que
pululavam ao nosso redor. Fechei a porta e pedi à minha secretária que ninguém nos
interrompesse. Servi-me um uísque com gelo e ofereci outro a Leah, mas ela preferiu
um insosso copo de água. Sem nenhum preâmbulo estendeu o diário do meu pai
sobre a mesa com seus dedos finos e longos e suas unhas sem pintar cortadas rente
(em algum momento notei que as roía).
15 de maio de 1937
Harry presidia os trabalhos. Desde o começo o notei mal-humorado. De
repente James Watts desandou a enaltecer Chamberlain, que segundo as notícias
acabava de invocar a guerra ao pactuar com Hitler.
“O conflito foi evitado”, enfatizou Watts ao léu, “isto é o mais importante, não
acham?”
Todos nós olhamos para Harry: sua testa e suas bochechas ficaram vermelhas.
Começou a suar. Durante uns dois minutos, se esforçou para aplacar a ira, até que
explodiu: “Para você o Chamberlain pode ser um herói, mas para mim é um
covarde e um traidor!”.
Como Harry se atreveu a pronunciar esse insulto em uma reunião
intersecretarial? Watts não podia acreditar. E isso foi apenas o começo. Disse que, se
não agíssemos logo, todos nos transformaríamos em cúmplices da barbárie. Que
nossa prudência se voltaria contra nós. E que, por culpa dos papagaios isolacionistas,
Hitler logo seria o dono de metade da Europa e então seria impossível freá-lo.
Watts não conseguia acreditar que o principal assessor do secretário
Morgenthau o tivesse chamado de papagaio. Depois de alguns instantes de paralisia,
levantou-se da mesa.
“Aonde pensa que vai?”, interrompeu-o Harry.
Watts respondeu que achava inadmissível aquele tratamento e que não tinha
mais nada a fazer ali. Harry não se rebaixou a lhe oferecer uma desculpa; puxou-o
pelo braço e o obrigou a voltar para sua cadeira.
“Continuemos de onde estávamos”, repetiu.
“Isso não ajudará a melhorar nossa relação com a Secretaria de Estado”, alertei
Harry no final da reunião.
“Para mim tanto faz”, repreendeu. “Alguém tem que dizer a verdade.”
— Esta é a primeira entrada do diário — apontou Leah. — Noah Volpi tinha
chegado ao Departamento do Tesouro algumas semanas antes, no final de março de
1937, por decisão expressa de Harry Dexter White, que acabava de ser nomeado
diretor-assistente de Pesquisas e Estatísticas pelo secretário Henry Morgenthau.
Antes, seu pai havia atuado como assistente financeiro na Administração de Seguros
Agrícolas. Conforme averiguei, seu trabalho ali, como jovem e entusiasta seguidor
das políticas do New Deal, chamou a atenção dos círculos progressistas de
Washington e, graças à recomendação de George Silverman, um funcionário do
Fundo de Pensões de Ferrovias muito próximo de White, este não hesitou em
contratá-lo no Tesouro.
— Não sabia nada disso — confessei envergonhado.
— Não descobri nenhum documento de interesse assinado por Noah durante
sua etapa na Administração de Seguros Agrícolas — revelou. — Memorandos,
ofícios, acordos e anotações manuscritas que, se de algo dão conta, é de sua perícia
burocrática: os preços do trigo, da cevada, do milho ou os incentivos aos pequenos
agricultores não iluminam suas áreas obscuras. Apoiada nesse conjunto, apenas me
atreveria a concluir que seu pai era um funcionário minucioso, talvez com um
excessivo zelo para com as minúcias da linguagem (às vezes há três ou quatro versões
de uma mesma carta cheia de círculos em vermelho). Em compensação, no seu
diário do Tesouro não se restringe a descrever as reuniões de trabalho, mas
incorpora numerosos comentários críticos sobre a política interna do governo, o
estado da guerra e seus superiores, colegas e rivais em outras áreas. Desde que se
incorporou à equipe de White, Noah Volpi integrou-se a uma das tarefas que mais
preocupavam seu chefe naqueles meses, a chamada questão da China. Enquanto
Hitler aparecia como uma ameaça para a paz na Europa, o Japão hostilizava, da
Manchúria, Chiang Kai-shek. O gabinete de Roosevelt se dividia então em dois
grupos: os isolacionistas, encabeçados pelo secretário de Estado, Cordell Hull,
obstinados em manter o país fora de qualquer conflito estrangeiro, e os
intervencionistas, capitaneados por Morgenthau e White, que advogavam uma
drástica resposta às provocações japonesas e alemãs. Veja estas entradas.
18 de maio de 1937
O secretário Morgenthau não está disposto a ceder frente a Hull. Seu repúdio à
Alemanha só fez aumentar, em grande parte devido às suas conversas com Harry.
Insistiu e várias vezes na necessidade de aplicar sanções contra os agressores. O
presidente hesita, freado pela opinião pública; ninguém quer ver o país envolvido
em um novo confronto. As pessoas acham que não somos obrigados a salvar o
mundo o tempo todo, muito menos quando apenas começamos a sair da crise. Aos
olhos da maioria, a perseguição aos judeus é um mal menor.
8 de junho de 1937
“Boas notícias”, anunciou Harry esta manhã. “O secretário Morgenthau quer
que procuremos uma forma de conceder um empréstimo à China sem violar as
disposições do Congresso. O que acham?”
“Entrevejo uma possibilidade”, aventurou-se Harold Glasser. “Nosso governo
não reconheceu uma situação de beligerância entre a China e o Japão. Conceder um
empréstimo à China, nestas condições, não violaria as leis de neutralidade.”
“Os empréstimos precisam ser aprovados pelo Congresso”, respondeu Frank
Coe. “Os republicanos vão se opor.”
“E se nos amparássemos na Lei da Compra de Prata?”, sugeri.
“Formule”, me apressou Harry.
“Como você sabe, a lei permite comprar prata até certo limite, a fim de
equilibrar nossas reservas. Talvez pudéssemos encontrar um preço justo e estender
um pagamento em dólares, adiantado, ao governo chinês.”
“Um empréstimo disfarçado”, apontou Coe.
“Justo o que necessitamos”, entusiasmou-se Harry.
18 de junho de 1937
“Chiang também é um ditador, mas seu poder não se compara ao de Hitler ou
Mussolini”, confiou-me Harry durante o almoço. “Mas somos obrigados a apoiá-lo.
As tropas japonesas iniciaram o avanço para o centro do país e, se ele não receber
ajuda imediatamente, o destino de todas as democracias do planeta estará
ameaçado.”
8 de setembro de 1937
“A União Soviética e a China acabam de assinar um pacto de não agressão”,
nos informou Harry. Pela primeira vez em muito tempo, parece de bom humor.
“Sabem o que isso significa? Que as negociações entre a URSS e a Alemanha
cambaleiam. O Japão é nosso inimigo natural, assim como a China e os soviéticos.
Se a situação se mantiver assim, talvez seja possível articular uma grande aliança.”
5 de outubro de 1937
O discurso que Roosevelt pronunciou em Chicago sob o título de Quarentena
para os agressores surpreendeu a todos. Obrigado a não transgredir as leis de
neutralidade, o presidente deixou clara a virada que nossa política externa
experimentará. A mensagem foi contundente: a partir de agora nosso governo fará o
impossível para auxiliar seus aliados. A China, em primeiro lugar. Apesar de certas
dificuldades técnicas, a compra adiantada de prata se consolida.
25 de maio de 1938
Hoje o secretário Morgenthau tornou pública a nomeação de Harry como
diretor da nova Divisão de Pesquisa Monetária. Transformou-se no braço direito do
secretário. Até seus rivais entendem dessa maneira. A poucas horas do anúncio,
Harry ligou para o meu escritório. E, com um tom imperioso, se limitou a dizer que
contava comigo.
25 de junho de 1938
Nesta manhã Harry compareceu pela primeira vez ao Grupo das 9h30, o
conselho de guerra do secretário Morgenthau. Apenas seus íntimos são convocados
ao seu sancta-sanctorum. Segundo Harry, todos lhe dispensaram boas-vindas
cordiais, mas ele preferiu não fazer nenhum discurso. Na realidade o invejam, pois a
Divisão de Pesquisa Monetária se transformou no coração do Tesouro.
30 de setembro de 1938
Harry tinha razão. Chamberlain é um covarde e o acordo de Munique uma
vergonha. Em vez de conter a guerra, entregar os Sudetos a Hitler só vai aumentar
sua ambição. Agora o ditador sabe que ninguém se atreverá a lhe pôr limites.
— Mais adiante — Leah molhava o dedo com a língua para virar as páginas do
diário —, seu pai deixa clara a posição que compartilhava com o chefe: um repúdio
total à Alemanha nazista e a necessidade de ajudar a China na luta contra o Japão:
4 de novembro de 1938
O secretário Morgenthau pediu a Harry uma carta para solicitar ao presidente a
aprovação do projeto de compra de prata da China. Trabalhamos no rascunho até o
amanhecer. A ideia central consiste em desacreditar Hull, empenhado em fechar
acordos comerciais com outros países, demonstrando que a melhor maneira de
contribuir para a vitória da democracia é mediante um apoio inequívoco à China.
7 de dezembro de 1938
Hoje finalmente foi anunciada a compra de prata da China por um total de 25
milhões de dólares. Nossa pequena vitória.
17 de dezembro de 1938
A inimizade entre o Tesouro e o Departamento de Estado cresceu a partir da
aprovação do empréstimo à China. Hull acusa Morgenthau de se intrometer em
assuntos de sua competência, enquanto este não está disposto a ceder em assuntos
de política econômica externa. Mas a sorte está lançada, o presidente decidiu seguir
as recomendações do Tesouro — ou seja, as de Harry.
— Como se percebe nestas páginas — Leah ruborizou —, Noah Volpi
comemora a vitória do Tesouro frente ao Departamento de Estado como se fosse
uma vitória pessoal. A posição de Morgenthau, e portanto a de White e sua equipe,
só se reforça nos anos posteriores. Enquanto grandes setores do país tentam manter
a neutralidade, eles pensam que Hitler é a quintessência do mal. Daí vem a decisão
de se aproximar da União Soviética:
22 de março de 1939
Harry trabalha agora no dossiê soviético. Em primeiro lugar quer que a URSS se
comprometa a cobrir suas dívidas oficiais e privadas com os Estados Unidos, o que
lhe custará em torno de 15 ou 20 bilhões por ano; em segundo, recomenda que lhe
concedam um empréstimo de 250 milhões, com taxa de juros de 8% pagáveis em
dez anos. O crédito poderá ser empregado para financiar a compra de 150 milhões
em produtos americanos: algodão, maquinaria, manufaturas e couros. Segundo
Harry, o efeito do empréstimo será muito benéfico para a nossa economia e ao
mesmo tempo contribuirá para atrair os soviéticos para a nossa órbita. Infelizmente,
Hull continua atacando-o.
— Isso quer dizer que a equipe do Tesouro estava a favor de uma aliança com
os russos? — perguntei.
— Não, não exatamente — o sorriso de Leah não escondia certa
condescendência. — White queria negociar com os russos porque achava necessário
articular uma frente comum contra o Eixo. Mas depois, em agosto de 1939, o Pacto
de Não Agressão Germano-Soviético acabou com sua estratégia. Todos os esforços
do Tesouro se concentraram então em ajudar a Grã-Bretanha. Em 1940, Roosevelt
autorizou o início de um acordo de empréstimo e arrendamento com Churchill.
Segundo Noah — aqui Leah fez uma pausa —, não se importa que o chame de
Noah, certo?
— É claro que não, continue.
— Segundo Noah, as negociações com os britânicos não foram fáceis.
Enquanto os britânicos esperavam uma ajuda desinteressada, Morgenthau e White
não queriam entregar recursos em troca de promessas. Os dois achavam que o
Império Britânico era uma potência anacrônica que agia como rival comercial dos
Estados Unidos, e esta desconfiança fica clara o tempo todo. No seu diário, Noah
não economiza severos juízos contra os ingleses:
3 de dezembro de 1940
Harry aspira a matar dois coelhos com uma cajadada só: apoiar a Grã-Bretanha
durante a guerra e garantir que, ao término, esta não consiga manter suas aspirações
coloniais.
11 de março de 1941
Depois de longos meses de idas e vindas entre o Tesouro, o Departamento de
Estado e a Casa Branca, o presidente anunciou nesta manhã a assinatura do Acordo
de Empréstimo e Arrendamento com os ingleses. Em resposta às críticas
republicanas, Roosevelt se valeu de um exemplo rural para explicar seu
funcionamento. “Se eu emprestar minha mangueira ao meu vizinho para que
apague o incêndio que há em sua casa, não espero que uma vez apagado o fogo me
pague os quinze dólares que a mangueira vale, mas que a devolva intacta.” Ao que o
senador Robert Taft, de Ohio, replicou: “Emprestar equipamento militar é como
emprestar chiclete: ninguém espera que o vizinho o devolva depois de usá-lo”.
Piadas à parte, o Acordo representa uma grande vitória para o Tesouro, embora
agora caiba ao Departamento de Estado se encarregar de sua operação.
— A inesperada invasão nazista de junho de 1941 voltou a transformar a União
Soviética em uma potência aliada — esclareceu Leah. — Só então White retomou a
ideia de auxiliar a URSS com um acordo de empréstimo e arrendamento semelhante
ao assinado com a Grã-Bretanha.
— Não era muita insistência da parte dele?
— Agora pode parecer estranho que a equipe de White dedicasse tantos
esforços para apoiar os soviéticos, mas, de acordo com os cadernos de Noah, em
nenhum momento sua determinação parecia ter outro motivo além da luta contra o
Eixo. Em todo caso, seu pai nem sequer participou das negociações com os russos,
pois se encontrava concentrado no cenário oriental.
— E que fazia ali?
— O secretário Morgenthau estava decidido a intensificar o apoio econômico à
China, mas sem entrar em conflito com os japoneses. A pedido dele, Noah
apresentou a White um projeto que incluía não apenas a assinatura de diversos
tratados comerciais com o Japão, mas também a possibilidade de reconhecer seu
domínio na Manchúria em troca do encerramento das hostilidades contra a China.
Mas, diante da intransigência japonesa, a Secretaria de Estado dirigiu um telegrama
ao Japão exigindo a retirada de suas forças. Frente a este ultimato, o primeiro-
ministro Tojo se inclinou pela guerra, e em 7 de dezembro a marinha imperial
japonesa atacou Pearl Harbor. No mesmo dia em que Roosevelt declarou guerra ao
Japão, Noah informou este movimento crucial no Tesouro — o dedo indicador de
Leah deslizou linha a linha pelo diário do meu pai:
8 de dezembro de 1941
Depois dos brutais acontecimentos de ontem, meu estado de ânimo oscila do
choro à raiva. Mas não há tempo para parar. Morgenthau nos convocou para uma
reunião de urgência pela manhã bem cedo.
“Com o objetivo de limitar qualquer atrito entre nós”, advertiu, “e para tornar
minha vida um pouco menos difícil nestas circunstâncias, decidi outorgar a Harry
White o status de subsecretário. Não posso nomeá-lo subsecretário neste momento,
mas quero lhe conferir este status como se fosse, e ficará encarregado dos assuntos
internacionais em meu nome.”
A satisfação foi praticamente unânime. Nestes momentos de naufrágio,
ninguém melhor do que Harry para coordenar nossos esforços.
“Quero que tudo se concentre em um único cérebro”, concluiu Morgenthau,
“e quero que este cérebro seja o de Harry.”
15 de dezembro de 1941
Hoje apareceu a notícia na disposição 43 do Departamento do Tesouro: “A
partir desta data, o sr. Harry Dexter White, assistente do secretário, assumirá
completa responsabilidade em todas as matérias do Tesouro que tenham que ver
com relações exteriores. O sr. White servirá como vínculo entre o Departamento do
Tesouro e a Secretaria de Estado, atuará como assessor do secretário do Tesouro em
política externa e assumirá responsabilidades na gestão e operação do Fundo de
Estabilização, sem prejuízo de suas atribuições prévias. O sr. White responderá
diretamente ao secretário”.
— Além de continuar com as tarefas próprias da Direção de Pesquisa
Monetária — prosseguiu Leah —, agora também corresponderia a White
administrar as relações econômicas com as nações aliadas e operar os empréstimos
para financiar o esforço bélico. Da noite para o dia se transformou no segundo
homem do Tesouro e em um dos funcionários mais poderosos do governo
Roosevelt. Uma semana depois de Pearl Harbor, Morgenthau pediu a White que
pusesse em andamento um Fundo de Estabilização Interaliado que estabelecesse as
bases de um acordo econômico no pós-guerra. Foi então que o novo subsecretário
começou a trabalhar no documento mais importante de sua carreira, o chamado
Plano White, que em longo prazo seria a base do sistema de Bretton Woods.
Infelizmente, os cadernos de Noah param aqui. A última entrada, de fevereiro de
1942, aparece truncada, o que sugere a existência de um caderno posterior.
— Como lhe disse, este diário apareceu por acaso entre as coisas da minha mãe,
e ela não acredita que algum outro tenha se conservado — esclareci.
— Que pena!
— Me desculpe por perguntar isso, srta. Levitt, mas quem era exatamente
Harry Dexter White?
— Muito boa pergunta — Leah mordeu o lábio inferior. — Estou há cinco
anos estudando os acordos de Bretton Woods e ainda não poderia dizer quem era
exatamente Harry Dexter White — a seguir tirou algumas anotações da mochila e as
estendeu diante de mim. — White nasceu em Boston em 1892 e morreu em
Fitzwilliam, New Hampshire, em agosto de 1948. Foi educado em Boston e serviu
na França como oficial do Exército dos Estados Unidos durante a Primeira Guerra
Mundial. Estudou em Stanford e em Harvard, onde obteve um doutorado e
lecionou economia. Estudou no Lawrence College, em Wisconsin, uniu-se ao
Departamento do Tesouro em 1934. Rapidamente ganhou a confiança do secretário
do Tesouro. Em 8 de dezembro de 1941, no dia seguinte ao ataque japonês a Pearl
Harbor, White obteve o status de subsecretário do Tesouro. Alguns meses depois,
no início de 1942, White desempenhou papel fundamental na formulação da
política americana para antecipar a ordem financeira internacional do pós-guerra.
Ao lado de John Maynard Keynes, foi a figura dominante na Conferência de
Bretton Woods, quando nasceu o Banco Internacional para a Reconstrução e o
Desenvolvimento e o Fundo Monetário Internacional, do qual foi o primeiro
diretor executivo da delegação dos Estados Unidos. Quando o Fundo começou seus
trabalhos, em maio de 1946, White presidiu a primeira reunião do Comitê de
Diretores Executivos.
— Parece bem impressionante.
— Depois de pouco mais de um ano, White renunciou ao Fundo, deixou
Washington e conseguiu trabalho em Nova York como consultor financeiro —
Leah não conseguiu evitar que sua voz vacilasse. — Em setembro de 1947, White
sofreu um grave ataque cardíaco e um segundo enfarte provocou sua morte, em
Fitzwilliam, em agosto de 1948.
— Pois o retrato que você fez parece justificar a admiração que meu pai lhe
dispensava — me surpreendi. — O que poderia ser mais honroso e estimulante do
que colaborar de maneira tão estreita com o responsável pela articulação do sistema
econômico vigente até nossos dias?
Leah fez uma careta, como uma adolescente que de repente descobre as
infidelidades do pai.
Harry Dexter White no Tesouro.
RECITATIVO
Rachel foi atrás de mim. Digo isso sem vaidade, sabendo que este capítulo
causará um grande desgosto a ela. Para agradá-la, confessarei que naquela altura
tinha olhos celestes, tez azeitonada e pernas infinitas. (Hoje a distinguem um olhar
opalino, uma pele estragada pelas manchas e pernas cadavéricas.)
Como eu, Rachel também tinha começado um MBA em Pittsburgh, mas,
diferente da maior parte dos nossos colegas, não vinha do campo das finanças, mas
da física, e acabava de concluir um doutorado em Cornell.
Uma das vantagens — ou desvantagens — de ganhar destaque em uma escola
de negócios, inclusive em um lugar tão lamentável quanto Pittsburgh, é a aura
erótica que o dinheiro irradia. Não coloco em dúvida minha elegância nem minha
atitude nesses anos, mas, se comecei a me ver rodeado ou assediado por um tanto
deplorável coro de mênades não foi por minha imagem nem por minhas maneiras
de cavalheiro, mas sim por minha condição de estrela ascendente no mundo das
opções.
Rachel, ruiva; Gabrielle, morena; Tamara, loira. As Panteras se, em vez de
escolher pelas curvas, Charlie tivesse preferido as circunvoluções da massa cerebral.
Uma, extrovertida e ardilosa; outra, dura e sibilina; a terceira, mais para insossa,
esmagada pelas outras.
Um bar no centro de Pittsburgh.
O que comemoravam? Um aniversário, o Dia do Trabalho, o Natal, sei lá.
Quatorze estudantes de MBA se embrutecendo com shots de vodca. Um após o
outro, em uma maratona etílica.
Oito mulheres e seis homens. Entendem o que digo? Oito amigas competindo
por seis homens. Até a morte.
Que diabos eu estava fazendo ali? Às vezes a gente não consegue dizer a tempo
que não, e depois é tarde demais para fugir. De modo que ali estava eu, tentando
escapar das harpias, esperando ser um dos dois machos que sairiam ilesos da sua
luxúria. Não era tão simples. Rachel, Gabrielle e Tamara tinham decidido que eu
seria sua presa. Por quê? Porque uma delas gostava de mim, e como boas amigas as
outras tinham decidido infernizá-la.
A gente pode desviar dos socos no fígado até certo ponto; depois, com a
consciência flutuando em uma dose de aguardente, os reflexos entorpecem, os
neurônios se paralisam, e se perdem o bom gosto e as maneiras.
Gabrielle me beijou primeiro; Rachel não quis ficar atrás. Eu beijei Tamara só
para provocar as outras duas. Um passatempo perigoso.
Queria ir para casa o quanto antes.
Não irá até que nós digamos, ameaçaram. E voltaram a me beijar.
Uma delas — adivinhem qual — propôs que fôssemos ao seu apartamento.
Um loft bem bonito em Greenwich Village. Mais álcool. E um baseado.
Depois de várias rodadas de afagos, Gabrielle e Tamara desabotoaram as blusas
e se tocaram nos seios: rotundos e morenos os da primeira, minúsculos e rosados os
da segunda. Teriam feito isso outras vezes? Sua destreza demonstrava experiência.
O melhor da noite foi a cara de Rachel, casualmente a menos bêbada, que não
parecia estar a par das preferências das amigas. Não digo que tenha se assustado —
uma garota de vinte e oito anos, em meados dos anos 1970, não se assustava com
quase nada —, mas se paralisou além da conta. Quando Gabrielle e Tamara tiraram
as saias e as calcinhas e entrelaçaram suas pernas em tesoura, convidando a nos
juntarmos a elas, Rachel e eu já tínhamos parado de nos beijar havia algum tempo.
Olhávamo-nos atônitos sem saber o que fazer.
Eu disse que tinha que ir embora.
Rachel disse que ela também.
Ofegantes, Gabrielle e Tamara se queixaram de que Rachel me quisesse só para
ela. E continuaram entregues uma à outra.
Acompanhei Rachel à sua casa.
Não me convidou para subir. (Eu tampouco teria aceitado.)
Uma loucura típica da idade e da época. Teria bastado esquecer para sempre o
deslize e tutti contenti. Em vez disso, Rachel me ligou e me convidou para um
drinque. Pensei que talvez pudéssemos transformar aquele interlúdio pornográfico
em uma relação profissional: seu talento matemático era justo o que o meu novo
projeto requeria. Talvez pudéssemos fazer negócios.
No bar resumi meus planos: ela poderia traçar os modelos matemáticos que eu
necessitava e, em troca, eu a tornaria minha sócia. Torceu o nariz, decepcionada.
Mas aceitou.
Durante mais de um ano formamos um time invencível. Seus números
funcionavam, e começamos a ter lucros à altura dos nossos sonhos.
O que posso dizer como desencargo de consciência? No início de 1978,
quando esses fatos ocorreram, ela tinha dois anos a mais que eu. Era esperta, era
simpática, vinha de uma boa família do Meio-Oeste, era inclusive
convencionalmente bonita. Todos diziam que formávamos um casal perfeito.
Aconteceu o que tinha que acontecer. Outra bebedeira, os dois a sós dessa vez.
O pretexto, festejar uma boa operação. Levou-me à sua casa e transamos. Segundo
ela, sem compromisso: dois jovens liberais que, além disso, são sócios.
Depois de seis semanas ela descobriu que estava grávida.
De gêmeos.
Implorei que abortasse.
Rachel se recusou.
Deixamos de nos ver durante um tempo. Primeiro a odiei. Depois, forçando
minha racionalidade, quis ver uma saída, o escudo perfeito para sobreviver no
implacável quadrilátero de Wall Street, e implorei seu perdão.
Rachel se fez de difícil apenas o tempo imprescindível para uma garota de sua
classe. Casamo-nos no Grande Templo da Eastern Parkway, no mesmo lugar onde
Judith e Noah contraíram matrimônio.
Minha mãe se recusou a comparecer.
SERENATA
Kevin, amor da minha vida, fogo das minhas kadeiras, kilométrico Keeevin,
meu pecado, minha alma… gostaria de escrever isso, mas não pretendo somar o
plágio à lista de crimes que pesa contra mim. Rachel tinha insistido em me
apresentar aos seus pais, o sr. e a sra. Reynolds: ele, dono de uma fábrica de
tratamento de águas em Connecticut; ela, vaporosa dona de casa e filantropa. Resisti
até o último minuto até que, como sempre naquela época, acabei cedendo. Pegamos
o carro e nos dirigimos para a leitosa mansão familiar cuja parte traseira se abria para
um pequeno lago.
Seus pais me receberam com um excesso de atenções. Eu não me imaginava
como um pretendente do gosto deles, mas Rachel tampouco era uma menina.
Quando lhe perguntei por que não se comprometeu anteriormente, respondeu que
sua dedicação aos estudos sempre a impediu de conhecer alguém que valesse a pena.
Depois fiquei sabendo que, aos vinte e três, um namorado a deixara plantada na
véspera do casamento — cara esperto! — e seu coração nunca se recuperara
totalmente. Enfim, os Reynolds precisavam com urgência de alguém capaz de se
ocupar de sua prole.
Ofereceram-me uma taça de champanhe e passamos para a sala. Tudo brilhava:
os quadros vanguardistas, as maçanetas das portas, os cristais, o couro das poltronas,
como se tivessem polido cada detalhe para a minha visita. Interrogaram-me sobre os
meus sonhos — afinal aquilo era um exame — e eu não quis decepcioná-los tão
cedo, falei sobre a Bolsa e o mercado, sobre Wall Street e meu interesse pelas
opções, sobre o par que sua filha e eu formaríamos no amor e nos negócios. O sr.
Reynolds sorriu. A sra. Reynolds, em compensação, se mostrava impaciente e arisca
(talvez efeito dos barbitúricos), como se desde aquele instante tivesse detectado uma
falha oculta em mim. Tem alguma coisa que não me agrada nesse rapaz, deve ter
repetido a Rachel até o dia do casamento.
Na sala de jantar nos aguardava uma longa mesa de estilo vitoriano, e dois
serviçais uniformizados — só para evitar o clichê, não eram negros — serviram a
sopa de lagosta e o peru assado, o usual em uma típica família americana. Resisti
com estoicismo à bateria de perguntas graças ao borgonha que o sr. Reynolds vertia
com devoção. Justo quando tínhamos terminado o assado apareceu Kevin, sujo e
despenteado, se desculpando pelo atraso. A irmã lhe dirigiu um olhar de
recriminação e a mãe lhe ordenou que se lavasse; quando o coitado se sentou à mesa,
nós já enjoávamos com uma empedrada mousse au chocolat. A beleza vulgar de
Rachel e a um tanto bobalhona da sra. Reynolds se transmutavam em uma beleza
suave e melancólica no rapaz. Não resisti à tentação de lhe perguntar sua idade:
treze, grande número.
Para quebrar o gelo lhe perguntei sobre seus hobbies, e o meu Tadzio
suburbano respondeu com um ritmo monótono e temeroso: nenhum.
— A única coisa que interessa a Kevin são seus brinquedos bobos e seus gibis
— o contradisse Rachel.
— Que tipo de gibis?
Contei que eu era um grande amante dos quadrinhos e que possuía uma
coleção nada desprezível de super-heróis e invasões alienígenas. Os senhores
Reynolds me olharam com surpresa e a irmã com certa repulsa. Kevin me
perguntou se gostaria de ver alguns dos dele. Rachel insistiu em tomar o café na
varanda e demorou horas ali, mencionando uma infinidade de designers de moda e
arquitetos — uma enxurrada de nomes ilustres nos seus lábios —, empenhada em
boicotar minha incipiente amizade com seu irmão.
— Você tem mesmo todos esses gibis? — perguntou Kevin.
— Se você quiser, um dia pode vir conosco para que dê uma olhada neles.
E, sem acrescentar mais nada, corri para seu quarto, decorado como cenário de
Guerra nas Estrelas. Na colcha e nos travesseiros, no abajur e até no papel de parede,
dançavam as silhuetas de Darth Vader, Luke Skywalker, Han Solo e R2-D2, que
por sua vez estavam presentes, em distintos tamanhos e tipos, como bichos de
pelúcia e bonecos de plástico. Talvez a coleção de gibis de Kevin não se comparasse
com a minha, embora possuísse dois ou três títulos nada desprezíveis, mas sua
paixão pela saga de George Lucas me deixou estarrecido. Tinha modelos em escala
de uma dúzia de naves espaciais, uma gigantesca Estrela da Morte e, ao longo de
quatro estantes, um amplo repertório de jedis e stormtoopers em miniatura.
— Mas falta o Yoda.
Sentei-me na cama, ao lado dele, intimidado diante daquele aplicado
colecionador. Não sei quanto tempo permaneci ao seu lado, conversando sobre o
destino de Luke e a língua dos wookiees (Chewbacca também era um de seus
personagens favoritos), mas, quando ouvimos as passadas militares de Rachel,
soubemos que nossa cumplicidade tinha chegado ao fim. Ela insistiu em que eu
descesse para degustar um último drinque com seus pais e voltou a dirigir um olhar
de recriminação ao irmão.
Algumas semanas depois Kevin finalmente viajou a Nova York, fomos ao
cinema e ao McDonald’s e depois a uma loja de brinquedos, e insisti em lhe
comprar uma Millennium Falcon de quase um metro de comprimento. Uma vez no
meu apartamento lhe mostrei minha coleção (apenas uma mínima parte da que
obtive com os anos) e passamos o resto da tarde rememorando frases de filmes de
ficção científica.
Pouco depois do casamento, com Rachel já inchada como um hipopótamo, seu
irmão nos visitou pela última vez. Depois de esgotar o sábado em busca de
carrinhos, fraldas, chocalhos, mamadeiras e casaquinhos, voltamos para casa, onde
eu tinha preparado uma surpresa para Kevin: o VHS de Guerra nas Estrelas. Rachel
disse que estava esgotada e foi dormir.
Por volta das quatro da madrugada Rachel nos encontrou largados nas
poltronas e sonolentos, com uma manta nos cobrindo do frio. Minha noiva lançou
um grito histérico, ordenou a Kevin que fosse dormir e exigiu que eu a
acompanhasse — sim, agora mesmo — ao quarto. Pela manhã acordou com um
humor de cão, tomamos o café da manhã em silêncio e depois acompanhamos
Kevin ao seu trem.
Nunca mais me permitiu ficar a sós com o irmão. Kevin e eu ainda nos
encontramos em algumas reuniões familiares, sempre sob a vigilância da perua da
mãe deles, e chegamos a trocar algumas cartas. Só isso. Jamais urdi um plano para
assassinar os Reynolds e obter sua guarda, jamais cheguei a tocá-lo, jamais rocei sua
pele, nem sequer naquela noite, suavemente, por debaixo da manta.
Hoje sei que, ao fazer vinte e três anos, durante um jantar de Ação de Graças
na casa do lago, Kevin revelou aos pais que saía com um rapaz de trinta e quatro. Sei
que o sr. Reynolds deixou de falar com ele e que a sra. Reynolds fingiu não entender
o que dizia. Sei que, muito a contragosto, Rachel prometeu apoiá-lo. E sei que,
como outros membros do seu clã, Kevin também amaldiçoa meu nome.
DUETO
A própria Bíblia anuncia cruelmente: faça o que fizer, depois de sete anos de
vacas gordas, sucederão sete anos de vacas magras. As pessoas gostariam que não
fosse assim, imaginar que dessa vez será diferente, que a tragédia não deverá se
repetir ou que acontecerá em um futuro distante, mas não há salvação. Resumo
meus anos de vacas gordas. Criei meu próprio fundo de hedge; comecei a obter
dividendos que, se não eram espetaculares, pelo menos prosseguiam em rota
ascendente; casei-me com Rachel; mudamos para um apartamento, alto e luminoso,
no Upper West Side; nasceram Susan e Isaac; veraneamos no lago de Como, em
Santorini, na Côte d’Azur, em Aspen, em Paris; comprei um Camaro para mim, um
New Yorker para Rachel e um 4x4 para os nossos passeios familiares; e minha conta
bancária alcançou sete dígitos. Depois, no início dos anos 1980, a recessão
deslanchou, e eu, que me achava muito esperto e invencível, perdi 800 mil dólares
de repente; vendi o Camaro e o 4x4 e deixei de veranear em hotéis de luxo. Rachel
me massacrou com o divórcio, ficou com o apartamento alto e luminoso no Upper
West Side e com o New Yorker.
De repente me vi sem um dólar, sem trabalho, sem família e na rua. E a crise
dos anos 1980 não foi nem uma pálida antecipação da atual. O que a gente pode
fazer quando acha que tudo está perdido? Felizmente a juventude é resistente, desde
que se conservem certos vínculos, certas amizades, acesso a certas esferas, nessa idade
ainda é possível se reinventar, esquecer o fracasso ou pelo menos imaginar que foi
culpa de uma maré de azar e começar de novo.
Em Pittsburgh, Brian Donovan nunca se distinguiu por sua perspicácia, cultura
ou inteligência; obteve seu MBA com as melhores notas, mas suponho que essa é
mais uma prova de imbecilidade. Ainda por cima a natureza não lhe havia
abençoado com um único traço físico atraente, e muito menos excepcional: nariz
padrão, cabelo castanho-escuro, olhos castanho-claros, lábios finos, compleição
mediana, traseiro padrão (e aqui me detenho). O protótipo da normalidade. Assim
eram seus gostos: os Yankees, os Cowboys, os BigMac, Duran Duran, Charles
Bronson, Farah Fawcett. Com uma única e notável exceção. Eu.
Por que aquele nova-iorquino prototípico cismou comigo? Não tenho ideia. Só
me lembro de que certa noite, na festa de um colega, Brian colocou a mão na minha
coxa. Tirei-a dali com a maior delicadeza, atribuindo o mal-entendido ao pó branco
que flutuava em suas narinas. Fiquei afastado o resto da noite procurando evitar sua
companhia. Ele me ligou duas ou três vezes — não sei quem lhe deu meu número
— e eu inventei um pretexto atrás do outro para não me encontrar com ele, mas
Brian não se cansou de insistir. Reconheço que pelo menos demonstrava certo
estilo, bancando o macho, sem que suas propostas soassem impertinentes demais.
Quando nos formamos, ele encontrou emprego em um Grande Banco de
Investimento — o contrário do que eu procurava: risco e autonomia — e não voltei
a saber dele.
Pouco depois do divórcio, topei com Brian em um antro nas proximidades da
Washington Square. Custou-me reconhecer seus traços normais e seus olhos
normais e sua figura normal atrás do penteado de duzentos dólares, dos óculos
Armani, do Zegna, do Rolex. Convidou-me para um drinque e se gabou de que
acabava de ser promovido no seu Grande Banco de Investimentos. Antes que ele
pudesse me perguntar sobre minha própria sorte no trabalho, me aproximei de seu
ouvido e sussurrei o que ele sempre quis ouvir de mim. Seu apartamento, na
Broadway com a 82, era tão insosso quanto o dono.
Duas semanas depois começou minha carreira no J.P. Morgan.
Cena VI. Sobre como limpar seu nome da infâmia e a extinção
dos profetas
* Segundo Leah, depois de sua passagem pelo Comitê de Atividades Antiamericanas, J. Parnell Thomas (1895-
1970) seria condenado por corrupção e encarcerado durante 18 meses.
Cena VII. Sobre como alguns banhistas conseguiram quebrar o
Planeta Terra S.A. e a persistência dos vírus
RECITATIVO
Fomos nós? Mesmo? Não que me tenha feito a pergunta com muita insistência,
nem que tema um ataque de nervos caso minha intuição se confirme — a esta altura
já deveriam reconhecer meu desprezo pela culpa —, mas quando paro para pensar,
por exemplo, enquanto recebo uma massagem tailandesa ou traço estas linhas à
sombra de um coqueiro, não deixo de me surpreender com isso que soa como um
relato fantástico ou, quase melhor, de ficção científica. Se o velho Aristóteles estiver
certo (e, acreditem, sempre está) e a causa da causa for causa do causado, devo
reconhecer que, por mais inverossímil que pareça, nós somos os culpados. É óbvio
que não fizemos isso sozinhos, foi necessária a participação prolongada de milhares,
talvez milhões de vontades cúmplices — ou ambiciosas e sedentas, ou cegas e
estúpidas — ao longo de três quinquênios: políticos irresponsáveis, banqueiros
perversos, burocratas internacionais sem escrúpulos, acadêmicos e investidores tão
embrutecidos por Hayek e Friedman quanto eu e, obviamente, um número
incontável de cidadãos anônimos, tão ingênuos quanto avaros (é muito provável,
querido leitor, que você seja um deles), mas em todo caso a ideia original nos
pertence: a semente ou o disparador da hecatombe. Como os cientistas loucos de
um filme para adolescentes, fomos nós que incubamos o agente patogênico — a
mortal cepa DRV4, ou seja, divida o risco com a velhinha do 4 — que não tardaria a
fugir do nosso laboratório até se transformar em uma epidemia que transmutaria em
zumbis um número inverossímil de vítimas no Norte e no Sul, nos países
desenvolvidos e no Terceiro Mundo: essa praga que deveria destruir tantos destinos
quanto a peste negra. Sim, fomos nós. E, para nos desligar da nossa sinistra
invenção, não basta alegar que depois fomos mais prudentes que outros bancos, que
uma vez criado o monstro resistimos a utilizá-lo em nosso favor, que inclusive
quisemos alertar, ainda que timidamente — timidamente!, que eufemismo! — sobre
os perigos da nossa criatura, sobre a fome descontrolada ou a raiva destrutiva que
estava escrita em seus genes. Não basta nos desligar dos estragos posteriores: a ideia
foi nossa, ponto. Temos o copyright da catástrofe. Segundo conta a lenda, quando
J. Robert Oppenheimer ficou sabendo que seu bebê finalmente tinha aterrissado em
Hiroshima, balbuciou: “Eu sou a morte”. Para lhe fazer eco, em um tom sem
dúvida menos arrepiante, me corresponderia acrescentar: “E nós somos a crise”.
CORO DOS BANQUEIROS
INTERLÚDIO
RECITATIVO
— Bem-vindos a Plutão.
Com essa frase Pete tinha nos convocado a imaginar uma nova onda de
Derivativos Financeiros.
Descrever em uma ordem cronológica medianamente compreensível o que
aconteceu então na Mesa-redonda do Boca Raton excede meus dotes narrativos. A
ansiedade e a energia de Pete catalisavam a ressaca e o entusiasmo às vezes
exacerbado dos rapazes. Se algum deles se atrevia a balbuciar uma proposta, e esta
não era fundamentada com esmero, Pete, incapaz de perder tempo com
banalidades, o ridicularizava. Então os quants voltavam a mergulhar nos algoritmos
e teoremas, praticamente sem levantar a cabeça. Pete buscava reanimá-los com uma
breve provocação ou um elogio à sua inteligência estratosférica, colocava os pontos
nos is e resumia os caminhos abertos; os jovens captavam a mensagem, tomando
café com as mãos tremendo, e apontavam uma possível saída aqui e outra lá, um nó
que era necessário desfazer ou um atalho que não tínhamos considerado. O
redemoinho de argumentos e contra-argumentos simulava um parto ou uma
batalha, como se depois de tantas idas e vindas aquelas mentes plurais se unissem em
um único cérebro.
Graças a esta soma de talentos, estilos e personalidades, finalmente uma
Pequena Ideia abriu caminho entre nós. No início a observamos à distância, com
desconfiança, como quando um pescador vislumbra a ponta de uma aleta e imagina
o gigantesco volume do dourado sob a água. Depois um e logo outro se atreveram a
expressar em voz alta seu entusiasmo, moderado pelas dúvidas dos mais céticos, até
que chegamos a um consenso involuntário: sim, você não está enganado, sim, é uma
Boa Ideia, boa não, muito boa. Tem certeza? Sim, observe-a deste ângulo e do
contrário. Você tem razão. E se estivermos errados? E se for inviável ou as
reguladoras não admitirem? Não, veja bem, não tema. Você tem razão, sim, sempre
tem. É uma Ideia Brilhante, muito brilhante, eu disse, e agora não a deixem ir,
agarrem-na, finquem seus arpões nela, por favor não a soltem, agarrem-na já!
— Bingo! — soltou Pete, com os olhos fora das órbitas e a calvície brilhando
de suor.
Sua exclamação, tão inglesa, devia ser entendida de outro modo: sim, senhores,
esta é a Nova Grande Ideia:
— Por que não usamos os derivativos para negociar o risco associado com os bônus e
os empréstimos corporativos?
Foi isso que sugeriram. Em linguagem comum: por que não permutamos o
risco implícito em qualquer dívida?
Qualquer um sabe que um dos maiores perigos do nosso sistema reside em que
os devedores não cumpram com suas obrigações. Se os bancos são os motores da
economia é porque recebem dinheiro em forma de depósitos que depois canalizam
em empréstimos empregados para todo tipo de coisas, desde comprar uma casinha
(na verdade uma hipoteca) até construir um centro comercial ou fundar uma
pontocom. Mas sempre existe o risco de que quem recebe o dinheiro não consiga
ressarci-lo, juntamente com os respectivos juros, ao término do prazo combinado de
antemão. A Nova Grande Ideia consistia em criar um novo tipo de swap que
reduzisse, ou diretamente eliminasse, o risco de calote.
Como? Valendo-nos, outra vez, do princípio geral das permutas. Criando um
instrumento que amparasse este risco e depois trocando-o no mercado de derivativos
financeiros. A proposta soava tão louca, e tão bonita, que todos nós achamos que
tínhamos olhado o sol de frente.
DUETO
CORO DE BANQUEIROS
Era a guerra.
De nossas trincheiras no J.P. Morgan enfrentamos o inimigo sem medo,
contivemos suas investidas, desmantelamos a resistência e finalmente não deixamos
pedra sobre pedra. Os reguladores da SEC eram, obviamente, os vilões.
Para qualquer investidor — e qualquer paladino do liberalismo — eles eram
pouco menos que bandidos ou saqueadores: caipiras toscos e elementares que,
metidos em ternos da Macy’s (provavelmente de ofertas 3 por 1) e gravatas da Tie
Rack, e entorpecidos em suas baias burocráticas, não faziam mais que ruminar seu
descontentamento e imaginar como acabar conosco.
A caricatura não evita uma grande dose de verdade, pois, enquanto eles sofriam
para pagar as contas de luz ou de telefone, nós esbanjávamos em joias, perfumes e
champanhe; enquanto eles se casavam com suas namoradinhas do Meio-Oeste, nós
entrávamos nos haréns do jet set; enquanto eles dirigiam ramblers desengonçados,
nós voávamos em maseratis; enquanto os filhos deles eram brutalizados nas
remelentas escolas públicas, os nossos se exercitavam em competições de polo ou
hóquei nos campos ou pistas de gelo de suas academias privadas. Como não iriam
nos detestar?
A natureza do livre mercado nos tinha colocado nos lados opostos da cadeia
evolutiva: do lado de cá, não propriamente os melhores, mas os mais aptos, os que
sabiam crescer, desafiavam as convenções e se elevaram como donos do mundo; e do
outro lado, aqueles miseráveis, os que se conformavam com seus risos e dissabores
cotidianos, os que se resignavam a mendigar seus salariozinhos de merda, os que se
resignavam ao commuting e dali forjavam regras e barreiras só para nos atormentar.
Desmancha-prazeres. Invejosos. Comunistas!
No começo dos anos 1990, o mercado de derivativos tinha alcançado um
primeiro boom: pequenos bancos, recursos de pensões e até médias empresas se
lançaram em massa atrás dos novos produtos financeiros que garantiam exorbitantes
dividendos. O J.P. Morgan os tinha criado para diluir o risco, mas nossos
imitadores os usavam como fichas de cassino, alavancando seus investimentos a
níveis nunca vistos.* Até que o vento mudou de direção. Em 4 de fevereiro de 1994,
o Grande Guru Greenspan, Sumo Sacerdote do Federal Reserve, acordou com a
ideia de elevar as taxas de juros de 3% para 3,25% para esfriar a superaquecida
economia americana.
Parabéns, sr. Greenspan: em um abrir e fechar de olhos o senhor conseguiu que
o preço dos bônus despencasse e que o mercado de derivativos estivesse prestes a ir
para o lixo. Dezenas de bancos, empresas e recursos de investimento roçaram a
bancarrota: Gibson Greetings, Procter & Gamble, Mead Co., Askin Capital
Management, Paine Webber e um longo et cetera. De repente havia muita gente
irritada. Realmente irritada.
Aqui uma (insípida) lição de história: sempre que sobrevém uma crise, os
abutres cheiram a carniça, abandonam seus ninhos, abrem as asas negras e os bicos:
“Nós avisamos desde o começo, blá-blá-blá, os derivativos são daninhos, blá-blá-blá,
é necessário dar-lhes um basta”. Os reguladores precisavam de um bode expiatório, e
o Escritório Geral de Contas (GAO: General Accounting Office) publicou um estudo
de 196 páginas exigindo intervenção.
Imediatamente entraram em ação esses vagabundos que só quando já há várias
crianças afogadas apontam a urgência de tapar o poço: os políticos. Congressistas
democratas e republicanos, hidra bicéfala e amorfa, apresentaram quatro diferentes
iniciativas para regular os derivativos financeiros. Se uma delas prosperasse, os
bancos de investimento perderiam trilhões. Felizmente a mais antiga democracia do
planeta conta com instrumentos para que os capitalistas defendam seus interesses
(que, não me entendam mal, são os verdadeiros interesses da nação): os lobbies.
Mark Brickell e eu fomos encarregados pelo J.P. Morgan de sensibilizar os
congressistas sobre a importância de não colocar travas na opinião pública a este
novo e brioso mercado. Achávamos que a proposta de regular os derivativos,
dissemos a todos que quiseram ouvir, era um severo atentado contra a liberdade.
Não sei quantas ligações e cafés, almoços e jantares de cortesia fizemos ao longo
daquelas frenéticas semanas em Washington. Jornalistas puxa-sacos, políticos
esquivos, colunistas sindicalizados, gordos âncoras de notícias, medrosos agentes do
governo e avessos proprietários de estações de rádio e televisão tinham que entender
que, se freássemos o mercado de derivativos mediante leis inoportunas, a economia
sofreria uma parada brusca. Erros, sem dúvida, haviam sido cometidos, mas o
mercado de derivativos era perfeitamente capaz de se regular por si próprio.
Depois de uma interminável série de viagens a Washington, Nova York,
Londres e Tóquio, a balança pouco a pouco começou a se inclinar para o nosso
lado. O ponto de inflexão se deu quando Lloyd Bentsen, secretário do Tesouro de
Clinton (este lúbrico encantador de serpentes, teoricamente tão socialista), declarou
em maio de 1994 prévio acordo com seu chefe:
— Os derivativos são instrumentos perfeitamente legítimos para controlar o
risco. — Derivativos não é um palavrão. Devemos ser muito cuidadosos em não
interferir no mercado de forma incorreta.
Pouco depois, o Grande Guru Greenspan o apoiou:
— A legislação dirigida a regular os derivativos não pode substituir uma
reforma mais ampla, mas, na ausência desta reforma, poderia aumentar os riscos no
nosso sistema financeiro ao criar um regime regulatório ineficaz que diminuísse a
disciplina de mercado.
Tradução: regular era pior do que não regular.
No final do ano, as quatro iniciativas apresentadas no Congresso tinham sido
descartadas.
Reguladores, 0 — J.P. Morgan, 4.
INTERLÚDIO
DUETO
* Alavancar significa, em termos simples, pedir dinheiro emprestado para fazer um investimento e ficar
submetido a níveis muito sensíveis de movimentos nos preços. (N. A.)
** A nota mais alta concedida pela Moody’s é aaa; ba2 entra no campo dos bônus lixo.
*** Em espanhol no original. (N. T.)
Cena X. Sobre como influenciar pessoas e trair seus amigos e os
corvos que aninham no coração
RECITATIVO
Hoje foi um grande dia. Finalmente Vikram está ao meu lado. (Na verdade
descansa no quarto, moído pelo jet lag e pelo sexo intempestivo.) Enquanto ele
dorme, eu me afogo com outro gim-tônica contemplando o negror do oceano.
Sempre odiei o mar e seus contornos, essa superfície plácida ou aguerrida cujas
profundezas nos enganam. Quando criança minha mãe me arrastava para as
pedregosas praias de Long Island e eu não me atrevia nem sequer a molhar os pés,
temeroso diante das fauces das moreias e dos dentes das piranhas que deslizavam a
alguns centímetros da minha pele e do meu medo. Que paradoxo sobreviver nas
suas margens!
Segundo uma tradição dos aborígenes locais — estes apolos pardos, de sorrisos
anônimos e músculos de ilustrações de anatomia —, quando há uma discrepância
entre dois homens, a disputa deve ser resolvida pelo mar. Os rivais partem para a
costa norte, célebre pelos cardumes de tubarões, e os dois devem entrar na água até
que só se vejam suas cabeças, encrespadas boias à deriva. Os inocentes, afirmam os
xamãs, nunca serão mordidos. Assim que as ondas se tingem de vermelho,
descobrem qual deles mente e qual diz a verdade. A menos, imagino, que as
famintas deidades marinhas devorem os dois infelizes ao mesmo tempo.
Esse sugestivo suplício, não muito distante do julgamento divino medieval e
dos nossos atuais julgamentos legais, resume uma das nossas paixões seculares, como
descobrir o que escondem os olhares limpos ou turvos de nossos familiares, amigos e
vizinhos, suas expressões corteses ou raivosas, seus elogios sibilinos ou seus grosseiros
ataques. Você afirma ser inocente. Eu digo o contrário. Começa então o jogo ou o
desafio.
Julgamentos e procedimentos, audiências e acareações, desbaratamento de
provas e depoimentos de testemunhas: uma complexa trama legal que, em minha
opinião, resulta quase tão precisa quanto o sincero veredito dos tubarões.
Afinal, em um ou outro caso nos corrói uma lacerante certeza, a de que é
provável que nunca cheguemos a discernir quem diz a verdade. Essa verdade que,
como afirmam os filósofos — e a minha mãe —, nos está vetada de antemão. No
máximo podemos nos conformar com esse sucedâneo que os rábulas chamam de
“verdade judicial”, essa verdade adjetivada que, se formos sinceros, em nada se
distingue da especulação.
Como diabos saber que uma pessoa está mentindo?
Como diabos saber que aves aninham no coração dos nossos semelhantes?
Estamos condenados à sombra. À mesma enervante opacidade dos oceanos. A
ir para a cama, como eu estou fazendo, ansioso para me resguardar junto ao corpo
morno do meu amigo, com um buraco no estômago.
Enquanto se dirige à U.S. Service & Shipping no dia seguinte, dá com uma
horrível notícia nas primeiras páginas dos jornais matutinos: Louis Budenz, até
então chefe de redação do Daily Worker — e antigo agente secreto como ela —
abandonou o comunismo e se converteu à fé católica. O desgraçado sabe quem ela é
e qual foi seu papel durante os últimos anos, se ele colaborar com o FBI muito em
breve ela se verá atrás das grades.
Em 16 de outubro de 1945, Elizabeth vai ao seu encontro com o agente
especial Aldrich para ratificar a denúncia contra Heller. Em vez de ir até o doentio
edifício do FBI em New Haven, toma o metrô rumo ao gigantesco bloco da Corte
Federal em Manhattan. Sobe a escada correndo e chega ao escritório de Aldrich
resfolegando.
No novo depoimento, Elizabeth contradiz tudo o que declarou diante do
agente Coady.
— Peter é um sujeito sem escrúpulos. Desconfio que seja um agente russo. Me
mandou ficar calada e não revelar o que sei graças ao meu trabalho na U.S. Service
& Shipping. Seu tom era ameaçador, agente Aldrich. Não me sinto a salvo. Preciso
de proteção.
O agente especial, um sessentão prestes a se aposentar, não tem a paciência de
seu predecessor.
— Graças ao meu trabalho, agente Aldrich — continua Elizabeth —, tive
oportunidade de conhecer dezenas de comunistas russos e americanos, e travei laços
com pessoas das quais suspeito, sim, agente Aldrich, das quais suspeito de que na
verdade trabalham para os soviéticos.
— Ah, sim? E poderia me proporcionar alguns nomes, srta. Bentley? —
pergunta ele, incrédulo.
Ela avalia suas opções. Não pensa trair ninguém. Não ainda.
— Earl e William Browder. E Jacob Golos.
Os Browder são dirigentes históricos do Partido Comunista dos Estados
Unidos, até um agente prestes a se aposentar como Aldrich sabe quem são. Mas, ao
mencionar Yasha, seu antigo amante, a seu falecido esposo, Elizabeth sente que
cruzou uma fronteira sem volta.
— E também Louis Budenz — acrescenta Elizabeth, tirando seu ás da manga.
— Mas não sei por que estou lhe contando isso, agente Aldrich, pois tenho certeza
de que você está a par de tudo. Sei muito bem que o FBI me segue desde 1941.
Aldrich se convence de que é uma louca: o nome Elizabeth Bentley não figura
em nenhum expediente do FBI.
— Tem alguma prova, srta. Bentley?
— Receio que não.
Aldrich lhe garante que dará prosseguimento a sua denúncia e promete entrar
em contato com ela o mais breve possível. Na verdade tem outros planos: se
aposentar e abandonar para sempre esse trabalho de loucos.
Pouco antes de entregar o distintivo, o agente especial Aldrich finalmente
encontra um tempo para escrever seu relatório. Antes de enviá-lo faz uma breve
ligação para o agente especial Edward Buckley, o novo encarregado do assunto.
— Se não estiver louca varrida — avisa-o —, talvez esta mulher possa se tornar
uma boa informante.
Sai Aldrich, entra Buckley: um homenzarrão com uma paciência e uma
sagacidade de que seus antecessores carecem. Desde que recebe o expediente não
para de discar o número de Elizabeth. Cada vez mais apavorada, ela se nega a
atender. Até que um último incidente a faz mudar de ideia: agora eles não apenas a
perseguem e a ameaçam, mas pretendem destruí-la.
Depois de examinar os livros contábeis da U.S. Service & Shipping,
descobriram um furo de 15 mil dólares e querem que ela os devolva. Uma loucura!
Elizabeth não tem este dinheiro, não fez nenhuma transação obscura, é outra
manobra deles para encurralá-la. Diante deste novo desplante, eles não hesitam em
lhe fazer ver, desta vez sem eufemismos, que sua vida está por um fio.
Em 6 de novembro o telefone volta a tocar no quarto de Elizabeth. Ela atende.
Depois de meia hora ouvindo seus argumentos, o agente especial Buckley lhe pede
que se encontre com ele na estação de metrô de Foley Square às 16h30; ela deverá
usar uma jaqueta preta e levar um exemplar do Times debaixo do braço. Finalmente
alguém a leva a sério! Elizabeth segue as instruções, e Buckley a conduz através de
um labirinto de escadas e elevadores até seu escritório no terceiro andar do Edifício
Federal.
Em 8 de novembro, o escritório do FBI em Nova York envia um telex urgente a
J. Edgar Hoover, em Washington:
PARA O DIRETOR URGENTE. RÉ: ELIZABETH TERRILL BENTLEY. EM SETE DE
NOVEMBRO DE MIL NOVECENTOS E QUARENTA E CINCO A MENCIONADA
COMPARECEU VOLUNTARIAMENTE À DIVISÃO DE CAMPO DE NOVA YORK ONDE ALE
[SIC] PROPORCIONOU INFORMAÇÃO RELATIVA A UM CÍRCULO DE ESPIONAGEM
RUSSA A QUE ESTAVA FILIADA E QUE ATUALMENTE SE ENCONTRA EM OPERAÇÃO NO
PAÍS.
Chambers não se engana: a hora das denúncias públicas não chegou. Durante
os primeiros anos da guerra, os Estados Unidos mantêm uma difícil neutralidade e,
depois da traiçoeira invasão alemã à União Soviética de 1941, esta passa a se
transformar em uma potência amiga: não interessa a ninguém perseguir ou julgar
uma rede de espiões russos. Consciente de ter perdido a batalha, Chambers
concentra sua luta em outra frente: seus artigos no Times. Com uma pluma cada vez
mais mordaz, esgota suas energias em açoitar o comunismo e os democratas que
simpatizam com ele ou o defendem. Somente em março de 1945, quando o curso
da guerra parece garantido e os ressentimentos entre os Estados Unidos e a União
Soviética se aguçam, Chambers recebe a ligação de Raymond Murphy, oficial do
Departamento de Estado que investiga as denúncias de espionagem.
Chambers se tornou célebre como um ágil e venenoso articulista, escalou até o
topo do Times, acolhido por Luce como seu homem de confiança, e sofreu um
enfarte que o obrigou a renunciar a esse ritmo de vida extenuante. Murphy viaja à
sua casa de campo em Westminster, onde Chambers o recebe em um estado
lamentável, mas sem parar de fumar um cigarro atrás do outro. Durante duas horas
repete a mesma coisa que disse a Berle em 1939; a diferença dessa vez é que Murphy
escreve um memorando que logo circulará nos mais diversos ambientes políticos de
Washington.
Enquanto a Guerra Fria se torna um confronto ineludível, em 1946 os
republicanos conseguem a maioria do Congresso e imediatamente acusam os
democratas, inclusive Truman, de proteger os simpatizantes dos comunistas que
trabalham no governo. A ameaça vermelha se transforma na ordem do dia.
Sentindo-se com a corda no pescoço, Truman tira da manga novas leis de confiança
para os funcionários públicos e instrui o secretário de Estado, James F. Byrnes, a se
livrar de todos os elementos suspeitos. A eleição de J. Parnell Thomas, um
republicano raivoso e enérgico, como presidente do Comitê de Atividades
Antiamericanas, se transforma no tiro de largada da era da perseguição e suspeita
que mais tarde será simbolizada pelos grunhidos e desplantes do senador Joseph
McCarthy.
Neste novo ambiente, o memorando de Murphy desperta um repentino
interesse tanto entre os representantes populares quanto na administração Truman.
Entre 1946 e 1947, Chambers se encontra várias vezes com Murphy, bem como
com agentes do FBI e da comissão de lealdade impulsionada pelo presidente. Em
todas as vezes ratifica suas acusações, embora se negue a fazer denúncias específicas.
Interrogado expressamente pelo FBI, nega ter feito parte de qualquer rede de
espionagem e declara não possuir provas dos vínculos com os russos das pessoas que
tinha delatado.
Por que este escrúpulo? Chambers decidiu que sua cruzada não é contra
indivíduos específicos, mas contra o comunismo como força destruidora. Ele não
pretende destruir ninguém: se falou com Berle foi porque naquele momento achou
que a espionagem soviética representava um verdadeiro perigo para o país. Agora
que o conflito terminou, prefere se concentrar nos seus artigos em vez de se envolver
nas investigações do HUAC. Assim, quando a Ameaça Vermelha finalmente se
transforma em um assunto fundamental na vida americana, Chambers só se
interessa em desmantelar as turvas ideias que sustentam o marxismo.
Tarde demais.
A paranoia anticomunista que ele contribuiu para desatar se expande por toda
parte: políticos e jornalistas, ao que parece, não fazem outra coisa além de
desmascarar espiões.
Em 20 de julho de 1948 a bomba explode quando o World-Telegram publica
que uma “bonita loira”, antiga militante comunista, revelou ao FBI os nomes de uma
gigantesca trama subversiva incrustada no governo. A “rainha dos espiões
vermelhos” não é, como sabemos, nem loira nem bonita, e sim Elizabeth Bentley.
Em 31 de julho ela depõe diante do HUAC e repete a longa lista de nomes que
começou a recitar diante dos agentes especiais Buckley e Jardine no Edifício Federal
de Nova York. Quando Chambers vê as declarações da srta. Bentley na imprensa,
entende que não poderá mais continuar calado.
Em 1o de agosto de 1948, o chefe de investigações do HUAC declara à imprensa
que as acusações da srta. Bentley serão ratificadas por uma nova testemunha: uma
intimação para depor já foi enviada ao sr. Whittaker Chambers, colunista do Times
e antigo militante comunista. A bola de neve que ele mesmo colocou para rolar nove
anos atrás, quando foi jantar um cozido de veado na mansão do subsecretário Adolf
Berle, finalmente o alcança.
FINAL I
— Por que você mentiu para mim? — alfinetei Judith em seu abominável
retiro tropical.
Nessa tarde me pareceu mais escorregadia, mais irritante do que de costume.
Usava um vestido verde horrível e meias três-quartos de lã. Minha mãe cravou seus
olhos irisados, mal diluídos entre as rugas das pálpebras, nos meus. Aquele olhar.
Depois riu. Não um riso dos dela, maligno e malicioso, mais uma gargalhada feroz,
quase animal. Apaziguada pela tosse e pelo pigarro, desta vez não repetiu que cada
um tem a verdade que merece — sua linha de telenovela da outra tarde — e nem
sequer tentou se justificar. Tomou um gole de chá, limpou a garganta e lançou um
suspiro quase enternecedor.
— O que queria que eu dissesse? — sussurrou. — Que antes de morrer seu pai
tinha sido acusado de ser espião comunista? Percebe como soa ridículo?
Carregava nas costas muitos romances de Le Carré e muitos romancezinhos de
seus imitadores, muitos filmes de ação e muitas séries sobre agentes infiltrados —
para não falar de paródias tipo Agente 86 — para que uma trama desse tipo
resultasse já não verossímil, mas minimamente inquietante. Mas não tinha sido essa
a razão de seu silêncio. Nos anos 1960 e 1970 a ameaça vermelha ainda parecia ativa
e, embora o macarthismo tivesse caído em desgraça, as atividades encobertas da KGB
e da CIA continuavam se desenvolvendo em todo o planeta. E, afinal de contas,
Noah tinha sido acusado de espionagem e só sua morte acidental, que já não me
parecia tão acidental, o salvara de ir a julgamento e talvez à prisão.
— Só me diga uma coisa — desafiei-a. — Foi um acidente?
— O pombo.
— Como você sabe? Ele estava sozinho, ninguém o viu tropeçar.
— Por Deus, meu filho — me repreendeu como quando eu errava as divisões
na escola —, foi aquele estúpido pombinho.
Outra mentira.
— Apesar de sua timidez, Noah era decidido e valente, sempre preocupado
com as causas sociais. Ele conviveu naquela época com militantes comunistas? Sem
dúvida. Ele próprio foi um comunista? Duvido. Trabalhou para os russos?
Certamente não.
— Você também sabe isso?
— Ninguém o conheceu como eu — levou as mãos ao peito. — Só lhe
importava seu trabalho no Tesouro, tinha certeza de que estava contribuindo para a
criação de um mundo melhor. Como em tudo, o coitado se enganou.
— Por que nunca me contou nada disso?
— Fiquei viúva quando você nem sequer tinha nascido — enfatizou com
orgulho. — Meu marido tinha sido acusado de ser comunista, o pior insulto que
alguém podia receber nessa época. Acha que queria me lembrar disso? Reviver
aqueles anos de merda? Tinha que começar isso que os pregadores da televisão
chamam uma nova vida. Com você, filho. Ou, melhor, para você.
Contemplei-a ali, sob o ardiloso sol da Flórida, a cútis rugosa, as raízes brancas
que denunciavam a tintura castanha do cabelo, mas não consegui sentir pena ou
compaixão por aquela mulher.
— Nunca lhe interessou saber quem era ele? — provoquei. — Saber quem era
o seu marido? Averiguar se tinha mentido para você?
— Já estava morto, o que importava?
Judith alisou o vestido e tocou a campainha para que a enfermeira viesse buscá-
la. Seu rosto não demonstrava irritação nem fastio, nem sequer aborrecimento.
— E acha que você será capaz de descobrir quem ele era, meu filho? — Sua voz
era muito tênue. — Que você descobrirá quem era Noah Volpi? Que você
descobrirá a quem ele era leal?
Cambaleou ao se levantar da cadeira; a enfermeira a ajudou a se levantar.
Minha mãe continuava mentindo. Uma e outra e outra vez. Teimosamente. Até o
final.
É possível saber que aves habitam no nosso coração? No da minha mãe não se
aninhavam pombos, mas corvos.
* Leah esclareceu que, depois de algumas semanas, o FBI descobriu que Heller era um dom-juan de aldeia que
inventava histórias de espionagem para esconder seu casamento e seduzir mulheres desejosas de aventuras.
Segundo ato
L’occasione fa il ladro
Cena I. Sobre como visitar Washington à noite e arrastar um
cadáver pela lama
ÁRIA DO ESPIÃO
DUO
PRELÚDIO
RECITATIVO
Desde o meu divórcio com Rachel eu tinha decidido não voltar a tocar, para
não falar em apertar, amassar ou penetrar, outro corpo feminino. Embora tentasse
me justificar argumentando a aparência um tanto andrógina de Leah, seu torso
esbelto, desprovido de protuberâncias alarmantes, suas panturrilhas musculosas —
de jogador de futebol, brincou ao se despir — ou seu nariz francamente masculino,
seria absurdo negar a atração que, pelo menos durante os culminantes instantes
prévios à cópula, sua lânguida beleza me provocou. Havia nela uma fragilidade
discreta, quase imperceptível, que contrastava com seu temperamento contestador.
Até o cheiro da sua pele, que me lembrou o cheiro dos recém-nascidos, reforçava
esse desamparo que (eu era o primeiro surpreso) de repente se tornava irresistível.
Isso não implicou que, uma vez estendidos na cama, mal conseguíssemos
contornar o desastre. Para começar, nunca suportei esses sexos depilados que
parecem moluscos frescos e, quando vi seu púbis impoluto, senti a urgência de fugir
de vez daquele mal-entendido. Só a paciência de Leah, que começou a dirigir nossos
vaivéns como se dirigisse uma banda de músicos de aldeia, me permitiu me
concentrar na transparência dos seus olhos e na vitalidade um tanto exagerada das
suas coxas, me lançando em um rápido orgasmo que depois me vi obrigado a
corresponder à custa de intumescer os nós dos meus dedos. O veredito final,
enquanto repousávamos depois da batalha com os olhos fixos no teto, era evidente
para ambos: nem nos esforçando a vida inteira conseguiríamos que nossos corpos se
acomodassem aos nossos desejos.
No entanto, ao acordar não me perguntei que diabos ela estava fazendo ao meu
lado, como me acontecia com frequência; tampouco quis expulsá-la
atropeladamente nem me apressei em me lavar para me livrar o quanto antes do seu
rastro. Contemplei-a enquanto dormia, encolhida sobre si mesma como se em seus
sonhos se protegesse do ataque de uma fera, e não me esquivei da tentação de cobri-
la. Quando finalmente despertou, atordoada e cega, lhe preparei um café sem açúcar
que ela bebeu em pequenos goles, delicadamente, enquanto eu acariciava suas
pernas nuas, envoltos na naturalidade de um casal que há anos repete o mesmo
costume matutino. Tentei adivinhar em sua cútis desbotada algum sinal de confusão
ou de arrependimento, mas Leah se apressou a tomar banho, se vestiu e se despediu
sem demonstrar outra emoção além da tristeza mais ou menos aprazível que um
coito aborrecido costuma provocar.
Passei a manhã inteira sem afastar da cabeça sua ágil nudez passeando do
quarto para o banheiro. O que tinha sido aquilo? Custava-me entender por que
tinha me esforçado para seduzi-la e por que ela não resistira. O melhor para os dois
seria fingir que nada tinha acontecido: um parêntese inofensivo entre dois adultos
que beberam além da conta. Talvez não fosse muito difícil contratar outra
historiadora capaz de me auxiliar nas minhas pesquisas, mas a sintonia com Leah
tinha sido tão reconfortante que eu resistia a despedi-la ou a arruinar nosso trabalho
em comum por culpa de um investimento erótico que — a esta altura era óbvio —
não me daria nenhum dividendo.
À tarde marquei com ela na escadaria da Biblioteca Pública de Nova York e,
aproveitando a tardia calidez do outono, propus que trabalhássemos em uma das
mesinhas ao ar livre do Bryant Park. Ela chegou alguns minutos atrasada — a
pontualidade não estava entre suas virtudes —, com os mesmos jeans rasgados nos
joelhos, uma camiseta clara e o cabelo preso em um rústico rabo de cavalo. Embora
outra vez não exibisse nem uma gota de maquiagem, parecia fresca e quase relaxada.
Desculpou-se pelo atraso e colocou a pasta repleta de papéis na minha frente.
Aplaudi que nossos encontros tivessem recuperado seu caráter profissional, ao
mesmo tempo que a ideia de não voltar a possuí-la entre os lençóis me doía.
Leah se estendeu sobre White e sobre Keynes, imaginando-os como pugilistas
em uma luta de boxe, mas eu quase não prestei atenção às suas metáforas. De
repente achei absurdo que ela remexesse sem pudor nos segredos do meu pai sem
que eu tivesse lhe perguntado nada sobre ela. Assim que concluiu sua comparação
entre os dois economistas, pedi que me falasse um pouco de si. Ruborizada, afirmou
que não havia muito o que contar (mentira: as mulheres adoram que alguém
demonstre interesse por seu passado, por mais horrível ou banal que seja) e começou
a resumir para mim seu errático itinerário sentimental.
Leah tinha nascido em um pequeno povoado na parte norte do estado de Nova
York e, exatamente como eu imaginava — não é preciso ser vidente para perceber as
cicatrizes do abandono —, provinha de uma família desestruturada da classe
operária. Sua mãe tinha engravidado aos dezoito, e aos vinte e cinco fugiu da
opressão do marido, um metalúrgico com acentuada propensão ao ciúme e, segundo
a filha, à psicose. Depois disso Leah tinha convivido com pelo menos seis pais
substitutos — de um motorista de ônibus que lhe acariciava a virilha a um professor
de primário alto e magro que lhe comprava Barbies de segunda mão —, como se sua
mãe tivesse posto em movimento um casting para descobrir os maiores fracassados
da região. Os vizinhos responderam a esta mania colecionadora com boatos segundo
os quais sua mãe era, além de ninfomaníaca, viciada em heroína (ela negava). Para
rebater esses excessos, Leah sempre foi uma menina bem-comportada e, apesar de
sua timidez recalcitrante, sempre ocupou os primeiros lugares de sua classe: daí as
bolsas que lhe permitiram estudar o college em Cornell e o doutorado na CUNY.
Resistiu, por outro lado, a me dar o mais mínimo detalhe de sua vida sentimental,
mas não deixou de insinuar que nesse item seus sucessos tinham sido mais para
magros (entendi que nulos). Segundo ela, seus únicos amores verdadeiros, pelo
menos até o momento, tinham sido seus cachorros, pelos quais sentia uma insana
devoção: do miserável dálmata que a acompanhou quando criança a Salinger ao
insuportável beagle com quem agora dividia seu apartamento.
Em compensação, me surpreendeu um pouco que me confessasse sua
dificuldade para fazer amigos. Segundo ela, não apenas lhe era difícil simpatizar com
os colegas e professores, que inevitavelmente achava néscios ou retrógrados, como
tinha protagonizado uma sonora briga com o chefe do departamento de história por
defender uma colega que, ao engravidar, tinha sido punida com a suspensão da
bolsa. Depois de ouvir essas vagas revelações entendi melhor seu ingênuo fraco pelos
democratas: pertencia àquela pequena porcentagem da população que acha que sua
ascensão social se deve à ajuda do Estado mais que à sua perseverança ou seu talento.
Não posso negar que a ideia de lhe mostrar a verdadeira natureza das coisas, e em
particular as vantagens do egoísmo, foi outro estímulo que me impulsionou a retê-
la. Em troca da sua ajuda cabia a mim demonstrar a esta jovem justiceira a
inutilidade de suas boas intenções.
Quando terminou seu relato, uma noite fresca e luminosa caiu sobre nós. Leah
consultou o relógio e disse que precisava ir. Automaticamente lhe propus levá-la à
sua casa. A princípio recusou, mas acabou subindo no carro quando Charles se
colocou diante dela e abriu a porta para ela como se fosse para uma princesa. Era
inevitável que ao chegar ao nosso destino (na parte norte do Harlem) se fizesse um
desses agrestes silêncios dos que já compartilharam fluidos, e perguntei se podia
subir com ela. Subimos os quatro andares e caímos no seu miserável loft onde a
escassos milímetros de distância se amontoavam a cozinha, a sala e a cama. Salinger
correu para me farejar e em seguida se agarrou de forma pouco educada à minha
perna direita. Se Leah não o tivesse trancado no banheiro, eu não teria tido outro
remédio a não ser ir embora.
Custava-me imaginar que uma pessoa pudesse passar tantas horas em uma caixa
de sapatos como aquela acompanhada por um cachorro. Depois de remexer na
despensa, Leah se desculpou porque só tinha chá e vinho orgânico para oferecer.
Optei pelo segundo: erro crasso. Era evidente que o único modo de aliviar a tensão
seria permitindo que outra vez nossos corpos se arriscassem a se encontrar. De
repente ela se despiu diante de mim, sem nenhum aviso prévio: os tímidos às vezes
não o são tanto. Se um dos dois esperava que o sexo melhorasse em relação à noite
anterior, a decepção deve ter sido imensa: dois orgasmos obtidos praticamente à
força em tempos descontínuos, mas, de forma imprevisível, dormimos abraçados até
a madrugada. Definitivamente, esse não ia ser o melhor investimento da minha
vida, mas às vezes os homens de negócios não são, como gostariam as teorias,
puramente racionais.
DUETO
Lord Keynes brande sua taça, dá um pequeno gole e contempla com desdém o
adversário.
— A União Internacional de Compensação é sem dúvida uma ideia brilhante,
mais que brilhante — White empurra o oponente para as cordas —, muito
brilhante! Mas é politicamente inviável. Em outro mundo…
Um golpe baixo que o árbitro não sanciona. Keynes fica sem ar, mas não
demora a se recuperar enquanto se engasga com um sanduíche de salmão.
— Se algo pode bloquear a liberdade do Fundo Monetário — deixa escapar
Lord Keynes —, é que funcione por meio de empresas de capital. Imagino isso
como um polvo sem tentáculos. Em compensação, criar uma moeda de troca
universal garantiria a independência…
— O bancor? — zomba White.
— Ponha o nome que quiser — defende-se o inglês.
Uma gota de sangue escorre pela testa de White; não, não é nada grave, pode
continuar, não há necessidade de parar a luta. Para aliviar o mau bocado, o
americano mastiga um pepino japonês e se refresca com um gole de champanhe.
“Keynes, Keynes, Keynes!”, parecem uivar os fãs britânicos, formando uma
onda na sala de recepções da embaixada. Seu pugilista não os decepciona e mantém
o castigo.
— A Inglaterra jamais aceitará que as variações na mudança de moeda só
possam ser aprovadas por uma maioria de quatro quintos dos membros do Fundo
— exclama, desatando o aplauso dos seus. — Dado que nosso país é o que mais
investiu e sofreu na guerra, atravessará uma situação muito complexa ao término do
conflito. A Inglaterra necessita de completa liberdade para fixar o tipo de câmbio da
libra.
“Longa vida a Lord Keynes!”, gostaria de entoar a torcida.
White desvia o golpe no fígado e zomba do adversário com um risinho cuja
tradução aproximada seria: de fato, essa é a questão, Lord Keynes, ao término do
conflito a Grã-Bretanha será uma potência de segunda que não poderá decidir nada
de nada. É exatamente por uma consideração especial aos seus esforços que estamos
aqui hoje, pois preferiríamos lutar em outras ligas, com adversários do nosso peso.
Se eu fosse você, me limitaria a agradecer.
Se White pensa isso, prefere conceder um pouco de ar ao rival. Estamos apenas
no primeiro round e ele não quer humilhar o Mestre.
— Talvez devamos deixar esta conversa para depois…
Keynes, ofegando, não se rende.
— A Inglaterra tampouco concorda com a ideia de que os Estados Unidos
contem com a maior cota no Fundo. Isso significaria que poderia tomar todas as
decisões…
O público sofre um repentino ataque de ternura com a investida do britânico,
não resta dúvida de que é um pugilista de raça.
— Tampouco podemos voltar os ponteiros do relógio para trás — contra-ataca
White. — Seu plano procura retornar às condições anteriores à guerra…
A esta altura o velho Keynes se mostra exausto.
— Devemos prosseguir com essas conversações só entre nós, antes de convidar
os membros das outras nações aliadas — argumenta com firmeza. — Talvez um
pouco mais adiante possamos chamar os russos, para evitar suspeitas.
Desta vez White não ri, consciente, segundos antes do gongo, de que este será o
golpe definitivo.
— Receio muito, Lord Keynes, de que isso daria pé a todo tipo de suspeitas.
Nossos aliados poderiam achar que formamos uma camarilha anglo-saxã, e não
podemos permitir isso…
Como nos desenhos animados, o golpe de White faz com que o britânico veja
passarinhos ao seu redor. Por sorte o tempo se esgotou e Lord Keynes se aferra, de
pé, à sua última taça de champanhe.
Cling!
SERENATA
Era uma vez uma moça pouco graciosa, solitária e insegura, criada no lar de um
vendedor de embutidos e de uma severa professora primária, que acabou se
transformando em espiã russa e depois em delatora. Embora eu imaginasse que o
retrato que Leah me fez de Elizabeth Bentley se pareceria com um romance de
mistério ou um film noir, acabou sendo uma vulgar história de amor (ou mais de
desamor).
1. Em que nossa heroína descobre como combater o mal de amor
Embora não seja a primeira vez que admira o corpo de um homem mais velho
(em sua louca vida italiana conheceu dezenas, no sentido bíblico do termo), o de
Mario lhe parece diferente: delicado, firme, juvenil. Seu orientador de tese tem vinte
anos a mais que ela, mas, enquanto ele conserva pernas sólidas, peitorais generosos e
um ventre praticamente plano, ela se envergonha das suas pernas finas, da sua pele
coberta de erupções e dos seus seios caídos. Se acabaram juntos, foi porque ela
costuma se comportar como preceptora e ele, em compensação, se descontrola como
uma criança. Pouco importa que o professore Casella seja um dos críticos literários
mais destacados de sua geração ou que seu nome figure entre os mais aguerridos
caluniadores do Duce na Toscana, Elizabeth não deixa de achar que é obrigada a
repreendê-lo como se fosse sua mãe e não sua amante.
Sim, amante. A futura aprendiz de Mata Hari adora balbuciar esta palavra.
Durante anos achou que nenhum homem prestaria atenção nos seus quadris de
matrona ou nas suas nádegas celulíticas, e que acabaria sozinha e amargurada, e em
compensação agora não conseguiria se lembrar dos nomes de todas as suas visitas
noturnas. Sua vida sentimental se iniciou muito tarde, pois, enquanto suas rivais de
Vassar escapavam com seus namoradinhos, fumavam e bebiam em segredo e
cortavam as saias para exibir as panturrilhas, ela se vestia como instrutora de
primário, recusava o álcool e só deu seu primeiro beijo aos dezoito, pouco antes de
perder a virgindade no navio que a conduziu pela primeira vez à Europa. Mas que
forma de dar a revanche! Depois de ruminar suas penas em New Milford e
Rochester, de afundar em intermináveis depressões e de se imaginar aborrecida e
incasável, seu ano na Itália lhe demonstrou que uma moça — qualquer moça — é
capaz de conseguir um homem, se de fato se propõe a isso. E foi o que fez desde que
chegou a Florença, constatar o poder do seu sexo. O que importa que suas colegas a
acusem de fácil, cadela ou puta? É melhor do que ser chamada de cerebral ou de
mulher estéril, como em Vassar, e ficar solteirona.
Elizabeth nem sequer precisou pedir a Casella que a ajudasse com sua tese, ele
mesmo prometeu que seu assistente se encarregaria de redigir o manuscrito. Não
que ela se sentisse incapaz de concluir o trabalho — afinal de contas fez toda a
pesquisa sobre o maldito poema —, mas prefere fazer amor com seu professor em
vez de estragar os olhos com estrofes medievais. Nossa heroína não se contém e
acaricia o sexo do amante, e este se espreguiça pouco a pouco. Elizabeth persiste
com a mão e em seguida com os lábios — orgulha-se de sua perícia —, e os
músculos faciais do militante antifascista desenham um espasmo. A jovem não pode
negar que Casella foi uma influência decisiva em suas ideias. Antes de conhecê-lo
chegou a flertar com um grupo mussoliniano — por culpa de outro galãzinho —,
mas agora se considera uma convicta militante revolucionária. Elizabeth não hesita
em engolir a semente do professore, limpa a boca com o dorso da mão e se aninha
em seu ombro.
— Acabo de receber uma notificação da universidade — diz de repente. —
Querem me expulsar!
Seu orientador de tese diz que fará tudo o que estiver ao seu alcance para apoiá-
la, mas essa generalidade não a tranquiliza.
— Prometa! — grita Elizabeth.
Em uma cena calcada em um tosco melodrama italiano, Elizabeth deixa o
apartamento de Casella e vai para o quartinho que aluga em Santa Croce, onde se
fecha durante as seguintes 72 horas. O professore a visita algumas vezes, e ela cospe
nele da janela. Esgotada, pega os comprimidos que trouxe consigo da América e joga
um punhado na garganta. Duas horas depois uma vizinha a descobre e a obriga a
vomitar na privada. Graças à rápida intervenção do cônsul americano, o assunto não
vaza para a imprensa e Elizabeth deixa a cidade do Arno sem nem sequer se despedir
de Casella. Debaixo do braço carrega o volume com sua tese. A mesma tese que, já
instalada em Nova York, apresentará com surpreendente êxito — mas não sem
suspeitas de plágio — na Universidade de Columbia.
2. Em que nossa heroína descobre as vantagens sexuais do comunismo
Elizabeth acorda pouco depois da meia-noite, espia pela janela de seu muquifo
no Upper West Side para checar se alguém a está vigiando — uma prática que o
camarada professor recomendou desde a primeira aula — e se detém para observar os
corpos entrelaçados de George e Hussein. Compara seus sexos como se fossem duas
espécies animais. Enquanto o do grego, rosado e carnudo, se encolhe depois da
cópula, o do iraquiano se alarga e se condensa. Qual prefere? Elizabeth (por
precaução mudou o sobrenome para Sherman) ainda não decide. Talvez George seja
melhor amante, consegue manter o mesmo ritmo sem cansar nunca, mas peca por
ser bruto e insensível; Hussein, em compensação, se mostra mais refinado, mas suas
manobras orais empalidecem diante das do rival.
Quem iria dizer que os três acabariam na cama? Isso sim é uma novidade para
Elizabeth, que durante anos sonhou com esta fantasia sem se atrever a realizá-la.
Conheceu George pouco depois de voltar da Itália, depois de se matricular a
contragosto na escola secretarial de Columbia. Ao término do segundo dia de aula
— a taquigrafia tinha arruinado seus dedos —, nossa heroína decidiu fazer uma
pausa em um bar de quinta categoria; ali topou com o grego que, ainda coberto com
seu macacão de pedreiro, empinava umas cervejas com outros cavernícolas. O nariz
reto, os olhos muito pretos, os braços peludos conquistaram Elizabeth; depois de
poucos minutos George já a convidava para um drinque e em meia hora mordiscava
seus mamilos no banheiro.
Quando jovem, Elizabeth nunca imaginou que um desconhecido, e muito
menos um cão suarento como George, fosse apalpá-la em um local público (e
púbico). Sua mãe teria tido um colapso se constatasse que a filha se transformou em
uma puta, e até suas colegas do Vassar College, teoricamente tão liberais, teriam se
escandalizado; em compensação, suas amigas do Partido não apenas aplaudem seus
desafios à moral burguesa como a animam a embarcar em aventuras cada vez mais
obscenas. Elizabeth tinha evitado se mostrar muito interessada pelas bebidas
alcoólicas ou pelos homens, e só quando Juliet zombou dela por não pedir um
segundo bourbon e a incentivou a se deitar com um tal sr. Smith em troca de cem
dólares, entendeu que uma verdadeira comunista não se detém diante de nenhum
preconceito.
Depois de poucas semanas Elizabeth conheceu Hussein, um estudante de
intercâmbio de Columbia, e abriu uma segunda frente. Apesar de suas precauções,
certa noite Hussein a descobriu trocando carícias com George. Surpreendeu-a se
ouvir propondo aos dois que ficassem para dormir com ela. E agora os três
repousam sobre os lençóis, as pernas morenas do iraquiano em cima das coxas
branquíssimas do grego, enquanto ela os admira como se formassem um tableau
vivant, uma obra de arte surgida de seu engenho.
Quem iria dizer que o comunismo seria uma festa? Quando finalmente disse à
amiga Lee que estava mesmo disposta a se filiar ao Partido, pensava em continuar a
carreira antifascista que tinha empreendido com Casella sem prever que a militância
lhe proporcionaria uma infinidade de encontros eróticos com outros agentes. Nos
últimos seis meses recebeu em casa (e na cama) uns vinte comunistas em busca de
refúgio. Talvez Juliet tivesse razão: o capitalismo sobrevaloriza o sexo. Que razão há
para loteá-lo e limitá-lo como se, pelo simples fato de se deitar com alguém, a gente
se agregasse ao seu patrimônio? Por enquanto sua atividade no Partido não tem sido
particularmente intensa, mas sua vida sexual nunca foi mais variada. Pena que Juliet
tenha desaparecido de repente. Elizabeth teria adorado lhe contar sobre o trio com
George e Hussein, com certeza ela teria vibrado.
3. Em que nossa heroína encontra o (vermelho) amor de sua vida
Elizabeth acorda pouco depois da meia-noite e contempla o entorpecido corpo
do seu amante sob a retícula filtrada pelas persianas. Nossa heroína observa o
maxilar largo e quadrado, o tórax simiesco, o abdômen proeminente e os pés de
ogro, em seguida ouve o sopro que vem de seus brônquios. Yasha se espreguiça,
sobressaltado, e ao abraçá-la quase lhe quebra os ossos. Não, Elizabeth nunca se
sentiu tão segura, tão protegida, tão — por que não dizer? — amada. Apesar da
estatura de gnomo, dos beiços caídos e da voz de baixo, Yasha é uma criatura tímida
e desamparada. Desde que irrompeu em sua vida — sob o tolo nome de Timmy —,
nossa heroína só pensa em se aninhar ao lado dele, ajudá-lo em suas tarefas, aliviar
seus sofrimentos. Depois de cruzar no Partido com tantos sujeitos toscos ou
grosseiros, foi uma bênção que Brown o escolhesse como seu agente de contato.
Em uma feliz coincidência, a Columbia tinha definido que Elizabeth fizesse seu
estágio na Biblioteca Italiana de Informação, um centro que, como nossa heroína
logo descobriria, se dedicava a difundir propaganda fascista. Consciente de que seu
trabalho ali poderia ser útil ao Partido, contatou Brown depois de uma longa
temporada de silêncio. Este lhe ditou o endereço de Greenwich Village onde
passaria para pegá-la. Quando o carro parou, Brown lhe ordenou ocupar seu assento
e, depois de apresentar-lhe o motorista, partiu para o metrô. O agente ao volante
não lhe causou boa impressão, seu casaco sujo e desbotado, sua juba empoeirada e
seu fedor ácido o faziam parecer um artista ambulante ou um mendigo (só depois
entenderia que esta era a aparência dos verdadeiros comunistas). Timmy dirigiu em
silêncio até chegar a um restaurante grego na rua 14. Durante o jantar nossa heroína
descobriu que o gnomo possuía uma mente viva e convicções de ferro, e Elizabeth se
viu conversando com ele com uma desinibição que jamais se permitiu. Timmy não
parou de pregar sobre o perigo que se abatia sobre a Europa por culpa do nazismo e
falou sobre a perseguição aos judeus e comunistas. Quando terminaram as
sobremesas, o gnomo lhe propôs dar um passeio de carro. De repente estacionou em
um descampado e, olhando para Elizabeth com severidade, lhe disse que a
Biblioteca Italiana de Informação era um lugar crucial para a causa.
— Você precisa permanecer lá a qualquer preço.
Depois de meses à sombra, alguém finalmente a tornava responsável por uma
missão relevante e talvez perigosa. Timmy lhe ordenou contatá-lo apenas por meio
de um intermediário e prestar atenção em cada um de seus passos.
— A partir de hoje você não é mais uma simples comunista, e sim um membro
do aparelho clandestino.
O melhor galanteio que alguém já tinha lhe feito. A partir de agora, Elizabeth
não poderia mais ir às reuniões do Partido e teria que abandonar os círculos
progressistas da cidade. Se encontrasse com algum companheiro, devia sustentar que
tinha rompido os laços com os comunistas. Seu único contato seria Timmy.
— Sei que não será fácil. Exceto por mim, agora estará completamente sozinha.
Seus antigos camaradas pensarão que você os traiu. Mas o Partido não lhe exigiria
este sacrifício se não fosse imprescindível.
Elizabeth se entregou devotamente à sua missão, chegava muito cedo à
Biblioteca, escapava para o escritório do diretor, bisbilhotava nas mesas e arquivos,
fazia anotações e tirava documentos que depois copiava em um caderno. A cada
quinze dias, se reunia com Timmy, sempre na hora do jantar, e fazia um relato de
seus feitos.
Depois de seis meses, o gnomo voltou a lhe propor um passeio de carro
noturno e pegou a Riverside Drive para o norte, sem parar e sem abrir a boca, até
Terrytown, a vários quilômetros de Manhattan. Embora os dois pressentissem o que
ia acontecer, gabavam-se de ser disciplinados militantes comunistas, não dois
pombinhos em uma escapada adolescente. O ocaso estendia uma urdidura de
nuvens sobre as montanhas e os flocos de neve se espalhavam sobre o para-brisa.
Timmy pegou a mão de Elizabeth e soltou uma frase tipicamente marxista-leninista:
“Eu te amo”. Depois desse arrebatamento de paixão revolucionária, esclareceu que
aquele não era um momento propício.
— Tudo seria mais simples se fôssemos dois simples militantes nos círculos do
Partido — queixou-se o gnomo. — Mas não somos camaradas, e sim agentes
clandestinos. Para nós as regras são muito rigorosas. Não podemos ter vidas
pessoais. Estamos proibidos de ter amigos e mais ainda de nos apaixonar. Segundo
os princípios comunistas, não podemos sentir o que sentimos. Eu vou te dar um
novo contato e em seguida desaparecerei da sua vida para sempre.
Elizabeth beijou Timmy até que o para-brisa se encheu de vapor.
— Ou talvez possamos manter nossa relação em segredo — propôs então
Timmy enquanto limpava o batom do pescoço.
O que pode ser mais excitante que ser espião e amante proibida de outro
espião? Timmy e ela continuaram marcando encontros em lugares públicos para
suas reuniões de trabalho e em lugares privados para seus prazeres duplamente
escondidos. Obcecado em torná-la sua discípula, o gnomo se aplicou em lhe ensinar
as mais sutis técnicas da espionagem. Nossa heroína sorri ao se lembrar das longas
noitadas em que ele a instruía sobre a codificação de mensagens, as táticas de seguir
alguém e de fuga ou as manobras para arrombar portas e gavetas com gazuas. Em
compensação, franze o cenho ao relembrar o dia em que descobriu por acaso que o
sobrenome de Timmy era na verdade Golos.
— Jacob Golos — gritou ele ao se ver descoberto.
Aplacada sua raiva, Yasha concordou em lhe contar sua história. Confessou-lhe
que era judeu e que tinha nascido na Ucrânia; que se filiou aos bolcheviques na
primeira hora e que aos vinte e cinco fugiu da Rússia, perseguido pelos fanáticos do
czar; que encontrou refúgio na América e retornou à União Soviética depois da
vitória da Revolução de Outubro; que voltou para os Estados Unidos em 1921 para
refundar o malfadado Partido Comunista; que trabalhou em Detroit e em Chicago
infiltrando-se nos sindicatos; que foi administrador da Sociedade Técnica de Ajuda
à Rússia Soviética, um disfarce para seus trabalhos de espionagem; e que atualmente
ocupava o terceiro escalão do Partido Comunista e atuava como diretor da Turistas
Mundiais, a companhia que tinha o monopólio das viagens à URSS e lhe servia de
cobertura. Por último, contou que há alguns meses era presa dos sabujos do FBI e do
maldito Comitê Dies, diante do qual se viu obrigado a depor. Essa era, pelo visto, a
causa de seus problemas de saúde. (Por outro lado, não revelou que seu sobrenome
não era Golos e sim Reizen, que tinha sido membro da Cheka, que morava com
outra amante na Washington Square e que tinha mulher e filha na Rússia.)
Quando terminou de ouvir o relato do amado, nossa heroína entendeu que seu
destino ficaria ligado ao do gnomo. E agora, enquanto se deixa envolver por seus
braços fortes e peludos, Elizabeth renova sua fidelidade a ele.
— Eu te amo, Yasha.
— Eu também te amo, Elizzzabettt — pigarreia Golos, e ambos se apertam um
contra o outro sob o halo turvo que atravessa as persianas.
RECITATIVO
O que vou fazer com você? Embora Vikram ainda me tache de bárbaro e
condene meu mau gosto, desde esse dia odeio picante, curry de qualquer cor,
cúrcuma, cravo, canela, molho de tamarindo, molhos agridoces, sementes de
mostarda, folhas de limão kafir, cardamomos, macarrão de arroz, leite de coco,
coentro, todos esses refinamentos venerados igualmente por esnobes e novos ricos
na América. Meu mal-estar tampouco me levou a sentir falta dos plásticos
hambúrgueres ou das insondáveis salsichas americanas, sempre escondidas sob uma
capa vermelho-amarelada de origem imprecisa — Stephen e sua equipe, em
compensação, não saíam do McDonald’s —, mas meu estômago não aguentava
nem mais um prato de pad-thai, um novo rolinho de camarão ou outra salada de
mamão verde. Depois de oito dias me abarrotando com estes manjares por culpa
dos nossos anfitriões — destacados executivos com ternos de linho branco e gravatas
estampadas —, estava havia doze horas em uma dupla provação de vômito e
diarreia, submetido a doses cavalares de soro oral que me obrigavam a urinar a cada
suspiro.
Nunca entendi por que J.M. julgou imprescindível que eu comandasse essa
missão na Coreia do Sul, Malásia, Indonésia, Cingapura e Tailândia. Fazia semanas
que as moedas dessas nações despencavam, mais doentes que eu, sem que houvesse
remédio conhecido, já não para frear o desarranjo, mas para aliviar as náuseas de que
o Long-Term padecia por sua culpa. Como sempre acontece com as bolhas —
sempre é sempre —, tão parecidas com os cravos e as espinhas, crescem e incham até
que um belo dia o pus explode no meio da cara. Durante meses os bancos centrais
dos Tigres Asiáticos tinham mantido taxas de juros em níveis irresistíveis para os
investidores estrangeiros (o epíteto que nós, os chacais, preferimos), provocando um
azeitado fluxo de capitais para suas economias. Como era previsível, essa repentina
abundância fertilizou seus índices de crescimento e aprofundou a especulação com
suas divisas — para não mencionar os milhões exauridos por reguladores e
politiqueiros —, até que os fios se superaqueceram e a armação explodiu como um
desses fogos de artifício que tanto espantam os nativos sem que restasse aos líderes
outra saída senão chamar em seu auxílio os bombeiros do FMI. (Bombeiros que, me
desculpem por dizer isso, estão mais para piromaníacos.)
Enfim, não é minha intenção fatigá-los, impacientes leitores, com uma lição
sobre como as economias emergentes funcionam (ou deixam de funcionar). Basta
dizer que o LTCM tinha apostado milhões no baht e em outras moedas
impronunciáveis porque os modelos desenvolvidos pelos discípulos de Merton e
Scholes garantiram que a possibilidade de uma desvalorização era impensável —
impensável não: quase nula —, e J.M. me mandou empreender uma viagem de
Norte a Sul por essas “paradisíacas comarcas” a fim de averiguar por que afinal
nossas infalíveis fórmulas se equivocaram. Em poucas palavras: Vikram, Stephen e
eu deveríamos averiguar por que o alardeado Milagre Econômico Asiático fazia
tanta água quanto minha barriga.
Desanimado diante da minha incapacidade de me concentrar em outra coisa a
não ser em minhas necessidades físicas, traguei um vidro de antidiarreicos e,
acompanhado pelos meus subordinados — no início resistentes a esse tipo de
incursão —, iniciei minha peculiar exploração dos mercados orientais.
O que posso dizer exceto que as ruas de Bangcoc eram um paraíso para os
defensores do laissez-faire? O Estado, se existia, não intervinha nessa área do
mercado. Como se fosse o sonho completo da minha adorada Ayn Rand, ali os
empresários criativos triunfavam sem que a voz dos fracos perturbasse suas
conquistas. Os mais espertos se tornavam donos de bares, casas de jogo clandestinas
e clubes de prostituição; uns e outros competiam entre si sem que nenhuma
inconveniente autoridade freasse seu vigor capitalista. Quem recrutasse as garotinhas
ou garotinhos mais bonitos, mais infantis ou mais doces tinha tudo a ganhar: mais
clientes e mais investimento estrangeiro para o seu negócio.
Ao longo desses deliciosos dias mergulhei em uma pesquisa de mercado que
vomitou resultados nada surpreendentes: a proliferação de turistas e exploradores
dos mais longínquos cantos do planeta, com seus maços de dinheiro vivo — e
hormônios a toda — não tinha provocado uma alta significativa no preço dos
serviços prestados pelos trabalhadores do sexo, mas sim o aumento no número de
bordéis e prostíbulos, que logo colonizaram os pitorescos bairros adjacentes à zona
vermelha. Todo tailandês com um mínimo de inteligência se convenceu de que
essas microempresas eram o caminho mais direto para a riqueza, e milhares desses
visionários pediram emprestadas enormes somas de dinheiro (em geral a mafiosos e
estelionatários da pior categoria) a fim de construir mais desses templos de prazer.
Uma típica bolha. Uma bolha que, como todas as bolhas, ninguém quis ver.
“Achávamos que os clientes chegariam infinitamente”, confessou-me o aflito
dono do Clube Três Dragões em um inglês tosco, “não havia motivos para prever
uma repentina diminuição no número de visitantes estrangeiros.” É óbvio que não.
Tratava-se não apenas do mais antigo negócio do mundo, como também do mais
seguro e eficiente, ou pelo menos era o que aqueles capitalistas tropicais repetiam:
“Os europeus e os americanos podem se privar de qualquer coisa, menos de uma
xoxota”. E aqueles gênios das finanças lúbricas poderiam ter tido razão se não fosse
porque sua pequena bolha estava contida em outra maior, a bolha econômica
tailandesa, que por sua vez era parte da gigantesca bolha asiática.
Um belo dia, sem prévio aviso, os clientes escassearam. Primeiro lentamente e
depois de forma acelerada, as hordas de gordos turistas alemães, franceses ou
japoneses deixaram de descer de seus iates, aviões e limusines com suas bermudas
floridas, câmeras digitais e paus duros (e seus marcos, ienes, libras ou dólares),
provocando uma desoladora contração no mercado. E os milhares de espertinhos
que tinham solicitado empréstimos a mafiosos e estelionatários, certos de que
rapidamente nadariam em dinheiro e pagariam suas dívidas com juros? Alguns
acabaram no fundo da baía, com pesos amarrados aos tornozelos; outros se
transformaram em escravos dos agiotas; e outros ainda se refugiaram nos pântanos
do interior.
— Acham possível tirar uma moral deste relato de sexo e avareza? — perguntei
a Stephen e Vikram ao término do nosso périplo.
O indiano deu de ombros. O americano nem sequer se virou para me olhar.
— A lição não reside em moderar os impulsos, em não se deixar cegar pela
demência coletiva ou em evitar os mafiosos — instruí-os. — As bolhas sempre
estiveram e sempre estarão aí, multiplicando-se em um lugar ou em outro. O que
devemos fazer é tentar fugir delas no último segundo.
— Que lucidez! — zombou Stephen.
Aquela bolha erótica, tão parecida com a bolha econômica que a envolvia, se
transformou aos meus olhos no precedente das que continuariam agitando e
estimulando a economia do planeta nos quinquênios sucessivos (sobre a maior delas,
a imobiliária de 2001-2007, falarei mais adiante). Como informei a J.M. na minha
volta, o erro do LTCM tinha sido o mesmo daqueles rústicos donos de bordel.
Tínhamos detectado a bolha a tempo e tínhamos ganhado quantias exorbitantes
com ela, mas nossos galácticos teoremas não nos haviam prevenido sobre quando
abandoná-la.
DUETO
Diante das atrocidades que nossos pais nos infligem — a primeira: nos arrancar
do nada para nos abandonar neste lodaçal — só restam dois caminhos: nos
distinguir deles de todas as maneiras possíveis, inclusive ao preço de frustrar nossos
talentos (como Isaac), ou exacerbar suas burradas e erros, convencidos de que sua
aprovação será a única medida do nosso mérito (como Susan). Eis aqui a pobre
dimensão do nosso livre-arbítrio, decapitar o Velho e nos dilacerar com cada golpe
do machado, ou imitá-lo e ficar reduzidos à condição de papagaios ou micos sem
vontade. Pode acontecer que alguém ache que está se opondo ao Pai e acabe
transformado em seu reflexo (como Isaac), ou que procure a bênção dele só para
liquidá-lo por vias mais truculentas (como Susan).
Embora Rachel tenha obrigado meus dois filhos, desde os doze ou treze anos, a
se humilhar diante de uma longa lista de terapeutas de seitas antagônicas — de
freudianos agressivos a mortiços lacanianos, sem esquecer dois delirantes seguidores
de Carl Gustav Jung —, a prova de que a terapia não passa de um sofisticado e
inútil jogo de salão é que nem Susan nem Isaac perceberam que, à força de se
atormentar a cada minuto por causa de sua conflituosa relação comigo,
transformaram sua relação comigo no centro de suas vidas. Pobre Rachel! Milhares e
milhares de dólares dilapidados para que, depois de vários quinquênios de
interpretar sonhos banais e balbuciar terríveis confissões, nenhum deles fosse capaz
de se manter sozinho. Infinitas horas desperdiçadas para concluir que eu sou o
culpado dos seus medos e fracassos sem que essa revelação lhes servisse para nada (e
ainda acusam os amos de Wall Street de defraudar milhares de inocentes!).
Obcecado em evitar meu exemplo a qualquer custo, Isaac se esmerou em obter
a medalha de pai perfeito, o que em seus termos significava tanto se meter em todos
os assuntos dos seus descendentes quanto consentir até o mais absurdo dos seus
caprichos. Não me cabe dúvida de que Tweedledee e Tweedledum — Dave e Joe
— se transformaram nessas abúlicas bolas de gordura porque, decidido a não ferir
sua sensibilidade, Isaac se recusava a lhes proibir as guloseimas e Coca-Colas que
deglutiam em quantidades industriais. “Os meninos não são imbecis nem
deficientes”, proclamava meu filho repetindo as teses de Kate, “os meninos são
pessoinhas.” E, apoiado nesta hipótese, tentou argumentar com eles desde que
tinham três anos. Sem entender que as crianças não passam de máquinas de desejos
— egoístas consumados —, tentava convencê-los a fazer isso ou não fazer aquilo
com argumentos que os pequenos pulverizavam com uivos ou birras. Frustrado o
diálogo, Isaac e a mulher se resignavam a satisfazer até os mais loucos pedidos que
exigiam, muito bojudos, os dois gordos. Graças a essa tática, estes não apenas
acumularam toneladas de gordura como também prodigiosas coleções de
brinquedos — uma de robôs, outra de dinossauros — que faziam eco às minhas
coleções de gibis e de discos. Mais adiante chegaram os video games e com eles a
dissolução da enternecedora vida familiar de que Isaac tanto se vangloriava.
Quando Leah e eu os visitávamos, Tweedledee e Tweedledum mal tiravam os
narizes do quarto, onde combatiam contra dragões e alienígenas ou acompanhavam
os incansáveis saltinhos de Luigi e Mario, seus únicos amigos verdadeiros. Vista à
distância, a ausência era bem-vinda, pois quando os idiotas deixavam o console,
começavam a se chutar as nádegas até que um acabasse choramingando no chão.
Em vez de castigá-los — nunca! —, os pais tentavam argumentar com eles e, com
paciência de detetive, investigavam quem tinha começado as agressões. Em vão!
Nessa altura Tweedledee e Tweedledum tinham deixado de responder ao
interrogatório e reiniciado seus tapas e bofetadas ou se escarrapachado na frente da
televisão (sua única fonte de prazer), indiferentes às inquirições do pai. Pobre Isaac!
Esforçando-se para fugir da minha indiferença só tinha conseguido criar seres tão
patéticos, mal-humorados e solitários quanto ele próprio.
O caso de Susan com as gêmeas era ainda mais preocupante, pois seu
temperamento arisco e a debilidade de seus nervos — no século passado sem dúvida
teria sido diagnosticada como histérica — nunca a prepararam para os desafios da
maternidade. Minha filha tratava Audrey e Sarah como se fossem duas inquilinas
que se instalaram em sua casa contra a sua vontade. Duas invasoras. Diferentemente
de Isaac, ela nunca as teria qualificado de pessoinhas e as contemplava com essa
mistura de ansiedade e confusão que as pessoas reservam aos anfíbios. Um pouco
mais crescidinhas, as gêmeas (loiras, pálidas, sinistramente idênticas) perambulavam
de um cômodo a outro nas pontas dos pés, ocupadas em brincadeiras cujas regras
Susan não se atrevia a esclarecer. Afetadas talvez por uma forma leve de autismo, e
estimuladas pela pasmosa cumplicidade dos monozigóticos, Audrey e Sarah se
bastavam a si mesmas e fugiam da mãe como de um monstro. Enquanto reservavam
todos os seus carinhos e bajulações para Terry, procuravam não se aproximar da
mãe, que tampouco fazia grandes esforços para atrair sua atenção, como se tivessem
vidas separadas que só se encontravam quando Terry organizava passeios ou sessões
de cinema aos domingos.
Quando elas fizeram sete ou oito anos, Susan começou a ver as gêmeas não
apenas com prevenção, mas também com algo próximo do medo. As pequenas
nunca fizeram nada terrível — suas travessuras jamais roçaram as de seus obesos
primos —, mas seu comportamento irrepreensível, seus risinhos em staccato, suas
brincadeiras arrevesadas e suas idas e vindas sigilosas convenceram a mãe de que
havia algo estranho nelas, algo detestável e inapreensível, e não lhe ocorreu melhor
ideia do que matriculá-las em dezenas de atividades extraescolares para afastá-las do
seu lado a maior parte do dia. Contra sua vontade, Audrey e Sarah se viram
obrigadas a comparecer a oficinas de costura e cursos de matemática, aulas de piano
e desenho e, o mais desagradável para duas garotas ajuizadas como elas, longos
treinos de futebol e lacrosse. Como se essa fosse a única forma de aliviar suas culpas,
Susan as arrastava de um lado a outro da cidade sem levar em consideração suas
queixas, seus nulos progressos aritméticos ou artísticos ou os hematomas que
exibiam nos braços e pernas no final dos campeonatos.
Ao contrário de Tweedledee e Tweedledum, as gêmeas nunca me pareceram
antipáticas, mas francamente interessantes. Certamente estavam longe de ser
encantadoras — Sarah só respondia com monossílabos e Audrey só parou de urinar
na cama aos onze —, mas possuíam uma calada inteligência que transparecia em
comentários irônicos e piadas de duplo sentido impróprios de sua idade. Impossível
deduzir se no fundo eram más, como Susan chegou a me confessar com horror, mas
sem dúvida possuíam uma tendência mais perceptível do que outras garotas a
criticar e ferir as criaturas de seu sexo. Incapaz de fazer frente às suas brincadeiras e
risinhos, Susan desistiu delas. Permitiu que o chofer as levasse às suas tristes aulas
vespertinas e que o pai fosse o único interessado em suas conquistas escolares,
enquanto ela só voltava para casa na hora do jantar. Terry, que nunca foi um
luminar, atribuiu as ausências cada vez mais prolongadas da esposa à péssima relação
que mantinha com as filhas, mas na verdade Susan tinha encontrado um sucedâneo
para o amor filial em outro lugar.
— Sinto muito, pai.
Nos olhos oliva da minha filha vibrava um tecido aquoso, mas as lágrimas
ainda não chegavam a escorrer pelo rosto. Tinha me chamado ao café da Morgan
Library e parecia mais nervosa do que de costume. Pisoteava sem parar e mordia as
pontas do cabelo com uma insistência que pressagiava um ataque de ansiedade.
Depois de trocar as habituais perguntas familiares, se fechou em um de seus
obstinados silêncios que eu não me atrevi a romper. O cappuccino esfriava diante
dela sem que tivesse dado nem um gole.
— Eu o amo — me confessou finalmente.
Era pior do que eu pensava. Susan não se conformara com enganar o marido,
algo previsível e até louvável dadas as escassas virtudes de Terry, mas tinha recorrido
uma e outra vez ao mesmo sujeito até acabar estupidamente apaixonada pelo
cretino. Como lhe explicar que a luxúria nunca precisa se misturar com o amor?
Será que não havia aprendido nada do pai? Eu teria aplaudido que colocasse chifres
em Terry, mas sem comprometer sua estabilidade ou arriscar seus sentimentos.
— Não posso fazer nada, pai — gemeu. — Eu o amo.
Sua expressão me lembrou dos seus caprichos infantis, as pupilas dilatadas, os
lábios entreabertos, a covinha no queixo. Como não lhe dar aquele enorme panda
de pelúcia, como não deixá-la viajar a Madri com as amigas, como não comprar a
BMW depois de sua formatura e como não manter seu escandaloso estilo de vida?
Mas isso era diferente.
— Então só lhe peço que se cuide — resignei-me.
Susan inclinou a cabeça, desconcertada, como se eu falasse com ela em uma
língua estrangeira, e voltou a mordiscar o cabelo.
— Ele é casado — sussurrou.
— Como?
— Milton.
Milton?
— E você o ama… — não contive a ironia.
Era terrível constatar os estragos que uma ideia estúpida (o amor) podia fazer
em um espírito débil como o da minha filha.
— E ele me ama — replicou, toda séria.
Não conseguia acreditar. Não queria acreditar.
— Bobagem — enervei-me. — Se amasse, estaria com você.
— Não quer se divorciar por causa dos filhos…
Dei um tapa na mesa.
— A única coisa que o Milton quer é transar com você. E você com ele —
exclamei. — E tudo isso estaria muito bem se você não andasse com histórias. Você
não deve deixar que uma ilusão de apaixonamento que não combina com sua idade
a cegue assim.
Relembrar esse episódio ainda me embrulha o estômago. Como Susan, uma
mulher inteligente ou pelo menos com um QI mais alto que a média, podia ser
vítima de um clichê tão vulgar? Seria verdade o palavrório sobre a inteligência
emocional? Neste quesito, ela deveria figurar entre os retardados.
— Não sei por que decidi lhe contar isso.
— Nem eu.
— Vou embora.
— Vá, vá com o seu Milton — gritei. — Se é que neste instante não está com a
mulher.
Alçando sua Louis Vuitton como se desse um passo de dança, Susan deslizou
vaporosamente para a saída. Obstinada a vida inteira em me agradar, finalmente
tinha me apunhalado pelas costas.
CONCERTANTE
Bem que eu gostaria de lhes dizer, pacientes leitores, que aconteceu durante um
acesso de loucura, um arrebatamento repentino ou uma incomum concessão ao
romantismo, mas vocês sabem que esse nunca foi meu estilo. Eu estava planejando
cuidadosamente havia meses, mais uma das decisões que alguém que aspira a um
lugar privilegiado na elite da Grande Maçã Podre precisa tomar. Da mesma maneira
que um investidor é obrigado a adquirir algumas ações cuja sorte imagina
promissora embora deteste o ramo ou as políticas da empresa que as emite, eu devia
dar esse passo para blindar minha imagem diante dos meus filhos e sócios e da
esfinge vulgar e insaciável que chamamos alta sociedade. Talvez Leah não tivesse
sido minha primeira escolha em outras circunstâncias — se não fosse pelas pesquisas
em torno do passado do meu pai dificilmente teríamos nos conhecido —, mas a essa
altura eu não estava disposto a perseguir um rosto mais bonito ou uma fortuna mais
suculenta. Apesar dos seus bons sentimentos, das suas convicções democratas, do seu
vegetarianismo militante e da sua chata fascinação pelos animais, a jovem
historiadora era ideal para os meus propósitos, uma mulher mais bonita e inteligente
que a média e que, fora sua obsessão por aumentar minhas doações filantrópicas,
não se metia nos meus negócios e se contentava em compartilhar apenas uma parte
marginal da minha vida cotidiana.
Muito consciente da nossa mútua aversão à breguice, num sábado a convidei
para jantar e, sem anéis nem declarações pomposas, lhe disse que o casamento seria
uma boa ideia para os dois. Vestida com mais solenidade do que de costume — com
certeza desconfiava de alguma coisa —, Leah abriu um sorriso que quase chegou a
me desconcertar, elevou sua taça e, quase gaguejando, me respondeu que sim, que
seria maravilhoso, que só me pedia que fosse uma cerimônia mais ou menos íntima
e não uma daquelas bacanais que os milionários costumam fazer. Prometi fazer o
possível para satisfazer suas exigências — na verdade, já tinha reservado um salão do
Plaza — e brindei com ela pela nossa felicidade futura. Nada de lágrimas, nada de
arrebatamentos: uma transação feliz, sem contratempos.
O único inconveniente? Allan, é claro.
Não sabia como lhe contar. Como explicar. Para um jovem da geração dele
(nascido em 1968), formado fora dos preconceitos da minha época, minha decisão
não só pareceria absurda, mas também triste e ridícula. Que necessidade de fingir e
esconder meus verdadeiros desejos? Infelizmente, meu mundo e seu mundo não
eram equivalentes. Provavelmente na sua condição de médico nova-iorquino ele
pudesse gozar de certa liberdade, mas eu não podia me dar ao luxo de ser afastado
desta parte odiosa da sociedade cujo apoio seria crucial para o meu futuro
econômico. Além disso, por um escrúpulo que hoje soa infantil, eu ainda não estava
disposto a me revelar diante dos meus filhos. Como eu disse, queria tudo ao mesmo
tempo. Allan e Leah.
Leah Levitt.
RECITATIVO
Uma semana mais tarde, Alger Hiss desliza a aliança de casamento pelo anular
e a deposita na pia; ensaboa os pulsos e as palmas, uma, duas, mil vezes, com a
expressão imperturbável, alheia à imagem fria que aparece no espelho. Sua mente se
encontra tão longe dali, absorvida em outro universo ou no passado, que se sua
pulcra imagem desaparecesse de repente, como a de um vampiro, talvez ele não se
desse conta. Depois de enxugar as mãos com idêntico zelo, volta a colocar a aliança,
olha o relógio e se dirige à sala de sessões.
Sua elegância um tanto exagerada, seu porte altivo e os delicados indícios em
seu sotaque — culpa da educação em Harvard — não deixam lugar a dúvidas sobre
sua linhagem. Diferentemente de Chambers, desbocado e malvestido, Hiss se
mostra como o que sempre foi ou aparentou ser, um funcionário exemplar,
integrante da classe privilegiada que, à sombra de Roosevelt e do New Deal, resgatou
o país da bancarrota. Embora o berço privilegiado seja um mal-entendido — Alger
precisou cuidar de seus irmãos depois do suicídio do pai, um comerciante sem
muitos recursos —, o contraste com seu acusador é tão ostentoso que, para o bem
ou para o mal, os dois carregarão os estereótipos do ex-comunista patético e do
janota enrolador.
— Quero deixar claro que não sou e nunca fui membro do Partido Comunista
— declara Hiss com a voz aveludada de quem anos atrás encabeçou a Conferência
de Dumbarton Oaks. — Não apoio e nunca apoiei os princípios do Partido
Comunista. Não sou e nunca fui membro de nenhuma entidade filiada ao Partido
Comunista. Nunca segui as diretrizes do Partido Comunista de maneira direta ou
indireta. E, até onde consigo saber, nenhum dos meus amigos é comunista.
Strip solicita seu currículo, e Hiss enumera a exemplar lista de cargos que
acumulou ao longo de vinte anos no serviço público, de seu estágio com o lendário
juiz Oliver Wendell Holmes ao atual cargo de diretor executivo da Fundação
Carnegie (presidida por uma pessoa tão respeitada pelos republicanos quanto John
Foster Dulles). Visto assim, com todo o seu garbo e toda a sua eloquência, ninguém
poderia acreditar que se trata do mesmo revolucionário muito sensível descrito por
Whit em 3 de agosto. Ou será que Strip, algum dos congressistas ou senadores, ou
mesmo algum abutre da mídia, poderia imaginá-lo chorando depois que Chambers
tentou afastá-lo das garras soviéticas?
Em um momento culminante da audiência, Strip mostra a Hiss uma fotografia
recente de Whit e pergunta se o reconhece. Este a examina com o cenho franzido,
pegando-a com as pontas dos dedos como se fosse um excremento, antes de devolvê-
la ao investigador-chefe.
— Se este é um retrato do sr. Chambers, não tem uma aparência nada
incomum. — Alger levanta a sobrancelha. — Parece com muita gente. Inclusive se
poderia confundi-lo com o presidente deste Comitê…
Karl Mundt, com sua cara de baiacu, presidente em exercício do HUAC na
ausência de J. Parnell Thomas, é o único que não se soma ao coro de gargalhadas
que faz vibrar a sala.
— Não digo isso para bancar o engraçado — Alger recupera a solenidade —,
queria poder vê-lo cara a cara, acho que assim ficaria mais capacitado para dizer se
alguma vez o vi.
Uma formulação um tanto arrevesada, mas afinal efetiva. Como se estivesse
protegido por um escudo — sua venerabilidade e sua arrogância —, a bateria de
mísseis dirigida pelo HUAC explode no ar sem roçá-lo. Ao término da sessão um dos
interrogadores até pede desculpa pelo dano que o depoimento pudesse ter causado a
uma pessoa “a quem muitos americanos, incluindo vários membros do Comitê, têm
em tão alta estima”, e outro lhe dá um ostensivo aperto de mãos (Algie precisará
voltar a se ensaboar).
Aos olhos de todos os observadores, Hiss emerge da audiência como um fidalgo
injustamente difamado e Whit como um ex-espião rasteiro e mentiroso. Nixon é o
único que não solta a presa. Enquanto Mundt, Hébert e os outros integrantes do
Comitê se mostram cuidadosos ou diretamente envergonhados, ele vigia os deslizes
ou hesitações de Hiss com uma lente de aumento. Como congressista estreante será
bom demonstrar seu zelo anticomunista. O californiano acha que Hiss se
comportou com uma altivez insuportável, e sua maneira de negar Chambers — teria
sido tão fácil dizer não o conheço — é o fio que puxará até o final. E que melhor
aliado que Whit para reapresentar seu ataque?
RECITATIVO
RECITATIVO
Sob um sol infernal e com a presença de cerca de 1200 pessoas, bem como das
sinistras câmeras de televisão — uma novidade —, o 25 de agosto é chamado pelos
tabloides de “O dia do confronto”.
Chambers vs. Hiss.
Ao entrar na sala, Whit reaparece com sua desleixada aparência de sempre,
despenteado e suarento. Hiss, por outro lado, ostenta um terno impecavelmente
engomado e um sorriso Colgate.
Não faz sentido reproduzir aqui as intervenções desse dia, que no essencial
reiteram os argumentos que cada um defendeu durante a sessão do Hotel
Commodore. Os dois reconhecem ter se conhecido em 1935 e afirmam que Whit
passou algumas semanas no apartamento de Hiss na rua 29 e que usou seu Ford; no
resto, prolongam seu desacordo.
Um episódio se destaca em meio a uma infinidade de minúcias: quando Nixon
pergunta, Chambers reafirma o que sentia por Hiss no passado.
— O sr. Hiss era seu amigo? — o Narigudo afunda o dedo na ferida.
— O sr. Hiss era o melhor amigo que cheguei a ter no Partido Comunista.
— Sr. Chambers, poderia encontrar em sua memória algum motivo pelo qual
acusar hoje o sr. Hiss?
— Que motivo poderia ter?
— Não sei, talvez o sr. Hiss tenha feito algo contra o senhor…
— Espalharam o boato de que meu testemunho se apoia em alguma desavença
passada, ou que faço isso por vingança ou por ódio. — Os olhos de Whit se enchem
de lágrimas. — Eu não odeio o sr. Hiss. Fomos amigos, mas agora estamos presos
na tragédia da história. O sr. Hiss representa o inimigo oculto contra o qual todos
nós lutamos e que eu combato. Testemunhei contra ele com remorso e compaixão,
mas no meio do perigo que se abate sobre a nossa nação, que Deus me ajude, não
teria podido agir de outra maneira.
Ao término do interrogatório, os membros do HUAC já não têm dúvidas: o
maior mentiroso que já pisou na América não é outro senão Hiss, que deverá
comparecer diante de um grande júri acusado de perjúrio.
Os advogados de Alger respondem apresentando uma queixa por difamação
contra Chambers nos tribunais de Baltimore e exigem uma indenização de 50 mil
dólares por perdas e danos.
O combate agora é corpo a corpo.
DUETO
RECITATIVO
DUETO DA VINGANÇA
RECITATIVO
Não foi uma coincidência nem um milagre, agora acho que a descoberta foi
parte de um plano maliciosamente traçado pela minha mãe. Abandonada na
residência para aposentados em Orlando, Judith continuava se exercitando como
uma manipuladora de marionetes capaz de fazer avançar ou retroceder nossas
pesquisas (como Leah continuava chamando) ao seu bel-prazer. Como se tivesse
sido resgatada do fundo dos mares — ou da sua memória —, de repente descansava
sobre a minha mesa, dentro de um grosso pacote do FedEx de uma polegada de
espessura, uma nova e insuspeitada coleção de diários do meu pai, desta vez
correspondentes ao período 1943-1945 (por que só estes anos?, perguntou minha
exigente mulher), que cobriam as negociações entre as delegações americana e
britânica sobre a política econômica do pós-guerra e os bastidores da Conferência de
Bretton Woods. Um presente que, em sua infinita benevolência, minha mãe me
fazia chegar sem admitir nenhuma pergunta sobre sua origem ou as razões de sua
repentina aparição.
Diferentemente dos cadernos anteriores, nestes a caligrafia de Noah se tornava
mais severa, como se ele estivesse se esforçando para manter a firmeza do pulso. Em
compensação, suas observações, tanto técnicas quanto humanas (para adjetivá-las de
alguma maneira) adquiriam um tom excessivamente minucioso na hora de detalhar
a negociação com os ingleses. Suas descrições dos meandros de Bretton Woods
fizeram as delícias de Leah — Noah teria sido um dos redatores dos acordos da
conferência —, mas me pareceram longas e chatas.
— Vamos nos concentrar em entradas que permitam observar a relação de
White e do meu pai com a União Soviética — pedi a Leah.
— Em minha opinião, White e seus subordinados queriam apenas dobrar os
britânicos — declarou. — Sem dúvida o subsecretário do Tesouro respeitava
Keynes, mas estava decidido a sabotar todas as iniciativas dele.
Embora o estilo de Leah continuasse sendo simples, nos últimos tempos tinha
se operado uma sutil transformação em sua imagem. Continuava usando um
mínimo de maquiagem, mas agora não hesitava em comprar produtos da L’Oréal
ou da Lancôme em vez das misturas orgânicas do Whole Foods. Continuava
gostando dos jeans e das sandálias, mas agora combinava Stella McCartneys, Jimmy
Choos e Manohlo Blahniks com peças trazidas da Colômbia ou da Índia. A única
coisa em que se mantinha inflexível era em sua fé vegana e na decisão de beber
apenas café e chocolate com etiquetas de comércio justo, a dose mínima de
compromisso social com que se pode saciar a culpa de uma consumidora nova-
iorquina.
— O que me diz deste trecho? — apontei uma página destacada com
marcador:
23 de outubro de 1943
Hoje acompanhei Harry em um almoço com o embaixador Molotov, um
homenzarrão com um inglês ruim e lábios estufados de ex-lutador. Enquanto nosso
convidado devorava suas ostras do Maine, Harry lhe deu uma palestra sobre as
negociações com os britânicos e os avanços do plano monetário para o pós-guerra.
Tenho certeza de que o curtido diplomata registrou cada uma das nossas palavras.
Harry lhe explicou os aspectos gerais do Fundo e não deixou de insistir em que a
presença da União Soviética no organismo era indispensável. Com uma cortesia
afetada, Molotov garantiu que enviaria toda a informação a Moscou e que esperava
uma resposta positiva pelo bem da cooperação entre as duas nações etc.
“O problema”, resumiu Harry, “é que os russos nunca lhe darão uma resposta
direta, tudo deve ser consultado mil vezes, é um pesadelo.”
— Devemos lembrar que, entre dezembro de 1943 e abril de 1944, White e
Keynes continuavam sua disputa à distância — resmungou Leah. — White
precisava publicar o quanto antes um acordo de princípios que servisse como base
para a conferência monetária que Roosevelt queria realizar antes do verão. Keynes,
por outro lado, não deixava passar um dia sem enviar um telegrama ao ministro da
Fazenda para reclamar do rascunho preparado por White. Afinal, além de algumas
pinceladas, praticamente não restou nenhum vestígio do ambicioso projeto
keynesiano no acordo, com exceção do nome escolhido para batizar o Fundo
Monetário Internacional, um termo cunhado pelo britânico frente ao mais ambíguo
e técnico Fundo de Estabilização Internacional empregado por White. Veja:
13 de fevereiro de 1944
A unitas foi definitivamente descartada. Winant, nosso embaixador em
Londres, confirmou isso ao secretário. Os britânicos perderam a última batalha e só
resta uma rendição sem condições. Do nosso lado, o presidente voltou a insistir em
que a conferência seja realizada durante o mês de maio. Só faltam algumas semanas!
E o pior é que eu e Glasser temos que organizá-la.
— Três meses mais tarde, os soviéticos voltam a entrar em cena — indico
outras duas entradas:
20 de abril de 1944
“Novamente sem notícias dos russos”, me confiou Harry. “Amanhã o secretário
Morgenthau anunciará o Acordo de Princípios, e Molotov continua sem nos dar
nenhuma resposta. Falei dez vezes com ele e continua dizendo que não estão seguros
sobre os princípios do Fundo. Se a resposta não chegar amanhã a esta hora, não sei o
que faremos.”
Tentei acalmá-lo, em vão.
21 de abril de 1944
Algumas horas antes que o secretário anunciasse o Acordo de Princípios,
finalmente chegou a resposta dos russos. Não foi uma adesão entusiasta, nem algo
parecido, mas pelo menos um pouco mais explícita que o silêncio prévio. Apesar de
não concordar em temas substanciais, dizia o telegrama, decidimos apoiar o plano
Morgenthau.
Não sei se com isso finalmente poderemos respirar.
— Outra vez não vejo nada estranho — de repente Leah se impacientava com
minha teimosia. — White precisava da anuência da URSS para continuar com os
preparativos da conferência. Uma vez confirmada a participação dos britânicos e dos
russos, Morgenthau pôde anunciar que esta se realizaria em julho. No entanto, é
verdade que a publicação do Acordo de Princípios não aliviou a tensão entre White
e Keynes. Milhares de pequenos detalhes (a data e o lugar da conferência, os
membros do novo comitê de redação, o número de países convocados) continuaram
a colocá-los de lados opostos. Só para dar uma ideia do seu humor, vou ler um
trecho desta carta de Keynes — minha mulher não hesitou em imitar as engalanadas
cadências características do sotaque britânico:
A ideia do dr. White em tudo isso se torna “cada vez mais peculiar”. Quarenta
e duas nações, que se transformaram em 43, foram convidadas para o 1o de julho.
Não poderão se comprometer nem tomar decisões finais porque tudo será ad
referendum. Não obstante, agora parece que nem sequer fingirão fazer qualquer
trabalho, pois tudo estará pronto antes que cheguem. Os jornais americanos
indicam que “a conferência começará em 1o de julho e pode se prolongar por
semanas”. A menos que seja uma errata, não é fácil adivinhar do que se ocupará essa
jaula de macacos todo este tempo. É previsível um agudo envenenamento alcoólico
antes que se conclua.
— Não parece muito satisfeito — admiti.
— Farto das críticas de russos e britânicos — Leah levou a mão à testa —,
Morgenthau finalmente anunciou a sede da conferência, o Hotel Washington de
Bretton Woods. Antes disso, White convocou uma reunião de especialistas do
Tesouro e da secretaria de Estado no Hotel Claridge de Atlantic City, em uma
espécie de ensaio geral do qual surgiriam as posições que os delegados americanos
defenderiam diante dos britânicos. Economizarei as descrições que seu pai faz do
encontro (um campo minado com a aparência de um piquenique familiar) para que
nos concentremos na última anotação de Noah sobre os soviéticos antes de ir para
Bretton Woods:
28 de junho de 1944
E os russos? Esta é a pergunta que todos nós fazemos todos os dias. O Harry
mal consegue dormir. Se virão, se não virão. Se virão dispostos a participar
totalmente, ou só como observadores. Se estão contentes, se estão encolerizados.
Depois de tudo o que fizemos por eles.
— Depois de tudo o que fizemos por eles — repeti. — Você não acha que esta
frase basta para documentar sua traição?
Cena VII. Sobre como ganhar perdendo e perder ganhando e
como montar um pequeno álbum de família
RECITATIVO
ÁRIA DE SUSAN
ÁRIA DE ISAAC
ÁRIA DE NOAH
RECITATIVO
Vikram me lembrou da maldição chinesa que diz: ai de você se lhe couber viver
tempos interessantes. Eu rebati com outra melhor: ai de você se lhe couber viver
tempos divertidos. E olhe que aquele verão de 1998 foi muito! Os 90 se
transformaram na década mais louca do século desde os fabulosos 20 e os
promíscuos 60, a mais louca, a mais ridícula! Para onde quer que a gente voltasse o
olhar topava com um espetáculo hilariante, mais próprio de uma feira do interior ou
de um bar que da Broadway ou do Met. Ligava a televisão e aparecia nosso
presidente, meloso e alinhado, com seu nariz de batata e seu sotaque sulista, dando
uma lição de anatomia — ou de linguística? —, segundo a qual deslizar um charuto
na xoxota de uma roliça estagiária não podia ser considerado, imagine, um ato
sexual. Como eu admirava aquele descarado! Enquanto uns o execravam e outros o
defendiam com unhas e dentes, eu reverenciava sua verve histriônica, sua capacidade
para soltar desculpas com sua convicção de metodista, seu descaramento na hora de
mostrar arrependimento sem deixar de zombar de seus inquisidores! Que grande foi
Bill, mesmo sendo democrata! (Um democrata, acrescento, que serve melhor do que
qualquer republicano aos nossos interesses.)
E enquanto o líder do mundo livre se enrascava com um vestido ensopado com
seus fluidos, no outro lado do planeta, nos limites do antigo império comunista, o
bêbado corado e suarento que guiava seus destinos repetia várias vezes que o rublo
não ia se desvalorizar, não senhores, hic, nunca, jamais, hic, hic. Ieltsin proclamava
isso em alto e bom som cambaleando na sua dacha à beira do mar Negro, não muito
longe de onde veraneava meio parlamento, enquanto em Moscou os mercados
despencavam, o preço do petróleo caía 33%, a Bolsa de Valores detinha as cotações
por medo de um crash e as taxas de juros em curto prazo aumentavam em uns
200%.
A diferença entre os dois shows era que, enquanto o burlesque do nosso
comandante em chefe mantinha os sócios do Long-Term se mijando de rir, a
comédia etílica do camarada Ieltsin os conduzia a um estado que, para não soar
muito maldoso, qualificarei de pura histeria. O motivo? A monstruosa quantia que
tinham apostado na possível convergência de bônus ligados ao rublo. O Long-Term
experimentava uma dolorosa sangria desde agosto. E que ideia Haghani tinha tido
para contê-la? Já sabemos: colocar seu troco na Rússia. Investir milhões na antiga
terra dos czares, nos delegados comunistas e nos oligarcas sem escrúpulos. Por que
lá? Porque uma bela fórmula matemática previa uma insólita jogada dos novy russki?
Porque Ieltsin tinha lhe telefonado para garantir que o país ia às mil maravilhas?
Porque Scholes e Merton tinham demonstrado que a Rússia oferecia um risco
razoável? Não! Se Haghani jogou tudo nos bônus russos foi porque achou que era
um bom investimento. Para que então tantas fórmulas se no final os diretores do
LTCM iam se deixar levar por suas malditas intuições?
Só os ratos abandonam o navio quando este começa a fazer água. Ratos
inteligentes! Como Vikram e eu. Em 15 de julho nós dois apresentamos nossas
renúncias a J.M., tão inoportunas quanto irrevogáveis. Durante um instante ele
tentou nos dissuadir e depois ele, tão católico, começou a blasfemar. Resistimos à
pressão com integridade: não estávamos dispostos a afundar com ele. No final, J.M.
nos deu um reticente aperto de mão e nos mandou falar com seus advogados para
acertar os termos da saída. O que mais o preocupava era que assinássemos a cláusula
de confidencialidade que nos proibia de contar o que vimos dentro do LTCM. (A
mesma cláusula que, como vocês, perspicazes leitores, testemunham, agora rompo
descaradamente.)
Não posso dizer que Vikram e eu adivinhássemos a insólita derrota posterior.
Sem dúvida o fundo atravessava um mau momento, mas nem com toda a nossa
clarividência teríamos conseguido imaginar a rapidez da queda. Na segunda-feira 17
de agosto a Rússia fez o que Ieltsin garantiu que nunca faria (como acontece em
toda crise) e decretou uma moratória unilateral. A esta se seguiu a tão temida e
adiada desvalorização. E ainda assim nossos lúcidos colegas de Wall Street se
recusaram a ver o incêndio que já lhes calcinava as pestanas. “Não achamos que a
Rússia vá se transformar em um problema maior”, declararam apertando os colhões.
As potências nucleares não podem cair em default, tinha garantido Haghani. Mas
agora a Rússia, a maior potência nuclear do planeta, não só não conseguia honrar
seus compromissos, como anunciava isso com a maior desfaçatez.
Na quinta-feira 20 os mercados sofreram os primeiros altos e baixos, e na sexta-
feira 21 o Dow Jones perdeu 280 pontos antes do meio-dia para só recuperá-los
antes do fechamento. Diante de tamanha volatilidade, os investidores deixaram de
confiar nos mercados emergentes, cujas catástrofes sucessivas no México, Ásia e
Rússia os tinham feito perder fortunas, e se lançaram em massa nos bônus do
Tesouro.
— Merda!
Esta elegante expressão, na boca do funcionário do Long-Term que constatou
que a disparidade nos swaps tinha alcançado 78 pontos básicos (quando o normal
era um ponto), dava conta do nervosismo geral. Segundo os modelos dos gênios,
uma brecha semelhante era virtualmente impossível e só poderia ocorrer uma vez a
cada mil anos. A imperfeição residia, provavelmente, no advérbio. A cada minuto o
LTCM perdia milhões. O fluxo era tão vertiginoso que não havia um plano B para
contê-lo. Segundo os quants, o pior cenário para o fundo consistia em perder 35
milhões em um único dia, e só naquele 21 de agosto tinha deixado ir 553 milhões.
Pegos em suas plácidas férias na Suíça, Toscana ou Costa Azul, J.M. e seus sócios se
viram obrigados a voar de volta aos seus escritórios de Connecticut.
Naquele domingo os diretores do LTCM se fecharam para avaliar os danos
(melhor dizendo, para chorá-los). Todos sabiam que sua última opção consistia em
conseguir uma urgente injeção de capital, algo que não parecia fácil dadas as
condições do mercado. “As brechas sempre tendem a convergir”, repetia J.M. como
uma prece, decidido a resistir à catástrofe. Mas quem poderia resgatá-lo?
— Warren — propôs Rosenfeld, que conhecia o Mago de Omaha de outras
épocas. Depois de ouvir seu pedido, Buffet recusou. (Não por acaso é tão rico.)
Cada vez mais angustiados, os sócios do Long-Term se lançaram a perseguir
meio mundo: George Soros, Roberto Mendoza do J.P. Morgan, Herb Allison do
Merrill Lynch, Jamie Dimon do Treveller’s, Joe Corzine do Goldman Sachs, Jesus
Cristo e Papai Noel. Em vão. Os rios de capital, que antes irrigaram tão
generosamente seus cultivos, agora estavam secos.
Da comodidade da minha poltrona, a queda do LTCM não deixava de me
maravilhar. Em uma ironia sutil, o fundo de risco que mais rapidamente tinha
gerado lucros na história perdia dinheiro a uma velocidade que logo se faria
merecedora de um recorde no Guinness.
— Quanto perderam? — perguntei a J.M. quando me ligou em 29 de agosto.
Devia estar muito desesperado para procurar minha opinião.
— A metade — aceitou.
— Então está acabado.
— O que está dizendo? Ainda temos a outra metade, e o Soros…
— Sinto muito — frisei. — Uma vez que você perdeu a metade, as pessoas
pensarão que perderá a outra metade de uma hora para a outra. Colocarão o
mercado contra você, J.M. Não refinanciarão seus acordos. Você está acabado.
Em 2 de setembro, Vikram me mostrou a notícia divulgada pela agência
Bloomberg: o Long-Term tinha perdido 52% do seu capital.
— Os mercados sempre conspiram contra os fracos — resumi ao meu novo
sócio. — Depois de cinco anos se mostrando como o mais temido monstro de Wall
Street, agora o LTCM será devorado pelos rivais.
Merton, o grande Merton, entreviu na derrota o descrédito do seu modelo
financeiro e começou a chorar. E Scholes, o grande Scholes, quase desmaiou
enquanto recebia uma homenagem em Toronto, sua cidade natal. Só J.M. resistia:
nada mais repugnante, no nosso círculo, do que um homem desesperado que parece
um homem desesperado.
Em meados de setembro, as perdas do Long-Term subiam a 1,5 bilhão de
dólares. Uma proeza! Mas não era só isso, o desmoronamento de J.M. começava a
ser o de menos. Em seus cinco anos de trajetória, o Fundo dos Gênios tinha
realizado transações com todos os atores de Wall Street. Convertido em um núcleo
ardente a ponto de explodir, o Long-Term poderia devastar a economia de meio
mundo. Os prêmios Nobel estavam prestes a conseguir uma façanha inédita:
explodir o planeta em mil pedaços!
TRIO
DUETO
— Foi Marx quem afirmou que a história primeiro se apresenta como tragédia
e depois se repete como farsa. — Leah exibia sua erudição sem deixar de brincar
com as orelhas de Salinger. — No caso de Hiss aconteceu o contrário: à comédia de
erros do primeiro julgamento se seguiu o drama do segundo. Muitos dos atores
principais permaneceram em cena, como Chambers ou Murphy, mas Alger
prescindiu dos serviços de Stryker, talvez por obter um júri dividido em vez da
absolvição, e contratou um advogado de Boston, Claude B. Cross, com a ordem de
questionar não apenas a credibilidade de Whit e sua mulher, mas também a
evidência apresentada pela promotoria. O juiz Kaufman foi substituído pelo
veterano Henry W. Goddard, cujas simpatias republicanas não eram um segredo
para ninguém.
Havia vezes, como essa, em que eu gostaria de dissecar o maldito beagle. Pulava
sem parar e Leah, tão limpa para outras coisas, nem sequer reparava nos rastros de
baba e pelos que o animal espalhava pelo cômodo.
— Imagino que dessa vez o processo foi mais rápido — ironizei.
— Em 21 de janeiro de 1953, a porta-voz do júri tomou a palavra e declarou
Hiss culpado de perjúrio. Dois dias mais tarde, Hiss compareceu à Foley Square
para ouvir sua sentença. Goddard o condenou à pena máxima, cinco anos em uma
penitenciária federal por cada uma das duas acusações de perjúrio, que deveriam ser
cumpridas simultaneamente.
— Cinco anos.
— E aqui vem o mais interessante — Leah mordeu o lábio. — Em 26 de
janeiro de 1953, Richard Nixon apresentou diante do Congresso um discurso breve
intitulado: “O caso Hiss. Uma lição para o povo americano”, no qual insistiu em
afirmar que as administrações democratas tinham protegido dezenas de espiões no
governo. E, para reforçar seu argumento, tornou público o memorando de oito
páginas que supostamente Harry Dexter White entregou a Chambers para que, por
sua vez, o transmitisse aos russos.
— Suponho que agora me relatará o conteúdo.
Leah fez uma pausa dramática, usufruindo do suspense.
— O texto não tem paralelo entre os milhares de papéis que White deixou em
seus arquivos. — Leah examinava suas anotações, acariciava Salinger e levantava os
olhos para mim. — Mais do que de um verdadeiro memorando, o texto é um
rascunho ou aide de mémoire que cobre um período de 37 dias, entre 10 de janeiro e
15 de fevereiro de 1938. Segundo os especialistas que o estudaram, pode ser
produto de duas traições de datas diferentes, a primeira em 10 de janeiro e a
segunda em 19 de janeiro de 1938, o que talvez esclareça a redação um tanto
desconexa.
— E há nele alguma prova concreta de que White tivesse passado informação
confidencial aos russos?
— Os caluniadores de White sustentam que boa parte da informação do
memorando era secreta e que, sem dúvida, poderia ter sido de utilidade para os
nossos inimigos. Seus defensores, como o próprio filho de Harry, Nathan White,
afirmam que não tem nenhuma relevância. A única coisa certa é que não há forma
de explicar por que um texto desta natureza, feito por White em caráter de
subsecretário do Tesouro, acabou nas mãos de Chambers. Que a parte mais
significativa se refira aos esforços bélicos do Japão, cuja economia de guerra White
estudava nesses anos, parece confirmar que White decidiu compartilhar esta
informação com os soviéticos, em seu afã por estabelecer uma sólida aliança para
vencer as potências do Eixo.
Leah serviu algumas amêndoas em um prato e começou a dividi-las com o cão.
Nunca chegaria a entender sua relação com aquela besta insossa.
— O que continuo sem entender é por que ele fez isso — me levantei da
poltrona e comecei a dar voltas ao redor do cômodo. — Por que o subsecretário do
Tesouro, responsável pelo sistema de Bretton Woods, iria entregar informação
confidencial aos soviéticos? Por dinheiro?
— Você acha que todo mundo faz as coisas por dinheiro. — Leah zombou de
mim.
— E?
— White nunca se viu como espião. Nunca aderiu ao Partido Comunista.
Nunca foi um militante nem um lacaio. Um companheiro de caminho, se tanto. E
nem sequer isso: um homem cuja tremenda arrogância o levou a pensar que
conseguiria conciliar os interesses dos Estados Unidos e da União Soviética, a única
esperança que vislumbrava para uma paz futura.
— Essa é sua explicação? — me sobressaltei. — Que White traiu seu país por
causa de sua infinita vaidade?
— Pelo menos é uma parte da explicação.
— E o meu pai? Por que o fez?
Leah acariciou a cabeça de Salinger como se fosse a minha.
— Acho que devemos procurar a resposta para esta pergunta em outro lugar.
ÁRIA DE SUSAN
Terry percebeu os rastros da traição nas ausências da esposa, nas suas carícias e
abraços comedidos ou distantes, na sua indiferença ou na sua ânsia por agradá-lo?
Viu-a fugindo a um restaurante ou a um hotel de segunda ou seguiu seus passos em
uma das manhãs em que escapava cedo de casa? Ou foi uma intuição, uma estúpida
e infernal intuição? Ou contratou um detetive, coisa tão grosseira quanto inevitável
no nosso meio? Ou a seguiu ele próprio, acentuando sua humilhação e planejando
sua vingança? E desde quando? Desde que começou a aventura de Susan, um ano
atrás, ou nas últimas semanas, ou nos últimos meses?
Minha filha sempre se achou muito esperta (defeito de família), mas a verdade
é que nunca se caracterizou por sua discrição. Não me atrevo a sugerir que o
remorso ou a culpa a impulsionaram a se autoacusar — a conclusão do charlatão
que a psicanalisava —, e menos a dizer que merece o que lhe aconteceu, pois nem a
pior mãe mereceria um tratamento semelhante, mas seus descuidos são
imperdoáveis. Se tinha decidido colocar chifres no caipira e ainda por cima com um
dos sócios dele (fiquei sabendo disso mais tarde), teria que ter levado as precauções
ao extremo. Confiando na apatia que impregnava sua vida, Susan tinha certeza de
que Terry não desconfiava de nada e se recusou a perceber os sinais da fúria — sim,
fúria — que se acumulava no peito do marido.
Minha filha adoecia dos mesmos defeitos do nosso tempo: a má gestão e a
soberba. Recusou-se a avaliar os riscos, preferiu desconsiderá-los e evadi-los até que
já era tarde demais. Não entendo, não consigo entender por que se aferrou a esse
único amante — a aposta mais perigosa para uma pessoa casada — em vez de se
concentrar em uma cadeia de conquistas anônimas e inofensivas!
Susan e Terry nunca foram compatíveis, isso qualquer um teria podido
constatar. Desde o início formaram um casal inverossímil, não tanto por seus
atributos físicos — os dois poderiam ter sido modelos — quanto pelas vibrações
contrastantes que irradiavam, mas a convivência os tinha encurralado em uma
espécie de calma desprezível, uma tolerância cotidiana produto da inércia e da
letargia. Os dois se esmeravam em adoçar seus conflitos, em fazer como se fossem
um para o outro. Por isso o ocorrido foi pior, muito pior, do que em qualquer outro
desentendimento de casal, do que em qualquer outro divórcio, do que em qualquer
outra guerra matrimonial, não uma explosão repentina, mas um pesadelo friamente
articulado. Eu mesmo nunca acreditei que Terry — o loiro panaca do álbum de
família — fosse capaz de tamanha descarga de violência psicológica e muito menos
que fosse planejar seu golpe com tanta frieza.
Assim que vi Susan na porta do meu escritório, abatida e lívida, com as
pálpebras maltratadas pelo choro, acreditei antecipar o que ia me relatar, mas o que
me contou foi pior, muito pior, do que eu imaginava.
— Minhas filhas — deixou-se cair nos meus braços. — Minhas filhas…
A única regra essencial e inquebrantável para as mulheres é esta: nunca engane
o seu marido em sua própria cama. Nunca. Da primeira vez, Susan se deixou levar
pela urgência do desejo e, aproveitando que Terry tinha saído em uma viagem de
negócios, se apressou a enviar uma mensagem para Milton convocando-o. Embora
depois tenha tentado se desculpar dizendo que só pensava convidá-lo para um
drinque, desde que apoiou os dedinhos no teclado do celular sabia que acabaria
levando o amante aos mesmos lençóis que dividia com o marido. Tão imprudente
quanto ela, ou decidido a dessacralizar com seus humores o leito do sócio (e rival),
como qualquer macho no cio, Milton não hesitou em satisfazê-la. “Só esta vez”,
sussurrou minha filha ao seu ouvido como se fosse uma travessura. A ânsia de
conforto a fez renunciar aos hotéis do Queens ou de Long Island, sempre tão
anônimos e decadentes, tão longe dos seus gostos sofisticados, e toda vez que Terry
anunciava uma viagem a Connecticut, Maine ou Pensilvânia — sua firma se
dedicava ao fértil mercado hipotecário —, minha filha não hesitava em dispensar os
empregados.
Naquela terrível manhã Susan tinha voltado a ficar sozinha em casa. Terry
tinha saído cedo para Boston, a empregada informou estar com uma virose e as
gêmeas estavam na escola. Por que não aproveitar estas horas com Milton, aquele
eterno desocupado, sempre disposto a aparecer assim que ela estalava os dedos? O
impaciente chegou perto das dez, minha filha recebeu-o seminua e lhe ofereceu uma
taça de champanhe com suco de laranja. Ao que parece, ele imediatamente lhe
arrancou o sutiã acetinado e a calcinha transparente, que acabaram em cima da
mesinha, e carregou o leve corpo da minha filha até o quarto principal (detesto
imaginar isso).
Terry deve ter cronometrado os encontros com precisão milimétrica, ou nesse
dia gozou de uma sorte dos demônios. Quando abriu a porta de forma inoportuna,
Milton, felizmente, já não afundava o pau entre as nádegas da minha filha, nem
deslizava a língua pelo seu sexo, nem ela abria as pernas dele ou o masturbava com
seus dedinhos impecáveis, mas os dois ainda permaneciam um em cima do outro,
esgotados e nus, como dois atletas ofegantes. De mãos dadas com Terry, Audrey e
Sarah só conseguiram entrever os seios minúsculos e o pelo púbico da mãe por
alguns segundos, suficientes para odiá-la pelo resto da vida.
Terry fingiu surpresa, Susan e Milton se cobriram apressadamente, Susan ficou
histérica, as gêmeas correram para os seus quartos, Milton saiu de cena a toda a
velocidade (para não voltar nunca mais), e muito em breve o assunto ficou nas mãos
de uma legião de advogados.
Na audiência, Terry garantiu que Audrey ligou para ele do colégio porque
tinha se sentido mal e, diante do silêncio da esposa, se viu obrigado a voltar de
Boston. Nunca se comprovou que essa história fosse verdade. Com uma maturidade
inverossímil, as gêmeas confirmaram cada frase do pai. Embora eu tenha contratado
a melhor equipe de advogados, não havia muito o que fazer. A odiosa infidelidade
de Susan logo vazou para a imprensa de fofocas, minha filha perdeu a custódia e,
além disso, foi condenada a pagar pelo dano moral. Terry considerou irrisória a
quantia fixada e recorreu para obter um aumento.
No começo Susan conseguiu manter certo equilíbrio, mas depois de poucas
semanas de iniciado o processo sofreu uma nova crise nervosa e me vi obrigado a
interná-la em uma clínica. Intuindo sua ruína, Terry exigiu que uma assistente
social acompanhasse as meninas nas futuras visitas da mãe. Que tipo de homem
sacrifica as filhas para se vingar da esposa? Terry, o matreiro e aprazível Terry, era o
monstro que deveria ter sido afastado delas, não Susan. Mas seria eu quem me
encarregaria de que ele pagasse pelo dano infligido à minha filha e às minhas netas.
CABALETTA DE NOAH
Volto a imaginá-lo, pai, nos anos posteriores à guerra. Depois da euforia pela
vitória, as atrocidades do nazismo, os milhões de judeus assassinados, os campos de
concentração e a indiferença das potências ocidentais diante do massacre o
devastam. De que serve todo o esforço se finalmente ninguém teve coragem para
deter o holocausto? Ainda por cima, a nova rivalidade entre os Estados Unidos e a
União Soviética te deixa em uma posição cada vez mais frágil, mais incômoda. O
cenário se torna inseguro, infamante. Truman não é Roosevelt, e nem White nem
você simpatizam com suas políticas.
Em um estado próximo ao sonambulismo, você continua com os preparativos
para colocar em funcionamento o Fundo Monetário Internacional e, na condição de
assistente de White, comparece à primeira reunião de governadores do Banco e do
Fundo que se realiza em Savannah em março de 1946, onde se encontra pela última
vez com Lord Keynes. A falsa cordialidade de Bretton Woods voltou a se traduzir
em uma amarga troca de recriminações; o britânico já não esconde sua frustração
diante do poder que os americanos exibem, enquanto White se nota todo o tempo
distraído ou mal-humorado, praticamente alheio ao que acontece ao redor. Ainda
por cima, a conferência é presidida pelo juiz Vinson (em sua opinião, uma das
figuras mais desagradáveis do meio financeiro), o secretário do Tesouro que
substituiu Morgenthau, que se lança em um discurso hipócrita sobre as esperanças
incitadas pelas novas instituições financeiras, quando na verdade manobra para
colocá-las ao seu serviço.
Mais desiludido que vocês, Lord Keynes se vale de uma linguagem farta de
metáforas de dança para se referir aos perigos que espreitam as novas instituições
financeiras, estes gêmeos que ele denomina Maese Fundo e Miss Banco como se
fossem personagens extraídos de A bela adormecida, uma das coreografias favoritas
de sua mulher. “O pior que poderia acontecer aos gêmeos”, proclama o Economista
Mais Famoso do Mundo durante sua intervenção, “é que uma fada malvada, uma
Fada Carabina, os amaldiçoe. A maldição seria a seguinte: Vocês, irmãozinhos, se
transformarão em políticos. Seus pensamentos e atos serão guiados por uma arrière-
pensée: tudo o que decidam não será para seu benefício ou por seus méritos, mas
sim por outra razão. Se os gêmeos chegassem a se transformar em políticos, o
melhor que lhes poderia acontecer seria cair em um sono eterno.”
Irritado, Vinson acha que a analogia de Keynes é dirigida a ele e lhe sussurra ao
ouvido: “Não me importa que me chamem de malvado, mas não suporto que
ninguém me chame de Fada Carabina”. Pobre idiota, você pensa, ou eu acho que
pensa.
Apesar de todos os seus esforços para acalmar os ânimos, a rispidez entre todos
os atores da conferência se percebe até nos atos sociais, e ao longo dos dias seguintes
o britânico continua denunciando a submissão do Fundo e do Banco aos interesses
norte-americanos, enquanto o juiz Vinson, e em menor medida White e você (mais
obrigados pelas circunstâncias do que por convencimento) se asseguram de que
nossa Grande Nação controle os dois. Miss Fundo e Maese Banco. Como era
previsível, Lord Keynes volta a perder a luta, mas tampouco se pode dizer que a
conferência é um sucesso para Harry, que por razões que você e ele ainda
desconhecem não recebe o apoio oficial para ser nomeado diretor-gerente do Fundo
— a criatura que ele mesmo concebeu — e tem que se conformar com a posição de
diretor executivo da delegação americana.
“Recuso-me a trabalhar com o Gutt”, diz você a Harry, referindo-se ao
ministro das Finanças belga que ficou à frente do Fundo.
Igualmente abatido, embora quase não demonstre, White te oferece um posto
ao lado dele. Nenhum dos dois sente mais nenhum entusiasmo pelas instituições
que conceberam com tantos esforços. Mas Lord Keynes também não esconde sua
amargura. De volta a Washington, você abre os jornais e lê suas declarações: “Fui a
Savannah para encontrar o mundo e a única coisa que encontrei foi um tirano”.
Quem iria dizer que no final, só no final, White e ele coincidiriam em seus pontos
de vista? Porque os dois concordam que esse tirano não é outro senão os Estados
Unidos.
Mais lânguido do que nunca e incapaz de se interessar por qualquer um dos
temas que costumavam apaixoná-lo — a história, a botânica, mesmo a linguística
—, Lord Keynes se refugia em sua mansão em Tilton e só empreende entediantes
viagens a Londres quando não há outro remédio. Em 20 de abril vai a Firle Beacon,
acompanhado por Lydia e por sua mãe, onde ambos passeiam pelos brumosos
atalhos vizinhos.
Durante sua última caminhada, o Maior Economista do Mundo recita um
poema de Thomas Parnell, um colega menor de Swift e Pope, que termina com
estas palavras: “E o significado de tudo isso é: não se preocupe, sempre restará a
justiça divina”. Na manhã seguinte — um domingo de Páscoa —, Lord Keynes
sofre um violento ataque de tosse do qual já não se recupera. Seu corpo é cremado
em Brighton em 24 de abril de 1946, e Lydia espalha as cinzas em sua adorada
campina de Tilton. Você dá a notícia a Harry e o vê chorar em silêncio. E, quando
seu chefe vai embora, você também chora.
RECITATIVO
Vikram Kureishy.
Essas semanas ficaram gravadas na minha mente como uma espécie de
arrebatamento erótico, e o fragor dos nossos corpos se transformou no melhor caldo
de cultura para o JV Capital Management. Leah tinha acertado ao afirmar que, ao
misturar nossos interesses sentimentais e econômicos, Vikram e eu estávamos
destinados a forjar uma união indestrutível. Mais além dos nossos enfoques
contrastantes, na cama e fora dela nos dirigíamos para o mesmo objetivo: colocar o
mundo aos nossos pés.
QUARTETO
O Alger Hiss de oitenta e sete anos que nos recebeu em sua casa nos subúrbios
de Boston não era o sóbrio e atlético Alger Hiss que tinha sido levado a julgamento,
nem o sóbrio e esbelto Alger Hiss da ficha policial, nem sequer o Alger Hiss
fotografado em dezenas de reportagens depois de sua libertação; mas, ao contrário
do que costuma acontecer com outros velhos, os anos não tinham erodido seu perfil
seco e apolíneo, e sim tinham acabado por poli-lo, permitindo que a acuidade das
maçãs do rosto e a contundência da testa, a profundidade das órbitas e a
proeminência do queixo — a fortaleza dos ossos — o transformassem em um Alger
Hiss prototípico, a essência ou o broto de todos os Alger Hiss que passaram ao
longo de quase um século de vidas tumultuosas.
No final de 1953, Hiss e seus advogados solicitaram um novo julgamento,
alegando que a Woodstock havia sido falsificada. Para provar tão estrambótica
teoria, seus advogados contrataram um construtor especialista que tinha conseguido
montar um modelo idêntico a partir de peças de segunda mão. Como não era fácil
argumentar que o obeso Chambers, com seus dedos gorduchos, tivesse sido capaz de
montar uma simples caneta, que dirá uma máquina de escrever, a defesa apontava o
próprio Comitê de Atividades Antiamericanas, ou mais provavelmente o FBI, como
responsável pela montagem. O caso deixava de ser o grotesco confronto entre dois
espiões e se transformava em uma gigantesca conspiração. Depois de deixar a prisão
em 1954, Hiss reiterou inúmeras vezes esta tese, que deixou plasmada em seu livro
In the Court of Public Opinion [Na corte da opinião pública].
Depois de alguns anos árduos e extenuantes, nos quais se viu obrigado a
trabalhar como vendedor em uma mercearia — e durante os quais acabou se
separando amargamente de Priscilla —, Alger recuperou sua licença de advogado
em 1975 e acabou gozando de uma vida mais ou menos plácida ao lado da segunda
mulher. Embora muitos de seus amigos tenham lhe virado a cara, nunca deixou de
receber demonstrações de simpatia por parte de centenas de ativistas liberais que o
consideravam a vítima emblemática da perseguição aos comunistas orquestrada por
Hoover e McCarthy.
Em 1975, Hiss e outros investigadores exigiram, apoiados na Lei de Liberdade
de Informação, que os “papéis da abóbora” fossem colocados à disposição do
público. Em julho daquele ano, o Departamento de Justiça aceitou revelá-los.
Constatou-se então que o primeiro rolo estava velado, que o segundo estava
praticamente ilegível (e continha apenas um relatório da Marinha sobre salva-vidas e
extintores) e o terceiro conservava os originais dos documentos apresentados contra
Hiss durante o seu julgamento.
Depois de quase quatro décadas de sua saída da prisão, a polêmica em torno do
caso não se esgotou. Leah tinha passado muitas horas examinando os depoimentos a
favor e contra ele, biografias oficiais e não autorizadas, estudos psicológicos (como o
estrambótico Friendship & Fratricide do dr. Meyer A. Zeligs), elogios hagiográficos e
desqualificações implacáveis.
O próprio Hiss não se manteve à margem da polêmica e desde meados dos
anos 1970 articulou uma campanha para se reabilitar. Parte essencial desse esforço
foi a publicação de Alger Hiss: the true story [Alger Hiss: a verdadeira história], do
jornalista John Chabot Smith, e sobretudo de Laughing last [Rindo por último], o
testemunho escrito por seu filho Tony como uma orgulhosa defesa do pai (sem
outra prova, segundo Leah, além de seu carinho filial). Em contraste, no mesmo
ano, um antigo partidário de sua causa, Allen Weinstein, publicou o livro Perjury
[Perjúrio], no qual, depois de anos mergulhando nos arquivos, desprezava suas
simpatias originais e o declarava culpado de espionagem.
Em 1978 Hiss e seus advogados apresentaram diante da Corte do Distrito Sul
de Nova York uma petição coram nobis, solicitando a anulação da sentença por
irregularidades no processo. Quatro anos depois, o juiz Richard Owens recusou a
coram nobis e declarou que o julgamento de 1950 tinha sido “justo de qualquer
ponto de vista”.
Em 1988 Alger publicou suas memórias Recollections of a life [Lembranças de
uma vida], em um último esforço para reafirmar sua versão dos fatos. Depois a
disputa começou a se apagar, embora para Alger e Tony Hiss — que o
acompanhava muito presunçoso e incisivo nessa tarde —, a luta estava longe de ter
terminado.
— Sr. Hiss, o senhor se sente reabilitado? — perguntou Leah, dando um gole
no chá que tinham nos servido.
A ampla sala, de impecável estilo vitoriano, parecia o lugar menos propício para
entrevistar um suposto espião soviético.
— É óbvio que não — a voz do ancião ainda soava contundente. — O juiz
nunca parou para avaliar nossos argumentos.
— Refere-se à petição coram nobis? — intervim.
— E a todas as provas que apresentamos — agora era Tony, igualmente brioso.
— O julgamento contra o meu pai foi um julgamento político.
— A máquina de escrever era falsa — interveio Alger.
Pai e filho pareciam acostumados a responder em conjunto e recitaram uma a
uma as irregularidades que tinham detectado no processo: uma lista de vinte ou 25
pontos que iam da falsidade das declarações de Chambers (seu cavalo de batalha) à
pressão sofrida pelo juiz nas mãos de Nixon, outros membros do Comitê e uma
dezena de políticos republicanos. Das três horas e meia que passamos com eles, mais
de dois terços se esgotaram ouvindo Tony, que se gabava de conhecer de cor o
expediente do pai. Nada do que disse chegou a me convencer: era louvável que
aquele rapaz abandonado tenha querido se transformar no principal aliado do pai,
mas sua indignação não o tornava uma fonte válida. Além disso, nós não tínhamos
ido visitá-los para nos unir à sua causa, mas para elucidar os vínculos que teriam
unido Alger com White e com o meu pai.
Um céu cinzento, de tempestade, caía através das vidraças quando Tony
finalmente nos permitiu redirecionar a conversa.
— Chambers garantiu que em 1938 os senhores viajaram juntos para visitar
Harry Dexter White em Peterborough — disse Leah —, e até se lembrou de que
pararam no caminho para ver uma peça de teatro.
— Você se dá conta do absurdo da cena? — interveio Tony, sem deixar seu pai
falar. — Dois espiões que, antes de revelar informação confidencial, se distraem em
um teatrinho de província…
— E o memorando de White que apareceu nas mãos de Chambers?
— Alguém deve tê-lo roubado. Da mesma forma que roubaram os documentos
do meu pai.
— Perguntarei de forma mais direta, sr. Hiss — Leah se dirigiu a Alger. —
Harry White era comunista?
— É óbvio que não — outra vez Tony.
— Companheiro de rota?
— Não.
— Quando Chambers declarou que White era um contato dedicado, e que
inclusive nos seus tempos livres tinha desenhado um plano monetário para os
soviéticos, estava mentindo?
— É óbvio que estava mentindo, como sempre.
— Ninguém no seu círculo era comunista? — encarei Alger.
— Julian Wadleigh — de novo Tony. — Talvez alguns outros, mas isso não é
da nossa conta.
— Os colaboradores de White no Tesouro?
Como se despertasse de uma letargia, Alger colocou a mão na perna do filho,
pedindo um pouco de silêncio.
— Chambers deve ter contado com gente de sua confiança no Tesouro —
exclamou Alger com franqueza. — Um ou dois contatos pelo menos. Algum deles
deve ter sido o responsável por subtrair os papéis da mesa de White.
— Algum nome lhe vem à cabeça?
— Não.
— Frank Coe? — propus.
— Talvez.
— Harold Glasser?
— Possivelmente.
— Lud Ullmann?
Hiss fez uma pausa dramática.
— Sim. Ullmann.
Demorei uma eternidade para dizer o último nome.
— Noah Volpi?
O velho Alger não hesitou.
— Volpi. Sim.
* Depois de alguns meses de penúrias (as falsas penúrias dos ricos segundo Leah), J.M. iniciou uma nova
aventura, o JWM Partners, em companhia de seus fiéis Haghani e Hilibrand, e anunciou que prosseguiria com a
mesma estratégia do Long-Term, só que de forma mais rigorosa. Durante a crise de 2008 se viu obrigado a fechar
o JWM Partners depois de acumular 44 % de perdas.
Cena X. Sobre como investir em bens imóveis sendo comunista
e naufragar sem salva-vidas
ÁRIA DE NOAH
Quando finalmente peguei sua mão, Susan me segurou com uma força
inverossímil em uma mulher do seu tamanho, como se quisesse me mostrar que
mais uma vez era dona de si mesma. Depois que Terry ganhou a última apelação,
minha filha voltou a perder o apetite, vomitava a cada meia hora e finalmente se
perdeu em uma bruma mental que a impedia de reconhecer onde estava. Insone
crônica, passava as noites em claro em fóruns sobre constelações familiares e filhos
abandonados ou perdidos, enquanto de dia era incapaz de manter uma conversa
lógica, mas foi só quando vi seu diário, onde pintava delicadas cenas de tortura, que
decidi interná-la em uma clínica em Massachusetts apesar da oposição de sua mãe.
Quatro meses e meio depois daquele horrível dia, os médicos acabavam de lhe dar
alta.
Da última vez parecia um cadáver, com os bracinhos esqueléticos e as clavículas
marcando na roupa, de modo que me surpreendeu constatar que havia ganhado um
peso mais ou menos razoável. Vestia jeans justos e uma blusa roxa e, se não fosse
pelas olheiras, pareceria tão bonita quanto antes. Inclusive havia certa frieza no
verde dos seus olhos que lhe conferia um encanto novo, mais distante, mas também
menos efêmero.
Assinei os papéis da alta enquanto ela recolhia suas coisas e fomos para Nova
York. Ficaria com Leah e comigo por alguns dias, pelo menos até que encontrasse
um lugar em Chelsea ou em Tribeca. No caminho se mostrou mais loquaz do que
nunca — efeito dos antidepressivos? — e me detalhou as reuniões que tinha
previstas para as próximas semanas. Sua energia e seu otimismo me surpreenderam,
e temi que se tratasse de uma onda passageira que não demoraria a dar lugar ao seu
reverso, os poços de melancolia que a invadiam desde criança. Não foi assim, pelo
menos naquele momento. Menos de duas semanas depois de voltar à cidade,
expressou sua intenção de entrar para o Fundo que eu começava a colocar em
andamento ao lado de Vikram e de Isaac.
A princípio senti certo ceticismo, mas Susan precisava ocupar a maior parte do
seu tempo em assuntos que a fizessem esquecer um pouco a drástica rejeição das
filhas. Segundo a sentença, tinha permissão para visitá-las a cada duas semanas, mas
sob a supervisão de uma assistente social. Embora a humilhação devesse lhe parecer
intolerável, acabou por ceder a essa rotina que Audrey e Sarah detestavam. Em geral,
as visitava nos domingos à tarde, conversavam um pouco ou, melhor, Susan falava
sem parar diante das gêmeas, que se contentavam em olhá-la de soslaio, como se
fosse uma incômoda vendedora de seguros. Ela lhes dava de presente brincos ou
colares (que as garotas nunca usavam), e as três terminavam abobalhadas diante do
American Idol até que Terry voltava para casa e Susan tinha que ir embora como se
fosse uma empregada.
Minha filha sempre foi dona de uma estranha habilidade para maquiar suas
emoções e não demorou a construir uma nova imagem, limpa e serena, como se em
vez de permanecer em uma clínica psiquiátrica tivesse gozado de férias na Suíça.
Pouco a pouco se tornou mais extrovertida, mais confiante nas suas relações
públicas, e voltou a conferir um cuidado extremo à sua aparência. Passava horas em
spas e salões de beleza, decidida a exibir penteados e unhas impecáveis, e não havia
tarde que não saísse para comprar novos cremes antirrugas e tônicos faciais. Sempre
a par da moda, não só adquiriu centenas de conjuntos diferentes como também
começou a se relacionar com os estilistas mais conspícuos da Grande Maçã Podre
até ganhar um lugar destacado nas suas escandalosas revistas de fofocas. Era como
se, para sobreviver à dor, ao abandono e à vergonha, Susan tivesse inventado outra
Susan, uma Susan que aos olhos de outros não conhecia o sofrimento.
Eu não sabia o que me era mais doloroso, se vê-la assim, muito elegante e
ausente, tão bonita e espectral quanto uma pintura ou um holograma, ou devastada
como antes de se encher de comprimidos. De um modo ou de outro, prometi me
vingar, o que Terry Wallace tinha feito à minha filha não podia ficar impune.
“Prometo a você que vou destruí-lo”, disse a Susan uma tarde. Bela e impassível
como uma Vênus grega, ela se limitou a me mostrar seu último Stella McCartney e
me apresentou um de seus namorados.
Isaac, finalmente, tinha encontrado o emprego dos seus sonhos. Contra minhas
previsões, nos meses prévios à abertura do nosso fundo meu filho cumpriu as tarefas
que lhe encarreguei com rapidez e eficácia. Realizou cada trâmite com os
reguladores, o estado e a prefeitura, encontrou os escritórios que deveriam servir
como nosso quartel operativo (um nono andar na rua 54 Oeste com a Sexta),
acertou os termos das contratações trabalhistas, escolheu as secretárias, os
contadores, os advogados e boa parte dos brokers, visitou dezenas de possíveis sócios
e, enfim, colocou em andamento a maquinaria do JV Capital Management em um
prazo recorde. Pela primeira vez se travou entre nós uma relação que, se não se
aproximava da camaradagem ou do respeito profissional, pelo menos não estava
amortecida pelo rancor e pelas segundas intenções. Impossível dizer que não o
achasse relapso — sempre tinha medo de que alguma coisa saísse mal —, mas sua
rebeldia diminuíra ou ele tinha descoberto formas menos daninhas (porém mais
caras) de expressá-la.
Quando me dei conta de que os carros antigos tinham se transformado em sua
nova paixão — eu nunca tinha prestado atenção a estas bobagens —, Isaac já
possuía mais de trinta modelos antigos que armazenava em um terreno que tinha
comprado para esse fim perto de sua casa de campo em New Hampshire. Tinha que
engolir quase diariamente suas letárgicas descrições de fords, lincolns ou packards
dos anos 1930 ou 1940, e uma vez Leah e eu até visitamos sua coleção, diante da
qual tivemos que fingir um desmedido interesse. Naquela tarde Tweedledee e
Tweedledum se mostraram menos ariscos, e Kate renunciou aos sarcasmos que
costumava lançar a Leah. Por uma vez parecíamos (digo isso com uma ponta de
ironia) uma verdadeira família americana.
O encanto, obviamente, não demorou a se romper. Quando informei a Isaac
que Vikram não apenas se transformaria em sócio da firma, com o mesmo número
de ações que ele e a irmã, como ficaria encarregado da engenharia financeira (e,
portanto, meu filho ficaria sob sua supervisão direta), a efêmera cordialidade
paterno-filial veio abaixo, e imediatamente voltou a me jogar na cara os vexames que
eu lhe tinha imposto no passado, aos que agora somava este, o mais humilhante de
todos. Nunca confiaria nele, nunca o acharia suficientemente bom, por isso preferia
um estranho — pior ainda: um maldito estrangeiro — ao meu próprio filho… A
ladainha de sempre. Se fosse tão digno quanto se gabava de ser, nesse instante teria
renunciado à sua posição no JV Capital Management, mas obviamente não o fez.
Segundo ele, eu o odiava porque era a única pessoa a quem nunca poderia comprar,
diferente dos fantoches de quem costumava me cercar — só evitou o mau gosto de
mencionar os nomes de Vikram e Leah —, mas tampouco podia se dar ao luxo de
abandonar o primeiro emprego que o fazia se sentir útil e bem recompensado.
Apesar desses conflitos, em 18 de novembro de 1999 o JV Capital Management
viu a luz com 35 funcionários, uma modesta sala de reuniões e uma ampla sala de
operações. Vikram assumiu a parte técnica e, a contragosto, Isaac se responsabilizou
pela administração, enquanto me correspondeu montar o discurso da empresa,
cortejar os peixes gordos, contratar vários quants recém-fugidos do Long-Term e
reunir o capital inicial de 150 milhões de dólares. Quando finalmente nos mudamos
— meu escritório, com uma decoração minimalista em branco e preto, se abria para
o Hudson e a abulia de Nova Jersey —, entendi que finalmente tinha chegado ao
lugar que ansiara desde criança. Por isso quero esclarecer, de uma vez por todas, que
Vikram e eu forjamos um brioso e atraente fundo de investimentos e que nunca nos
passou pela cabeça planejar um vigamento financeiro propício à fraude e à falcatrua,
como meus adversários quiseram demonstrar nos processos abertos contra nós.
Desconfiados leitores, não se enganem: quando Vikram e eu fundamos o JV
Capital Management, nenhum dos dois era um estelionatário nem aspirava a sê-lo,
simplesmente queríamos aproveitar nossa experiência no J.P. Morgan e no Long-
Term para montar uma empresa capaz de abrir caminho em meio à feroz
concorrência que agitava Wall Street nessa época. Tampouco é verdade que a
chegada de uma plêiade de grandes investidores — as famílias Lowenstein, Castro,
Hammond ou Dumontet — se devesse às bonificações que eu teria prometido
mediante ardilosos truques. O JVCM era tão limpo quanto qualquer outro fundo de
hedge da época (traduzo: nos limites da legalidade, sem nunca ultrapassar a linha
vermelha). Se em menos de dois anos nossa lista de clientes quintuplicou, foi graças
a uma gestão exemplar das nossas pastas e à eficácia de uma estratégia à la LTCM —
porém muito mais confiável — colocada em movimento por Vikram e pelos quants
que contratamos depois da derrota de J.M.
Não nego que o repentino sucesso da nossa empresa também possa ser
explicado por uns desses golpes de sorte sem os quais um financista nunca
despontará nos mercados: o investimento em uma pequena startup de Silicon
Valley. Imagino que vocês terão ouvido falar dela: Google. Com os lucros obtidos
com esta operação ampliamos nossos escritórios até o oitavo andar, o agora famoso
ou infame oitavo andar, para onde Vikram e eu transferimos nossos escritórios e
onde forjamos nosso sancta-sanctorum, nossa sala de comando e nosso bunker.
Graças à visão do meu amigo indiano, contornamos a queda das pontocom no final
de 2000, e nosso capital de base aumentou em torno de 32%. Alguns meses depois
tínhamos ampliado nossa lista para 88 funcionários e fazíamos cerca de 200 mil
operações por mês para outras empresas representativas de Wall Street, como J.P.
Morgan, Merrill Lynch e especialmente Lehman Brothers. Como se não bastasse,
minha fortuna pessoal — não me inquieta revelá-la — havia subido para 800
milhões de dólares, 800 milhões conseguidos da maneira mais limpa e transparente
que se pode conseguir no nosso meio.
Mas o melhor desses anos não foi tanto o prestígio crescente da empresa ou o
aumento do meu patrimônio, mas a possibilidade de utilizar esses lucros nas causas
que de fato me importavam, em especial a música e a ópera. Quando minhas
doações subiram na mesma porcentagem que meus rendimentos, fui convidado a
me sentar nas reuniões diretivas do Met, da Juilliard e da Filarmônica de Nova
York. Mas minhas ambições de mecenas eram tão globais quanto as da minha
companhia e não me conformei com o âmbito glorioso mas de qualquer forma
provinciano da Costa Leste, e logo meus recursos regaram também as Óperas de
Washington, Houston, Chicago e Los Angeles, e mais tarde o Covent Garden, o
Kirov (que tinha recuperado seu antigo nome de Mariinsky), a Ópera Estatal de
Viena e o Festival de Salzburgo.
Assim, enquanto Vikram e Isaac administravam o JVCM, e Susan financiava sua
primeira coleção de lingerie, Leah e eu viajávamos de um lado para o outro do
planeta para assistir a uma média de setenta concertos e apresentações de ópera por
ano, adornados com jantares de gala, coquetéis e festas nas quais ao final tratávamos
de igual para igual aqueles que tinham sido meus ídolos e agora eram (era o que eu
achava) meus camaradas. Pavarotti, Domingo, Studer, Fleming, Ricciarelli, Levine,
Gergiev, Osawa, Muti… e uma infinidade de jovens cantores e diretores de
orquestra que eu apoiava com bolsas e estímulos desinteressados, pelo menos até que
uma noite, justamente no Met, me dei conta do meu erro.
Embora eu tivesse pagado integralmente a nova produção de Il Trovatore, ao
folhear o programa constatei que o meu nome aparecia na última página e em letra
minúscula: O Met agradece a generosa doação de J. Volpi para esta produção. Apenas
isso, enquanto que fotos gigantescas dos cantores, do diretor e do maestro
adornavam as primeiras páginas do folheto. Na sessão seguinte da junta diretiva do
Met, joguei na cara dos meus colegas a injustiça dessa política, eu tinha investido
1,5 milhão de dólares no seu Trovatore, me parecia natural que meu nome figurasse
no início do programa e inclusive sugeri que minha fotografia, com um breve
currículo, aparecesse junto às dos artistas.
Quando o miserável Joe Volpe me disse que uma solicitação desse tipo era
inédita, ameacei cancelar minhas doações e lembrei-o de que tinha prometido 12
milhões só para essa temporada. Finalmente encontraram uma solução que satisfez a
todos, nada de foto nem currículo, mas meu nome, em letras maiúsculas,
encabeçaria os programas das produções financiadas por mim com uma tipologia
legível. E, o mais importante, se me comprometesse a manter minhas doações no
mesmo nível ao longo de cinco temporadas sucessivas, o Grand Tier Restaurant
seria rebatizado como J. Volpi Grand Tier Restaurant. De todas as vitórias que
obtive nessa época nenhuma me entusiasmou tanto quanto esse grand finale.
Pouco depois comemorei meu aniversário com uma festa a que compareceram
mais de quatrocentos convidados em um labiríntico balneário nas Bahamas. O ano
se iniciava com as melhores perspectivas, todos os meus “entes queridos”, Vikram,
Leah, Susan, e inclusive Isaac, Kate e suas bolinhas, estavam ao meu lado, Plácido
concordou em cantar algumas das minhas árias favoritas — seu “Lamento de
Federico” me fez soluçar como um bebê — e de repente parecia me dirigir para uma
etapa livre de inquietações que me deixaria tempo suficiente para conseguir a única
coisa que então me fazia falta, a verdade última sobre o meu pai.
FINAL II
Ullmann não se parecia com Glasser e muito menos com Hiss, e não só porque
conservasse uma tez aveludada, sem rugas, e uns olhinhos faiscantes, ou porque
exibisse um impecável paletó, uma gravata Hermès com estampas — lhamas ou
girafas — e uns óculos foscos que lhe conferiam a aparência de um professor
aposentado de línguas mortas, mas sim porque a firmeza de sua postura e sua
linguagem bem articulada o desenhavam como um homem que, diferentemente de
seus antigos camaradas, tinha sabido se ressarcir e gozar de uma vida produtiva,
venerado por uma comunidade que ignorava seu passado. Lud Ullmann — nunca
usou seu nome alemão — nos recebeu em sua mansão de Beach Haven, em Nova
Jersey, uma extensa propriedade rodeada de bosques incandescentes sob os
vermelhos e alaranjados do outono.
Como meu pai, Ullmann também tinha sido assistente de Harry White em
Bretton Woods e, depois de ser acusado por Elizabeth Bentley, preferiu se retirar do
serviço público. Mudou de ramo para os bens imóveis, onde ao lado de Silvermaster
montou uma empresa que lhe permitiu juntar um patrimônio nada desprezível de 8
milhões de dólares. Durante seu depoimento diante do tribunal em Nova York
recorreu à quinta emenda e nunca foi perseguido nem incomodado por seus
supostos delitos de espionagem. Seu papel crucial no círculo clandestino de
Washington como responsável por fotografar e transmitir centenas de documentos
confidenciais a Boris Bikov não o impediu de se transformar em uma figura
importante na sua comunidade, nitidamente conservadora, ou entre seus vizinhos,
que certamente não podiam imaginar que no passado tivesse sido espião ou que
participasse de um triângulo com a mulher do seu sócio.
Ao contemplá-lo sentado em sua poltrona de couro, coberto pelas fotografias
dos filhos e netos — belos e insossos loirinhos a cavalo ou posando em lugares como
Monte Albán, Angkor Wat ou Machu Picchu —, me perguntei sobre a sorte
desigual dos iguais e lamentei o contraste quase obsceno entre a agradável vida deste
homem e o absurdo final do meu pai. O que você fez, Noah, para terminar daquele
jeito? Por que não soube encontrar uma saída decorosa, uma nova identidade, um
novo ofício? Por que teve que se jogar — literalmente — na desesperança e na
ignomínia?
Leah agradeceu a Ullmann por nos receber enquanto um dos seus empregados
nos servia taças de vinho branco. Eu gostaria de me alongar descrevendo a conversa
sobre o clima e sua afeição aos puros-sangues, suas lembranças sobre as conferências
de Bretton Woods ou de Savannah e o nascimento do novo sistema financeiro, mas
isso só prolongaria um suspense desnecessário.
O velho reconheceu sem rodeios sua passagem pelo aparelho clandestino
soviético. Sim, ele se encarregava de fotografar os documentos para entregá-los a
Carl, aquele gordo repugnante; sim, fez isso de maneira sistemática; sim, é óbvio
que estava a par de que a informação acabaria nas mãos dos russos. E não, não se
arrependia. Nos anos 1950 e 1960, época sinistra, Ullmann tinha procurado
esconder aqueles dias de paixão e sacrifício, de fé revolucionária e de confiança no
futuro, mas agora se orgulhava de sua antiga militância. Julgada hoje, sua conduta
seria qualificada como um ato de traição e mereceria não só uma demissão
infamante como também a prisão, mas naquela época os Estados Unidos eram
aliados da União Soviética. Não se arrependia, insistiu, porque nunca duvidou de
que estivesse fazendo o correto.
— Harry White também era espião? — perguntou-lhe Leah.
— Digamos que simpatizava com a União Soviética e detestava os britânicos.
Senti que me faltava o ar e desmaiaria naquela sala forrada de pinturas e
quinquilharias, artesanatos e suvenires de países miseráveis e remotos.
— Alguém mais da equipe de White trabalhava com você? — minha voz soou
desfalecente.
— Não sou delator — me olhou com severidade. — Não me importa
reconhecer meu passado, mas não penso trair meus velhos companheiros.
— Harold Glasser também nos confessou sua participação no aparelho
clandestino — esperava que esse dado destravasse sua língua.
— O coitado morreu recentemente, certo?
Ullmann guardou silêncio, meditativo ou comovido, e deu um longo gole no
seu chardonnay. Era muito difícil para mim imaginá-lo quando jovem, quando fazia
parte do vergonhoso trio com Nathan e Helen Silvermaster.
— Sou filho de Noah Volpi — revelei-lhe de repente.
— Volpi — repetiu sem ênfase.
— Morreu em 1953, você deve ter sabido da notícia, pouco antes que eu
nascesse.
— Sei. — Ullmann fechou os olhos. — Lamento.
O ancião empalideceu, ou assim me pareceu — eu devia estar ainda mais lívido
—, e ajeitou os ralos cabelos que deslizavam pela testa. Em seu rosto se desenhou
um espasmo desolado.
— Noah e eu sempre estivemos juntos.
— Como?
— Nós dois pertencíamos à mesma célula dos anos 1930 — reiterou com certa
melancolia.
— Meu pai era comunista?
Ullmann me deu um tapinha no ombro com doçura.
— Mais comunista que Lênin e que Stálin, meu amigo.
Terceiro ato
L’inganno felice
Cena I. Sobre como salvar o mundo com esparadrapo e como
comercializar com vento
ÁRIA DE NOAH
Dois ases e dois reis, e mesmo assim você perde. Dois pares, droga! Levanta-se
da cadeira, incrédulo e raivoso, tropeçando nos tornozelos e cotovelos de seus
companheiros de farra, ouve-os debochar de sua má sorte, rir em surdina de sua
pinta desarrumada e de sua expressão de desamparo. “Indo embora tão cedo?”, lhe
pergunta um, maldoso, consciente de que você dilapidou o que restava para chegar
ao final do mês. Vira-se para ele mostrando as presas como se fosse um mandril ou
um babuíno, e sente que é isso, ou coisa pior, um réptil, um escaravelho, um inseto
que se arrasta em meio à escória até cruzar a porta e parar ao pé da escada. Toda vez
que você acorda entre náuseas e enxaquecas promete para si mesmo não voltar a este
buraco que, noite sim, outra também, abandona duplamente vencido por não ser
capaz de conter suas falsas esperanças — sua obsessão por ganhar pelo menos uma
partida — e por se abarrotar com este álcool de milho que lhe arromba a garganta.
Deixa-se cair no patamar, soluçando como uma criança. “Patético”, murmura.
Desde a morte de seus pais você não tem sabido fugir do tédio que o impulsiona a
evitar as aulas e se lança a esta estúpida meta, dar as costas para a sorte e vencer,
mais que esses miseráveis, uma fatalidade que vê como inimiga. Quando deu para
acreditar que ganhar no pôquer demonstraria seu valor? Percebe que desafiar a sorte
é uma mania própria de padres e tiranos? Uma impertinente neblina turva o
resplendor das luzes; não devem ser nem sete da noite, mas você foge pelas ruelas do
Harlem como se fosse de madrugada e se escora em uma esquina. Encurva a cabeça
e ata as mãos sobre o ventre, de sua boca escorre um jorro de carne fermentada.
Encolhido nesta esquina ouve os gritos, os insultos, o ranger de ossos e
articulações a alguns passos de distância: do outro lado da calçada três rufiões
demolem a patadas um garoto que não deve ter mais de treze anos. Se neste dia já
perdeu uma partida, por que se envolver em outra briga que reconhece impossível?
Ou, se sua ânsia de justiça é irrefreável, por que não sai correndo para chamar a
polícia? Talvez porque não lhe importe este infeliz, vítima de uma briga de rua
como tantas, não procura salvá-lo, mas a si mesmo. Joga-se em cima dos malfeitores
com a imprudência dos seus trinta anos e distribui tapas a torto e a direito sem
perceber que suas ameaças se perdem no ar. Seus inimigos deixaram o garoto escapar
— restará este consolo — e agora se enfurecem com o seu corpo. Batem em você até
lhe partir o maxilar, costuram seus olhos a socos e lhe quebram dentes e costelas.
Você afunda na lama, sanguinolento e apavorado, meio morto, como o réptil ou a
barata que imaginava ser e agora é.
A voz retumba em seus ouvidos como uma surda badalada; ao entreabrir os
olhos — duas frestas em meio aos hematomas — distingue uma silhueta e um braço
que o ajuda a se levantar. “Vamos”, sussurra. Apoia-se em sua cintura e, na agonia
da noite, manca ao seu lado. A sombra o ajuda a entrar em seu edifício e a subir os
três andares até seu pobre apartamento. Acompanha você ao banheiro, molha uma
toalha e estanca suas feridas, limpa os raspões e o coloca em uma desmantelada
poltrona sob uma janela minúscula. “Está melhor?” De seus lábios inchados sai uma
fervura de sangue coagulado. “Como é o seu nome?”, você lhe pergunta antes de
desmaiar. “Ángel.”
Pela manhã o desperta com um copo de leite e um pedaço de pão com
manteiga enquanto elogia seu heroísmo, seu arrojo em ajudar o rapaz arriscando a
própria pele. Você gostaria de responder que foi um mal-entendido, que sua decisão
nada teve de louvável, que não pensou em salvá-lo ou, se pensou, foi em um
impulso etílico, um sintoma de desespero ou de loucura. Ángel o bombardeia com
perguntas, quem você é, de onde vem, o que faz, com o que sonha. Responde com
evasivas, mas a intensidade do seu olhar o impulsiona a ser sincero: conta sobre seus
estudos de economia, a morte dos seus pais, seu fraco pelo álcool e pelo jogo. Ainda
dolorido agradece e diz que precisa ir embora, sim, agora mesmo. Ángel o
acompanha até a rua, você balbucia que está melhor (mentira) e se despede para
sempre (outra mentira).
Passa duas semanas sem voltar ao seu apartamento. Ángel o acolhe com
carinho, como se fossem amigos desde crianças, e assim o chama, amigo, quando
propõe um passeio pelo bairro. Que passeio! Homens esfarrapados fazem fila por
tigelas de uma sopa pegajosa e fria, mulheres andrajosas remexem nas latas de lixo,
crianças esqueléticas brincam de pegar e se empurram sem perceber sua miséria.
Ángel fala sobre o crash e a injustiça, a pobreza e as culpas dos ricos; lhe preocupam
assuntos menos grandiloquentes, seu futuro, sua afeição ao álcool, ao jogo e às
mulheres. Embora sinta uma genuína simpatia por suas boas intenções, está
convencido de que o mundo é uma pocilga sem saída.
As caminhadas pelo Harlem e pelo Bronx viram rotina. Embora seja mais
jovem que você, Ángel exibe uma maturidade e uma moderação que você nem
remotamente alberga. Não pode garantir que voltará às suas aulas de Columbia ou
que suas visitas às mesas de jogo se espaçam devido à sua influência, mas a
embriaguez já não lhe aturde todos os fins de semana. Não esconde que seu exemplo
e sua virtude (nunca pensou usar esta palavra) moderam seus vícios e sua lassidão.
Suas conversas se prolongam até o amanhecer. Ángel lhe fala de Marx, Engels e
Lênin, nomes que você mal leu com profunda suspeita. Descreve-os como velhos
conhecidos com uma convicção tão profunda, tão firme, que quase o convence a lê-
los. Suas teorias já não soam como ladainhas sem sentido (a opinião dos seus
professores de Columbia), nem como a ameaça que anunciam no rádio. Ao término
de cada aula se dirige a uma pequena estante embutida ao lado de sua cama e tira
um panfleto ou um caderno que deposita em suas mãos, a tarefa que o professor
atribui ao discípulo: se Ángel o está doutrinando — você é consciente disto —, faz
isso com extrema sutileza e você acaba não desconfiando de sua fé e seus ideais.
Certa tarde, ao chegar à sua casa, uma desconhecida que nem sequer o
cumprimenta (olhos verdes, pele oleosa) lhe abre a porta. No minúsculo espaço sete
ou oito indivíduos discursam — seus sotaques se confundem —, fumam,
gesticulam. Ángel lhe avisou sobre esta reunião inoportuna em que você é o único
estranho; quando finalmente sai da cozinha, lhe indica um canto sem dar mais
explicações. Você ocupa seu lugar com os braços cruzados e uma expressão de
desgosto. Perseverando no seu silêncio, estuda o público, duas mulheres e cinco
homens veementes e agressivos, todos com o mesmo brilho nos olhos, como se
olhassem para o sol até se queimar, e aquela altivez que logo reconhecerá como um
traço de família. Quando concluem seus monólogos, aparece na sua mente a
legenda de um filme mudo: comunistas. Eles são isto: comunistas. E agora você
também é pelo simples fato de permanecer na companhia deles. Ser amigo —
camarada? — de Ángel o torna parte de sua espécie. Uma parte de você se irrita e
quer ir embora; a outra, a que vence, não se move. Uma das moças o arranca de suas
reflexões (morena, cara de rato, impertinente) e você responde nos mesmos termos:
surpreende-lhe falar a mesma língua deles, ser capaz de tecer frases com o mesmo
vocabulário heroico e agreste. De repente se ouve discursar sobre Lênin e os planos
quinquenais, a inflação na Alemanha, a revolução e a urgência de construir um
mundo novo. Ainda é você mesmo? Ou Ángel lhe inoculou um veneno tão potente
que você já é outro?
As reuniões de sua célula (o apelo biológico do termo o seduz) se repetem duas,
três vezes por semana em sótãos tão sórdidos quando o de Ángel, iluminados com
sua mesma febre, sua miséria e seu lirismo. Recém-chegado da Rússia, Earl Browder
comparece em uma dessas ocasiões; comprido e desajeitado, lhe passa a sensação de
uma árvore sem folhagem. Ángel lembra-lhe que ele é o novo secretário-geral depois
da demissão de Max Bedacht e já não fala de se infiltrar nos sindicatos, mas de
esmagar os trotskistas. O discurso dele se vê constantemente interrompido pelos
camaradas, que exigem nomes e sobrenomes. Ángel o defende e Browder agradece
com uma piscada. Ao terminar a sessão, explica-lhe que chegou a hora de superar a
teoria e lhe atribui uma lista de tarefas para as próximas semanas. Você passou na
prova, sua fidelidade é reconhecida, está pronto para lutar lá, no mundo. Excitado,
diz a Ángel que decidiu abandonar a universidade para se consagrar totalmente à
causa. “Precisamos de gente preparada”, ele o repreende, “gente capaz de chegar a
lugares importantes para servir à causa desde cima.” Para tranquilizá-lo, Ángel
promete um encontro com Browder para que ele explique a missão que o aguarda.
Até então você não recebeu sua ficha do Partido, nada prova que seja militante,
nenhum papel, nenhum documento o incrimina. Seu anonimato e seu doutorado
em Columbia são sua fortaleza, lhe diz Browder com um sotaque meloso, irritante.
A conversa, em um restaurante chinês, termina quando o secretário-geral sai
intempestivamente pela porta dos fundos. Durante semanas nada acontece. Você
exige notícias que Ángel não pode — ou não quer — lhe revelar. Nestes dias recebe
uma carta do Federal Reserve de Nova York: você passou nas provas do concurso
com as notas mais altas. O cargo, solicitado a contragosto, não o reconforta, mas
ainda assim assina a adesão e nesta noite se embebeda como antigamente.
Ángel lhe acorda para dizer que nesta mesma tarde você deverá ir a um
restaurante em Little Italy. Ali, J. Williams — se recusa a revelar seu nome de
batismo — o leva à mesa mais afastada e se dirige a você como se fosse uma estátua.
“Precisamos de você”, ordena, lacônico. “No Federal Reserve?” O russo confirma.
“Neste cargo de merda?” Williams confirma de novo. “Mas deverá romper todos os
seus laços com o Partido, fingir que nunca militou nas suas fileiras — em termos
estritos isto é verdade — e se afastar de seus antigos camaradas. A partir de agora
Ángel será o seu único contato, entendeu? A cada quinze dias você entregará um
relatório de atividades e toda a informação relevante que consiga obter do Reserve.”
Duvida que seu mísero cargo lhe dê acesso a algo relevante, mas não discute porque
já se sente parte do aparelho clandestino.
ARIOSO
Não vi o primeiro, como quase ninguém naquela manhã clara; Leah ainda
dormia, o rosto inchado entre os lençóis — a máscara nos olhos —, as bochechas
invariavelmente avermelhadas, o cheiro de creme de amêndoas a que finalmente
tinha me acostumado, a pele colorida com as pinceladas da tela, os raios catódicos
deformando suas feições, o volume no mínimo para não interromper seus pesadelos
— costumava gemer longas frases sem sentido —, já fazia mais de uma hora que eu
tinha acordado, não suporto ficar em posição horizontal, amassado e pensativo,
prefiro fugir para a cozinha, me encher de café, bagels e suco de cenoura para estudar
os mercados orientais ou examinar pela enésima vez os cadernos do meu pai, mas
não estava fazendo nada disso naquela manhã, a ressaca me queimava, só tinha
resistido ao jantar com uns clientes alemães graças aos bordeaux e aos uísques, e
mais do que ressaca padecia uma hipersensibilidade extrema, o ouvido e o olfato
exacerbados, o perfil dos móveis mais nítidos do que nunca, como num filme em
3D, não pretendo insinuar que esse mal-estar fosse um presságio ou uma intuição,
que previsse ou adivinhasse o infortúnio, bobagens, apenas aquela lucidez quase
dolorosa e aquela comichão na pele ao me barbear, ainda deslizam na minha
memória as minúsculas gotas de vapor no espelho, o bafo e o fragor da água na pia
enquanto na tela o projétil atravessava os vidros sob uma gelada claridade, não vi, é
óbvio que não vi, nem Leah, ela ainda vadiava entre os lençóis, a máscara a
transformava em uma toupeira ou uma minhoca, saí do banho, terminei de me
enxugar diante da tela, vendo sem ver e ouvindo sem ouvir o barulho do metal,
indiferente às reviravoltas da história, à história que se escrevia com aquela insólita
punção e à atroz inteligência que o tinha disparado, vi sem ver e ouvi sem ouvir,
insisto, confundindo com um comercial ou a propaganda de uma série, o trailer de
um destes filmes de catástrofes que tanto nos deslumbram, me vesti em silêncio —
Leah era uma pedra — e me propus chegar logo ao escritório, mil assuntos
aguardavam minha atenção, a trama já se iniciara, e eu, em compensação, bebia meu
café e mordiscava um bagel diante do computador à espera de um dia longo e
insignificante, outra jornada exaustiva no meu escritório, discutir com Isaac por
causa do maldito assunto dos tapetes, vigiar com Vikram a dívida que inchava sem
remédio, então tocou o telefone, repetidamente, teimosamente, era Vikram, justo
Vikram, agora não, lhe disse, discutamos isso mais tarde, quis desligar, mas ele me
interrompeu com um grito que soou como um relincho, um acidente, um terrível
acidente, consegui ouvir, sim, sim, Vikram, como você quiser, nos vemos mais
tarde, e interrompi a ligação, que odioso, pensei, a esta hora, e mergulhei no
computador até que de repente, em letras gigantescas, cintilou na tela a sinistra
manchete, corri para o quarto e sacudi Leah, arranquei-lhe a máscara e aumentei ao
máximo o volume da televisão, o que está acontecendo, murmurou ela, presa em seu
sonho ou pesadelo, olhe, eu disse, olhe, ela se ergueu e ficou paralisada, o rosto
inchado e os olhinhos remelentos, e nós dois vimos o segundo avião, não sei se em
tempo real ou em reprise instantânea, a claridade atroz daquele dia de setembro, sua
limpidez partida pela explosão e pelas línguas de fogo, as chamas que — soube, isso
sim soube — não demorariam a nos calcinar, as chamas e a raiva, dei-lhe um beijo
na testa e corri para o elevador, na rua o pânico ainda não tinha contagiado milhares
ou milhões, surpreendeu-me a placidez da Park Avenue, no táxi o rádio borbulhava
o horror, mas cheguei ao escritório sem demora, dei cinquenta dólares ao motorista
e subi correndo para o escritório como se escalasse um posto de vigilância, não eram
nem nove horas e não havia ninguém exceto dois analistas que se apressaram a
compartilhar a notícia comigo, nós três nos abraçamos diante da tela e
contemplamos a queda, abobalhados, meu celular tocava sem parar, Leah, Vikram,
Susan, Isaac, dezenas de ligações, não atendi nenhuma, o que fazer? Àquela queda se
seguiria outra e logo outra em um dominó infernal que acabaria por nos esmagar,
foi isso que pensei, só isso, nas quedas, e entendi que não restava muito tempo, logo
a cidade ficaria sitiada pela polícia e pelo Exército, as linhas telefônicas paralisadas, a
internet paralisada, Wall Street fecharia suas portas, teria que agir como os
bombeiros ou a polícia, com seu zelo e perícia, salvar o que pudesse ser salvo, até
ganhar um pouco, por que não? Vikram já tinha chegado ao edifício, nos trancamos
no oitavo andar, o maldito oitavo andar, e eu lhe disse o que tínhamos que fazer,
ligações inoportunas, uma atrás da outra, opções, futuros, apostas nos mercados
europeus e orientais, devíamos tirar partido daquele mínimo parêntese, dessa
oportunidade de ouro, do prelúdio da desordem, apostar aqui e ali, vender isto e
comprar aquilo, rápido, muito rápido, antes de ser alcançados pela febre e pelo ódio,
pelo desvario e pelas línguas de fogo, antes que alguém tivesse a ideia de nos
desalojar, usar aqueles últimos segundos como Neros diante de Roma, salvar o que
pudesse ser salvo, não vidas, capitais, é claro, eu imaginava o que viria, todos nós
intuíamos, dias e noites de luto e de preces — rancores enlutados —, e depois a
ânsia de justiça e o rufar de tambores, a volatilidade aumentaria em níveis
inverossímeis, era preciso esgotar aqueles últimos minutos, a antessala do caos,
espremê-la ao máximo, não sei quanto tempo ficamos ali, grudados no telefone e
nas redes (o suficiente para ganhar 7 milhões), até que fomos obrigados a ir embora,
Vikram e eu fomos consolar Leah e Susan e nos grudamos sem trégua à tela, às
imagens de mártires e de vítimas, aos apelos patrióticos — em surdina, os balbucios
do presidente —, inflados pelo doloroso júbilo de ter sobrevivido.
RECITATIVO
Como a vida, a música também é uma guerra, e a ópera talvez seja seu cenário
mais sangrento, nisso reside a paixão que desperta tanto entre os intérpretes quanto
entre os melômanos, para não falar nos responsáveis pelos teatros e festivais,
empresários, agentes e publicitários, e a isso se devem os ânimos inflamados ou as
amizades rompidas que deixa no caminho. Consciente de minhas virtudes e minhas
falhas, quando abandonei a música na minha juventude não renunciei à batalha,
como minha mãe imaginou, e sim decidi travá-la — ganhá-la — em outro terreno,
não no campo de batalha, onde se batem os soldados em pegajosos combates corpo
a corpo, mas em um posto de comando. Minha retirada foi estratégica, voltei à
carga assim que acumulei munições e equipamento, não para cair como um
mercenário na primeira fila do front, mas para triunfar como general dos meus
exércitos. Exatamente como me propus, aos cinquenta já era reconhecido como um
dos maiores mecenas do planeta.
Descobri muito cedo que, diferentemente de quem assiste a recitais ou
concertos, os fãs de ópera não vão ao teatro para usufruir da música, mas para apoiar
seu cantor ou esperar que o dos seus rivais fracasse, lance um gallo ou quebre um
agudo e receba uma vaia. A mesma coisa com as gravações: os operópatas não as
colecionam para descobrir uma nova obra ou apreciar a última versão de uma peça
conhecida, mas para ridicularizar x ou demonstrar a superioridade de y durante suas
reuniões de domingo. Basta lembrar alguns dos grandes duelos de outros tempos:
Callas x Tebaldi (a luta estelar); Di Stefano x Del Monaco; Del Monaco x Corelli;
Corelli x Bergonzi (embora este último, não muito agraciado, tivesse poucos
seguidores); e, mais tarde, Pavarotti x Domingo e, ainda mais tarde, Villazón x
Kaufmann e Kleinburg x Vela. Também Freni x Scotto entre as sopranos, Bastianini
x Gobbi, Merrill x McNeill ou Cappucilli x Bruson entre os barítonos ou Cossotto
x Barbieri e Padilla x Urroz entre as mezzi e Raimondi x Ghiaurov entre os baixos.
Uma escala de preferências que lembrava as corridas de cavalos: os puros-
sangues Gigli, Bjoerling, de los Ángeles, Kraus, Gedda, Vickers se destacavam frente
aos percherões Milnes, Christoff, Fischer-Dieskau, la Sutherland, nos quais, sem
rebaixar seus méritos, poucos apostavam. O talento não prevalecia? É claro que sim.
Contra aqueles que assumem que nossas preferências obedecem a impulsos
racionais, a ópera me permitiu constatar que as pulsões e manias são mais
importantes do que os argumentos: se a gente quer triunfar neste reino — tão
parecido com o das finanças — deve aproveitar a irracionalidade do inimigo.
Quem consegue acreditar que uma pessoa fica morrendo durante meia hora e
uiva até o último suspiro? Eu também, alguma vez, respondi a esta pergunta,
própria de simplórios e bobos, na hora certa: os próprios simplórios e bobos que
confiam nas benesses da democracia e do livre mercado. A ópera é um modelo em
escala, não menos esclarecedor por marginal, da nossa paixão pela insensatez. Tudo
nela é absurdo, não apenas as tramas intrincadas ou claramente inverossímeis (salvo
duas ou três exceções), não só as melodias mais ou menos fáceis (salvo cinco ou seis
obras-primas), salvo o mero fato de pagar quatrocentos dólares por um lugar ou 100
mil dólares pelo cachê do pequeno Pavarotti da vez. Não é uma bolsa onde se jogam
os milhões do pop ou do futebol profissional, mas os ganhos em espécie tampouco
são desprezíveis: o Pavarotti verdadeiro nunca ganhou tanto quanto Maradona, mas
para seus fãs era um ídolo igualmente sedutor, apesar de tudo e de seus noventa
quilos de peso.
Quando comecei a me interessar pela ópera, este espetáculo parecia em franca
decadência, os grandes figurões tinham se aposentado (ou deviam fazê-lo
urgentemente), enquanto os jovens ainda não chegavam a ofuscá-los; além disso, a
explosão da cultura de massas pintava a arte lírica como uma prática esclerosada apta
apenas para anciões. Não estou exagerando, bastava ir a uma apresentação do Met
ou do Covent Garden para constatar que a maior parte dos espectadores mancava
ou tinha problemas de próstata. Como se não bastasse, os panos de fundo pintados
à mão e os cenários de papel machê à la Zeffirelli pareciam velharias, e tenores e
sopranos, cada vez mais carregados de gordura, arrancavam risos de pena em suas
malhas medievais. A ópera tinha deixado de ser uma metáfora e era ridicularizada
como se aspirasse a ser uma cópia fiel da realidade: ninguém que se considerasse
moderno mostrava o menor interesse por esse andrajoso espetáculo cujo funeral se
antecipava logo adiante.
Quem teria podido vaticinar — e apostar dinheiro nisso — que a ópera, ou
pelo menos algo parecido com a ópera, não somente iria ressuscitar das cinzas, como
conquistar milhões e gerar lucros inimagináveis? Para reverter a má fama da arte
lírica era necessário submetê-la a uma cirurgia plástica total e aproveitar a ignorância
dos novos públicos. Os puristas me acusaram de transformar esse bem sagrado em
um circo, de corrompê-lo ao nível dos realities e das telenovelas, de sujá-lo com a
vulgaridade de Hollywood ou com o espírito da imprensa de celebridades e das
sitcoms dos canais a cabo. Invejosos! Da noite para o dia, operários e comerciantes,
donas de casa e professores primários que nunca tinham ouvido falar de árias e
duetos, aberturas e recitativos se lançaram a comprar discos e vídeos dos cantores de
ópera da moda, estes modelos esbeltos e elegantes, tão diferentes das baleias de
outras épocas e, principalmente, para admirá-los nas telas de televisão e de cinema.
Que não eram óperas completas, mas fragmentos? Por alguma coisa se começa. Que
os novos aficionados não eram capazes de apreciar um legato ou um portamento?
Reconheçamos: a maior parte dos verdadeiros melômanos também não. Que depois
de aclamar seus ídolos nas salas de suas casas dificilmente iriam a uma apresentação
no teatro? De qualquer maneira, não tinham como pagar por isso.
Os puristas deveriam agradecer: se não fosse por visionários como Tibor Rudas,
Avon Saroyan e eu, a ópera teria morrido de artrose, de letargia. Os grandes teatros
teriam resistido graças às subvenções públicas (cada vez mais raquíticas) e aqui e ali
os mesmos caquéticos teriam continuado sua peregrinação ao Bayreuth ou ao
Glyndeburne, mas teria sido só isso, especialmente depois da crise das grandes casas
fonográficas. Em vez dessa lenta agonia, os mastodônticos recitais patrocinados pela
nova fornada de promotores permitiram que hoje subsista uma indústria operística
que, se não é de todo próspera — durante anos foi a menos lucrativa das minhas
atividades —, pelo menos sobrevive sem números vermelhos. Bastou uma simples
ideia, um pequeno gatilho, para evitar a ruína. Não acham um lampejo de
genialidade ter juntado o futebol e a ópera? O mais inculto e o mais elevado em um
mesmo estádio? Levar os Três Tenores (como se não houvesse outros) à Copa do
Mundo da Itália mudou para sempre esse negócio. O agudo final de “Nessun
dorma”, condensado nos microfones de Domingo, Carreras e Pavarotti, aclamado
por milhões!
Depois disso só restou chegar às últimas consequências, exigir que os cantores
fossem jovens e esbeltos — que maravilha um Romeu que finalmente se parecesse
com Romeu e uma Carmen sem rugas! —, remexer em seus segredos e introduzi-los
na revista People, retransmitir as apresentações do Met e do Scala em cinemas
modestos, planejar encenações na Cidade Proibida, nas Pirâmides do Egito, em
estádios ou arenas de touros (sempre mal sonorizados) e tirar o controle do
espetáculo dos diretores de orquestra, essencialmente conservadores, para entregá-lo
aos mais irreverentes e agressivos régisseurs (preferivelmente alemães). Que vitória
inesperada! É óbvio que foram cometidos excessos, não era necessário despedir
Deborah Voigt por seu excesso de carnes nem transferir a ação de Così fan tutte para
um cibercafé ou a de Lohengrin para uma espaçonave, e sem dúvida ver uma ópera
no cinema se parece mais com ir ao cinema do que ir à ópera (como declarou meu
ex-amigo Mortier), e provavelmente a amplificação em estádios e sítios
arqueológicos estrague a acústica, mas se tratava de sobreviver a qualquer custo.
Salvar milhares de postos de trabalho para cantores, técnicos, cenógrafos, diretores,
agentes, empresários, figurinistas, apontadores e corifeus em uma recessão como a
nossa mereceria um prêmio (recebi vários). Se a música clássica é uma guerra sem
quartel, e a ópera sua linha de frente, me orgulha afirmar que me coroei com a
vitória. Só que, ao proclamar isso, sinto uma ponta de nostalgia. Como sinto falta,
no calor desta imunda ilha do Pacífico, de uma pobre e artesanal apresentação do
Rigoletto!
RECITATIVO
ROMANZA DE PONZI
Carlo concebe sua Grande Ideia em uma das ondas de azar que o açoitam
desde que desembarcou na América em 1905. Não faz nem uma semana que fechou
sua empresa de publicidade, confirmando os maus presságios de seu sogro, quando
recebe uma carta de uma companhia espanhola solicitando seu catálogo. Ele nunca
tinha visto um papelzinho como o que acompanha a carta. “Apenas olhe!”, pensa e
não demora a saber que, conforme os ditames da União Postal Universal, estes
cupons permitem que os cidadãos dos países-membros possam receber documentos
por reembolso. Só que os assinantes da União Postal Universal não previram que a
desvalorização gerada pela guerra de 1914 provocaria uma enorme disparidade entre
os preços dos selos americanos e os das nações europeias. Nem que alguém com a
malícia de Carlo poderia aproveitar a conjuntura para se tornar milionário.
Se levarmos em conta as diferenças nos tipos de câmbio, cada cupom de um
dólar adquirido na Espanha e resgatado em Boston lhe permitiria obter dez centavos
adicionais. E se empregasse liras italianas ou coroas austríacas, o benefício se elevaria
a 1000%. A galinha dos ovos de ouro! Para conseguir seu objetivo não lhe falta nada
exceto… dinheiro vivo. Pequeno inconveniente: Carlo está endividado até os
cabelos e seus credores não param de incomodá-lo. Nessas condições ninguém — e
muito menos seu sogro — lhe concederá um empréstimo.
— Você sabe que é impossível tirar leite de pedra — propõe a Joseph Daniels,
seu vizinho. — Me empreste outros duzentos e prometo lhe entregar esta quantia,
mais 50%, em noventa dias.
— E como diabos pensa conseguir essa quantia?
Carlo explica mais ou menos o projeto, a fim de vencer suas resistências, lê para
ele as regras do Guia Postal Oficial dos Estados Unidos que demonstram a
legalidade da manobra. Para sua surpresa, Daniels aceita. Seu primeiro cliente! Rose
comemora com ele, embora entenda que será outra das aventuras do marido que
acabará em fracasso. Em vez de recorrer aos agiotas habituais (estes filhos da mãe
que jamais confiarão no seu talento), Carlo convence uma dúzia de amigos e
conhecidos a lhe entregar pequenas quantias, ninguém lhe negará dez, vinte ou
mesmo cinquenta dólares se recompensá-los no prazo prometido. Depois de
solicitar as licenças da prefeitura, funda a Companhia de Intercâmbios de Bônus e
coloca centenas de cupons entre seus compadres, que os distribuem entre seus
respectivos amigos. Transcorrido o prazo combinado, Carlo paga em tempo todos
eles. Sobressaltados, seus novos clientes reaplicam o dinheiro e muito em breve uma
multidão se junta na frente de seus escritórios na School Street. Nessa altura sua
ideia inicial se desvaneceu, impossível saber se procurou comprar os cupons na
Europa para depois trocá-los nos Estados Unidos; o processo é tão complicado que
prefere pagar as dívidas com as notas que abarrotam sua caixa-forte. Uma operação
de roubar Pedro para pagar Paulo, como reza o velho provérbio inglês, com mais
um ingrediente: convencer cada cliente a somar novos incautos.
Apenas algumas semanas depois de iniciada a aventura — estamos em março
de 1919 —, Carlo já conta com 110 investidores e um capital que ronda os 25 mil
dólares. Antecipando qualquer complicação legal, utiliza parte de seus lucros para
sustentar a Associação de Apoio à Polícia de Boston, o primeiro dos múltiplos
serviços filantrópicos que o transformarão em uma das celebridades da cidade. Nada
detém a avalanche, e Carlo abre sucursais em Brockton, Clinton, Fall River,
Framingham, Lynn, Plymouth, Quincy e Worcester, e logo acrescenta outras em
New Hampshire, Vermont, Connecticut, Maine, Rhode Island e Nova Jersey. Sua
vida privada dá uma virada paralela: para agradar Rose, adquire uma mansão com
ar-condicionado, um grande piano de cauda e uma piscina térmica, ao mesmo
tempo que paga uma passagem em primeira classe da Itália para sua mãe. Como se
não bastasse, enche de dólares as contas que abre em todos os bancos da Nova
Inglaterra.
Quando, em 20 de agosto de 1920, o Boston Post publica um elogioso artigo
sobre a Companhia de Intercâmbios de Bônus, Carlo alcança o topo. Por um
instante, pensa em devolver o dinheiro e fugir com Rose — e alguns milhares de
dólares —, mas é apenas um instante, e a inércia, somada a um inesgotável fluxo de
dinheiro vivo, o convence a rezar para que ninguém o descubra. Carlo foge para a
frente: adquire ações de uma infinidade de empresas (incluindo numerosos bancos),
confiando em que seus negócios legítimos mascarem o engano. Uma quimera. Nem
se transformando no empresário mais bem-sucedido da história conseguiria pagar as
centenas de milhares de dólares (milhões, ajustados à inflação de 2012) que já
gastou.
O final da história é tão previsível — e sua moral tão repugnante — que quase
resisto a narrá-la aqui. Charles Ponzi, nascido Carlo Pietro Giovanni Guglielmo
Tebaldo Ponzi, em 3 de março de 1882, é exibido como um dos maiores safados da
história. Uma vez que, a pedido do Boston Post, o célebre analista financeiro
Clarence Barron demonstra que seus lucros são inexplicáveis, uma multidão sitia
seus escritórios, e Carlo se vê obrigado a lhes pagar. O processo por um milhão de
dólares apresentado pelo velho Daniels, a traição de seu publicitário, que aceita
escrever um artigo no Post para denunciar suas manobras, as revelações de suas
estadas carcerárias em Atlanta e Montreal e a intervenção do comissionado bancário
de Massachusetts se unem para afundá-lo. Em meados de agosto, da Companhia de
Intercâmbio de Bônus só restam cinzas.
— Não penso em fugir — gaba-se para Rose —, dançarei conforme a música.
Vou demonstrar que estou à altura dos acontecimentos.
Horas mais tarde comparece em pessoa — por vontade própria! — no
escritório do delegado federal Patrick J. Duane, que está pronto para processá-lo por
84 acusações de fraude. Segundo os cálculos menos arriscados, a queda de Carlo
provoca a quebra de cinco bancos e perdas de 20 milhões de dólares da época, 225
milhões de dólares de hoje (uma ninharia comparada com os 65 bilhões fraudados
por Bernie Madoff ou os 15 bilhões que as autoridades me imputam). Depois de ele
se declarar culpado, o juiz o condena a cinco anos em uma prisão federal; cumpridos
esses, é sentenciado a outros nove, dessa vez por uma corte estadual. Só então
demonstra um mínimo de audácia e foge para a Flórida, onde tenta montar outra
pirâmide. Obrigado a fugir, raspa a cabeça e deixa um grosso bigode antes de subir
em um navio com destino à Itália. Em Nova Orleans é pego e devolvido a Boston,
onde passa outros sete anos na prisão. No total suas condenações somam pouco
mais de dez anos. (Dez anos frente aos 150 de Bernie e dos oitenta ou noventa que
me esperam!)
Liberado em 1934, Ponzi é deportado para a Itália — neste ínterim, Rose o
abandona —, se infiltra no Brasil, tenta novas aventuras, fracassa em todas e precisa
aceitar um emprego como contador em uma linha aérea. Imerso na pobreza,
termina seus dias meio cego e sem um centavo no Hospital São Francisco de Assis,
no Rio do Janeiro, onde morre em 18 de janeiro de 1949.
Ave Ponzi, inspirador não apenas de uma enorme camarilha de estelionatários,
de uma infame turba de mentirosos e canalhas, estelionatários e trapaceiros, mas
também de toda uma época, esta espetacular transição entre o segundo e o terceiro
milênios, estes gloriosos anos em que tantos de nós seguimos seu exemplo sem
remorsos e sem culpa! Descanse em paz, Carlo Ponzi, Mago das Finanças, Factótum
da Riqueza Fácil e Santo dos Bilionários da Terra! Quanto lhe devemos! Estou
convencido de que sua estátua mereceria substituir o ridículo touro de Wall Street!
Charles Ponzi no Brasil.
ÁRIA DE NOAH
Não, você não imaginou isso, pensa, mas finge não ter percebido os abraços e
afagos e entra na sala com passo decidido. Ajeitando os babados da blusa e um
cacho que desliza pela orelha — inútil sedução —, Helen Silvermaster (Dora, nos
arquivos soviéticos) o convida a entrar na sala e oferece uma xícara de chá gelado
que se apressa a buscar na cozinha. “Ele deve preferir algo mais forte”, sugere Lud
Ullmann (Polo, nos arquivos soviéticos), dirigindo-se ao bar; você nota a gravata
amassada e as marcas de batom na camisa.
“Obrigado”, murmura secamente. Seu colega serve dois copinhos e lhe conduz
pelo braço para as floridas poltronas da sala. Os dois se sentam e saboreiam o
conhaque em um silêncio que ele quebra com um risinho de cumplicidade que,
mais que incomodar, o envergonha. Você sente as orelhas ardendo: que tipo de
agente se ruboriza diante de uma infidelidade alheia, repreende a si mesmo.
“Nat não deve demorar”, esclarece Lud, ajustando a gravata e limpando os
lábios com um lenço. Você fica na dúvida se ele é um cínico ou um covarde.
Silvermaster (Pal, nos arquivos soviéticos) marcou com você ao meio-dia para
que lhe entregasse o material desta semana, por isso você usou a porta dos fundos e
procurou não fazer barulho. Nunca imaginou que encontraria a mulher dele nos
braços de Ullmann. Sempre achou extravagante que os três compartilhassem a
mesma casa, mas eles sempre se apresentaram como irmãos, e você nunca deu bola
para as fofocas contra ele. Pergunta-se que papel Nat desempenhará no triângulo, se
o de vil propiciador da aventura, o de marido resignado ou o de simples cornudo.
“O que você acaba de ver…”, desculpa-se Lud, mas você não o deixa terminar
a frase. “Eu não vi nada, e seja como for não é da minha conta”, interrompe-o de
repente. Com um gesto sutil, Ullmann tenta retomar sua explicação ou sua defesa,
mas Silvermaster irrompe na sala batendo a porta.
Você nota seus dedos crispados, seu olhar turvo — não é a primeira vez que lhe
perturbam seus olhos simiescos —, os traços de suor que lhe escorrem pela testa e
ensopam as axilas. Sem cumprimentá-los, joga o chapéu e o paletó no cabideiro,
desabotoa a camisa, se serve uma taça e se joga no sofá. Você imagina que está
prestes a ver uma briga doméstica e se prepara para partir, mas seu anfitrião bebe sua
taça em um silêncio resignado. “Deixe os papéis ali”, lhe indica como se não fosse
nada relevante. Helen volta da cozinha carregando uma bandeja — a roupa e o
penteado novamente impecáveis —, mas ao ver o marido vai para o lado dele e se
apressa em acariciar seu rosto com delicadeza. “Tudo bem, querido?” Silvermaster
tenta se controlar, mas seu temperamento nunca se acomodou à prudência.
“Mer quer me deixar de lado”, exclama de repente (segundo os arquivos
soviéticos, Mer é o agente do NKVD Isjak Ajmerov) e se lança em um ataque contra
o russo: “Depois de tudo o que eu consegui!”.
Ullmann tenta fazê-lo se calar, mas Silvermaster perde as estribeiras e, como se
fosse o protagonista de uma comédia ruim de Hollywood, joga no amigo o
conhaque que resta no fundo do seu copo. “Você não vai vir à minha casa me dizer
o que tenho que fazer! Juro que vou lhe partir os ossos! Desapareça daqui, se não
quer que lhe expulse a socos.”
Com um controle admirável, Lud limpa o rosto com um guardanapo. “É
melhor você ir embora, Noah”, diz. “Nat e eu nos conhecemos de toda a vida,
saberemos resolver isso.” Enquanto você abre caminho para a varanda, ouve os
soluços de Helen.
Faz meses que Nat se tornou incontrolável: todos os membros do círculo se
queixam de suas mudanças de humor, de sua falta de tato, de suas rabugices e
descuidos. Agora você descobriu a causa. Mas, além de seus desentendimentos
conjugais, seu comportamento constitui o pior erro que um agente clandestino pode
cometer. Embora você esteja a par de que Lud e Helen pertencem ao aparelho, e de
que eles reconhecem sua lealdade, uma regra essencial impede misturar células
distintas. Revelar seus conflitos com seu controlador soviético lhe parece uma
demonstração de desespero ou de loucura. Se continuar assim, Silvermaster
comprometerá todo o aparelho, o problema é que não aceita a menor crítica e fica
cada dia mais intolerante. Não é a primeira vez que confunde a vida social com seu
trabalho clandestino, como se encorajar a entrega de documentos secretos durante
um churrasco ou uma partida de pingue-pongue — ou em meio a um ataque de
ciúmes — fosse a coisa mais normal do mundo.
Desde seu recrutamento em 1931 (quando seu nome, segundo os arquivos
soviéticos, era Bud) sua carreira no aparelho lhe pareceu uma insignificância —
atuar como correio aqui e ali, sem nenhuma ordem ou estratégia discernível,
fazendo ouvidos moucos aos expurgos ou às contradições ideológicas como o Pacto
Germano-Soviético —, até que em 1941 seu velho amigo George Silverman
(Alerón, nos arquivos) o colocou em contato com Silvermaster, que acabava de se
apoderar do círculo de Washington. No princípio este se reportava a Jacob Golos
(John), mas depois da morte deste se viu obrigado a revelar a informação que extraía
de seus agentes à amante dele, a escorregadia Elizabeth Bentley (Myrna).
Irascível, às vezes incongruente — Ajmerov não deixa de informar seus
desmandos em todos os telegramas a Moscou —, Silvermaster possui grande
habilidade para se introduzir nos mais diversos estratos sociais e um talento
indiscutível para a sedução que lhe permitiram se transformar na melhor fonte que
os russos jamais tiveram (ou terão) no governo americano. No início você não
conseguia discernir os verdadeiros alcances de sua rede, e inclusive é possível que,
como outros membros, nem sequer soubesse com certeza que os documentos
secretos que tirava do Tesouro não iam parar no Partido Comunista, como Nat lhe
garantiu, mas no NKVD ou no serviço de inteligência do Exército soviético. Hoje
você já não tem dúvidas, mas, como Harry, prefere não fazer perguntas
inconvenientes. A causa, justifica para si mesmo, é a derrota do fascismo, e qualquer
meio é válido para alcançá-la.
Certa vez, depois de beber várias doses, o próprio Silvermaster se gabou de sua
ziguezagueante carreira como agente secreto: nascido em Odessa em 1899, iniciou
sua militância assim que chegou aos Estados Unidos, aos dezesseis anos. Depois de
uma intensa carreira clandestina na Costa Oeste, onde se tornou amigo de Earl
Browder, mudou-se para Washington, onde começou a fiscalizar o trabalho de mais
de meia dúzia de agentes. Embora não possa falar sobre isso, você não tem dúvidas
de que, além de Silverman, fazem parte da rede Frank Coe (Pick), Sonia Gold
(Zhenia), Solomon Adler (Sax) e Lauchlin Currie (Pajem), assim como o próprio
Harry (Advogado), a quem os serviços de inteligência soviéticos descrevem como
um de seus mais valiosos contatos.
Em 1942 tem início uma investigação oficial contra Silvermaster por sua
atividade comunista na Califórnia, e Ajmerov lhe ordena deixar de vê-lo por alguns
meses. O FBI solicita informação sobre o suposto traidor entre os membros do
Departamento do Tesouro, onde seus próprios amigos, incluindo Harry e você,
desprezam qualquer suspeita contra ele. “É um servidor público irrepreensível e um
patriota de primeira ordem”, você explica ao agente federal que o interroga nesses
dias. Graças à intervenção de Currie, que nesta altura atua como assistente de
Roosevelt, a única consequência das investigações consiste na transferência de
Silvermaster para a Administração de Seguros Agrícolas, onde logo reinicia suas
tarefas de espionagem.
Vasili Zarubin (Maxim), o chefe legal da base soviética em Nova York,
reconhece em um despacho a Moscou o valor do trabalho desenvolvido por
Silvermaster e seu grupo (“são agentes produtivos, dos quais recebemos informação
valiosa, com que podemos nos sentir satisfeitos”), mas exige que seus contatos
passem a depender de um cidadão soviético. Moscou instrui Ajmerov a tirar o
círculo de Washington da mão de seu líder e organizar uma rede mais bem
articulada. A partir de 1943, o russo se mostra cada vez mais inquieto diante dos
descontroles profissionais e emocionais de Silvermaster. Referindo-se ao triângulo
que mantém com Helen e Ullmann, Ajmerov escreve a Moscou: “Sem dúvida estas
relações pouco saudáveis não terão boa influência em seu comportamento e
resultarão negativas para nosso trabalho”.
No início de 1944, Moscou informa Ajmerov de que vários agentes do círculo
de Washington se encontram sob a lupa do FBI e que seus telefones foram
interceptados. Na mudança maciça de codinomes posterior a esta revelação, Mer
(Ajmerov) se transforma em Albert; Pal (Silvermaster) em Robert; Polo (Ullmann)
em Piloto; Advogado (White) em Richard e mais tarde em Reed; e você, Noah
Volpi, deixa de ser Bud e adquire o nome de Raposa (Lisitsa, em russo). Farto dos
deslizes de Silvermaster, suas visitas à casa dele se tornam cada vez mais esporádicas:
você não está disposto a que um novo erro coloque em perigo toda a sua carreira.
Seus colegas tomam decisões parecidas, e no final de 1944 Silvermaster já parece
contar somente com a colaboração de seu inseparável Ullmann, com quem acabará
por montar uma agência imobiliária em Nova Jersey.
Em meados de 1945, o novo chefe de base soviético, Vladimir Pravdin, tem
um desentendimento com Silvermaster. Nesta altura a atitude deste se tornou quase
histérica e suas relações com o resto do círculo se diluíram por completo. À sua
instabilidade familiar se soma o recrudescimento de seus ataques de asma. Sem
reconhecer qualquer responsabilidade no desmantelamento do aparelho,
Silvermaster se queixa com Pravdin de que Frank Coe e você deixaram de lhe
proporcionar documentos, enquanto George Silverman aceitou um emprego na
iniciativa privada sem consultá-lo. E acusa Harry White de não entregar nenhum
tipo de informação, porque depois do fim da guerra acha que seu papel consistirá
em dar assessoria à União Soviética em matéria de política econômica por canais
oficiais.
Tentando salvar o que resta do círculo de Washington, Pravdin marca
entrevistas com outros membros, entre eles você. “Não entendo como puderam
escolher alguém como ele para ser responsável pelo grupo”, reclama ao russo com
franqueza. “Suas mudanças de humor, seus descuidos e desplantes o tornam um
risco para todos.” Explica que por culpa dele o aparelho não existe mais e diz que,
no ambiente hostil instaurado por Truman depois da morte de Roosevelt, seria
imprescindível articular um novo grupo com uma estratégia mais clara e uma
liderança mais forte. “Só assim estaria disposto a continuar trabalhando para os
senhores.”
Tão frustrado quanto você, Isjak Ajmerov solicita a repatriação, que é
rapidamente aprovada por Moscou. Antes de partir se encontra com você pela
última vez em um bar no East Village. Ao vê-lo apoiado com os cotovelos no
balcão, coloca a mão no seu ombro e leva-o para uma mesinha no fundo.
Diferentemente do que acontece com a maior parte de seus colegas, o inglês dele é
impecável. O russo vai direto ao ponto e lhe revela as más notícias: “Myrna
(Elizabeth Bentley) nos traiu. Foi ao FBI e revelou as identidades de todos os
integrantes do grupo”.
Em seu relatório a Moscou, Ajmerov afirma que você não se mostra
particularmente alarmado: “Eu nunca trabalhei para ela, duvido que me reconheça”,
se justifica. (Em compensação, eu o imagino tremendo.) Mesmo assim, os dois
combinam as respostas que você deverá dar ao FBI caso seja necessário.
“Naturalmente, Raposa negará qualquer contato conosco”, conclui Ajmerov no
último telegrama dos arquivos soviéticos em que figura seu nome.
Cena III. Sobre como ser inteligente e bonito o transforma em
herói e ser inteligente e bonita a transforma em puta
O oficial que o conduz à cadeira acha que seu semblante é feito de cera, não
percebe sinais de medo em suas pupilas — tampouco de resignação ou ira — como
se fosse uma tarde sombria como tantas, como se seu tempo não se esgotasse até um
nada, como se seus membros não fossem se desconjuntar e se retorcer, como se sua
pele não fosse se transmutar em um pergaminho preto e vacilante. Esforçando-se
para evadir seu olhar, ajusta-lhe o cinto e encaixa as fivelas em torno de suas
panturrilhas e antebraços. Quando o técnico dá o sinal, coloca-lhe o capuz de couro
e se afasta para um lado para lhe conceder um último segundo de arrependimento.
Visto de perto, Julius Rosenberg não lhe parece repugnante, um dos inconvenientes
do seu ofício é que, uma vez despojados de esperanças, todos os condenados
parecem inocentes. Pergunta-se o que acontecerá dentro dele. Relembrará sua vida
ou pensará em coisas mais pueris, em um dia de maio, nos sorrisos dos filhos, no
cogumelo radioativo que deverá nos devorar por sua culpa? Talvez Julius esteja
muito cansado depois de tantos meses de apelações e trâmites, adiamentos e atrasos
— o casal deve estar há mais de dois anos em Sing Sing, calcula —, e só deseje um
pouco de silêncio.
O oficial da prisão acerta apenas em parte: sem dúvida, os Rosenberg estão
fartos do calvário inesgotável, de conversar inúmeras vezes com os advogados, de
receber tantas mostras de solidariedade quanto de repúdio, de se encolher em suas
celas em seções separadas do presídio, de se escrever diariamente (suas cartas foram
publicadas pelo comitê que os defende), de chorar, de gritar, de soluçar. Fartos de
proclamar inutilmente sua inocência. Mas neste instante Julius e Ethel, embora
talvez mais Ethel que Julius, continuam atentos ao telefone que descansa a algumas
polegadas da mão do prefeito, este telefone que poderia anunciar o perdão do
presidente. As possibilidades de que isso aconteça (eles sabem) são remotas: quando
a Suprema Corte confirmou sua condenação, Eisenhower se apressou a declarar que
a sentença lhe parecia justa e que não interviria no assunto.
Alegando a falta de tato que representaria executá-los durante o sabá, seus
advogados só conseguiram que o procurador Brownell prometesse cumprir a pena
antes do crepúsculo. Pela manhã o advogado do casal voltou a ir à Casa Branca para
fazer chegar ao presidente uma última petição apoiada no juízo da Suprema Corte,
que, embora confirmasse a legalidade da condenação, deplorava a desproporção do
castigo. Mas os minutos correm e o telefone permanece mudo. Julius só lamenta
que Ethel pague por suas culpas, por que David mentiu até conseguir a condenação
da irmã? Por que modificou seu testemunho para pintá-la como uma bruxa da qual
era imperativo se livrar? Espiões atômicos! Assim os caricaturaram na imprensa e no
rádio, como se eles de fato tivessem entregado os planos da bomba aos soviéticos,
como se os cientistas de Stálin não contassem com a informação para montá-la
sozinhos. Quem ia acreditar neles? Amedrontado pela bomba, o país necessitava de
bodes expiatórios.
Às 18h45, outro advogado comparece na Corte Federal de Nova York e solicita
um habeas corpus. Como era de esperar, Kaufman nega a moção. Obrigados a se
separar, os Rosenberg não ficam sabendo do anúncio da Casa Branca que confirma
que sua carta não fez o presidente mudar de opinião. Enquanto isso, em
Washington, em Paris, em Londres e em meio mundo centenas de ativistas montam
guarda nessa noite. “Somos inocentes”, proclamam, e rezam por um milagre. Frente
a estes, outros milhares demonstram sua raiva contra os cães judeus (“não os fritem
porque federiam muito: é melhor enforcá-los”), os vagabundos que se venderam aos
vermelhos, os espiões que provocaram a guerra da Coreia e talvez sejam os culpados
da extinção da nossa raça.
O relógio marca oito horas: o telefone já não deve tocar. O prefeito manda
atenuar as luzes e dar início à execução. Julius relembra uma manhã de sua infância
— a tênue bruma sob os ciprestes, o latido de um cachorro — quando a corrente
elétrica atravessa seu crânio, vibra seu coração e penetra em suas vísceras; seus
membros serpenteiam e seu corpo se rompe em um espasmo. Às 20h06, o legista
toma seu pulso e declara que o acusado, de trinta e cinco anos, está morto. Em
Washington e em Nova York, em Paris e em Londres, seus defensores desabam e
seus adversários os apedrejam.
Os carrascos de Sing Sing removem o cadáver do espião e mandam entrar
Ethel, acompanhada por duas guardas. A mulher parece feita de papel e seus lábios
rachados salivam sem parar. Antes de se sentar na cadeira segura a mão de uma das
matronas e beija o rosto da outra. O oficial da prisão lhe ajusta o cinto, as faixas nos
braços e pernas, e lhe coloca o capuz de couro. A um gesto do prefeito, o carrasco
aciona a alavanca. A descarga vibra Ethel, cujo corpo se agita como se dançasse
durante alguns segundos que se tornam infinitos. Quando finalmente se acalma e os
carrascos a desprendem, o médico constata que ainda respira. Dissimulando seu
horror, o prefeito manda que lhe recoloquem o equipamento e, sem perder tempo, a
suposta traidora recebe duas descargas sucessivas até que uma nuvenzinha de fumaça
emana de seu crânio e um cheiro acre se espalha pela sala. Às 20h16, pouco depois
do crepúsculo, o médico finalmente atesta sua morte.
Enquanto a execução de Ethel escandaliza a maioria, o presidente Eisenhower
escreve a seus filhos: “Nesta instância, a mulher é a mais forte e recalcitrante de
caráter, e o homem o fraco. Obviamente ela era a líder do círculo de espiões. Se a
indultássemos, sem indultar o homem, então daqui em diante os soviéticos
simplesmente se dedicariam a recrutar espiões entre as mulheres”.
Tudo isso acontece em 19 de junho de 1953. Apenas seis meses antes que
Noah se atire pela janela.
Atlético. Brilhante. Carismático. E rico. Eliah Strauss tinha tudo. Não era de
estranhar que sua carreira desatasse tanto elogios quanto inveja nem que seus traços
finos, seu bronzeado e seu sorriso — para seus fãs, doce e cândido; para seus
inimigos, sardônico e obscuro — adornasse com frequência tabloides e talk shows.
Sua família era igualmente perfeita, um casamento que já durava uma década com
Sonia Dell, uma advogada de trinta e nove que parecia dez anos mais jovem, tão
bonita quanto respeitada por suas iniciativas sociais, mais duas belezinhas de seis e
oito anos, Lilly e Madison, travessas e risonhas, umas fofuras com seus vestidinhos
combinando. “Mas seu marido deve ter algum defeito”, chegou a dizer uma
jornalista à sra. Strauss; esta se limitou a responder: “Eliah não para, nunca se
detém, jamais fica quieto”. A repórter não escondeu sua decepção diante da
resposta, sem entender que por uma vez alguém tinha lhe dado uma autêntica
revelação exclusiva.
Talvez em outro lugar a ambição de Eliah Strauss tivesse parecido um defeito,
mas na América, e sobretudo em Nova York, sua falta de escrúpulos era percebida
com descarada admiração. Modesto, o que se chama de modesto, não era: em cada
entrevista não perdia a chance de nos lembrar de que tinha sido o melhor aluno de
sua turma na Woodrow Wilson School, da Universidade de Princeton, e que,
depois de alcançar uma nota perfeita no exame de admissão — a voz impostada ao
ressaltar o adjetivo —, tinha obtido o título de juris doctor na Escola de Direito de
Harvard com as mais altas honras, além de ter atuado como editor de sua
prestigiada — muito prestigiada — revista.
Como correspondia a um rapaz de sua inteligência e de sua classe, Eliah logo
foi contratado pela Peter, Lukas, Johnson & Marc, onde o aguardava um plácido
destino em uma macia poltrona de couro diante da perspectiva aérea de Manhattan,
mas depois de dois anos abandonou a firma — consultou somente Sonia — e se
incorporou como assistente do procurador distrital do condado de Nova York. O
prestígio do nosso Eliot Ness cibernético se cimentou depois da captura de dois
herdeiros da família Gambino. Dois anos mais tarde, Strauss anunciou sua decisão
de se candidatar a procurador-geral de Nova York. Nessa época nasceu Madison, e
ele não hesitou em posar com seu bebê em diversas revistas de celebridades. Previam
que a escolha estivesse encerrada, e ninguém acreditava que o novato fosse conseguir
o cargo, mas o próprio Strauss financiou sua candidatura e contratou uma assessoria
de imprensa que o apresentou como o açoite do crime organizado na Grande Maçã
Podre. Embora tenha conseguido o apoio do New York Post e do Daily News, ficou
em último lugar: a primeira derrota no seu histórico. Strauss acabaria por
reconhecer que este tropeço foi o maior estímulo da sua vida, que graças a ele
aprendeu com seus erros, se tornou mais humilde (mais humilde!) e conseguiu se
erguer com a vitória nas eleições de 1998, blá-blá-blá. Quatro anos depois bateu
uma ilustre juíza republicana com 68% dos votos, um dos mais altos na história do
estado.
Não havia semana em que Eliah não recebesse os refletores por uma nova
operação tão bem-sucedida quanto bem divulgada. Sua nova fixação: fazer em
pedacinhos qualquer magnata de Wall Street que se interpusesse em seu caminho.
Animado por uma absurda exposição midiática, Strauss invocou todo tipo de
obscuras leis do passado para intervir em casos que de outra maneira teriam
terminado nas cortes federais, transformando-se no inimigo público número um das
grandes fortunas do país. Contratou dezenas de formados da Ivy League, montou
uma sofisticada unidade de supervisão financeira e, apresentando-se como um
democrata liberal, encontrou o nicho que o tornaria famoso nos anos posteriores à
crise das pontocom e dos escândalos da WorldCom e da Enron: esmagar quem
tinha se beneficiado da desregulamentação promovida por Reagan, Bush pai e pelo
próprio Clinton (com quem nunca teve sintonia).
Em uma de suas primeiras causes celèbres, nosso David enfrentou o Merrill
Lynch. Acusado de manobras irregulares, o banco de investimentos negou os fatos,
em seguida se proclamou vítima de uma conspiração — todos os seus concorrentes
se comportavam da mesma maneira —, mais tarde se atreveu a ameaçar o
procurador de ferro e, em longo prazo, aceitou pagar uma multa de 100 milhões de
dólares que Strauss espalhou a torto e a direito. Consumada esta vitória, o xerife de
Wall Street declarou que sua meta era denunciar os conflitos de interesses “de todos
os bancos”. Em casos que inevitavelmente escalaram até as primeiras páginas do
New York Times — seu novo aliado —, Strauss conseguiu impor sanções milionárias
a todos os grandes atores financeiros, do Goldman Sachs ao Bear Sterns, do Crédit
Suisse First Boston ao Morgan Stanley, e do J.P. Morgan ao Lehman Brothers, sem
contar sua polêmica perseguição ao presidente da Bolsa de Valores ou a caça de
dezenas de fundo de hedge irregulares. Eliah Strauss surgia como uma das estrelas
ascendentes do Partido Democrata e, segundo os boatos que se espalhavam como
brasas por Wall Street, ele já se via como candidato a governador de Nova York ou
diretamente como vice-presidente.
Deve ter sido justo quando se iniciavam as primárias que Terry Wallace, o ex-
marido de Susan, jantou pela primeira vez com Strauss. Não consegui descobrir
quem promoveu o encontro, mas sei que ocorreu no Rosa Mexicano da Broadway e
que, diante dos nachos ou das margaritas, meu ex-genro se espraiou sobre as
supostas manobras ilegais do JV Capital Management. Strauss deve ter farejado o
sangue e prometeu uma investigação que, nas mãos de Donna Durán, uma de suas
assistentes mais vorazes, começou no início de 2004. Que melhor maneira de
acentuar seu prestígio do que exibindo um especulador que, segundo seus informes,
enganava centenas de clientes enquanto se apresentava como filantropo e mecenas?
Antes de receber a primeira auditoria, liguei diretamente para o seu escritório e o
convidei para jantar.
Ao vivo não parecia tão atlético nem tão bonito, embora o distinguisse um
desses rostos de galã de telenovela. Um pequeno tique o levava a acariciar a testa
com fruição, como se o preocupasse se certificar de que os últimos cabelos que
restavam se mantinham no lugar. Não tentei me mostrar simpático, nem tentei
suborná-lo ou ameaçá-lo, como sua diretora de comunicação divulgaria depois à
imprensa, de fato a conversa pulou de um assunto a outro sem tocar nenhum tema
incômodo. A única coisa que eu queria era olhá-lo de frente, tê-lo perto, bem perto,
avaliar suas expressões, medir suas palavras, memorizar seus gestos, distinguir talvez
uma fraqueza, uma debilidade, uma mania. Imagino que sua intenção era a mesma.
Um jogo de pôquer ou de xadrez em que os adversários, dois escorpiões frente a
frente, apenas se medem com respeito.
Despedimo-nos com um forte aperto de mãos e prometemos repetir a
experiência: a conversa, convenhamos, tinha sido deliciosa. É óbvio que isso nunca
aconteceu. O que descobri nesse jantar? Aparentemente Strauss era idêntico à
imagem que seus assessores nos tinham vendido. Atlético. Brilhante. Carismático. E
rico. De fato, Eliah Strauss tinha tudo. Mas a perfeição, não devemos esquecer, é
ilusória. Além da astúcia e do glamour, do sorriso sinuoso e ostentoso, o
procurador-geral era um histrião consumado. E, como qualquer comediante, seu
rosto não podia ser idêntico à sua máscara. Eu ainda não sabia se escondia um
grande segredo ou um deslize sem consequências, mas com certeza escondia alguma
coisa.
— Para encontrar o que ele esconde — instruí Vikram — devemos empregar
seus mesmos métodos. Siga-o de perto. Entenda bem: não a ele, que não estamos
em um romance de espiões. Seus gastos, seus cartões de crédito, suas contas. Se o
desgraçado esconde algo, encontraremos onde ele mesmo procuraria.
DUETO
Meu pai tinha trabalhado para os russos, já não restava nenhuma dúvida. Não
posso dizer que tal confirmação tenha me deixado devastado, mas me mergulhou
em um ânimo próximo da apatia. Assim que voltava para casa ao término de uma
viagem de trabalho, um encontro com investidores ou uma escapada erótica com
Vikram, me refugiava na biblioteca, colocava os fones e passava o resto da tarde
ouvindo óperas de Händel e Vivaldi, o único antídoto contra esse passado familiar
que de repente se revelava, se não repugnante, pelo menos incompreensível. Na
maior parte das vezes jantava sozinho, um sanduíche ou uma salada de atum que a
cozinheira levava ao meu refúgio, onde eu permanecia até a meia-noite, indiferente
aos projetos ou às atividades da minha mulher.
Pouco antes Arkadi me informara que os ventos políticos na Rússia tinham
dado uma reviravolta e que os responsáveis pelo arquivo cada vez colocavam mais
empecilhos para as suas pesquisas. Seu apartamento tinha sido saqueado — as
autoridades concluíram que fora obra de uma quadrilha de ladrões —, e sua família
era vítima de incessantes ameaças telefônicas. O tártaro resistiu ao assédio, mas,
depois de sofrer um ataque à mão armada e de uma surra que quase o fez perder o
olho esquerdo, fiz os acertos necessários para levá-lo a um refúgio na Europa
Ocidental, mas suas anotações só chegaram depois de uma odisseia própria de James
Bond. Se talvez houvesse uma pergunta a formular, como insistia Leah, os arquivos
moscovitas já não serviriam para respondê-la.
Apesar do meu desânimo, reconhecia que esse impasse não poderia durar a vida
inteira, e certa noite de maio abandonei meu limbo barroco e irrompi
repentinamente no banheiro, onde Leah se ensaboava sob o chuveiro. O tom
exaltado da minha voz a surpreendeu mais que a minha intromissão. Atrás do vidro
esmerilhado seu corpo parecia um esboço vacilante, como se ela também tivesse
perdido consistência ao longo dessas semanas.
— Não é suficiente para você? — me ouvi gritar. — Precisa de mais provas?
Leah fechou a torneira, se enfiou em uma toalha vermelha e começou a enxugar
os pés e as panturrilhas. Eu estava acostumado a fugir das suas iras, mas desta vez
não aguentava de vontade de provocá-la.
— Sou filho de um maldito espião russo, percebe a ironia?
— Isso o incomoda? — mal levantou o olhar.
— Não, Leah, eu adoro isso — ri. — Estou há anos querendo saber isso e
agora sei. O que quer que lhe diga? Finalmente acabou a tortura.
Minha mulher ficou em silêncio, com aquela careta de insatisfação que a fazia
parecer dez anos mais velha. Há quanto tempo estávamos juntos? Para mim, uma
eternidade. Por um instante desejei ficar sozinho naquele imenso espaço diante da
luminosa mentira de Manhattan, mas imediatamente percebi minha injustiça: Leah
tinha sido uma mulher irrepreensível, que minhas pesquisas tivessem chegado ao seu
fim não me autorizava a prescindir de seus serviços.
Quando terminou de secar o cabelo e se enfiou em um absurdo pijama rosa —
fazia tempo que tinha deixado de se preocupar com sua aparência quando dormia
comigo —, Leah me puxou pela mão, me levou ao seu escritório e me revelou que,
enquanto eu me dedicava a ruminar minha desgraça, ela tinha feito uma última
descoberta. Abriu um bordeaux, pegou duas taças e me pediu que me sentasse
diante de seu computador.
— Vou lhe contar uma história — disse. — Corria o mês de fevereiro de 1943
quando o coronel Carter Clarke, chefe do Setor Especial do Exército responsável
pelo Serviço de Inteligência de Códigos, mandou estabelecer um pequeno projeto
para examinar os telegramas diplomáticos que a embaixada soviética em
Washington e o consulado soviético em Nova York enviavam a Moscou de bases
clandestinas. Clarke tinha se concentrado em codificar as mensagens dos alemães e
japoneses sem se preocupar com os aliados russos, mas os boatos segundo os quais
Stálin iria assinar a paz com Hitler mudaram sua estratégia. A tarefa se revelou mais
difícil do que o previsto, pois a URSS empregava um sistema de código em duas fases
e seus analistas só conseguiram abrir as primeiras mensagens em 1946, quando a
guerra já tinha terminado.
— Stálin queria mesmo trair Roosevelt?
— Os telegramas em nenhum momento se referiam a uma negociação com os
nazistas — continuou Leah —, mas demonstravam o que nós já sabemos: que a
URSS possuía uma formidável rede clandestina infiltrada nas principais agências do
governo. Em 1939 o escritório de Clarke mal contava com uma dúzia de
especialistas, mas em 1945 já empregava 150 funcionários entre criptógrafos,
analistas, linguistas e especialistas em sinais de telecomunicação, e tinha se mudado
para um antigo colégio para moças em Arlington Hill, Virginia. Em 1952, adotou o
nome que conserva até hoje, Agência de Segurança Nacional, a mais sombria das
nossas centrais de inteligência. O esforço de Clarke, conhecido no início como o
“problema doméstico soviético”, tomou depois os nomes de Jade, Algema, Droga e
finalmente, em 1961, o de Projeto Venona.
Era possível que durante todos os anos da guerra nossos serviços secretos
tivessem espiado os espiões? Apressei-me a abrir a garrafa. No teclado, os dedos de
Leah se animavam como larvas recém-saídas dos ovinhos.
— E finalmente Clarke conseguiu decifrar os telegramas?
— Entre 1940 e 1980, quando o programa foi descartado devido à sua falta de
interesse tático, o Projeto Venona decifrou total ou parcialmente 1,8% dos
telegramas de 1942; 15% dos de 1943; a metade dos telegramas soviéticos enviados
em 1944; mas só 1,5% dos de 1945 — leu na tela.
De repente senti a urgência de tocá-la. Embora nos últimos meses tivesse
procurado evitar qualquer contato físico com ela, agora sentia que só sua pele
poderia me devolver à época em que sua inteligência me deslumbrava.
— E por que nunca soubemos nada deles? — perguntei.
— Porque o governo decidiu manter isso em segredo. Suas descobertas nunca
foram utilizadas nos processos iniciados contra os acusados de espionagem durante a
Guerra Fria.
— O governo preferiu que fossem erroneamente julgados a revelar a existência
do projeto…
— É o que eu acho.
— Mas imagino que está me contando tudo isso por algum motivo — bebi o
resto da minha taça e acariciei seus lábios de maneira inequívoca.
— Aqui vem o mais interessante — se afastou sem a menor delicadeza. —
Graças à intervenção de dois historiadores, John Earl Haynes e Harvey Klehr, com
quem me encontrei há alguns dias, a NSA finalmente decidiu abrir seus arquivos. Em
uma coletiva de imprensa realizada em Langley, a CIA, o FBI e a NSA deram a
conhecer o Projeto Venona e publicaram uma primeira lista de telegramas
decifrados pelos seus analistas. Estimam que nos próximos meses colocarão à
disposição dos especialistas umas 5 mil páginas de material bruto.*
Não precisou dar mais detalhes para que eu percebesse a relevância da notícia.
Embora a inocência de meu pai tivesse sido descartada, talvez ainda pudéssemos nos
aproximar dos seus motivos.
— E onde está esse material?
— Aqui mesmo, em Nova York — exclamou triunfal. — Preciso de uma
equipe que me ajude a esmiuçar esse imenso caudal de informação.
— Sabia que afinal o mistério se resolveria com dinheiro.
Beijei-a com uma obstinação que não se distinguia da fúria. Quase não
reconheci o sabor dos seus lábios, como se fosse uma desconhecida. Ela não
correspondeu à minha veemência, mas eu a levantei nos braços — me surpreendeu
constatar a facilidade com que ainda conseguia levantá-la — e a levei no colo para a
cama. Se no sexo nunca fomos compatíveis, os anos pelo menos tinham nos
ensinado a fingir que éramos capazes de nos satisfazer. Essa repentina obsessão
sexual talvez não tenha chegado a nos reconciliar, mas dissipou por alguns meses a
sensação de que, depois de tantas aventuras compartilhadas, nossa história já não
tinha sentido.
ÁRIA DE VIKRAM
DUETO
ÁRIA DE NOAH
Um céu espectral, sem o menor sinal de luz. Imagino você diante da janela,
com os olhos bem abertos, obcecado com essa escuridão sem paliativos. Você voltou
a acordar às cinco da manhã como todos os dias desde que partiu. Ao distinguir os
primeiros reflexos da alvorada, deita-se outra vez na cama. No armário descansam os
três ou quatro ternos que, apesar dos últimos pedidos da minha mãe, conseguiu
arrancar das mãos dela; mais à frente, em cima da mesa, uma dúzia de livros e o
estojo com seu violino. Nos últimos dias o desgosto deu lugar a uma amargura que
lhe fere o corpo dos pés à cabeça. Se antes você não conseguia resistir à ideia de que
seus esforços da vida toda foram pelo ralo, agora os últimos pilares que sustentavam
sua lucidez foram destruídos. E mesmo assim você não hesita, não se arrepende. Fez
o que tinha que fazer. Como ela. Só que, contradizendo a lealdade que exibiram
durante vários quinquênios, agora os dois ficaram encurralados.
De repente amanheceu, e o quarto se enche com uma luminosidade
incandescente que o obriga a se refugiar no banheiro. Ao longe distingue a algazarra
dos pássaros, os malditos pássaros que teimam em piar quando clareia. Você se
despe rapidamente, sacudido por uma pressa repentina. Gira a torneira, e um jato
de água gelada cai sobre sua incipiente calvície. As gotas no seu rosto não o
acordam. Uma vez fora do chuveiro você para diante do espelho, um vidro oblongo
que lhe devolve seu rosto maltratado pelas lágrimas. Odeia se ver assim, arrasado,
cada vez menos parecido com quem foi até recentemente, o cabelo embranquecido,
as maçãs do rosto proeminentes, a pele estriada, as bolsas embaixo dos olhos.
Ensaboa-se e desliza a navalha pelo pescoço e pela mandíbula: uma gota de sangue
tinge a brancura do azulejo.
Volta ao quarto e enfia as cuecas, as calças, a camisa e os suspensórios. O dia
está começando, mas você se sente fatigado, como se tivesse escalado uma encosta
interminável. Seu estômago ruge de fome, mas só pega um copo que enche duas
vezes sem se saciar. Então desvia o olhar e se detém no estojo preto, parecendo um
animal adormecido, que descansa na mesa da sala. Nem sequer sabe por que decidiu
trazê-lo para cá. Passaram anos, muitos anos, desde a última vez que o abriu e
contemplou a calada madeira que repousa dentro dele. Precisava arrancar da minha
mãe este último vestígio do seu passado? Reconciliar-se com aquela outra vida a que
teimou em renunciar? Abre o fecho como se despisse uma namorada adolescente e
levanta a tampa sem fazer barulho. Despertar a criatura que, serena e aprazível, se
mantém indiferente à sua fadiga e à sua angústia lhe inquieta. Acaricia as cordas
suavemente: uma corrente eletriza as pontas dos seus dedos e desliza veloz pelo seu
antebraço. Sem pensar arranca-o do leito e se vê afinando-o com a devoção com que
se embala um recém-nascido. Inclina o queixo para apoiá-lo — os dois se
reconhecem e se acoplam — enquanto sua mão direita levanta o arco no ar e se
prepara para extrair as primeiras notas da Partita nº. 1. Eu o imagino mais sereno
que abatido quando para de repente, deixa o violino em cima da mesa e, sem ter se
atrevido a profaná-lo, se dirige à janela.
DUETO DA VERDADE
ÁRIA DI BRAVURA
Título original
Memorial del engaño
Capa
Adaptação sobre design original de Leonel Sagahón
Revisão
Ana Grillo
Raquel Correa
Eduardo Rosal
ISBN 978-85-438-0554-2
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ S.A.
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