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PUC-SP
Ansiedade e Contemporaneidade:
Uma Leitura Junguiana
São Paulo
2017
LUCAS SERRA VALLADÃO
Ansiedade e Contemporaneidade:
Uma Leitura Junguiana
São Paulo
2017
BANCA EXAMINADORA
AGRADECIMENTOS
The present work aims to think about contemporary anxiety under the approach of
Analytical Psychology. Therefore, we sought to characterize the general aspects of the
current culture and to identify the psychological aspects of anxiety. It is a theoretical
work, developed from a bibliographical survey of Carl Gustav Jung’s work, scientific
articles of the last five years and the Jungian literature about anxiety. From these
surveys, we sought to establish parallels between culture and mass society, in order
to highlight the occurrence of anxiety as one of the main psychic disorders nowadays.
Finally, we sought to point out possible symbolic meanings of this psychological
phenomenon in its dysfunctional performance and to point out alternatives for
overcoming it. The results of the research suggest that dysfunctional anxiety is
associated with an unconscious compensatory reaction that seeks to fill the
psychological needs gaps generated by the process of deindividuation - exacerbated
rationalism and predominant externalized orientation of life conduct. It was verified that
this reaction occurs both at a collective and individual level, because of the limitations
it imposes, it favors the contact of the individual with the Self.
INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 8
OBJETIVO ......................................................................................................................................14
MÉTODO ........................................................................................................................................15
1. ASPECTOS DA CULTURA CONTEMPORÂNEA ..................................................................19
2. A COMPREENSÃO PSICOLÓGICA DA ANSIEDADE ..........................................................40
2.1. A ANSIEDADE EM JUNG ......................................................................................................40
2.2. NORMALIDADE E A PSICOPATOLOGIA ...........................................................................41
2.3. A MASSIFICAÇÃO E O ADOECIMENTO ............................................................................47
2.4. ANSIEDADE NA COMPREENSÃO DE OUTROS AUTORES ...........................................50
3. DISCUSSÃO ..............................................................................................................................65
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................................77
REFERÊNCIAS ..............................................................................................................................81
8
INTRODUÇÃO
começava a ser pensada sob um enfoque mais amplo, que perpassa pelo coletivo e
seus aspectos socioculturais. Isto de imediato despertou em mim um grande interesse
pelo tema.
Assim, este trabalho é fruto do entrelaçamento de indagações pessoais e
pesquisas científicas. Isto forçosamente me impeliu para as posições de sujeito e
objeto de estudo, já que minha vivência pessoal está fortemente imbricada nas
motivações da pesquisa. Usufruí desta díade sujeito/objeto como instrumento de
orientação e reflexão sobre as questões teóricas apresentadas adiante. Se por um
lado esta dualidade me deu a vantagem da concretude e a tangibilidade em relação
ao conteúdo teórico abordado, por outro, muitas vezes fez com que o processo
produtivo se tornasse extremamente árduo e desgastante, pois me obrigava a
debruçar repetidamente sobre algumas das minhas próprias feridas psíquicas.
Na elaboração deste trabalho, o termo ansiedade é compreendido como uma
emoção universal e que faz parte da vida. Sua atuação funcional é imprescindível para
a autopreservação, pois gera uma reação a um estímulo ameaçador iminente ou a
possibilidade de uma ameaça. Em sua manifestação normal de intensidade e duração,
a ansiedade é uma emoção benéfica, capaz de melhorar o desempenho do indivíduo,
promover soluções criativas em momentos de risco e estimular a cooperação. Em sua
atuação disfuncional, ou seja, quando ela ocorre de modo inadequado à situação
enfrentada, se torna prejudicial ao indivíduo. Assim, a percepção e/ou a resposta ao
estímulo ameaçador é desproporcional tanto na reação que desencadeia quanto a
seu tempo de duração. Do ponto de vista da coletividade, compreendemos a
ansiedade como uma atitude em relação à vida pautada principalmente pelo
pragmatismo, racionalidade e consumismo exacerbados. Seus reflexos a nível de
coletividade chegam ao indivíduo por meio do modelo sociocultural que norteia a
conduta individual. No indivíduo, ela induz à inquietude, ao raciocínio superficial, à
competitividade exagerada, desconfiança e a diversos transtornos físicos e psíquicos.
Abordaremos agora as questões da relevância e atualidade deste tema. A
questão da saúde mental coletiva vem ganhando importância, chamando a atenção e
se tornando foco de preocupação de órgãos e agências de regulação social. Um
exemplo recente disto, é o interesse da Organização Mundial da Saúde (OMS) em
patrocinar iniciativas científicas em 24 países ao redor do mundo, que tinham como
objetivos integrar e analisar pesquisas epidemiológicas sobre abuso de substâncias,
12
OBJETIVO
OBJETIVO GERAL
OBJETIVOS ESPECÍFICOS
MÉTODO
1
Segundo Jung (1921/2011, p. 470): “(...) Instinto é todo fenômeno psíquico que ocorre sem
a participação intencional da vontade, mas por simples coação dinâmica, podendo esta nascer
diretamente de fonte orgânica, portanto extrapsíquica, ou ser condicionada essencialmente
por energias simplesmente liberadas pela intenção voluntária, e, neste caso, com a restrição
de que o resultado obtido ultrapasse o efeito intencionado pela vontade. Sob o conceito
instinto, estão, a meu ver, todos os processos psíquicos cuja energia a consciência não
controla. (...)”
21
direção a uma identificação total. Esta atração é muito potente por aparentar ser a via
mais fácil pela qual o indivíduo pode suprir as suas carências psíquicas. Ademais, o
grupo, propicia a sensação de impunidade e anonimato, podendo levar a um agir
inconsequente ou irresponsável − ao reforçar tendências psíquicas infantis ou a
reativação da atuação destas. Apesar desta visão contundente de Jung, na atualidade
a psicologia analítica reviu a sua postura frente as organizações grupais, pois estas
também têm o potencial de provocar mudanças positivas.
O caminho da dependência do Estado e sua consequente identificação ampla
com o grande grupo da sociedade promete, fantasiosamente, livrar todas as pessoas
das agruras da busca pelo autoconhecimento. Neste sentido, induz os indivíduos a
adotarem como valores a simples imitação, seja de seus pares ou de personalidades
modelo. A atuação do Estado reitera a dependência emocional ao se colocar em
posição superior no tocante a importantes decisões a respeito da vida de seus
cidadãos. Isto significa que o Estado sempre sabe o que é melhor para o indivíduo e
como melhor protegê-lo dos perigos do existir − visto que suas orientações se
embasam em um enorme aparato técnico-científico e em médias estatísticas. De certa
forma, um Estado que superprotege o indivíduo rouba o prazer das árduas conquistas
e torna o existir apático (JUNG, 1959/2013).
Novamente aqui devemos ter em mente que esta dependência do indivíduo não
se vincula mais completamente ao Estado, mas também é promovida e exercida pelos
meios de comunicação de massa, mídias, empresas multinacionais, etc.
Ao discorrer sobre a interação entre o Estado/grupos e o indivíduo, Jung de
forma alguma pretende realizar a defesa de uma ideologia anarquista ou propor o
retorno a um modelo de organização social estritamente local e não formalmente
institucionalizado, como é o caso das organizações tribais. Em seus textos, ele
frequentemente aponta que os grupos e a sociedade apresentam vantagens
imprescindíveis de adaptação ambiental, proteção e ganhos sociais vitais ao indivíduo
(JUNG, 1959/2013). Sua postura crítica busca evidenciar os efeitos deletérios
causados pela inconsciência tanto ao nível da existência individual, quanto
comunitária.
Assim, segundo sua concepção, as grandes aglomerações humanas reforçam
a inconsciência e o mal cuja propagação pode ser veloz e quase irrefreável. No
entanto, o aglomerado social também pode promover o bem. Ele é capaz de promover
24
condições que compensam a fraqueza moral da maioria das pessoas ao dar forma a
um bem externo ao qual elas se agarram para poder sustentar-se. Como evento
podemos citar as grandes religiões que, de maneira geral, promovem a cura psíquica
a todos aqueles que sozinhos não têm condições de carregar conscientemente a
própria responsabilidade. Para o autor, essas pessoas compõem a maior parcela da
população (JUNG, 1954/2012, p.335).
Pode-se inferir que Jung propõe como dever do indivíduo que este aja de
maneira permanentemente ativa − tanto em relação à cooperação com sua própria
psique, quanto ao monitoramento dos sistemas políticos-estatais – como condição
necessária para se evitar novas catástrofes humanas semelhantes as duas Grandes
Guerras Mundiais ou a ascensão de regimes totalitários e/ou genocidas. O autor
acredita que estes indivíduos ativamente empenhados com o seu existir são apenas
alguns poucos. São aqueles capazes de escapar do processo de dependência do
Estado e da massificação psíquica, os que buscam conquistar a própria personalidade
por via do engajamento com o processo de individuação (JUNG, Ibidem).
Jung compreende que além da análise pessoal, o único meio pelo qual o
indivíduo pode se evadir do processo de massificação promovido pelo Estado é por
via da religiosidade. Apesar de sua potencialidade para a alienação do mundo
concreto e de si mesmo, as religiões2 tentam pôr o indivíduo em contato com uma
“autoridade oposta à do ‘mundo’” (JUNG, 1957/2013, p. 20), trazendo uma atitude
psíquica ao indivíduo que lhe propicia dependência e submissão a questões
irracionais. Estas questões irrompem de sua interioridade, ao se contrapor com a
vivência externalizada imposta pelo Estado. Isto ocorre pelo fato da religião ter como
finalidade mais abrangente a preservação da estabilidade psíquica do indivíduo frente
a fatos incontroláveis tanto do meio externo quanto do seu inconsciente. Quanto maior
2
Jung afirma que não emprega o termo religião para se referir a uma dada profissão de fé religiosa.
Em seu entendimento, toda confissão religiosa em parte se funda na experiência do numinoso e, em
contraparte, se assentada sobre a fé e a confiança em relação esta mesma experiência. Esta somatória
de partes necessariamente induz mudanças na consciência e na relação desta com as demais
instâncias psíquicas. O termo religião pode ser compreendido redutivamente como “(...) a acurada e
conscienciosa observação (...)” do numinoso (JUNG, 1939/2012b, p. 19). A experiência religiosa do
numinoso é decorre de um efeito dinâmico ou de uma existência não decorrente de um ato arbitrário,
que se manifesta no indivíduo. Esta manifestação toma e domina a psique e, por isto, lhe desperta uma
condição especial. Esta condição independe da vontade individual e está provavelmente ligada a uma
causa externa. De maneira geral, tal condição psíquica pode ser despertada por um objeto visível ou o
influxo de uma presença invisível (JUNG, Ibidem, p. 19-21).
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perda, leva a uma cisão entre a consciência e o instinto. Em decorrência dessa cisão,
a consciência perde o contato com os instintos que, agora sem possibilidade de
expressão, vão aumentar a pressão exercida pelo inconsciente sobre a consciência.
Isto ocasiona invasões de conteúdos inconscientes sobre a consciência, facilitando a
ocorrência de quadros psicopatológicos.
Visto que tal quebra de valores incide sobre grande parte dos âmbitos da
existência humana e, somado aos processos de disseminação da incerteza
generalizada decorrente da dúvida radical e da progressiva perda da capacidade de
abstração a respeito da simbologia do existir, acarreta a generalização da sensação
de despropósito e desorientação referente ao estar no mundo.
May (2009, p. 45-47) afirma que em épocas de mudança cultural radical “o
dilema humano”3 torna-se mais difícil de tratar do ponto de vista psicoterápico. Isto
decorre do fato da autopercepção ser construída sobre os valores e princípios que
norteiam a sociedade. Portanto, caso esses valores sejam instáveis, o indivíduo não
terá parâmetros seguros para formar e pensar sobre a própria individualidade.
Segundo este autor, a insegurança quanto a própria individualidade torna o
indivíduo apático frente ao existir e, por isso, altamente influenciável e manipulável, já
que busca na coletividade a segurança e o reconhecimento que não possui
internamente.
Desta forma, para May (2009), a massificação social se aguça em períodos
históricos transicionais, pois o indivíduo se pensa a partir de valores coletivos da
cultura e, caso estes sejam abalados, o indivíduo não terá uma base de sustentação
firme para construir a própria autoimagem. Esta ausência da segurança interna é
frequentemente suprida pela identificação com valores e princípios de um
determinado grupo. Ele argumenta que na atualidade, a dissolução das configurações
sociais tradicionais deixa um vácuo representado pela ausência de papéis viáveis e
de mitos positivos que possam guiar os indivíduos, restando apenas o modelo
amplamente exaltado da máquina e as pressões para que eles se tornem a sua própria
imagem e semelhança.
3
May (2009, p. 40-41) emprega o termo dilema (ou paradoxo) humano como descritivo dos conflitos
conscienciais inerentes aos humanos decorrentes da capacidade que temos de simultaneamente nos
compreendermos como sujeito e objeto de nossa própria ação. Esta capacidade, a consciência, é
compreendida como um processo que se dá dialeticamente na oscilação entre esses dois polos, sendo
a potencialidade gerada entre eles. Neste sentido, a liberdade genuína se encontra na possibilidade da
vivência desta dialética da maneira mais equilibrada possível.
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“capitalismo tardio” por Giddens (2001). Pois grande parte do existir passa a ser
subjugado ao processo de mercadorização e se volta para a satisfação do desejo e
obtenção do prazer por via do consumo. Neste sentido, pouco importa os meios para
esta satisfação, sendo a devastação do meio ambiente vista, em parte, como um preço
a ser pago para que se possa viver este desfrute.
A compartimentalização do ser/existir humano, que opera sob a mesma lógica
apontada acima, se torna evidente quando, por exemplo, se exige do corpo níveis de
desempenho que entram em choque com a sua própria natureza. Visa-se atingir um
desempenho máximo, tal qual uma máquina, muitas vezes sem se levar em conta as
consequências para o próprio organismo.
Em relação a este último aspecto, Rollo May (2012) chama atenção para o fato
de cada vez mais se pensar o corpo físico como um elemento externo e alheio ao ser,
de tal modo que nos relacionamos de maneira impessoal com o nosso próprio
organismo. O adoecimento e a patologia passaram a ser pensados como defeitos
operacionais da máquina biológica e, consequentemente, perderam-se de vista as
dimensões simbólicas que tais fatos podem trazer para o desenvolvimento da
personalidade humana.
Como dito, a dicotomização mente/corpo leva à ideia de superação constante
dos limites. Neste sentido, visando o aumento do desempenho e a conquista de
reconhecimento no âmbito profissional cresce e se populariza o uso de todo tipo de
estimulantes para se superar as limitações biológicas impostas pelo corpo e, desta
forma, leva-se o organismo a um estado de estresse e excitação permanentes. É
importante salientar que o uso de estimulantes – cuja finalidade inicial era melhorar o
desempenho de soldados no front de guerra – ganhou espaço no âmbito civil na última
década não apenas como meio para aumentar a produtividade no trabalho, mas,
igualmente, passou a ser largamente empregado nos momentos de lazer, para que
se possa “curtir” as festas e confraternizações até o último momento.
Matos (2009) nos fala que no pós-guerra ocorreu o predomínio cada vez maior
da mentalidade protestante – segundo a qual a redenção do homem se daria pelo
trabalho – e que na contemporaneidade estes preceitos religiosos sofreram um
processo de distorção pela ideologia capitalista, no qual se igualou o ócio ao tédio. Já
de acordo com o paradigma capitalista vigente nos dias de hoje, o ócio não passa de
37
perda de tempo. Desta forma, a ideologia contemporânea nos diz que não produzir é
perder dinheiro, algo inadmissível em tempos de globalização.
Matos (Ibidem) aponta que na contemporaneidade o ócio vem sendo
substituído pelo lazer, atividade que, segundo a autora, tem características distintas,
pois no primeiro se enfatiza a contemplação e o não-fazer, permitindo a livre
manifestação da criatividade. Já no segundo, aparece um agir que rompe com o fazer
cotidiano, mas que serve apenas para “matar o tédio”. Este agir irrefletido dificilmente
rende algum ganho qualitativo para o sujeito já que, na grande maioria das vezes, é
constituído por atividades alienantes e culturalmente pouco significativas.
Aparentemente, esta atmosfera social baseada na produtividade cria um estado
psicológico no qual o outro é o concorrente a ser sobrepujado. Neste sentido, os
vínculos sociais tendem a dar maior ênfase aos interesses do que à afinidade,
acarretando em um proceder que reforça a visão primordialmente utilitarista dos seres
humanos.
No existir cotidiano da população, notamos que este tipo de atitude objetificante
é predominante em eventos de massa, onde a individualidade submerge frente à
excitação das multidões. No entanto, gostaríamos de chamar a atenção para dois
exemplos de participação no coletivo que tem características diversas dos primeiros.
O primeiro exemplo é o que se dá no meio virtual, no caso específico do
fenômeno dos sites de redes sociais. Nestes a publicização da vida privada
aparentemente visa privilegiar apenas o bem-estar, o bem viver e o sucesso, de
maneira similar às campanhas publicitárias comerciais. Visa-se a valorização do eu e
ocorre um esforço continuo pelo marketing pessoal, que compreende desde a
divulgação de um momento de alimentação sofisticada até a exposição de bens e
materiais adquiridos que ostentam uma imagem de sucesso financeiro.
Supostamente, este tipo de comportamento motiva a inveja e a baixa
autoestima dos amigos que compartilham da mesma rede, em um esforço contínuo
para sobrepujar o outro e conseguir, momentaneamente, um lugar de destaque ao
Sol. Vive-se uma disputa acirrada, mesmo que de maneira velada, entre o eu e os
outros que, ao menos no meio virtual, são frequentemente compreendidos não como
outros seres humanos, mas sim como objetos cuja publicação nas redes sociais
fomentam a disputa por destaque social e eclipsiam a compreensão do outro como
uma alteridade.
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tido um filho ilegítimo e temia que ele a abandonasse por este motivo. A partir do que
é relatado por Jung, durante este período ela apresentou intensas crises de ansiedade
ao deslocar o medo da descoberta de seu segredo de possuir um filho para o pecado
da remoção dos dentes. Jung afirma que ela desloca sua culpa e seu medo para o
procedimento odontológico, pois quando alguém não pode confessar um grande
pecado, enfatiza um menor.
No artigo “A vida simbólica”, Jung cita a neurose de ansiedade como uma das
consequências do esvaziamento simbólico do mundo. Segundo sua compreensão, a
escassez de simbolismos faz com que o significado divino do existir se perca e o
sentido da vida se volte para o pragmatismo do dia-a-dia. A falta de uma conexão com
o transcendente compele os indivíduos à identificação com o grupo e reforça o
comportamento massificado. Isto decorre do fato da identificação grupal ser um meio
pelo qual indivíduo pode extrapolar sua individualidade, gerando uma sensação de
conexão e pertencimento a um coletivo. Este, mesmo que de modo precário, passa a
substitui o papel do transcendente. A precariedade decorre do fato de, ao contrário do
papel desempenhado por um simbolismo transcendente que orienta a indivíduo para
uma conexão com o universo, a conduta de vida referenciada no grupo se vale
primordialmente da perpetuação, expansão e manutenção da estrutura grupal, não
propiciando um profundo significado existencial, devido à ausência do numinoso
(JUNG, 1961/2013a).
Devido à escassez de material referente ao tema ansiedade nas obras
completas, tornou-se conveniente uma exposição mais detalhada sobre o que, para
ele era considerado do ponto de vista psicológico como normalidade e psicopatologia.
resistir às intenções da consciência e, deste modo, têm liberdade de ir e vir a seu bel-
prazer, assim são imunes ao controle da consciência. Separados dela, levam uma
existência à parte na esfera obscura da psique de onde podem, a qualquer hora,
impedir ou favorecer a atividade consciente (JUNG, 1928/2013c, p. 532-533).
Nos neuróticos estes conteúdos complexos consistem em conteúdos
dissociados, mas organizados sistematicamente, facilitando, por isso, a sua
compreensão.
Já nos histéricos e esquizofrênicos existe uma quantidade exagerada de
distúrbios com carga energética extraordinária, cujo significado está em oposição à
consciência. Neste caso, o inconsciente se apresenta autônomo e incontrolável, e
seus conteúdos não apresentam uma organização sistemática, manifestando-se de
forma desorganizada e caótica em similitude às vivenciadas nos sonhos (JUNG,
1953/2013, p. 367).
Deste modo, Jung e seu colaboradores passaram a investigar as
psicopatologias a partir de seus significados psicológicos e, para tanto, buscavam
estudar de forma cuidadosa a história de vida pregressa do doente. Por meio desta
abordagem, se tornou possível a compreensão da ocorrência dos sintomas
patológicos que não apresentavam qualquer relação com um possível quadro
orgânico. (JUNG, 1908/2013, p. 182-183).
O método de associação de palavras se mostra muito valioso para a
psicopatologia, pois serve de auxílio diagnóstico dos complexos patológicos (JUNG,
1905/2012, p. 399). Falando sobre a técnica de aplicação do teste de associação de
palavras, as palavras-estímulo vinculadas a complexos ricamente energizados
apresentam um tempo de reação prolongado e outros distúrbios orgânicos. A partir
disso, pode-se estipular que as palavras-estímulo são parte de uma realidade
inconsciente que atua sobre nós. A ocorrência de tais distúrbios denuncia certa
deficiência adaptativa à realidade do indivíduo testado. Quando a quantidade de
interferências dos complexos é muito grande sobre a consciência e provoca
comportamentos desadaptativos, pode-se falar em psicopatologia. “A doença é uma
adaptação deficitária; neste caso trata-se então de algo doentio na psique, de algo
apenas temporariamente patológico ou de duradouramente patológico, isto é, de uma
psiconeurose, de um distúrbio funcional da mente” (JUNG, 1910/2012, p. 498).
45
Jung afirma que “A psique é o eixo do mundo (...)” (JUNG, 1946/2013, p. 167),
isto significa dizer que ela não é só uma das condições essenciais para a existência
do mundo, mas também uma interferência na ordem natural existente. Desta forma,
qualquer alteração de princípio em um dado fator psíquico tem grande repercussão
sobre a imagem que formamos da realidade e o conhecimento daí decorrente. A
psicologia complexa busca operar a integração de conteúdos inconscientes na
consciência, atuando assim como um instrumento de alteração de princípios
psíquicos, de modo a confrontar a consciência egóica com os conteúdos coletivos
inconscientes.
Sendo assim, a concepção de mundo apresenta um componente subjetivo
importante baseado na consciência do eu. Jung (Ibidem, p. 168) aponta que a mesma
possivelmente depende de dois fatores: o primeiro, de condições da consciência
coletiva (social), que são aceitos como valores universais; o segundo, dos arquétipos,
ou dominantes do inconsciente coletivo, são comumente rejeitados por serem tidos
como irracionais, sem sentido, tendo sua influência ignorada.
Compreende-se assim que, para Jung, a visão de mundo dominante mostra-se
incapaz de entender o contexto no qual o indivíduo está imerso ao ser unilateral e
ignorar o fato de que “(...) entre a consciência coletiva e o inconsciente coletivo há um
contraste quase intransponível no qual o próprio sujeito se acha envolvido” (JUNG,
1946/2013, p. 168).
O autor aponta que, caso o indivíduo conscientemente se identifique com os
conteúdos da consciência coletiva, compele a repressão dos conteúdos psíquicos
opostos, os conteúdos que compõem a inconsciência coletiva. Isto potencializa
energeticamente os conteúdos reprimidos e o próprio mecanismo de repressão.
Quanto mais a carga inconsciente se eleva, mais assídua e fanática é a atitude
repressiva da consciência. A força da polaridade inconsciente pode aumentar tanto
que começa a induzir a consciência, desapercebidamente a atuar sua polaridade
oposta até que, em dado momento, atinja um ponto de virada, e se inicie o processo
49
A autora relata que uma das ideias principais de Jung é que o ser humano
moderno se alienou do “substrato mitopoético” do seu ser. Falta-lhe, portanto, a
conexão com os símbolos grandes e ele não é mais capaz de inventar histórias
simbólicas sobre a sua vida – provavelmente, porque tudo acontece rápido demais –
e perde a capacidade de perceber o significado da vida. Ela ainda afirma que muitos
terapeutas acreditam que a vida das pessoas está se tornando cada vez mais “plana”:
o pensamento simbólico está sendo esquecido, o que faz com que o mundo seja visto
como um conjunto de fatos isolados, e não em contexto referencial; além do mais, há
uma perda de conhecimento cultural, o que é lamentável, porque as histórias da
literatura mundial são um aspecto importante da consciência cultural do ser humano,
pois, a partir delas, podem-se encontrar imaginações e conhecimentos que ajudam a
lidar com situações existenciais semelhantes.
Além do mais, entende-se que quando o presente é compreendido como
atualidade, perde-se a duração e a sensação de que se pode confiar em algo. Confiar
em algo implica em duração temporal. Se não pudermos mais confiar em algo ou em
alguém, porque hoje vale isso e, amanhã, algo diferente, reagiremos com um
sentimento de insegurança e medo. Não se pode confiar nem em si mesmo, nem em
outras pessoas. Poder confiar em outra pessoa é, porém, essencial no convívio com
ameaças, com todas as imponderabilidades da vida (KAST, 2016).
Segundo a autora, a sombra da aceleração é a estagnação e a paralisia não
só no mundo exterior, no qual precisamos movimentar artificialmente nosso corpo
52
Comparando ansiedade com o medo, o autor conclui que eles são dois
sentimentos diferentes, mas que acabam por se misturar de tal forma que em certas
circunstâncias não é possível diferenciá-los.
A seguir, serão apresentados sucintamente produções científicas que podem
caracterizar uma nova roupagem daquilo que Jung compreendia como massificação.
Elas versam sobre a influência negativa da informática e da internet decorrentes de
sua má utilização. Neste sentido, o meio digital pode propiciar uma agudização do
processo de massificação ao facilitar a criação e vivência de uma fantasiosa que
facilita a fuga da realidade e da ansiedade a ela inerente. Neste sentido, apresentamos
algumas abordagens em relação ao uso indevido do meio digital na sociedade
contemporânea.
Fortim (2013) buscar compreender o uso patológico da internet através de
autorrelatos de pessoas que se declaram viciados de internet. Ela afirma que, entre
outras causas para o vício, o uso patológico da internet é tido como estratégia de
coping, de enfrentamento de situações de estresse e de ansiedade. Os indivíduos
pesquisados relatam sentir prazer no controle das atividades e na possibilidade de
evasão da realidade; na facilidade e disponibilidade de acesso a materiais; na
infinidade de informações e pessoas acessíveis para contato. Contudo, o prazer
aditivo da internet faz com que a vida fique restrita ao computador.
Fortim se refere aos vícios como formas de evitar o confronto com os estados
sombrios e pantanosos da alma. Eles são entendidos como técnicas de administrar a
ansiedade, quer a pessoa esteja consciente ou não de estar ansiosa. A solidão que
se vive é temporariamente substituída pela fusão com um Outro, o que cura a ferida
primordial que todos carregamos e faz a ansiedade recuar naquele período. Contudo,
tais efeitos saudáveis não perduram e o comportamento precisa ser repetido. Para
que haja libertação deste estado sombrio, os indivíduos precisariam correr o risco de
suportar o insuportável e compreender qual ideia do passado gera os comportamentos
de defesa atuais (FORTIM, 2013).
Muitos dos sujeitos da pesquisa afirmam que utilizam a internet como forma de
se sentirem melhor ou se aliviarem de sentimentos negativos: ansiedade, stress, raiva,
tristeza, depressão, pressões no trabalho, tensão, crises de pânico, solidão,
sentimento de vazio, insatisfação insegurança, baixa autoestima, cansaço ou
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chateação. Também para fugir da realidade. Eles acreditam que a internet seja capaz
de fazer esquecer ou minimizar sentimentos ruins, como a ansiedade.
Para a autora, o manejo de sentimentos ruins e a tentativa de fuga da realidade
são dois dos principais motivadores do uso patológico da internet. A dependência está
ligada à necessidade da construção de um espaço transicional que se dá entre a vida
real e os problemas. Ao invés dos usuários utilizarem a rede como meio de superar
seus problemas, eles a usam de modo repetitivo e pouco criativo e ficam presos em
um mundo meio ilusório e meio real. O uso patológico da internet provoca tanto prazer,
quanto medo e ansiedade, estando relacionados tanto a estados depressivos, quanto
com os Transtornos Ansiosos (FORTIM, 2013).
Farah (2009) discute sobre comportamentos e vivências dos usuários da
internet, a partir de observação participante quando coordenava o Núcleo de Pesquisa
da Psicologia em Informática – NPPI (serviço de informática da Clínica Escola da
PUC-SP). Ao falar sobre identidades virtuais, a autora afirma que os perfis fakes
(personagem virtual comum entre pré-adolescentes em 2008, principalmente no
Orkut) são vias de expressão das ansiedades típicas deste período do
desenvolvimento humano: ser aquilo que desejam ser, conflitos com os pais,
autoestima e autoafirmação, a busca por reconhecimento grupal, identidade de
gênero, etc.
Outros aspectos sobre a atuação da ansiedade sobre a saúde do ser humano
se revelam como somatizações, algumas vezes fatais e, de maneira geral, causam
grande prejuízo ao indivíduo.
Paiva (2014) ao abordar questões médicas, aponta a ansiedade como fator
inibidor da eficácia da imunoterapia para o câncer. Através da mediação do sistema
imunológico, a ansiedade, a depressão, a angústia, as distimias afetivas e o estresse
psicossocial fazem com que o indivíduo seja mais susceptível a certas patologias
crônicas, como o câncer, por exemplo.
Segundo a autora, há uma exacerbação das tensões nas relações entre o
indivíduo e a sociedade, o que é expresso em diversas patologias dentro da área da
saúde mental: as patologias da urgência (relacionadas ao tempo e à ação), as dos
excessos (patologias alimentares e adicção) e as maquínicas (hiperfuncionamento de
si).
57
que não se deseja possuir como atribuição. Embora isto seja muito custoso
emocionalmente ao analisando, sua negligência mantém o indivíduo sob a atuação
destes fatores inconscientes que autonomamente direcionam o seu existir. A
cronificação da sombra faz com que a alma perca sua vitalidade, tornando-se árida,
vazia e, potencialmente, um fator causador de ansiedade. Esta contribui para o
isolamento social e pode culminar em uma depressão. Portanto, ao se trabalhar com
a sombra, o analista deve auxiliar seu paciente a lidar conscientemente com os
impulsos imorais que lá se ocultam. Todavia, este trabalho permite que a pessoa trave
contato com sua dimensão reprimida de seu inconsciente, relativizando a
unilateralidade consciente, de tal modo a permitir uma maior autenticidade da
individualidade ao abrir portas de comunicação com a totalidade psíquica.
Outro fator causador da ansiedade é a consciência da finitude da vida. O
trabalho apresentado a seguir exemplifica este tipo de ocorrência.
Ao analisar a situação de vida de idosos, tanto institucionalizados como ou não,
Santana (2014) afirma que a ansiedade é uma experiência emocional desagradável.
Ela pode ocorrer sem uma causa óbvia e, comumente, é acompanhada de alterações
fisiológicas e comportamentais que se assemelham às eliciadas pelo sentimento de
medo. A autora considera a morte como a maior fonte de ansiedade para o ser
humano. A ansiedade frente à morte produz sensações de angústia, castração e de
desintegração do ego.
Apesar de sua similitude, a autora considera necessário distinguir o medo da
ansiedade. O primeiro, é uma reação de fuga diante de um perigo conhecido,
enquanto a segunda é uma resposta a situações desconhecidas, nas quais não se
sabe o modo de evitar o perigo (SANTANA, 2014).
Outro tipo de prejuízo causado pela ansiedade tem consequências diretas
sobre a economia e a saúde pública de uma população. Neste sentido, será exposto
um trabalho científico que aborda a temática da ansiedade a partir de uma perspectiva
social.
Para Morais e colaboradores (MORAIS, L. V. D.; CRIPPA, J. A. S.; LOUREIRO,
S. R, 2007), o transtorno de ansiedade funcional é caracterizado por medo acentuado
e constante frente a situações sociais ou de desempenho, causando diversos
prejuízos funcionais na vida dos indivíduos que padecem deste transtorno. Esse
transtorno afeta todos os aspectos da vida do indivíduo e diminui consideravelmente
60
de autoconhecimento por via da lida com seu daimon interior. A felicidade lhes é
outorgada apenas após a conclusão de uma série de tarefas ou enfrentamento de
desafios. Psicologicamente, o término das tarefas representa o momento no qual a
personagem assume para si a responsabilidade por seu processo de individuação,
caminhando em direção à uma personalidade mais autêntica.
Sobre ansiedade de superação da vinculação simbiótica entre pais e filhos,
Kast (2006) afirma que a manutenção deste tipo de vinculação pode ser uma das
formas de se evitar a ansiedade.
Manter-se em uma sistemática simbiótica - mesmo que apenas com figuras
paternais psicologicamente internalizadas - promove simultaneamente uma falsa
segurança contra a ansiedade do responsabilizar-se pelas próprias ações, nos
mantendo inconscientes e atuantes dos complexos parentais não elaborados. Desta
forma, damos vida aos sonhos e omissões conscientes e inconscientes de nossos
ancestrais e nos mantemos em grande parte desconectados de nós mesmos. Esta
desconexão permite uma isenção parcial de culpa, já que em detrimento de nosso
senso ético e moral, nos respaldamos por um suposto modo de proceder embasado
por complexos parentais que asseguram a nossa decisão (KAST, 2006).
Para outros autores junguianos, a ansiedade pode ser vinculada a
manifestação da consciência egóica.
Neste sentido, HALL(1988 apud GIGLIO 1992) aponta inicialmente que o
enfoque da Psicologia Analítica de Jung não difere muito do psicanalítico quanto a
psicogênese da ansiedade. Assim, para os junguianos a ansiedade é a manifestação
na consciência egóica, de um sinal de alarme a respeito de uma ameaça do
inconsciente em relação ao Ego.
O psiquiatra James Hall diferencia, todavia, pelo menos dois tipos de
ansiedade, segundo sua psicogênese: ansiedade da Persona e ansiedade da
Sombra.
A primeira é definida como um “medo” de revelar ao psicoterapeuta os detalhes
da própria vida HALL (1988, p. 26). Não me parece, entretanto que este fenômeno,
de sentir medo da invasão da própria alma pelo terapeuta, caracterize propriamente
uma verdadeira ansiedade, pois neste caso a emoção medo está muito mais vinculada
a um perigo de fora – a fantasia de invasão – do que propriamente do interior da
psique. É bem verdade que esta invasão de fora pode ameaçar o paciente pelo perigo
63
3. DISCUSSÃO
compreendido como uma relação Eu/Isso. Uma alternativa para a superar a tensão
social crescente nos grandes centros urbanos seria a humanização, via empatia, da
visão que um indivíduo tem do outro. Esta é uma alternativa viável pois, segundo o
seu entendimento, a “... empatia com a realidade da outra pessoa ou de outros grupos
poda o ódio e a agressão” (JACOBY, 2011, p. 105).
Esse autor discorre sobre o que constituiria um relacionamento humano sincero
em termos da característica de vinculação afetiva. Para Jacoby (2011), as relações
humanas sinceras são baseadas em uma dinâmica vinculativa na qual a nossa atitude
frente ao outro nos permite encará-lo ora como alteridade (Eu/Você), ora como objeto
(Eu/Isso).
O autor aponta que a relação Eu/Isso sempre deixa algo de fora, não sendo
nunca uma relação inteira, pois o outro não é percebido em sua integralidade, mas
como uma espécie de depositário das projeções transferenciais da realidade psíquica.
A separação das realidades do eu e do outro é parcialmente diluída. Se essas
projeções irrealistas forem intensas, o outro é reduzido exclusivamente a um Isso (um
objeto meu) e a possibilidade de uma relação humana entre alteridades é eclipsada.
Ele argumenta que apesar de graus variados, a dinâmica transferencial se faz
presente em todos os tipos de relacionamento humano e “... surge da necessidade
inconsciente interna de colocar a outra pessoa em um certo papel.” (JACOBY, 2011,
p. 98). Neste sentido, a transferência é caracterizada por ele como a variável do grau
de irrealidade das projeções que fazemos ao conceber a subjetividade de outra
pessoa. Em suas palavras: “Parece claro, portanto que toda relação humana é
colorida, em um certo grau, pela transferência, isto é, por projeções inconscientes”
(JACOBY, 2011, p. 102).
O autor nos aponta que: “De maneiras sutis, a relação Eu/Isso faz o seu papel
em praticamente todas as conexões próximas”. (2011, p. 91).
“Na relação transferencial, as pressões das necessidades internas criam
distorções que causam violência à existência e à inteireza da outra pessoa” (JACOBY,
2011, p. 94).
O relacionamento de atitude Eu/Você genuíno não é algo fácil de ser alcançado
“... pois permitir uma liberdade separada do outro conflita com a necessidade de união
e fusão” (JACOBY, 2011, p. 103). Ele aponta que a atitude Eu/Você, para ser viável,
precisa estar vinculada a um processo interno de diferenciação entre quem é o sujeito
67
Bragarnich (2012) aponta que Jung concebia o ser humano como sendo
influenciado por duas instâncias. De um lado, se encontram os arquétipos e, de outro,
os valores do espírito da época.
O espírito da época pode ser compreendido simplificadamente como os
preconceitos e comportamentos tidos como padrão em uma dada sociedade e em um
dado período de tempo. São tidos pela consciência coletiva da sociedade como
verdadeiros e universais. Tais valores, devido a sua força social, frequentemente
causam a identificação do ego com a consciência coletiva. Esta identificação produz,
necessariamente, um homem massificado com propensão a comportamentos
primitivos e destrutivos. O único modo que o ego tem para escapar desta profunda
ameaça é reconhecer a existência e a importância dos arquétipos e de sua própria
sombra4 sobre a sua conduta consciente. O contato com os simbolismos arquetípicos
constitui uma defesa eficaz contra as influências da consciência social e do risco de
identificação com ela.
Bragarnich (Ibidem) aponta que Jung vislumbrava uma relação dinâmica entre
a consciência coletiva e o inconsciente coletivo. Isto implica que quando o indivíduo
conscientemente se identifica e adere aos conteúdos da consciência coletiva, compele
a repressão dos conteúdos psíquicos opostos, os conteúdos que compõem a
inconsciência coletiva. Isto potencializa energeticamente os conteúdos reprimidos e o
próprio mecanismo de repressão. Quanto mais a carga inconsciente se eleva, mais
assídua e fanática é a atitude repressiva da consciência. A força da polaridade
inconsciente pode aumentar tanto que começa a induzir a consciência a
desapercebidamente a atuar sua polaridade oposta até que, em dado momento, atinja
um ponto de viragem, e inicie o processo de enantiodromia, no qual a consciência
passa por uma inversão de seus valores. Assim, quanto maior for a identificação da
consciência individual com a consciência coletiva, mais enfraquecido e subjugado
será o ego em relação as influências inconscientes.
O mesmo processo descrito acima com relação ao indivíduo, pode ser
observado com relação à tentativa das ciências de elaborarem uma ordenação
racional do mundo. Para o autor, quanto mais obstinadamente a razão busca
4
Jung aponta que, de modo geral, a sombra contém qualidades infantis e primitivas, sendo vulgar,
inadequada e incômoda, abrigando, assim, as chamadas más-tendências. Ele chama atenção para o
fato de que, se trabalhada, a sombra pode vivificar e embelezar a existência (JUNG, 1939/2012c, p.
99).
70
identificar, classificar e ordenar o que existe de obscuro na consciência, mais nos põe
sob domínio desta mesma obscuridade. A própria religião, que servia de contraponto
a unilateralidade da existência mundana foi, aos poucos, sendo racionalizada e se
afastou do seu simbolismo original, o seu Eros maternal. Este mesmo fenômeno
ocorreu igualmente no âmbito da Psicologia, que em muitos casos passou a ter ênfase
pragmática e racionalista.
A proposição de estratégias junguianas que possam colaborar para a
modificação status quo em que as sociedades ocidentais se encontram e torná-las
menos nocivas à alma humana, é abordada a seguir.
Samuels (1991) discute a psicologia por trás dos processos políticos, no intuito
de apontar novas áreas e modos de pensar neste campo que permitam mudanças
não-violentas e a resolução de conflitos na sociedade moderna. O seu objetivo é
contribuir para o desenvolvimento de uma forma de análise política e cultural. Em sua
compreensão, o termo política é compreendido como os modos de organização
existente em uma cultura ou entre um grupo de países para controlar e delegar
recursos e principalmente poder, em especial o econômico. Ao nível social, isto
significa controle político e econômico dos meios de informação e representação,
possessão dos meios estratégicos para sobrevivência e o uso da força física de
repressão. Ao nível mais individual, o poder político se vincula a habilidade de escolher
livremente quando e como agir para lidar com uma situação específica. O termo
política também se refere à existência de uma inter-relação entre a dimensão pública
e privada do poder − esta conexão se dá entre o poder econômico público e a
manifestação do poder ao nível doméstico. Compreende-se assim que a conduta
individual é uma atitude política.
Samuels (1991) entende que a psicologia profunda pode contribuir de maneira
muito significativa nos processos de mudança e transformação políticas ao atuar na
intersecção entre o público e o privado, ou, melhor posto, do político com o pessoal.
Deste modo, ele acredita que devemos trabalhar nos consultórios de psicologia a
adoção de uma atitude mais elaborada em relação à política. Isto porque,
psicologicamente, o compromisso político e envolvimento com o mundo externo é tão
valioso quanto o envolvimento com o mundo interno.
Como “(...) todos os elementos da cultura estão sofrendo uma fragmentação e
‘balcanização’” (SAMUELS, 1991, p. 102) a análise psicológica dos processos
71
políticos que mantém a cultura integrada tem se torna muito complicada. Apesar do
sentimento de ansiedade gerada por essa fragmentação cultural, muitas pessoas têm
desafiado a ideia de que este seja um processo que apresenta somente
consequências negativas, visto que tais mudanças também parecem estar curando o
poder político e social.
Mesmo frente ao turbilhão de um mundo aparentemente sem fronteiras
culturais, ao temor de um futuro ecológico horrível e o da guerra, surge uma tentativa
também fragmentária de ressacralização da cultura atual. Esta tendência é
compreendida pelo autor como uma tentativa de resgatar a vivência do sagrado no
mundo material e secular. Sua posição como psicólogo frente a esta tendência é
buscar compreender o que está acontecendo, de modo a tentar extrair o significado
de algo ainda imperceptível, mas que já se encontra manifesto. A partir de sua análise,
o autor nota um sentimento coletivo de descontentamento crescente com o mundo
político vigente. Ele provém da percepção da futilidade e crueldade de grande parte
da vida moderna. Ele inspira um desejo de expiar as injustiças sociais e os
sentimentos negativos que a acompanham, de modo a podermos nos livrar da
preocupação com a própria destrutividade e negatividade inerentes ao modelo social.
Assim, para o autor, existe um “(...) desprezo culposo pelo capitalismo (...)”
(1991, p. 103), no qual se faz uma cisão entre o lado fraudulento e o construtivo da
economia de mercado e do capital. Como esta cisão carece de um meio de expressão
para a manifestação do sentimento de descontentamento acabamos adotando uma
perspectiva unilateral de compreensão da realidade. Desta forma, se mantivermos
uma cisão entre as polaridades positivas e negativas da cultura e da política, o desejo
de transformação e reparação almejado pela ressacralização não acontecerá, pois
uma grande parcela da realidade concreta será menosprezada na equacionalização
desta problemática.
Sob influência da polaridade negativa, temos as ansiedades decorrentes do
temor sobre um fim apocalíptico da humanidade. O autor afirma que estas ansiedades
certamente têm base na realidade, visto que o efeito estufa, epidemias e a
possibilidade de uma guerra nuclear são ameaças concretas. Ao analisar a fantasia
por trás desta compreensão negativa, o autor afirma que tais temores expressam de
forma patente um desprezo autopunitivo.
72
modificação da cultura para que esta passe a valorizar o bem-estar de todos os seus
membros e propicie o desenvolvimento de suas alteridades. O autor reforça que estas
tendências de pensamento antagônicas não apontam nenhuma contradição ou
incongruência sociocultural, sendo uma polarização harmônica para a humanidade
por gerar uma autocrítica e a necessidade de aprimoramento.
Samuels (1991) indica que as questões econômicas são os motivos
preponderantes para a ocorrência de manifestação e engajamento psicológico dos
indivíduos (e também, das sociedades) em relação a movimentos que pressionam por
mudanças econômicas e culturais. O autor destaca que esse mote econômico
aparece com destaque especial nos movimentos pacifistas. O seu panorama também
indicia que as relações de poder dentro de uma sociedade − ou no mundo como um
todo – têm suas variações diretamente relacionadas com a proporcionalidade da
distribuição riqueza entre seus membros.
Como o processo de ressacralização é atuante sobre a cultura Ocidental, se
faz necessário termos clareza de que todos estamos capturados por essa tendência
de secularização do sagrado. Ao mesmo tempo em que se viabiliza, a ressacralização
é ameaçada pela compreensão polarizada que temos sobre a cultural, a política e a
economia. A compreensão cindida da realidade gera o descontentamento e culpa, que
somada a atuação inconsciente dos dinamismos negativos do trapaceiro reprimido,
tendem a minar qualquer projeto de ressacralização.
Samuels (1991) nos compele a desafiar a padronização dos limites, sejam
estes entre a psicologia e a política, entre o público e o privado, entre a teoria e a
prática, entre o mundo externo e interno ou entre o desenvolvimento psicológico do
indivíduo e o desenvolvimento político. Isto permite que uma nova compreensão sobre
estes temas que podem ser de muitas formas favoráveis para a renovação da
sociedade.
O autor finaliza alertando que para se introduzir as questões políticas na
psicologia profunda, é necessário inicialmente compreender como funcionam e quais
são os mecanismos atuantes da economia e da política. Nada nesta direção é possível
caso esse primeiro passo não seja cumprido.
Do ponto de vista da atuação da Psicologia Analítica para a implementação de
mudanças na realidade social, alguns autores compreendem esta escola mais como
74
exerce. Ao mesmo tempo, tal valorização social possibilita que a pessoa se exima da
preocupação com suas demais extensões psíquicas que integram sua individualidade.
Apesar disso, Maroni (1995) aponta o processo de diferenciação e
especialização de uma função psicológica tem um papel preponderante no
desenvolvimento da sociedade, pois permite um grande desenvolvimento do coletivo,
apesar de este se dar em detrimento do indivíduo. Assim, a cultura se vale do indivíduo
como instrumentos para seu desenvolvimento. Este fato sugere que a humanidade
ainda não atingiu realmente um estado de cultura, pois enquanto esta necessitar do
sacrifício do indivíduo como instrumento para a sua existência, ainda não se tornou
uma cultura de fato.
Esta cisão causada pela cultura/civilização, via especialização de uma função
psíquica do indivíduo, produz uma diferença marcante entre o que se é como indivíduo
e a representação social por ele exercida. Assim, ao se identificar com uma função
coletiva, o indivíduo pode desfrutar de grande prestígio e reconhecimento social; em
contraste, como individualidade, pode ser impulsivo, descomedido, irresponsável etc.
se comportando como um verdadeiro bárbaro.
De acordo com a autora, Jung se interessa profundamente pela ideia educar
também o adulto, e não apenas a criança. Todavia, Maroni (Ibidem), ressalta que Jung
compreende que não se pode ignorar o que existe de infantil na personalidade do
indivíduo adulto e que, para isso, se faz necessária a adoção de uma pedagogia
específica, destinada ao desenvolvimento da personalidade.
A autora afirma que para Jung, a educação da personalidade é um movimento
que exige esforço e dedicação em direção à meta da realização máxima da índole
inata do ser humano. Este desenvolvimento permite que o homem atinja a liberdade
ao propiciar uma relação harmônica entre as instâncias consciente e inconsciente da
psique, desta forma, a educação da personalidade é uma tarefa infinita.
Para reparar a ferida civilizatória do homem, a autora afirma que Jung propõe
o uso da fantasia ativa e/ou na imaginação criadora. Para ele, a fantasia ativa seria
uma das formas de atividade psíquica mais elevadas por ser a expressão unificadora
das funções e dos tipos psicológicos. A fantasia ativa/impulso lúdico é valorizada por
Jung porque estes são meios para a unificação das funções psíquicas. Maroni
(Ibidem) salienta que é um equívoco acreditar que Jung seja um autor que privilegia o
inconsciente coletivo, ou que valoriza restritamente a instância psíquica do
76
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
*
Baseadas na norma NBR 6023, de 2002, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
<https://sapientia.pucsp.br/bitstream/handle/14977/1/Gisele%20Falanga%20Capela
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_________. Prefácio à primeira edição inglesa (1958). In: Um mito moderno sobre
as coisas vistas no céu. Tradução de Eva Bornemann Abramowitz. Obra Completa
10/4. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 15-146.
_________. Editoriais (1935). In: Escritos diversos. Tradução de Eva Stern; Lúcia
Orth. Obra Completa 11/6. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 27-32.
_________. O estado atual da psicologia aplicada (1907). In: A vida simbólica.
Tradução de Araceli Elman; Edgar Orth. Obra Completa 18/1. 7 ed. Petrópolis:
Vozes, 2013. p. 351-352.
_________. Prefácio do livro de Perry: “The self in psychotic process” (1953). In: A
vida simbólica. Tradução de Araceli Elman; Edgar Orth. Obra Completa 18/1. 7
ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 367-370.
KAST, V. A ansiedade e as formas de lidar com ela nos contos de fadas. Tradução
de Gustavo Gerheim. São Paulo: Paulus, 2006. 216 p.
_______. A alma precisa de tempo. Tradução de Markus A. Hediger. Petrópolis/RJ:
Vozes, 2016. 158p.
OMS: Brasil é o país com maior número de mortes de trânsito por habitante da
América do Sul. In: ONUBr – Organização das Nações Unidas no Brasil. Nov. 2015.
Disponível em: <https://nacoesunidas.org/oms-brasil-e-o-pais-com-maior-numero-de-
mortes-de-transito-por-habitante-da-america-do-sul/>. Acesso em: 12 fev. 2016.