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de
Hans Christian Andersen
Inclui os contos:
A Princesa e a Ervilha
O Rouxinol do Imperador
Os Sapatos Vermelhos
Índice
― A princesa e a ervilha
― O rouxinol do imperador
― Os sapatos vermelhos
― A Polegarzinha
― O trigo mourisco
― O patinho feio
― A família feliz
― A pastora e o limpa-chaminés
― O duende da mercearia
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A Princesa e a Ervilha
Era uma vez um príncipe que queria casar com uma princesa — mas tinha de ser uma
princesa verdadeira. Por isso, foi viajar pelo mundo fora para encontrar uma, mas havia
sempre qualquer coisa que não estava certa. Viu muitas princesas, mas nunca tinha a
certeza de serem genuínas havia sempre qualquer coisa, isto ou aquilo, que não parecia
estar como devia ser. Por fim, regressou a casa, muito abatido, porque queria uma princesa
verdadeira.
Deparou com uma princesa. Mas, meu Deus!, o estado em que ela estava! A água
escorria-lhe pelos cabelos e pela roupa e saía pelas biqueiras e pela parte de trás dos
sapatos. No entanto, ela afirmou que era uma princesa de verdade.
— Bem, já vamos ver isso — pensou a velha rainha. Não disse uma palavra, mas foi
ao quarto de hóspedes, desmanchou a cama toda e pôs uma pequena ervilha no colchão.
Depois empilhou mais vinte colchões e vinte cobertores por cima. A princesa iria dormir
nessa cama.
— Oh, pessimamente! Não preguei olho em toda a noite! Só Deus sabe o que havia
na cama, mas senti uma coisa dura que me encheu de nódoas negras. Foi horrível.
Então ficaram com a certeza de terem encontrado uma princesa verdadeira, pois ela
tinha sentido a ervilha através de vinte edredões e vinte colchões. Só uma princesa
verdadeira podia ser tão sensível.
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Então o príncipe casou com ela; não precisava de procurar mais. A ervilha foi para o
museu; podem ir lá vê-la, se é que ninguém a tirou.
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O Rouxinol do Imperador
Sabem com certeza que na China o imperador é chinês e que todas as outras pessoas
são chinesas também. Esta história aconteceu há muitos anos, mas é precisamente por isso
que devem ouvi-la agora, antes que seja esquecida.
O palácio do imperador era o melhor do Mundo, todo ele construído da mais rara
porcelana — não tinha preço, mas era tão frágil e delicado que era preciso tomar todo o
cuidado quando se andava lá dentro. O jardim do palácio estava coberto de flores
maravilhosas, nunca vistas em outro lado; as mais bonitas de todas tinham sininhos de prata,
que tocavam para se saber sempre que passava alguém.
Sim, tudo no jardim do imperador tinha sido muito bem planeado, e ele estendia-se até
tão longe que nem o jardineiro fazia a menor ideia onde acabava. Se se fosse sempre andando
chegava-se a uma bela floresta com árvores muito altas e lagos muito fundos. A floresta ia até
ao mar, que era azul e também muito fundo; grandes navios podiam navegar mesmo por baixo
dos ramos das árvores. Nesses ramos vivia um rouxinol que cantava tão bem que até o pobre
pescador, com todas as suas dificuldades, parava de deitar as redes todas as noites para o
ouvir.
E, quando voltavam aos seus países, continuavam a falar da ave. Sábios escreveram
livros sobre a cidade e o palácio, mas o rouxinol era elogiado mais do que todas as outras
maravilhas, e poetas escreveram emocionantes poemas sobre a ave da floresta perto do mar.
Estes livros eram lidos em todo o mundo, e, um dia, alguns deles chegaram às mãos do
imperador. Lá ficou ele, sentado na sua cadeira dourada, a ler sem parar; de vez em quando
acenava com a cabeça. Estava contente com as esplêndidas descrições do seu reino. Então,
chegou à frase: "Mas, apesar de todas estas maravilhas, nada se compara ao rouxinol."
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— Vi aqui neste livro que temos uma ave admirável chamada rouxinol — disse o
imperador. — Parece que é a melhor coisa do meu vasto império. Por que é que ninguém me
falou dele?
— Quero que venha aqui esta noite cantar para mim — disse o imperador. — É uma
vergonha que toda a gente saiba o que possuo e eu não!
— Nunca ouvi falar nele — repetiu o camareiro —, mas vou procurá-lo e hei-de
encontrá-lo!
Sim, mas onde? O camareiro subiu e desceu todas as escadas, andou por todos os
salões e corredores, mas, de todas as pessoas que encontrou, nenhuma tinha ouvido falar do
rouxinol. Voltou apressado à presença do imperador e disse-lhe que aquilo devia ser uma
história inventada pelos escritores.
— Vossa Majestade Imperial não deve acreditar em tudo o que aparece escrito. As
coisas que os autores inventam! É mesmo magia negra!
— Mas o livro onde eu soube da ave — afirmou o imperador — foi-me enviado pelo
poderoso imperador do Japão, portanto não pode ser mentira! Quero ouvir o rouxinol! Quero
ouvi-lo esta noite.
E lá foi ele outra vez escada abaixo e escada acima, por todos os salões e corredores;
metade da corte andava a correr atrás dele. Por fim, encontraram uma pobre rapariguinha na
cozinha.
— O rouxinol? — perguntou ela. — Meu Deus! Claro que sei! Que bem que ele canta!
A maior parte das noites deixam-me levar para casa alguns restos de comida para a minha
mãe, que está doente. Vivemos perto do lago, do outro lado da floresta. E quando volto para o
palácio, cansada, sento-me um bocadinho e fico a ouvi-lo cantar.
— Não, não, aquilo é uma vaca a mugir! — exclamou a rapariguinha. — Ainda temos
de andar muito.
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— Maravilhoso! — exclamou o capelão do imperador. — Já estou a ouvir a canção!
Parecem mesmo sininhos de igreja!
— Não, não, isso são rãs — disse a rapariguinha da cozinha. — Mas devemos estar
quase a ouvi-lo.
— Lá está ele! — disse a rapariguinha. — Oiçam! Olhem! Está ali! — e apontou para
um passarinho cinzento por entre os ramos.
— Será possível? — exclamou o camareiro. — Nunca pensei que fosse assim. Parece
tão vulgar! Tão simples! Talvez tenha perdido a cor quando viu todas estas visitas
importantes.
— Com o maior prazer — disse o rouxinol, continuando a cantar tão bem que era um
encanto ouvi-lo.
— Parecem mesmo sinos de vidro — disse o camareiro. — Não percebo como é que
nunca o tínhamos ouvido. Vai ser um êxito na corte!
— Querem que torne a cantar para o imperador? — perguntou o rouxinol, que pensava
que uma das visitas era o imperador.
Apesar disso, foi com eles de boa vontade quando ouviu dizer que era desejo do
imperador.
Então, o rouxinol cantou tão bem que o imperador ficou com os olhos cheios de
lágrimas, que lhe escorreram pelas faces; e o rouxinol continuou a cantar ainda melhor, de
modo que cada nota foi direitinha ao coração do imperador. Este ficou muito satisfeito; o
rouxinol, declarou ele, iria receber o seu sapato dourado para usar ao pescoço. Mas este
agradeceu e recusou, porque já se sentia recompensado.
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— Vi lágrimas nos olhos do imperador. Pode lá haver alguma dádiva maior do que
essa? As lágrimas de um imperador têm um poder estranho. Já fui suficientemente
recompensado.
Por que é que não haviam de ser também rouxinóis? Até os lacaios e as criadas de
quarto acenavam, com ar de aprovação, o que significa muito, porque estes são sempre os
mais difíceis de contentar. Não havia dúvida: o rouxinol era um êxito.
Ficaria na corte e teria uma gaiola só para si, com autorização para ir apanhar ar duas
vezes durante o dia e uma vez à noite. Seria acompanhado, em cada excursão, por doze
criados, cada um a segurar firmemente uma fita de seda atada a uma patinha da ave. Não,
essas saídas não eram muito divertidas.
Um dia, chegou um grande embrulho para o imperador. Trazia uma palavra escrita por
fora: ROUXINOL.
Mas não era um livro; era um pequeno brinquedo mecânico dentro de una caixa, um
rouxinol de corda. Tinha o feitio de um verdadeiro, mas estava coberto de diamantes, rubis e
safiras. Quando se lhe dava corda, cantava uma das canções que o verdadeiro passarinho
costumava cantar, e a sua cauda andava para baixo e para cima, brilhando em prata e ouro. A
volta do pescoço trazia uma fita, onde estava escrito: "O rouxinol do imperador do Japão nada
vale comparado com o rouxinol do imperador da China."
Então os dois passarinhos tiveram de cantar juntos, mas não foi um êxito. O problema
era que o verdadeiro rouxinol cantava à sua maneira e a canção do outro saía de uma
máquina.
Então, o pássaro de corda foi posto a cantar sozinho. Agradou quase tanto à corte
como o verdadeiro, e evidentemente que era muito mais bonito à vista, todo brilhante, como
uma pulseira ou um alfinete de peito. Cantou a mesma canção trinta e três vezes sem se
cansar. Os cortesãos não se importariam de a ouvir mais umas vezes, mas o imperador achou
que era a vez do verdadeiro.
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Mas onde estava o rouxinol? Tinha voado pela janela, para a sua floresta verdejante,
sem ninguém dar por isso.
Era a trigésima quarta vez que o ouviam, mas ainda não sabiam bem a canção. Era
difícil de aprender. E o Mestre da Música Imperial teceu à ave os mais altos elogios: era
superior ao rouxinol vivo, não apenas na aparência exterior, mas também no que tinha lá
dentro.
— Ah!
— Lá bonito é... e até parece o rouxinol... Mas parece que falta qualquer coisa, não sei
bem...
O pássaro artificial recebeu um lugar especial numa almofada de seda junto da cama
do imperador; empilhados à volta estavam todos os presentes que lhe tinham dado, todo o
ouro e joias. Foi distinguido com o título de Principal Trovador Imperial da Mesa-de-
Cabeceira, Primeira Classe à Esquerda, porque até os imperadores têm o coração do lado
esquerdo. O Mestre da Música Imperial escreveu um solene trabalho em vinte e cinco
volumes sobre o pássaro mecânico. Era muito extenso e erudito, cheio das mais difíceis
palavras chinesas. Mas toda a gente fingiu que o tinha lido e compreendido. Ninguém queria
passar por estúpido!
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Tudo isto continuou durante um ano, até que o imperador, a corte e o resto do povo
chinês sabiam de cor cada notazinha da canção do passarinho de corda; mas, por isso mesmo,
cada vez gostavam mais dela. Podiam cantá-la em coro — e faziam-no.
Os rapazitos da rua andavam por todo o lado a cantar: rrr, trrr, piu, piu, piu, e o
imperador também cantava — um som maravilhoso, não havia dúvida.
Que golpe horrível! Não se atreviam a pôr o pássaro a cantar mais do que uma vez por
ano, e mesmo isso já era um risco. Contudo, nessas ocasiões anuais, o Mestre da Música
Imperial fazia sempre um discurso cheio de palavras difíceis, dizendo que o pássaro estava tão
bom como sempre — e, claro, uma vez que ele dizia que sim, era porque ele estava tão bom
como sempre...
Passaram cinco anos, e uma grande tristeza abateu-se sobre o país. O povo era muito
amigo do imperador, mas ele estava gravemente doente e não se esperava que sobrevivesse.
Já tinha sido escolhido novo imperador, e a multidão esperava nas ruas que o camareiro lhe
desse notícias. Como estava o imperador? O camareiro abanava a cabeça.
Frio e pálido, o imperador jazia no seu leito real. Na verdade, a corte achava que já
tinha morrido e foi a correr saudar o seu sucessor. Os criados de quarto foram a correr
coscuvilhar uns com os outros e as criadas juntaram-se todas para beberem café,. Tinham sido
estendidos panos pretos em todos os salões e corredores para amortecer o som dos passos, de
maneira que o palácio parecia muito, muito sossegado.
Mas o imperador ainda não tinha morrido. Pálido e imóvel, jazia na sua magnífica
cama com longos cortinados de veludo e pesados cordões dourados. Através de uma janela
aberta lá no alto, a Lua brilhava sobre o imperador e o pássaro artificial.
O pobre imperador mal podia respirar; sentia como se tivesse qualquer coisa a pesar-
lhe sobre o coração. Abriu os olhos e viu a Morte sentada sobre ele. A Morte tinha a coroa de
ouro do imperador na cabeça, numa das mãos segurava a espada imperial de ouro e na outra a
esplêndida bandeira imperial. E, por entre os cortinados de veludo, espreitavam estranhos
rostos: alguns horríveis e outros belos e bondosos. Eram as boas e as más ações do imperador,
que olhavam para ele, enquanto a Morte se sentava sobre o seu coração.
E contaram e lembraram tantas coisas que a testa do imperador acabou por ficar
coberta de suor.
— Nunca soube... nunca percebi... — gritou ele. — Música, música! Toquem o grande
tambor da China! Salvem-me destas vozes!
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Mas as vozes não se calavam. Continuavam sempre, enquanto a Morte acenava com a
cabeça, como um mandarim, a tudo o que diziam.
Mas o pássaro estava silencioso; não havia ninguém para lhe dar corda, e sem corda
não tinha voz. E a Morte continuava a olhar fixamente para o imperador com as grandes
órbitas vazias. Tudo estava calado, terrivelmente calado.
Então de repente, perto da janela, soou a mais bela canção. Era o verdadeiro rouxinol,
que se tinha empoleirado num ramo lá fora. Sabendo do mal do imperador, o passarinho tinha
voltado para o confortar e trazer-lhe esperança.
O Sol brilhava sobre ele através da janela quando acordou, restaurado, desaparecidas a
fraqueza e a doença. Nenhum dos criados tinha lá entrado ainda, porque todos pensavam que
ele estava morto.
— Não faças isso — respondeu o rouxinol. — Fez o que pôde por ti. Guarda-o. Eu não
posso morar num palácio, mas deixa-me ir e vir à minha vontade, e à noite empoleiro-me
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neste ramo, junto da tua janela, e canto para ti. Hei de trazer-te felicidade, mas também
pensamentos sérios. Hei de cantar sobre as pessoas felizes do teu reino, mas também sobre os
que se sentem tristes. Cantarei sobre o bem e o mal, que têm estado sempre à nossa volta, mas
que têm sempre escondido de ti. Os passarinhos voam em todas as direções, até ao pescador, à
casinha do trabalhador, até junto de tantos que estão longe de ti e da tua corte magnífica. Amo
o teu coração mais do que a tua coroa, apesar de a coroa ter algo de mágico. Sim, hei de
voltar, mas tens de me prometer uma coisa.
— A única coisa que te peço é isto: não digas a ninguém que tens um amigo
passarinho que te conta tudo. É melhor guardar segredo.
E, com estas palavras, o rouxinol voou para longe. Os criados vieram ver o amo
morto, mas ficaram ali especados!
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Os Sapatos Vermelhos
Havia uma rapariguinha tão fina e tão graciosa. Como era pobre, andava sempre de
pés descalços no Verão e de Inverno com grandes tamancos de pau. Os pequeninos peitos
dos pés ficavam todos vermelhos, o que era horroroso.
Foi precisamente no dia em que a mãe foi a enterrar que ela recebeu os sapatos
vermelhos estreando-os nesse dia. Não eram propriamente algo a usar no luto, mas não
tinha outros e assim, sem meias, caminhou com eles atrás do pobre caixão feito de palha.
Nesse momento passou uma carruagem grande e antiga. Nela ia sentada uma grande
dama, também de idade, que viu a rapariguinha. Teve pena dela e disse ao padre:
Karen julgou que foi tudo por causa dos sapatos vermelhos, mas a senhora disse-lhe
que eram horrorosos e queimou-os. Porém, vestiu Karen dos pés à cabeça. Teve de aprender
a ler e a coser e as gentes comentavam que ela era muito graciosa.
Uma vez a rainha fez uma viagem através do país e trouxe consigo a sua filha. O povo
correu para defronte do palácio e Karen também. A princesinha estava de pé, numa
varanda, com um fino vestido branco, para que a admirassem. Não tinha nem cauda nem
coroa de ouro, mas calçava belos sapatos de marroquim vermelho. Eram certamente bem
mais bonitos do que aqueles que a mãe do sapateiro cosera para a Karenzinha. Nada no
mundo se podia comparar verdadeiramente àqueles sapatos vermelhos!
Karen estava agora na idade de receber a sua confirmação de fé. Teve novos vestidos
e novos sapatos também. O rico sapateiro da cidade tomou as medidas do seu pezinho. Era
confortável a sua loja e aí havia grandes armários de vidro, com lindos sapatos e botas
lustrosas lá dentro. Tudo tinha um aspeto encantador, mas a velha senhora, que não via
bem, disso não tirou grande proveito. No meio dos sapatos estava um par vermelho, tal e
qual o que a princesa calçara. Como eram bonitos! O sapateiro disse que tinham sido feitos
para a filha de um conde, mas que não lhe serviam.
– Brilham!
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– Sim, brilham! – respondeu Karen. Como lhe ser viam, a velha senhora comprou-
lhos. Mas não sabia que eram vermelhos. Se soubesse, nunca teria permitido a Karen ir à
confirmação com aqueles sapatos. Mas ela foi.
Toda a gente olhava para os seus pés e quando subiu da nave da igreja para a
entrada do coro, parecia-lhe que até mesmo as velhas figuras nas sepulturas, aqueles
retratos de pastores e mulheres de pastores com rígidas golas e longas vestes negras,
fixavam os olhos nos sapatos vermelhos. Só pensava neles quando o pastor lhe pôs a mão
sobre a cabeça e falou do santo batismo, do pacto com Deus e que ela iria ser agora um ser
cristão crescido. O órgão tocava solenemente, as belas vozes das crianças cantavam e o
velho chantre cantava, mas Karen pensava só nos seus sapatos vermelhos.
À tarde, a velha senhora soube por toda a gente que os sapatos eram vermelhos.
Para ela, isso era feio. Não eram próprios. E Karen daí por diante, quando fosse à igreja,
deveria ir sempre com sapatos pretos, mesmo que fossem velhos.
No domingo seguinte foi a comunhão, e Karen olhou para os sapatos pretos, olhou
para os vermelhos… e voltou a olhar para os vermelhos. E calçou os vermelhos.
Estava um belo tempo de Sol. Karen e a velha senhora foram por um atalho
poeirento, através de um campo de trigo.
À porta da igreja encontrava-se um velho soldado com uma muleta e com uma
estranha barba comprida que era mais ruiva que branca. Fora antes completamente ruiva.
Ele curvou-se até ao chão e perguntou à velha dama se podia limpar-lhe os sapatos. Karen
estendeu também o seu pezinho.
– Olha! Que lindos sapatos de baile! – disse o soldado. – Agarre-os bem quando
dançar! – E bateu com as mãos nas solas.
Toda a gente olhou para os sapatos vermelhos de Karen. Todas as imagens olharam
para eles. Quando Karen se ajoelhou em frente do altar e pôs o cálice de oiro diante da boca,
só pensou nos sapatos vermelhos. Era como se os sapatos flutuassem dentro do cálice.
Esqueceu-se de cantar o seu salmo e de recitar o padre-nosso.
Toda a gente saiu da igreja e a senhora subiu para a sua carruagem. Karen levantou o
pé para subir atrás dela, quando o velho soldado que estava por perto lhe disse:
E Karen não pôde resistir, teve de fazer alguns passos de dança e, quando começou,
puseram-se as pernas a dançar. Era como se os sapatos tivessem tomado o poder sobre elas.
Dançou à volta da igreja. Não podia deixar de fazê-lo. O cocheiro teve de correr atrás dela e
agarrá-la, levando-a para dentro da carruagem, mas os pés, esses, continuavam a dançar,
dando cruelmente pontapés na boa velha senhora. Por fim os sapatos saltaram dos pés e as
pernas repousaram.
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Em casa, colocaram os sapatos num armário, mas Karen não resistiu e teve de vê-los.
A velha senhora caiu doente. Diziam que não viveria muito. Tinha de ser tratada e
vigiada e para isso nenhuma pessoa havia mais próxima dela do que Karen. Lá na cidade ia
realizar-se um grande baile e Karen foi convidada. Olhou para a velha senhora, que
certamente não iria viver muito. Olhou para os sapatos vermelhos e pareceu-lhe que não
havia qualquer pecado nisso. Calçou-os, bem podia fazê-lo. Foi ao baile e começou a dançar.
Então brilhou algo por cima das árvores e ela julgou que era a Lua, pois parecia-lhe
ter visto um rosto, mas era o velho soldado com a barba ruiva. Estava sentado, acenou e
disse-lhe:
Ficou assustada e quis lançar fora os sapatos. Puxou com força até rasgar as meias.
Mas os sapatos agora eram parte dos seus pezinhos. E dançou e teve de dançar por campos
e prados, à chuva e ao Sol, de noite e de dia, mas de noite era mais terrível.
Dançou dentro do cemitério aberto, mas os mortos não dançaram, era bem melhor
para eles repousar do que dançar. Queria sentar-se sobre a campa do pobre, onde a atanásia
amarga crescia. Mas para ela não havia descanso nem repouso. Quando dançava em direção
à porta aberta da igreja, viu um anjo com longas vestes brancas e asas que lhe chegavam dos
ombros ao chão. O rosto era severo e grave e nas mãos segurava uma espada, larga e
brilhante.
– Dançarás! – disse ele. – Dançarás com os teus sapatos vermelhos até ficares pálida
e fria! Até que a pele se enrugue como uma múmia! Dançarás de porta em porta e onde
vivam crianças orgulhosas e vaidosas, baterás à porta, para que te oiçam e tenham medo de
ti! Dançarás, dançarás…!
– Misericórdia! – gritou Karen. Mas não ouviu o que o anjo lhe respondeu, pois os
sapatos levaram-na para o campo, pelo portão, por caminhos e atalhos e teve sempre de
dançar.
Uma manhã, passou a dançar por uma porta que conhecia bem. Lá de dentro vinha
um som de salmos. Traziam um caixão para fora, coberto de flores. Soube que a velha
senhora morrera e pareceu-lhe que estava agora abandonada por todos e amaldiçoada pelo
anjo de Deus.
Dançou e teve de dançar, dançar na noite escura. Os sapatos levaram-na por sobre
espinhos e silvas, rasgando-a até sangrar. Continuou a dançar na charneca até uma casinha
isolada. Era aí – sabia ela – que morava o carrasco. Bateu com as pontas dos dedos na
vidraça, dizendo:
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– Venha cá fora! Venha cá fora! Não posso entrar porque estou a dançar!
E o carrasco respondeu-lhe:
– Sabes bem quem eu sou? Corto a cabeça aos homens maus e afirmo-te que o meu
machado está bem afiado.
– Não me cortes a cabeça! – disse Karen. – Senão, não posso arrepender-me do meu
pecado! Corta-me antes os meus pés com os sapatos vermelhos!
– Sofri bastante por causa dos sapatos vermelhos! – disse. – Vou à igreja para que
possam ver-me! – E foi tão depressa quanto pôde, mas quando lá chegou, dançavam os
sapatos vermelhos diante dela. Ficou assustada e fugiu.
Toda a semana esteve pesarosa e chorou muitas lágrimas pesadas, e quando veio o
domingo, disse:
– Ora bem! Sofri e lutei bastante! Acredito que sou tão boa como muitos daqueles
que se sentam de cabeça levantada, lá dentro da igreja!
E assim se encorajou.
Mas não passou da rua que dava para a igreja. Quando viu os sapatos vermelhos a
dançarem diante dela, teve medo e fugiu, arrependendo-se verdadeiramente no coração do
seu pecado.
Ela ficou sozinha no seu quartinho. Não cabia nele mais do que a cama e uma cadeira
e aí se sentou com o seu livro de salmos. E quando, com devoção, o lia, o vento trouxe-lhe os
sons de órgão da igreja. Ergueu o rosto banhado em lágrimas e disse:
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– Oh! Meu Deus, ajuda-me!
Então brilhou o Sol luminoso e, mesmo diante dela, apareceu o anjo de Deus em
vestes brancas, que naquela noite vira à porta da igreja. Mas, em vez da espada aguçada,
trazia um belo ramo verde cheio de rosas. Tocou com ele o teto, e este ergueu-se muito alto.
Onde tinha tocado brilhou uma estrela de ouro. E tocou nas paredes e estas alargaram-se, e
ela ouviu o órgão que soava. Viu as velhas figuras dos pastores e das mulheres dos pastores.
A congregação estava sentada em cadeiras, cantando salmos do livro de salmos. A própria
igreja veio até à pobre rapariga no quarto pequenino e estreito. Ou seria que tinha sido ela
que veio à Igreja? Estava sentada nas cadeiras das pessoas da família do pastor e quando
estas terminaram o salmo e olharam para cima, acenaram-lhe e disseram:
E o órgão soou e as vozes das crianças, em coro, soavam suaves e belas! A clara luz
do Sol jorrava muito quente através da janela sobre a cadeira da igreja em que Karen estava
sentada. O coração ficou tão cheio de luz de Sol, de paz e de alegria, que rebentou.
A alma voou na luz do Sol para Deus e ninguém houve aí que lhe perguntasse pelos
sapatos vermelhos.
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A Polegarzinha
Era uma vez uma mulher que queria ter um filho muito pequenino, mas não sabia
como havia de fazer para encontrar um. Então, foi ter com uma velha bruxa e disse-lhe:
— Gostava tanto de ter um filho pequenino! Não sabes dizer-me onde posso arranjar
um?
— Oh, isso não é difícil — disse a bruxa. — Aqui tens um grão de cevada, e olha que
não é da que cresce nos campos dos lavradores nem daquela que as galinhas comem. Planta
este grão num vaso e verás o que acontece!
Depois foi para casa e semeou o grão. Não foi preciso esperar muito tempo para que
nascesse uma bela flor; parecia uma túlipa, mas as pétalas estavam muito fechadas como se
fosse ainda um botão.
— Que linda flor! — disse a mulher, dando um beijo nas pétalas vermelhas e
amarelas.
Nesse preciso momento, a flor abriu-se com um forte estalido. Era realmente uma
túlipa — agora via-se bem —, mas mesmo no centro da flor, no centro verde, estava sentada
uma menina minúscula, graciosa e delicada como uma fada. Não era maior que metade de
um polegar, e por isso ficou a chamar-se Polegarzinha.
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A cama em que dormia era uma casca de noz muito bem polida; tinha um colchão de
pétalas de violeta azuis-escuras e o seu cobertor era uma pétala de rosa. Dormia ali à noite,
mas durante o dia brincava em cima da mesa, onde a mulher tinha posto um prato de sopa
cheio de água com um círculo de flores à volta, com os caules virados para o meio. Dentro
do prato, a flutuar, estava uma grande pétala de túlipa em que a Polegarzinha se podia
sentar e remar de um lado para o outro usando dois pelos brancos de cavalo como remos.
Era lindo de se ver! Ela também sabia cantar, e tinha a vozinha mais frágil e mais doce que
jamais se ouviu.
Uma noite, quando estava deitada na sua linda cama, um sapo entrou no quarto
através de um vidro partido da janela. O sapo parecia muito grande e estava molhado
quando saltou para cima da mesa onde a Polegarzinha dormia profundamente debaixo da
sua pétala de rosa.
— Ora aqui está uma bela esposa para o meu filho! — disse o sapo.
— Croc! Croc! Brec-rec-rec! — foi tudo quanto disse quando viu a linda menina na
casca de noz.
— Não fales tão alto, se não ela acorda — disse-lhe o pai. — Olha que pode fugir,
porque é leve como uma pena de cisne. Já sei, vamos pô-la no meio do rio, em cima de uma
daquelas grandes folhas de nenúfar! Assim, ela vai pensar que está numa ilha, porque é uma
criaturinha minúscula. Entretanto, nós podemos começar a preparar o melhor quarto
debaixo da lama, para vocês os dois lá viverem.
No regato, havia muitos nenúfares com grandes folhas verdes que pareciam flutuar
soltas na água. A folha que estava mais longe era também a maior de todas, e foi nela que o
velho sapo poisou a casca de noz com a Polegarzinha. A pobre menina acordou muito cedo
e, quando viu onde estava, começou a chorar amargamente, porque havia água a toda a
volta da grande folha e era impossível voltar para terra.
— Este é o meu filho. Vai ser o teu marido, e vocês os dois vão viver muito felizes
numa bela casa debaixo da lama.
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Então, pegaram na bonita caminha e lá foram a nadar com ela, enquanto a
Polegarzinha ficava sozinha na folha verde, a chorar, porque não lhe apetecia nada viver com
o velho sapo nem casar com o filho dele. Ora os peixinhos que nadavam ali por baixo tinham
visto o sapo e ouvido o que ele dissera, de maneira que deitaram as cabeças de fora para
verem a menina. Mas, assim que o fizeram, viram como era bonita e ficaram cheios de pena
por ela ter de ir viver na lama com o sapo. Não, isso não podia acontecer! Juntaram-se em
redor do pé verde da folha em que ela estava e puseram-se a roê-lo sem parar.
Lá foi a folha, flutuando pelo regato, levando a Polegarzinha para longe, cada vez
para mais longe, para onde o sapo não podia ir.
Quando ela passava, os passarinhos nas árvores cantavam "Que linda criaturinha!"
assim que a viam. E a folha lá ia a deslizar, cada vez para mais longe - e foi assim que a
Polegarzinha chegou a outro país.
Uma linda borboleta branca esvoaçava por cima dela e acabou por poisar na folha,
porque tinha começado a gostar da menina. Como ela estava feliz agora! O sapo já não
podia apanhá-la e era tudo maravilhoso à sua volta, para onde quer que olhasse. A água,
onde o sol brilhava, parecia ouro a cintilar. A Polegarzinha tirou o seu cinto e deu uma ponta
à borboleta amiga e atou a outra à folha. Agora é que ia mesmo depressa!
Nesse momento, um grande escaravelho apareceu a voar por cima dela. Assim que
viu a menininha, agarrou-a num ápice pela cintura e voou com ela para o cimo de uma
árvore. A folha verde continuou a flutuar rio abaixo com a borboleta.
Meu Deus!, como a Polegarzinha ficou assustada quando o escaravelho a levou para
cima da árvore! E como teve pena da sua amiga, a borboleta branca! Mas o escaravelho não
queria saber disso. Poisou na maior folha verde da árvore e largou-a aí. Deu-lhe pólen para
comer e disse-lhe que ela era muito bonita, embora não tanto como um escaravelho.
O escaravelho que a tinha levado também era desta opinião, mas quando todas as
escaravelhas disseram que ela era horrível, ele começou a pensar o mesmo e acabou por
não querer saber dela; podia ir para onde quisesse. Várias escaravelhas pegaram nela e
voaram até ao solo, deixando-a em cima de uma margarida. Lá ficou ela a chorar, por ser tão
feia que os escaravelhos não a queriam — e, no entanto, era a criaturinha mais bonita que
se podia imaginar, mais bela que a mais perfeita pétala de rosa.
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passarinhos, que tão docemente tinham cantado, voavam agora para longe, as árvores
perdiam as folhas, as flores murchavam. Depois, a grande folha de azeda que lhe fazia de
telhado começou a enrolar-se e murchou, até que ficou apenas uma haste seca e amarela. A
Polegarzinha tinha imenso frio, porque o seu vestido estava todo roto e ela era muito frágil e
pequenina. Em breve morreria de frio. A neve começou a cair, e cada floco que caía sobre
ela era tão pesado como uma pazada atirada a um de nós. Afinal, ela só tinha dois
centímetros e meio de altura. Embrulhou-se numa folha murcha, mas não conseguiu
aquecer-se, e tremia cada vez mais.
Por essa altura, já tinha alcançado a orla da floresta. Mesmo ao lado havia um grande
campo de trigo, mas este tinha sido ceifado há muito tempo e só se via o restolho seco na
terra gelada. Para ela, aquilo era o mesmo que uma floresta para atravessar e oh!, como ela
tremia de frio! Finalmente, chegou à porta de um rato do campo, que vivia numa casinha
por baixo do restolho. Era aconchegada e confortável, com um armazém cheio de trigo, uma
cozinha quente e uma sala de jantar. A pobre Polegarzinha parou à porta da casa do rato
como se fosse uma mendiga e pediu se ele lhe dava um bocadinho de um grão, porque já há
dois dias que não comia nada.
— Pobrezinha! — disse o rato do campo, que tinha muito bom coração. — Vem para
a cozinha, que está quente, e comes comigo.
— Podes ficar comigo durante o Inverno, mas tens de limpar e arrumar a casa e
contar-me histórias. Gosto muito de histórias.
A Polegarzinha fez o que o velho rato do campo lhe disse; e o tempo foi passando
agradavelmente.
— Em breve teremos uma visita — disse o rato do campo. — O meu vizinho vem
visitar-me todas as semanas. A casa dele ainda é melhor do que a minha, com grandes e
belos quartos, e ele usa um lindo casaco de veludo preto! Se conseguisses que ele casasse
contigo, nunca mais te faltaria nada. Mas ele é quase cego, de maneira que tens de te
preparar para lhe contar as melhores histórias que souberes.
A Polegarzinha não gostou muito da ideia. Não lhe apetecia nada casar com o vizinho
rico; era um toupeiro, e veio fazer a sua visita com o casaco de veludo preto. O rato do
campo lembrou à Polegarzinha como ele era rico e culto; disse-lhe que a casa dele era vinte
vezes maior do que a sua.
Que ele sabia muitas, muitas coisas, embora não gostasse do sol e das lindas flores,
porque nunca os tinha visto. A Polegarzinha teve de cantar para ele, e cantou Tive uma
nogueirazinha e Joaninha voa, voa. O toupeiro apaixonou-se pela sua linda voz, mas não
disse nada, porque era muito cauteloso.
Ele tinha escavado recentemente uma passagem muito longa, que ia da sua casa à do
vizinho, e disse ao rato do campo e à Polegarzinha que podiam ir visitá-lo quando quisessem.
Mas pediu-lhes que não tivessem medo da ave morta que estava na passagem. Contou-lhes
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que a ave não tinha qualquer marca nem ferida, não lhe faltavam penas, e o bico estava
intacto; devia ter morrido há muito pouco tempo, com a chegada do Inverno, e, de alguma
maneira, tinha caído na sua passagem subterrânea.
Então, o toupeiro agarrou num pedaço de madeira podre com a boca (porque a
madeira podre brilha como fogo no escuro) e foi à frente para iluminar a longa passagem
para os seus convidados. Depressa chegaram ao sítio onde estava a ave, e o toupeiro
empurrou o teto com o focinho largo, levantando a terra para fazer um buraco que deixou
entrar a luz do dia. E lá estava uma andorinha, com as lindas asas encostadas ao corpo, as
pernitas e a cabeça escondidas nas penas; a pobre ave de certeza que tinha morrido de frio.
A Polegarzinha teve muita pena dela, porque amava todas as avezinhas, que tinham cantado
e chilreado para ela de uma maneira tão encantadora durante todo o Verão. Mas o toupeiro
empurrou a andorinha para o lado com as suas pernitas curtas e disse:
— Esta já não assobia mais! Que pouca sorte nascer ave! Felizmente que nenhum dos
meus filhos será como elas. Uma ave não sabe fazer nada a não ser dizer tuit-tuit e depois
morrer de fome no Inverno!
— Sim, lá nisso tens razão — disse o rato do campo. — Com todo o seu tuit-tuit, que
é que elas fazem quando chega o Inverno? Morrem de fome e de frio. E, no entanto, toda a
gente as acha muito importantes.
A Polegarzinha não disse uma palavra, mas, quando os outros recomeçaram a andar,
baixou-se, afastou meigamente as penas da cabeça da andorinha e beijou-lhe os olhos
fechados.
— Talvez esta seja a que cantou tão suavemente para mim durante o Verão —
pensou. — Que felicidade me deu esta pobre avezinha da floresta!
Então, o toupeiro tapou o buraco que tinha feito para deixar entrar a luz do dia e
acompanhou as visitas a casa. Mas nessa noite a Polegarzinha não conseguia dormir, de
maneira que levantou-se e teceu uma cobertazinha de feno. Quando acabou, foi pô-la em
cima da ave. Ao lado, deixou um pouco de lanugem de cardo que tinha encontrado na sala
de estar do rato do campo, para que a ave pudesse repousar quentinha sobre a terra fria.
— Adeus, linda andorinha! — disse ela. — Adeus e obrigada pelas tuas belas canções
no Verão, quando as árvores estavam verdes e o Sol brilhava tão alegremente sobre nós
todos!
No Outono, as andorinhas voam todas para terras mais quentes, mas, se uma delas
se atrasa, o frio pode fazê-la gelar; então cai no chão e depressa fica coberta de neve.
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A Polegarzinha tremia, assustada; a ave era muito maior do que ela, que só tinha dois
centímetros e meio de altura. Mas encheu-se de coragem e aconchegou a lanugem de cardo
ao corpo da pobre andorinha. Depois, foi a correr buscar a sua coberta, uma folha de
hortelã, para lhe tapar a cabeça.
Na noite seguinte, esgueirou-se outra vez para visitar a andorinha — ela estava
realmente viva, mas tão fraca que mal pôde abrir os olhos para olhar para a Polegarzinha. Ali
estava ela, com um pedacinho de madeira podre na mão, porque não tinha outra lanterna.
— Oh! — exclamou a Polegarzinha —, ainda está muito frio lá fora! Há neve e gelo
por todo o lado. Fica aí na tua caminha quente que eu trato de ti.
Depois levou-lhe água numa folha, e a andorinha bebeu e contou-lhe como tinha
magoado uma asa numas silvas e, por isso, não tinha conseguido voar tão depressa como as
outras andorinhas quando partiram para terras mais quentes. Por fim, acabara por cair, e
não se lembrava de mais nada. Não fazia a menor ideia de como tinha ido parar ali.
A Polegarzinha estava agora muito triste. Não a deixavam sair para a claridade do Sol,
e, nos campos onde vivia, o trigo era tão alto que, para ela, era como uma floresta que se
erguia muito acima da sua cabeça.
— Tens de ter o teu enxoval pronto este Verão — disse o rato do campo, porque,
entretanto, o vizinho toupeiro do casaco de veludo tinha proposto casamento à
Polegarzinha. — Precisas de roupas de linho e lã e de muitos cobertores e lençóis quando
fores casada com o toupeiro.
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A Polegarzinha teve de trabalhar arduamente com a roca, e o toupeiro contratou
quatro aranhas para tecerem para ela de dia e de noite. Todas as tardes lhe fazia uma vista e
dizia sempre que, quando o Verão acabasse e o Sol não estivesse tão terrivelmente quente e
deixasse de queimar a terra até a deixar dura com uma pedra, então casariam. Mas a
Polegarzinha não estava nada satisfeita, porque não gostava daquele velho toupeiro tão
pomposo. Todas as manhãs, quando o Sol se erguia, e todas as noites, quando se punha, ela
esgueirava-se lá para fora; quando o vento fazia ondular as espigas de trigo, conseguia ver o
céu azul e pensava sempre como era bom e belo viver ao ar livre. Desejava imenso ver de
novo a sua amiga andorinha, mas ela não voltou a aparecer; tinha voado para o bosque
verde coberto de folhas.
Mas a Polegarzinha começou a chorar e disse que não queria casar com o toupeiro.
— Adeus, Sol brilhante! — disse ela, erguendo os braços em direção a ele e dando
alguns passos no campo imenso, pois o trigo tinha sido ceifado e só ficara o restolho. —
Adeus, adeus — disse ela outra vez, abraçando uma florzinha vermelha que crescia por entre
os caules. — Se alguma vez tornares a ver a andorinha, diz-lhe que lhe mando saudades!
Nesse preciso momento ouviu um som — tuit, tuit — mesmo por cima de si. Era a
andorinha.
Como estava, contente por ver a sua amiga Polegarzinha! Então esta contou-lhe que
tinha de casar nesse mesmo dia com o toupeiro e ir viver com ele debaixo da terra, onde o
Sol nunca brilhava. E as lágrimas saltaram-lhe dos olhos só de pensar nisso.
— Vem aí o frio Inverno — disse a andorinha. — Vou voar para longe, para os países
quentes. Por que não vens comigo? Podes subir para as minhas costas e atares-te a mim
com o teu cinto. Deixamos o toupeiro e a sua casa escura e voamos para muito, muito longe,
por cima das montanhas, para um país onde o Sol brilha ainda mais do que aqui, onde é
sempre Verão e onde as matas e as florestas estão cobertas das mais belas flores. Ah, vem
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comigo, querida Polegarzinha, tu que me salvaste a vida quando eu estava gelada na escura
passagem debaixo da terra!
Sentou-se nas costas da ave e atou o cinto a uma das suas penas mais fortes. Então, a
andorinha ergueu-se muito alto no céu e voou por cima de florestas, lagos e montanhas
onde há sempre neve. O ar gelado fazia a Polegarzinha tremer, mas ela enfiava-se debaixo
das penas quentes da ave e só espreitava para olhar, assombrada, para as belas coisas lá em
baixo.
Por fim, chegaram aos países quentes. Aí, o Sol brilhava com muito mais intensidade
do que a Polegarzinha supunha ser possível; o céu parecia duas vezes mais alto. Ao longo das
estradas, havia deliciosas uvas brancas e roxas; limões e laranjas pendiam das árvores; o ar
estava perfumado de mirto e de muitas outras plantas aromáticas; e, pelos caminhos,
corriam muitas crianças lindas, a brincar por entre coloridas borboletas. Mas a andorinha
voou ainda para mais longe, para onde a paisagem era também ainda mais bonita. E então, à
sombra de enormes árvores verdes, na margem de um lago azul-safira, viram um palácio
muito antigo construído em mármore branco, com videiras enroladas nas suas altas colunas.
Mesmo no cimo das colunas havia muitos ninhos de andorinhas, e num deles vivia a amiga
da Polegarzinha.
— A minha casa é esta — disse ela. — Mas, se quiseres escolher uma daquelas lindas
flores ali em baixo, eu ponho-te lá, e podes viver feliz à tua vontade.
Uma grande coluna branca estava caída por terra, partida em três bocados, e entre
eles cresciam altas e belas flores brancas. A andorinha voou até lá abaixo com a Polegarzinha
e poisou-a numa pétala. Então, a Polegarzinha teve uma grande surpresa. Ali, no centro da
flor, estava um principezinho, tão belo e delicado que parecia feito de vidro. Tinha na cabeça
a coroa de ouro mais bonita que pode imaginar-se e nos ombros um par de asas coloridas e
brilhantes, e não era maior do que a própria Polegarzinha. Era o espírito que guardava a flor.
Em cada flor havia uma criaturinha igual, mas ele era o rei de todas.
O principezinho ao princípio ficou muito assustado com a ave, que lhe parecia
gigantesca, mas quando viu a Polegarzinha ficou cheio de alegria. Achou que ela era a mais
bela de todas as criaturas que jamais tinha visto, mesmo entre as fadas das flores. Tirou a
coroa de ouro da sua cabeça e colocou-a na dela e perguntou-lhe como se chamava e se
queria ser sua mulher e rainha de todas as flores.
Bem, este marido podia ela amar de verdade — era muito diferente do filho do sapo
ou do velho toupeiro com o seu casaco de veludo. E por isso disse que sim ao belo príncipe.
Então, ergueu-se de cada flor uma criaturinha, rapaz ou rapariga, homem ou mulher, tão
pequeninas e tão bonitas que era emocionante vê-las. Todas deram uma prenda à
Polegarzinha, mas a melhor de todas foi um lindo par de asas. Prenderam-nas aos ombros da
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Polegarzinha, e agora também ela podia voar de flor em flor. Toda a gente estava cheia de
alegria: era como uma maravilhosa festa de Verão. A andorinha, lá em cima no seu ninho,
cantou-lhes a canção mais bonita que sabia, mas no fundo estava triste, porque gostava
tanto da Polegarzinha que não queria separar-se dela.
— Adeus, adeus — disse a andorinha, quando chegou a altura de voar de novo dos
países quentes para a Dinamarca.
Aí, ela tinha um pequeno ninho ao lado da janela do homem que escreve contos de
fadas.
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O Fato Novo do Imperador
Era uma vez um imperador que viveu há muitos anos. Gostava tanto de roupas novas
e bonitas que gastava todo o seu tempo e dinheiro a vestir-se. Não ligava importância ao
exército, não ia ao teatro, não andava de carruagem por entre o povo a não ser quando
queria exibir uma fatiota nova. Tinha um casaco diferente para cada hora do dia; e, tal como
se ouve dizer de outros soberanos: "Está em Conselho!", no seu caso a resposta seria: "O
imperador está no quarto de vestir!"
A vida era bastante alegre na cidade em que ele vivia. Estavam sempre a chegar
forasteiros, e um dia apareceram dois indivíduos com um ar suspeito que diziam ser
tecelões. Mas, segundo eles, o tecido que fabricavam não só era extraordinariamente belo
como tinha ainda propriedades mágicas: mesmo quando transformado em peças de
vestuário, era invisível para todas as pessoas que não desempenhassem bem as suas tarefas
ou que fossem particularmente estúpidas. — Excelente! — pensou o imperador. "Que bela
oportunidade para descobrir quais os homens do meu reino que não devem estar nos
lugares que ocupam e quais são os espertos e os estúpidos! Pois é, aquele material tem de
ser tecido e transformado em roupa imediatamente!"
E deu aos dois malandros uma grande quantia de dinheiro para começarem a
trabalhar.
Assim, os dois patifes montaram dois teares e agiram como se estivessem a trabalhar
afanosamente, mas a verdade é que não havia nada nos teares. Pouco depois, estavam a
pedir o melhor fio de seda e de ouro, que meteram nos seus próprios bolsos, continuando a
mover os braços diante dos teares vazios pela noite dentro.
Ao fim de algum tempo, o imperador pensou: "Gostava realmente de saber como vai
aquilo!"
Mas, quando se lembrou de que o tecido não podia ser visto pelas pessoas estúpidas
ou incompetentes no seu trabalho, sentiu-se um tanto embaraçado em ir ele próprio. Não
que tivesse quaisquer dúvidas quanto às suas capacidades, é claro, mas achou que talvez
fosse melhor mandar alguém primeiro, Afinal de contas, toda a gente na cidade sabia dos
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poderes especiais do tecido; toda a gente estava ansiosa por descobrir até que ponto o
vizinho era estúpido ou incompetente.
Então, o bom velho ministro foi à sala onde os dois malandros estavam a fingir que
trabalhavam nos teares.
— "Que Deus me ajude!" pensou ele, abrindo os olhos cada vez mais. "Não consigo
ver nada."
Os dois vigaristas pediram-lhe que se aproximasse; não achava ele que os padrões
eram lindos e as cores deliciosas? E gesticulavam diante dos teares vazios. Mas, embora o
pobre velho ministro espreitasse e olhasse fixamente, continuava a não ver nada, pela
simples razão de que não havia lá nada para ver.
"Céus!", pensou. "Serei mesmo estúpido? Nunca pensei que fosse, e o melhor é que
ninguém o pense! Serei mesmo incompetente a desempenhar as minhas funções? Não, não
posso dizer que não vejo o tecido."
Os dois impostores então pediram mais dinheiro e mais fio de sede e de ouro;
disseram que precisavam disso para acabarem o tecido. Mas tudo que lhes deram foi
direitinho para os seus bolsos e nem um ponto apareceu nos teares. Apesar disso,
continuaram a agitar afanosamente os braços diante das máquinas vazias.
Mais tarde, o imperador mandou outro honesto funcionário para ver o andamento
do trabalho e saber se o tecido estaria pronto em breve. Aconteceu-lhe a mesma coisa que
ao ministro; olhou e tornou a olhar, mas, como não havia nada para ver senão os teares
vazios, nada foi tudo o que ele viu.
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E ergueram o tecido imaginário diante dele, apontando para o padrão que não
existia.
"Eu acho que não sou estúpido", pensou o funcionário. "Se calhar não sou a pessoa
indicada para o cargo que desempenho. Bem, nunca pensaria tal coisa! E o melhor é que
ninguém o pense!"
Por isso, emitiu ruídos de apreciação sobre o tecido que não conseguia ver e disse
aos homens que gostava muito das cores e do desenho.
E apontavam para os teares vazios, porque estavam certos de que as outras pessoas
viam o tecido.
"Isto é terrível!", pensou o imperador. "Não vejo nada! Serei estúpido? Serei
incompetente como imperador? É assustador pensar uma coisa dessas." Então, disse em voz
alta:
Acenou com ar satisfeito para os teares vazios; nunca iria admitir que não via lá
absolutamente nada.
— Encantador, encantador!
E aconselharam-no a utilizar o esplêndido tecido para o novo fato real que teria de
vestir num grande cortejo a realizar dentro em pouco.
E o imperador condecorou os dois impostores com uma roseta para porem nas
botoeiras dos casacos e o título de Funcionário Imperial do Tear.
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Durante toda a noite anterior ao dia do cortejo, os dois aldrabões fingiram trabalhar,
com dezasseis velas à sua volta. Toda a gente podia ver como eles estavam atarefados,
tentando acabar a tempo o fato novo do imperador. Fingiam tirar o tecido dos teares,
cortavam o ar com grandes tesouras de alfaiate, cosiam e tornavam a coser com agulhas
sem linha. Por fim, anunciaram:
O imperador foi vê-la com os seus cortesãos mais nobres, e os dois aldrabões
ergueram os braços como se estivessem a levantar alguma coisa.
— Aqui estão as calças — disseram eles. — Aqui está o casaco e aqui está a cauda...
— e por aí fora. — São leves como espuma; pelo toque, dir-se-ia que não se tem nada
vestido, mas a beleza está precisamente aí.
— Se Vossa Majestade Imperial quiser fazer o favor de tirar a roupa que tem vestida,
teremos a honra de o ajudar a vestir esta diante do espelho grande.
— Que elegante! Que bem que assenta! — murmuravam os cortesãos. — Que tecido
tão rico! Que cores magníficas! Já alguma vez tinham visto uma coisa tão magnífica?
E tornou a dar umas voltas em frente do espelho, como quem se admira pela última
vez. Os cortesãos que tinham de pegar na ponta da cauda baixaram-se, como se erguessem
alguma coisa do chão, e levantaram as mãos diante de si. Não iam deixar o povo pensar que
eles não viam nada.
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O facto é que ninguém queria admitir que não via roupas nenhumas, porque isso
significaria que eram estúpidos ou então incompetentes no seu trabalho. Nenhum dos belos
fatos do imperador tinha sido tão admirado até então.
— Aquela criança diz que o imperador não leva nada vestido... o imperador não leva
nada vestido! E daí a pouco toda a gente repetia: — O imperador não leva nada vestido!
Por fim, até o próprio imperador achou que eles deviam ter razão, mas pensou para
si próprio:
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O Trigo Mourisco
Muitas vezes, após uma trovoada, ao passar-se por um campo de trigo mourisco,
pode ver-se como ficou todo chamuscado. É como se o fogo tivesse passado por ele e o
camponês dá-nos a explicação seguinte: "Foi um raio!" Mas porquê? Pois vou contar-lhes o
que disse a um pardal um velho salgueiro que se encontrava perto dum campo de trigo
mourisco e ainda lá está. É um salgueiro grande e venerável, mas enrugado e velho, um
pouco rachado ao meio, com uma fenda onde crescem ervas e sarças. A árvore está um
pouco tombada para a frente, e os ramos pendem para o solo, como se fossem uma longa
cabeleira verde.
Mas havia também um campo de trigo mourisco, bem perto do velho salgueiro, que
não queria nunca inclinar-se como os outros cereais; sempre se mantinha direito, orgulhoso
e altivo.
— Sou tão rico como a espiga de trigo — disse ele. — Sou, além disso, mais bonito. As
15 minhas flores são tão belas como as da macieira, e é um regalo olhar para mim e para a
minha floração. Conheces algo de mais belo, velho salgueiro? O salgueiro abanou a cabeça,
como quem diz "pois claro que conheço", mas o trigo mourisco inchou de orgulho e
exclamou: — Árvore estúpida, tão velha estás que te crescem ervas na barriga!
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— Abaixa a cabeça como nós! — gritou o trigo. — Vem aí o Anjo da Tempestade!
Tem asas e com elas alcança tanto o céu lá em cima como a terra cá em baixo. Pode ceifar-te
sem teres sequer tempo de pedir-lhe mercê.
— Anda, fecha as flores e dobra as folhas! — disse o velho salgueiro. — Não olhes
para cima, para os raios, quando as nuvens rebentam. Nem os próprios homens o podem
fazer, pois que por eles é possível olhar para dentro do Céu, mas isso é bastante para os
cegar. E o que nos aconteceria a nós, plantas da terra, se o ousássemos fazer, nós que somos
muito menos?
— Muito menos? — disse o trigo mourisco. — Pois vou mesmo olhar para dentro do
Céu! E foi isso que fez, com presunção e orgulho. Caiu então uma faísca tão grande que
parecia que toda a terra ardia em chamas.
O velho salgueiro agitava os ramos ao vento e deixava tombar grandes gotas de água
das suas folhas verdes, como se chorasse. Os pardais perguntaram-lhe:
— Porque estás a chorar? Não é tudo maravilhoso? Repara como brilha o sol e
deslizam as nuvens. Não sentes o perfume das flores e dos arbustos? Porque choras, pois,
velho salgueiro?
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O Patinho Feio
Era aí que uma pata chocava os seus ovos no ninho. Porém, já estava a ficar bastante
farta, porque os patinhos nunca mais apareciam; quanto a visitas, quase não as tinha; os
outros patos preferiam nadar no fosso a ir ter com ela debaixo das grandes folhas para
conversar.
— Pip, pip!
O ninho ficou cheio de avezinhas que deitavam as cabeças fora das cascas.
É claro que agora tinham muito mais espaço do que dentro dos ovos.
E lá tornou a deitar-se.
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— Bem, que tal vão as coisas? — perguntou uma velha pata que veio visitá-la.
— Este ovo está a demorar um tempo horrível — disse a mãe pata. — Não há meio
de estalar! Mas olhe para os outros! São os patinhos mais bonitos que já vi, tal e qual o pai,
aquela peste, que nunca vem visitar-me!
— Deixe lá ver o ovo — disse a velha pata. — Ah! Acredite no que lhe digo, isso é um
ovo de peru. Uma vez aconteceu-me a mesma coisa e nem calcula o trabalho que tive com
os miúdos! Como eram perus, tinham medo da água, e não consegui metê-los lá. Deixe ver.
É, é um ovo de peru. Deixe-o ficar e vá ensinar os outros a nadar.
— Bem, vou aguentar um pouco mais — respondeu a pata. — Já aqui estou há tanto
tempo que mais vale acabar o trabalho.
— Está bem, faça como quiser — respondeu a velha pata, e foi-se embora.
Mas que grande e que feio que ele era! A mãe olhou para ele.
— Que grande patinho! — pensou. — Será mesmo um peru? Bem, já vamos ver; há-
de ir para a água, nem que eu tenha de o empurrar.
No dia seguinte, o tempo estava lindo, e a mãe pata saiu com todos os filhos e desceu
até ao fosso, onde mergulhou.
— Não, isto não é um peru! — exclamou a mãe. — Que bem que ele usa as patas e
que direito que nada. É meu filho, isso não há dúvida. Realmente, é bem bonito, se virmos
bem. Quac, quac! Venham comigo, meninos; venham conhecer o mundo e as outras aves da
quinta; mas fiquem perto de mim, para ninguém os pisar. E cuidado com o gato!
Ficou com água no bico, porque também ela teria gostado de apanhar a cabeça da
enguia.
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— Vá, usem as pernas; despachem-se e façam uma vénia à velha pata que está ali! E
a pessoa mais importante da quinta; os antepassados dela vieram da Espanha e, como veem,
tem um pedacinho de pano vermelho atado a uma pata. Isso é uma coisa muito especial:
significa que ninguém a pode matar e que tanto os homens como os animais têm de a tratar
com respeito. Venham! Não metam os pés para dentro! Um patinho bem educado anda com
os pés bem afastados, como o pai e a mãe. Vá! Façam uma vénia e digam: «Quac!».
Os patinhos fizeram o que ela lhes disse, mas os outros patos do pátio olharam para
eles e disseram em voz alta:
— Lá vamos ter de aturar estes, como se já não fôssemos bastantes! E, meu Deus!,
que patinho tão esquisito aquele! Não o queremos com certeza por aqui.
— Pois não, mas é muito grande e tem um ar esquisito — respondeu o pato que o
tinha bicado. — Tem de ser metido na ordem.
— Bela família — comentou a velha pata com o paninho vermelho à volta da perna.
— Os patinhos são todos bonitos, excepto aquele, não pode ser. Se ao menos a mãe pudesse
tornar a fazê-lo!
— Isso é impossível, Vossa Senhoria — disse a mãe pata. — É verdade que não é
bonito, mas tem bom feitio e nada tão bem como os outros. Atrevo-me até a dizer que,
quando for crescido, é capaz de vir a ser mais bonito e talvez, com o tempo, um pouco mais
pequeno. Ficou tempo de mais dentro do ovo e foi isso que lhe estragou o aspeto. —
Ajeitou-lhe a penugem do pescoço e alisou-lhe uma penita ou outra. — Além disso —
acrescentou —, é um pato, por isso não tem muita importância se é bonito ou feio. É
saudável, tenho a certeza, e há de vingar neste mundo.
— Seja como for, os outros patinhos são encantadores — retorquiu a velha pata. —
Bom, estejam à vontade, e se encontrarem uma cabeça de enguia podem trazer-ma.
Isto foi o primeiro dia; depois, a sina do patinho cinzento piorou. Que infeliz se sentia
por ser tão feio! Era perseguido por todos. Os patos tentavam dar-lhe bicadas; as galinhas
também; e a rapariga que dava de comer aos animais empurrava-o com o pé. Até os irmãos
e as irmãs estavam contra ele e diziam:
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E então ele foi-se embora. Primeiro, voou por cima da sebe — e os passarinhos nos
arbustos voaram alarmados.
Mas continuou o seu caminho. Por fim, chegou aos charcos onde vivem os patos
bravos e ficou lá deitado toda a noite, porque estava muito cansado e triste.
— És mesmo feio, lá isso és! — disse um pato bravo. — Mas isso pouco importa,
desde que não cases com nenhuma das nossas filhas.
Pobrezinho do patinho. A ideia de casar nem sequer lhe tinha vindo à cabeça. Tudo o
que queria era deitar-se e descansar nos juncos e beber um pouco da água do charco.
Ali ficou durante dois dias, até que apareceram dois gansos selvagens — dois jovens
machos. Também tinham nascido há pouco, mas eram muito vivos e descarados.
— Olá, amigo — disseram. — És tão feio que gostamos de ti. Que tal vires connosco
quando voarmos para mais longe? Num charco perto daqui há umas lindas gansas, belas
raparigas, com um «quac!» que vale a pena ouvir. Com o teu aspeto esquisito pode ser que
tenhas sorte com elas.
Nesse momento ouviu-se «bang!, bang!» e ambos os alegres gansos caíram mortos
nos juncos. A água ficou vermelha de sangue. Outra vez «bang!, bang!» — e um bando de
gansos selvagens levantou voo dos juncos. Era uma grande caçada. Os desportistas estavam
a toda a volta do charco; alguns estavam mesmo empoleirados nas árvores. Fumo azul subia
como nuvens dentro e fora dos ramos escuros e ficava a pairar sobre a água. Os cães faziam
tchac!, tchac!, pela lama, esmagando os juncos. O pobre patinho estava aterrorizado;
quando tentava precisamente esconder a cabeça debaixo da asa um cão enorme e
assustador parou em frente dele com a língua de fora e os olhos a brilharem de uma
maneira horrível. Encostou o focinho ao patinho, arreganhou os dentes aguçados e depois —
tchac!, foi-se embora sem lhe tocar.
— Oh, graças a Deus! — suspirou o patinho. — Sou tão feio que até o cão pensa duas
vezes antes de me morder. E ficou muito quieto enquanto ouvia os tiros, um após outro,
guincharem e troarem pelos juncos. O dia já ia longo quando o barulho parou; mas a pobre
criatura nem então se atreveu a mexer-se. Por fim, levantou a cabeça, espreitou
cautelosamente em redor e apressou-se a fugir do charco tão depressa quanto pôde. Correu
por campos e prados, mas o vento soprava tão forte contra ele que era difícil avançar.
Perto da noite, chegou a um casinhoto miserável; estava em tal estado que nem
sabia para que lado havia de cair, de modo que continuava de pé. O vento soprava com
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tanta força que o patinho teve de se sentar para não ser levado por ele, mas o vento parecia
ficar cada vez mais forte. Então notou que a porta já não tinha uma dobradiça e estava
pendurada de tal modo que ele conseguia esgueirar-se lá para dentro, e foi isso mesmo que
fez.
No casinhoto vivia uma velhota com um gato e uma galinha. O gato, a quem ela
chamava Filhinho, sabia arquear as costas e fazer ronrom; também fazia faíscas, mas só
quando lhe faziam festas ao contrário. A galinha tinha umas pernitas curtas e por isso
chamava-se Pinta-Pernas-Curtas. Punha muitos ovos, e a velhota gostava dela como se fosse
sua filha.
Mas já não via muito bem, de modo que tomou o pequeno recém-chegado por uma
pata adulta.
— Ora isto é que é sorte! — exclamou ela. — Agora vou ter ovos de pata... desde que
não seja um pato. Bem, veremos...
E o patinho ficou à experiência durante três semanas, mas não apareceram ovos.
O gato era o senhor da casa, e a galinha a senhora. Passavam a vida a dizer «Nós e o
mundo...», porque pensavam que eram metade do mundo e, claro, a metade melhor. O
patinho achava que podia haver outras opiniões sobre o assunto, mas a galinha não queria
ouvir falar nisso.
— Sabes pôr ovos? — perguntou. — Não? Então, faz o favor de guardar as tuas
opiniões para ti próprio!
O gato perguntou:
— Sabes arquear as costas e fazer ronrom ou soltar faíscas? Não? Então o melhor
que tens a fazer é ficares calado quando as pessoas sensatas estão a falar.
— Que ideia tão disparatada! — exclamou ela. — O teu mal é não teres nada que
fazer; por isso é que tens essas fantasias. Põe mas é uns ovos ou tenta fazer ronrom que isso
passa-te.
— Mas é tão delicioso flutuar na água — disse o patinho. — É tão bom baixar a
cabeça e mergulhar até ao fundo!
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— Deve ser ótimo! — disse a galinha sarcasticamente. — Não deves estar bom da
cabeça! Pergunta ao gato, que é a pessoa mais inteligente que conheço, se ele gosta de
flutuar na água ou de mergulhar até ao fundo. Não faças caso da minha opinião; pergunta à
nossa dona, a velhota: não há ninguém mais sábio no mundo inteiro. Achas que ela quer
flutuar ou meter a cabeça dentro de água?
E o patinho lá foi. Boiou na água e mergulhou; mas parecia-lhe que os outros patos
não faziam caso dele por ele ser feio.
Até que chegou o Outono: as folhas do bosque ficaram castanhas e amarelas; o vento
apanhava-as e fazia-as rodopiar como loucas; até o céu parecia gelado; as nuvens pairavam,
pesadas com granizo e neve, e o corvo, empoleirado numa sebe, gritava «crá, crá» por causa
do frio. Só de olhar para aquilo ficava-se logo a tremer. Foi um tempo difícil também para o
patinho.
Uma tarde, com o céu avermelhado pelo pôr-do-sol, um bando de grandes aves
maravilhosas ergueu-se dos juncos. O patinho nunca tinha visto aves tão belas. Eram de um
branco brilhante, com longos pescoços graciosos — na verdade, eram cisnes. Emitindo um
estranho som, abriram as esplêndidas asas e voaram para longe, para terras mais quentes e
lagos que não gelavam. Voaram até bem alto e o patinho feio ficou muito excitado; andava à
roda, à roda, na água, e chamou-os com uma voz tão alta e estranha que até ele próprio se
assustou. Oh, nunca esqueceria aquelas aves maravilhosas, aquelas aves felizes! Assim que a
última desapareceu, mergulhou mesmo até ao fundo e, quando voltou de novo à superfície,
estava excitadíssimo. Não sabia como se chamavam as aves; não sabia de onde tinham vindo
nem para onde voavam — mas sentia-se mais atraído por elas do que por qualquer outra
coisa.
No Inverno ficou ainda mais frio. O patinho tinha de nadar às voltas na água para esta
não gelar, mas cada noite a parte sem gelo se tornava mais pequena. Depois, tinha de bater
com os pés a toda a hora, para quebrar a superfície; por fim, acabou por ficar estafado.
Parou e depressa gelou completamente.
De manhã cedo apareceu um camponês. Vendo a ave, foi até lá, partiu o gelo com os
socos de madeira e levou-a para casa, para a mulher. Pouco tempo depois, o patinho
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reanimou-se. As crianças queriam brincar com ele, mas ele julgava que queriam fazer-lhe
mal e, assustado, voou para dentro da selha do leite. O leite salpicou a sala toda; a mulher
deu um grito e deitou as mãos à cabeça; depois, o patinho voou para dentro da cuba da
manteiga, depois para o barril da farinha, e depois saiu. Meu Deus, que espetáculo! A
mulher, ainda aos gritos, atirou-lhe o atiçador da lareira; as crianças, rindo e guinchando,
caíam umas por cima das outras, tentando apanhar o patinho. Felizmente, a porta estava
aberta; lá foi ele a correr para os arbustos e para a neve recém-caída e aí ficou meio
entontecido.
Mas seria demasiado triste contar-vos todas as dificuldades e infelicidades por que
ele teve de passar durante aquele Inverno cruel. Um dia, estava a tentar aconchegar-se
entre os juncos do charco quando o Sol começou a enviar novamente raios quentes; as
cotovias cantavam; que maravilha! Tinha chegado a Primavera. O patinho ergueu as asas.
Pareciam mais fortes do que antes, e levaram-no velozmente para longe; antes de perceber
o que estava a acontecer, encontrou-se num lindo jardim cheio de macieiras em flor, com
lilases perfumados que pendiam dos seus longos ramos mesmo até um riacho sinuoso. E
então, mesmo em frente dele, saindo das sombras das folhas, apareceram três magníficos
cisnes brancos, agitando as penas enquanto deslizavam pela água. O patinho reconheceu as
maravilhosas aves e sentiu uma estranha tristeza.
— Vou voar até àquelas nobres aves, mesmo que me matem à bicada por me atrever
a aproximar-me, feio como sou. Mas não me importo... é melhor ser morto por umas
criaturas tão esplêndidas do que apanhar bicadas de patos e galinhas e pontapés da rapariga
da quinta ou ter de aguentar outro Inverno como o último.
Voou para a água e nadou em direção aos magníficos cisnes. Estes viram-no e vieram
ter com ele a toda a velocidade, agitando a plumagem.
— Vá, matem-me — disse o pobre patinho curvando a cabeça mesmo até à água
enquanto esperava pelo fim.
Mas o que é que viu ele refletido em baixo? Observou-se bem — já não era uma
desajeitada ave feia e cinzenta. Era igual às orgulhosas aves brancas ali ao pé: era um cisne!
Não interessa nascer num terreiro de patos quando se sai de um ovo de cisne.
Sentiu-se feliz por ter sofrido tantas dificuldades, porque agora dava valor à sua boa
sorte e ao lar que finalmente tinha encontrado. Os majestosos cisnes nadaram à sua volta e
acariciaram-no com admiração com os bicos. Umas criancinhas apareceram no jardim e
atiraram pão para a água e a mais pequenina gritou alegremente:
— Há mais um!
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Bateram palmas e dançaram de contentamento; depois foram a correr contar aos
pais. Deitaram mais pão e bolo para a água e todos disseram:
— O novo é o mais bonito de todos. Olhem que belo que é, aquele novo!
Ele sentia-se muito envergonhado e escondeu a cabeça debaixo de uma asa; não
sabia o que fazer. Estava quase feliz de mais, porque um bom coração nunca é orgulhoso
nem vaidoso. Lembrava-se dos tempos em que tinha sido perseguido e desprezado, e agora
ouvia toda a gente dizer que era a mais bela de todas aquelas maravilhosas aves brancas. Os
lilases curvaram os ramos até à água para o saudarem; o Sol enviou o seu calor amigo, e a
jovem ave, com o coração cheio de alegria, agitou as penas, ergueu o pescoço esguio e
exclamou:
— Nunca pensei que alguma vez pudesse sentir tamanha felicidade quando era o
patinho feio!
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A Família Feliz
A maior folha verde que temos neste país é com certeza a folha da bardana. Uma
menina podia usá-la como avental; se a pusesse na cabeça quando chovia, faria de guarda-
chuva — é tão grande como isso. Nenhuma bardana cresce sozinha; não, onde há uma, há
sempre muitas outras. São um lindo espetáculo — e todo esse esplendor costumava ser a
comida dos caracóis. Há um género especial de caracóis que vive nas folhas, uma espécie de
caracol que os ricos costumavam cozinhar e comer. Murmuravam «Delicioso!» quando os
comiam. E foi por isso que se começou a plantar bardanas.
Ora, havia uma velha mansão onde há muito tempo que se tinha deixado de comer
caracóis. Os caracóis estavam mesmo quase extintos, mas não as bardanas, que cresciam e
se multiplicavam. Espalhavam-se pelos caminhos e pelos canteiros de flores até não se ter
mão nelas: o jardim era uma autêntica floresta de bardanas. Aqui e ali, havia uma macieira
ou uma ameixieira; se não fosse isso, nem se percebia que tinha havido ali um jardim. Havia
bardanas por todo o lado — e entre elas viviam os dois únicos sobreviventes dos caracóis,
ambos muitíssimo velhos.
Eles próprios não sabiam que idade tinham, mas lembravam-se muito bem que, em
tempos, tinha havido ali muitos mais, que a família tinha vindo do estrangeiro e que tinha
sido especialmente para ela que a floresta de bardanas fora plantada. Nunca tinham saído
dali, embora soubessem que havia uma outra coisa no Mundo chamada mansão. Lá, era
onde os cozinhavam, era onde eles ficavam pretos e onde eram depois postos numa
travessa de prata; mas o que acontecia depois ninguém sabia. Quanto a isso, não
imaginavam o que se sentia ao ser cozinhado e posto numa travessa de prata, mas parecia
que era muito interessante e, com certeza, muito fino. O escaravelho, o sapo e a minhoca
foram interrogados sobre o assunto, mas nenhum deles tinha sido cozinhado ou colocado
numa travessa de prata.
Os velhos caracóis brancos eram os aristocratas daquele mundo — disso não tinham
a menor dúvida. A floresta existia só para eles, tal como a antiga mansão e a sua travessa de
prata.
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Passavam os dias numa felicidade tranquila e isolada e, como não tinham filhos,
adotaram um pequeno caracol vulgar, que criaram como se fosse deles. O pequeno não
cresceu, porque não passava de um caracol vulgar. No entanto, os velhotes, especialmente a
mãe-caracol, achavam sempre que ele tinha crescido um bocadinho desde o dia anterior. E
quando o pai-caracol parecia não ver a diferença, ela pedia-lhe que apalpasse a pequena
casca. E ele lá apalpava e concordava que ela tinha razão.
— Não estejas sempre a pôr defeitos na criança — disse a mãe-caracol. — Ele rasteja
com tanto cuidado! Tenho a certeza de que há de dar-nos grandes alegrias. E, afinal, não é
ele a nossa razão de viver? Olha, já pensaste onde havemos de lhe arranjar uma noiva? Não
achas que por aí, nalgum sítio desta floresta de bardanas, pode haver alguém da nossa
espécie?
— Bem, acho que há muitas lesmas e coisas parecidas, dessas que andam por aí sem
casa própria — respondeu o velho caracol. — Mas isso para nós seria descer, apesar de elas
terem muitas peneiras. No entanto, podemos encarregar as formigas de procurar. Andam
sempre numa azáfama, para um lado e para o outro; como se tivessem muito que fazer;
podem muito bem saber de uma esposa para o nosso caracolzinho.
— Ah, sim — disseram as formigas —, conhecemos a noiva mais linda; mas é capaz
de ser difícil, porque é uma rainha.
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— Isso não tem qualquer importância! — exclamou o velho caracol. — E tem casa?
— Sim, sabemos de uma esposa para ele — responderam os mosquitos. — A uns cem
passos de homem daqui, numa groselheira-brava, vive uma pequena caracoleta com casa.
Vive sozinha, e está em muito boa idade de casar. E só a cem passos de homem daqui.
— Bem — disse o velho casal —, ela que venha cá ter com ele. Ele é dono de uma
floresta inteira e ela só tem uma groselheira!
Então, os mosquitos foram buscar a jovem caracoleta. Levaram oito dias a fazer a
viagem, mas isso não desagradou aos pais; mostrava que ela também pertencia a uma boa
família de caracóis.
E chegou o dia do casamento. Seis pirilampos fizeram o melhor que podiam para
fornecer a iluminação, mas, à parte isso, foi um acontecimento bastante pacato, porque os
velhos caracóis não gostavam muito de festas e paródias. A mãe-caracol fez um discurso
encantador, porque o pai-caracol estava demasiado comovido para falar. E depois
entregaram toda a floresta ao jovem casal, afirmando, como sempre, que aquele era o
melhor lugar do Mundo e que, se o jovem par vivesse uma vida honesta e respeitável e
tivesse muitos filhos, ainda podiam um dia ir à mansão e ser «cozinhados» (fosse qual fosse
o significado de tal coisa...) e colocados numa travessa de prata.
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A Pastora e o Limpa-chaminés
Alguma vez viram um armário muito velho, enegrecido pela idade, todo esculpido
com caules e folhas de trepadeiras?
Havia numa sala de estar um armário deste género que tinha pertencido à trisavó da
família. Estava coberto, de cima a baixo, com rosas e túlipas esculpidas na madeira,
rodeadas por grinaldas arredondadas; e, por entre tudo isso, apareciam umas cabecinhas de
veados com as suas hastes.
Mas, no meio, havia uma figura de um homem — de um tipo bem estranho. Era
bastante cómico, porque tinha pernas de bode, pequenos cornos na testa, uma barba
comprida e um esgar peculiar, que mal podia chamar-se sorriso. As crianças da casa
chamavam-lhe Brigadeiro-General-de-Brigada-Capitão-Sargento-Cabo-Pernas-de-Bode. O
nome ficava-lhe bem, achavam elas, por ser difícil de dizer. Além disso, quem mais, vivo ou
esculpido, teria alguma vez merecido tal título?
Seja como for, lá estava ele, com os olhos sempre voltados para a mesa por baixo do
espelho, porque em cima da mesa estava uma linda pastorinha de loiça. Tinha uns sapatos
dourados e um vestido enfeitado com uma rosa de loiça; tinha ainda um chapéu dourado e
segurava um cajado de pastora. Oh, era realmente linda!
Mesmo a seu lado, estava um pequeno limpa-chaminés, também de loiça. Era todo
preto, excepto a cara, que era cor-de-rosa e branca como a de uma rapariga; na verdade,
estava tão limpo e bem arranjado como outra pessoa qualquer, porque era apenas um
limpa-chaminés a fingir. O artista também podia ter feito dele um príncipe. E lá estava ele,
com o seu escadote e o seu belo rosto, que não tinha uma única partícula de fuligem. E
como o limpa-chaminés e a pastora tinham estado sempre junto um do outro, em cima da
mesa, tinham ficado noivos, o que era a coisa mais natural do mundo. Estavam realmente
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muito bem um para o outro. Ambos eram jovens, ambos eram feitos do mesmo material, e
cada um era tão frágil como o outro.
Não longe dali havia uma figura muito diferente, cerca de três vezes maior do que
eles. Era um velho chinês, um mandarim, que abanava a cabeça. Também era de loiça, e
dizia sempre que era avô da pastora. Não podia prová-lo, mas insistia em que era o seu
protetor, de maneira que o Brigadeiro-General-de-Brigada-Capitão-Sargento-Cabo-Pernas-
de-Bode lhe pediu a mão dela em casamento, e ele consentiu, acenando.
— Aí está um belo marido para ti — disse ele à pastora. — É de mogno, tenho quase
a certeza, e vais ser a Senhora Brigadeira-Generala-de-Brigada-Capitoa-Sargenta-Caba-
Pernas-de-Bode. Ele é dono de um armário cheio de pratas e de outras coisas que lá tem
escondidas.
— Não quero viver naquele armário escuro — disse a pastorinha. — Ouvi dizer que
ele já lá tem onze mulheres de loiça.
— Acho que tenho de te pedir que partas à aventura comigo — disse ela —, porque
não podemos ficar aqui.
Então ele confortou-a e mostrou-lhe como devia colocar os pezinhos nos entalhes da
perna da mesa. Levou o escadote para a ajudar e, por fim, encontraram-se no chão. Mas,
quando olharam para o velho armário escuro, que agitação! Todos os veados esculpidos
deitavam as cabeças ainda mais de fora, espetando os galhos e voltando os pescoços de um
lado para o outro. E o Brigadeiro-General-de-Brigada-Capitão-Sargento-Cabo-Pernas-de-
Bode estava aos pulos e a gritar, todo zangado, para o chinês:
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namorados a quem não deixavam casar. E a pastora começou outra vez a chorar, porque era
tal e qual a história dela.
Mas, quando chegaram ao chão e olharam para cima da mesa, o velho chinês tinha
acordado e estava a abanar o corpo para trás e para a frente; tinha de andar assim, porque,
à exceção da cabeça, era todo feito de uma só peça.
— Isso não ajuda nada — respondeu ela. — Além disso, sei que o velho chinês e a
jarra já estiveram noivos; e fica sempre algum sentimento quando as pessoas foram íntimas.
Não, a única coisa a fazer é partir à aventura.
— O único caminho que conheço é pela chaminé. Tens a certeza que possuis a
coragem suficiente para ires atrás de mim pelo fogão e pelo túnel escuro? É por aí que se vai
para a chaminé, e depois já sei o que fazer. Trepamos tão alto que ninguém nos apanha; e, lá
mesmo no cimo, há uma abertura por onde podemos sair para a nossa aventura.
Mas, apesar disso, foi com ele, através dos tijolos refratários e do cano da chaminé,
onde estava escuro como a noite.
— Já chegámos à chaminé — exclamou ele. — Olha! Que linda estrela ali por cima de
nós!
Realmente havia uma verdadeira estrela no céu por cima deles, a iluminá-los com o
seu brilho, como se quisesse indicar-lhes o caminho. Lá continuaram a trepar e a rastejar,
para cima, cada vez mais para cima; foi uma viagem horrível. Mas o pequeno limpa-
chaminés ajudava-a sempre, mostrando-lhe os melhores sítios para ela colocar os seus
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pezinhos de loiça, até que por fim chegaram ao cimo da chaminé, onde se sentaram, porque
estavam cansados, o que não admira.
Lá no alto estava o céu cheio de estrelas; em baixo, ficava a cidade com todos os seus
telhados. Eles podiam ver até bem longe à sua volta, por esse mundo fora. A pobre pastora
nunca tinha imaginado nada como aquilo; deitou a sua cabecinha no ombro do limpa-
chaminés e chorou tão amargamente que o ouro da faixa da cintura desbotou.
— Isto é de mais — chorava ela. — Não aguento. O Mundo é demasiado grande. Oh,
quem me dera estar outra vez na mesa debaixo do espelho! Só serei feliz outra vez quando
voltar para lá. Vim contigo, mas, se realmente gostas de mim, leva-me para casa.
Então, tornaram a rastejar pela chaminé, desta vez para baixo — uma tarefa dura e
perigosa; esgueiraram-se pelo cano (uma das piores partes da viagem) e, por fim, chegaram
à caverna escura do fogão. Ficaram encostados à porta durante um bocadinho, para ouvirem
o que se passava na sala. Tudo parecia bastante calmo, de maneira que espreitaram — mas,
oh!, mesmo no meio do chão estava o chinês! Ao tentar correr atrás deles, tinha caído da
mesa, e agora estava feito em três pedaços — a parte de trás, a parte da frente e a cabeça,
que tinha rebolado para um canto. O Brigadeiro-General-de-Brigada-Capitão-Sargento-Cabo-
Pernas-de-Bode estava no seu lugar de sempre, absorto em pensamentos.
— Que horror! — exclamou a pastorinha. — O meu pobre avô está todo partido e a
culpa é nossa. Nunca hei de esquecer isto!
E torcia as mãozinhas.
— Pode muito bem ser consertado — afirmou o limpa-chaminés. — É fácil. Vá, não
fiques tão preocupada. Depois de ser colado e de lhe porem um gato no pescoço, fica como
novo, e ainda vai dizer-te muitas coisas aborrecidas.
— Ai, quem me dera que o meu avô já estivesse consertado! — disse a pastora. —
Achas que vai ser muito caro?
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— Estás muito importante desde que te partiste! — disse-lhe o Brigadeiro-General-
de-BrigadaCapitão-Sargento-Cabo-Pernas-de-Bode. — Mas por que é que estás tão
orgulhoso? Responde-me! Posso ou não ficar com a pastora?
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O Firme Soldado de Chumbo
Era uma vez vinte e cinco soldados de chumbo, todos irmãos, porque tinham sido
todos feitos da mesma colher de cozinha. Tinham armas aos ombros e olhavam em frente,
muito elegantes nos seus uniformes encarnados e azuis. — Soldados de chumbo! — foi a
primeira coisa que ouviram neste mundo, quando levantaram a tampa da caixa onde
estavam.
Um rapazinho tinha dado esse grito e batido as palmas; tinham-lhos dado como
prenda de anos, e ele colocou-os em cima de uma mesa. Os soldados eram todos iguais uns
aos outros — excepto um, que só tinha uma perna; fora o último a ser moldado e já não
havia chumbo que chegasse. No entanto, mantinha-se de pé tão bem como os outros que
tinham duas pernas, e é ele o herói desta história.
Na mesa onde os colocaram havia muitos outros brinquedos, mas aquele em que se
reparava logo era um castelo de papel. Pelas suas janelinhas via-se o interior das salas. À
frente havia pequenas árvores à volta de um pedaço de espelho, a fingir que era um lago.
Cisnes de cera pareciam flutuar na sua superfície e olhavam para o seu reflexo. Toda a cena
era um encanto, mas o mais bonito de tudo era uma menina que estava à porta; também ela
era feita de papel, mas tinha uma fina saia de musselina, uma estreita fita azul cruzada nos
ombros, como se fosse um xaile, presa por uma brilhante lantejoula quase do tamanho da
cara. A encantadora criaturinha tinha os braços estendidos, porque era uma bailarina; tinha
mesmo uma perna tão levantada que o soldado de chumbo nem conseguia vê-la; então ele
pensou que ela só tinha uma perna, tal como ele.
"Ora aí está a mulher que me convém", pensou ele. "Mas é tão importante; ela vive
num castelo, e eu tenho uma caixa... e estamos vinte e cinco lá dentro! Não há espaço para
ela, com certeza. Mas posso tentar conhecê-la."
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Então, deitou-se ao comprido atrás de uma caixa de rapé que estava em cima da
mesa; daí podia ver bem a dançarina de papel, que continuava de pé numa só perna sem
perder o equilíbrio.
A criada e o rapazinho foram para a rua à procura dele, mas, embora quase o
pisassem, não conseguiram vê-lo. Se ele tivesse gritado: "Estou aqui!", tê-lo-iam encontrado
facilmente, mas ele achou que não era um comportamento correto começar a gritar estando
fardado.
— Olha! Disse um deles. — Está aqui um soldado de chumbo. Vamos metê-lo num
barco.
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De repente, o barco entrou num túnel. Oh, como estava escuro, tão escuro como na
caixa lá em casa!
"Para onde irei agora?", pensou o soldado de chumbo. "Sim, isto deve ser obra do
duende. Ah! Se ao menos a jovem estivesse aqui no barco comigo, não me importava que a
escuridão fosse duas vezes maior."
Mas o soldado de chumbo não disse uma palavra; limitou-se a segurar a arma ainda
com mais força. O barco seguiu em frente, e, atrás dele, a ratazana, a persegui-lo. Ai! Como
ela rangia os dentes e gritava para os paus e palhas que boiavam na água:
Mas nada conseguia fazer parar o barco, porque a corrente era cada vez mais forte. O
soldado de chumbo avistou a luz do dia no fim do túnel, mas, ao mesmo tempo, ouviu um
rugido que bem podia ter assustado o homem mais valente. Imaginem! Mesmo no fim do
túnel, a corrente desembocava num grande canal. Era tão terrível para ele como seria para
nós um mergulho numa gigantesca queda de água.
Mas como podia ele parar? Já estava perto da beira. O barco continuou a sua corrida,
e o pobre soldado de chumbo aguentou-se o mais firme possível — ninguém podia dizer que
tivesse piscado um olho.
De repente, o pequeno barco rodopiou três ou quatro vezes e encheu-se de água até
acima; que podia acontecer senão afundar-se?! O soldado de chumbo ficou de pé, com água
até ao pescoço; o barco afundava-se cada vez mais, com o papel a ficar todo mole, até que,
por fim, a água cobriu a cabeça do soldado de chumbo. Ele pensou na linda bailarina que
nunca mais veria e lembrou-se da letra de uma canção:
Oh, como estava escuro na barriga do peixe! Ainda era pior do que o túnel e muito
mais apertado. Mas a coragem do soldado de chumbo manteve-se inalterável; lá ficou, firme
como sempre, ainda de arma ao ombro. O peixe nadava que nem um louco, virava-se e
revirava-se, e depois ficou absolutamente quieto. Qualquer coisa luziu como um relâmpago
— e então tudo à sua volta ficou claro como o dia e uma voz gritou:
— O soldado de chumbo!
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O peixe tinha sido pescado, levado para a praça, vendido e levado para a cozinha,
onde a cozinheira o cortara com uma grande faca. Pegou no soldado, segurando-o pela
cintura com o polegar e o indicador, e levou-o para a sala, para que toda a família visse a
extraordinária personagem que tinha viajado dentro do peixe. Mas o soldado de chumbo
não se sentia nada orgulhoso. Puseram-no de pé em cima da mesa e então — bem, o mundo
é assim mesmo! — ele viu que estava na mesma sala onde as suas aventuras tinham
começado; lá estavam as mesmas crianças; lá estavam os mesmos brinquedos; lá estava o
belo castelo de papel com a graciosa bailarina à porta. Continuava apoiada numa perna, com
a outra bem levantada no ar. Ah! Ela também era firme! O soldado de chumbo estava
profundamente comovido; gostaria de ter chorado lágrimas de chumbo, mas isso não era
comportamento de um soldado. Olhou para ela, e ela olhou para ele, mas não trocaram uma
palavra.
O soldado de chumbo ficou emoldurado pelas chamas. O calor era intenso, mas se
vinha do lume ou do seu amor ardente ele não sabia. As suas cores brilhantes já tinham
desaparecido — mas se tinham sido lavadas pela água durante a viagem ou pelo seu
desgosto ninguém sabia. Olhou para a linda bailarina, e ela olhou para ele; sentiu que estava
a derreter-se, mas continuou firme, de arma ao ombro. Subitamente, a porta abriu-se; uma
aragem apanhou a bailarina de papel, que voo como uma sílfide direitinha à lareira e ao
soldado de chumbo, que a esperava; aí se transformou numa chama e desapareceu.
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O Duende da Mercearia
Era uma vez um estudante, um autêntico estudante; vivia num sótão e não possuía
nada. E era uma vez um merceeiro, um autêntico merceeiro; vivia no rés-do-chão e era dono
do prédio inteiro. E foi por isso que o duende decidiu morar com o merceeiro. Além disso,
todos os Natais recebia uma tigela de papa de aveia com um grande pedaço de manteiga lá
dentro. O merceeiro tinha posses para isso, de maneira que o duende continuava a morar na
loja. Há por aqui algures uma moral, se a procurarem bem.
Uma noite, o estudante entrou na mercearia pela porta das traseiras para comprar
um pedaço de queijo e velas. Fez as compras e depois pagou, e o merceeiro e a mulher
acenaram-lhe com a cabeça e disseram «boa noite». A mulher, contudo, era bem capaz de
fazer mais do que acenar; era muito faladora — falava, falava, falava. Tinha o que se chama
o hábito de falar pelos cotovelos, disso não havia dúvida. O estudante também fez um aceno
— e foi nessa altura que viu qualquer coisa escrita no papel que embrulhava o queijo e
parou para ler. Era uma página de um velho livro de poemas, uma página que nunca devia
ter sido arrancada.
— Tenho aqui mais desse livro, se quiser — disse o merceeiro. — Dei a uma velhota
alguns grãos de café por ele. Pode ficar com o resto por seis dinheiros, se estiver
interessado.
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Ora isto foi uma frase indelicada, especialmente aquela parte respeitante à banheira,
mas o merceeiro riu-se, e o estudante também; afinal de contas, fora apenas uma
brincadeira. Mas o duende ficou aborrecido por alguém se atrever a falar assim com o
merceeiro — ainda por cima o senhorio, uma pessoa importante que era dono do prédio
todo e vendia manteiga da melhor qualidade.
Nessa noite, quando a loja estava fechada e toda a gente, excepto o estudante,
estava na cama, o duende entrou no quarto do merceeiro em bicos de pés e roubou à
mulher do merceeiro o dom de falar pelos cotovelos, porque ela não precisava dele
enquanto dormia. A seguir, fez com que cada objeto em que tocava ficasse capaz de
exprimir as suas opiniões tão bem como a mulher do merceeiro. Mas só podia falar um de
cada vez, o que era uma bênção, se não desatavam todos a falar ao mesmo tempo.
— Claro que percebo! — respondeu a banheira. — A poesia é uma coisa que vem no
fim das folhas dos jornais e que as pessoas costumam recortar. Acho até que tenho mais
poesia dentro de mim do que o estudante; e, apesar disso, sou apenas uma humilde
banheira, comparada com o merceeiro.
Depois, o duende deu o dom de falar pelos cotovelos ao moinho de café. Meu Deus,
que chinfrineira! Depois, deu-o ao pote de manteiga, e depois à caixa registadora. Todos
eram da mesma opinião da banheira e as opiniões da maioria têm de ser respeitadas.
E lá foi em bicos de pés, pela escada das traseiras acima, até ao sótão onde morava o
estudante. Havia luz lá dentro. O duende espreitou pelo buraco da fechadura e viu o
estudante a ler o velho livro da loja.
Que grande claridade havia no quarto! Do livro saía um brilhante raio de luz, que se
tornou num tronco de árvore, de uma nobre árvore que subiu e espalhou os seus ramos por
cima do estudante. As folhas eram novas e verdes, e cada flor tinha o rosto de uma linda
rapariga, algumas com olhos escuros e misteriosos e outras com olhos azuis cintilantes. Cada
fruto era uma estrela luminosa e o ar estava impregnado de um belo som de canções.
O duende nunca tinha visto nem ouvido falar de tais maravilhas; e muito menos seria
capaz de as imaginar. Portanto, ficou ali à porta, em bicos de pés, a espreitar, de olhos muito
abertos, até que a luz se apagou. O estudante devia ter assoprado a vela e ido para a cama
— mas o duende continuava sem ser capaz de arredar pé. Parecia-lhe ouvir a linda música,
que ainda ecoava no ar, ajudando o estudante a adormecer.
— Isto custa a crer — murmurou o duende para consigo. — Nunca esperei nada do
género. Acho que vou ficar no sótão com o estudante. — Depois pensou um bocado e
suspirou: — Tenho de ser sensato; o estudante não tem papas de aveia.
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E portanto, é claro, voltou para baixo, para a mercearia. Ainda bem que o fez, porque
a banheira tinha quase esgotado o dom de falar pelos cotovelos, contando todas as notícias
dos jornais que estavam guardados dentro dela. Tinha falado para um lado e estava prestes
a virar-se para o outro e a continuar quando o duende devolveu o dom de falar pelos
cotovelos à mulher do merceeiro adormecida. E, a partir dessa altura, todas as coisas da loja,
desde a caixa registadora até à lenha, seguiram as opiniões da banheira; tinham-lhe tanto
respeito que, depois daquilo, quando o merceeiro lia nos jornais críticas de peças ou de
livros, pensavam que ele tinha aprendido tudo com a banheira.
Mas o duende já não aguentava ficar ali sentado a ouvir toda a sabedoria e bom
senso pronunciados na loja; assim que via luz através das frinchas da porta do sótão, parecia
ser atraído para lá por cordelinhos, e tinha de subir a escada e pôr-se a espreitar pelo buraco
da fechadura. Sempre que o fazia, sentia-se invadido por uma sensação de indizível grandeza
— a espécie de sensação que se tem quando se vê o mar encapelado com ondas tão fortes
que o próprio Deus podia vir montado nelas! Que maravilha seria sentar-se debaixo da
árvore com o estudante! Mas era impossível.
Mas uma noite, já bem tarde, o duende acordou com uma grande agitação à sua
volta. Estavam pessoas a bater nos estores, o guarda-noturno apitava: havia fogo, e toda a
rua parecia estar em chamas. Que casa é que estava a arder? Aquela ou a do lado? Onde era
o fogo? Que gritos! Que pânico! Que agitação! A mulher do merceeiro estava tão
desorientada que tirou os brincos de ouro das orelhas e meteu-os num bolso, para salvar
pelo menos alguma coisa... O merceeiro foi a correr buscar os seus valores, a criadita foi
buscar o seu xaile de seda que tinha comprado com o ordenado. Toda a gente foi a correr
buscar aquilo a que dava mais valor.
E o duende fez o mesmo. Num pulo ou dois subiu a escada e entrou no quarto do
estudante, que estava calmamente à janela, vendo o incêndio na casa em frente. O duende
pegou no livro maravilhoso, que estava em cima da mesa, meteu-o dentro do boné
vermelho e agarrou-se a ele com os dois bracitos. A coisa mais preciosa da casa estava salva!
Depois, foi a correr para cima do telhado, mesmo para o alto da chaminé, e ficou ali
sentado, iluminado pelas chamas da casa a arder do outro lado da rua, sempre firmemente
agarrado ao boné vermelho com o tesouro lá dentro.
Agora sabia para onde o seu coração o puxava: estudante?, merceeiro? — a escolha
era clara.
Mas, quando o fogo ficou extinto e o duende já tinha tido tempo para pensar com
mais calma, bem...
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— Divido o tempo entre eles — decidiu. — Não sou capaz de abandonar o merceeiro,
por causa das papas de aveia.
Mesmo coisa de ser humano, francamente! Também nós gostamos de nos dar bem
com o merceeiro por causa das papas de aveia.
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Uma Rosa da Campa de Homero
Em todas as canções do Oriente soa o amor do rouxinol pela rosa. Nas noites calmas,
claras de estrelas, o cantor alado faz uma serenata à sua odorosa flor.
Não longe de Esmirna, sob os altos plátanos, para onde o mercador puxa os camelos
carregados que levantam orgulhosamente os pescoços altos e pisam desajeitados a terra,
que é santa, vi um roseiral florido. Pombas bravas voavam entre os ramos altos das árvores e
as suas asas cintilavam, quando um raio de sol tombava sobre elas, como se fossem de
madrepérola.
No roseiral havia uma flor entre todas a mais bonita e era para esta que cantava o
rouxinol as suas mágoas de amor. Mas a rosa estava silente, nem uma gota de orvalho havia,
como lágrima de compaixão, nas suas pétalas. Curvava-se com o caule para baixo sobre
umas pedras.
― Jaz aqui o maior cantor da terra! ― disse a rosa. ― Quero perfumar a sua campa.
Sobre ela quero derramar as minhas pétalas, quando a tempestade as arrancar. O cantor da
Ilíada tornou-se terra nesta terra, donde broto... Eu, uma rosa da campa de Homero, sou
demasiado sagrada para florir para o pobre rouxinol!
Ora vejam, isto sonhou a flor que acordou e estremeceu ao vento. Uma gota de
orvalho caiu das suas pétalas na campa do cantor e o sol ergueu-se, o dia tornou-se quente e
a rosa resplandeceu ainda mais bela do que antes - estava na sua Ásia quente. Ouviram-se
então passos, vieram estrangeiros, francos, que a rosa vira no seu sonho e entre os
estrangeiros havia um poeta do Norte. Este arrancou a rosa, premiu um beijo na sua boca
fresca e levou-a consigo para a terra de neblinas e auroras boreais.
Como uma múmia repousa agora o cadáver da flor na sua Ilíada e como em sonho
ouve ela abrir o livro a dizer: "Eis uma rosa da campa de Homero!".
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Dança, Dança, Bonequinha
— Oh, não passa de uma cantiguinha idiota para criancinhas pequeninas — declarou
a tia Malle. — Por muito boa vontade que tenha, não vejo qualquer significado na Dança,
dança, bonequinha. É uma palermice, um disparate!
Mas a pequena Amália via grande significado na cantiga. Ela tinha só três anos, mas
já sabia brincar às bonecas e estava a educar as suas para serem tão inteligentes como a tia
Malle.
Costumava ir lá a casa um estudante, que ajudava os irmãos da Amália a fazer os
trabalhos de casa e conversava muito com ela e com as suas bonecas. Ele fazia-a rir, porque
era muito engraçado e brincalhão, mas nunca fazia troça dela e falava de coisas importantes
que ambos compreendiam.
A tia Malle insistia em que ele não sabia lidar com crianças e que as cabecitas delas
não podiam entender todos os seus disparates ridículos. Mas a da pequena Amália podia. Na
realidade, ela aprendeu a cantiga do estudante toda de cor e costumava cantá-la às suas três
bonecas. Duas delas eram novas, uma menina e um menino, e a terceira já tinha um ano e
chamava-se Lisa. Lisa ouvia a cantiga — e até entrava nela!
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Bem, as bonecas compreendiam a canção, a pequena Amália compreendia-a e o
estudante também. Afinal, ele é que a tinha escrito e ele dizia que era excelente. Só a tia
Malle é que não a percebia — mas a verdade é que ela já tinha saído do mundo da infância
há tanto tempo que não admirava. A tia Malle podia dizer que a cantiga era um disparate,
mas a Amália não achava. E continuava a cantá-la.
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