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Dominique Folscheid
Jean-Jacques Wunenburger
A filosofia é sempre método - pensar
é também saber pensar mas um
método acompanhado de sua razão
de ser e de uma verdadeira cultura.
É por isso que o aprendizado da
filosofia não pode dispensara leitura,
a interpretação de textos e a redação
sobre questões constantemente
retom adas. Para todos esses exercícios
o leitor encontrará neste livro os
fundam entos teóricos, os meios
de aplicação acompanhados de
exemplos concretos. Desse modo,
cada um poderá, segundo o seu nível,
familiarizar-se com as regras do jog o
para ter sucesso nos estudos filosóficos
e, tam bém , aprender a dom inar e a
aperfeiçoar a capacidade do espírito
para julgar e raciocinar.
JEAN -JACOUES W U N EN BU R G ER
é professor de filo so fia na U n iv e rs id a d e
Jean M oulin Lyon 3 e diretor do Centro
Gaston Bachelard de p esquisas sobre
o im aginário e a racionalidade
da Universidade de Borgonha.
METODOLOGIA
FILOSÓFICA
Dominique Folscheid
Jean-Jacques Wunenburger
Tradução
PAULO NEVES
Mort/ns Fontes
São Paulo 2006
Esta obra foi publicada originalmente em francês com o título
MÉTHODOLOGIE PHILOSOPHIQUE por Presses Universitaires
de France, Paris, em 1992.
Copyright © Presses Universitaires de France, 1992.
Copyright © 1997, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.
I a edição 1997
3* edição 2006
Tradução
PAULO NEVES
Revisão da tradução
Eduardo Brandão
Revisões gráficas
Sandra Brazil
Maria CecÜia de Moura Madarás
Dinarte Zorzanelli da Silva
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial
Prefácio................................................................................... VII
Modo de uso........................................................................... XV
PRIMEIRA PARTE
OS TEXTOS FILOSÓFICOS
Seção I. Abordagem teórica............................................. 3
I. A leitura dos textos.............................. ......... 5
II. A explicação de texto.................................... 29
III. O comentário de texto................................... 49
Seção II. Exercícios práticos.............................................. 57
I. Um clássico conhecido, demasiado conhecido 67
II. Exercitar-se no discernimento...................... 85
III. Um texto clássico, mas antigo...................... 95
IV. Um diálogo..................................................... 107
V. O obstáculo da transparência....................... 119
VI. Fichas rápidas................................................. 135
SEGUNDA PARTE
A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
Seção I. Abordagem teórica............................................. 155
I. Definição do exercício....................,.....157
II. A preparação de uma dissertação................ 171
III. A realização da dissertação.......................... 213
Seção II. Exercícios práticos............................................. 231
I. Uma citação familiar..................................... 237
II. Uma definição de noção............................... 251
HI. Um problema já explícito.............................. 265
IV. Uma questão implícita.................................. 279
TERCEIRA PARTE
OUTROS EXERCÍCIOS
Seção I. Contração e síntese de textos.......................... 293
I. A contração de texto....................................... 295
II. A síntese de textos.......................................... 315
Seção II. As provas orais.................................................... 333
I. Os textos na prova oral................................... 335
II. A lição............................................................... 345
QUARTA PARTE
INSTRUMENTOS DE TRABALHO
Léxico...................................................................................... 355
Orientações bibliográficas.................................................. 375
índice remissivo................................................................... 385
índice sinóptico...............................»................................... 389
Prefácio
Modo de uso
Resumindo
M odo de uso
a - A biblioteca
1. Freqüentar os livros
Para ler textos filosóficos, é preciso primeiro dispor de
les. Esse truísmo recobre uma necessidade que tende infeliz
mente a ser apagada das preocupações prioritárias. É comum
12 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
os alunos se habituarem à facilidade que constituem os tre
chos fotocopiados pelos professores, em função das necessi
dades de seus cursos. Tal prática de modo nenhum substitui a
freqüentação direta dos textos em sua forma normal, que é a
do livro. Cumpre considerá-la, portanto, como uma ocasião
para descobrir os textos, jamais como um contato suficiente.
As bibliotecas acessíveis aos estudantes devem tomar-se
lugares familiares. É preciso acostumar-se a buscar referên
cias nos arquivos, habituar-se à disposição das estantes. E
preciso folhear üvros para rapidamente tomar conhecimento
de seu conteúdo, retirar (e devolver!) regularmente.
Os hábitos são, aqui como em toda parte, a melhor ou a
pior das coisas. Se não se freqüenta a ou as bibliotecas, não se
recorre ou pouco se recorre a elas. Se nelas se fica à vontade,
volta-se a elas sem esforço.
A passagem pela biblioteca deve tomar-se um ritual.
2. A biblioteca pessoal
Nenhum dos modos de acesso aos textos anteriormente
evocados substitui, no entanto, a posse de livros sempre à dis
posição, sobre os quais se medita longamente, que se pode
rabiscar e anotar à vontade.
Claro que a aquisição de uma biblioteca pessoal repre
senta uma despesa. Mas é um investimento necessário. Aliás,
ele não está fora de alcance, uma vez que um grande número
de textos de referência se encontra hoje em coleções de bolso.
É preciso aprender a gerenciar a despesa com regularidade.
- Comece adquirindo os livros exigidos pelos cursos que
você freqüenta. Não há estudo sério de outro modo!
- Constitua progressivamente um elenco de textos funda
mentais dos autores essenciais: Platão, Aristóteles, Descartes,
etc.
- Em relação aos textos secundários ou mais “avançados”
e também aos comentários e ensaios, você pode no começo con
tentar-se com as bibliotecas universitárias, a menos que a von
tade o domine. Em semelhante caso, você não deve contrariar
o seu impulso: deve comprar!
- É bom também obter alguns livros de síntese, próprios
para facilitar a iniciação. Você pode encontrá-los em várias
A LEITURA DOS TEXTOS 13
coleções (ver o anexo bibliográfico). Mas esses livros são
apenas instrumentos que desempenham o papel de suportes e
jamais substituem a freqüentação direta dos autores.
- Para os que pensam em aprofundar seus estudos de filo
sofia, é preciso elevar um pouco o nível de exigência, fazendo
a aquisição de algumas edições de referência - por exemplo,
as que são citadas quando se redige a dissertação de mestrado.
- E preciso também obter alguns textos em sua língua
original, a fim de poder se reportar aos conceitos e termos
técnicos úteis à reflexão, e que as traduções nem sempre ex
primem bem.
Isso vale em primeiro lugar para os textos gregos, que se
encontram sem dificuldade em livraria.
Se você não sabe grego, deve deixar de lado esse quesito?
Seria lamentável. Sabendo que, na falta de saber bem o grego,
é útil saber um pouco de grego, procure todas as fórmulas de
iniciação propostas na Universidade. No mínimo, a aprendiza
gem do alfabeto grego será extremamente proveitosa. Será pos
sível assim identificar os termos importantes, entender e ler o
professor que os utiliza ou comenta, fazer citações exatas nos
trabalhos escolares. Penosa à primeira vista, essa aprendizagem
mínima é muito mais fácil de realizar do que se imagina. Em
todo caso, é bem menos temível que a da própria reflexão filo
sófica!
O mesmo vale para as obras inglesas e alemãs, que exis
tem às vezes em coleção bilíngüe, e sempre em coleções de
bolso estrangeiras. Também aí seria bom seguir as inicia
ções propostas. Não se pedem as competências do intérpre
te, longe disso. Uma certa familiaridade com a língua já é
um trunfo considerável. Ela está ao alcance de todos.
Resumindo
- Freqüentar as bibliotecas;
- constituir uma biblioteca pessoal;
- iniciar-se nos livros de referência;
- aprender línguas vivas e antigas (ou retomar seu aprendi
zado).
14 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
b - Que textos ler?
1. Os textos filosóficos e os outros
Uma vez de posse dos textos, cumpre evidentemente lê-
los, pois ainda não foi descoberto o meio de apropriar-se
deles por osmose. Que textos e em que ordem?
Convém aqui não se imobilizar em falsos problemas. Os
textos filosóficos são, em primeiro lugar, os dos filósofos,
consagrados como tais.
Os textos dos filósofos patenteados são facilmente identifi
cáveis pelo seguinte critério: neles, a forma está inteiramente
submetida à mensagem a comunicar, a própria mensagem sendo
inteiramente redutível a um pensamento racionalmente conduzi
do, que se move exclusivamente no universo conceituai.
Se houver a menor dúvida sobre o caráter filosófico de
um texto, pode-se fazer a seguinte contraprova: perguntar-se
se o discurso desenvolvido é ou não redutível à inteligibilidade
filosófica.
- Se a forma do discurso resistir ao ponto de resultar
disso uma perda importante, é que se lida com outra coisa que
não a filosofia - literatura ou poesia, em particular.
- Se o conteúdo do discurso resiste à operação e mostra-
se condicionado por dados “positivos”, isto é, obtidos por um
trabalho sobre dados provenientes da experiência, portanto
não dedutíveis de direito, irredutíveis a conceitos, é que se
trata de “ciências humanas” - história, psicologia, sociologia,
etc. Nesse caso, dispõe-se efetivamente de conteúdos suscetí
veis de se tomarem conhecimentos e que devem ser aprendi
dos como tais.
Vê-se imediatamente que a filosofia não é uma “ciência
humana", contrariamente ao que sugerem os rótulos afixados
em nossas Universidades (geralmente ditas de “Letras e Ciên
cias humanas”) ou a menção “ciências humanas” aposta ao Di
ploma de Estudos Universitários Gerais (DEUG) que obtêm
classicamente os estudantes de filosofia.
Não obstante, existem numerosos textos que não são dire
tamente “de filosofia” mas que podem ser objeto de uma leitura
filosófica.
A LEITURA DOS TEXTOS 15
Isso é verdade em primeiro lugar para certos textos de
filósofos, que são difíceis de classificar - por exemplo, o Za-
ratustra de Nietzsche.
É verdade para muitos textos da literatura, como os de
Thomas Mann, Musil, Kafka, Aldous Huxley e muitos outros.
É igualmente verdade para autores como Freud, Lacan,
Mauss, Lévi-Strauss ou Barthes.
Todos esses textos, que podem ser considerados interme
diários ou “de passagem”, podem e mesmo devem reter a aten
ção dos estudantes de filosofia, ser objeto de leituras assíduas,
dar lugar a fichas. Não se esqueça de que a prática da filoso
fia, que pode submeter a exame qualquer objeto, ganha em
sutileza e pertinência quando acompanhada de uma verdadei
ra cultura geral. Conforme os gostos, as competências ou as
lacunas, convém portanto se esforçar sempre para ampliar e
aprofundar essa cultura através de um leitura regular de livros
de literatura, de história, de psicologia, ou relativos às ciên
cias da natureza, etc.
Só que será preciso distinguir os gêneros e as coisas, evi
tando misturar o que tem a ver com a informação, com o
conhecimento e com a reflexão propriamente dita. Mas o tra
balho será menos pesado. Como as matérias para a reflexão
filosófica são menos centrais nos cursos de formação, de
qualquer modo você precisará dedicar menos tempo a elas.
Além disso, gozará de uma liberdade bem maior, que deve
marcar a parte indispensável dos gostos pessoais e da liberda
de de iniciativa.
2. Os textos de acompanhamento
Boa parte dos textos não coloca nenhum problema de
escolha: trata-se daqueles cuja leitura é pedida ou recomenda
da pelos professores. Diretamente em contato com seus estu
dantes, eles sabem melhor que ninguém o que é necessário ler
para acompanhar seus cursos, os quais, no começo, são sem
pre de iniciação.
As abordagens, obviamente, serão múltiplas. Para alguns,
o campo privilegiado será o da filosofia antiga. Para outros,
será a filosofia clássica ou moderna. Para outros ainda, serão
16 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
lições temáticas (metafísica, ética, política, etc.). Mas sempre
haverá textos a ler. A multiplicidade das “entradas”, que con
funde os estudantes à primeira vista, na realidade favorece
sua iniciação.
Segundo as disposições e os antecedentes de cada um, o
estudante se familiarizará mais depressa com tal tipo de pen
samento ou com o pensamento de determinada época. No
limite, pouco importa: o essencial é sempre a entrada em filo
sofia.
Em ambos os casos - leitura pessoal espontânea ou diri
gida os problemas metodológicos são os mesmos. É preci
so, pois, avançar sem se questionar demais, mas avançar.
De que maneira?
3. Seguir a espiral certa
Afora os textos prescritos, o campo de ação aberto ao lei
tor é constituído por todas as obras filosóficas, das origens até
nossos dias.
Se se fizesse a lista delas para elaborar um programa,
não apenas os iniciantes se acabrunhariam, mas os próprios
filósofos patenteados. Mas o verdadeiro problema não é esse.
O essencial é entrar na ronda num ponto ou noutro.
Deixaremos evidentemente de lado a ordem alfabética
dos autores - se fosse assim, Platão seria relegado às calendas
gregas!
Evitaremos também a submissão à ordem cronológica,
que pode mostrar-se útil mas nada tem de necessário.
O essencial é começar por autores e obras que realmente
iniciem à filosofia e que não sejam de abordagem demasiado
difícil.
Por exemplo, convém não lançar-se de saída e sem guia
na Crítica da razão pura de Kant ou na Enciclopédia de
Hegel. Os Fundamentos da metafísica dos costumes, para o
primeiro, ou as Lições sobre a estética, para o segundo, são
menos opacos à primeira vista.
Do mesmo modo, é preferível começar pela República
de Platão do que pelo Parmênides. Mas isso não o impede
de chegar bem depressa aos textos principais, privilegiando
A LEITURA DOS TEXTOS 17
em particular os prefácios e introduções, geralmente mais
acessíveis.
Damos no final do volume um certo número de indica
ções bibliográficas. Convidamos o leitor a reportar-se a elas.
Contudo, uma vez mais, o essencial não está aí. Onde está,
então?
Para progredir, há apenas uma regra de ouro: dedicar-se
regularmente ao exercício da leitura filosófica, ao menos
várias vezes por semana, todos os dias, se possível.
No início, é normal avançar muito lentamente. Não con
vém precipitar-se, querer forçar o obstáculo, sob pena de criar
para si mesmo um muro intransponível de dificuldades acu
muladas.
Mas tampouco convém adiar sempre para mais tarde o
momento da aprendizagem, esperando estar melhor preparado.
Em ambos os casos corre-se o risco de entrar numa espiral
viciosa, que faz crescer as dificuldades, em vez de aplainá-las.
Para evitar isso, cumpre demonstrar ao mesmo tempo
tenacidade e paciência. Com efeito, se os conceitos ignoram
largamente o tempo, o tempo permite entrar pouco a pouco
nos conceitos. Para ser claro: a iniciação exige duração.
Evidentemente, mais vale saber de antemão que uma ver
dadeira iniciação filosófica se desenrola num número indefinido
de anos. Ao contrário do esporte de competição, eis aí pelo
menos uma disciplina que não desqualifica seus adeptos ainda
no vigor da idade! Mas também não se deve exagerar: em filo
sofia, progressos consideráveis podem ser feitos em alguns
meses, progressos que você aliás só poderá avaliar retrospecti
vamente voltando-se para seu passado recente.
Para abordar os textos sem prevenção, o novato deverá
primeiro trabalhar sua atitude, a fim de evitar dois obstáculos
preliminares: dramatizar as dificuldades e ter ilusões por cau
sa de facilidades aparentes.
Isto se constatará na prática: numerosos textos reputados
difíceis e herméticos (por exemplo, os de Descartes, Kant ou
Hegel) são afinal mais fáceis de dominar do que aqueles tão
transparentes em que não encontramos, à primeira vista, nada
a explicar ou a comentar, a tal ponto que as coisas parecem
18 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
evidentes - o que se produz muitas vezes com Rousseau, Hu-
me ou Bergson.
A razão desse paradoxo é fácil de penetrar. Um texto
tecnicamente difícil se esclarece tão logo possuímos tecnica
mente suas chaves, justamente, o que se faz por identificação
das problemáticas e dos conceitos, que atuam sistematica
mente.
Em compensação, um texto de forma muito literária,
acessível de saída, oferece em geral dificuldades considerá
veis. Nenhum conceito prende imediatamente o olhar; nenhu
ma tese parece destacar-se. Constatam-se apenas evidências,
até mesmo banalidades. Se é preciso tomar notas, dar uma
explicação, tem-se a maior dificuldade de evitar a paráfrase.
Metodologicamente falando, convém portanto evitar en-
ganar-se de regra. Em vez de invocar uma escala objetiva da
dificuldade dos textos filosóficos, é melhor dizer que ela de
pende sobretudo das capacidades do leitor, a única verdadeira
medida da dificuldade dos textos. Se invoca a dificuldade
objetiva, a pessoa desarma a si mesma, quando deveria en
cher-se de coragem para dar o melhor de si. Pois o essencial
não é o êxito objetivo, como no CAPES ou no concurso de
admissão ao magistério (Agrégation) mas os progressos pes
soais efetuados. Ora, esses progressos se fazem em todo tipo
de textos.
Só que, e não apenas para variar os prazeres (ou os traba
lhos pesados), é preciso procurar se familiarizar com os dife
rentes tipos de dificuldades que impedem a aproximação.
Esse é um trabalho encarniçado e contínuo que permite
elevar conjuntamente o nível de suas exigências, de suas lei
turas e capacidades. Mesmo os conhecimentos modestos ad
quiridos permitem ler melhor e, reciprocamente, essa leitura
favorece a iniciação, o que forma uma espiral virtuosa.
Resumindo
Resumindo
2. A leitura aprofundada
É a leitura intensa, na qual pomos toda a nossa atenção,
esquadrinhando as palavras para nelas descobrir as noções, as
frases para evidenciar as teses, os parágrafos para esclarecer
os objetos de discussão, dos pressupostos, a argumentação e
as implicações.
22 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
Essa é portanto a verdadeira leitura filosófica, no sentido
pleno da palavra.
Desta vez, é preciso dar tempo ao tempo e fixar-se em um
campo extremamente restrito. Por exemplo: meia hora por pági
na, dez minutos para uma frase importante. O objetivo é quebrar
o osso do texto para retirar a medula substancial.
Sobretudo no começo, convém colocar-se na atitude que
seria a da explicação de texto. Escolhe-se livremente uma pas
sagem e se faz como se fosse preciso explicá-la numa prova
escolar (oral ou escrita).
Portanto, reporte-se à análise da explicação de texto para
ter sobre esse ponto todos os detalhes necessários.
A ambição de tal exercício é vencer pouco a pouco o
abismo entre leitura e explicação, para que a leitura aprofun
dada se tome quase uma explicação instantânea, mesmo se
ela é reduzida em suas dimensões e retém apenas o essencial.
É nesse momento que o leitor de filosofia toma-se realmente
filósofo.
3. O treinamento misto
E bom exercitar-se em vários tipos de leituras do texto
no qual se está trabalhando.
Por exemplo, procurar percorrer rapidamente certas pas
sagens, a fim de se ter uma visão de conjunto. Depois passe à
leitura “normal” do mesmo texto, para deter-se nos pontos
importantes e praticar, então, uma leitura aprofundada. Mais
tarde, volte à leitura rápida por ocasião desta ou daquela ne
cessidade escolar, para deter-se de novo no que é mais impor
tante.
Esse treinamento “misto” exige assiduidade, sem o que é
impossível progredir.
Cumpre esforçar-se por repetir esses exercícios várias
vezes por semana, variando os textos, para ajustar-se às diver
sas necessidades (um texto de acompanhamento a trabalhar,
uma dissertação a preparar, uma leitura de fundo a proceder).
Com o hábito, é possível tender a uma leitura filosófica
de ritmo normal, que terá a velocidade que você é capaz de
dar-lhe, levando em conta a dificuldade do objeto e as capaci
A LEITURA DOS TEXTOS 23
dades de que dispomos num dado momento. O essencial é
obter a cada vez a melhor razão entre o tempo investido e o
resultado obtido.
Além disso, você deve procurar trabalhar ora de maneira
puramente oral, a fim de concentrar a atenção apenas no
texto, ora acompanhando esse esforço de um segundo, que
consiste em tomar notas.
Resumindo
- Dedicar o tempo que for necessário para ler um pequeno
trecho de maneira aprofundada;
- alternar leitura rápida e leitura aprofundada.
d - Tomar notas
Tomar notas é indispensável para concretizar seus esfor
ços, fixar ao mesmo tempo sua atenção e as idéias, preparar
um exercício escolar, aumentar sua cultura, criar instrumen
tos de trabalho duradouros que aliviarão os esforços ulterio-
res e permitirão as revisões.
Existem dois grandes tipos de notas, conforme o objetivo
buscado:
- as notas diretamente destinadas a um trabalho escolar -
dissertação, explicação ou comentário de texto. Reporte-se às
rubricas em questão;
- as notas de uso estritamente pessoal: as fichas de lei
tura.
1. Por que fichas?
A importância capital das fichas pode ser provada a con
trario. Basta pensar nessa experiência tão aborrecida quanto
corriqueira que é o esquecimento de textos lidos de maneira
lenta e penosa, caso não se tenham conservado vestígios es
critos do trabalho.
Não é a memória enquanto tal que devemos incriminar
se não nos “lembramos” de um texto filosófico como de um
24 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
filme ou de um romance. Com efeito, os pensamentos dos
outros não podem se tomar para nós “lembranças” no sentido
estrito. Existe aí como que uma distorção de nossas funções.
A memória está de uma certa maneira envolvida, mas ela não
predomina - e não deve predominar, sob pena de travestir o
pensamento de saberes exteriores. Independente da integração
dos pensamentos dos outros em nosso pensar, o verdadeiro
lugar onde se depositam os pensamentos é o papel. Isso vale
tanto para o filósofo experiente quanto para o aprendiz. O
tempo passado sobre os textos, mas que não se concretiza em
fichas, é praticamente tempo perdido.
As fichas são, portanto, absolutamente indispensáveis. É
a partir delas que se pode ter uma idéia precisa, ao mesmo
tempo global e detalhada, dos textos filosóficos e de seus
autores. São elas que devem ser revisadas em primeiro lugar,
antes de uma prova. O que há de “útil” numa cultura filosófi
ca universitária depende diretamente da qualidade das fichas
redigidas.
Como esse trabalho não pode ser feito em situação de ur
gência, por exemplo em período de exames, ele deve esten
der-se ao longo de todo o ano de trabalho, acompanhando
sistematicamente cada leitura.
2. Como fazer fichas?
As fichas são tão pessoais que é impossível fixar normas
imperativas. Cada um deve aprender a conhecer-se em todos
os seus aspectos para montar fichas que sejam as mais provei
tosas. Elas dependem, com efeito, do tamanho da escrita, da
preferência pelas fichas normatizadas ou por folhas soltas, blo
cos ou cadernos. Entretanto, é possível dar algumas indicações
razoáveis, diretamente deduzidas dos objetivos visados.
- O tamanho das fichas deve corresponder ao conteúdo
dos livros. Por exemplo, uma ficha de formato 10 X 15 é inca
paz de conter a Crítica da razão pura. Mas cinqüenta folhas
frente-e-verso serão impraticáveis. Cabe a cada um encontrar
a boa medida, que oscilará entre dez e vinte folhas de caderno
para o referido livro, que é considerável. Em todo caso, é pre
ciso que o essencial seja inscrito, com suas articulações e seus
conceitos principais.
A LEITURA DOS TEXTOS 25
- Estabeleça seu sistema pessoal de abreviações. Todos os
termos repetitivos devem ser abreviados (por exemplo: “sem
pre” em “sp”, “tempo” em “tp”). As grandes categorias filosó
ficas também (exemplo: “moral” em “M”). Os sinais matemáti
cos oferecem abundantes recursos. Enfim, é preciso acostumar-
se a redigir em estilo telegráfico (mas inteligível) para econo
mizar espaço e aumentar a densidade filosófica da ficha.
Quanto maior for essa densidade, melhor será a ficha.
- Recorra a cores diferentes, seja para sublinhar, seja
para redigir. O essencial é obter o máximo de clareza e possi
bilitar a revisão mais rápida e mais eficaz possível.
- Habitue-se a anotar com precisão todas as referências
(edição, ano, tradução, partes, paginação), a fim de poder lo
calizar-se depois no texto e partir da ficha para efetuar um
trabalho.
Observação - Quando se redige, as referências devem
tender a se alinhar conforme o seguinte modelo: autor, título
da obra, lugar de edição, editor, ano, página.
Exemplo: XYZ, Méthodologie philosophique, Paris, PUF,
1992, p. 27.
Com editor de texto ou máquina de escrever, põe-se o
título em itálico (e não entre aspas), ou sublinha-se (equiva
lente dos itálicos ausentes).
À mão, sublinha-se o título (sem aspas).
Entretanto, essas exigências serão adaptadas ao tipo de
exercício pedido e ao nível de estudo em que o aluno se
encontra (sem esquecer que convém antes de tudo satisfazer
às exigências precisas dos professores). Por exemplo, para
uma dissertação de filosofia geral, manuscrita, o nome do
autor e o título (sublinhado, sem aspas!) do livro serão em
geral suficientes. Quanto à indicação da página, depende. Em
compensação, para uma dissertação de história da filosofia,
um comentário de texto e, sobretudo, uma tese acadêmica, é
preciso imperativamente submeter-se às exigências maiores,
as dos editores. Toda negligência ou omissão é então conside
rada uma falta.
26 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
e - 0 caderno de vocabulário
Para que uma leitura seja enriquecedora, é preciso igual
mente assinalar e classificar os conceitos encontrados, forne
cendo seu contexto (autor, livro, referências) e sua função,
condições necessárias para que as definições indicadas sejam
de natureza filosófica.
Esse trabalho é não somente indispensável para aumentar
sua cultura filosófica, mas também extremamente “rentável”
para toda espécie de exercício. Os textos que freqüentamos
são uma mina a explorar diretamente. Não se prive de fazê-lo.
Como?
Do ponto de vista material, cabe a cada um organizar-se
conforme suas preferências, utilizando fichas ou um classifi-
cador, escolhendo uma classificação por ordem alfabética.
Do ponto de vista metodológico, é preciso saber que se
rão encontrados três grandes gêneros de termos:
- o primeiro compreende termos que não são propriamente filo
sóficos, mas podem adquirir um sentido filosófico. Por exem
plo: “bom senso”, “senso comum”, “intuição”, “liberdade”,
“mundo”, “natureza”;
- o segundo compreende termos filosóficos universalmente usa
dos (por exemplo: “essência”, “substância”, “idéia”, “razão”),
mas que adquirem significações diferentes conforme a época,
o contexto doutrinai ou o autor;
- o terceiro compreende termos absolutamente específicos,
que é impossível retirar de seu contexto sem o risco de
interpretação errônea (por exemplo: o “transcendental” em
Kant).
Do ponto de vista do espírito filosófico da operação,
deve-se avaliar de antemão toda a diferença entre um caderno
de vocabulário e um dicionário - instrumento perigoso para o
aprendiz de filósofo que o empregasse sem precauções.
Com efeito, um dicionário indica para cada termo uma
ou várias definições, atestadas pela língua. Como esse instru
mento funciona segundo o princípio de autoridade, corre-se a
tentação de copiá-la com toda confiança. Infelizmente, não se
A LEITURA DOS TEXTOS 27
vê que, na maior parte das vezes, as pretensas “definições”
das palavras segundo o costume encobrem teses filosóficas
concernentes a noções, ao passo que o contexto, as premissas,
os debates, o exame crítico e o esforço de produção racional
são escamoteados. A definição de dicionário é portanto do
tipo “pegar ou largar”.
Para a reflexão filosófica, ao contrário, as noções filosó
ficas jamais devem ser tratadas como entidades isoladas. Um
termo filosófico não é um ponto de partida dado de antemão,
que impõe seu sentido sem discussão, mas o resultado de um
processo racional com seus pressupostos, suas implicações.
Em suma, todo termo cumpre uma “função” num movimento
de pensamento coerente. Seu sentido decorre dessa situação, e
não o inverso. Jamais se parte de um sentido, chega-se a ele.
O sentido é um resultado.
Vendo apenas por um lado, esse estado de coisas permite
compreender a recriminação feita comumente aos filósofos:
que eles falam línguas diferentes e são incapazes de se enten
der. No entanto, o que há de mais normal? Por exemplo, como
se poderia definir o termo “idéia” de uma vez por todas, quan
do se sabe o que significa “idéia” em Platão, Descartes, Hume
e Hegel? E como se poderia definir em si mesmo o termo “li
berdade”, sabendo que isso envolve ao mesmo tempo toda
uma filosofia da liberdade?
Vê-se assim o interesse capital de um caderno de vocabu
lário elaborado a partir de leituras diretas. As noções receberão
um sentido preciso, num contexto dado, num autor determina
do. Com isso, você obterá elementos de base perfeitamente
identificados e autenticados, que serão muito úteis em inúme
ros exercícios - explicação, comentário ou dissertação.
Portanto, não há por que assustar-se com uma tecnicida-
de que pareceria insuperável. Basta classificar por ordem alfa
bética as noções principais encontradas (deixando de lado as
secundárias, para não ser esmagado pelo volume). Ao cabo de
certo tempo, um número importante de referências devida
mente aferidas estará à sua disposição.
Outra vantagem, que não deve ser negligenciada: você
estará cada vez menos ingênuo diante dos termos propostos
nos enunciados de temas. Sabendo que não há um sentido
28 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
decidido de uma vez por todas, vazado nas sentenças de um
dicionário, mas um conteúdo a buscar, a refletir ou a produzir
no interior de um contexto em que o conceito tem sua função,
você será estimulado à pesquisa, com a vigilância crítica que
se impõe.
Dito isto, pode ser bom referir-se a certas obras especia
lizadas (vocabulário e dicionários filosóficos). Se você não se
deixar submergir pela abundância e complexidade, se tomar
cuidado na elaboração que acompanha o material fornecido,
poderá tirar lições edificantes. Mas nada substituirá o caderno
de vocabulário fabricado por você mesmo, “apropriado” por
definição, portanto muito mais fácil de memorizar e utilizar.
Resumindo
M odo de uso
Resumindo
Resumindo
Resumindo
Resumindo
c - A conclusão
Concluir é uma operação tão delicada quanto perigosa.
Geralmente pressionados pelo tempo, somos tentados a escre
ver qualquer coisa, obedecendo a reflexos escolares longamen
te experimentados, porém maus conselheiros.
A fim de evitar o perigo, convém mostrar-se de uma extre
ma sobriedade. Para concluir, é preciso:
1. Retomar sucintamente as questões essenciais e respon
der a elas, se houver uma resposta no texto.
A EXPLICAÇÃO DE TEXTO 45
2. Deliberar sobre o debate, se for possível, sabendo que é
nesse ponto que o perigo de derrapagem é maior. Com efeito,
procure permanecer no âmbito do texto, podendo ultrapassá-lo
um pouco, se ele desempenhar um papel significativo e eviden
te no interior da obra ou no debate geral das idéias. Se for pedi
do um comentário, você poderá ir mais longe e encerrar a dis
cussão (na medida do possível).
3. Ser comedido e modesto, proscrevendo qualquer “am
pliação” do debate no sentido escolar da palavra. Nunca invo
que a humanidade e os deuses como testemunhas, pontuando
grandes sentenças vazias com aqueles termos em “ismo” que
erradamente se acredita darem consistência ao que se afirma.
É nessa etapa da conclusão que se comete geralmente o
maior número de erros ou de aberrações. É como se, frustrado
por ter seguido docilmente um autor, você buscasse uma peque
na revanche, querendo mostrar que também é capaz de refle
xão. Resista com todas as forças a essa tentação.
Resumindo
d - A redação
Na prova escrita, siga o método utilizado em dissertação,
mostrando-se ainda mais rigoroso em certos pontos.
1. 0 problema do rascunho
É preciso evitar tanto quanto possível o rascunho, pelo
menos para o corpo da explicação. O ideal é redigir diretamente,
seguindo seu plano detalhado, no qual devem figurar as noções
importantes, sua análise, bem como todas as articulações.
46 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
Por que esse conselho, que irá chocar mais de um estudante?
Porque o rascunho apresenta múltiplos inconvenientes:
- constitui uma perda de tempo, já que é preciso passar a
limpo, quando há tanta coisa a fazer;
- não requer nenhuma vigilância, já que sabemos que é um
rascunho. Portanto, é uma incitação ao desleixo do pensa
mento e da escrita;
- oferece um álibi cômodo à negligência, pois nos dizemos
que vamos corrigir;
- em geral, é inútil, uma vez que a falta de tempo obriga seja a
recopiar o rascunho sem correções, seja a redigir um novo
texto diretamente na hora de passar a limpo, quando se tem a
intuição de que o primeiro esboço não convém.
Em compensação, é preciso redigir antecipadamente,
com cuidado, várias vezes se necessário, a introdução e a con
clusão, onde os riscos são maiores. Essa redação preparatória
só deve ser feita depois de estabelecida inteiramente a explica
ção com base no plano detalhado.
Cada um é livre para seguir ou não esses conselhos; no
entanto, recomendamos uma tentativa. Se esta não for convin
cente, o estudante pode voltar à sua técnica habitual, procuran
do, ainda assim, tomá-la o menos pesada possível.
2. A arte de não se afastar do texto
Aqui, evite tanto escrever de mais como de menos.
Ao redigir, mantenha constantemente um olho no texto,
em vez de deixá-lo de lado. Esse é o único meio de não derra
par, de reparar um erro ou um esquecimento.
Mas jamais ceda à tentação cômoda de recopiar longas
passagens do texto, para mostrar que permaneceu atento. Con
tente-se, portanto, com as citações estritamente necessárias.
Enfim, evite perder-se nas indicações de linhas e de pará
grafos, o que toma inutilmente pesada a leitura, sendo o texto
conhecido de quem corrige.
A EXPLICAÇÃO DE TEXTO 47
Resumindo
Modo de uso
I. Os princípios do comentário
Como seu nome o indica, o objetivo do comentário é mui
to diferente do da explicação.
Desta vez, não se trata mais apenas de expor o que um
autor realmente disse num texto preciso, mas de estalecer um
diálogo com ele, a fim de dar ao texto considerado sua função
no interior da obra da qual é extraído e de apreciar seu papel no
pensamento filosófico do autor.
É normal que tal dispositivo resulte numa discussão mais
ampla, na qual a reflexão pessoal do comentador e o pensa
mento de outros autores têm um papel a desempenhar, às vezes
muito importante.
No horizonte do comentário, que é também o da filoso
fia, pura e simplesmente, mesmo se isso for apenas uma as
piração impossível ou uma simples idéia reguladora, trata-
se de interrogar-se sobre o que o autor em questão disse de
verdadeiro.
50 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
Nessas condições, o comentário afigura-se como um exer
cício muito mais vasto e ambicioso que a explicação. Entre
tanto, ele também possui seus limites, pois inscreve-se priorita
riamente no contexto da história da filosofia. Por isso apresen
ta-se geralmente como um exercício bem balizado, circunscrito
no interior de um programa fixado de antemão, a título de con
firmação de um trabalho conduzido ao longo de todo um ano de
preparo.
Diferentemente da explicação, que pode ser realizada
com brilho sobre um autor que se conhece pouco ou até nem
se conhece, o comentário supõe conhecimentos precisos, len
tamente adquiridos e bem assimilados. Supõe igualmente um
trabalho assíduo sobre os textos dos comentadores.
Isso não impede a existência de um tipo de comentário
considerado como exercício filosófico geral - caso, na França,
da terceira prova escrita do baccalauréat*.
Nessa hipótese, é a cultura pessoal do estudante que é so
licitada, independentemente da inscrição precisa de um autor
num programa de estudos.
Vê-se assim que o comentário oscila entre dois pólos:
- o exercício de história da filosofia, que confina com a eru
dição;
- o exercício especulativo a partir de um texto-suporte. Nesse
último caso, o comentário deverá integrar o essencial dos
elementos desenvolvidos a propósito da dissertação filosófi
ca, a diferença maior sendo que se parte de um texto em vez
de recorrer livremente a autores.
Assim, é essencial não confundir explicação e comentá
rio, que cumprem funções bem distintas e dão lugar a exercí
cios muito diferentes.
Por exemplo, a explicação de texto, na França, é uma pro
va do CAPES (sem programa determinado previamente), o co
mentário, uma prova do concurso de admissão ao magistério
(com base em programa).
O estudante deve portanto ajustar seus esforços ao tipo de
exercício que lhe é pedido, quer se trate de deveres, de controle
* Exame final do 2Bgrau, que dá acesso à universidade. (N. do T.)
O COMENTÁRIO DE TEXTO 51
contínuo, de exames ou de concurso. A regra do jogo é sempre
claramente anunciada: pede-se para “explicar” ou para “co
mentar”, ou então para “explicar e comentar”, quer o contexto
seja o de um programa de história da filosofia ou de uma refle
xão temática, quer não haja programa nenhum.
Resumindo
b-Apreparação do comentário
Como o objetivo do comentário é diferente do da explica
ção, é preciso que esse trabalho preliminar possibilite as modi
ficações e os prolongamentos que se impõem. Nessa etapa,
apresentam-se dois obstáculos. Com efeito:
- é preciso manter a ordem das operações para não recair nos
perigos da leitura orientada, portanto, falseada;
- mas é preciso igualmente evitar justapor duas exposições su
cessivas, uma constituída pela explicação, outra pelo comen
tário.
Na prática, procure trabalhar em várias folhas ao mesmo
tempo - ou várias colunas -, a fim de inscrever primeiro o
que se refere à explicação propriamente dita, depois encadear
horizontalmente as considerações que pertencem ao comen
tário.
Por exemplo, numa primeira coluna disponha os elemen
tos de explicação (tema, tese, noções, etc.) e coloque ao lado,
numa segunda coluna, as referências à obra, à doutrina e à his
tória das idéias.
O COMENTÁRIO DE TEXTO 53
Se o contexto do exercício o exigir, disponha numa tercei
ra coluna os elementos de uma reflexão mais pessoal, a fim de
preparar a discussão.
Esse trabalho deve ser prosseguido minuciosamente até o
final do texto, respeitando sempre essa ordem, a fim de que
expectativas, lembranças ou preconceitos intempestivos não
venham turvar o olhar sobre o texto, o que é a fonte principal
da fuga do tema, do comentário lacunar ou deformado, e outros
defeitos bem conhecidos.
d - A introdução ea conclusão
Esboçadas tantas vezes quantas for necessário após a ela
boração do plano detalhado, a introdução e a conclusão devem
O COMENTÁRIO DE TEXTO 55
se ajustar às necessidades do comentário tal como foi cons
truído.
- É importante não deduzir disso que elas devam ser mais
longas: conserve a mesma sobriedade e o mesmo rigor que na
explicação. Apenas a inflexão deve mudar. Em vez de centrar
tudo no texto, procure elevar-se ao nível dos problemas que ele
coloca, seja no estrito contexto da obra do autor (comentário de
história da filosofia), seja no âmbito do debate filosófico geral.
- O mesmo vale para o anúncio do plano, que é preciso
apresentar na forma de questões principais que correspondam
ao mesmo tempo ao texto de partida e aos objetos de discussão
históricos e filosóficos.
- Enfim, o balanço final e a conclusão do debate serão
orientados conforme as situações. No âmbito da história da fi
losofia, a conclusão poderá ser relativamente técnica. No qua
dro da filosofia geral, ela tenderá mais para a reflexão especu
lativa.
Resumindo
d - Explicação e comentário
Poderíamos ter tratado da explicação e do comentário de
texto em duas partes distintas. Mas preferimos, em geral, asso
EXERCÍCIOS PRÁTICOS 63
ciar esses dois tipos de exercícios a propósito de um mesmo
texto.
O motivo não é unicamente a preocupação de economizar
espaço - o que, em matéria de textos, tem a ver com uma evi
dente necessidade material. Trata-se sobretudo de aproveitar
ao máximo a sinergia dos exercícios. Com efeito:
- como a entrada num texto preciso requer um forte dis
pêndio de energia, convém aproveitar a penetração nele para
melhor dedicar-se à dimensão metodológica e, portanto, técni
ca, desses dois exercícios;
- como o comentário depende muito dos programas de
história da filosofia, eminentemente variáveis, não se poderia
tratá-lo a fundo senão expondo a doutrina precisa de um livro
ou de um autor, o que nos faria sair do âmbito puramente me
todológico desta obra.
Disso resulta que os esboços de comentários que propo
mos devem ser completados pela cultura filosófica de cada
um, no âmbito do programa que ele cumpre.
Os livros da mesma coleção, dedicados à história da filo
sofia, fornecerão a esse respeito complementos úteis.
e - Como trabalhar?
1. Demonstrar iniciativa
Como a escolha dos textos e sua progressão dependem de
critérios muito relativos, cada um deve demonstrar iniciativa
pessoal, a fim de ajustar da melhor maneira seus esforços.
O leitor aprendiz deverá portanto percorrer uma primeira
vez os diferentes capítulos, a fim de determinar o que melhor
lhe convém na situação em que se encontra, o que pode levá-lo
a modificar em seguida a ordem proposta, para equilibrar me
lhor os diversos parâmetros em jogo.
2. Mostrar-se ativo
Os textos propostos são tratados de maneira variável, em
função da ordem pedagógica adotada e de sua posição na ti
pologia adotada.
64 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
Procuramos sempre nos colocar na posição do estudante
que aborda o texto e o trabalha. Quando um esboço de exercí-
cio-modelo é fornecido, é de maneira auxiliar e secundária, a
fim de evitar toda recepção passiva e de dissuadir os amantes
de imitações.
No início dos “exercícios práticos", desenvolvemos ao má
ximo a abordagem do texto e as recomendações, sem hesitar
em repetir-nos. Porém, à medida que avançamos, abreviamos
esse procedimento. Para alargar nosso campo e multiplicar os
exemplos, terminamos por fornecer simples fichas metodoló
gicas.
Com esse reforço inicial, o estudante será conduzido a uma
autonomia cada vez maior.
Em todo caso, convém não hesitar em voltar atrás. Com
pete a cada um selecionar os exercícios segundo suas necessi
dades do momento, a fim de possibilitar um máximo de traba
lho pessoal.
Por isso, para facilitar as coisas, pedimos explicitamente
que seja efetuada esta ou aquela pesquisa ou operação numa
etapa determinada do estudo.
Cumpre assim afastar-se do livro para só voltar a ele uma
vez realizada essa tarefa.
Enfim, como não há magia nesse domínio, convém reto
mar várias vezes os mesmos percursos até a completa apro
priação.
O objetivo visado deve ser uma habilidade prática, até o
aparecimento de uma “segunda natureza" - uma virtude de
ordem intelectual.
3. Acumular os conhecimentos adquiridos
Para ser proveitoso, esse trabalho deve ser praticado em
alternância com outros exercícios: leitura rápida, leitura
aprofundada, tomada de notas - sem esquecer o que é pedido
no âmbito de seu programa escolar.
Quando explicações ou comentários são praticados em
curso, por ocasião dos testes contínuos ou dos exames, é preci
so aproveitar as más notas para tomar consciência de suas ca
pacidades e defeitos.
EXERCÍCIOS PRÁTICOS 65
Em termos práticos, é muito útil constituir uma espécie de
“lembrete" pessoal, ficha detalhada na qual se anotarão com
cuidado as dificuldades maisfreqüentemente encontradas (tanto
na gestão do tempo como na relação com o texto), os erros
favoritos, os esquecimentos rituais, os tiques retóricos, a fim
de transformá-los em representações claramente presentes ao
espírito e, depois, em reflexos (positivos ou de fuga). Esse tra
balho é extremamente importante e, concretamente, sempre
muito recompensador.
4. Trabalhar sobre outros textos
As amostras propostas são apenas exemplos a serem con
siderados não como fins em si mas como rampas de lança
mento.
Se elas devem ser trabalhadas com cuidado, é a título de
matrizes metodológicas para exercícios praticados sobre ou
tros textos, determinados segundo as necessidades ou os gos
tos dos estudantes.
Portanto, é preciso também aprender a fechar este livro
para retomar todos os seus procedimentos em relação aos tex
tos (e aos autores) que ele não aborda.
Resumindo
DESCARTES
Modo de uso
I. Métodos de trabalho
Eis-nos em presença de um texto celebérrimo. Com um
texto assim, lido e relido, freqüentemente estudado já no últi
mo ano colegial, a ascese requerida é mais difícil do que em
outros casos. Pode-se até sentir uma espécie de náusea: o que
há ainda a dizer sobre algo tão conhecido que parece só pode
mos oferecer como que uma carne já mastigada?
É preciso, pois, começar por adotar a atitude adequada.
Praticamente;
- Para respeitar o imperativo primordial da atenção ao
texto, poremos viseiras a fim de considerar apenas o texto, tal
como se apresenta, repelindo a memória para as trevas exterio
res, a fim de evitar a tentação de “enriquecer” o exercício “con
tando” o que se julga reconhecer da doutrina cartesiana. Ar
mados de um lápis (para anotar o texto) e de um papel (para
registrar as primeiras indicações interessantes), iremos primei
ro passar pelo crivo o conjunto do texto, conservando no espí
rito as diversas tarefas a cumprir.
- Para que esse primeiro experimento prático seja real
mente iniciático, nos colocaremos na ordem de descoberta do
texto, que não é a ordem de exposição (da explicação ou do co
mentário).
Essa distinção é necessária, se quisermos contrariar a ten
dência natural a precipitar o julgamento (tema bem cartesiano,
por sinal!), fonte de múltiplos equívocos.
Vamos à luta.
UM CLÁSSICO CONHECIDO, DEMASIADO CONHECIDO 69
a -D e que se trata?
O objeto (ou tema) do texto não salta aos olhos - ou me
lhor, não deve saltar aos olhos. É verdade que a primeira linha
retém o olhar: “O bom senso é a coisa mais bem distribuída do
mundo.” Mas evitamos deduzir imediatamente que o texto
trata do bom senso. Uma linha não basta.
Indo um pouco mais adiante, poderíamos supor que o
texto trata da razão. Mas, como Descartes remete finalmente
esse tema à opinião filosófica comum, de modo nenhum é
certo que faça disso o verdadeiro objeto de seu discurso - a
menos que ruminemos banalidades.
A tese central não é mais fácil de se descobrir. Certamen
te, a fórmula sobre o bom senso ou sobre a razão “por natureza
igual em todos os homens” é precisa. Mas, como o fim do texto
anula aparentemente o caráter singular (e até provocador) da
afirmação, não avançamos.
Resta considerar a segunda metade do primeiro parágrafo,
que faz surgir o motivo do método. Para um livro que pretende
explicitamente tratar dele, é um tema a assinalar. Mas é preciso
ainda articular razão e método, e integrar outros elementos pre
sentes no texto, o que complica nossa tarefa.
Assinalaremos em particular a utilização da noção de es
pírito, que permite a Descartes reintroduzir a desigualdade que
ele recusava à razão.
Moral: renunciamos, por enquanto, a nos pronunciar so
bre o tema e a tese. Voltaremos a esse ponto quando estivermos
bem armados, após a exposição da argumentação. O essencial
aqui é ter levantado questões, evitando cuidadosamente com-
prometer-se em respostas.
É nesse estágio inicial que se decide a sorte da explicação.
Toda resposta prematura funciona como uma chave, que obriga
em seguida a ler o texto de través, a deformar seu sentido, a negli
genciar o que não coincide com a chave. A primeira lição, portan
to, é que devemos deixar tudo em aberto.
70 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
b - A identificação das noções-chave
1. A noção de “bom senso"
Uma leitura atenta permite em primeiro lugar equacionar
esse “bom senso”, que introduz o discurso, em equação com “o
poder de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso, que é
propriamente o que se denomina bom senso ou razão”.
Eis aí o que já elimina o sentido vulgar de “bom senso”
como “sensatez”. Indo um pouco mais longe (o que deverá ser
objeto de análises mais amplas, se a tarefa pedida for um co
mentário), pode-se também excluir o “bom senso” (em latim,
bona mens) como “sabedoria prática”.
Sendo assim, pode-se considerar que a proposição “O
bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo” deve ser
compreendida exatamente como esta: “A razão é naturalmente
igual em todos os homens.”
Compreende-se ao mesmo tempo o final do texto: “A
razão ou senso (...) é a única coisa que nos toma homens e nos
distingue dos animais.”
A invocação da “opinião comum dos filósofos” serve-nos
para caucionar filosoficamente o que foi dito mais acima:
quando se trata da “forma” ou da “natureza” - isto é, da essên
cia - de um ser, não existe diferença de grau (“mais e menos”)
como é o caso dos “acidentes” (o que acontece, mas não modi
fica a essência).
Em outros termos, a razão como tal é essencial para o
homem enquanto homem. Ela o define especificamente.
As duas proposições precedentes (sobre a distribuição do
bom senso e a igualdade da razão) são portanto identificáveis a
esta terceira: a razão existe “inteiramente em cada um de nós”.
2. A noção de julgamento
Essa razão (ou bom senso) é mais precisamente definida
como “poder de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do fal
so”. Trocando em miúdos: a razão não é primeiramente facul
dade de raciocinar - dito em filigrana: ela não consiste primei
ramente nessa operação temária capaz de identificar dois ter
mos pela mediação de um terceiro, à qual chamamos silogismo.
UM CLÁSSICO CONHECIDO, DEMASIADO CONHECIDO 71
A razão cartesiana é antes julgamento (termo que designa tanto
o ato de julgar quanto seu resultado - um julgamento), operação
que consiste em identificar (julgamento positivo) ou separar
(julgamento negativo) um sujeito e um predicado.
O julgamento implica o poder de “distinguir o verdadeiro
do falso”, ou seja, de discriminar, dividir (em grego, julgamento
se diz krisis, que evoca a separação). Julgar, para Descartes, é
portanto conceder ou recusar seu consentimento do ponto de
vista da alternativa do verdadeiro e do falso.
Podemos então individuar uma noção implicada na espon
taneidade do julgamento, mas que não se mostra à superfície
do texto: a de liberdade da razão - livre para afirmar o verda
deiro como verdadeiro, o falso como falso, e discriminá-los.
Surge também, como veremos, a possibilidade de nos enganar
mos nessa operação.
3. A noção de método
Eis um bom exemplo de noção presente num texto, mas
que não é apresentada como tal. Privados da palavra, temos no
entanto a coisa. De que modo?
Ao declarar que “conduzimos nossos pensamentos por
diversas vias”, Descartes não privilegia mais a razão, e sim a
maneira de conduzi-la. É precisamente o sentido etimológico
da palavra “método”: conduzir segundo certa via.
Ora, Descartes observa - é um fato - que as vias, as ma
neiras, são múltiplas. O método - desta vez de direito - não irá
exigir uma via única?
Descartes pode então detalhar certas características típi
cas da conduta metódica: andar “muito lentamente” ou correr,
seguir “o caminho certo” (enquanto alguns também podem afas
tar-se dele, saindo do método).
O motivo central oscila portanto entre o bom senso (ou
razão) e seu uso. E esse uso consiste inteiramente no método.
4. A noção de espírito
O tom muda bruscamente no início do segundo parágrafo.
À igualdade essencial da razão como tal opõe-se a desigualdade
de espírito.
72 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
Vemos imediatamente que o “espírito” distingue-se da ra
zão, embora esta última, constitutiva do homem, esteja tam
bém compreendida no espírito.
Descartes fornece três atributos do espírito, para explicar
diferenças constatadas entre os homens: o pensamento, a ima
ginação e a memória.
- O pensamento: não se trata do pensamento em ato, pen
samento pensante do cogito, que permite identificar-me como
substância pensante, mas de um instrumento - a inteligência,
em suma -, cuja “prontidão” é uma qualidade (mas a precipita
ção um defeito).
- A imaginação: é a segunda qualidade do espírito. Como
seu nome indica, é a faculdade de formar e associar imagens.
Seu campo de ação é empírico e não desempenha nenhum papel
em metafísica (tratando-se, por exemplo, das idéias de Deus ou
da alma). Sua matéria-prima é fornecida pela experiência, mas
ela tem o poder de combinar seus elementos de outro modo (por
isso é capaz de produzir também monstros). Seus critérios de
qualidade são os da imagem: a “nitidez” e a “distinção” - o
equivalente, num outro plano, da clareza e da distinção da idéia.
Não obstante, a imaginação tem seus limites: por exemplo, é
possível construir geometricamente uma figura com mil lados,
mas não se pode imaginá-la.
- A memória: é o terceiro atributo do espírito. Ela deve
servir, como diríamos hoje, de “banco de dados”, já que é uma
faculdade de reprodução. Ela se caracteriza primeiramente por
sua “amplidão”, que é um critério de ordem quantitativa. De
pois, pela “presença”, que é de ordem qualitativa. Esta última
característica é tipicamente cartesiana (consideremos que o
cogito conjuga-se no presente). Os dados da memória devem
poder ser mobilizados no tempo da pesquisa, o que se opõe ao
esquecimento e à distração.
Como esses três atributos dão conta plenamente do espíri
to, Descartes considera sua lista esgotada: “E não conheço
outras qualidades, além destas, que sirvam para a perfeição do
espírito.”
Com o espírito, obtemos a verdade daquilo que chamamos
abusivamente “razão”, quando queremos falar de nossas capa
cidades pessoais nativas, desiguais por natureza. O espírito po
UM CLÁSSICO CONHECIDO, DEMASIADO CONHECIDO 73
de ser julgado segundo seu desempenho, e admite diferenças
de grau - o que não é o caso da razão.
Mais ainda: o espírito pode ser um objeto para a razão,
que o examina, pesa, aprecia e julga.
Primeiro balanço - De que trata nosso texto?
Vários estratos estão doravante identificados:
- No fundo, há a razão como característica essencial do
homem, seja qual for o homem.
- Acima, há as diferenças de espírito, que decorrem do
desempenho variável do pensamento (operatório), da memória
e da imaginação.
- Mas essas diferenças mesmas não são a chave da “diver
sidade de nossas opiniões”, uma vez que os lentos podem avan
çar mais do que aqueles que correm, contanto que sigam o bom
método (“o caminho certo”).
Disso resulta:
- Que Descartes estabelece primeiro a condição de fundo,
incondicional, de toda filosofia em sentido amplo: a racionali
dade do ser humano. O tema do texto é, portanto, o seguinte: as
condições de possibilidade e de realidade de toda filosofia pos
sível.
- Que a tese cartesiana destacada sobre esse fundo, cuja
banalidade o próprio autor reconhece, é a importância decisiva
do método.
Ele opera assim em dois registros: o da igualdade (de fun
do) e o da desigualdade (do espírito), o que implica o emprego
de um método, o conjunto explicando a variedade de nossas
opiniões - portanto, a existência do erro embora a faculdade
de julgar o verdadeiro e o falso não esteja em causa. Eis aí toda
a originalidade da reflexão.
c - A argumentação de Descartes
Estando resolvidas as principais dificuldades de acesso, é
preciso agora individuar a argumentação do autor, isto é, iden
tificar e detalhar os movimentos lógicos de seu pensamento.
74 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
Esse texto apresenta uma pluralidade de argumentos situa
dos em planos muito diferentes.
1. 0 argumento do desejo
A primeira justificativa da asserção inicial sobre a igual
distribuição do bom senso causa uma certa surpresa. Com efei
to: a prova de que a razão é a coisa mais bem distribuída do
mundo é que os mais difíceis de se contentarem com outras coi
sas não manifestam nenhum desejo de tê-la ainda mais.
Esse tipo de argumento é clássico: se a sede existe, tam
bém deve haver com que saciá-la. O que não é comum é a de
monstração pela ausência de desejo. Dito claramente: ninguém
deseja ter mais razão, todos acham que a têm suficientemente; a
prova: ninguém deseja ainda mais razão. Assim como o desejo
revela a penúria (basta considerar as frustrações sentidas em
todos os outros domínios para percebê-la claramente), do mes
mo modo sua ausência manifesta a saciedade.
A frase certamente não é desprovida de ironia. Descartes
põe assim de seu lado tanto os que riem (e julgam que ele está
sendo arbitrário ao conceder a todos uma razão igual) como os
que não riem, porque tomam a argumentação ao pé da letra.
Trata-se verdadeiramente de uma prova? Não. Em matéria
de demonstração racional, estamos no regime da verossimi
lhança (“Não é verossímil que todos se enganem”).
Por que evocar tal inverossimilhança? Se todos se en
ganassem acerca dessa razão que jamais se apresenta como
se faltasse, então ela seria uma ilusão. Mas, em matéria de
razão, isso não funciona. Uma ilusão de razão não tem sen
tido, já que ela se inscreve sempre no registro da razão. Ao
contrário do homem, o animal não sente desejo de razão,
nem teme uma ilusão de razão. Além disso, a inverossimi
lhança é ainda mais inverossímil por incidir aqui primeira
mente sobre o desejo de ter mais razão. Ora, se o erro é fre
qüente em matéria racional, é inverossímil em matéria de
desejo, o qual se demonstra experimentando-se, e experimen
ta-se exercendo-se.
É verdade que a fórmula de Descartes não exclui que
alguns se enganem ao não desejarem ser mais bem providos.
UM CLÁSSICO CONHECIDO, DEMASIADO CONHECIDO 75
Não é justamente o caso dos tolos, cuja estupidez é, sem a
menor dúvida, contentamento de si? O tolo irá portanto apro
var Descartes, que afirma a igualdade da razão em todos. Será
essa aprovação também uma tolice? Quando muito, é a marca
de uma incapacidade total de perceber a ironia do que é dito.
Pois os felicitados do início nada perdem por esperar: abona
dos como seres racionais, eles não o são em relação ao resto -
deficiências quanto ao espírito (segundo parágrafo), insufi
ciências graves quanto ao método.
Na realidade, trata-se aqui de um “testemunho”. Essa falta
de falta é o sinal da presença do “poder” de bem julgar, da capa
cidade de discernir o verdadeiro do falso. Atenção: Descartes
não diz de maneira nenhuma que todo o mundo julga infalivel
mente acerca do verdadeiro e do falso, apenas afirma que todos
gozam da faculdade de julgar. Isso não impede que haja muitos
enganos quando é preciso efetivamente julgar a verdade ou a
falsidade. Porém, mesmo julgando erradamente, julga-se.
Nesse sentido, portanto, cada homem é uma testemunha da
razão. E aqui não há diferença de grau. Dispõe-se desse poder
(homem), ou não (animal).
2. A articulação central
Onde Descartes quer chegar?
Estando consistentemente formulada a premissa (igualda
de da razão em todos), a conseqüência salta aos olhos: “A di
versidade de nossas opiniões não se deve a uns serem mais ra
cionais que os outros”.
Graças à articulação do “mas apenas”, Descartes nos ex
plica a razão de um outro fato, que não é mais o da presença da
faculdade de julgar, mas da diversidade (e desigualdade) de
nossas opiniões.
Compreende-se então a insistência sobre a igualdade da
razão: se ela está inteiramente presente em cada homem, é pre
ciso isentá-la de qualquer responsabilidade na variedade das
opiniões. Se esta última não provépi de uma desigualdade de
razão, provém de outra parte. De onde? Do método.
76 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
3. Considerações sobre o método
Dois fatores de diversidade são invocados: a via escolhi
da, o objeto visado (“Conduzimos nossos pensamentos por di
versas vias e não consideramos as mesmas coisas”).
- A “via” escolhida: Descartes introduz aqui a mediação
do método. Não há nenhum encadeamento mecânico direto
entre o poder de bem julgar e a opinião (ou a ciência), porque
observações, escolhas de procedimentos, regras, raciocínios,
etc., se interpõem. Em suma, o produto é um resultado, não o
efeito de uma espontaneidade. Esta última permanece apenas
no ato de afirmar ou de negar, que é propriamente um julga
mento.
- O objeto visado: sabendo que nossas opiniões podem
variar conforme os caminhos escolhidos, é preciso ainda acres
centar que elas dependem das coisas que consideramos. Em
lógica, o princípio de não-contradição só é válido se supuser
mos o mesmo objeto A. A verdade é então A ou não-A, neces
sariamente. Mas, quando saímos da forma do discurso, tudo se
passa de outro modo, porque não se trata mais de A que é A,
mas de uma infinidade de objetos possíveis, todos diferentes.
Nossas opiniões diferem porque os objetos considerados são
diferentes. Assim, uma opinião não mais se opõe a outra como
o verdadeiro se opõe ao falso, uma vez que elas não falam da
mesma coisa.
- Se combinarmos a diversidade dos caminhos com a dos
objetos considerados, compreende-se a diversidade das opi
niões. Quem é o responsável por isso? Nós. Descartes insiste:
nós “conduzimos” nossos pensamentos. Esses “pensamentos”
são tratados como produtos, elementos passivos, que resultam
dos procedimentos seguidos. O problema não é mais ter o espí
rito bom, mas “aplicá-lo” bem. Essa aplicação designa o méto
do. O advérbio “bem” designa a maneira de aplicar. Ele perten
ce, pois, a uma esfera diferente da esfera do instrumento. Pene
tramos num domínio que é o da ação. A ciência cartesiana é
voluntarista.
UM CLÁSSICO CONHECIDO, DEMASIADO CONHECIDO 77
Dois exemplos
Para concluir
Observações técnicas
Observações técnicas
DESCARTES
I. Um problema de leitura:
a comparação entre Deus e o triângulo
A comparação entre Deus e o triângulo é célebre. Ela
constitui um dos momentos fortes daquilo que é chamado
(desde Kant) de “prova ontológica” da existência de Deus,
segundo sua versão cartesiana.
a - Localizar a dificuldade
A dificuldade é objetiva, uma vez que esse texto é mais
complicado do que parece. Mas é sobretudo subjetiva, na
medida em que é extremamente tentador expor a comparação
entre Deus e o triângulo e ficar nisso, suprimindo qualquer
aspereza - o que eqüivale a escamotear a dificuldade. Mas,
nesse caso, não evitaremos o contra-senso que nos espreita.
A boa atitude consiste, pois, em localizar a dificuldade,
depois em deixar-se deter por ela, em vez de fugir do combate
para contentar-se com o que parece evidente.
- Descartes efetua de fato uma comparação ao estabelecer
uma analogia, isto é, uma relação entre dois pares de termos.
Ele declara, com efeito, que a existência está inclusa na idéia
do Ser perfeito “do mesmo modo que na de um triângulo onde
está compreendido que seus três ângulos são iguais a dois
retos”. Ele precisa que se poderia dizer o mesmo com outros
exemplos do mesmo tipo: o círculo (cuja idéia implica que
todos os seus raios são iguais) e qualquer figura geométrica.
- A fórmula “do mesmo modo” apresenta dificuldades.
Com efeito, somos tentados a concluir que é preciso colocar no
mesmo plano: de um lado, a idéia de Deus e a idéia do triângu
lo; de outro, a existência de Deus e a igualdade dos três ângu
los do triângulo e de dois ângulos retos.
EXERCITAR-SE NO DISCERNIMENTO 87
Assimilamos então a existência de Deus aos dois ângulos
retos do triângulo, o que conduz a fazer da existência um atri
buto e a deixar supor que a deduzimos por análise a partir da
idéia inicialmente colocada.
Com isso abre-se o flanco a todas as críticas. Como nota
ram os contraditores de Descartes, ou como percebeu Kant, a
existência não poderia ser tratada como um simples atributo e
surgir de uma dedução a partir de uma idéia, sempre neutra em
relação à existência.
Conclusão: por mais que se tente deduzir a existência da
idéia de Deus, disso não resulta que Deus exista. Comparando
Deus ao triângulo, vê-se bem que este último deve ter necessa
riamente seus três ângulos iguais a dois retos, mas isso de
nenhum modo implica que um triângulo deva existir. Mais
ainda: alguns acrescentarão que, se não existe triângulo, tam
pouco há identidade desses três ângulos com dois retos.
- Ora, Descartes de maneira nenhuma nega tal conclus
Ao contrário, ele a sublinha claramente. Escreve: “Pois, por
exemplo, eu bem via que, ao supor um triânglo, era preciso que
seus três ângulos fossem iguais a dois retos, mas nem por isso
via algo que me assegurasse de que houvesse no mundo algum
triângulo.”
Como podemos então estabelecer tal comparação? Para
descobrir a verdadeira argumentação de Descartes, cumpre
voltar ao texto, único árbitro legítimo.
c - Resolver a dificuldade
A menos que se admita a execrável solução que consiste
em dizer que o discurso cartesiano é contraditório em si, cum
pre descobrir o meio de ligar o incomparável e o comparável
no interior da comparação.
- Coloquemos primeiro a diferença: o caso do Ser perfeito
(Deus) é exatamente contrário ao das figuras geométricas, já
que sua existência está compreendida em sua idéia, ao passo
que isso não acontece com estas últimas. Com efeito, não é a
existência mas a identidade dos três ângulos com dois retos
que descobrimos na essência do triângulo. E essa identidade de
maneira nenhuma implica que um triângulo exista. Deus é por
tanto um caso único, a exceção que confirma a regra.
- Passemos agora à comparação: o que é análogo em Deus
e no triângulo é a conexão necessária que liga dois conjuntos
EXERCITAR-SE NO DISCERNIMENTO 89
respectivos: o primeiro formado pela essência do triângulo e a
igualdade de seus ângulos a dois retos, o segundo formado pela
idéia do Ser perfeito e sua existência.
- Se contarmos os elementos, não são quatro que desco
brimos, como parecia à primeira vista, mas cinco: a idéia de
Deus, a idéia do triângulo, a igualdade dos três ângulos a dois
retos, a existência de Deus e, finalmente, a existência do triân
gulo. Eis aí como explicar disfunções da analogia!
- A conjunção do comparável e do incomparável toma
novo rumo.
Em primeiro lugar: assim como não há mais idéia ou es
sência de triângulo se essa figura não tiver seus ângulos iguais
a dois retos, também não há idéia do Ser perfeito se a conceber
mos sem a existência necessária.
Em segundo lugar: o triângulo pode no entanto ser forma
do em idéia sem que exista qualquer triângulo, enquanto, ao
contrário, não podemos ter a idéia de um Ser perfeito e negar-
lhe a existência necessária.
Disso resulta que a idéia de triângulo não é uma idéia da
mesma natureza que a do Ser perfeito. A primeira não implica
a existência, a segunda a compreende necessariamente. Dito de
outro modo: se recusarmos a existência do Ser perfeito do qual
temos a idéia, não temos mais a idéia que pretendemos ter. Há
portanto uma conexão necessária entre a natureza de uma idéia
e o que ela representa. Nessas condições, a idéia de Deus é um
caso único.
Finalmente, não é a existência do triângulo que é preciso
contar como quinto fator que se acrescenta aos quatro outros,
mas antes a idéia de Deus, que não é, enquanto idéia, da mes
ma natureza que a idéia de triângulo. Nossa comparação era
capenga porque havia duas espécies de idéias em jogo.
a - Identificar indícios
- A inscrição num contexto preciso é indicada na primeira
frase: “Quis, depois disso, procurar outras verdades.”
A ser detalhado: Descartes conduz uma investigação vo-
luntarista, em primeira pessoa, expondo suas descobertas su
cessivamente, na ordem em que lhe são fornecidas por seu
método. Ele passou pela experiência da dúvida, a do cogito.
Descobriu sua identidade de substância pensante. A alma se
conhece portanto antes do corpo.
- O que descobre a seguir? Ele propõe-se examinar “o
objeto dos geômetras”. Esse “corpo” de que ele fala não é per
cebido, mas concebido, despojado de todas as suas qualidades
sensíveis. Eis a condição para que ele se tome objeto científi
co. É seguida claramente a ordem das razões, que exclui que se
parta dos sentidos.
A ser detalhado: o que não é o pensamento é a extensão,
de natureza geométrica. Esse “corpo” é “contínuo” (não sepa
rado como os objetos sensíveis), assimilável ao espaço homo
gêneo cheio (que exclui o vazio, que Pascal defenderá), defini
do segundo três dimensões (comprimento, largura, altura ou
profundidade), sempre idêntico seja qual for o objeto conside
rado, inteiramente disponível para as operações matemáticas.
“Indefinidamente extenso”, ele não goza da infinidade positi
va, em ato, como Deus. Quantidade pura, ele é “divisível” em
partes homogêneas, podendo adquirir todas as formas e figu
ras, segundo as mesmas leis simples e universais de constru
ção. Isso exclui radicalmente as formas substanciais, as “al
mas” e as virtudes da antiga física. As “transposições” ao infi
nito exprimem a identidade da extensão, sem diferença de na
tureza devida aos lugares e aos tempos.
EXERCITAR-SE NO DISCERNIMENTO 91
Conselhos práticos
ARISTÓTELES
I. Métodos de trabalho
Aproveitaremos essa breve passagem de Aristóteles para
abordar alguns problemas de método colocados pela freqüen-
tação dos textos filosóficos antigos. Esse trecho servirá, as
sim, de protótipo, não sendo o caso de extrair dele uma súmula.
1. Utilizamos aqui o texto da edição mais difundida. Mas, como a tradu
ção mais corrente e mais adequada do título é Ética “a" e não “de" Nicômaco
(ver adiante nossa exposição sobre os problemas de tradução, bem como o
texto da mesma passagem na edição Tricot), utilizaremos neste capítulo a pri
meira versão.
96 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
A iniciação à filosofia antiga, como se pode imaginar, é um
trabalho de longa duração. Portanto, buscaremos aqui apenas
reter a dimensão metodológica, a fim de poder transpô-la a
outros textos.
Por razões que ninguém ignora (basta consultar a lista dos
grandes autores), é normal, porque necessário, consultar os
textos de filosofia antiga. Alguns são escritos em latim (o que
não implica que todos os textos em latim sejam da Antiguidade
- pensemos na filosofia medieval), muitos são escritos em
grego. O fato de poucos estudantes terem praticado o grego du
rante seus estudos secundários complica um pouco as coisas
(remetemos, nesse ponto, a nossas considerações teórico-práti-
cas). Mas, contanto que haja um mínimo de empenho, esse não
é um obstáculo ao trabalho filosófico. Também aí, cabe evitar
dramatizar a situação fazendo de dificuldades secundárias, so
bretudo de ordem lingüística, um bicho-de-sete-cabeças, negli-
genciando-se com isso o que deve mobilizar nossa atenção e
nossa reflexão.
Com os textos de filosofia antiga, encontramos assim três
tipos de dificuldades muito diferentes.
c-0problem a do vocabulário
A regra básica é sempre a mesma: para ler corretamente
um texto filosófico, cumpre localizar os termos importantes que
remetem a noções.
A situação complica-se um pouco quando os termos origi
nais são traduzidos - sobretudo se o são de maneiras diferentes
conforme as edições, como é o caso aqui.
E importante, pois, completar regularmente as fichas e ca
dernos, anotando os termos gregos originais e os equivalentes
da própria língua mais adequados, sabendo-se que são as no
100 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
ções que primam, muito mais do que sua embalagem lingüísti
ca (sempre mais ou menos discutível).
Esse tipo de trabalho não é mais temível que a reflexão
filosófica propriamente dita. Como os termos essenciais são
em pequeno número, todo mundo é capaz de confeccionar um
glossário mínimo para um texto dado - por exemplo, a Ética a
Nicômaco. As informações necessárias são fornecidas nos cur
sos de história da filosofia, nas notas dos tradutores e nas expo
sições dos comentadores. Lembremos que de maneira nenhu
ma se trata aqui de transformar-se num tradutor patenteado,
mas de adquirir progressivamente o instrumental intelectual
exigido pela atividade filosófica.
No trecho que nos interessa, indicamos, com um breve
comentário, os termos e noções que convém assinalar e re
colher:
- “Virtude” (arétè): este termo designa toda excelência
própria de uma coisa, em todas as ordens de realidade e em
todos os domínios. Aristóteles o emprega assim, embora lhe
acrescente um uso propriamente moral.
- “Disposição” (héxis). A virtude é definida como uma
maneira de ser adquirida. Portanto ela não é nem uma afeição,
nem uma faculdade natural inata, nem uma disposição passa
geira. O latim traduziu héxis por habitus. Diremos assim que a
virtude é habitus, com a condição de retirar desse termo seu
caráter de disposição permanente e costumeira, quase mecâni
ca. O grego distingue a “disposição de caráter” (êthos) do sim
ples hábito (éthos), embora jogando com as palavras.
- “Ação deliberada”: é a noção de proairésis. Diversa
mente das “produções” da arte (no sentido antigo e não estético
do termo, convém lembrar), a atividade virtuosa exige que o
agente saiba o que faz, escolha deliberadamente seu ato, tendo
em vista esse ato mesmo e não por uma razão exterior à virtu
de. Isso requer uma disposição de espírito firme e inabalável
(cf. II, 3).
- “Mediedade” (mésotès): este termo remete tanto ao
termo médio de um silogismo quanto à média (ou ao meio-ter
mo) que caracteriza a virtude. Como essas expressões são
equívocas em francês, deve-se preferir “mediedade”, que evita
qualquer engano.
UM TEXTO CLÁSSICO, MAS ANTIGO 101
- “Afeições” ou “paixões” (pathos): trata-se de todos os
movimentos da alma provocados por um objeto exterior (cf. II,
4). Por exemplo: os apetites, a cólera, a audácia ou a inveja.
Somos movidos pelas afeições, as quais se opõem, evidente
mente, a nossas ações.
- “Ações”: ao contrário das afeições, a ação designa o
movimento que vai do agente (humano) ao exterior. Mas cuida
do! O grego tem duas palavras diferentes. A ação de que se fala
aqui é apraxis, operação cujo resultado não é exterior ao agente.
Na poiésis, ao contrário, o resultado da operação - a obra - é ex
terior ao agente. É o que se produz com a fabricação.
- “Qüididade” (expressão de origem latina, propriamente
intraduzível, para exprimir o to ti ên einai, igualmente intradu-
zível). Eis um exemplo notável de dificuldade monumental - o
“osso” que encontramos num texto. Não é o caso, para um es
tudante iniciante, de encarar um problema que suscitou volu
mes de comentários mais ou menos discordantes. Literalmen
te, seria preciso traduzir a expressão, que emprega duas vezes
o verbo ser, no imperfeito e no infinitivo, por “o que era ser”. A
“qüididade” designa portanto o que uma coisa é por si, não
somente em seu gênero, mas também após adjunção dos atri
butos que lhe pertencem. O imperfeito poderia exprimir a defa-
sagem entre o ser, que existe primeiramente, e a linguagem,
que tenta restituí-lo. Como o pensamento, para Aristóteles, é
parada e repouso, isso significa que o pensamento da coisa
caracteriza-a posteriormente (da mesma maneira que não se
pode julgar verdadeiramente a vida de um homem senão em
sua morte, que consuma essa vida em seu ser). Nessas condi
ções, a tradução proposta por Voilquin (“a razão que fixa sua
natureza”) já é um comentário.
a -D e que se trata ?
- O tema salta aos olhos: trata-se da natureza da virtude
moral.
- A tese que Aristóteles sustenta não é tão fácil de apreen
der. Lembremos a instrução: é preciso ter inventariado todo o
texto, identificado sua progressão e suas articulações lógicas
para nos pronunciarmos.
Aqui, cumpre reportar-se à última frase: segundo sua es
sência, a virtude é uma mediedade, mas, em relação à perfei
ção, é o ápice.
Eis a ocasião de aplicar esta outra instrução: não dissimu
lar as dificuldades, antes sublinhá-las. Pergunta: como pode a
virtude ser ao mesmo tempo média e ápice? Aí está o que cum
pre apresentar. A tese de Aristóteles será a solução do proble
ma. Ela só aparecerá verdadeiramente após a exposição e a aná
lise dos argumentos. Há por que lamentá-lo: nada melhor que
uma boa pergunta sem resposta para construir sua introdução.
- Já é esse o objeto de discussão, próprio para estimular o
interesse: podemos nos contentar em fazer da virtude uma
média? Não será esse justamente o melhor meio de subvertê-la
em seu contrário?
UM TEXTO CLÁSSICO, MAS ANTIGO 103
b - 0 desenvolvimento do pensamento de Aristóteles
Duas indicações permitem precisar o movimento:
- Primeiro elemento: Aristóteles lembra o que foi obtido
nos capítulos precedentes e nos dá uma primeira definição da
virtude (“disposição a agir de maneira deliberada”).
- Segundo elemento: a virtude é um “ápice”.
O “por isso” que lança a última frase implica que tudo o
que precede permite obter a dupla conclusão sobre a virtude: 1)
0 que é a virtude na ordem da essência; 2) o que ela é na ordem
do bem.
Cumpre agora detalhar a argumentação.
Considerando mais de perto as indicações sucessivas de
Aristóteles, constatamos que o autor restringe e precisa seu
propósito a cada retomada. Ele começa pelo mais geral (a defi
nição da virtude segundo seu gênero) e acumula uma série de
determinações mais precisas que enriquecem e delimitam ao
mesmo tempo a primeira definição.
O que nos dá um efeito de encaixe: o inventário das deter
minações da virtude moral.
O plano consistirá aqui, simplesmente, em expor ponto
por ponto os elementos articulados da argumentação.
1.Definição genérica da virtude moral
- Ela é uma disposição (héxis, habitus), isto é, uma capa
cidade adquirida, constante e duradoura (cf. mais acima a
rubrica “vocabulário”).
Isso eqüivale a excluir duas maneiras de considerar a vir
tude: 1) fazer dela um “em si” que existe independentemente
do homem, o que é impossível e ruinoso para a moral; 2) fazer
dela uma qualidade natural inata. Aristóteles fala certamente
da “virtude” do cavalo e do olho para indicar que esse animal
e esse órgão correspondem excelentemente à função que espe
ramos deles. Mas isso não vale em moral.
- Essa disposição consiste çm “agir de maneira delibera
da”, o que introduz uma dimensão de livre escolha, especifica
mente humana e moral. O homem não é espontaneamente bom
ou mau, e se, ainda assim esses qualificativos são empregados
104 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
para caracterizar sua natureza, suas qualidades inatas, não se
trata de moral. Uma pessoa pode ter boa natureza sem ser vir
tuosa.
2. Essa virtude é uma “mediedade relativa a nós"
- A virtude não é uma entidade abstrata, um em-si fixo,
imutável, mas uma maneira de ser humana, encarnada, portan
to relativa à nossa condição e à nossa situação. Mas não são os
homens e as situações sempre diversos? Ao encarnar assim a
moral não se corre o risco de um relativismo destruidor?
3. A medida dessa mediedade é
“racionalmente determinada”
- Isso significa primeiramente que a moral é racional ou
não é moral. A virtude é conduta regida pela razão, não pelas
paixões ou pelo desejo. Com efeito, a razão é uma instância
superior, universal, que permite conhecer a medida. Ela não se
submete às inclinações, mas as julga. Ela faz perceber os fins e
os meios, e os articula. Em suma, ela põe ordem.
- Nem por isso se trata absolutamente de fazer da virtude
um saber - pois ela não seria mais a virtude, um habitus. O
bem concreto não é dedutível a priori, não se aprende como
um saber. A razão de que se fala não é especulativa mas práti
ca. Mas como pode ela permanecer racional, sendo ao mesmo
tempo a razão de homens concretos, confrontados a circuns
tâncias mutáveis?
- Aristóteles introduz aqui um corretivo: a razão prática
que rege a conduta deve já ser uma razão praticada, uma razão
que já passou pela prova dos fatos; a mediedade, diz ele, é a
“que o homem prudente determinaria”. Vale dizer que nin
guém está abandonado a si mesmo, à mercê das exigências
diversas de sua natureza, de sua situação, de uma racionalidade
abstrata. Os homens precisam de modelos - os que são ofereci
dos por outros homens que já alcançaram o estágio da virtude
encarnada. Surpreendente retomada da famosa doutrina do
homem-medida, sob a forma do sábio-medida! Em matéria de
virtude, os homens aqui não se valem. Por isso é oportuno acon
selhá-los a imitarem os melhores. Trata-se de uma mediação
UM TEXTO CLÁSSICO, MAS ANTIGO 105
suplementar, também de uma economia, seguramente de uma
garantia.
4. A virtude-mediedade opõe-se a dois vícios simétricos
- Com efeito, o termo “mediedade” implica uma relação,
já que pretende ocupar o lugar mediano entre dois termos.
Como estamos no terreno moral, essa postura intermediária
não se situa entre idéias, mas entre práticas. Quais são essas
práticas que não são virtude? Os vícios. Por que dizer isso?
Porque a natureza moral jamais é natural, e sim o resultado de
uma maneira de ser adquirida. Portanto, a virtude moral não se
opõe à natureza, mas a condutas que não são conformes à
medida. Propriamente “desmedidas”, tais condutas devem ser
compreendidas como “excesso” ou como “falta” em relação ao
que a razão reclama.
- Certamente há uma infinidade de condutas possíveis.
Mas uma só - a que obedece à medida - merece o nome de vir
tude. Os vícios caracterizam assim os dois blocos que não são
virtude e se apresentam respectivamente do lado do “menos” e
do “mais”. Por exemplo, a coragem é a virtude delimitada por
essa falta que é a covardia e esse excesso que é a temeridade. A
virtude revela-se portanto como um meio-termo.
- Reencontramos aqui uma noção muito conhecida mas
bastante perigosa. Primeiro porque o “meio-termo” tem uma
conotação de mediocridade. Depois, porque ela nos conduz ao
registro quantitativo. Não o ignora Aristóteles, que aliás forne
ceu anteriormente exemplos desse tipo: a um é preciso mais
alimento, a outro, menos. Para descobrir o meio-termo, somos
tentados a calcular uma média. Em moral, isso é um desastre.
O avaro que faz um pequeno gesto de generosidade continua
sendo avaro. Um Don Juan que seduz cem mulheres em vez de
mil permanece um sedutor. Com isso, a virtude corre o risco de
ser assimilada à mediocridade, e o homem virtuoso se tomará
um extremista. Cumpre, portanto, ir mais adiante.
5. A virtude é “o que convém"
- Voltemos um instante à proposição anterior: a virtude
não é a média, ela é a média justa. Saímos então do registro da
106 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
quantidade, onde tudo está situado num mesmo plano, para
passar ao registro da qualidade. Tanto nas paixões como nas
ações, há condutas que estão abaixo ou acima do que convém.
Há apenas um justo ponto e somente um - aquele que é pura e
simplesmente justo. A virtude não é a resultante de vícios que
se contrabalançam, sua média aritmética, mas a medida em
relação à qual os vícios aparecem como vícios. Isso permitirá
definir finalmente a virtude como vértice de eminência.
c - Conclusão
Aristóteles tira uma dupla conclusão dessas análises:
- Na ordem da essência fixada pela razão (a qüididade), a
virtude define-se simplesmente como mediedade. Ela consiste
numa posição média, já que está cercada por dois vícios simé
tricos, segundo o excesso e a falta. Não se pode dizer mais do
que isso, pois permanecemos no universo das essências que
não fornece o bem prático.
- Na ordem da excelência e do perfeito, a virtude é um vér
tice. Saímos do registro da definição teórica para entrar no da
racionalidade prática. Mas nem por isso caímos na posição
média entre comportamentos excessivos e contrários. Com efei
to, a noção de meio não deve mais ser apreendida de maneira
horizontal, plana, mas verticalmente, em relevo. Portanto, o meio
justo é deslocado em relação aos vícios. Ele sobressai, como o
vértice de um triângulo. Essa mediedade, verdadeiro vértice de
eminência, é exatamente o contrário da mediocridade.
Conselhos práticos
PIATÂO
Sócrates - Eis, pois, até onde vai o papel das parteiras; bem
superior é minha função. Com efeito, não se verifica que as mulheres
às vezes déem à luz uma vã aparência e, outras vezes, um fruto real, e
que se tenha alguma dificuldade em fazer a distinção. Se isso ocorres
se, o mais importante e o mais belo trabalho das parteiras seria fazer a
separação entre o que é real e o que não é. Não és dessa opinião?
Teeteto - Certamente.
Sócrates - Minha arte de maiêutica tem as mesmas atribuições
gerais que a delas. A diferença é que ela gera os homens e não as
mulheres, e que em seu trabalho de parto se preocupa com as almas,
não com os corpos. Mas o maior privilégio da arte que pratico é
saber verificar e discernir, com todo o rigor, se é aparência vã e men
tirosa o que a reflexão do jovem concebe ou se é fruto de vida e de
verdade. Com efeito, tenho a mesma impotência que as parteiras.
Dar à luz em sabedoria não está em meu poder, e a recriminação
que muitos já me fizeram, de que, ao fazer perguntas aos outros,
jamais dou minha opinião pessoal sobre nenhum assunto e que a
causa disso está na nulidade de minha própria sabedoria, é uma
recriminação verídica. Eis a causa verdadeira: dar à luz os outros é
obrigação que o deus me impõe; procriar é um poder de que ele me
privou.
I. Métodos de trabalho
a - Particularidades do texto
1. Um texto antigo
Sobre este ponto, remetemos primeiramente o leitor às
considerações gerais expostas a propósito de Aristóteles, no
capítulo anterior (III). Sendo Platão um autor com o qual o
estudante geralmente está familiarizado desde o final do se
cundário, as dificuldades deveriam ser menores - pelo menos
no plano psicológico.
Recorremos à tradução da Belles-Lettres a fim de incitar
os estudantes a freqüentarem esse tipo de edição, que comporta
o texto grego ao lado e fornece indicações úteis. Lembramos
que a leitura dos textos antigos deve também ser uma ocasião
de nos familiarizarmos com certos dados, mesmo que não se
trate de se tomar um erudito ou um especialista.
Naturalmente, isso de maneira nenhuma impede que se
trabalhe o Teeteto numa edição simples, não acompanhada do
texto grego.
2. Um diálogo
Esse gênero literário parece a princípio difícil de tratar.
Que fazer dos personagens? Deve-se dividir sua explicação em
função das réplicas? De que maneira descobrir nelas a substan
cial medula filosófica?
Entretanto, cumpre afastar a idéia de que seria preciso tra
tar um diálogo diferentemente de um texto de forma ordinária.
Isto por duas espécies de razões, de ordem técnica e de ordem
filosófica.
- Tecnicamente falando, a forma dialogada não requer
nenhum tratamento particular, já que se trata sempre de recons
truir a argumentação, de produzir as articulações, de identificar
e analisar as noções. O modelo de explicação ou de comentário
deve, portanto, aplicar-se integralmente, sem nenhuma outra
formalidade.
- Filosoficamente falando, não há nenhuma diferença
substancial a estabelecer. O próprio Platão no-lo diz (O sofista,
UM DIÁLOGO 109
217 6-218 á)\ o “método interrogativo” não decorre da obriga
ção doutrinai, mas da comodidade prática. Se dispusermos de
um “parceiro complacente e dócil”, explica ele, o método
“com interlocutor” é “o mais fácil”. Se essa condição não for
cumprida, “mais vale argumentar sozinho”. Eis o que nos re
mete à definição do pensamento como diálogo da alma consi
go mesma (Teeteto, 189 e). Em todo caso, é preciso uma duali
dade, porque o movimento do pensamento requer, em primei
ro lugar, um distanciamento em relação à aparência imediata,
depois uma retomada em nível superior. Assim se desdobra a
arte de “dar e pedir razão” que é propriamente a dialética filo
sófica (A República, 531 d).
- Cumpre, no entanto, evitar deduzir disso que a forma
dialogada deva ser considerada como puro acidente retórico.
Ao contrário, todo pensamento filosófico revela-se de nature
za dialogai. A verdade filosófica não se dá num discurso mo
nolítico que bastaria apreender como um saber acabado, mas
por um longo encaminhamento pessoal, que cada um deve
assumir por sua própria conta. O método socrático é, portan
to, indissociável do pensamento em ação. Por isso encontra
remos no interior mesmo do texto uma parte dos fundamen
tos filosóficos de tal procedimento. A filosofia é uma prática
iniciática, que requer uma alteridade.
b - 0 procedimento de abordagem
Recordemos os procedimentos habituais:
- Somente o texto vale. É preciso primeiro trabalhá-lo
dentro dos limites desse trecho. Atenha-se a isso no caso de
uma explicação, vá mais longe (valendo-se de cursos, de livros
de comentadores, etc.) no caso de um comentário.
- A problemática, as questões, os objetos de discussão, a
argumentação, o plano e as noções devem portanto ser deduzi
dos do texto, estabelecidos pelo texto.
- Isso requer um trabalho prévio sobre o texto para fazê-lo
falar, sem tomar decisões prematuras. O que se busca vai apa
recer aos poucos.
110 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
Exercício
a - Introduzir
- O tema é evidente: trata-se da maiêutica.
- A tese só pode ser identificada após leitura aprofundada
da passagem inteira. O motivo da impotência socrática deve,
com efeito, ser invertido: para iniciar-se à filosofia, é preciso
passar por uma mediação encarnada num mediador, cujo mo
delo é Sócrates.
- O objeto de discussão fundamental surge então: trata-se
do estatuto da verdade filosófica. Com efeito, esta reside no
mais íntimo de cada um de nós, e todo o trabalho consiste em
trazê-la à luz. Ela dá a impressão de nascer, quando, na realida
de, já estava presente.
Observação - Para apresentar sua explicação de maneira
satisfatória, convém apresentar esse ponto na forma de ques
tão. Por exemplo: qual o estatuto da verdade filosófica? É esse
o principal objeto de discussão dessa passagem.
UM DIÁLOGO 111
b - Preparar um plano
O plano é difícil de identificar. Esse é um dos inconve
nientes da forma dialogada. Sabendo que é o conteúdo que pre
valece, cumpre reconhecer as articulações da argumentação
antes de proceder à divisão em partes.
- Observaremos primeiro que Sócrates procede a uma
comparação ponto por ponto entre a arte das parteiras e a arte
do maiêutico, partindo de um fundo de similitude. Você pode
rá, assim, apresentar sua primeira parte perguntando-se se há
uma especificidade da maiêutica.
- Ao introduzir o motivo da impotência das parteiras,
Sócrates faz com que seu discurso se desloque para sua própria
impotência (filosófica, desta vez). É a segunda fase de sua argu
mentação. Você poderá, portanto, apresentar sua segunda parte
perguntando-se se Sócrates é filosoficamente impotente.
Observação - Esse trecho pode ser explicado em dois
momentos, em decorrência de sua divisão em partes. Não se
choque com isso, pois o que conta é o texto. Você poderia cer
tamente dividir em três pontos, dissociando dois tipos de dife
renças entre a arte de parir e a maiêutica: 1) conforme a oposi
ção entre o que é real e o que não é; 2) conforme sejam paridos
“homens-almas” e não “mulheres-corpos”. Mas correria então
o risco de tomar sua explicação inutilmente pesada.
c - A explicação do texto
1. Há uma especificidade da maiêutica?
Essa pergunta é a primeira que o leitor deve fazer-se. O
texto não se compreende sem um fundo de similitude entre a
maiêutica e a arte de parir, sem o que a comparação seria impos
sível. Em sua segunda intervenção, Sócrates o indica explicita
mente isso: “minha arte de maiêutica, declara, tem as mesmas
atribuições gerais” que a arte das parteiras.
Sabemos, por outro lado, que Sócrates designava a si pró
prio como “filho de parteira” (trata-se de Fenareta). Cumpre
112 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
ainda acrescentar que o termo maiêutica significa literalmente
“arte de parir”. Enfim, Sócrates descreve os diversos aspectos
de sua arte confrontando-a com a das parteiras.
Como então preservar a diferença? Sócrates irá detalhá-la
em vários registros.
- As parteiras não precisam discriminar o real e a aparên
cia, enquanto o maiêutico deve fazê-lo.
Com efeito, não acontece que as mulheres ora dêem à luz
uma “vã aparência”, ora um “fruto real”. Todo nascimento
situa-se no mesmo plano do real corporal. Uma criança pode
nascer de múltiplas maneiras, mas pertence sempre ao mesmo
gênero de realidade. Não há crianças “verdadeiras” e “falsas”,
crianças “reais” e crianças “aparentes”.
Pode-se confirmar isso a contrario: se não houvesse tais
diferenças, a arte de parir e a maiêutica socrática seriam rigoro
samente idênticas. E poderíamos afirmar que “o maior e mais
belo trabalho das parteiras” seria operar a discriminação entre o
que é real e o que não o é. Ora, não é o caso.
Vê-se, assim, por diferença, o que é o trabalho da maiêuti
ca: discernir o real da aparência, o verdadeiro do falso. Em re
lação à arte de parir, mudamos de plano, de registro ontológi-
co. Por isso Sócrates afirma desde o início que sua função é
“bem superior”.
A oposição é completada um pouco mais abaixo: o discí
pulo dá à luz ou aparências vãs e mentirosas, ou um fruto de
vida e de verdade. Tal alternativa só adquire sentido em filo
sofia.
- Segunda diferença maior: a arte de Sócrates gera os ho
mens (entenda-se: os “machos”, não “os homens” em sentido
genérico, a língua grega é clara) e não as mulheres.
Essa oposição tem um sentido primário: ao homem com
pete o trabalho filosófico, à mulher o trabalho genésico. Disso
resulta que a verdadeira vida não é da ordem dos vivos carnais,
mas da ordem do espírito (em O banquete, Platão explica que
os vivos que se reproduzem imitam à sua maneira a eternidade,
que não possuem neste mundo inferior).
Cabe concluir que Sócrates é um abominável misógino?
A solução não é tão simplista.
UM DIÁLOGO 113
- Terceira diferença, com efeito: trata-se do parto das
almas e não dos corpos. A oposição entre alma e corpo com
pleta e esclarece a oposição entre homem e mulher. Sócrates
estabelece uma conexão entre o homem e a alma, de um lado, a
mulher e o corpo, de outro.
A inferioridade presumida das mulheres decorre, portan
to, na realidade, da inferioridade ontológica dos corpos. Disso
resulta que as noções de homem e de mulher têm aqui uma
dimensão simbólica: é “homem” o ser centrado na atividade da
alma, “mulher” o ser centrado nas atividades corporais (os que
tiverem a curiosidade de ler todo o diálogo verão em 176 c-e,
sobretudo no texto grego, a maneira como Platão nega a “viri
lidade” aos homens que se desviam da verdade).
Isso é confirmado em nosso trecho pela própria compara
ção entre os homens que buscam a verdade e as mulheres par-
turientes: trata-se de homens que estão de fato “prenhes” de
uma verdade que trazem dentro de si. Eles ocupam, portanto,
no plano das almas, a posição exata das mulheres no plano dos
corpos. Do ponto de vista da simbólica filosófica, são eles as
verdadeiras mulheres.
- Feita essa exposição, pode-se confirmar o que sugeria o
primeiro parágrafo: a diferença decisiva não se situa entre as
realidades corporais e as da alma, mas, no interior do domínio
espiritual, entre as vãs aparências (mentiras, simulacros) e os
frutos de vida e de verdade que são os belos e verdadeiros pen
samentos. A oposição entre verdadeiro e falso é apenas da es
fera da linguagem, não do universo sensível. A verdadeira vida
está na alma que entra em contato com a verdade, não nos cor
pos, cuja vida não é senão uma espécie de morte, que a repro
dução física se esforça por compensar em seu nível.
Sócrates pode, portanto, legitimamente falar de “privi
légio” - e não mais apenas de diferenças. Atingimos aqui a
essência mesma do método filosófico, que consiste em “veri
ficar e discernir com todo o rigor”. A busca filosófica experi
menta, seleciona e passa pelo crivo, a fim de discriminar o que
é verdadeiramente e o que não passa de aparência. É preciso
ngor para não nos contentarmos còm a verossimilhança, com
semelhanças - noções que remetem aos jogos da aparência e
nos encerram no universo da ilusão, do erro e da mentira.
114 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
Isso coloca um problema: se Sócrates é um parteiro e não
um parturiente, é que ele não traz nenhuma verdade dentro de
si. Qual é, portanto, sua função?
2. O que é a “esterilidade" socrática?
Se esmiurçarmos demais a comparação entre as parteiras
e o maiêutico, expomo-nos com efeito a uma conseqüência ter
rível. Sócrates confessa-o sem rodeios: ele tem a “mesma
impotência” que elas. Insiste: “dar à luz em sabedoria não está
em meu poder”. Cabe concluir que o mestre em filosofia não
deve ele próprio ser filósofo? Como pode então iniciar seu dis
cípulo à filosofia?
- Antes de mais nada, a noção de impotência afigura-se
equívoca. Sócrates confunde em seu discurso os dois planos
que não obstante havia distinguido mais acima. Declara que
“dar à luz em sabedoria” não está em seu poder. Ora, esse não é
o caso das parteiras, já que basta elas terem se tornado estéreis
para se dedicarem inteiramente ao parto das outras mulheres.
Na ordem corporal, a passagem da fecundidade à esterilidade -
que é uma mudança de estado - está na natureza das coisas.
Mas o mesmo não acontece com as almas. Sócrates não se tor
nou estéril após ter sido fecundo, como se tivesse sofrido uma
espécie de menopausa filosófica. No caso dele, portanto, esse
não é um problema de situação (temporal e acidental), mas de
condição. Como estabelecer isso? Cumpre reconhecer que há
motivos de engano.
- Sócrates expõe ele próprio o mal-entendido que sua
conduta provoca no julgamento exterior dos outros: acusam-no
de não possuir sabedoria alguma. A prova: ele jamais dá sua
opinião sobre nenhuma questão. A recriminação é “verídica”,
admite ele. Mas em que sentido, exatamente? No sentido de
jamais dar sua opinião pessoal, apenas isso. Pode-se tirar de tal
constatação a conclusão de que Sócrates é filosoficamente
nulo? Claro que não.
Imaginemos por um instante o que aconteceria se Sócrates
emitisse opiniões pessoais sobre todos os assuntos, manifestan
do assim o extravasamento permanente de sua própria sabedo
ria. As pessoas que julgam do exterior talvez o louvassem, mas
UM DIÁLOGO 115
é justamente aí que Sócrates seria recriminável. Pois ele trans
formaria então a “filosofia” - termo que significa literalmente
“amor à sabedoria” - em saber acabado, pronto a ser servido e
consumido. Os discípulos não seriam mais do que receptáculos
vazios nos quais seriam despejados conhecimentos. Sócrates
poderia de fato ser considerado um “mestre”, seus discípulos
não seriam mais discípulos, apenas alunos. Isso significa que não
seriam capazes de nenhuma verdade, apenas de receptividade
passiva. E a verdade não seria mais a verdade. Não haveria mais
parto, mas violação das almas.
- Sócrates nos revela, enfim, a verdadeira causa de sua
impotência: a “obrigação” imposta pelo “deus”. Isso nada tem
a ver com a esterilidade das parteiras. A deusa que protege
estas últimas (Ártemis) é efetivamente estéril e jamais deu à
luz. Mas o que é verdadeiro para uma natureza divina não o é
para uma natureza corporal. Elas não podem ser validamente
comparadas senão mediante uma inversão: enquanto uma deu
sa é eternamente o que é, sem mudança, uma parteira tomou-se
o que é mudando de estatuto - de mulher que deu à luz a
mulher que não mais dá à luz.
A maiêutica certamente não é uma atividade divina, mas
tampouco é puramente humana. É essa posição intermediária
que faz a singularidade de Sócrates. A maiêutica depende de
uma vocação - no sentido próprio: um chamado divino. Se
Sócrates fosse dotado da capacidade de procriar, ele próprio
seria uma dessas almas que precisariam dar à luz o fruto que
trazem. Seria preciso, então, um outro Sócrates para pari-lo,
depois um Sócrates de Sócrates, e assim ao infinito. Ora, para
que haja filosofia, cumpre que um outro (um marginal, uma
exceção que confirme a regra) esteja votado a “parir os ou
tros”. Essa necessidade implica uma divisão das tarefas, a qual
obriga a confinar Sócrates na função de mediador. Mas de
mediador para os outros. Se ele próprio se mediatizasse, seria
um deus.
Nesse sentido, Sócrates pertence a uma condição muito
especial. Ao excluir uma missão (a sabedoria) para tomar possí
vel outra (a maiêutica), a invocação do deus mostra que a alteri-
dade está situada no núcleo mesmo do ser de Sócrates. Trata-se
de uma clara alusão ao motivo bem conhecido de seu “demô-
114 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
Isso coloca um problema: se Sócrates é um parteiro e não
um parturiente, é que ele não traz nenhuma verdade dentro de
si. Qual é, portanto, sua função?
2. 0 que é a "esterilidade" socrática?
Se esmiurçarmos demais a comparação entre as parteiras
e o maiêutico, expomo-nos com efeito a uma conseqüência ter
rível. Sócrates confessa-o sem rodeios: ele tem a “mesma
impotência” que elas. Insiste: “dar à luz em sabedoria não está
em meu poder”. Cabe concluir que o mestre em filosofia não
deve ele próprio ser filósofo? Como pode então iniciar seu dis
cípulo à filosofia?
- Antes de mais nada, a noção de impotência afigura-se
equívoca. Sócrates confunde em seu discurso os dois planos
que não obstante havia distinguido mais acima. Declara que
“dar à luz em sabedoria” não está em seu poder. Ora, esse não é
o caso das parteiras, já que basta elas terem se tornado estéreis
para se dedicarem inteiramente ao parto das outras mulheres.
Na ordem corporal, a passagem da fecundidade à esterilidade -
que é uma mudança de estado - está na natureza das coisas.
Mas o mesmo não acontece com as almas. Sócrates não se tor
nou estéril após ter sido fecundo, como se tivesse sofrido uma
espécie de menopausa filosófica. No caso dele, portanto, esse
não é um problema de situação (temporal e acidental), mas de
condição. Como estabelecer isso? Cumpre reconhecer que há
motivos de engano.
- Sócrates expõe ele próprio o mal-entendido que sua
conduta provoca no julgamento exterior dos outros: acusam-no
de não possuir sabedoria alguma. A prova: ele jamais dá sua
opinião sobre nenhuma questão. A recriminação é “verídica”,
admite ele. Mas em que sentido, exatamente? No sentido de
jamais dar sua opinião pessoal, apenas isso. Pode-se tirar de tal
constatação a conclusão de que Sócrates é filosoficamente
nulo? Claro que não.
Imaginemos por um instante o que aconteceria se Sócrates
emitisse opiniões pessoais sobre todos os assuntos, manifestan
do assim o extravasamento permanente de sua própria sabedo
ria. As pessoas que julgam do exterior talvez o louvassem, mas
UM DIÁLOGO 115
é justamente aí que Sócrates seria recriminável. Pois ele trans
formaria então a “filosofia” - termo que significa literalmente
“amor à sabedoria” - em saber acabado, pronto a ser servido e
consumido. Os discípulos não seriam mais do que receptáculos
vazios nos quais seriam despejados conhecimentos. Sócrates
poderia de fato ser considerado um “mestre”, seus discípulos
não seriam mais discípulos, apenas alunos. Isso significa que não
seriam capazes de nenhuma verdade, apenas de receptividade
passiva. E a verdade não seria mais a verdade. Não haveria mais
parto, mas violação das almas.
- Sócrates nos revela, enfim, a verdadeira causa de sua
impotência: a “obrigação” imposta pelo “deus”. Isso nada tem
a ver com a esterilidade das parteiras. A deusa que protege
estas últimas (Ártemis) é efetivamente estéril e jamais deu à
luz. Mas o que é verdadeiro para uma natureza divina não o é
para uma natureza corporal. Elas não podem ser validamente
comparadas senão mediante uma inversão: enquanto uma deu
sa é eternamente o que é, sem mudança, uma parteira tomou-se
o que é mudando de estatuto - de mulher que deu à luz a
mulher que não mais dá à luz.
A maiêutica certamente não é uma atividade divina, mas
tampouco é puramente humana. É essa posição intermediária
que faz a singularidade de Sócrates. A maiêutica depende de
uma vocação - no sentido próprio: um chamado divino. Se
Sócrates fosse dotado da capacidade de procriar, ele próprio
seria uma dessas almas que precisariam dar à luz o fruto que
trazem. Seria preciso, então, um outro Sócrates para pari-lo,
depois um Sócrates de Sócrates, e assim ao infinito. Ora, para
que haja filosofia, cumpre que um outro (um marginal, uma
exceção que confirme a regra) esteja votado a “parir os ou
tros”. Essa necessidade implica uma divisão das tarefas, a qual
obriga a confinar Sócrates na função de mediador. Mas de
mediador para os outros. Se ele próprio se mediatizasse, seria
um deus.
Nesse sentido, Sócrates pertence a uma condição muito
especial. Ao excluir uma missão (? sabedoria) para tomar possí
vel outra (a maiêutica), a invocação do deus mostra que a alteri-
dade está situada no núcleo mesmo do ser de Sócrates. Trata-se
de uma clara alusão ao motivo bem conhecido de seu “demô
116 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
nio”, intermediário entre o mundo dos deuses e o dos homens (o
termo “demônio” significa originalmente o “quinhão de vida”
dado a cada um; ele pode evocar o “gênio” em todos os sentidos
da palavra). Há algo de estrangeiro, ou mesmo de estranho em
Sócrates. Graças a isso, a verdade encerrada no mais íntimo dos
seres pode aparecer em plena luz.
d - Para concluir
Este texto revela-se bem mais rico do que parecia à pri
meira leitura. Contentemo-nos com algumas de suas lições
mais importantes:
- A filosofia não é uma atividade espontânea. Ela requer a
presença ativa de um mediador, que só pode cumprir essa fun
ção se, por sua vez, foi chamado de outra parte, votado a essa
atividade (chamado de ordem divina, como atesta seu “de
mônio”).
- A verdade filosófica não é produzida por um mestre,
inventada por um gênio; ela é primária, está sempre presente,
mas dissimulada, encoberta, velada (a palavra grega aléthéia,
que significa “verdade”, decompõe-se literalmente em não-
velamento). A maiêutica nos remete aqui ao tema da reminis-
cência (ou anamnese): a verdade não é engendrada, ela é trazi
da à luz. É uma “recordação” - porque a alma “esqueceu” a
verdade ao ser mergulhada num corpo (segundo a metáfora do
mergulho da alma no rio Lete).
- A maiêutica, portanto, jamais pode ser considerada como
uma ciência, mas como uma habilidade, uma arte. Ela se ma
nifesta ao se executar. Os maiêuticos jamais aprenderam a pe
dagogia em casa, na escola: eles são “práticos”. A “ciência”
amada e buscada pelos filósofos não é, portanto, a maiêutica,
e a maiêutica não é a filosofia, apenas sua mediação.
- Essa mediação não é uma abstração, pois não significa
nada sem a pessoa de um mediador - neste caso, Sócrates. A
filosofia requer, assim, um encontro pessoal singular. A lingua
gem não é nada sem a palavra viva.
- Essa passagem é, em si mesma, a demonstração prática
do que nos quer fazer compreender. A comparação com as par
UM DIÁLOGO 117
teiras destina-se a tomar-nos lá onde nos encontramos - no
mundo dos corpos - para introduzir-nos a um mundo superior,
onde as leis não são as mesmas, embora correspondências pos
sam ser estabelecidas. Trata-se, pois, de uma introdução à dia
lética, que nos eleva em espiral às alturas, fazendo-nos passar
pelas difíceis e dolorosas experiências do trabalho de parto.
Capítulo V
O obstáculo da transparência
ROUSSEAU
I. Métodos de trabalho
Essa passagem ilustra perfeitamente as dificuldades que
pode apresentar a transparência imediata de um texto. Não há
nessa página de Rousseau (e em tantas outras) nenhum termo
obscuro, nenhuma noção técnica, nenhuma tese hermética.
Trata-se então de um texto fácil? Certamente não, pois é preci
so redobrar a atenção e a argúcia para não cair na paráfrase, na
diluição e na conversa fiada.
120 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
A dificuldade reside primeiramente na produção das no
ções filosóficas a partir de um discurso de aspecto muito literá
rio, quando, na realidade, elas afloram discretamente ou estão
apenas implicadas. Fazendo isso, a argumentação se desvenda
rá aos poucos. Como a passagem é compacta, privada de pará
grafos, cumpre enfim construir sua explicação para dar forma à
exposição.
O comentário, que requer uma certa iniciação no pensa
mento de Rousseau, virá a seguir.
Exercício
II.Produzir as noções
Esse primeiro trabalho - base de todo o resto - é antes de
invenção (no sentido em que Colombo “inventou” a América),
do que de inventário, pois as noções filosóficas não são aberta
mente dadas como tais pelo autor.
Isso se deve em grande parte à forma de seu discurso. Mas
aqui é preciso prestar atenção onde se pisa, pois há dois aspec
tos a considerar:
- de um lado, essa forma pode ser qualificada de “literária” - o
que nos remete à morfologia, à estética e, também, a uma
determinada época. O filósofo nada tem a dizer dela, precisa
apenas levá-la em conta para satisfazer, a despeito dela, as
exigências gerais do pensamento conceituai, cuja preocupa
ção é outra;
- de outro, essa forma corresponde a uma exigência precisa, de
natureza filosófica, que obriga a recorrer à narração, ao qua
dro, à parábola, até mesmo ao mito. E, aí, temos matéria de
reflexão. Voltaremos a falar disso, sobretudo no comentário.
O OBSTÁCULO DA TRANSPARÊNCIA 121
Para seguir a ordem lógica das operações, comecemos
portanto por seguir Rousseau ponto por ponto - isto é, palavra
por palavra e linha após linha -, esforçando-nos a cada vez por
tomar manifesta uma noção.
1. Uma gênese empirista
Lido ingenuamente, em primeiro grau (como se deve fazer
para começar), o texto expõe um movimento contínuo, orienta
do, detalhando suas diversas seqüências. Os verbos emprega
dos são eloqüentes: “se sucedem”, “se exercitam”, “continua”,
“se ampliam”, “se estreitam”, “adquiriu-se o costume”, “toma-
ram-se”, etc. Produções novas disso resultam daí: os olhares, a
estima pública, a consideração, a desigualdade, o vício... A
noção que se impõe é claramente a de gênese.
Como Rousseau explica o aparecimento dessas novida
des? Recorrendo a categorias bem conhecidas, que são as do
empirismo filosófico: os verbos empregados evocam, com efei
to, a associação, a sucessão e a repetição na experiência. Os
primeiros verbos estão no presente (constatação), os seguintes
no passado (narração). Não se trata, portanto, de dedução de
conceitos. Tudo se passa como se assistíssemos ao nascimento
e ao desenvolvimento, no tempo, de fenômenos humanos vivi
dos por homens e mulheres cujas faculdades naturais são todas
tocadas (idéias, sentimentos, espírito, coração), em lugares
cotidianos e concretos (cabanas, árvore). Se considerarmos a
continuação do texto, veremos que nos elevamos do imediato
ao derivado, do simples ao complexo: dos sentimentos espon
tâneos aos vícios primários, depois aos “compostos”.
Portanto, essa gênese não é apenas empírica (da ordem da
experiência), mas empirista, já que se vincula a uma filosofia
muito precisa, com seus modos típicos de explicação.
2. A humanidade do homem
Quem é o sujeito dessa gênese? O homem como tal. Rous
seau o declara explicitamente ao falar do “gênero humano”.
Mas como falar do gênero humano? Como apreendê-lo em sua
essência e em sua pureza, quando temos de considerar dois
tipos de homem?
122 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
- Aquele que resulta do processo genético, que é um
homem socializado, domesticado (Rousseau utiliza intencio
nalmente o verbo “domesticar”, apprivoiser), em relações com
plexas com outrem, vítima de “compostos funestos”.
- Aquele que esse processo evoca e contradiz e que Rous
seau evoca aqui em contraponto. Basta seguir o texto passo a
passo para fazer seu retrato falado: esse homem tem idéias e
sentimentos nulos ou raros, o espírito e o coração em estado
bruto, pouca ou nenhuma relação com outrem (mesmo quando
a alteridade de outrem ainda não está constituída como tal). Ele
ignora o trabalho. Essa vida onde triunfa a igualdade é inocente
e feliz.
A noção assim obtida é a do selvagem (ou homem “na
tural”). O estado primitivo e não-social no qual ele se encontra
é o estado natural.
Outras noções podem ser tiradas dessa passagem para
caracterizar mais precisamente esse estado:
- a noção de insularidade (o homem selvagem aparece, por
diferença, como um ser isolado, solitário, sem alteridade hu
mana);
- a noção de ociosidade (com a tese implícita segundo a qual
o trabalho não é natural ao homem - o que faz dele pura
criação social);
- a noção de felicidade (no sentido restrito de uma existência
imediata, reduzida a seus componentes naturais);
- a noção de inocência - e não de “bondade” nativa, como
repetem constantemente (sendo o homem natural o que deve
ser, ele está situado aquém do bem e do mal, do vício e da
virtude, cujo aparecimento está ligado à socialização).
Enfim, se a dualidade do homem atual (socializado) e do
homem natural comanda a economia dessa passagem, cumpre
notar que a descrição feita é a de um estado intermediário e
transitório do homem. Ele não é mais selvagem, ainda não é
plenamente social: esses homens são “domesticados” (o que
remete antes à domesticação dos animais que à socialização
dos homens) e “arrebanhados” [attroupés] (o que evoca o reba
nho, mas também a sociedade política ou Cidade). O signo tan
O OBSTÁCULO DA TRANSPARÊNCIA 123
gível dessa situação é a “cabana”: não ainda casa, mas já abri
go, enquanto a natureza (reputada hospitaleira) constituía o
ambiente normal do selvagem. Artificial, a cabana é o indício
de uma ruptura já consumada, que marca a necessidade, para o
homem, de proteger-se - o que supõe uma ameaça à sua sobre
vivência.
3. 0 método
A produção das noções precedentes nos permite meditar
alguns instantes sobre o método utilizado por Rousseau. Pro
cedendo por vaivém entre o estado atual e um suposto estado
primitivo e passando por um estágio provisório, ele é indireto,
negativo, retrospectivo, (re)construtivista. O empirismo dessa
gênese é, portanto, apenas uma aparência, ligada às necessida
des da descrição. Na realidade, o método é puramente deduti
vo, já que o homem primitivo e o homem transitório são produ
zidos por raciocínio puro.
4. A festa
O quadro traçado do estado transitório do homem supõe
que se fixe um momento típico, eminentemente expressivo e
significativo. Esse momento é umafesta.
A festa é uma atividade propriamente humana, de natureza
coletiva. Ela é suficientemente espontânea para não ser social
em sentido pleno. A existência “arrebanhada” basta.
A festa supõe um lugar: “diante das cabanas ou ao redor
de uma grande árvore”. Não se poderia marcar melhor o cará
ter intermediário: a cabana já exprime o artifício, a árvore ain
da evoca a natureza. A cabana e a árvore são dois lugares pos
síveis de reunião. A árvore é um pólo antinômico e corretivo
da cabana. Dançar ao redor de uma árvore é festejar a natureza
como um centro, como um eixo. Mas, se é pela cabana que os
homens se congregam, a reunião é em volta da árvore. Assim,
a cabana exprime antes a coerção (ela protege, mas encerra ao
mesmo tempo) e a árvore, a espontaneidade. Oscilando entre
árvore e cabana, a festa é um ótimo provisório, um ponto no
qual o antagonismo entre natureza e artifício ainda deixa, por
enquanto, transparecer apenas uma harmonia.
124 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
A festa é a ocupação típica dos homens isentos do regime
do trabalho. Rousseau escreve: “o divertimento e sobretudo a
ocupação dos homens e das mulheres ociosos e arrebanhados”.
E o inverso da opinião comum, que vê no trabalho a ocupação
normal dos homens, na festa uma distração (divertimento) e
um parêntese. O que se faz na festa? Os homens se entregam ao
“canto” e à “dança”, duas atividades propriamente humanas,
mas ainda próximas da espontaneidade natural. O canto é aqui
compreendido como um aquém da linguagem, um ruído vocal
modulado mas ainda não articulado, que permanece próximo
desse “grito da natureza” acerca do qual Rousseau nos diz,
noutra parte, que ele precede a linguagem socializada. A dança
é a atividade expressiva dos corpos. Canto e dança permitem
uma pré-comunicação e uma verdadeira comunhão entre os
homens (num comentário, não se deixará de discutir essa dou
trina, que parecerá muito contestável a mais de um cantor e um
dançarino!).
Mas a maneira mais original que emprega Rousseau para
caracterizar canto e dança é a seguinte: “verdadeiros filhos do
amor e do lazer”. Essa fórmula implica que os filhos propria
mente ditos (as crias dos homens) são “falsos” filhos. Por quê?
Porque a procriação é considerada simples reprodução biológi
ca - e, portanto, animal.
5. A alteridade
Nessa etapa transitória, aparecem “ligações” e “vínculos”, o
que implica a alteridade entre semelhantes - que compõem o
“gênero humano”. Essas relações se desenvolvem com o hábito,
o costume, a repetição (“adquiriu-se o costume de reunir-se...”).
Mas é preciso ainda notar três coisas:
- a preexistência do homem como tal em face dessas relações
com outrem (dito claramente: a humanidade não é o resulta
do da interação social, mas seu fundamento);
- o fato de que a diferença humana entre os sexos já está dada:
a festa ocupa “homens e mulheres”, e não apenas machos e
fêmeas (biologicamente falando). Também aí, não há media
ção social para constituir o homem e a mulher como tais;
O OBSTÁCULO DA TRANSPARÊNCIA 125
- a ausência eloqüente da categoria At família : o amor engen
dra o canto e a dança, mas nem filhos, nem família.
6. 0 olhar
O olhar cria a ruptura: “Cada um começou a olhar os
outros e a querer ser olhado”. É na e pela experiência do olhar
que o outro aparece ao eu, e reciprocamente. Há aqui uma dia
lética, pois, se o outro é outro segundo meu olhar, ele é igual
mente capaz de olhar, já que é como eu. Devo portanto - quero
ou desejo, portanto - ser olhado, para ser o outrem do outro, e
não apenas um objeto qualquer.
7. 0 aparecer
O texto de maneira nenhuma nos diz que o ser do homem
é constituído pela dialética dos olhares; trata-se apenas do
aparecer. O que se estima num homem é o que aparece dele,
mesmo se ele não é isso (“o mais eloqüente” leva a melhor nos
diálogos, e não o mais verídico). Portanto, ele pode ser toma
do por um outro, que ele não é. A alteridade toma-se, assim, a
origem de uma alteração-alienação. Os indivíduos são con
fundidos com personagens que desempenham um papel. Essa
divisão entre o ser e o parecer é o primeiro resultado da dialé
tica do que olha e do que é olhado, arbitrada por um terceiro
coletivo. Por isso “a estima pública passou a ter valor”. Se tal
mulher prefere tal homem é porque os outros o julgaram
melhor dançarino, mais belo, etc. Os critérios de julgamento
são sociais.
A única coisa em jogo é meu parecer para outrem, mas
também meu parecer para mim mesmo, mediatizado pelos ou
tros. Eis por que nascem, segundo Rousseau, dois tipos de pai
xões relacionais: 1) de um lado, o julgamento de mim e dos
outros por mim, a partir de mim - como a vaidade (dilatação
do eu em meu aparecer que me é enviado pelo olhar do outro) e
o desprezo (a rejeição do outro como inferior a esse eu dilata
do); 2) de outro lado, o julgamento de mim através de outrem a
partir dos outros - como a vergonha (que me faz sentir culpado
de ser julgado negativamente) e a inveja (que me faz conside
rar a felicidade vivida pelo outro como usurpada da minha).
126 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
8. A corrupção
A festa é de fato um ótimo, um ponto culminante. Mas ela
só é possível se puser em jogo um conjunto de relações e de
forças que farão tudo desequilibrar-se. Há aqui, propriamente,
perversão dos efeitos, isto é, torção das condições positivas no
sentido das conseqüências negativas. Rousseau é claro: quan
do não mais se trata simplesmente de cantar ou dançar, mas de
cantar ou dançar bem, a diferença se instaura. Os desempe
nhos, louváveis em si, são apreciados pelo comparativo ou
pelo superlativo (“...o melhor, o mais belo, o mais forte, o mais
hábil ou o mais eloqüente...”). Mas essa diferença não é um
“mais” que enriquece a humanidade. O veneno é, aqui, a com
paração, resultante da alteridade-alienação. Os homens se me
dem entre si e sua sociedade erige em normas (“estima pública”)
o que daí resulta, segundo um processo interativo.
É assim que o vício resulta da desigualdade, que é a resul
tante das comparações de desempenhos, eles próprios ligados à
alteridade social.
Rousseau exprime essa idéia por uma comparação tirada
da química orgânica: as “primeiras preferências” são “levedos”
causadores de uma “fermentação” que faz trabalhar no mau
sentido toda a massa humana e produz “compostos” funestos.
Do ponto de vista filosófico, isso significa que existe um
processo necessário que nos faz passar da alteridade à altera
ção e à alienação no sentido literal do termo: o ser que é o que
é (o “selvagem”) toma-se diferente de si (cindido em ser e pa
recer, dualidade que é fonte de duplicidade). É o fim de sua
felicidade e de sua inocência.
a - Para introduzir
- O tema do texto é evidente: trata-se de explicar o mal -
noção que resume aqui a ausência de felicidade e de inocência,
com todas as ambigüidades que esses termos comportam, e
que Rousseau irá conduzir à sua maneira, para servir sua tese.
- Essa tese é a seguinte: é a alienação social (alteração da
identidade do homem pela alteridade dos outros) que perverte
o homem, considerado naturalmente inocente e feliz.
- Os objetos de discussão estão à altura do projeto: se o
mal é o fruto de tal alienação, é porque não decorre do pecado
original, da natureza das coisas ou da ignorância. Daí esta difi
culdade: a humanização do homem é, ao mesmo tempo, e indis-
soluvelmente, a infelicidade do homem?
b - 0 plano detalhado
Essa passagem, desprovida de divisões em parágrafos,
não apresenta partes, propriamente falando. Mas podemos dis
cernir três momentos no movimento que ela descreve:
- uma fase de desenvolvimento social;
- uma fase de culminância;
- uma fase de corrupção.
Para apresentar esse esquema em forma interrogativa,
faremos as seguintes perguntas:
- o que permite o progresso da humanidade?
- o que a festa revela?
- como surge o mal?
128 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
1. A fase de desenvolvimento social é exposta nas primei
ras linhas da passagem. Cumpre enunciar suas idéias, produ
zindo as noções (gênese de tipo empirista; relações humanas),
e destacar a argumentação, bem mais diluída. Deve-se mostrar,
assim, que duas noções do homem estão em jogo, sendo uma o
negativo da outra, enquanto o quadro que nos é apresentado é
uma etapa intermediária, provisória mas reveladora. Há que se
apoiar mais particularmente no verbo “domesticar-se” e na
evocação do “gênero humano” para deduzir o postulado do
homem “selvagem” no “estado natural”.
2. A fase de culminância impõe uma descrição precisa da
festa, com análise da cabana, da árvore, da ociosidade natural,
do canto e da dança, dos verdadeiros e dos falsos filhos, das
relações entre o homem e a mulher. Todas essas noções serão
ligadas e articuladas pela rede de um raciocínio: o do autor que
constrói minuciosamente seu discurso sobre o homem e a
sociedade.
3. A fase de corrupção nos leva a encadear as análises do
olhar, da alteridade, da alteração-alienação pela divisão do ser
e do parecer, e a transformação, que daí resulta, da diferença
em desigualdade, causa do mal e da infelicidade humanos.
c - Para concluir
A forma desse texto é original. Ela resulta da interação
paradoxal entre o fundo e a forma: o autor expõe uma gênese
empírica, e até empirista, ao passo que o movimento real é con
trário, e duplamente:
- ele parte dos vícios e das infelicidades do homem atual,
socializado, para fazer surgir por diferença um homem “sel
vagem”, reputado feliz e inocente, e posto oficialmente co
mo ponto de partida.
- ele dá a esse processo uma dimensão empirista, quando na
realidade, se trata de uma pura reconstrução teórica do ho
mem - portanto de uma dedução às avessas. O “selvagem”
O OBSTÁCULO DA TRANSPARÊNCIA 129
erigido em fundamento não é portanto senão um asselvajado.
Esse conjunto caracteriza o método utilizado por Rousseau.
Por que esses jogos? Porque Rousseau tem necessidade
deles para explicar as infelicidades e os vícios do homem atual.
Essa explicação constitui sua tese, cuja originalidade distin
gue-se em relação às teses rivais que ela pretende substituir (as
que explicam o mal pelo pecado, a natureza ou a ignorância
obscurantista).
Essa exposição pode parecer paradoxal, já que não se po
de dissociar o progresso do homem de sua corrupção, pois os
elementos que asseguram o primeiro provocam também - e
necessariamente - a segunda.
Mas cumpre considerar que essa explicação social do mal
é também a condição de uma restauração social possível: todos
os empreendimentos reformistas (e mesmo revolucionários)
oriundos de Rousseau decorrem disso.
a - O problema antropológico
Deve-se retomar o conteúdo da explicação, mas com
desenvolvimento mais amplo de certos aspectos, para discu
ti-los.
- À primeira vista, o autor parece contar a história da hu
manidade (aproximaram essa descrição do período neolítico,
e Rousseau não hesita, aliás, em buscar ilustrações em diver
sas obras científicas da época). Mas cuidado para não tirar con
clusões com base numa aparência. O Discurso de maneira ne
nhuma é um livro de história, e o próprio Rousseau admite, em
seu prefácio, que formula hipóteses sobre um estado natural
que talvez jamais tenha existido. Ele descarta portanto “todos
os fatos”, a começar por aqueles que a Bíblia relata no Gênesis.
Simplesmente, essa conjectura lhe parece a mais adequada
para explicar a razão do estado atual do homem, do qual ele
parte. Em Jean-Jacques Rousseau, la transparence et l'obs-
tacle [Jean-Jacques Rousseau, a transparência e o obstáculo],
Jean Starobinski fala acertadamente de “postulado especula
tivo”.
- Quanto às modalidades próprias da exposição, elas
resultam desta situação propriamente filosófica: sendo dado
apenas o homem atual, cumpre proceder negativamente (en
quanto a história procede sempre positivamente) para revelar
o homem selvagem e tirar da comparação entre esses dois
homens uma explicação da origem /fa desigualdade, fonte do
mal.
- Isso posto, Rousseau vaza seu discurso numa forma
figurada, em vez de contentar-se em expor um puro raciocínio.
Para ele é um meio de tomá-lo imediatamente evidente ao lei
tor, dirigindo-se à sua sensibilidade e à sua intuição. Para
Rousseau, o coração vê bem e a razão é enganadora... Ele utili
za, assim, uma parábola (a da festa primitiva) para fazer passar
O OBSTÁCULO DA TRANSPARÊNCIA 131
sua mensagem de uma maneira que não é a de um racionalista,
partidário das Luzes. Rousseau é um mustês (iniciado nos mis
térios) que faz ver, que revela.
d - Para concluir
A conclusão do comentário dependerá das inflexões da
das às análises comparativas e às discussões. Apenas demos
algumas pistas, sabendo que existem muitas outras referências
possíveis. Enquanto a explicação de texto é um trabalho muito
“padronizado”, o comentário desfruta da mesma liberdade da
dissertação.
Seja como for, é essencial no entanto permanecer na dire
ção certa do texto, mesmo se você insistir nesta ou naquela
linha de força. Poderá, assim, concluir privilegiando:
- o tema do progresso, ambíguo em Rousseau, já que se identi
fica com a corrupção;
- o tema da relação com outrem.(a relação entre os sexos, a
família e a sociedade, o olhar);
- o tema da comunicação (ou da comunhão) social.
Capítulo VI
Fichas rápidas
Modo de emprego
I. Um mito
PLATÃO
Idéias e argumentos
Lição
KANT
Noções e argumentos
Lição
PASCAL
Imaginação.
E essa parte dominadora no homem, essa senhora de erro e de
falsidade, e tanto mais velhaca por não sê-lo sempre, pois seria regra
infalível de verdade se o fosse infalível da mentira.
144 OS TEXTOS FILOSÓFICOS
Mas, sendo na maioria das vezes falsa, não dá nenhuma marca
de sua qualidade, marcando com o mesmo caráter o verdadeiro e o
falso. Não falo dos loucos, falo dos mais sábios, e é entre eles que a
imaginação tem o grande dom de persuadir os homens. Por mais que
a razão proteste, não consegue valorizar as coisas.
Essa soberba potência inimiga da razão, que se compraz em
controlá-la e dominá-la para mostrar quanto pode em todas as coisas,
estabeleceu no homem uma segunda natureza. Tem seus felizes, seus
infelizes, seus sãos, seus doentes, seus ricos, seus pobres. Faz crer,
duvidar, negar a razão. Suspende os sentidos, fá-los sentir. Tem seus
loucos e seus sábios. E nada nos despeita mais do que ver que enche
seus hóspedes de uma satisfação bem mais plena e completa que a
razão. Os hábeis por imaginação satisfazem bem mais a si próprios
do que os prudentes podem razoavelmente fazê-lo. Olham as pessoas
com autoridade, disputam com ousadia e confiança - os outros com
temor e desconfiança - e essa satisfação visível lhes dá geralmente
vantagem na opinião dos ouvintes, a tal ponto os sábios imaginários
gozam de favor junto aos juizes de mesma natureza. Ela não pode tor
nar sábios os loucos, mas pode torná-los felizes, ao contrário aa razão
que só pode tornar seus amigos miseráveis, uma cobrindo-os de gló
ria, a outra de vergonha.
Quem dispensa a reputação, quem dá o respeito e a veneração
às pessoas, às obras, às leis, aos poderosos, senão essa faculdade
imaginativa? Todas as riquezas da terra (são) insuficientes sem seu
consentimento. Não diríeis que esse magistrado, cuja velhice venerá
vel impõe o respeito a toda a gente, é governado por uma razão pura
e sublime, e que ele julga as coisas por sua natureza, sem deter-se nas
circunstâncias vãs que só afetam a imaginação dos fracos? Vede-o
entrar para assistir ao sermão, com um zelo devoto que reforça a soli
dez de sua razão pelo ardor de sua caridade; ei-lo pronto a ouvir com
respeito exemplar. Que o pregador apareça: se a natureza lhe deu
uma voz rouquenha e feições bizarras, se o barbeiro o barbeou mal e
ainda por cima deixou-lhe manchas no rosto, por maiores que sejam
as verdades que ele anuncia, aposto que nosso magistrado perderá a
gravidade.
O maior filósofo do mundo, andando sobre uma tábua suficiente
mente larga, se abaixo houver um precipício, será dominado pela ima
ginação, ainda que a razão o convença de sua segurança. Muitos
não poderiam sequer pensar nisso sem empalidecer e suar.
Não vou relatar todos os seus efeitos: quem não sabe que a visão
dos gatos, dos ratos, o esmagamento de um carvão, etc., tiram a
razão dos eixos? O tom de voz impressiona os mais sábios e modifica
o caráter de um discurso e de um poema.
A afeição ou o ódio mudam a face da justiça, e sabe-se o quanto
um advogado bem pago de antemão considera mais justa a causa que
defende. Seu gesto arrojado a faz parecer melhor aos juizes enganaaos
FICHAS RÁPIDAS 145
por essa aparência. Divertida razão que um vento maneja e em todos os
sentidos. Eu relacionaria quase todas as ações dos homens, que pratica
mente só se abalam com suas sacudidelas. Pois a razão foi obrigada a
ceder, e a mais sábia toma como seus princípios aqueles que a imagina
ção dos homens temerariamente introduziu em cada lugar.
Idéias e argumentos
Lição
DURKHEIM
Idéias e argumentos
Lição
b - Um exercício realizável
Por que muitas dissertações filosóficas fracassam? Porque
as qualidades requeridas fogem do padrão comum dos exercí
cios escolares. O fracasso parece inscrito, antes da hora, nas
exigências desse exercício. Com efeito, a dissertação não exis
te como um modelo em si, em relação ao qual seriam avaliados
os trabalhos entregues pelos estudantes. Em dissertação não há
lacuna a preencher com a boa resposta. Logo, não há resposta
única, mas respostas, uma multiplicidade de respostas possí
veis, uma “democracia” de respostas filosóficas.
Consideremos isto: um número infinito (em princípio) de
dissertações, todas igualmente válidas, são possíveis sobre um
mesmo tema, a partir do simples respeito a certas exigências
(análise do tema, exposição da problemática, discernimento do
objeto de discussão). Assim, não há jamais perfeição absoluta,
mas um grande número de aproximações possíveis. Pode-se
dar a nota máxima, mas, perseguindo-se excessivamente o ne
gativo, sempre se poderá descobrir algo a questionar e a “re
gatear”, acabando por desencavar falhas, defeitos de constru
ção, lacunas ou aproximações indevidas.
No entanto, já que a dissertação é um exercício escolar,
tem de ser realizável. Não fosse assim, não seria em absoluto
um exercício. Escolar ela é, não festa dúvida. Afinal de con
tas, salvo exceções, os filósofos produzem ensaios, teses,
comunicações, livros, e não dissertações. Quando for esse o
160 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
caso (mas A dissertação de 1770 de Kant e as três dissertações
de A genealogia da moral de Nietzsche serão dissertações no
sentido em que o entendemos?), elas não recebem nota, não
dão ensejo a correções. É verdade que são prestigiosas: são
obras de autores.
E um fato que a dissertação apresenta todas as característi
cas exteriores, todas as aparências do “teste” escolar, com seu
quadro estritamente definido: um assunto preciso, um tempo
limitado, um espaço circunscrito a algumas páginas ou folhas,
prazos para sua execução. Produção fechada, ela deve ser con-
ceitualmente completa ou acabada, mesmo se esse acabamento
deixa a questão em suspenso, ainda aberta, sugerindo desdo
bramentos.
Ora, o que o professor corrige, já que ele só pode corrigir
o que lhe é entregue, é bem diferente de um exercício: a maior
parte das dissertações são parciais, confusas, freqüentemente
fogem do assunto, e isso apesar de lembradas as exigências e
as regras. Pior, tudo acontece como se estas últimas constituís
sem uma desvantagem, um obstáculo, quando deveriam ser
consideradas e compreendidas como as verdadeiras condições
de possibilidade de realização da coisa. É que há nos espíritos
uma espécie de superestimação: invoca-se, e de forma fantas
magórica, o modelo, a Idéia, o ideal da dissertação, para tentar
conformar a isso, custe o que custar, os trabalhos produzidos.
Assim, encarniçando-se em construí-la segundo um mo
delo padrão, corre-se o risco de transformar a dissertação em
objeto técnico. Mas o que é um objeto técnico que funciona
mal ou que simplesmente não funciona? E se funciona, que
pode ter ainda de filosófico? Do gadget ao exercício retórico,
sempre e toda vez, o objetivo não é alcançado. Claro, isso só
agrava a situação, e a vocação escolar da dissertação, sem a
qual não há razão de fazê-la, é arruinada em seu fundamento.
Eis-nos no âmago do problema.
Se a dissertação for apenas um exercício escolar, ela deve
corresponder às capacidades reais dos estudantes. Mas, se a
dissertação se tomar “infactível” (e se a exigência for adequa
da às “capacidades reais”), a dissertação, tal como se apresen
ta, não será mais exigível. É preciso parar de pedi-la e reduzir o
nível das exigências, até que o estudante se acomode perfeita
DEFINIÇÃO DO EXERCÍCIO 161
mente a elas, sinta-se bem ou menos mal. Isso eqüivale a impor
dissertações que não são dissertações ou a inventar outros tipos
de exercícios. Mas estes serão menos filosóficos, pré-filosófi-
cos ou, pior ainda, absolutamente não-filosóficos.
Em contrapartida e inversamente, se a dissertação não for
apenas um exercício escolar, se já for o esboço de uma obra,
não se pode transformá-la em teste. Sendo assim, caberia pre
ferir aqui a exposição, o ensaio, a comunicação, que oferecem
ao espírito toda latitude, licença e liberdade de pesquisa, e de
sempenham inclusive um papel iniciático não desprezível.
Balanço do argumento: uma dissertação bem-sucedida co
mo exercício não será mais inteiramente um exercício; mas um
exercício malsucedido, tampouco será uma dissertação.
Teria sido cultivado, então, durante gerações, um gênero
impossível, um gênero que estaria na hora de declarar prescrito
e caduco? Mas, se giramos em círculos, é em primeiro lugar
porque comparamos a dissertação com outros exercícios esco
lares que têm a ver com disciplinas diferentes, radicalmente di
ferentes da filosofia. A diferença e a especificidade das disci
plinas requerem as de seus exercícios. A dissertação filosófica
não é nem o que se julga que ela é, nem o que se gostaria que
ela fosse. O que é, então, uma dissertação filosófica?
Em suma, a dissertação filosófica, sendo um exercício, só
é concebível em razão de suas regras. Cumpre portanto com-
preendê-las.para evitar os mal-entendidos.
a - O momento da redação
Há aqui um paradoxo. A dissertação faz do estudante, em
certa medida, um “autor”; entretanto, seu texto dificilmente
pode ser já considerado como um texto de autor, isto é, um
texto que seria objeto de comentários (em vez disso, temos
correções) e que se anunciaria como original, fundador, dis
pondo de sua própria autonomia, de sua própria autoridade.
No entanto, a realização de fato da dissertação encena um
direito, já que o autor do exercício é efetivamente o sujeito de
um discurso filosófico que se supõe sensato e inteligível e que
deve ser tratado como tal. Esse é o postulado fundamental: não
é qualquer um que escreve uma dissertação filosófica. Ela é
solicitada a um sujeito dotado de razão, pede-se que ele a es
creva, já que consente em manifestar essa razão no ato de reda
ção de seu pensamento.
É preciso, pois, jogar o jogo, supor que a dissertação do
estudante é legível e inteligível. Isso implica o respeito que se
deve ter pelo estudante e por seus trabalhos, e que é fonte de
diálogo, de discussão, de correção (no sentido de retificação,
mas também de rigor moral) e de progresso. Produção de um
autor mas nem por isso obra, a dissertação assemelha-se aqui
ao ato do médico, que se prende a uma obrigação de meios
mas não a uma obrigação de resultado.
Em suma, para escrever uma dissertação, você deve fazer
“como se” fosse um autor. Precisa, pois, ter (boa) vontade de
escrever.
b - 0 momento da avaliação
Uma dissertação é essencialmente feita para ser corrigi
da. Prova disso é que o professor parte do princípio de que, no
exercício de um estudante, há sempre menos do que o que ele
DEFINIÇÃO DO EXERCÍCIO 163
quis colocar, enquanto no texto de um filósofo há sempre
mais. Uma dissertação não corrigida não é verdadeiramente
uma dissertação, ela não conta, é uma simples ida sem volta,
que se perde nas areias do informe, como um diálogo platôni
co do qual Sócrates subitamente se ausentasse. Daí a impor
tância maior que o estudante atribui à nota, importância que
está longe de ser o sinal de um espírito imaturo e que merece
algo bem diferente do desprezo. Um exercício sem nota nem
correção digna desse nome simplesmente não realiza sua
essência, eqüivale a um filme fotográfico operado mas não re
velado nem copiado.
Certamente se pode questionar a avaliação, suas regras ou
seus avatares, mas é preciso respeitar seu princípio, pois ela
cumpre uma função capital. Todo corretor sabe que deve entre
gar todos os exercícios com nota e anotações, já que se encon
tra na posição socrática do espelho que, literalmente, nada
deixa passar e reflete todos os raios emitidos. O exercício filo
sófico nada significa sem esse penoso trabalho do negativo.
Sem ele, o “corretor” é um demagogo que, a exemplo da vidra
ça, deixa passar tudo sem nada refletir de volta. Ao deixarem
Sócrates, seus interlocutores talvez nada tivessem aprendido,
mas uma coisa ao menos restava: acreditavam saber e não
sabiam.
O estudante tem direito portanto a uma nota - boa ou má,
não importa. Essa condição permite ao pensamento em gesta
ção e em atividade apoiar-se sobre um “real” resistente, num
obstáculo para dimensionar a si próprio e retomar a si mais
bem preparado.
Moral da história: é preciso multiplicar as dissertações e
terminar por entregá-las - sem esticar os prazos e sem abusar
da paciência do professor -, terminá-las para entregá-las, em
vez de passar semanas sobre uma obra-prima em potencial que
não entrará no circuito, em nome de uma exigência de qualida
de inteiramente deslocada, quando não um tanto louca, prove
niente daquele fantasma de perfeição que conduz à má abstra
ção do interminável e ao drama do inacabado. É preciso apren
der a terminar uma dissertação, e a correção com nota, afinal
de contas, é um término bastante bom.
164 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
Resumindo
M odo de uso
b - Várias noções
É um caso um pouco mais complexo, mas é aparentado ao
precedente. Por exemplo: “Ordem e desordem”, “Força e
violência”, “Exatidão e precisão”, “Inocência e ignorância”. A
cópula pode mudar, acrescentando-se nesse caso um ponto de
interrogação: “Ordem ou desordem?”, “Ciência ou filosofia?”.
Pode igualmente desaparecer em proveito de uma vírgula e de
um aumento substancial dos protagonistas: “O eu, o mundo e
Deus”, “Necessidade, desejo, paixão”, “O animal, o homem
e Deus”, “O humano, o inumano, o sobre-humano”, “Moral,
amoral, imoral”, etc. Faremos as mesmas observações que fi
zemos para a primeira forma de tema: trabalhar primeiro sobre
as definições e as diferenças. A problematização virá a seguir,
por acréscimo.
c-A pergunta
O caso é mais complexo. Entramos aqui na formulação
clássica do tema de dissertação filosófica propriamente dito,
ou pelo menos o mais difundido atualmente na França, do fim
do secundário ao le ciclo da Universidade. A rigor, de fato, é
preciso considerar todo tema como uma pergunta, quer esta
seja explícita ou implícita. A pergunta, aqui, remete a um pro
blema filosófico preciso que caberá descobrir, definir e formu
lar explicitamente. A pergunta é apenas uma flecha, cumpre
segui-la, obedecer à direção que ela indica. Por exemplo:
178 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
- “Em que condições a paz pode ser considerada como um
valor?”
- “Em que condições uma estética é possível?”
- “Em que sentido pode-se falar de um desejo de ser
vidão?”
Notemos que um tema como “O que é a beleza?” não é
senão uma explicitação possível (mas não a única) da pri
meira forma de tema: “A beleza”; o mesmo para “Qual o
valor da paz?” em relação a “O valor da paz”. Insistiremos
aqui apenas num ponto essencial, que os estudantes esque
cem ou negligenciam: se há um ponto de interrogação, é que
uma pergunta é feita, e será preciso imperativa e explicita
mente, ao cabo de um trabalho argumentado, responder a
ela na conclusão.
d - A citação
É o último estado da complexidade, felizmente mais raro
que as formas precedentes. A tarefa, aqui, é também bastante
clara e evidente:
- primeiro, explicar a frase (o que é realmente afirmado nela?
Em que termos? Por que razões?);
- depois, fazer a apologia da asserção (lembrar que “fazer a
apologia” é tomar a defesa de), portanto mostrar primeira
mente em que e por que X tem razão de dizer isso, ainda que
“se tivesse razão” de pensar de outro modo;
- em seguida, comentar e fazer a crítica (ou se distanciar, o que
sempre deve ser feito com nuances).
Não é inútil, neste caso, como se percebe, reportar-se aos
conselhos referentes à explicação e ao comentário de texto
para se afastar. Mas aqui, mais do que nunca, é preciso vigiar a
posição das aspas, ler bem a fórmula que acompanha (às vezes)
a citação e que pode não ser apenas circunstancial. Alguns
exemplos para esclarecer:
- “ ‘O Ser se diz em múltiplos sentidos’. Mostre-o.”
A PREPARAÇÃO DE UMA DISSERTAÇÃO 179
- “É verdade que, como diz Nietzsche, ‘As convicções
são inimigas mais perigosas da verdade que as mentiras’?”
- “O que pensar desta definição de Rousseau: ‘A obediên
cia à lei que nos prescrevemos é liberdade’?”
Último ponto: que fazer quando o autor da citação não é
nomeado? Essa forma de tema tende a cair em desuso. O
motivo é a preocupação de não perturbar excessivamente os
estudantes, evitar que desloquem sua energia para a arte insí
pida da adivinhação, ou aquela, mais lamentável ainda, dos
jogos de TV (o erro quanto ao nome do autor podendo induzir
a catástrofes, por superestimação indevida da dimensão eru
dita). Agora levando-se em conta essa situação, poder-se-ia
não obstante sustentar com outras razões, mais fundamentais
se não melhores, que esse anonimato apresenta muitas vanta
gens. Com efeito, não se pede um “discurso” de história da
filosofia sobre X ou Y. E quando o nome do autor, ou de um
autor (diferente daquele da citação, por exemplo), figura no
enunciado, o fato de ceder à tentação do “discurso” conduz
com freqüência a impasses.
Resumindo
Resumindo
b - A s associações verbais
Todavia, nessa etapa do trabalho, um problema se coloca:
como saber se este sentido vai funcionar e aquele outro não?
Após uma ou duas horas de trabalho, pode-se ter uma má sur
presa: pode-se, de repente, ter necessidade de um sentido,
quando este foi antes eliminado por cegueira. Cumpre portanto
ter o senso do provisório e saber conservar, em algum canto da
memória alerta, a lembrança desta ou daquela observação cuja
utilidade, ou urgência, irá se impor a seguir contra toda previ
são anterior.
Por isso recomendamos trabalhar muito livremente na
folha de papel, em estilo telegráfico, com esquemas, etc., a fim
de poder se desembaraçar das opções primeiras, de retocar os
resultados provisórios.
Assim é bom fazer a coleta de todos os sentidos de uma
noção, mas impor-se o necessário trabalho de triagem, ou tra
balho crítico de seleção e de eliminação, à medida que os diver
184 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
sos sentidos da noção forem nos prestando seus serviços. Nem
tudo o que for encontrado poderá servir integralmente.
Contudo, uma vez definida a tarefa, uma vez as noções bem
admitidas, como começar? Como saber, se nada ainda se sabe da
coisa?2 Você pode sentir-se e achar-se naturalmente desarmado
diante de certos temas: “O normal e o patológico”, “O acaso”,
“Por que paixões?”, “O prazer é um tirano?”, etc. Como fazer
para que a noção acabe por “nos dizer alguma coisa”?
Podemos começar por recorrer à técnica dita das associa
ções livres ou das associações verbais, que consiste numa
espécie de devaneio acordado capaz de soltar o espírito, de en
contrar caminhos de descoberta, ligações insuspeitas, vocabu
lário, etc. Trata-se de segurar as duas pontas da cadeia da pes
quisa, a da imaginação e da memória, de um lado, a do entendi
mento e do juízo, de outro.
Tomemos uma noção, pensemos nela sem censura (aten
ção, o que pode parecer absurdo e sem relação com o tema
pode servir..., mas só o saberemos com o trabalho de ordena
ção e de verificação, e depois dele), escrevamos tudo o que nos
“vem à cabeça” a propósito dela. E isto, a partir de uma per
gunta simples: em que isso me faz pensar? Esse método permi
te ampliar o vocabulário (homônimos, sinônimos, falsos amigos,
verdadeiros amigos, termos vizinhos, de mesma raiz, contrá
rios, adjetivos, verbos correspondentes), encontrar exemplos,
descobrir referências, autores, citações, fórmulas reveladoras e
acertadas (mas tome o cuidado de só usar clichês e “lugares-
comuns” para jogar com eles, mantendo um distanciamento).
Obviamente, esse material não pode permanecer no estado em
que se encontra. Como tal, é um monte de informações não-
ordenadas e não-hierarquizadas, que só podem atordoar. Ele só
terá valor uma vez ordenado, elaborado, criticado, hierarquizado:
o entendimento deve disciplinar os achados da imaginação.
Resumindo
Resumindo
Resumindo
VI. A problematização
Eis-nos aqui diante da verdadeira dificuldade da disserta
ção filosófica, a que comanda todas as outras e que determina o
valor do trabalho. Não há dissertação sem a exposição clara,
nítida e decisiva de um problema filosófico; a razão de ser do
título do tema da dissertação é permitir que o autor e o leitor
penetrem no núcleo desse problema.
a - O “fora-do-tema”
A boa identificação do problema é essencial para o estabe
lecimento da dissertação e nos esclarece em particular sobre a
dolorosa questão do “fora-do-tema”.
Uma dissertação está “fora do tema” quando trata de um
problema que não é estritamente conforme aos termos do tema.
Quando isso acontece?
- quando se confunde o tema com outro que não é conforme
ao enunciado; é por essa razão que insistimos nos perigos da
memória ao nos depararmos com um tema vizinho de um
daqueles já trabalhados;
196 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
- quando se retém apenas um elemento do tema, indevidamen
te valorizado, e se reduz o dever a essa única parte, a ponto
de esquecer o problema em seu conjunto. Isso acaba geral
mente em “deriva”;
- quando há deriva, e o perigo é que esta ocorre aos poucos,
no correr do discurso, insensivelmente, sem que se perce
ba realmente (desvio do tema); isso prova não haver mais
concentração na verdadeira finalidade do tema (supondo-
se, é claro, que tal finalidade tenha sido percebida antes),
seja por distração, seja por faltarem recursos para fazer
verdadeiramente o trabalho. O dissertador volta-se então
para outro tema, mais familiar, mais fácil, mais tentador.
Tomemos um exemplo. A propósito de um tema como
“Que é um livre espírito?”, é preciso não confundir as duas
expressões “livre espírito” e “espírito livre”. Isso supõe que se
reconheça em “livre espírito” uma expressão que de modo
nenhum pode ser desmembrada; com efeito, não se deve apa
gar a originalidade particular do tema proposto, que remete ao
século das Luzes, à corrente do livre pensamento (os livres-
pensadores), à liberdade do espírito crítico contra as ilusões, de
Voltaire a Nietzsche, para serem mais diretos. Evite portanto
limitar o tratamento do tema à simples questão cartesiana da
vontade infinita, o que só se justificaria em temas como “O que
é a liberdade para um espírito?”, “O que é a liberdade de jul
gar?”. A referência cartesiana certamente não é inútil para nos
so tema inicial (o itinerário cartesiano influenciou, a seu modo,
os filósofos das Luzes), mas ela constitui uma armadilha sedu
tora, a ocasião evidente de uma deriva ou de uma grave redu
ção do problema. Você não seguiria então nem a letra do tema,
nem seu “espírito”.
b - O falso problema
Pode ocorrer também que o aluno se perca num falso pro
blema. Isso acontece quando ele não compreendeu o problema
em questão e quando estabelece relações entre elementos que
A PREPARAÇÃO DE UMA DISSERTAÇÃO 197
não têm relação nenhuma, mas também quando tem dificulda
des de julgamento. Ele trata então de um falso problema, de
um problema que não tem a menor relação com qualquer pro
blema filosófico ou que mantém relações indiretas com um
problema filosófico. A imaginação dos estudantes, aqui, é por
vezes sem limite, e não se podem catalogar todas as situações.
Numa dissertação filosófica, há mil e uma maneiras de se
enganar, e muito poucas de estar certo; há portanto uma infini
dade de falsos problemas possíveis, e apenas alguns verdadei
ros problemas.
Tomemos simplesmente alguns exemplos para mostrar
bem a coisa:
- A propósito de um tema como “Os homens fazem a his
tória?”, a confusão pode nascer de um equívoco acerca da
noção de história. Se “história” for tomada no sentido de “ciên
cia” ou “relato”, em vez de “realidade efetiva do devir hu
mano”, corre-se o risco de investir contra moinhos de vento ao
longo de toda a dissertação. Assim, é preciso desconfiar de
temas que versam sobre noções ambíguas, cujos sentidos não
têm intrinsecamente relação uns com os outros: um tema como
“O dom é desinteressado?” toma-se incompreensível - e a dis
sertação, ridícula-, se “dom” for definido por “talento inato”...
- A propósito de um tema como “A ignorância é um argu
mento?”, quando nos perguntamos se a ignorância é uma con
dição de possibilidade do conhecimento (já que “para aprender
e conhecer é preciso antes ignorar”, o que é um sofisma, o qual
reside no “para... é preciso”) e acabamos por dizer que “a igno
rância permite o conhecimento”, temos os sinais de um falso
problema: pensar que a ignorância pode ajudar a constituir o
conhecimento, que ela é um de seus “argumentos” mais essen
ciais, quando é um de seus obstáculos maiores. Quando conhe
cemos, não conhecemos com a ignorância, através dela, graças
a ela; conhecemos sobre um fundo de ignorância, contra a
ignorância, separando-nos dela, o que não é a mesma coisa.
- A propósito de um tema como “Qual é o valor da abstra
ção?”, formular um problema como “Pode a abstração nos
fazer felizes?” atesta que não se está nem um pouco atento à
legitimidade da relação entre a operação da abstração e a felici
198 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
dade (não existe essa relação, com efeito) e que se confunde,
no caso, abstração e conhecimento.
Entretanto, cumpre notar que o “falso problema” pode ter
uma função de desvio argumentativo ou retórico. Pode-se in
tencionalmente, tomando o cuidado de evitar qualquer equívo
co, produzir um falso problema para as necessidades da inves
tigação, e mesmo da redação. É o chamado método aporético
(“aporia” é o impasse, o beco sem saída): exploram-se hipóte
ses de trabalho (opinião, preconceito, obstáculo ideológico)
que se sabe pertinentemente serem inválidas, mostra-se que
elas o são, e assim, se avança na direção do verdadeiro proble
ma, repelindo aos poucos alguns falsos problemas. Isso supõe
certo domínio redacional e uma verdadeira e penetrante com
preensão do problema em questão.
Encontramos modelos desse procedimento em Platão
(Mênon, Teeteto, por exemplo) ou em Bergson. Pode-se utilizá-
los para temas que tratem de uma definição: “O que é a virtu
de?”, “O que é o conhecimento?”, “O que é a coragem?”. Nes
ses casos começar expondo todas as falsas pistas, os falsos ami
gos, o que virtude, conhecimento e coragem não são e não po
deriam ser, e a seguir trabalhar por aproximação, até formular
por fim um verdadeiro problema filosófico. Por exemplo: a vir
tude é verdadeiramente definível? Se sim, em que condições?
Se não, qual a razão disso? Há alguma coisa da essência da vir
tude que constitui um obstáculo para a definição?
Resumindo
d - O senso do problema
1. As exigências
Não haverá, portanto, dissertação digna desse nome sem
exposição de um problema filosófico, é ele, aliás, que ocupará
200 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
essencialmente a função da introdução e da conclusão, bem
como dos momentos cruciais do desenvolvimento, quando
deveremos nos interrogar sobre seus elementos e dados.
Ter o senso do problema é, primeiramente, adotar a atitu
de mental requerida. Há, por certo, algo de artificial em impor,
num belo dia, uma reflexão com tempo limitado sobre, por
exemplo, “As provas da existência de Deus” ou sobre “O sen
sível e o inteligível”, quando o estudante pode ter, segundo a
atualidade, outras preocupações e outras urgências. É preciso
no entanto “forçar-se”, evitar os estados d’alma e aceitar a con
venção, o que chamamos “jogar o jogo”, para tentar mostrar
que o problema colocado implicitamente pelo tema constitui
um verdadeiro problema, essencial, inteligível, mesmo se
parecer, à primeira vista, espinhoso, extravagante e alheio,
pouco atual ou “inatual”. Sem esse esforço, nada é possível.
Uma vez resolvido o problema da atitude mental, cumpre
aplicar-se à descoberta e à formulação do problema filosófico.
A apreensão do “verdadeiro” problema do tema é o sinal
mais genuíno da compreensão desse tema. Convém não negli
genciar a necessidade de dar a entender isso ao corretor. Não se
deve hesitar, aqui, em ser sistematicamente escolar e “ele
mentar” quanto às perguntas a fazer ao tema. Compreender um
problema filosófico é já estar se perguntando: em que é legíti
mo supor isto? Temos razão de formular a questão assim? Em
que e por que este problema é um verdadeiro problema? Em
quais sentidos dos termos do tema o problema se coloca real
mente? A que urgência e necessidade teóricas o tema res
ponde?
Isso significa essencialmente que o trabalho de proble-
matização consiste em remontar as condições de inteligibili
dade do problema filosófico. Trata-se, então, de explicar os
dados, a origem e a razão interna (a destinação, os objetos de
discussão) desse problema. Com efeito, a particularidade de
um problema filosófico apresentado por um tema de disserta
ção faz com que não se disponha dos dados do problema no
enunciado. Cumpre, portanto, buscar esses dados acima do
problema filosófico, extraí-los, isolá-los, pela reflexão. São
esses dados que explicitam as condições de inteligibilidade do
problema.
A PREPARAÇÃO DE UMA DISSERTAÇÃO 201
Esse trabalho de problematização constitui de fato a reca
pitulação do conjunto das tarefas precedentes: compreensão do
tema, análise das noções, determinação dos conceitos, defini
ção dos termos. Sua pertinência e sua facilidade dependerão,
portanto, da qualidade do trabalho de análise prévio já efetuado.
Em todo caso, nenhuma receita virá aqui substituir a sutileza, a
engenhosidade, a cultura, a maturidade de espírito, que permiti
rão ficar um pouco mais à vontade, avançar um pouco mais
rapidamente. Portanto, nesse estágio, só se podem apresentar
alguns exemplos de procedimentos de problematização.
Na prática, porém, ganharemos se primeiramente colo
carmos o tema, a partir de suas condições de enunciação, em
situação, ou seja, referindo-o a um contexto (por exemplo, uma si
tuação histórica dada), a um registro ou a um campo de aplica
ção (moral, religioso, político, epistemológico).Vejamos três
exemplos:
- Colocar, à guisa de tema, “O que é uma revolução?”,
pedir que se acabe por responder explicitamente à questão da
definição: em que condições o fenômeno “revolução” é inteli
gível e em que sentido a noção de revolução comporta uma
unidade? Por isso é útil, quando não necessário, multiplicar as
abordagens e pontos de vista, para que se tenha o espectro de
trabalho mais amplo possível. Começaremos levando em conta
a dualidade de sentido do termo: o sentido etimológico de
retomo periódico de um astro a um ponto de sua órbita; o senti
do de mudança, a passagem a condições radicalmente novas.
Buscaremos a seguir, na ordem do contexto histórico, exem
plos propícios que expõem as analogias, semelhanças e dife
renças entre as diversas revoluções: as duas revoluções da
Inglaterra (no século XVII), as revoluções francesas (são três -
1789, 1830 e 1848 -, o que permite evitar os clichês), as duas
revoluções russas (1905 e 1917), a revolução do “nacional-so-
cialismo” alemão (será que foi uma revolução?), as contra-
revoluções respectivas, etc.; mas iremos igualmente pesquisar
os campos e registros, para não reduzir o tema à mera análise
da história política das sociedades (trata-se de um trabalho de
filosofia...), e isto sem esquecer a importância do contexto: as
revoluções em história das ciências (revolução galileana, newto-
niana, einsteiniana), em história da arte (a perspectiva, o dode-
202 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
cafonismo), em história das técnicas (o transistor, o chip eletrô
nico, o avião), em história das religiões (a essência do mono-
teísmo hebreu, a humanização de Deus no cristianismo), em
história da filosofia (a revolução copemicana introduzida por
Kant na teoria do conhecimento), etc.; quanto aos problemas
filosóficos que permitem avançar na tarefa de definir a noção
de revolução, podemos nos referir às questões da ordem e da
desordem, do irreversível, da guerra civil, da liberdade e da
servidão, do fim da história, da transformação dos valores e
das formas materiais e intelectuais de existência (vida, pensa
mento, representações do mundo, etc.).
- Do mesmo modo, se for colocado o tema “Pode-se pen
sar a morte?”, nos referiremos aos diferentes contextos nos
quais tal questão pode encontrar seu sentido: em Homero (A
llíada, sobretudo), no Antigo e no Novo Testamento, em Dante
(A Divina Comédia), etc.; quanto aos campos e registros, para
compreender o que pode significar aqui o verbo pensar (represen-
tar-se, conhecer, compreender, imaginar, crer, pensar no senti
do estrito da palavra?), pesquisaremos quanto à questão médi
ca (pensemos nas dificuldades encontradas para definir a
morte biológica, mas também em certas condutas doentias do
luto e da melancolia), do lado da questão moral (a eutanásia,
por certo, mas também o problema do suicídio, da morte vo
luntária), da questão metafísico-religiosa (o sacrifício, a ques
tão do sentido da morte com a crença na imortalidade da alma,
“Deus está morto”) e mesmo da questão da arte (“A morte da
arte”, a representação artística da morte) ou dos costumes (os
ritos fúnebres, as cores do luto), etc. Quanto às doutrinas filo
sóficas, nos reportaremos a Epicuro, Lucrécio ou Spinoza
(para os quais um verdadeiro pensamento da morte é impossí
vel, já que a morte é “irrepresentável” e o “pensamento” da
morte decorre, de fato, da ignorância, das paixões tristes, da
servidão e da ilusão); a Platão, Hegel ou Heidegger, para os
quais o pensamento da morte constitui uma prova de verdade
(moralidade, liberdade, autenticidade, segundo as referências):
pode-se pensar a morte, de certo modo, porque ela deve ser
pensada.
Tomemos um último exemplo: “O sensível e o inteligí
vel”. Como captar o verdadeiro problema filosófico desse te
ma? E preciso que nos forneçamos os dados do problema, ou
A PREPARAÇÃO DE UMA DISSERTAÇÃO 203
melhor, que os conquistemos, num trabalho de questionamento
que pode ser simples e elementar no começo, para depois se
tomar complexo:
- a propósito de “sensível”: o que é o sensível? Que significa
o adjetivo (substantivado) “sensível”? O sensível é um mun
do? Que quer dizer “mundo sensível”? Em que condições o
mundo sensível é um mundo?
- e a propósito de “inteligível”: que significa esse termo? Que
quer dizer “mundo inteligível”? “Ser inteligível?”, etc.
Por outro lado, a atenção dirigida para a cópula “e” permite
a seguir colocar o problema de sua distinção: por que distingui-
mos sensível e inteligível? Por que temos necessidade de distin-
gui-los e às vezes até de opô-los? Que significa essa separação?
Trata-se de compreender cada termo em seu sentido mais pobre
(o sensível como concreto e o inteligível como abstrato)? Que é
que funda, por exemplo, o conflito entre sensível e inteligível,
se conflito existe? Não serão já representações que têm algo de
comum entre si? Um dos termos não compreende necessaria
mente, pelo menos de modo parcial, o outro? O sensível não é, à
sua maneira, inteligível? O inteligível não está necessariamente
presente no sensível?, etc.
Resumindo
2. Os meios práticos
Pode-se enfim indicar algumas receitas disponíveis para a
formulação do problema filosófico, formulação que deve im
perativamente ser curta, sintética e precisa:
204 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
- Formular o paradoxo que o próprio tema pode apresen
tar, implicitamente (“Como é possível fazer mal?”) ou explici
tamente (“A obediência à lei que nos prescrevemos é li
berdade”, “Pode-se forçar alguém a ser livre?”). Mas somos
convidados a produzir nós mesmos paradoxos, ou a descobri-
los, ao longo da dissertação, apresentando-os como aparências
de contradição. O sal da reflexão consistirá então em superar
essa contradição graças a uma melhor compreensão do sentido
dos termos.
- Trabalhar a contradição, a oposição entre doutrinas.
Esta pode ser aberta, clara e evidente à primeira vista (como é
que Platão, por exemplo, pode dizer isto, se Nietzsche diz aqui
lo, quando isto é o contrário daquilo?) ou latente, em potencial
(por exemplo, definir a imaginação como faculdade de anteci
pação entra em contradição com a hipótese de uma imaginação
reprodutora).
- Assegurar a passagem da aparência à essência, do fenô
meno ao ser, do falso (da ilusão, da opinião, do erro) ao verda
deiro (o que “a ciência” diz pela demonstração, a verificação, a
retificação, ou a filosofia pela crítica, a interpretação e a argu
mentação). Assim, num tema como “O fim do Estado”, pode-
se formular o problema examinando os fins aparentes (que
parecem verdadeiros numa primeira abordagem, mas que se
revelam ilusórios, ideologiacmente comprometidos) e propon
do, pela interpretação (por exemplo, a “filosofia da suspeita”
de Marx e Nietzsche), uma retificação desses fins aparentes,
um enunciado do “verdadeiro” fim, jogando também - mas
isso não é possível em todos os casos - com a dualidade da
palavra “fim” (finalidade e termo).
- Jogar com os sentidos diferentes no interior de uma
mesma noção. Acabamos de ver um exemplo com a palavra
fim, no tema sobre “O fim do Estado”. Isso aplica-se também a
“O fim da paixão”, “Há um fim da história?”, etc. Mas certos
termos oferecem a ocasião de dar ao tema uma verdadeira pro
fundidade e uma flexibilidade de jogo apreciável.
Por exemplo: o termo objeto (“Qual é o objeto da ciên
cia?”, “Há um objeto da filosofia?”), com o duplo sentido de
“o que é analisado, pensado, conhecido por” e de “finalidade,
objetivo, direção, intenção”; o termo razão (“Há uma razão
/I PREPARAÇÃO DE UMA DISSERTAÇÃO 205
do mito?”), com o duplo sentido de “razão de ser” (o porquê)
e de “racionalidade” (qual sua lógica interna, se existe uma?),
etc.
Resumindo
b - Quais referências?
Uma dissertação não se concebe sem referências; mas a
que referências recorrer? Se a filosofia se nutre sem dificuldade
de tudo o que não é ela, ela pode, abelha sugadora, buscar em
toda parte sua substância. Distinguiremos então:
1. As referências não-filosóficas
São todas as referências que pertencem a um domínio cul
tural diferente da filosofia e que pretendem produzir outra
coisa que não filosofia.
- A arte, isto é, os textos dos escritores, pintores, arquite
tos, músicos, etc., ou os textos sobre a literatura, a pintura, a
arquitetura, a música, etc.; utilizar, porém, com circunspecção,
a referência que deve ser “reconhecida”. Podemos nos referir a
autores clássicos: Klee, Balzac, Flaubert, Beethoven, Bema-
nos, Wagner, Cézanne, Brecht, Van Gogh ou Kantor, por exem
plo; mas devem ser evitados os cantores, as histórias em qua
208 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFh
drinhos, os autores na moda, os autores desconhecidos (na
mais lembrado do que os autores “esquecidos”...) ou decidid
mente nulos, salvo se isso é feito ironicamente e de propósi
(mesmo assim convém não abusar do procedimento), p
exemplo em temas como “A nulidade”, “O mau gosto”, ‘
vulgar”, “A moda”, etc. Cuidado, aqui, com os desencaminh
dores “Dicionários de citações”, que devem ser manipulad
com prudência, já que as citações em questão estão abstraíd
de seu contexto e podemos nos enganar sobre seu sentido e si
alcance.
-A s ciências exatas: matemática (de Euclides a Bourbal
por exemplo), física (os escritos de Galileu, de Newton, <
Einstein), química, astronomia, biologia (Darwin, Rostan
Monod)...
-A s ciências humanas: história (Braudel, Lucien Febvn
sociologia (Durkheim, Dilthey, Weber, Mauss), psicologia (Pi
get), lingüística (Saussure), psicanálise (Freud, Lacan), etnol
gia (Malinowski, Lévi-Strauss), economia (Keynes), etc. Ess
referências podem ser filosóficas de espírito, mas cuidado pa
não tomar a descrição e a análise de um fato social por u
argumento e um raciocínio filosóficos.
- Os textos religiosos: a Bíblia, o Alcorão, as Epístolas i
São Paulo, as Fioretti de são Francisco de Assis, etc.
- Os textos jurídico-políticos: convém ter conheciment
a propósito das utopias (Thomas Morus), das constituiçõ
políticas dos regimes deste mundo, bem como do código civ
é possível referir-se também a discursos ou a textos autoriz
dos (Robespierre, Mirabeau, Lênin, Sorel, etc.).
2. As referências em parte literárias, em parte filosóficas
São aqueles autores inclassificáveis situados na frontei
entre um estilo de existência que se exprime todo numa ob
(artística, na maioria das vezes) e um pensamento que, mesn
não sendo inteiramente da ordem do sistema, apresenta fort
analogias com a filosofia propriamente dita: Diderot, Montaign
Proust, Dostoiévski, Tolstói, Thomas Mann, Herman Hess
Musil, Kafka, Goethe, Camus, por exemplo, mas também ce
tas páginas de Nietzsche ou de Rousseau, todos perfeitamen
A PREPARAÇÃO DE UMA DISSERTAÇÃO 209
mobilizáveis para as necessidades de uma causa; assim, pode-
se legitimamente pensar em fazer sólidas dissertações de filo
sofia sobre “A obra de arte e a existência” a partir das obras de
Proust ou de Musil, sobre “Inocência e culpabilidade” a partir
de Dostoiévski ou Kafka. Nada de exclusivo, portanto, mas
ainda assim um pouco de prudência e circunspecção, porque é
preciso guardar distância e porque a escolha dos autores é
geralmente decisiva.
3. As referênciasfilosóficas
São evidentemente os filósofos patenteados, reconhecidos
e comprovados, quer sejam “sistemáticos” (Spinoza, Hegel,
Aristóteles) ou não (Nietzsche, Kierkegaard, Pascal).
Como trazer à baila todas essas referências?
O recurso aos autores, em princípio, constitui para o estu
dante a estrada régia para mostrar que ele “sabe” filosofia e que
o saber pode ajudar a responder ao problema; contanto, porém,
que respeite o sentido de suas doutrinas, de seus textos, e procu
re explicar e justificar sua presença na argumentação e no racio
cínio produzido a propósito deles.
Nesse caso, cumpre evitar a armadilha da rapsódia dos
autores e resistir à tentação do desfile, do cortejo, do tipo “fula
no disse isto” (três linhas), “sicrano disse isto” (três linhas),
“um terceiro acrescentou ainda isto” (outras três linhas), etc.
Uma dissertação jamais é a acumulação ou a associação de
opiniões, de sentenças, de juízos emitidos por autores, sejam
eles autoridade no assunto ou não.
Assim, do mesmo modo que os exemplos, as referências
filosóficas e outras não operam em série, horizontalmente. É
importante, pois, proscrever esse mosaico confuso e sem nexo
que lemos tão freqüentemente nos trabalhos escolares: uma
dissertação não é um catálogo de teses de autores; toda referên
cia deve ser articulada a uma pergunta, a um problema, e de
sempenhar um papel na argumentação e na demonstração.
Por conseguinte, é aconselhável:
- não multiplicar as referências: mais vale trabalhar em pro
fundidade, em compreensão, do que em extensão ou em acu
mulação, e isso deve aparecer no trabalho de redação;
210 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
- dedicar um ou dois parágrafos bem construídos a um ponto
de doutrina de um autor, tendo o cuidado de destacar o voca
bulário, o ponto de vista, os argumentos, os exemplos, a lógi
ca e a finalidade (os objetos de discussão) com os quais o
autor apreendeu o problema fdosófíco.
Compreende-se que, em matéria de referência, é me
lhor dirigir-se a Deus do que a seus santos. É preciso procu
rar mostrar que você lê filosofia (os autores em seu texto),
que sabe onde estão os textos e as referências clássicas e
que traz isso na memória; procure dar enunciados comple
tos, autônomos, indo até o final do argumento, sem jogar
com a alusão, a adivinhação ou o implícito. Lembremos:
não há implícito em filosofia, o discurso filosófico é explíci
to ou não é filosófico.
Dito isto, é necessário identificar claramente aquilo de
que se tem necessidade no momento da referência, aquilo que
é necessário para a compreensão da argumentação. Evite o
resumo completo e exaustivo da doutrina inteira do autor (inú
til partir do início dos tempos), já que é somente o ponto de
doutrina que nos interessa, e evite o resumo pronto (o famoso
“topos”).
Mas, perguntarão, como saber se se pratica a referência
autêntica ou o “discurso”? Basta fazer-se a seguinte pergunta: o
que digo de um autor poderia ser integralmente reproduzido
para qualquer outro tema sobre o mesmo assunto (o homem em
geral, a morte, o corpo, etc.)? Em caso afirmativo, trata-se de
um “topos”.
Deve-se evitar também convocar em segunda mão histo
riadores da filosofia, exceto quando esse historiador é ele pró
prio filósofo (Hegel, por exemplo), ou no caso particular de
um tema sobre a história da filosofia, ou sobre a questão do
“progresso” em filosofia, que sugere a exposição das posições
de historiadores da filosofia como Bréhier ou Gueroult.
Esse distanciamento da história da filosofia para tratar de
um problema filosófico nos conduz igualmente a alertar o estu
dante para um problema delicado: é freqüente a tendência (ca
minho mais fácil) de seguir um plano historicista, isto é, de
A PREPARAÇÃO DE UMA DISSERTAÇÃO 211
organizar as referências na ordem de aparecimento das doutri
nas no cenário da história do pensamento. Começa-se com
Platão, passa-se a seguir a Aristóteles, etc.
Isso é possível para certos temas de história da filosofia,
de história das ciências (a propósito da constituição do objeto
da ciência pela própria ciência, da passagem do espírito pré-cien-
tífico ao espírito científico ou das mutações do espírito científi
co), de história das técnicas ou de história da arte (“Como a
arte passou da imitação à abstração?”), temas que exigem que
se leve em conta a cronologia das rupturas e das continuidades.
Mas, se forem utilizadas de forma sistemática, essas for
mas de colocar o problema acabam seja em Hegel, seja em
Heidegger, seja na “filosofia” do último a entrar na moda (con
sultar as revistas). Ora, é ingênuo pensar que o último a chegar
é que tem a última palavra ou a “chave do enigma” da história.
Por que não o primeiro? Mas, nesse caso, qual? Como se o
tempo e a história tivessem algo a ver com isso... Tal precon
ceito provém de uma crença ingênua que não tem razão de ser
numa dissertação, a crença num “progresso” linear e cumulati
vo do pensamento.
Ao contrário, o autor da dissertação adotará o princípio de
uma igualdade de direito de todos os autores filosóficos, no
que concerne a seu valor, isto é, à sua competência para res
ponder às interrogações suscitadas pelo problema filosófico. O
exercício da dissertação defende portanto a idéia de uma de
mocracia das idéias, a igualdade de direito das idéias, com a
condição de que tais idéias sejam realmente idéias e que sejam
realmente filosóficas. Na história da filosofia nada é indigno.
Heráclito, conta Aristóteles, certo dia recebeu uns visitantes
com estas palavras: “Entrem, há deuses também na cozinha.”
Na cozinha filosófica da Antiguidade também há deuses, e es
ses deuses ainda cozinham muito bem. Cumpre portanto prefe
rir o ponto de vista sincrônico e atemporal ao ponto de vista
historicista e cronológico, exceto, como vimos, no caso dos
trabalhos de história da filosofia, alguns temas de epistemolo-
gia, de história das ciências ou das artes, que impõem explici
tamente este último modo de ver.
212 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
Resumindo
M odo de uso
Este capítulo tem por objeto o exame das operações que per
mitem realizar a dissertação:
- a organização geral do exercício: o plano;
- a composição e a redação dos momentos cruciais do exercí
cio: introdução, partes do desenvolvimento, conclusão;
- a articulação desses momentos entre si: as transições.
I. O plano
Terminado o trabalho de preparação, é preciso começar a
compor. E topamos de imediato com uma dificuldade maior
em forma de círculo: como realizar um trabalho se não dispo
mos, antes, de uma certa idéia do que devemos fazer, ao passo
que devemos ter acabado o trabalho preparatório para ser
capaz de compor o plano? Eis por que temos de pensar na con
214 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
tinuidade que liga o trabalho preparatório ao plano, caso con
trário, o plano cai do céu, é imposto de fora (e de cima) e, portan
to, não serve.
A composição que é a dissertação exige, com efeito, uma
certa concepção da ordem, uma invenção contínua e sempre a
retomar, pois essa ordem irá variar segundo os temas - a forma
e o conteúdo determinando-se de maneira mútua e recíproca. É
essa a dificuldade do plano.
Ficou claro que uma dissertação deve obedecer a um plano,
por ser uma composição cuja forma exprime o movimento
necessário do pensamento. Só o plano assegura às idéias uma es
truturação (ordem) e uma animação (movimento).
a - A estruturação do plano
Para construir um plano, é preciso dar-lhe uma estrutura
global, que podemos comparar ao esqueleto de um organismo
vivo. Este compreende necessariamente uma armação (a colu
na vertebral), uma disposição funcional e orientada dos mem
bros e dos órgãos, tudo isso mantido estreitamente unido por
articulações.
Na prática, se seguirmos essa metáfora anatômica, fazer
um plano consiste primeiramente em definir as partes princi
pais, seus elementos (parágrafos) e suas articulações. Assim
conseguiremos dar uma forma ordenada ao conjunto das análi
ses, demonstrações e raciocínios exigidos pelo tratamento do
tema. Em particular, trata-se de classificar os elementos já obti
dos por ordem lógica, perguntando-nos, a cada vez, o que con
diciona o quê. O que é exigido em toda lógica deve vir em pri
meiro lugar, o que disso decorre deve vir depois.
Compreende-se, por conseguinte, que não poderia haver
plano padrão. Com efeito, o plano não é uma forma vazia, uma
casca que aguardaria um recheio. Sobre esse ponto, deve-se
saber que o plano segundo a forma “tese-antítese-síntese” não
pode convir de saída à maior parte dos temas; ainda que essa
fórmula possa parecer uma solução provisória, mais vale co
meçar toda vez o trabalho do zero e encontrar planos mais con
formes à natureza dos problemas filosóficos.
A REALIZAÇÃO DA DISSERTAÇÃO 215
O plano de uma dissertação não é outra coisa senão a
forma de tal conteúdo, e não a forma de um conteúdo qualquer.
Há um plano por conteúdo, um plano para tal dissertação. A
ordem ou o plano irão variar, portanto, segundo os temas.
O princípio geral da ordem do plano é, então, o seguinte:
uma idéia por parágrafo, um parágrafo por idéia. Considera
mos, com efeito, que uma idéia filosófica digna desse nome
bem merece um parágrafo inteiro e que a confusão no interior
de um mesmo parágrafo de duas idéias concorrentes (já que
elas disputam o lugar vazio da forma-parágrafo) constitui um
luxo inútil. Além disso, a regra “um parágrafo por idéia” ga
rante a homogeneidade do parágrafo: não há dispersão.
O plano de uma dissertação não é, portanto, outra coisa
senão a organização progressiva e racional dos parágrafos. Isso
implica uma aprendizagem, a que se refere à composição dos
parágrafos: é preciso aprender a redigir os parágrafos e por
parágrafos. Um parágrafo é um conjunto ao longo do qual não
se muda de linha (abrindo uma alínea) porque não há necessi
dade disso. Se abrirmos novo parágrafo a cada três linhas, cor
remos o risco de perder o fio da argumentação; pior, se pular
mos uma linha acreditando realizar uma articulação lógica
bem visível é um sinal de que o trabalho não tem nexo e é
pouco dominado. O discurso filosófico é uma trama, portanto é
preciso aprender a tecê-lo. Qual é o calibre de um parágrafo?
Aproximadamente entre vinte e trinta linhas (se contarmos
entre dez e treze palavras por linha, em média).
A repartição do plano e do desenvolvimento em parágra
fos distintos condiciona assim o andamento geral da disserta
ção, sua fisionomia, de certo modo. Convém saber que a pri
meira vista de olhos no trabalho determina o humor do leitor,
ainda que a leitura, por ocasião da correção, não se reduza a um
problema de humor: limpa ou suja, desordenada ou clara, ca
penga ou equilibrada, eis alguns dos primeiros critérios da cor
reção. Por conseguinte, cuide da qualidade da caligrafia (escre
ver legivelmente), do asseio das rasuras (preferir o traço que
suprime ao “branco” invasor e pastoso), da regularidade da
paginação (respeitar a margem). O texto deve ser evidente (no
sentido próprio) e agradável aos olhos e à leitura.
216 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
Concretamente, só se sai da dificuldade dissociando-se o
trabalho preparatório da confecção do plano detalhado. Na pri
meira etapa, procede-se por aproximações, sem muita preocu
pação com a ordem, sem buscar formular de imediato uma pro
blemática impecável. Tudo isso virá progressivamente, me
diante idas e vindas, com retomadas e correções contínuas. Ao
cabo de um certo tempo (entre meia hora e uma hora, porque
não se deve hesitar em “perder” tempo para ganhá-lo em segui
da), é possível esboçar o plano.
Podemos propor aqui alguns “truques”:
- Disponha diante de si tantas folhas em branco quantas
forem as partes previstas e estabeleça de antemão divisões para
as subpartes ou parágrafos.
- Voltando aos materiais reunidos, busque títulos e subtítu
los, que certamente não serão conservados na redação, já que se
deve evitar toda titulação; mas eles são úteis como “chamadas”.
Afinal de contas, os operários da construção montam andaimes,
escoras, mas não os deixam ao freguês.
- Esse gabarito permite uma redação bem calibrada, com
partes e parágrafos de extensão, teor e intensidade sensivel
mente equivalentes. Claro que, no começo, mal se consegue
preenchê-lo, ou só aos poucos ele será preenchido. Mas é pre
ciso perseverar, esse momento é muito importante: as ausên
cias fazem sentir as lacunas da reflexão, a falta de continuidade
e de ligação entre os elementos redigidos e formulados. E o
gabarito é um bom meio para o estudante obrigar-se a equili
brar seu discurso, a pesquisar o que falta.
- Cumpre então voltar ao esboço, interrogar-se sobre as
lacunas, e é só com essa condição que aparecem conceitos,
idéias, argumentos e questões ainda não percebidos. Não hesite
em corrigir-se, riscar o que acaba de propor. Nesse momento do
plano, nada é irremediável ou irreversível. Ajuste as diferentes
partes do desenvolvimento, com a preocupação constante de
sua ordem, de suas articulações, até obter o movimento racional
buscado. Como se trata de criar o espaço necessário para pensar
cada idéia, os parágrafos serão organizados de modo a evitar
colisões e confusões.
- Ao fim desse trabalho, o plano deve tomar visível
esqueleto da dissertação em seu conjunto, até os menores ele
mentos de sua estrutura.
A REALIZAÇÃO DA DISSERTAÇÃO 217
Resumindo
b - A animação do plano
No momento da redação, procure dar ao plano um movi
mento progressivo que ponha em evidência a importância e o
interesse da investigação. Poderíamos aqui comparar a elabo
ração de uma dissertação à encenação literária de um drama.
Com efeito, a atividade filosófica supõe a manifestação de um
conflito entre as idéias, conflito que se busca explicitar e resol
ver. Por isso o plano de uma dissertação deve, à maneira de
uma tragédia, passar por momentos críticos, para levar uma
ação (a do pensamento) a seu termo. A dissertação deve, por
tanto, formar um todo, dispondo de uma certa extensão, com
um começo, um meio e um fim.
Ficando entendido que indicações destinam-se, antes de
tudo, a harmonizar tanto quanto possível forma e conteúdo,
podemos distinguir as seguintes etapas:
- colocação em situação de um tema e de um problema
que motivam uma história. “Personagens” (noções, conceitos,
idéias, doutrinas) são apresentados e descritos. Algo vai aconte
cer com eles, num espaço dado (o da dissertação);
- elaboração de um conflito, do qual se expõe a origem
(suas “razões” ou a razão de ser) e as condições de inteligibili
dade',
- temporização da narrativa, pois há um enigma a resol
ver e não se deve matar o “suspense” dizendo tudo de saída.
Primeiro é preciso enunciar os dados do problema, a seguir
desenvolvê-los durante um certo tempo (um tempo organizado
e ritmado por acontecimentos, peripécias, “lances teatrais”,
episódios). Isso supõe uma certa arte da narração (redação,
composição, retórica);
218 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
- desfecho da crise, pelo exame de proposições de respos
ta ou de solução - sem excluir a aporia eventual antes de
tirar a lição do conflito.
Tudo isso não tem outro objetivo senão fazer viver as
idéias e proporcionar ao autor, bem como ao leitor do exercí
cio, um certo prazer.
Resumindo
II. A introdução
a - A s exigências
Introduzir um desconhecido num lugar e fazer sua apre
sentação a pessoas que ele não conhece e que não o conhecem,
eis o que faz perceber claramente a necessidade e a função da
introdução: a passagem do exterior ao interior, do desconheci
do ao conhecido.
Como o indica a etimologia da palavra (“conduzir den
tro”), a introdução destina-se a fazer entrar o enunciado do
tema na dissertação, mas também a fazer penetrar o espírito do
leitor no universo do problema filosófico.
Em seu princípio, a introdução tem uma importância es
tratégica, primeiro porque ela começa o trabalho e mostra suas
direções principais, depois porque determina o humor do lei-
tor-corretor. Convém saber, com efeito, que todo corretor está
atento à boa qualidade dessa condição inicial, e que uma boa
introdução pode poupar muitos dissabores, pois indica o nível
de compreensão do problema.
Ora, a dificuldade da introdução provém de seu lugar. É
que ela já é filosofia, ao passo que nada ainda está verdadeira
mente começado. Entretanto, é preciso que o discurso filosófi
co comece em algum lugar, e esse lugar é a introdução. O estu
A REAUZAÇÂO DA DISSERTAÇÃO 219
dante freqüentemente é desconcertado por essa dificuldade,
que o reduz às vezes à impotência - de fato, seria mais fácil
para ele começar diretamente pelo início da primeira parte.
Paradoxalmente, aconselhamos não redigir definitivamente
a introdução antes de estabelecer bem o desenvolvimento, e
isso por duas razões:
- a primeira é metodológica: na introdução, anunciam-se as
linhas mestras do problema e da interrogação filosóficos
induzidos pelo tema; mas, como já saber se responderemos a
todas as perguntas formuladas? Como saber se não nos enga
namos de pergunta, o que nos arriscamos a constatar durante
o caminho?
- a segunda é filosófica: a introdução já é filosófica, ela consti
tui o salto para o interior do mundo do pensamento filosófi
co; portanto não é algo pré-filosófico que aos poucos condu
ziria ao filosófico. Se ela conduz a algum lugar, é ao proble
ma propriamente dito, e esse problema é filosófico.
Compor a introdução após a redação do exercício permi
te, assim, estabelecer uma melhor unidade entre o que é anun
ciado na introdução e o conjunto das interrogações e proble
mas tratados a seguir; isso garante (em princípio) um alto
nível de redação para essa introdução: ela deve ser atraente,
intelectualmente excitante (é preciso abrir o apetite do leitor),
brilhante e determinada, decisiva na exposição da “razão” do
tema. Como diz Pascal: “A última coisa que se descobre ao
fazer um trabalho é saber qual o que se deve colocar primeiro”
(Pensamentos, Lafuma 976, Brunschvicg 19).
Dito isso, a escolha do momento é uma questão de gosto e
de hábito; alguns se traqüilizam, procedem por esboços, se
organizam com um primeiro bosquejo que melhoram e corri
gem a seguir. Mas é preciso estar atento nesse trabalho de reti
ficação e vigiar o tempo que passa...
b - A fase de redação
No que concerne a essa redação tão delicada, há duas
escolas:
220 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
- a primeira pensa que a redação da introdução deve compor
tar apenas um parágrafo: deve-se evitar portanto a abertura
de novo parágrafo, a introdução deve poder ser lida de uma
assentada. Trata-se de respeitar a unidade da forma e do
fundo;
- a segunda privilegia a dimensão metodológica e procura evi
tar, por um programa estrito, os desvios e as derivas geral
mente constatados, aconselhando a redação de um parágrafo
para cada momento.
De qualquer modo, com parágrafos ou não, isso supõe um
esforço para ligar esses momentos.
Seja como for, uma introdução compreende três mo
mentos:
- A introdução do tema propriamente dita, que implica que
se designe o campo preciso de interrogação no qual o tema se
inscreve. Pode-se valorizar esse momento, seja pela apresenta
ção cuidadosa de uma situação, seja por um bom exemplo, e até
mesmo por uma observação paradoxal e incisiva.
Evite o recurso sistemático às citações, procedimento apa
rentemente cômodo, mas delicado de pôr em prática, sobretu
do num dia de exame ou de concurso. Melhor fazer o esforço
sozinho. O passo seguinte será lembrar o enuciado do tema
(recopiando-o cuidadosamente, tal como foi formulado, sem
modificação, quando se trata de uma pergunta ou de uma curta
citação a explicar ou a comentar). O essencial é permanecer
fiel ao título. Se a traição começa já na introdução, não se pára
mais de escorregar...
-A colocação em crise do tema: entendemos por “coloca
ção em crise” a problematização do tema, sob uma forma dra
matizada. Trata-se, então, de mostrar a tensão que o habita, sua
dimensão interrogativa, e mesmo seu paradoxo interno ou sua
contradição aparente. Cumpre mostrar que ele não é claro, que
não é nada evidente e que exige uma explicação. Portanto, que
ele coloca um problema, que comporta objetos de discussão,
que envolve conseqüências, para o pensamento, a conduta, a
existência, a humanidade, etc. Formule então rapidamente, mas
de maneira explícita, o problema filosófico central do tema.
A REALIZAÇÃO DA DISSERTAÇÃO 221
- A formulação da interrogação: ela “acaba” (nos senti
dos de “terminar” e de “rematar”) a colocação em crise através
do enunciado das questões principais que é necessário estabe
lecer para apresentar as condições, os dados e os objetos de
discussão (a destinação) do problema filosófico. As questões
existem para decompor o problema.
Duas ou três perguntas bastam, o que veda o anúncio de
um programa desproporcional. Cumpre ter em mente que res
postas claras e decisivas, mesmo se remetem a uma situação de
aporia, deverão ser dadas a essas perguntas, em particular na
conclusão. A interrogação não deve, pois, ser puramente for
mal ou gratuita, simples cenário ou concessão. Ela deve ser
operatória, isto é, constituir a ordem de uma tarefa realizável
nos limites da dissertação, correspondendo à exigência filosó
fica do tema proposto. Sobre esse ponto, convém evitar apre
sentar as perguntas como resumos das partes por vir. Deve-se
no entanto conservar o estilo da investigação lógica dos mo
mentos sucessivos.
III. O desenvolvimento
Para comodidade, sobretudo se não se adquiriu ainda uma
técnica própria, pode-se considerar que o desenvolvimento
compreende três partes, cada uma das quais seria constituída
de três parágrafos ou subpartes. Certamente o corretor nem
sempre se preocupará com essa divisão exata; e certamente há
uma boa variedade de planos possíveis.
Já que estamos nos princípios, indiquemos nossa prefe
rência por uma sistemática mnemotécnica, e é desta que trata
remos (mas esse não é um método infalível, é apenas uma
chave que aconselhamos aqui). Se você quiser se dar alguma
liberdade nessa organização, é preferível concedê-la somente
no caso dos parágrafos.
Mais uma vez, a dissertação é uma questão de espaço fina
lizado, de espaço para o pensamento, a ser organizado e ligado
A REALIZAÇÃO DA DISSERTAÇÃO 223
por um vínculo necessário. Assim, é vantajoso mostrar como
se pode obter esse espaço e as ligações entre seus diferentes
lugares, suas diferentes partes.
Para planejar bem o trabalho antes da redação:
- pode-se numerar cada parte (1, 2, 3) e cada parágrafo (a, b,
c). Nesse caso, temos nove parágrafos (la, 1b, lc, 2a, 2b, 2c,
3a, 3b, 3c). Certamente é possível criar, reservar-se certa
margem de manobra, mas conservando um rigor em relação
à primeira parte, tão essencial, e prestando atenção no equilí
brio geral do exercício; podemos assim ter, por exemplo: 3 +
3 + 2 ou 3 + 2 + 2...
- pode-se dar provisoriamente títulos às partes e aos parágra
fos. Mas é óbvio que nem os números, nem os títulos das
partes e dos parágrafos irão aparecer na redação final: reti
ram-se os andaimes, e a estrutura do exercício deve ser vista
sem cartazes nem sinais.
Essa repartição em múltiplas subdivisões parece certa
mente draconiana. De certo ponto de vista, é mesmo. Mas,
enfim, a dissertação não é um exercício libertário: nela se
aprende a coerção, e com ela a liberdade na e através da coer-
ção. Nietzsche chama isso de “dançar com grilhões nos pés”.
Resumindo
Resumindo
IV. A conclusão
A conclusão é geralmente o primo pobre da dissertação, o
que é uma grave injustiça. Mas é um lugar-comum que os estu
dantes em geral não sabem concluir melhor do que introduzir.
A situação é inclusive mais dramática em relação à conclusão,
pois afinal se trata de fechar, encerrar, acabar (nos dois senti
A REALIZAÇÃO DA DISSERTAÇÃO 227
dos do termo: findar e rematar) um raciocínio e uma compo
sição.
De que se trata? Flaubert disse: “A estupidez consiste em
querer concluir”. Mas há concluir e concluir, e há que evitar
ser estúpido querendo concluir definitivamente o problema ou
a questão. Está aí a “estupidez”, mais no definitivo do que no
concluir. Portanto, trata-se apenas - e já é muito - de encerrar
um raciocínio, uma argumentação, e não um problema filosó
fico.
O primeiro objeto de uma conclusão é dar, se formos
capazes de fazê-lo, respostas às perguntas que foram formula
das antes, em particular às da introdução, em suma, às que defi
nem a problemática. Nesse caso, é preciso responder explicita
mente e evitar os subterfúgios, evitar “enrolar o leitor”. Mas se
a dissertação é dialética (à maneira de Sócrates: se varre todo
um campo de problemas) ou aporética - gêneros que têm seus
títulos de nobreza -, contente-se em fazer um balanço do em
preendimento. Lembremos que a dissertação impõe mais uma
obrigação de meios do que uma obrigação de resultados.
No que concerne à redação-composição da conclusão,
podemos distinguir, como no caso da introdução, três momen
tos, que serão redigidos num só ou em três parágrafos:
- Em primeiro lugar, far-se-á uma recapitulação, um
balanço (e não um resumo) do itinerário percorrido, uma recor
dação dos “saberes” obtidos pela investigação: o que foi
aprendido desde o início da instrução quanto ao problema filo
sófico?
- A seguir, dar-se-á uma resposta explícita às questões
formuladas na introdução (em particular se o tema não formu
lar pergunta, como no tema-noção) ou à pergunta feita pelo
próprio tema. Repetimos: não há implícito em filosofia, e a dis
sertação não é um jogo de adivinhas ou de alusões: o autor
deve pôr as “cartas na mesa”, dizer as coisas de maneira deter
minada e precisa, e não omiti-las ou submergi-las num discur
so hesitante.
- Enfim, poder-se-á tentar uma espécie de “abertura final”
que pode avaliar o(s) problema(s) colocado(s), retomar a ques
tão de sua(s) destina(ções) (moral, religiosa, metafísica, por
exemplo), ou mesmo interrogar-se sobre a formulação do
228 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
tema. Tudo é permitido, contanto que se dê prova de espírito e
de lucidez, mas convém evitar, se possível, findar com uma
citação, pela mesma razão que não era desejável começar a
introdução assim (tanto mais que na conclusão essa citação
corre o sério risco de ficar sem função e sem explicação, por
um motivo óbvio: você chegou ao fim do exercício). Deve ser
proscrito o execrável “mas isto é outro problema”; trata-se de
uma escapatória: por que falar disso se é outro problema? Por
tanto evitar-se-á a introdução de novos argumentos, de novas
referências, de novas idéias, bastando a avaliação de todos
aqueles que foram apresentados e examinados ao longo do tra
balho. Convém precaver-se também contra o famoso ritual de
ampliação, tão freqüentemente recomendado; ele conduz o
neófito a recorrer às perguntas mais vagas (do tipo: “mas en
fim, o que é o homem?”) ou a um abuso de fórmulas em “is-
mos” (do tipo: “não é o cúmulo o existencialismo servir-se do
criticismo para refutar o idealismo?”).
A conclusão deve ter uma apresentação correta e um con
teúdo certo, tal como se requer da introdução. Pode-se legiti
mamente pensar que é desejável fabricar a introdução e a con
clusão ao mesmo tempo, no final do trabalho, antes da releitu-
ra, já que elas devem corresponder-se, no sentido forte da pala
vra: responderem-se uma à outra.
Resumindo
Resumindo
b - Segunda parte
Dediquemos nossa segunda parte à exposição do platonis-
mo e à sua crítica; lembremos que se pode proceder de outro
modo, já que de maneira nenhuma é preciso conhecer a filoso
fia de um autor preciso para tratar um tema de dissertação
(exceto numa dissertação de história da filosofia).
Centraremos aqui a análise na A República, VII, 526 c-
531 c. Esse pequeno tratado de formação do filósofo apela ao
poder educador das práticas regidas pela matemática - a ginás
tica, a música - e das próprias ciências matemáticas: a aritméti
ca (ciência dos números), a geometria plana, a astronomia (que
para os gregos pertence à geometria, e não ainda à física), a
geometria dos sólidos ou estereòmetria, e finalmente a harmô
nica, como ciência da medida dos elementos físicos considera
dos como sons.
244 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
Insistiremos sobre a gradação na iniciação: trata-se de ele
var-se do mais simples ao mais complexo. Assim, a aritmética
propõe o saber dos números; a geometria plana, o do ponto, da
linha, do plano e das figuras nesse plano; a astronomia, o das
relações regulares entre figuras que se destacam no céu; a geo
metria dos sólidos, o das formas geométricas que adquiriram
uma profundidade, portanto um verdadeiro corpo físico (pas
sagem do círculo à esfera, do triângulo à pirâmide); a harmôni
ca, o da exatidão das relações entre as formas (que depende de
um ouvido intelectual, pois o espírito não se contenta apenas
em ver, também ouve).
A geometria da Academia é, portanto, a geometria pura:
para entrar nela, é preciso um certo fervor pelo conhecimento
(cf. o final do O banquete e o Fedro) e o desejo de fazer parte
de uma comunidade de espíritos estudiosos e contemplativos
(cf. Kant, Crítica da faculdade de julgar, § 62).
A formação pela geometria quer iniciar o espírito na ope
ração da abstração (arrancar-se do mundo sensível, tal é a con
dição do conhecimento contemplativo) e educá-lo pela sub
missão a princípios formais que permitam pensar as relações:
os valores de igualdade, de conformidade, de proporção (ver
A República, VI, 510 c - 511 e), portanto os princípios da medi
da, da harmonia, da exatidão e da justiça na avaliação das rela
ções. Assim, as matemáticas, em Platão, não são apenas ciên
cias da quantidade: são também ciências da qualidade, e há aí
uma determinação filosófica das matemáticas.
Em suma, temos aqui um verdadeiro primeiro tratado do
método, pois se trata da exposição das regras do pensar: o pen
sar é necessariamente o bem pensar (pensar errado é justamen
te não pensar). Pode-se portanto traduzir a fórmula do tema nos
seguintes termos: “Não tem o direito de entrar aqui quem não
for apto a pensar”.
Entretanto, podemos nos referir a outros textos para mos
trar o poder pro-pedêutico (pro-paidéia, preparação à educa
ção) da geometria em Platão:
- O Mênon (82 a-86 c) nos ensina que podemos raciocinar
corretamente sobre figuras falsas (Sócrates desenha figuras na
areia para demonstrar a duplicação do quadrado, e o pequeno
escravo o compreende perfeitamente); o espírito visa o abstrato
UMA CITAÇÃO FAM1UAR 245
(a idéia, o conceito, a figura ideal) através da figura sensível,
que não é, então, mais que um analogon.
- O Górgias e o Protágoras mostram, com o diálogo entre
Sócrates e os sofistas ou seus discípulos, que, para dialogar, é
preciso aprender e respeitar regras; essas regras devem ser
tomadas das demonstrações geométricas, sendo a geometria a
ciência dos encadeamentos rigorosos. Assim, uma vez defini
do o sentido de um termo, não se tem o direito de mudar o sen
tido desse termo sem prevenir o interlocutor (cf. A República I,
345 b). O trapaceiro também não pode entrar na Academia.
Tudo isso define o exercício da geometria como uma
ascese (o duro caminho a percorrer conduz à elevação, à idea-
ção, à idealização, à sublimação, à desmaterialização e à des-
temporalização do pensamento): a ascese geométrica prepara a
ascese filosófica e dialética por vir. Assim, a geometria é, para
o filósofo, ao mesmo tempo provisória e perpétua: é preciso
tomar-se geômetra, tê-lo sido e continuar sendo. O conheci
mento geométrico não é senão um momento necessário, uma
formação a que o espírito deve se submeter antes de se elevar à
ciência superior.
Convém agora problematizar de novo, para melhor sub
meter Platão à crítica. Podemos centrar a discussão na questão
da natureza da relação entre geometria e filosofia. Em Platão,
essa relação é pedagógica, iniciática, o que implica entre as
duas formas de conhecimento, por um lado, uma relação de
temporalidade, uma anterioridade e uma sucessão, e, por outro
lado, uma hierarquia lógica e epistemológica. A geometria,
ciência necessária mas subalterna, precede a filosofia na ordem
dos começos, mas a filosofia é ciência primeira, no plano do
poder de verdade, já que se refere ao Princípio (o Bem). Como
pensar as relações entre geometria e filosofia fora dessa rela
ção pedagógica? É preciso a todo custo ser geômetra para se
tomar filósofo?
c - Terceira parte
a) Pode-se responder à primeira questão (a da redefinição
da relação) com Spinoza: a relação filosofia-geometria não é
246 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
mais pedagógica, mas sintética, não é mais da ordem da tem-
poralidade, é da ordem da estrutura. Certamente Spinoza con
sidera que não há melhor escola que a geometria para pensar,
para aprender a demonstrar, para conhecer; em suma, para pen
sar e para aprender a pensar (cf. Tratado da reforma do enten
dimento).
Há mais, porém: o prefácio da Ética, III, diz que é preciso
pensar as afeições da alma e suas forças como - isto é, segundo
o mesmo método - a geometria pensa suas figuras. A geome
tria é uma escola de objetividade, de neutralidade axiológica
(suspensão do julgamento moral) e convida a pensar que tudo é
inteligível, mesmo as paixões humanas: estas são necessárias
(elas não podem não ser, em virtude de certas leis que definem
as relações de encontro entre os seres) e, portanto, suscetíveis
de serem conhecidas (já que a razão conhece apenas o necessá
rio e que elas têm, como o triângulo, uma essência, que é igual
mente da ordem da necessidade).
Aliás, a neutralidade axiológica em face das afeições, em
Spinoza, contrasta estranhamente com a ausência total de sus
pensão do julgamento moral, tanto em Platão (a ascese geomé-
trico-filosófica tem como fundo o abandono, o desprezo pelo
corpo e as paixões, cf. Fédon) quanto em Descartes (onde o
julgamento, ainda que menos nítido e mais implícito, continua
a desempenhar seu papel “caluniador”, como insiste Spinoza
no prefácio da Ética, V).
Sobretudo, Spinoza leva o “geometrismo” a seu auge, num
racionalismo integral, completo, absoluto. A filosofia (que Spi
noza denomina “Ética”) e a geometria começam ao mesmo
tempo. Não é mais: “geometrizar para (bem) conhecer”, é:
“filosofar como se geometriza”, e é então, necessariamente,
filosofar bem, uma vez que só é possível geometrizar bem (ca
so contrário, não se geometriza).
Com isso, em Spinoza não se entra no conhecimento filo
sófico aos poucos, pela aprendizagem contínua da abstração e
das regras. Esse conhecimento é um ato, não um processo: ou
estamos nele, ou não estamos. A doutrina da descontinuidade
radical entre os diferentes gêneros de conhecimento (em parti
cular entre o segundo gênero - pela demonstração, more geo-
metrico, cujo modelo geométrico governa o modo de escrita da
UMA CITAÇÃO FAMIUAR 247
Ética, em definições, proposições, demonstrações, axiomas,
escólios - e o terceiro gênero - o conhecimento intuitivo, que
não tem mais necessidade de ser demonstrado, evidente pela
força mesma da afirmação de suas idéias) é radicalmente ini
miga da iniciação, é inclusive a mais antipedagógica de todas.
Assim, não há tomar-se-filósofo, não há temporalidade
entre geometria e filosofia, em Spinoza, mas uma contempora-
neidade, uma simultaneidade de estrutura entre geometria e
filosofia no segundo gênero e um abandono do geométrico no
terceiro (como atesta o estilo da escrita dos escólios e dos pre
fácios na Ética).
b) Pode-se enfim responder à segunda pergunta (“é preci
so ser necessariamente geômetra para tomar-se filósofo?”)
com:
- Kant, para quem há uma diferença de natureza (e não de
grau) entre a filosofia (ao mesmo tempo como “crítica” e como
“conhecimento por conceitos”) e a matemática (“conhecimen
to por construção de conceitos”). Assim não pode haver rela
ção de gradação entre as duas formas de pensamento ou de
conhecimento.
- Bergson, que expõe, notadamente em Os dados imedia
tos da consciência, suas críticas às concepções abstratas (redu-
toras, coisistas, mecanicistas) que a ciência tem do tempo e do
espaço. Para tomar-se filósofo e ser sensível à qualidade, ao
lugar, à duração concreta, é preciso ir além do discurso da ciên
cia. Não há ligação possível entre o conceito matemático e
geométrico e a intuição filosófica.
- Kierkegaard e os filósofos da existência, já que a verda
deira meditação filosófica da vida humana se estabelece
aquém do conhecimento científico. O pensamento da existên
cia é, ao mesmo tempo, começo necessário e última potência
de verdade; a reflexão sobre os ensinamentos formais da ciên
cia é considerada secundária, contingente, em face das urgên
cias da existência humana.
- Hegel, enfim: a ciência matemática, portanto a geome
tria, não é um caso de razão (superior ao entendimento por seu
poder de especulação), mas somente de entendimento (de tra
balho do conceito em seu momento simplesmente abstrato);
donde a crítica hegeliana das filosofias do entendimento (cujo
248 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
modelo é a filosofia de Kant). Essas filosofias se apóiam na
análise, na separação, elas não podem alcançar esse verdadeiro
pensamento filosófico que é o pensamento da unidade da Idéia.
Hegel chega inclusive a preferir, por vezes, um pensador con
fuso como Jacobi, que se esforça laboriosamente em lograr a
apreensão intelectual da Totalidade...
Pode-se no entanto matizar, em razão das variações de
ponto de vista do texto hegeliano quando fala do kantismo.
Com efeito, para Hegel, o problema pode ser pensado de dois
pontos de vista diferentes e complementares. De um ponto de
vista analítico (ponto de vista da consciência, de seu devir, de
sua vivência, de sua experiência), tem-se razão de pensar que
“não pode entrar na filosofia quem não for geômetra”, sendo a
geometria ciência rigorosa. O ponto de vista de Platão e de
Descartes, não se considerando os demais problemas, seria o
ponto de vista analítico, o da educação e da formação de uma
consciência, de um espírito ou de um entendimento.
Mas então, como a geometria, para Hegel, não é mais
ciência que as outras ciências (a física, a química, a astrono
mia, a biologia, etc.), pode-se pluralizar a fórmula do tema à
vontade: “não entre aqui quem não for geômetra, físico, quími
co, astrônomo, biólogo, etc.”. Assim, todas as ciências se eqüi
valem, do ponto preciso de sua capacidade educadora e peda
gógica. Por conseguinte, seguindo esse ponto de vista hegelia
no, pode-se substituir “geômetra” por:
- “sociólogo”, se você conhecer bem a filosofia positivista de
Augusto Comte;
- “biólogo”, se se referir a Aristóteles (e se o termo “biologia”
for capaz de nomear corretamente a disciplina que era a his
tória natural);
- “filólogo” ou “médico da cultura”, se se referir a Nietzsche
(pensamos no elogio da virtude de probidade na leitura, na
decifração e na interpretação dos textos).
Em contrapartida, de um ponto de vista sintético, isto é,
do ponto de vista da estrutura da verdade do saber (e Hegel faz
seu, então, o ponto de vista de Spinoza), a fórmula do tema é
UMA CITAÇÃO FAMILIAR 249
inválida. Também aí o acesso à filosofia não é propedêutico:
ou estamos no círculo do saber filosófico (na Enciclopédia das
ciências filosóficas), ou não estamos. Não há nada antes da
filosofia que possa nos levar das representações ao conceito,
da opinião à filosofia. É preciso dar o salto.
Capítulo II
Uma definição de noção
II. Composição
a - Introdução
No final do filme de Visconti O crepúsculo dos deuses, os
servidores saem a buscar o corpo de seu “senhor e amo” Luís II
da Baviera, em plena noite, nos pântanos. E ouve-se esta frase
singular, ambígua: “Para buscar seu amo, é preciso estar bêba
do”. A bem dizer, não é preciso alguma inconsciência para bus
car seu mestre/amo e buscar um mestre/amo para si?
Mas este é primeiramente um fato: os humanos amam os
mestres, os jovens os procuram, os fiéis de uma religião ou os de
uma seita necessitam ferozmente deles, e toda mestria/domina-
ção, por si mesma, concede crédito e confiança. O que é, pois,
um mestre, para ser objeto de tanta demanda, de tanto desejo,
para ser valorl O problema, porém, é que há mestre e mestre, é
que a palavra “mestre” se diz em vários sentidos.
Se “mestre” é polissêmico, de qual mestre temos realmente
necessidade? O que é um “verdadeiro” mestre? Podemos pensar
o mestre por excelência? O problema da verdade pode nos aju
dar a diferenciar entre os mestres “de fato”, reais, às vezes até
254 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
demasiado reais, e os mestres “de direito”, aqueles que devería
mos ter (em virtude de quais exigências, então?) por mestres. O
que são - ou melhor: quem são - os mestres fatuais, qual sua
função e seu modo de ação? O que nos trariam os mestres
ideais?
Observação - Essa introdução é construída segundo os
três momentos previstos: apresentação (enunciado do tema),
problematização (colocação em crise) e interrogação (pergun
tas). Mas dispusemos uma opção, para o seu início. Os que se
sentirem com asas para tanto poderão estilizar: aqui, todo o pri
meiro parágrafo. Os que preferem a terra firme podem sem pro
blema começar a partir do segundo parágrafo, após o “Mas”.
Como for mais cômodo.
b - Primeira parte
Que faz um mestre? Com toda a evidência, ele domina,
exerce uma mestria. Mas quem é esse “ele”? E que significa
“dominar”, “exercer uma mestria”, maitriserl O estudante
obtém um mestrado após sua licenciatura, o contramestre é
“agente de maitrise”*-, que pode haver de comum entre eles?
Supõe-se que ambos controlem um domínio particular da des
treza, da experiência e do saber de sua “disciplina”, aquela na
qual foram nomeados (se tomaram) mestres. Isso requer habili
dade, inteligência (capacidade plástica de adaptação) e reflexão,
qualidades práticas e intelectuais que permitem o exercício da
mestria em questão.
Dominar, exercer mestria, no sentido de “magister", é ter
interiorizado uma certa forma de aprendizagem para tomar-se
soberano em sua prática, em seu modo de ação (fazer, produzir,
pensar): a criança aprende a dominar seu próprio “espaço-do-
corpo”, seu meio natural, o artista aprende a dominar técnicas
particulares (ligadas à representação do espaço, como a perspec
tiva; ou à lógica material-formal de seu elemento: a cor, o som, a
nota, a palavra, a frase); trata-se, portanto, de uma forma de
competência, que se manifesta na autonomia (poder fazer a
coisa “sozinho”), ligando os meios aos fins. Dominar (maitri-
* Lit. “Agente de mestria”, nome dado à categoria dos encarregados e
chefes de serviços, numa fábrica ou oficina. (N. do E.)
UMA DEFINIÇÃO DE NOÇÃO 255
ser) significa controlar a atribuição de uma certa coisa, de um
objeto, de um elemento, concebidos como meios, a um fim.
Essa liberdade de disposição em relação aos meios não é tão fre
qüente nem tão fácil de obter como se imagina - pensemos no
virtuosismo. É por isso, aliás, que o mestre é antes de tudo obje
to de admiração: Mestre Corvo, Mestre Raposo, na fábula de La
Fontaine... O primeiro é perito em queijos, certamente; o segun
do, em astúcia, evidentemente!...
É que a mestria nunca é dada, imediata, não “cai do céu”; ela
supõe um trabalho, uma mediação regrada e, portanto, a passagem
por uma coerção. Só é possível tomar-se mestre submetendo-se à
dura lei de fabricação da coisa. Mestria supõe uma disciplina, uma
obediência às regras de produção. Todo mestre começou pela vir
tude da modéstia: aprender matemática e tomar-se mestre nela é
interiorizar esse saber (fazer) de maneira perfeita, completa e sufi
ciente para a correta utilização do “instrumento” matemático (a
solução dos problemas). Tal é o primeiro sentido de “mestre”, que
diz respeito à noção de disciplina, entendida ao mesmo tempo
como campo do saber e forma de educação do sujeito. Mas o senti
do se desloca assim que consideramos um outro “objeto” da mes
tria, conforme esse objeto seja um domínio objetivo do saber, da
prática ou um sujeito (uma pessoa, alguém).
Observação - Partimos aqui, nesse primeiro parágrafo, de
exemplos comuns, percorridos rapidamente (a concisão obri
ga), que servem na realidade para trazer à baila noções inter
mediárias importantes (as que estão sublinhadas), das quais
teremos necessidade a seguir e que serão retomadas na análise:
soberania, autonomia, trabalho, coerção, disciplina (nos dois
sentidos do termo), obediência. Podíamos trazer outras, mas é
um problema de livre julgamento quanto à condução do argu
mento. Basta que o essencial do trabalho esteja colocado. Ob
servar-se-á igualmente que nos contentamos em colocar o fun
damental: tomamos o cuidado de não dizer muito a respeito,
não nos lançamos em grandes desenvolvimentos, embora ten
tadores, sobre Hegel e Marx, por exemplo, sobre a questão da
obediência, no exercício do trabalho, à dura lei de fabricação
da coisa. É preciso guardar munições para, mais tarde, saber
repartir as análises conforme o espaço que estabelecemos e
conforme o plano.
256 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
Com efeito, tomemos o caso do contramestre (encarrega
do): ele domina um certo saber teórico e tecnológico (saber
necessário numa fábrica, numa oficina, num canteiro de obras);
mas ele deve também “dominar” uma equipe de trabalho, pelo
fato de ter operários sob suas ordens: ele organiza o trabalho
deles, distribui as tarefas, zela pela boa execução e o bom desen
volvimento dos trabalhos. “Contramestre” joga assim com a am
bivalência do termo mestre: mestre de um saber e mestre (amo,
chefe) de forças de trabalho, de vontades, de pessoas. E não se
domina um saber do mesmo modo que se chefiam/dominam
pessoas (sejam estas escravos, servos, proletários, súditos, sol
dados). No caso do saber, a coerção se dirige a si mesmo, refle
xivamente, no espírito; no caso dos outros, ela se exerce sobre
aqueles que estão “às ordens” e “sob as ordens” (subordinados),
e essa chefia irá se impor tanto mais legitimamente quanto mais
claramente o primeiro se manifestar: saber fazer-se obedecer é
dar prova de sua competência. Aqui, “mestre” remete à questão
espinhosa da subordinação das vontades adversas, consideradas
como mais ou menos vagarosas, negligentes, rebeldes ou aris
cas, cheias de inércia e de “má vontade”. Não é fácil, com efeito,
fazer trabalhar alguém numa linha de montagem ou num cantei
ro de obras em pleno inverno... vontade para tanto não há. No
entanto, “é preciso” que haja, dentro de uma relação (de força),
uma autoridade.
Isso supõe uma certa “ciência” dos meios: domina-se um
louco furioso ou um desvairado com uma camisa-de-força ou
uma camisa química, contra sua vontade, o que supõe uma certa
violência (antinatural) na coerção do corpo (pensemos na idéia
jurídica da prisão por dívida*); domina-se um animal selvagem
com redes ou uma seringa hipodérmica; mas pode-se dominar
um animal doméstico por meio da voz e da ameaça (as técnicas
do treinador de cães**); pode-se dominar subordinados através
da pressão, dando ordens (o comando), ou através do salário, do
emprego, do discurso, da astúcia, da cumplicidade (pensemos no
que separa a servidão forçada da servidão adocicada da servilida-
de): o maitre e os garçons, a dona de casa*** e sua cozinheira, o
mestre-de-capela e seus músicos. Trata-se aqui de fazer obede
cer, servir e trabalhar, portanto dirigir a ação, pôr ordem em tare-
c - Segunda parte
Partamos de novo desta dificuldade: como distinguir o ver
dadeiro do falso? Há pretendentes à mestria: o que valem suas
“credenciais”? Platão coloca o problema desse entremeio, desse
domínio do “lusco-fusco” que perturba os espíritos, com a ques
tão da sofistica no Górgias, no Protágoras e em O sofista. Ele
mostra que o sofista é um pseudofilósofo, é um mercador de
“simulacros de saber” que busca mais atrair a juventude do que
dar-lhe acesso à verdade (O sofista, 268 c). Essa análise legitima
a separação entre magister e dominus. O primeiro, mestre peda
gogo, visa um “ensino” (um colocar em signos, como diz santo
Agostinho no De Magistro), o segundo, ao contrário, visa uma
dominação.
Ora, ensinar não é dominar. Resistamos à interpretação
paranóica que assimila os dois verbos e que provém do precon
ceito, do temor e do tabu do poder. O mestre pedagogo não
impõe tanto uma dominação quanto uma conduta crítica que visa
à destruição daquilo que é obstáculo ao tomar-se mestre do discí
pulo. Pensemos na figura de Sócrates como parteiro das almas
(Teeteto, 149 a-151 d); no limite, o verdadeiro mestre só pode ser
tal se recusar, numa certa medida, esse estatuto, consciente do
caráter dialético, votado ao desaparecimento (ao “assassinato do
260 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
Pai”) dessa figura. Sócrates diz: “Quanto a mim, jamais fui mes
tre de alguém” (Apologia de Sócrates, 33 a), e recordemos o que
diz Alcibíades de Sócrates no final de O banquete. Nietzsche pen
sava em Sócrates, quando escreveu: “Pertence à humanidade de
um mestre pôr seus discípulos em cautela contra si mesmo” (§
447 de Aurora). Todo mestre é, portanto, de alguma maneira,
poderoso. Como, entre magister e dominus, a diferença se esta
belece?
Distingamos o verdadeiro do falso, descrevamos o pre
tendente para opô-lo ao legítimo; mostremos o que é um mau
mestre (um mau pedagogo, um mau governante - tirano, dés
pota, esclarecido ou não). Platão 04 República, VIII e IX) diz
que as paixões desse mestre o tomam arbitrário, injusto, iní
quo, que seu fim é a servidão, a obediência cega, a manutenção
no estado natural ou a desnaturação do subordinado. Em
suma, o mau mestre é força do mal. O verdadeiro mestre, ao
contrário, visa ao verdadeiro e à liberdade. Hegel escreve: “A
pedagogia é a arte de tomar os homens aptos à vita ética; ela
considera o homem como um ser natural e mostra o caminho
para fazê-lo nascer de novo” (Princípios da filosofia do
direito, § 151, ad.). O verdadeiro mestre é o da passagem à cul
tura, ao Universal. O problema é que o acesso à mestria, ao
sentido de liberdade, não é só uma questão de saber, é também
uma questão de “vontade”, de relação de poder e de forças.
Como então reconciliar magister e dominus? Como pensar o
mestre por excelência, no qual o poder se identifica com o
Bem e a Verdade?
Observação - Essa segunda parte responde a uma das per
guntas feitas na parte precedente, a da finalidade: com efeito, o
primeiro parágrafo expõe a diferença entre magister e dominus,
o segundo mostra que relação a figura do magister mantém, de
direito, com a idéia da liberdade (a autonomia, por exemplo, do
discípulo), e o terceiro, para dramatizar o problema nesse ponto
da dissertação (logo antes da terceira parte), insiste na contami
nação possível da esfera do magister pela do dominus. Daí o
divórcio, a separação radical das duas figuras. Fica então em
suspenso o exame de sua possível reconciliação na unidade,
exame anunciado já no final da primeira parte, e que é o objeti
vo do que segue.
UMA DEFINIÇÃO DE NOÇÃO 261
d - Terceira parte
O dominus é essencialmente homem de poder, no sentido
de “poder sobre” um sujeito que dispõe de uma vontade. Tal é a
relação de dominação (mestre-escravo, nobre-servo, nobre-
criado ou serviçal, burguês-doméstico, capitalista-proletário).
Trata-se de um destino? Que se toma a vontade do súdito? Se o
homem tem necessidade de um mestre/amo, o que ele busca,
apesar disso, não é libertar-se deste? As Luzes e a esperança do
“déspota esclarecido” não nos consolam muito, se a questão da
liberdade é antes de tudo a da vontade. Ora, o dominus é perito
em artifícios para melhor dissimular sua dominação: “O mais
forte jamais é suficientemente forte para ser sempre o mestre
(amo, senhor), se não transformar sua força em direito e a obe
diência em dever”, escreve Rousseau (0 contrato social, I, 3:
“Do direito do mais forte”). Pode-se dominar sem “senhorear
seu súdito”, donde o recurso à violência, legal ou não. O direito
do mestre legaliza então a violência da dominação, mas não
poderia legitimá-la. Como pensar a legitimidade do dominus?
Examinemos a questão da natureza da vontade: a vontade
do senhor só é perigosa para a liberdade se for única e exclusiva
mente “vontade particular” (portanto suscetível de arbitrarieda
de, de capricho, de injustiça, de iniqüidade). Por essa razão,
Rousseau foi antimonarquista (ver O contrato social, I, 3,4, 6,
7; II, 1,2, 7; III, 3,6) e Platão não gostava muito dos tiranos. E
preciso, pois, encontrar as condições de estabelecimento de um
senhor que não seria mais vontade particular, suscetível de
capricho. Platão julga encontrar isso na figura do filósofo-rei
(/4 República, VII), mestre/senhor verdadeiro e autêntico (a bus
ca dessa autenticidade efetua-se em O político), uma vez que ne
le reina, com toda a justiça, a parte superior da Alma, a Inteli
gência (Noüs); e, graças à relação microcosmo-macrocosmo (A Re
pública, V e VI), essa justiça no governo de si projeta-se no
mundo social da Cidade, organizada de maneira análoga. O filó
sofo-rei constitui a figura ideal do Mestre, unidade ideal do
magister e do dominus: ele govema segundo o Bem. Seria o
mestre por excelência, segundo o imaginário filosófico. Mas o
que vale esse “monarquismo” do Sábio?
Platão pensa o filósofo-rei como essencialmente filósofo, e
a soberania da filosofia, nele, é fruto da educação; mas quem
nos diz que ele não será mais “rei” do que filósofo, quem nos
garante a sabedoria de sua vontade particular? Quem nos diz que
não irá abusar dela? Tenta-se educar os príncipes (os filhos de
262 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
Péricles, por exemplo), mas logo se percebe a contingência e a
fragilidade dos resultados. Rousseau responde aqui a Platão
(O contrato social, III, 6: “Da monarquia”): nada, exceto a orga
nização rigorosa de uma verdadeira República, poderia garantir a
liberdade dos súditos. O idealismo platônico peca por otimismo
teórico, no qual a boa vontade do mestre seria mantida pela con
templação do Bem. Numa sociedade de súditos, há sempre o
risco, diz Rousseau, de entregar-se à vontade de alguém ou de
ser forçado a entregar-se a ela; a sociedade do verdadeiro contra
to, do contrato verdadeiramente social, que faz de todo súdito um
cidadão, de todo homem um sujeito* (vontade particular) e um ci
dadão (parte da vontade geral), permite a cada um evitar entre
gar-se a alguém, uma vez que ele se dá a todos (0 contrato
social, 1,6: “Do pacto social”). Cada um se toma seu próprio se
nhor, permanecendo livre e, ao mesmo tempo, abandonando sua
liberdade natural (a pseudo-“liberdade” do sujeito), em razão da
obediência à lei que o cidadão prescreveu a si mesmo (0 contrato
social, 1,8: “Do estado civil”). Cada um tem, portanto, o direito
e a capacidade de tomar-se mestre/senhor, numa República de
cidadãos na qual a liberdade se define verdadeiramente como
auto-nomia.
Observação - Essa terceira parte busca responder à ques
tão da unidade da idéia de mestre. Ela começa retomando o
problema dramático da distância entre o poder e a razão, dis
tância que explica o risco da violência própria à figura do do
minus. A questão passa a ser a seguinte: um mestrz-dominus
pode ser legítimo? Mobilizamos então as referência filosófi
cas, o terreno está preparado: as teses de Platão e de Rousseau
vêm se opor sobre os problemas da educação, da liberdade, das
vontades particular e geral, da razão, etc.
e - Conclusão
Se a Bíblia diz: “Ninguém poderia ter dois mestres”, pen
sando em particular na força perversa de todos os Bezerros de
Ouro, nós, aqui, temos pelo menos três. Com efeito, “mestre”
entende-se, em primeiro lugar, no sentido “magistral” do termo:
* Neste raciocínio, os outros jogam com dois sentidos da palavra sujev.
súdito e sujeito. (N. do E.)
UMA DEFINIÇÃO DE NOÇÃO 263
aquele que é competente e perito em saber e em habilidade, e que
se realiza na produção de objetos (o artesão, o operário), de obras
(o artista), de idéias (o cientista, o pensador), de discípulos (mes
tres de sabedoria, mestres espirituais). “Mestre” entende-se, a
seguir, no sentido político do termo, apoiado numa relação de
força fatual: aquele que domina, que impõe sua vontade, boa ou
má, à de outrem. Essas duas significações por vezes se confun
dem, tomando-se o magister então por um dominus: é assim que
pode haver maus mestres. No plano dos fatos, a ligação entre a
liberdade da vontade e o mestre, entre o universal (a Verdade, o
Bem) e o particular, é contingente e frágil. Por isso, que mestre
seguir?
O primeiro educa, toma, em princípio, livre; o segundo faz
obedecer, por força, por necessidade ou por astúcia. Como
reconciliar saber e poder, vontade e liberdade, força e verdade?
O problema filosófico da noção de “mestre” é exatamente o da
relação paradoxal entre a liberdade e a vontade: as vontades par
ticulares tendem sempre a reduzir a liberdade do outro, enquan
to a liberdade supõe a equivalência, a igualdade das vontades
ou, pelo menos, seu equilíbrio “a longo prazo”.
É essa tensão que o terceiro sentido de “mestre” (como
sábio, livre e autônomo) espera reduzir. A verdade da noção
complexa e polivante de mestre está aqui: que cada um se tome
mestre de si, magister de seu saber, dominus de sua vontade.
Certamente temos necessidade de mestres, mas na verdade pre
cisamos de um mestre: nós mesmos.
Observação - Essa conclusão retoma os principais ensi
namentos do trabalho. Primeiro, ela se expõe a distinção se
mântica que divide a noção (o mesüe-magister, o mestre-domi-
nus) e lembra o perigo da confusão entre educar e dominar
(através do problema da obediência e da submissão, que em
última instância é o da liberdade e da vontade). E propõe uma
resposta à questão da unidade possível, com um “ideal” que
veria uma interiorização da mestria pelo cidadão (retomada da
hipótese de Rousseau).
Dificilmente se pode evitar, com um tema tão impositivo,
apoiar-se na distinção magister-dominus. A liberdade parece
limitar-se - mas isso já é muito - à condução do argumento e à
escolha das referências. Elegemos Platão e Rousseau; mas
Hegel, Marx, Kant, santo Agostinho e outros mestres espiri
264 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
tuais poderiam igualmente convir. Nesse caso, com outras re
ferências, com outras questões (indo, por exemplo, mais para o
lado da espiritualidade e de sua “pedagogia”), com outros pro
blemas (seria possível centrar-se na questão da heteronomia,
na ordem do religioso e do educativo), seria preciso outro
plano. Não importa: esta é uma dissertação entre outras equi
valentes ou melhores: acaso o essencial não é, de todo modo,
conseguir ligar as referências às questões e problemas levanta
dos e trabalhá-los em profundidade (em compreensão), para
evitar a dispersão e chegar a uma resposta satisfatória, que faça
jus à plurivalência da noção?
Capítulo III
Um problema já explícito
II. Composição
a - Introdução
O futuro inquieta. Quer imaginemos um bem ou um mal
por vir, há apreensão: se tememos com razão o mal, por ser o
mal, tememos também, paradoxalmente, algo do bem, a saber,
que ele justamente não venha. Ficamos apreensivos com sua
contingência, já que ele pode vir ou não vir, ser ou não ser. É
certamente o que alimenta o desejo, a paixão inclusive, de se
representar, de imaginar, de pensar o tempo por vir, a ponto de
tentar conhecê-lo através e a partir do presente.
A paixão da antecipação tiraniza a imaginação, como mos
tra a proliferação dos fenômenos de “visão” e de predição, dos
oráculos, das especulações sobre os possíveis por vir; a granel, o
mercado da superstição, a prospectiva, certas formas de utopia.
De que maneira, então, a imaginação chega a representar-se o
tempo por vir, esse tempo que não é ainda, por definição, mas
que será? Essa função da imaginação, por preciosa e urgente que
seja, dá uma idéia justa e verdadeira daquilo que é, propriamente
falando, a imaginação? Pode a imaginação ser definida como
faculdade de antecipação?
O problema é epistemológico: se houver faculdade de an
tecipação, haverá uma unidade na produção dessas imagens? E
todas as formas de imagens antecipadoras se eqüivalem? Será
suficiente essa definição da imaginação, será justo com a imagi
nação defini-la por uma única de suas funções? A antecipação,
para pretender definir a imaginação, deve ter para o homem uma
função privilegiada; o problema toma-se portanto antropológi
co: que pretendemos fazer quando antecipamos pela imagina
ção? Trata-se de ilusão, delírio ou forma de conhecimento dos
tempos vindouros?
Observação - A introdução, é aqui, bastante delicada, por
que não se sabe muito bem em que pé se apoiar: centrar na ante
cipação e todos os fenômenos concomitantes, ou na imaginação
propriamente dita, suas funções e o problema de sua definição?
UM PROBLEMA JÁ EXPLÍCITO 269
Também aí, se a dissertação é da ordem do discurso, se a intro
dução é encarregada de introduzir, você deve pensar que tem
todo o direito de usar o espaço e o tempo reservado a ela. Por
tanto, paciência, nada de se apavorar, há soluções, persuada-se
disso, e, já que há soluções, deve poder encontrá-las.
Aqui, partimos do fato da imaginação antecipadora (fato
que não há qualquer razão para negar ou duvidar), e conduzi
mos o enunciado exato do tema e o problema da definição
apoiando-nos, de um lado, na paixão (às vezes um pouco neu
rótica) que liga fortemente a imaginação a essa função de ante
cipação; de outro lado, na questão da redução possível da ima
ginação a uma única função. Essa redução apresenta ao mesmo
tempo um risco de erro lógico e uma tentação ideologicamente
duvidosa (a antecipação como deslocamento: fuga do real,
consolação vã e antecipada, consumida antes da hora, deva
neio nebuloso, inebriante e ilusório, etc.).
Enfim, levamos o questionamento ao limiar da interroga
ção sobre o poder de antecipação da imaginação: que tipo de
pensamento essa faculdade nos oferece do porvir, do futuro?
Devaneios nebulosos ou já conhecimento? Veremos que esse
problema antropológico (que concerne em particular aos regis
tros do sócio-político e da arte) é um dos objetos de discussão
mais sérios desse tema.
b - Primeira parte
O que é antecipar? É “capturar de antemão” (ante-capere).
É, portanto, uma conduta que permite ao sujeito da ação “pôr à
mão” o que por ora está fora de seu alcance. O pensamento
pode, assim, na medida do possível, dominar o que acontece no
tempo futuro. Com efeito, a antecipação tem por objeto “o que
tem lugar”, um “aqui e agora” paradoxal, uma vez que, não
sendo ainda, terá lugar “nos tempos que virão” (um futuro pró
ximo ou distante) e constituirá, portanto, um dos contextos do
fenômeno por vir.
Assim, toda percepção já é antecipação, ela não está presa
ao presente de modo absoluto, não é única e exclusivamente
modo de pensamento do presente. A percepção leva em conta o
devir fenomênico das coisas e dos seres, em primeiro lugar do
270 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
meu ser, do meu corpo e do meu espírito, enquanto são tempo
rais. O gesto (pegar um garfo com a mão) tomou-se possível
pela antecipação que preside à percepção do espaço motor.
Perceber é inferir (eu antecipo, ao pegar a coisa, o uso que farei
dela), é dispor de uma hipótese mental, de um jogo de possíveis
representados (levar a comida à boca, fincar a carne para cortá-
la, etc.), entre os quais escolherei, determinarei o movimento
adequado.
A antecipação é um dos primeiros traços da vida do corpo
e do espírito: viver é ser ligado, ser tendido para, estar pronto a
enfrentar o que poderia suceder agora, dentro de um instante,
em seguida, etc.: o mundo de um possível. Um animal não
deve se desmobilizar, sob pena de morte certa, morte cujo
modo de surgimento é imprevisível. A percepção é, portanto,
sempre acompanhada de imagens mentais que são antecipa
ções dos fenômenos e acontecimentos por vir.
Observação - Nesse primeiro parágrafo, em vez de nos
lançarmos num discurso geral, cansativo e não-pertinente so
bre “a imaginação, sua vida, sua obra”, tomamos o tema a con-
trapelo, partindo de seu ponto mais sensível, ou seja, a anteci
pação. Demos ênfase ao trabalho necessário da imaginação
que, antes de mais nada, se submete às exigências da vida e da
sobrevivência (a percepção, o gesto), mas que já apresenta, a
partir de uma disponibilidade flexível, uma verdadeira tendên
cia ao pensamento do porvir. A noção intermediária que era
urgente introduzir é, sem dúvida, a de possível.
Compreende-se então a razão da carga de afetos que acom
panha esse tipo de representações. A crer em Pascal, o filósofo
mais sábio (portanto, a priori, aquele que tem maior domínio
sobre si mesmo) experimentaria o sentimento de vertigem por
que a imaginação antecipa necessariamente a percepção do
vazio: “O maior filósofo do mundo, andando numa tábua mais
larga que o necessário, se abaixo houver um precipício, ainda
que sua razão o convença de sua segurança, será dominado pela
imaginação. Muitos não poderiam nem sequer pensar nisso sem
empalidecer e suar” (Pensamentos, Lafuma 44, Brunschvicg 82).
A antecipação não é neutra, ela produz sentimentos e paixões
ligados à representação do que pode suceder, da ordem da triste
za (o temor) e da alegria (a esperança).
UM PROBLEMA JÁ EXPLÍCITO 271
Nesse sentido, ela tem uma certa função, a de ser sinal e,
também, conselho de prudência, de moderação, de vigilância de
si, ou a de ser uma correia de transmissão, um elemento robora-
tivo, vivificante.
A atividade imagética e imaginante na função antecipado-
ra intervém, assim, desde o ato elementar da percepção, repercu
tindo na organização da vida mental presente e atual. Mas ela
não poderia limitar-se a isso, porque nossa relação com o tempo
por vir não está ligada apenas ao momento presente da percep
ção e porque essa relação não se estabelece apenas com os ele
mentos da percepção.
O reino da imaginação é mais amplo, mais vasto, mais fle
xível também, em particular no eixo do tempo. Por isso ela não
poderia ser aqui reduzida à imaginação reprodutora (que retoma
as imagens da percepção presente e da percepção passada). A
operação da re-produção de maneira nenhuma permite o impul
so para o futuro, a antecipação. Nesse sentido, perguntar-se se a
antecipação define corretamente a imaginação é ser forçado a
liberar a atividade de produção de imagens da tirania do ato de
memorização. A questão adquire aqui o sentido oposto do senso
comum, que vê na imaginação um sucedâneo da memória: a
imagem do rosto de meu avô, a do lugar de uma felicidade pas
sada, enriquecidas de uma aura idealizante, estão unicamente
orientadas para o passado. E a combinação das imagens prove
nientes da percepção também não resolve: imaginar uma sereia,
um minotauro, supõe uma recordação da percepção anterior dos
elementos que compõem esses monstros; essa combinação, por
tanto, está relacionada apenas à atividade plástica da imagina
ção. Ainda não há, aí, tese sobre o futuro. Kant separava, com
razão, as três operações da imaginação: formação de imagens-
representações do presente (facultas formandi), reprodução de
imagens-representações do passado (facultas imaginandi) e
faculdade de antecipação das imagens-representações do futuro
(facultas praevidendi).
Observação - Esse segundo parágrafo é destinado a mos
trar que a antecipação não age somente no plano perceptivo. O
trabalho da imaginação, aqui, separa-se aos poucos das necessi
dades primárias, em particular sob a influência das paixões e
dos afetos (o que permite dramatizar Um pouco com o exemplo
dado por Pascal). A função de antecipação não é, portanto, gra
tuita, ela serve, ela é “útil”; mas, para compreendê-la melhor,
272 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
certamente é preciso ultrapassar o estágio da percepção que a
imaginação reprodutora não faz senão retomar.
Como a antecipação nos impõe a idéia de uma orientação
do pensamento para o tempo por vir, aproveitamos então a
oportunidade para eliminar a definição da imaginação reprodu
tora sob suas duas espécies, a da lembrança e a da re-composi-
ção das formas. Assim, resta-nos apenas dedicar o terceiro pará
grafo à imaginação propriamente dita (subentendido, à verda
deira concepção da imaginação: produtora, criadora, inventiva,
inovadora) e à exposição clara e completa do problema.
Uma definição da imaginação poderia surgir dessa ligação
intrínseca, necessária, entre imaginação e antecipação? Se uma
definição correta restitui a essência da coisa, isto é, o conjunto
das características que é necessário conhecer para compreender o
modo de operação e a razão de ser dessa coisa, precisamos saber
em que medida a antecipação nos faz conhecer a imaginação ou,
pelo menos, uma certa verdade da imaginação. O que nos ensina
a antecipação sobre a natureza da imaginação?
Na verdade, a idéia de uma definição da imaginação como
faculdade de antecipação nos obriga a pensar uma certa unidade
das produções imagéticas ou imaginárias, nos obriga a reconhe
cer uma mesma inspiração profunda nesse dinamismo das ima
gens, nessa tensão e nessa tendência das imagens para o futuro.
Posso, por exemplo, imaginar qualquer coisa a respeito do que
vai acontecer? O que posso imaginar de “plausível”, como se
diz? Porque a imaginação não é apenas potência de desordem,
de caos ou “maluquice”. Pelo contrário, a imaginação pode ser
potência de ordem, de coesão e de coerência, ela tem por objeto
o mundo, ou melhor, sua própria ordem, seu mundo, seu cos
mos. Em que medida a função de antecipação nos instrui então
sobre as regras da imaginação? Qual é a natureza desse mundo
“criado” pela imaginação?
Logo, por que antecipar sobre o tempo por vir, sobre o
futuro distante, por exemplo, e por que fazê-lo pela imaginação?
Pode, é claro, haver nisso razões extrínsecas, subalternas e ideo
lógicas, como “jogar com o medo”, concebendo um mundo
futuro “impróprio à vida” (as cidades devastadas, uma tecnolo
gia sufocante e desregrada, a natureza desaparecida, o triunfo do
artifício, o retomo do despotismo de casta, o reinado da ideolo
gia biológica, etc.); pensemos nos universos de Orwell ou de
Huxley. Mas o objeto de discussão não é esse. Precisamos saber
UM PROBLEMA JÁ EXPLÍCITO 273
se isso é pura fantasia, capricho irracional ou tentativa de deter
minação do futuro a partir do tempo presente. Existe uma “pul-
são nativa” da imaginação a conceber assim o porvir? Que ver
dade da imaginação a antecipação nos fornece?
Observação - Esse terceiro parágrafo da primeira parte é
destinado a apresentar, de maneira decisiva e concisa, o con
junto dos problemas filosóficos induzidos pela questão do tema.
Aqui, escolhemos trabalhar sobre dois problemas:
- um põe em íntima relação a capacidade de “criação” e
de invenção da imaginação com o pensamento do porvir;
- o outro insiste no problema epistemológico (as condi
ções de possibilidade de uma definição adequada da imagina
ção, que são também as da compreensão do problema filosó
fico do momento) da unidade e da ordem (daí a importância
da noção de mundo) no seio dessa faculdade e de suas produ
ções. Isto para responder a uma questão implícita, que não é
somente a da finalidade de toda antecipação, mas também e
sobretudo a da verdade antropológica profunda dessa função.
c - Segunda parte
Não é singular que o espírito humano, ao pensar no porvir,
teime em concebê-lo? A antecipação é a manifestação de uma
“pulsão de dominação” (Anfang, diz Heidegger) do espírito
sobre o tempo. Não limitar o desejo de domínio ao espaço; o
espírito certamente busca reapropriar-se do tempo passado
(culto dos mortos, recordação, fotografias...), mas também pre-
figurar, considerar o que será o mundo ou o que ele poderia ser
no tempo futuro. Humanização do tempo, com toda a ambigüi
dade de suas conseqüências, em particular no plano dos afetos:
“Cumpre ainda lembrar que o futuro não é nem inteiramente
nosso nem inteiramente não nosso, a fim de não o esperarmos
infalivelmente como devendo ser, nem de desesperarmos dele
como devendo absolutamente não ser”, escreve Epicuro em sua
Carta a Meneceu (Lettre à Ménécée, trad. francesa Conche,
PUF, p. 221). O pensamento do porvir sob a forma da antecipa
ção pela imaginação é portanto, em primeiro lugar, uma propo
sição de possíveis.
274 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
Não sabemos se a coisa virá ou não, por duas razões: a pri
meira é sua contingência (ela pode não vir, ela se concebe neces
sariamente como não-existente, já que a existência não é um atri
buto compreendido em sua essência); a segunda é a necessidade
(se ela vier, é porque de certo modo devia vir, em virtude de uma
certa determinação). A imaginação dos possíveis constitui portan
to um risco, uma aventura do pensamento às voltas com o desco
nhecido: como podem os homens viver com o desconhecido à sua
frente? Se o desconhecido lhes escapa, por natureza, a imaginação
constitui uma tentativa de reduzir o improvável ao provável. Daí o
fervor da imaginação pelo futuro. É, portanto, uma felicidade, um
privilégio ignorar o futuro, já que essa ignorância toma possível a
liberdade da imaginação. Qual é a natureza dessa liberdade, que
cresce sobre o valor paradoxal da ignorância?
A liberdade da imaginação é uma liberdade de jogo. Jogo
com os possíveis, proposição de hipóteses, colocação entre parên
teses da dura questão da existência e da realização de uma única
dessas possibilidades, já que a realidade é excludente e exclusi
va, mesmo na realização progressiva de um dentre os possíveis.
A realidade, o efetivo, se diz no singular, os possíveis imagina
dos, o virtual, se dizem no plural. A antecipação tem por primei
ra tarefa pluralizar a representação do mundo, propondo mun
dos por vir. Como em todo jogo, há articulação (entre passado,
presente e futuro, de um lado, e entre os possíveis entre si, de
outro) e regras (ordenamento, submissão a uma forma de regu
lação que permita tomar o mundo imaginado pensável). Como
avaliar essa ordem específica da imaginação? Em que ela é ver
dade da imaginação?
Observação - Essa segunda parte dedica-se inteiramente
à exposição da ordem (cosmos) apresentada pela faculdade de
imaginação em seu trabalho de antecipação (produção do iné
dito, do novo, do inventado): domínio (noção de dominação),
jogo (trata-se de uma proposição, não de uma afirmação cate
górica) com as formas possíveis e prováveis, consideração dos
riscos da aventura (pensamento do nó entre contingência e
necessidade) e insistência no famoso paradoxo da liberdade
submetida a regras.
Por isso, afirmar o caráter necessário (essencial, “natu
ral”) da antecipação no funcionamento da imaginação quando
esta é criadora, é ser forçado a mostrar seu valor de verdade.
Daí a terceira parte sobre esse tema.
UM PROBLEMA JÁ EXPLÍCITO 275
d - Terceira parte
A imaginação antecipadora é perigosa por ser poderosa. O
exemplo de algumas “utopias” ou devaneios sociais manifesta
uma certa violência da antecipação: a imagem do mundo por vir
pode ser proposta como um ideal constitutivo (violência de rea
lização) e não como um jogo, um “como se”, um ideal regula
dor. A antecipação alimenta os sonhos daqueles fanáticos da
força e da dominação que Jünger denomina “os sonhadores con
cretos” (espécie muito perigosa, diz ele). A utopia deve perma
necer lúdica, simples proposição, “jogo dos possíveis laterais”,
como diz R. Ruyer. Mas, por outro lado, nada de grande (e, por
tanto, de perigoso) se faz sem essa paixão da imaginação.
Contra o desespero e o estreitamento do campo de consciência
do “sem futuro” (“no future"), a antecipação permite o pensa
mento dos possíveis. Como diz Baudelaire, em substância, ao
guerreiro a conquista, ao diplomata a paz, ou pelo menos o pré-
saber do conteúdo do futuro: “A imaginação é a rainha do verda
deiro, e o possível é uma das províncias do verdadeiro” (Salão
de 1859, III, “A rainha das faculdades”).
A antecipação se define como busca organizada, exploração
do futuro mediante operação sobre as imagens. A imagem é um
valor dentro de um sistema com variações. Essa é a tese de
Francastel, em A figura e o lugar, a propósito da natureza da ima
gem na obra de arte: uma interpretação das pinturas de Masaccio,
Mantegna e Giotto pode mostrar que a imagem pictórica, longe de
ser um resíduo de percepção ou uma lembrança, é um esquema,
uma estrutura, que informa e instaura modos de percepção e de
estilização que irão marcar as representações do mundo por vir
(no que conceme às paisagens, às cidades, à apresentação dos cor
pos); o que supõe retransmissores (arquitetos, urbanistas, por
exemplo) que interiorizam imagens-esquemas e reproduzem, de
certa maneira, aqueles modelos. A imagem é fundadora de uma
experiência por vir. Ela é invenção e novidade: a solução que ela
propõe (plano da virtualidade) toma-se modelo. O real por vir é
um possível bem-sucedido. A imagem tem, portanto, um poder
normativo: ela não reproduz, ela determina antecipadamente, ela
começa, inaugura (e não augura), na verdade, algo de uma aven
tura temporal e histórica da humanidade. A imaginação em arte
antecipa e prefigura, na medida em que inicia e introduz a um
novo mundo. A arte não ensina apenas a ver ou o que é ver, ela já
mostra o que será visto: como diz Kafka, “a arte é um espelho que
avança, como um relógio, às vezes”.
276 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
Em suma, a imaginação é a faculdade do iiTeal, mas de um
irreal que se propõe ao real por vir, e que se propõe de tal modo
que acaba por se impor, de alguma maneira, seja nos espíritos
(plano da representação), seja na realidade concreta (plano da
realização, a arte por excelência). Paradoxalmente, a imagina
ção determina a realidade do mundo. Liberdade, audácia, cora
gem, invenção, tais são os valores defendidos por esse modo de
operação da imaginação. Nisto, ela é Bildung, educação da
humanidade. Viva a ignorância do futuro, portanto, já que é a
invenção desse futuro que importa, e ela não poderia ser feita
sem a ignorância, justamente. Em Os miseráveis, Hugo escre
via: “A quantidade de civilização se mede pela quantidade de
imaginação.” Não é aí que a imaginação encontra sua verdadeira
natureza, sua verdadeira destinação? As outras funções (repre
sentações, variação da percepção, reprodução, projeção) encon
tram nessa nobre função da antecipação uma verdadeira anima
ção (um movimento vivo e uma espiritualização).
Observação - Essa terceira parte quer explicar a razão,
em particular com o exemplo rico e convincente da imaginação
artística, do poder de realização da imaginação criadora, poder
dos começos, das inaugurações, dos partos na história das for
mas, das instituições, dos modos de experiência humanos, e
isto para responder à questão da verdade antropológica da an
tecipação. Ela pretende, assim, confirmar também a verdade da
definição proposta pelo tema.
Sem dúvida, uma outra opção era possível: bastava dra
matizar a questão da utopia, com a confusão - operada pelos
violentos - entre ideal regulador e ideal constitutivo, e o força-
mento do real que se segue; poderíamos então manter-nos dis
tanciados do perigo representado por tal definição e procurar
censurar a função de antecipação, a suprimi-la, da imaginação
sociopolítica, por exemplo. Com isso mostraríamos que nem
todas as produções da imaginação antecipadora têm o mesmo
valor. Matizar, de todo modo, o julgamento, uma vez que ainda
nos resta tratar da imaginação artística...
e - Conclusão
Pode-se portanto definir a imaginação como faculdade de
antecipação: essa é uma função que se apresenta nas atividades
UM PROBLEMA JÁ EXPLÍCITO 277
elementares do espírito e do corpo, a percepção e o gesto, por
exemplo. Mas é sobretudo quando a antecipação constitui um
verdadeiro modo do pensar (prefigurar) que essa função atinge
uma verdade e um poder de realização irredutíveis: a utopia e,
sobretudo, a imagem artística podem ser consideradas fundado
ras dos reais por vir.
A imaginação se apresenta claramente aqui com as carac
terísticas de uma faculdade, já que propõe ao julgamento hipóte
ses todo um mundo longínquo de possíveis aventurosos, um
jogo sobre possíveis, com combinações, articulações e regras
rigorosas. Em suma, se a realidade é o caminho principal, a ima
ginação antecipadora oferece os caminhos laterais da reinação.
Certamente, essa definição não pode pretender abarcar o
conjunto das atividades da imaginação, não é de modo nenhum
exaustiva. A imaginação apresenta ainda muitas outras faculda
des: a reprodução, a transformação, a composição ou a projeção.
Mas com a antecipação chegamos a um universal, a uma verda
de, a uma essência da imaginação: a marca de um domínio do
homem sobre as formas que toma o curso do tempo, em particu
lar desse tempo que lhe escapa por natureza, o futuro. A anteci
pação é portanto, como diz Sócrates, da crença na imortalidade
da alma, um “belo risco a correr”.
Observação - Essa conclusão oferece, em três momentos,
os resultados do trabalho.
Ela responde à questão colocada a partir dos argumentos
encontrados ao longo do exercício e que são recordados rapi
damente.
Em seguida, tenta legitimar a hipótese de uma unidade das
produções da imaginação antecipadora, a partir da idéia do
jogo dos possíveis.
Enfim, não deixa de fazer ponderações, para prevenir even
tuais reservas, acerca do teor da definição; mesmo assim a sus
tenta até o final, para defender a verdade dessa função.
Capítulo IV
Uma questão implícita
b - Segunda parte
Reformulemos o problema de modo mais explícito: trata-
se de saber qual a natureza da finalidade que os homens, em
sua vida social, atribuem ao Estado. Já sabemos que a finalida
de do Estado obedece aos valores de segurança e de paz. Essa
finalidade será da ordem da utilidade (e, portanto, da ordem,
modesta, de um pensamento “concreto” do relativo) ou da or
dem da realização ética (e, portanto, da ordem, mais ambicio
sa, do absoluto e da perfeição)?
Temos aqui dois planos possíveis de realização da finali
dade do Estado: o primeiro corresponde a uma concepção mí
nima, o segundo a uma concepção máxima. Podemos escolher,
para responder ao problema da concepção mínima, a doutrina
de Hobbes ou a de Maquiavel.
Limitemo-nos aqui à primeira referência: a doutrina de
Hobbes é ao mesmo tempo instrutiva e “útil”, porque permite
resistir, de um lado, às lamentações relativas ao excessivo poder
do Estado (muitos gostariam que houvesse “um pouco, mas não
UMA QUESTÃO IMPLÍCITA 285
demais”; é a posição moderadamente cética de Valéry, por
exemplo), de outro, às imprecações lançadas de todos os qua
drantes contra o Estado (o Estado se reduziria à fórmula “O Es
tado sou eu”, seu poder seria essencialmente arbitrário, injusto,
violento, parcial; e, pior ainda, todo Estado seria totalitário, o
que é confundir totalidade e totalitarismo, numa demonstração
de pouco rigor filosófico).
Hobbes mostra que o Estado é útil, que sua utilidade pro
vém de um cálculo da razão (empirismo), cálculo que tem por
objetivo único encontrar uma solução a esse estado de guerra
de todos contra todos e de cada um contra cada um, que é o
estado de natureza (por onde vemos que o tema decididamente
não trata do estado como condição, CQD). Para uma situação
extrema - lembremos que Hobbes descreve as guerras civis
que dilaceraram a Inglaterra na metade do século XVII -, uma
solução radical: os centros de força individuais, que tendem a
usar de seu direito natural sobre todas as coisas e sobre todos
os seres, no estado natural, dominados pelo caráter insuportá
vel de uma paixão universal - o medo - concordam (é o
momento do pacto) em abandonar sua parte de direito natural
e em depositar a soma desses direitos naturais nas mãos de um
Soberano absoluto.
Os homens saem, assim, do direito natural e entram na
ordem do direito positivo: o Estado, segundo Hobbes, é um
Estado forte, uma monarquia absoluta, cuja primeira finalidade
é a manutenção da paz civil e da ordem pública; o Estado é o
único verdadeiro fiador jurídico da ordem privada, da defesa e
da proteção. A liberdade começa realmente com a segurança
das pessoas, dos bens, da vida econômica, e a do país, tanto
interna quanto extema. Não há liberdade “em si e para si” do
cidadão, Hobbes não pensa de forma tão abstrata: a cidadania,
em Hobbes, limita-se aos direitos e, sobretudo, aos deveres de
obediência do súdito.
Tomemos distância em relação a Hobbes e sua teoria mili
tarista do Estado, opondo a essa concepção mínima uma con
cepção máxima, particularmente exigente em relação ao Estado
e a seus deveres de organização: a concepção hegeliana do
Estado. Pode-se igualmente recorrer a Rousseau (segundo
Discurso - especialmente a segunda parte - e O contrato social.
286 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
I, 1-6), tanto mais que neste há respostas explícitas e diretas
aos problemas levantados por Hobbes.
Como proceder? Podemos partir de uma interrogação
sobre os pressupostos antropológicos da concepção hobbesia-
na e enfatizar, então, os limites históricos, jurídicos e morais de
sua definição das funções do Estado. Com efeito, pode a liber
dade do sujeito limitar-se, no estado social, a esse negativo de
uma paz sem história e sem dissensão, de uma paz sem prova?
O Estado será apenas o resultado de um cálculo? Seu valor se
reduz à utilidade?
Hegel entende expor a verdadeira razão do Estado pelos
valores ligados à própria Razão: o Estado não poderia limitar-
se à mera função da manutenção da paz na segurança (Hegel
não é pacifista como Hobbes, seria antes belicista: a guerra
como prova e como o que põe à prova a saúde dos povos); o
Estado deve garantir a liberdade positiva do cidadão no seio da
sociedade civil.
O Estado moderno fundado por Napoleão, por exemplo,
impõe justamente o verdadeiro Estado de direito e, mais ainda,
o Estado do direito, do direito positivo; o Estado cuja finalida
de é realizar a Idéia ética (princípios do dever de obediência à
lei, do respeito à pessoa humana, dos direitos humanos, da pro
priedade, dos valores de liberdade, justiça, igualdade, etc.).
Que a teoria do Estado seja exposta na terceira seção da tercei
ra parte dos Princípios da filosofia do direito (§§ 257 a 360),
intitulada “A vida ética”, é algo verdadeiramente revelador da
quilo que, segundo Hegel, exige o pensamento do Estado
moderno. Na medida em que realiza (= toma efetiva) a recon
ciliação entre a liberdade infinita interior e a liberdade social
exterior, o Estado é uma forma superior do racional em si.
Nesse sentido, segundo Hegel, o Estado obedece a uma finali
dade que é da ordem do absoluto (a realização da Idéia de
liberdade); por conseguinte, ele é sem fim, sem término, lite
ralmente infinito. A morte histórica do Estado é “impensável”,
de um ponto de vista hegeliano.
Achamo-nos aqui diante de duas finalidades racionais,
mas cuja racionalidade difere: uma racionalidade empírica, da
ordem do útil e do cálculo; uma racionalidade conceituai e
ética, da ordem da idéia. Observamos, por exemplo, que as
UMA QUESTÃO IMPLÍCITA 287
duas concepções não consideram o fim (no sentido de término)
do Estado, porque insistem na necessidade racional (cálculo
útil, de um lado, manifestação do absoluto, de outro) de sua
existência. Essas concepções dizem a última palavra sobre a
finalidade do Estado? Será que nos resta pemanecer aí, vali
dando pura e simplesmente uma delas?
c - Terceira parte
Reformulemos o problema: que relações podemos estabe
lecer entre a finalidade do Estado (suas funções, suas tarefas,
seus direitos e seus deveres) e o pressuposto de sua perenida
de? Os homens terão sempre necessidade de um Estado? Como
conceber homens que não tivessem mais necessidade dele? O
problema, como se percebe, nos leva longe, à avaliação de cer
tas formas de devaneio filosófico, de antecipação da imagina
ção racional ou de utopia.
Nesse momento da argumentação e da composição, pode
mos utilizar um caminho já traçado: o da crítica marxista do
Estado. Mas a teoria anarquista, bem exposta, pode igualmente
servir.
A crítica marxista tem por objeto a pretensão hegeliana
de pensar que o Estado representa o absoluto da liberdade, o
universal na terra (Hegel pensaria o Estado em termos de en
carnação). É verdade que Marx reconhece ao Estado uma
certa razão - no duplo sentido de racionalidade e de razão de
ser -, portanto uma certa finalidade. Mas essa razão do Estado
dissimula uma forma de desrazão que se manifesta, para quem
sabe vê-la, sob as formas da defesa dos privilégios de classe e
da reprodução da desigualdade e da injustiça entre as classes
sociais. O Estado não é, portanto, o órgão pelo qual se realiza
o universal da Razão, ele serve antes a interesses partidários,
vontades particulares - as da ou das classes sociais dominan
tes; donde a ilusão de uma comunhão verdadeira entre os
homens postos sob a tutela do Estado (a tirania do pseudo-
“interesse geral”). Longe de realizar a liberdade na terra, o Es
tado produz e reproduz a dominação, a servidão; ele tem uma
função política de organização que confina cada vez mais com
288 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
a repressão e o emprego da violência. O legislativo, por exem
plo, não é senão o executivo e o repressivo sob outras formas e
meios. O Estado é, portanto, uma forma transitória da violên
cia social destinada a desaparecer.
Por conseguinte, não se poderia pensar em reformar, em
melhorar o Estado. Se a revolução é, antes de mais nada, a revo
lução das necessidades radicais, é preciso, diz Marx, livrar-se
do Estado, fazer de tal modo que os homens não precisem mais,
para sua organização social, do Estado, tanto no plano da orga
nização econômica e política quanto no da representação e do
afeto (o amor fetichista, a idolatria do Estado, que Flaubert já
chamava de “tirania sacerdotal”).
Ao mesmo tempo órgão de reprodução da dominação e
órgão de regulação, o Estado submeteu-se, na realidade, a um
jogo de forças contraditórias que o encaminha a um destino fu
nesto. Como então pensar o fim, no sentido de término, do Es
tado? A doutrina do definhamento do Estado supõe que o pro
cesso de produção capitalista chegue ao seu apogeu e que a
tomada de consciência das contradições do sistema capitalista
se tome universal: o proletariado, em Marx, é a classe univer
sal, ele corresponde ao Estado em Hegel (daí o dogma leninista
da “ditadura do proletariado”, momento em que este se apode
ra do Estado). A sociedade de classe desaparece e, com ela,
seus fundamentos e suas formas de alienação e de dominação
(direito, salariado, divisão do trabalho), para dar lugar a uma
verdadeira comunidade, a dos “homens completos” (não muti
lados pela divisão do trabalho, a ignorância, a ideologia, o feti-
chismo, etc.). E nisto o tema proposto tem uma dimensão an
tropológica evidente.
Há, portanto, um fim, um término do Estado, que corres
ponde ao momento em que a pré-história das sociedades huma
nas involuntárias entrará na verdadeira história, que será a das
sociedades voluntárias. O Estado, tomado inútil e sem função,
morrerá naturalmente: seu fim (seu desaparecimento) corres
ponde a uma radical ausência de finalidade. Seu fim é não ter
mais fim.
Vê-se que a teoria de Marx adquire valor de prognóstico.
Mas, à sua maneira, ela retoma a idéia do universal (a Humani
UMA QUESTÃO IMPLÍCITA 289
dade reconciliada consigo mesma) para pensar o futuro das
sociedades. Marx permanece na esteira filosófica de Hegel.
Não podemos então conceber o fim do Estado fora do útil
(Hobbes) e do universal (Hegel e Marx)?
Se o Estado não se reduz nem a uma função pragmática
nem à reprodução da servidão generalizada, podemos conside
rar, no entanto, que ele é suscetível de ajudar os homens a leva
rem uma vida melhor, ou pelo menos razoável, regrada e
comedida; ele permite que estes exerçam seu julgamento da
melhor maneira possível, mesmo quando as condições não se
prestam muito à clareza e à serenidade, em razão dos precon
ceitos e das paixões (pensemos nos problemas jurídicos liga
dos à bioética); ele pode favorecer a emergência de uma nova
reflexão sobre os valores da sociedade, participar da elabora
ção de um pensamento coletivo que se constitua aos poucos
graças à argumentação e à comunicação (atualmente: a cidada
nia, a noção de serviço público, a proteção das pessoas, do
meio ambiente, do patrimônio nacional, etc.), sem com isso
pretender tomar-se instituidor de valores absolutos, tirânicos e
incondicionados. Ele próprio legitima, por seu trabalho e seu
pensamento, sua existência. A referência a Aristóteles (e, por
via de continuidade, a santo Tomás) é aqui particularmente
benvinda, porque dá uma verdadeira clareza ao pensamento da
regulação da vida social (o reino da verdadeira medida, que é
virtude) através da argumentação e do debate.
Poderíamos, no entanto, compor a dissertação de outro
modo, com outras referências e outras ligações, e gostaría
mos de dar aqui duas outras pistas de trabalho igualmente
frutíferas:
- Por exemplo, após a exposição baseada na teoria de
Hobbes, é possível aproveitar a dramatização possível (o
Estado forte, com poder absoluto) para apresentar as críticas
marxista, nietzscheana e mesmo anarquista, no final da segun
da parte, e dedicar então, paradoxalmente, a terceira parte a
uma apologia do Estado modemo, dar razão a Hegel ou aos
teóricos contemporâneos do Estado universal ou do Estado
como poder regulador na democracia (com o problema da
República, por exemplo). Pode-se, assim, remeter (mas justifi
cando e argumentando as interpretações) o pensamento de Marx
290 A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
a um certo devaneio milenarista ou, mesmo, a um certo modo
de pensamento mágico.
- Também seria possível centrar a problemática na ques
tão da destinação ética do Estado e na de seu papel na atividade
econômica, o que supõe que as questões girem, de um lado, em
tomo do problema dos valores (justiça, igualdade, liberdade) e,
de outro, em tomo do conflito entre as concepções do liberalis
mo e do socialismo.
Mas não são as opções que contam, o que importa é o pro
cedimento e a demonstração. Assim, em cada plano, cumpre
engajar-se e tomar partido:
- seja pela liberdade ou pelo determinismo da vida no Estado;
- seja pela concepção do Estado transitório ou pela do Estado
permanente;
- seja pela concepção do Estado simplesmente útil ou pela do
valor ético do Estado.
TERCEIRA PARTE
Outros exercícios
a - Apresentação do exercício
1. 0 espírito do exercício
O objetivo da contração de texto é bastante claro: permitir
ao candidato mostrar que ele sabe ler, que ele consegue anali
sar, compreender e reproduzir, pela escrita, de forma conden
sada, a idéia central e o modo de argumentação ou de raciocínio
de um texto, em suma, leitura, compreensão e redação.
Nada de mais fácil ou espontâneo, dirão. Mas seria um
erro precipitar-se nesse julgamento um tanto fácil. Não pode
mos a priori estar certos, em princípio, de poder reproduzir
impunemente, ou seja, sem qualquer sacrifício, violência ou
arranjo, um texto de 4.000 palavras, extraído de uma obra lite
rária, científica (de ciências humanas, em particular), filosófi
ca, ou mesmo da imprensa escrita, num texto de 400 palavras,
essencialmente porque o primeiro, o “original”, não é “feito
para isso”. Supor que um texto seja “resumível”, “contraível”,
“condensável” segundo uma medida calculada e convencional
(em geral da ordem de 10%), é um pressuposto suficientemen
te atrevido - um artifício, essencialmente - para que todo estu
dante medite ao mesmo tempo sobre o risco e a extravagância
desse exercício.
Por outro lado, o exercício exige julgamento da parte do
estudante, em particular no que concerne à seleção e à hierar
quização dos temas e das idéias, em suma, a definição do que é
essencial, e que deve ser retido, e do que é secundário, e que
296 OUTROS EXERCÍCIO:
deve ser deixado de lado. Assim: “o que pode ser eliminadc
sem prejuízo? O que deve ser conservado?” são as interroga
ções primordiais que precisamos sempre ter em mente, pari
aprender a fazer sacrifícios.
Enunciemos primeiramente as condições de possibilidadi
do exercício: contrair um texto à sua décima parte é fazer passa
o sentido de um texto (o texto inicial) para outro (o resumo pro
priamente dito). Isso supõe, para a confecção do resumo, (
domínio de um certo estilo, de uma certa “literarização”, domí
nio que se reconhece na redação das idéias, das teses, das opi
niões, dos julgamentos, das proposições, todos argumentado
em maior ou menor grau, provados ou justificados, mediante i
exposição de exemplos, de relatos, de histórias, de dados. En
suma, é preciso que haja articulação lógica, dialética ou argu
mentativa. O imperativo, aqui, é seguir o fio do texto, obede
cendo ao encadeamento das idéias e dos argumentos.
2. 0 texto inicial
A forma e a natureza do texto inicial proposto são diversa
e por vezes desconcertantes. Podemos ter:
- um trecho de ensaio em prosa;
- um diálogo;
- uma narrativa na primeira pessoa (“Eu”).
Assim, o estilo desses textos será, por força das coisas
muito variável, ora pessoal e marcante, ora impessoal e neutro
Convém saber que são dados a resumir de textos escritos à
vezes por escritores, mas muitas vezes por “escreventes
(logo, sem poesia, pelo menos em princípio).
Entretanto, o vocabulário será sempre, em princípio, o mei<
de acesso a todos: podemos sempre encontrar-lhe um equiva
lente mais curto e mais rápido, mesmo que o texto esteja forte
mente apoiado em termos cujo equivalente realmente adequa
do pareça às vezes difícil de achar. Não há por que perturbar-s<
aqui. Com efeito, em muitos textos há termos técnicos, expres
sões notáveis e surpreendentes, idiomatismos, palavras-chave
que não podem ser substituídos sem alterar gravemente o pen
A CONTRAÇÃO DE TEXTO 297
sarnento do texto original. É preciso, às vezes, resistir à ma
nia pseudoliterária que consiste em obrigar-se a encontrar “sinô
nimos” custe o que custar: o essencial é ficar atento no sistema
de equivalências entre os termos e as expressões. Dito isso,
quando podemos substituir as palavras do autor por outras
devemos fazê-lo, para ganhar autonomia em relação ao original.
Dois extremos apresentam, assim, as piores dificuldades,
sem dúvida por serem naturalmente “incontraíveis”: a obra de
arte (vá tentar contrair um poema de Hugo ou cinco páginas de
Madame Bovary!), cuja textura não se presta ao resumo, e o
texto absolutamente abstrato (páginas de A filosofia do direito
de Kelsen, ou da Crítica da razão pura de Kant). Os textos es
colhidos, portanto supostamente “contraíveis”, são em geral
textos de tese não-esotérica, com tecnicidade moderada, que
expõem um problema cultural suficientemente universal e pú
blico para ser inteligível a todo espírito corretamente instruído,
curioso e preparado. Não obstante, há surpresas...
3. 0 texto final
Se, a montante, temos a diversidade, a jusante temos algo
de imperativamente uniforme; vejamos os critérios do texto da
contração:
- Deve ser um texto único, perfeitamente calibrado de
acordo com o número de palavras prescritas (com uma mar
gem de tolerância fixada pela regra do jogo - do tipo + ou -
10% -, margem que de modo nenhum deve ser ultrapassada
sob risco de grave penalização, que pode chegar ao zero. Por
tanto, é indispensável ler bem a formulação do exercício: nãc
se enganar quanto ao número de palavras, registrar a tolerância
aceita para cumprir o que foi pedido e controlar, a seguir, a
redução das palavras: é preciso respeitar estritamente os limi
tes impostos.
- Será redigido num estilo clássico, elegante, sóbrio e
despojado. As frases breves são também recomendadas aos
que sabem carecer de estilp (mas, antes de mais nada, é preci
so que saibam). As frases lòngas e sintéticas são certamente as
melhores para a “fluência” do texto, mas somente quando se é
capaz de produzi-las sem incorreções. De qualquer modo, a
298 OUTROS EXERCÍCIOS
regra é expor o “tom” do texto inicial (polêmico, demonstrati
vo, solene, alarmista...)- Cuidado, porém, com a armadilha do
pastiche: não podemos nos contentar em fazer “à maneira de”,
porque é preciso respeitar o conteúdo do texto inicial. A con
tração não é, portanto, só uma questão de forma.
- Sua redação deve permanecer impessoal quanto ao
fundo: ela será escrita na terceira pessoa; o candidato não
colocará nada de si próprio: nenhum comentário, julgamento,
opinião, crítica ou projeção; em suma, um texto que poderia
igualmente ser um relatório (texto destinado a instruir alguém
sobre o conteúdo essencial de um texto que ele não tivesse
lido). Trata-se, portanto, de ser “objetivo”, valendo a contra
ção antes de tudo por sua neutralidade axiológica, tanto em
relação ao fundo (respeito estrito das idéias expostas no texto,
nenhuma intervenção a favor ou contra as teses em questão:
respeito à letra, apenas ela...) quanto em relação à forma (ne
nhuma iniciativa que traia o espírito do texto: procurar acima
de tudo, e talvez unicamente, ser claro e inteligível).
- No que concerne à questão da terceira pessoa, pode
acontecer que nos vejamos forçados a reproduzir a primeira
pessoa do texto inicial. Sobre esse ponto delicado, há às vezes
divergências de doutrina entre bancas examinadoras, escolas e
corretores. É bom, pois, que os estudantes consultem os pare-
ceres de concursos e seus professores para decidir do procedi
mento a tomar conforme as circunstâncias. Dito isso, será con
servada a primeira pessoa se esta tiver um papel decisivo,
estrutural, no texto original, e se passará à terceira se o “eu” for
apenas acidental e contingente.
Dito claramente, é de fato uma recomposição que se pro
põe. Essa é inclusive sua condição sine qua non. Analisa-se e
desfaz-se a forma primitiva para substituí-la por outra. Não há
o que se queixar disso e obedecer resmungando, já que esse é jus
tamente o espírito da prova, que constitui sua verdadeira justi
ficação.
Essa recomposição, por estranho que pareça, é um exercí
cio com valor “ético”. Trata-se de verificar se o estudante é
capaz de ser fiel, tanto no plano da letra quanto no do espírito,
ao texto de um autor, se é capaz de demonstrar, fazendo isso,
um mínimo de honestidade intelectual, de neutralidade axioló
gica diante de um texto que eventualmente toma partido. O
300 OUTROS EXERCÍC
b - Técnica da contração
Como proceder? Distinguiremos aqui três fases: a fase
leitura, a de redação-composição e a da verificação.
1. A fase de leitura
Essa fase de leitura, por ser a primeira e a mais “evident
é no entanto a mais delicada; é evidentemente dela que tudc
mais) depende, já que ela permite a “impregnação”. Cuidai
pois, com qualquer precipitação intempestiva.
Ler, aqui como, aliás, em todo trabalho intelectual, é
atentamente, com paciência e precauções, e é ler várias vez
Claro, dirá você, mas e o tempo dado? Por certo é bom sal
organizar-se, para não se deixar tomar de roldão pelas tare
em curso; mas convém saber que a justa compreensão de 1
texto de 4 mil palavras, ou seja, de três a quatro páginas, r
pode ser feita numa só leitura. Com a prática, podem ser si
cientes duas ou três leituras, durante cerca de quarenta mii
tos. Mas cada leitura terá sua tarefa:
- A primeira é a da descoberta do texto, de seu objeto,
seu tema, de seu aspecto físico (seu tom, sua velocidade, í
impacto); é aí que se aprende a aceitar o objeto sobre o q
iremos trabalhar algumas horas; por isso, evite “indispor-s
“embirrar com o texto”, que é a melhor maneira de fracas
em sua compreensão. A leitura deve ser feita no abandono
todo preconceito, de todo pressuposto, de toda “defesa”,
sentido psicológico do termo: ela visa à objetividade, portai
à suspensão do julgamento crítico.
- As leituras seguintes devem ficar atentas à estrutura
texto: é preciso reproduzir um objeto em “miniatura”. Cei
mente é possível, para estabelecer uma comparação, você pc
pensar em maquetes, mas pare a analogia nesse ponto cruc:
numa maquete, cada parte é reduzida à mesma escala, o c
não deve nem pode ser o caso num resumo. Essa questão
plano é importante: anote o texto inicial para extrair suas a
culações principais (portanto suas partes), sabendo que d«
conservar apenas as principais (da ordem de duas, três ou qi
A CONTRAÇÃO DE TEXTO 301
tro para um resumo). No momento da redação, faça que elas
sobressaiam com o auxílio de conjunções de coordenação (os
famosos “mas, ou, e, portanto, ora, nem, pois”, os “todavia, en
tão, entretanto, com efeito, não obstante”, os advérbios do tipo
“inversamente”, “paradoxalmente”, os verbos “lógicos” como
“implicar, induzir, deduzir, excluir”, etc.) e abrindo novo pará
grafo quando for necessário.
Materialmente, as coisas podem se apresentar assim:
- Durante a primeira leitura, você pode, se tiver certeza,
verdadeira certeza (a que vem após o momento da verdadeira
dúvida e do verdadeiro exame), anotar a tese (a opinião, o jul
gamento, a idéia central) do texto, de uma forma condensada, e
identificar, mesmo rapidamente, as teses opostas, contrárias ou
inimigas. É preciso tirar partido, na medida do possível, das
múltiplas informações anexas dadas com o exercício (nome do
autor, título do livro ou do trecho, data de publicação, contexto
histórico...). Numere os parágrafos (mesmo os que se limitam a
uma linha) para poder organizar a leitura e a contração de acor
do com “lugares”, e estabelecer assim ligações entre o original
e o resumo. Pode começar também a anotar rapidamente, numa
folha, um certo número de frases sintéticas que reproduzem a
idéia da passagem.
- A segunda leitura é a mais preciosa: ela intervém direta
mente no corpo do texto (sublinhar, traçar um círculo em volta,
usar sinais gráficos pessoais...) para isolar:
- os enunciados das teses, argumentos e exemplos apresenta
dos, sua hierarquia (principais ou secundários);
- o vocabulário empregado pelo autor, que seguramente não é
anódino (conforme o grau de tecnicidade ou de polêmica,
por exemplo); não é inútil anotar algumas expressões de par
ticular impacto, que dão o tom do texto (já que é esse tom
que se deve reproduzir);
- o plano preciso do texto, organizado não segundo os pará
grafos (pois o autor não escreveu pensando na contração...)
mas segundo a lógica das idéias. Com efeito, nem sempre é
possível (mas cabe ao candidato apreciar isso em seu justo
valor, de modo nenhum estando autorizado a se enganar)
302 OUTROS EXERCÍt
seguir o texto em sua integral linearidade: o autor pode fa
parênteses, chamadas, retomadas e até repetições, que s<
absurdo, nesse caso, seguir literalmente. Mais delicado i
da: que fazer dos exemplos e das citações contidas no te
inicial? E preciso selecionar com severidade e rigor, dar a
nas os exemplos exemplares ou um resumo do sentido
citações.
- A terceira leitura tem por objetivo verificar o fundame
das opções e das decisões tomadas, completando ao mes
tempo, por um trabalho mais preciso de leitura e de cc
preensão, a leitura precedente.
Resumindo
2. A fase de redação-composição
Após essas leituras, o estudante se concentrará no traba
de seleção das idéias e argumentos, verificará o fundame
das escolhas feitas e organizará o conjunto, hierarquizandc
elementos do texto. Essa tarefa difícil não pode ser conceb
sem um certo rigor de redação e de composição (cerca de vi
minutos).
A redação propriamente dita vem a seguir, com suas vei
cações, suas idas e vindas entre as próprias anotações e o te
que está sendo redigido, sem esquecer a redução de palav
que influi na redação: cerca de uma hora e trinta.
Essa redação deve ser feita a partir de suas notas e de
plano, sem mais olhar o texto inicial que incita sempre e fa
mente ao decalque. Cumpre abandonar, num certo mome
(isto é, após a terceira leitura), o texto “modelo” para ser n
fiel a ele.
i CONTRAÇÃO DE TEXTO 303
observação - Alguns conselhos concretos
Resumindo
3. A verificação
Enfim, não esqueça a passagem a limpo, o acabamento:
atenção ao capricho, à limpeza, à letra (o grafismo), à ortogra
fia (a acentuação, por exemplo), à sintaxe (a pontuação, entre
outras coisas), à releitura final, à verificação da contagem de
palavras. Isso ocupa, em princípio, os últimos trinta minutos.
Convém lembrar que o trabalho será avaliado em função de
todos esses critérios.
O que implica que o estudante procurará reservar tempo
para efetuar esse trabalho essencial de verificação, muito fre
qüentemente negligenciado. Esse conselho vale para todos,
mas sobretudo para os que não têm uma ortografia ou uma sin
taxe imediatamente corretas.
Obviamente, consideramos aqui o ideal: há textos rebel
des, ariscos e resistentes, que exigem ainda mais leituras, mes
mo dos melhores estudantes. Mas há também que aprender a
“deter-se em algum ponto”, como diz Aristóteles, e acabar com
as leituras para passar à fase de redação (recomposição) do
texto.
A CONTRAÇÃO DE TEXTO 305
c - Exercício
Já que Zenão pretendia provar o movimento andando, pro
vemos que esses exercícios são inteligíveis e “fazíveis”, em certa
medida. Tomemos, à guisa de exemplo, um texto de Raymond
Aron, apresentado ao concurso de admissão à HEC [Escola Su
perior de Comércio], intitulado: “A busca da verdade”.
a - Apresentação do exercício
O exercício consiste em propor a contração em 300 pala
vras de um conjunto de três textos de aproximadamente 1.000
palavras cada um, mas que também poderiam ter tamanho desi
gual, centrados num mesmo tema ou num mesmo problema,
que cumpre identificar e formular; esses textos defendem teses
e juizes às vezes próximos, às vezes opostos, a respeito de uma
idéia, de uma opinião, de um fato de cultura. Devem-se então
apresentar as respostas e soluções dadas nos textos, confrontan
do-as, isto é, examinando suas convergências e divergências.
Daí a idéia da síntese.
Os textos não são necessariamente antagônicos, suas opo-
sições podem ser cruzadas, alternadas com convergências. Mas
o postulado da prova é efetivamente este: cada texto oferece
uma resposta particular, original e diferente ao problema co
mum. Assim, os textos convergem, já que têm o mesmo tema, e
divergem, já que diferem em suas respostas.
Como para o resumo, pode-se pensar naquilo que um rela
tório exige: o problema deve ser exposto em seus aspectos es
senciais e permanecer o centro da exposição; cumpre economi
zar as palavras, cultivar a concisão, não se perder em detalhes e
no que é secundário; não é preciso procurar reproduzir tudo o
que é dito nos três textos; conta apenas o que diz respeito ao
campo comum das idéias, e por essa razão este deverá, já na
primeira leitura, ser cuidadosamente delimitado antes de qual
quer outra coisa. Como os autores devem ser respeitados, o
316 OUTROS EXERCÍCl
tom e o ponto de vista serão neutros, objetivos; nenhuma d
teses deve prevalecer sobre as demais, inclusive em “volume
Não obstante, para respeitar o imperativo da verdadeira sim
tria, dar-se-á ao texto mais rico em idéias sobre o tema comu
o maior espaço. Mas de modo nenhum se é obrigado, em fu
ção da mesma simetria, a seguir a todo custo a ordem na qu
os textos são dados: a ordem de reprodução é indiferente.
Em regra, um dos três textos diverge nitidamente em rei
ção aos outros dois. Isso não deve fazer com que a síntese
reduza a uma simples confrontação. As boas sínteses são
que fazem sobressair também as nuanças e as pequenas dive
gências entre os dois textos mais próximos.
Trata-se portanto de um exercício de distinção, de detern
nação da diferença, e não de um exercício de amálgama e i
confusão. Por essa razão, não deve ser produzido um texto on
reine o anonimato: é preciso dar os nomes dos protagonist;
porque o leitor-corretor deve saber, a cada instante, quem disse
que e contra quem. Cumpre assim levar em conta diferenças i
data, de circunstâncias históricas, mas também de “formaçã
dos autores, já que a compreensão de tudo isso é decisiva pari
de seus discursos: quem são eles? Escritor, crítico literário, h
mem político, jornalista, filósofo, sociólogo, etnólogo...?
No que concerne à relação com o(s) texto(s), a diferen
entre a síntese e a contração é portanto a seguinte: o estudar
não pode, no âmbito da síntese, tomar o lugar de três autorc
“Exterior” aos três textos, ele pode portanto formular um ji
gamento objetivo sobre o tom dos autores, sobre as opções
pressupostos do discurso deles, de sua maneira de colocar
problema e de tentar responder a ele, de seu método, etc.
Os critérios de avaliação, no entanto, são os mesmos <
contração: qualidade da expressão escrita, da compreensão e i
análise dos textos, da composição do texto final. Deve-se junl
a isso a qualidade da organização: trata-se de confrontar as tes
de cada texto, portanto de fazê-las cruzarem-se, tratando de e'
tar o vaivém incoerente. Aqui há uma dificuldade: evitar-se-;
as contrações justapostas, associadas, adicionadas; não resun
primeiro o texto n8 1, depois o n9 2 e finalmente o n° 3. Prc
crever-se-á o “falso diálogo”, do tipo: “X disse que, mas Y re
ponde que e Z concorda com ele...”
A SÍNTESE DE TEXTOS 317
Assim, o exercício pode rapidamente tomar-se delicado e
complexo, a começar por simples e evidentes razões de tempo
(três ou quatro horas, conforme os concursos): é preciso saber
olhar o relógio, pois o exercício exige uma fase lenta de leitura,
de análise e de reflexão, uma fase mais rápida de planejamento
e de organização, e momentos de aceleração, em particular na
redação. Razão a mais para reter a exigência essencial de toda
contração (ver o capítulo destinado a esta): saber ler e redigir.
Sob esse aspecto, as exigências formais e estilísticas da contra
ção e da síntese são idênticas: uma tolerância de 10% (portanto
uma variação de 270 a 330 palavras para um texto estipulado
em 300 palavras, conforme os concursos), devendo o número
de palavras ser indicado no final do texto.
Resumindo
b - Técnica da síntese
Como para a contração, podemos distinguir três fases,
mesmo se o exercício é um pouco mais complexo: a fase de lei
tura, a fase de redação-composição e a da verificação. Sobre
esses pontos devem ser consultadas as páginas que lhes são
dedicadas no capítulo sobre a técnica da contração. Retomamos
aqui apenas as exigências e os conselhos principais, e, natural
mente, os que são específicos à síntese de textos.
- Ler cada texto (duas ou três vezes), sublinhando as
palavras e as expressões importantes e numerando os pará
grafos.
- De saída, é preciso delimitar o campo comum das idéias:
identificar e extrair o problema que motiva o encontro dos tex
318 OUTROS Ei
tos, os temas comuns entre eles, mesmo e sobretudo s
niões não forem semelhantes, e começar a formulá-lc
neira concisa numa folha de rascunho.
- Identifique cada idéia “original” e particular
texto; para tanto, podemos aconselhar o seguinte pro<
to: atribuir a cada qual uma letra e colocar a letra ao
passagens envolvidas, a cada formulação da idéia em
Com efeito, num mesmo texto podem-se encontrar v
zes a mesma idéia, seja qual for a variação de sua for
Isso permite agrupar melhor os argumentos. Esse tipc
lização (letras, algarismos, quadros, etc.) é um enti
possíveis; cabe ao estudante inventar o seu.
- Formule a seguir, para cada texto, no rascunh
vendo apenas numa face de cada folha - de modo a po
cá-las lado a lado para a recapitulação final - e u
somente uma folha por autor), as idéias marcantes, c
resumidas, anotando-se as variações de formulações,
pios, o vocabulário particular de cada texto, ou aindi
sões que o estudante mesmo coloca e que parecei
melhor.
Alguns, de escrita fácil e rápida, resumem cada te
de operar a síntese. Por que não? Mas isso nos parece
na medida em que excede a tarefa solicitada: trata-se
mir apenas o que diz respeito ao campo comum das id<
como for, o estudante deve trabalhar o mais rápido
sobre os próprios resumos, efetuados autor por autor,
texto, para em seguida redigir à sua maneira.
- Identifique os temas não-comuns (se houver)
textos, a fim de que eles não apareçam na síntese.
- Identifique e formule as concordâncias (com a í
tação correspondente, sobretudo se as razões divergire
- Identifique e formule as discordâncias, retendi
razões.
- Na medida em que o exercício postula a presen
problema comum aos três textos, é preciso começar c
síntese por sua formulação; uma pergunta, por exemj
muito bem assinalar esse ponto de convergência das i
em presença.
A SÍNTESE DE TEXTOS 319
- Enfim, atenção para a última frase, que deve permanecer
estritamente objetiva.
No que concerne ao número de palavras, o bom seria
aprender a “calcular de olho” o calibre da síntese final; mas po
de-se perfeitamente começar não se preocupando demais com
a quantidade e contrair posteriormente para ajustar-se à medida
certa.
c-Exercício
1.Os textos
Tomemos como exemplo uma síntese de textos dada no
antigo concurso de ingresso para a Ecole des Affaires [Escola
de Negócios] de Paris, que propõe o estudo de três textos, assi
nados por Soljenitsin, Sartre e Escarpit, tendo por objeto a fun
ção do escritor.
Texto ne 1 (Soljenitsin)
2. Como proceder?
Como o exercício apresenta uma verdadeira complexida
de, propomos aqui uma apresentação das diversas etapas do
procedimento a seguir. Lembramos que a sinalização proposta
aqui nos é própria e que o estudante pode inventar a sua (por
exemplo, um dispositivo em colunas, numa grande folha), se
esta não lhe convier.
- Identificação das idéias de cada texto:
Texto ns 1 (Soljenitsin)
1) O escritor envolvido no mundo; não poderia livrar-se
disso apesar da tentação que pudesse ter; responsável, como
cada um, pelos males do mundo; impossível retirar-se do
jogo, inútil buscar escapatórias (§§ 1,2,3, mas também 12,13,
14 a 20).
2) Poder de unificação da literatura: coração, corpo e espí
rito do mundo. A literatura mais profunda que a diversidade
das literaturas nacionais. Pode trabalhar pela unidade da huma
nidade (§§ 4,5,8 a 11,13).
3) Sinal fecundo do progresso técnico: reduz o isolamento
do escritor e do leitor ao tomar escrita e leitura contemporâ
neas (§§ 5,6,7).
4) Utilidade do escritor: função da força de verdade da
literatura. Questão de coragem: dizer à humanidade o que ela
4 SÍNTESE DE TEXTOS 329
é, lutar contra violência e mentira, contra poder material e
crueldade (§§ 1,2,3,8,12 a 20).
Texto ne2 (Sartre)
1) Destino do escritor: passivo ou isolado, sua escrita é
sempre ação e intervenção. Ela tem sempre um sentido. O
escritor, por essência, é envolvido numa situação: impossível,
para ele, (re)tirar o corpo fora (§§ 1,3).
2) Responsabilidade do escritor: Flaubert, Balzac respon
sáveis, perante a história, por sua indiferença ou seu silêncio
( § § 1, 2).
3) O livro faz da literatura um fato social, uma instituição.
Donde a urgência, para o escritor, de pensar sua situação em
sua época: ser “atual” (§§ 3,4).
4) Ser atual, e não sonhar com um futuro longínquo e qui-
mérico. Pensar o presente e o futuro próximo da humanidade, o
aqui e o agora, tal é a tarefa do escritor (§ 4).
Texto n- 3 (Escarpit)
1) A imprensa favoreceu a transformação da literatura em
instituição: círculo fechado que gere sua produção e sua repro
dução (§§ 1 e2).
2) O livro é uma mercadoria inerte, presa num circuito
fechado e estanque que vai do editor ao reconhecimento uni
versitário (§ 2).
3) Daí o perigo de um falso universalismo, produzido pela
massificação das obras e dos meios de comunicação. Cer
tamente é possível revoltar-se (Byron), mas o escritor corre o
risco da recuperação pelo sistema acadêmico: ele não mais
controla a difusão da obra (§§ 3 e 4).
4) O progresso técnico favorece, no entanto, a rapidez e a
extensão da informação. Conseqüência: redução do isolamento
( § 4).
5) Que não haja ilusão: a comunicação é de mão única, é
insensível à voz individual; ela é feita para ser recebida, não para
receber as interrogações. Também aí, risco de ilusão.
330 OUTROS EXERCÍCh
Modo de uso
I. Métodos de trabalho
a - A s regras do jogo
A explicação e o comentário de texto podem evidente
mente dar lugar a provas orais, quer se trate de exames, quer
de concursos.
As regras do jogo, variáveis, dirão respeito a:
- o tempo de preparação (20,30,60 minutos...);
- a duração da exposição (10,15,20 minutos...);
- a existência ou não de uma fase de argüição após a expo
sição;
- a existência e a natureza de um programa (um ou vários
autores em história da filosofia; agrupamento de textos em
tomo de uma temática).
336 OUTROS EXERCÍCIOS
b - O treinamento
Seja como for, convém preparar-se ao longo de todo o
ano, tão logo surja a ocasião.
Se não surgir, é preciso criá-la, trabalhando com colegas,
por exemplo.
A rigor, pode-se também praticar sozinho, com a presen
ça eventual de um gravador - o mais impiedoso dos censores
(o que obriga a só utilizar essa técnica com precaução, sobre
tudo para quem tiver o moral frágil).
Se nos preparamos para uma prova bem definida, cujas
exigências são conhecidas de antemão, cumpre evidentemente
inserir-se nesse contexto.
Mas, se não for esse o caso, se houver várias provas dife
rentes, ou se quisermos trabalhar pessoalmente, cumpre inte
ressar-se tanto pela explicação quanto pelo comentário de
texto em todos os contextos (história da filosofia, filosofia
geral).
Insistiremos sobretudo neste ponto: o caráter eminente
mente formador da preparação para a prova oral.
Com efeito, como as regras do jogo e os limites tempo
rais são extremamente estritos, é muito menor a tentação de
deter-se no caminho ou divagar. Nada melhor que o exame
oral para aprender a controlar o tempo e a “enxugar” nossas
apresentações de todo enfatuamento retórico. O oral é, portan
to, uma excelente ocasião de trabalhar com um relógio diante
dos olhos, o que deve modificar o conteúdo do próprio desem
penho.
Constatar-se-á assim, por exemplo, que o início do texto
é quase sempre privilegiado, e o final do texto negligenciado -
por falta de tempo e de atenção. Além disso, durante uma
exposição, não se sente o tempo passar. Como surpreender-se
com que tantos estudantes só consigam explicar ou comentar
a metade do texto? É preciso estar ciente disso e ajustar-se de
antemão.
Permanecendo válidas todas as recomendações da prova
escrita, é preciso e é suficiente infletir o trabalho nas direções
apresentadas a seguir, impostas pelas condições da prova oral.
OS TEXTOS NA PROVA ORAL 337
c - 0 caráter oral do oral
Essa obviedade de modo nenhum é um gracejo: a expe
riência prova que essa noção, embora fundamental, é geral
mente muito mal assimilada. É compreensível o que acontece
com os candidatos numa prova oral: levados pela emoção,
procuram aplacar seu sentimento de insegurança buscando no
papel uma tábua de salvação. Cumpre no entanto lutar com
todas as forças contra essa tendência, por duas razões.
1 )0 caráter oral é parte integrante da prova. Num exa
me oral, dirigimo-nos a alguém, esforçamo-nos por proferir
um discurso vivo. Essa dimensão dialogai é constitutiva do
exercício. Não há exame oral sem essa dimensão de comuni
cação. Um exame oral não é uma prova de leitura.
Os professores que proíbem seus estudantes de ler o
texto que prepararam têm, portanto, toda a razão. Eles se opõem
assim a um verdadeiro desvio da prova - para não falar do
castigo que tal método representa freqüentemente para o au
ditório.
2) A confecção de um escrito perturba completamente a
preparação que se impõe. A atenção que deveria ser dedicada
ao texto é deslocada para o papel; o tempo que o estudante
deveria passar meditando sobre o autor é dilapidado num tra
balho manual insípido. Confiante em seu escrito, único objeto
de sua preocupação, ele esquece o texto a explicar ou a co
mentar para encerrar-se em sua própria prosa. Em caso de erro
ou de esquecimento, é incapaz de corrigir a pontaria e se com
promete irremediavelmente.
Como surpreender-se, depois, com os maus resultados ob
tidos? Tal “método” é uma verdadeira máquina de fazer fra
cassar a apresentação.
Na prática, existe apenas um recurso radical: para não
ser tentado a ler, é preciso não escrever.
Entenda-se: não se trata de dispensar a rede de proteção que
as notas constituem. Apenas elas não devem ser redigidas com
pletamente. Explicamos mais adiante como proceder.
338 OUTROS EXERCÍCH
No início, é normal sentir um certo temor em lançar-:
deste modo. Mas é preciso acostumar-se. Com o tempo, ess
técnica revela-se mais fácil do que se imagina. Inclusive
nitidamente mais prática, por ser difícil consultar um texl
completamente redigido. Em suma, é preciso aceitar jogar-!
na água. E o estudante será recompensado ao constatar que
sentimento de terror preventivo que toma conta de muitos pr<
vém do imaginário. Os “mudos de exame” são uma espéc
raríssima.
Resumindo
a - O fator tempo
O tamanho do plano deve ser proporcional aos praze
impostos de preparação e apresentação. De nada serve elabc
rar um plano que obrigará o candidato a omitir a terça parte o
a metade da preparação para não esgotar seu tempo soment
com a primeira parte - a menos que ele se deixe interrompe
pelo interrogador durante a apresentação, o que é sempre de
sastroso.
OSTEXTOS NA PROVA ORAL 339
A contagem dos minutos é, portanto, o primeiro fator
determinante.
b - A destinação do plano
É preciso que o ouvinte possa acompanhar sem se perder,
quando não dispõe de nenhum papel para se orientar. O refina
mento dos planos destinados à prova escrita (dissertação,
explicação ou comentário) não é apropriado. O oral exige um
balizamento do tipo “rodoviário”, com grandes placas indica
doras, as mais simples e breves possíveis, e não a multiplica
ção de placas de um cruzamento citadino.
b-Aargiiição
A argüição após a exposição é uma prática corrente. Ela
faz então parte da prova, que de modo nenhum terminou
quando se encerrou a sua apresentação.
Parece difícil preparar-se para ela. No entanto:
1) Sempre se é responsável indiretamente pelas perguntas
que serão feitas. Os erros e os esquecimentos são as primeiras
ocasiões disso. Mas as alusões também são pretextos para
questionamento. Por isso é prudente controlá-las de antemão.
Por exemplo, de nada serve citar um nome de autor, para dar a
entender que o conhecemos, se ele não foi lido. O examinando
cairá na própria armadilha.
Conhecendo o assunto, os mais hábeis podem adquirir a
arte da alusão, que permite fazer-se argüir sobre um de seus
pontos fortes. Essa técnica é legítima; ela também faz parte do
jogo no exame oral.
2) Deve-se adotar uma atitude ao mesmo tempo receptiva
e ativa - receptiva às observações que apontam negligências
ou extravagâncias, ativa para “repará-las” da melhor maneira
possível.
Portanto, é preciso evitar “curvar-se” aceitando qualquer
objeção sem discussão, esperando deste modo agradar ao exa
OS TEXTOS NA PROVA ORAI 343
minador escutando-o passivamente. Mas é preciso igualmente
evitar mostrar-se arrogante e obstinado.
Quando o examinando é questionado, deve responder
com os meios disponíveis. Se for necessário um esforço de
retomada, deve-se tentá-lo. Muitas falhas podem assim ser
parcialmente compensadas por uma participação ativa na ar-
güição.
Se não sabe realmente responder, deve aceitar render-se.
Isto será sempre melhor do que inventar qualquer bobagem
para preencher um silêncio incômodo.
Resumindo
M odo de emprego
I. Métodos de trabalho
Consultar igualmente o capítulo I, dedicado à explica
ção e ao comentário de textos filosóficos no exame oral. Al
guns conselhos dados aqui já se acham desenvolvidos naque
le capítulo.
a - A s regras do jogo
A lição oral é um exercício que compreende pelo menos
duas fases: uma fase de preparação e uma fase de apresenta
ção ; e às vezes uma terceira, a fase de argüição. O estudante
deve assim procurar conhecer as condições concretas de sua
intervenção:
>
- o tempo de preparação (entre vinte e sessenta minutos, mas
podendo chegar a várias horas para certos concursos...);
346 OUTROS EXERCÍCIOS
- a duração da apresentação (de quinze a quarenta minutos,
conforme o caso);
- a existência ou não de uma fase de argüição pelo júri (cerca
de dez a quinze minutos) após a apresentação.
O objeto da lição é apresentar, num tempo limitado,
uma reflexão organizada e argumentada sobre um tema que
pode ser de exame escrito ou oral. Com efeito, os temas de
dissertação não servem apenas à dissertação: podem ser da
dos em exercícios orais como a lição, com a diferença de que
para o oral talvez haja temas mais específicos: se “Mo
ralidade e imoralidade” ou “Qual é o fim do Estado?” são te
mas tanto do oral como do escrito (são temas “amplos”),
temas mais precisos e mais finos como “Por que um emprego
do tempo?”, “Pode-se matar o tempo?”, “Precisão e exati
dão” ou “O que é uma grande alma?” adaptam-se melhor ao exa
me oral.
Por conseguinte, o tema pode adquirir formas já encon
tradas nas dissertações: um tema nocional, uma confrontação
de duas ou três noções, uma questão, uma citação a explicar e
a comentar (com ou sem nome de autor).
O estudante deve igualmente averiguar a existência ou
não de um programa. O programa, quando existe, pode versar
sobre:
- Um ou vários autores da história da filosofia, e então se
trata de fazer uma exposição sobre um ponto de doutrina, sem
necessariamente problematizar; quando a lição é sobre um
programa preciso de história da filosofia, como acontece com
freqüência no le ciclo universitário, na França, ela pode cor
responder a um tema num autor (“Amor e filosofia em Pla
tão”, por exemplo), a uma questão colocada de maneira clássi
ca (“O que nos ensina a teoria platônica sobre o amor ao
conhecimento?”) ou provocadora (“O amor platônico é platô
nico?”).
- Um tema filosófico que permita tratar transversalmente
da história da filosofia, com textos de referência precisos: a
moral (textos de Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, Bergson),
o religioso (textos de Platão, santo Tomás, Kant, Spinoza, He-
gel, Bergson), por exemplo.
AUÇÃO 347
- Um tema de filosofia geral que corresponda a um curso,
sem indicação de textos precisos.
Quando a lição não envolve um programa, a argüição se
faz sobre temas e problemas de filosofia geral, jamais sobre
autores ou pontos de doutrina.
A priori, o trabalho a efetuar retoma as exigências funda
mentais da dissertação filosófica:
- uma leitura precisa e atenta do tema: identificação dos ter-
mos-chave da forma do tema, de seu “espírito” e de sua
letra, situação do tema (o sentido dos termos e sua significa
ção em contextos, campos e registros diferentes);
- uma análise rápida das noções, uma seleção dos melhores
exemplos, o recurso às noções intermediárias e o apelo às
referências destinadas a apoiar a argumentação.
Em suma, é uma dissertação “resumida”, não obstante
uma mudança radical de estratégia, já que se trata de uma
prova oral e não escrita. O exercício, aliás, é impiedoso para
os estudantes que não compreendem o tema ou que só o com
preendem pela metade: o auditório percebe rapidamente as
lacunas, as estratégias de dissimulação, os deslocamentos e as
ausências. A lição oral é realmente uma prova de verdade, por
envolver o estudante de “corpo e alma” através da fala.
b - 0 treinamento
A lição é um exercício delicado, não por dificuldades
filosóficas particulares - já que afinal encontram-se nela pro
blemas semelhantes aos da dissertação -, mas antes por ques
tões de “comunicação” e de administração do tempo.
As coerções são draconianas no que concerne ao tempo
dado e, portanto, à eficácia do discurso. É preciso, primeiro,
aprender a trabalhar com um relógio. Depois, aprender a dizer
o necessário e nada além do necessário, já que é isto que se
quer ouvir. Nenhuma necessidade de perífrases, de enfatua-
mento retórico: é preciso ir ao essencial. Aos poucos se apren
de a “desinflar” o discurso, a fornecer o “argumento” em sua
348 OUTROS EXERCÍCIOS
forma mais radical. Deve-se portanto abordar esse exercício
perigoso com coragem e paciência; a experiência das situa
ções diversas virá com as sessões de treinamento. Na verdade,
o difícil é o primeiro passo, é jogar-se na água. Acrescente
mos, como encorajamento, que esse exercício oral é muito útil
para a dissertação.
Em suma
b - A argüição
A argüição após a exposição é uma prática corrente: em
geral ela faz parte da prova, não sendo portanto um apêndice.
Convém saber, para não se desencorajar, que é possível limitar
os danos de uma lição sofrível mediante uma entrevista sólida
AUÇÀO 351
com o júri; e que, se a entrevista fracassa, isso não chega a
invalidar completamente uma boa lição. A nota será talvez
relativizada (o júri terá dúvidas...), mas a lição, em toda a justi
ça, permanecerá tal e qual. Em suma, tudo é lucro, ou quase...
É por essa razão que se deve jogar o jogo, ainda que o
exercício seja perigoso, já que o examinador verifica o saber
do estudante, sua lucidez sobre seu discurso. Portanto, esse
momento requer uma atitude particular: é preciso ser recep
tivo, aberto, atento, manifestar boa vontade e manter o san
gue frio, sobretudo quando são feitas observações desagra
dáveis; mas cumpre também ser ativo, defender-se, respon
der argumentando, explicando as razões de tal argumentação
ou de tal problemática, embora reconhecendo o fundamento
das observações, etc. Com isso se evitará a arrogância e a
teimosia, que levam muitas vezes a responder de qualquer
maneira.
Convém sempre lembrar que a entrevista tem por objetivo:
- esclarecer os pontos de doutrina trabalhados ou evocados,
aprofundá-los, se houver necessidade; portanto, é melhor o
estudante não referir-se a autores que não conhece ou que
domina mal. Os mais hábeis, no entanto, podem servir-se da
arte da alusão para se fazerem argüir sobre um de seus pon
tos fortes. É uma estratégia legítima e, afinal de contas,
mais vale um estudante que sabe filosofia do que um que
não sabe;
- chamar a atenção do estudante para pontos esquecidos ou
indevidamente tratados na lição, retomar esse pontos com ele
ou ver se ele é capaz de retomá-los com o júri (nesse sentido, a
argüição tem um valor pedagógico inegável);
- obrigar o estudante a voltar a pontos específicos da exposi
ção que acabou de fazer; as questões colocadas podem en
tão ser do tipo: por que escolheu tratar tal problema e não
outro? Que distinção você faz entre isto e aquilo? Está segu
ro de não confundir isto e aquilo, fulano e sicrano? Não
compreendo esse exemplo, essa referência, esse argumento:
explique-me, etc.
352 OUTROS EXERCÍCIOS
Análise
Argumentação
Conceito
Crítica
Dedução
Definição
Desenvolvimento
Exemplo
Interpretação
Introdução
N o ção
Plano
Problem a/solução
Pergunta/resposta
Referência
Sentido/ significação
Tema
Tema geral/tese
I. Instrumentos de trabalho
1. Vocabulário
Os dicionários, mais ou menos completos, são numerosos. Po
demos aconselhar:
Lalande, A., Vocabulaire de Ia philosophie, PUF, “Quadrige”, 2 vol.
(um clássico indispensável).
Foulquié, P., Dictionnaire de Ia langue philosophique, PUF.
Auroux, S. e Weil, Y., Dictionnaire des auteurs et thèmes de la philoso
phie, Hachette-Classiques (um instrumento atualizado útil).
Morfaux, L„ Vocabulaire de la philosophie et des sciences humaines,
A. Colin (muito acessível).
Para aprofundamentos:
Jacob, A. e Auroux, S. (sob a direção de), Les notions philosophiques,
2 vol., PUF.
376 INSTRUMENTOS DE TRABALHO
2. Domínios gerais da filosofia
a) Entre as numerosas histórias gerais da filosofia que contêm
bibliografias detalhadas sobre os autores e as obras:
Bréhier, E., Histoire de la philosophie, reed. PUF, “Quadrige” (antigo,
mas muito claro, sobretudo sobre a filosofia antiga e moderna).
Brun, J., LEurope philosophe: 25 siècles de pensée occidentale,
Stock (uma vigorosa interpretação global).
Châtelet, F. et al., Histoire de la philosophie: idées, doctrines, 8 vol.,
Hachette (conjunto completo mas desigual).
Dumas, J.-L., Histoire de la pensée, t. 2: Renaissance et siècle des
Lumières-, t. 3: Temps modernes, Tallandier (boa reconstituição
dos procedimentos filosóficos nas respectivas épocas).
Folscheid, D., Les grandes philosophies, PUF, “Que sais-je?” (refe
rências essenciais).
Grateloup, L.-L. et al., Les philosophes de Platon à Sartre, Hachette
(estudos densos e estimulantes).
Jaspers, K., Les grandsphilosophes, Payot (leituras inspiradas).
Jerphagnon, L., Histoire des grandes philosophies, Privat (muito útil).
Mattéi, J.-F. (sob a direção de), Dictionnaire des auteurs, PUF, 2 vol.,
(uma documentação exaustiva).
Parain, B., Belaval Y. et al., Histoire de la philosophie, 3 vol., Pléiade,
Gallimard (apresentações de referência).
A Encyclopaedia Universalis comporta resenhas sobre os
grandes filósofos redigidas pelos melhores especialistas.
b) Sobre os diferentes períodos e as principais correntes da
história das idéias filosóficas:
Brun, J„ Les présocratiques, PUF, “Que sais-je?”.
Dumont, J.-P., La philosophie antique, PUF, “Que sais-je?”.
Jaeger, W., Paideia, Payot.
Schaerer, R., Lhomme antique, Payot.
Vemant, J.-P., Les origines de la pensée grecque, PUF, “Quadrige”.
Libera, A. de, La philosophie médiévale, PUF, “Que sais-je?”.
Gilson, E., La philosophie au Moyen Age, Payot.
Margolin, J.-C., L’humanisme en Europe au temps de la Renaissance,
PUF, “Que sais-je?”.
Koyré, A., Du monde cios à l’univers infini, Gallimard, “Idées”.
Wahl, J., Tableau de la philosophie française, Gallimard, “Idées”.
Robinet, A., La philosophie française, PUF, “Que sais-je?”.
Leroux, E. e Leroy, A., La philosophie anglaise classique, A. Colin.
ORIENTAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS 377
Bréhier, E., Histoire de la philosophie allemande, Payot.
Spenlé, J.-E., La pensée allemande de Luther à Nietzsche, A. Colin.
Trotignon, P., La philosophie allemande depuis Nietzsche, A. Colin.
Cassirer, E., La philosophie des Lumières, Presses-Pocket, “Agora”.
Groethuysen, B., Philosophie de la Révolution française, Gonthier-
Médiations.
Trotignon, P., Les philosophes français d’aujourd’hui, PUF, “Que
sais-je?”
Descombes, V., Le même et lautre, quarante-cinq ans de philosophie
française, Minuit.
Lacoste, J..La philosophie au XX' siècle, Hatier.
Lyotard, J.F., La phénoménologie, PUF, “Que sais-je?”.
Piaget, J„ Le structuralisme, PUF, “Que sais-je?”.
Bloch, O., Le matérialisme, PUF, “Que sais-je?”.
Mounier, E., Lepersonnalisme, PUF, “Que sais-je?”.
Foulquié, P., L'existentialisme, PUF, “Que sais-je?”.
Rossi, J.-G., La philosophie analytique, PUF, “Que sais-je?”.
Armengaud, F., Lapragmatique, PUF, “Que sais-je?”.
Assoun, P.-L., L'école de Francfort, PUF, “Que sais-je?”.
c) Aconselharemos também algumas obras de síntese:
Bastide, G., Les grands thèmes moraux de la civilisation occidentale,
Bordas.
Goyard-Fabre, S., Philosophiepolitique, XVI'-XX' siècles, PUF.
Wahl, J., Traité de métaphysique, Payot.
Daumas, M. (sob a direção de), Histoire des sciences, Pléiade, Galli-
mard.
- análise, 32, 179 ss., 185 ss., 192, 224, 247, 248, 266, 280, 355,
356, 366, 369.
- aporia, 198.
- argumento (argumentação), 33, 43, 183, 192, 222-6, 356-7, 360,
367,370.
- associações verbais,183-5,
- atitude, 24-5, 33-6, 165, 173-6, 185, 193-4, 227, 298-9, 315-7,
336, 339,340, 348-50.
- autores (ver referências).
- biblioteca, 11-13.
- caderno de vocabulário, 26-8.
- citação, 178-9, 193, 205-6,237 ss.
- comentários de texto, 30-1,34,49 ss., 63,129 ss.
- comentários (e comentaristas), 34,50.
- composição, 39, 45-6, 162, 214-7, 219-21, 223-6, 227-8, 296-9,
302-4.
- conceito, 167-8,180, 185 ss., 189-90,358, 366.
- conclusão, 42, 44-5,55,133, 226-8, 262-4,276-7,359, 366.
- contexto, 26-7.
- contração de texto, 295 ss.
- correção, 161,164,192,194,218.
- crítica, 183-5, 360.
- dedução, 43,360-1.
- definição, 26-8,176-7,180-1,192,221,251,265-6,361-3.
- desenvolvimento, 222 ss., 363,367-8.
- dicionário, 26-8, 180-1, 206.
- discussão, 45,53.
386 INSTRUMENTOS DE TRABALHO
- dissertação, 30,157 ss., 237 ss., 345.
- exemplo, 188-90,224,251, 282, 363-4.
- explicação de texto, 29 ss., 335 ss.
- falso problema, 196-8.
- fichas de leitura, 23 ss.
- fora-do-tema, fuga do tema, 34,53,195 ss.
- história da filosofia, 9 ss., 34-5, 50, 60, 179, 206, 209-11, 222,
346.
- interpretação, 34, 355,364-5.
- introdução, 39 ss., 54-5, 193-4,218 ss., 253,268, 359, 365-6,372.
- leitura(s), 11 ss., 19 ss., 29,34,172 ss., 199, 238, 295 ss., 300 ss.
- lição, 345 ss.
- língua, 167 ss., 185,248,361-2,365.
- método, 19, 35-6,165-67,219,222-3,233-4.
- noção, 26-7,42, 120, 176-7, 179 ss., 224, 230, 238, 240,251,255,
259,263-4,266, 270,282,355-6,358,366, 369.
- oral, 40,291, 335 ss.
- paradoxo, 204, 241,266-7,367.
- parágrafo, 210, 214-5, 220, 222 ss., 229.
- pergunta, questão (interrogação), 37, 43, 177-8, 191 ss., 200 ss.,
220-1, 228, 239, 245, 251, 269, 279-80, 369-70, 372-3.
- plano, 37-8,40, 53-4, 127 ss., 213 ss., 284 ss., 290, 301, 338, 341,
350, 356,365,367-8.
-problema, 37-8, 39-40, 181, 195 ss., 217, 220-1, 224-6, 272-3,
280-1, 289-90, 315 ss., 355-6, 368-9, 372-3.
- rascunho, 45-6, 173, 348-9.
- redação (ver composição).
- referências, 6 ss., 14, 16-8, 25, 30, 33 ss., 46, 52, 53, 179, 194,
205 ss., 226, 229, 239-40, 252-3, 263-4, 267, 281, 284, 289, 346,
357, 370.
- sentido (significação), 26, 35, 180 ss., 192, 204, 245, 252, 257-8,
266, 280, 358, 360, 364, 366, 370-1.
ÍNDICE REMISSIVO
- síntese de textos, 291,351 ss.
- solução, 199, 368-9.
- tema, 172 ss., 176 ss., 195, 205,217,218 ss., 224,237 ss., 279
346, 365-6, 369-70,371-2.
- tempo (contagem de minutos), 216,300,302,317,335 ss., 347.
- tese, 33,41,206, 262, 300 ss., 356-7, 372-3.
- textos, 5 ss., 11 ss., 29 ss., 49 ss., 59 ss., 295 ss., 315 ss., 335 ss.
- transições (articulações), 33, 37-8,43,224-5.
índice sinóptico
Prefácio.............................................................................................. VII
Modo de uso........................................................................................ XV
PRIMEIRA PARTE
OS TEXTOS FILOSÓFICOS
Seção I - Abordagem teórica
Capítulo I - A leitura dos textos..................................................... 5
I. Por que ler textos filosóficos?................................................ 5
a - Uma relação necessária, 6 / b- Uma relação original,
71c- Uma relação difícil, 10.
0. Como ler os textos filosóficos?.............................................. 11
a - A biblioteca, 11 / b - Que textos ler?, 14 / c - A leitura
em prática, 19 I d - Tomar notas, 23 I e - O caderno de
vocabulário, 26.
Capítulo II - A explicação de texto............................!.................. 29
1. Os princípios da explicação de texto..................................... 29
a - O que não é a explicação de texto, 30 / b - 0 que é a
explicação de texto, 32.
II. A realização da explicação de texto...................................... 39
a - A introdução, 39 / b - A explicdção propriamente dita,
43 / c - A conclusão, 44 I d - A redação, 45.
Capítulo III - O comentário de texto........................................... 49
390 INSTRUMENTOS DE TRABALHO
I. Os princípios do comentário.................................................... 49
II. A realização do comentário............... ............................... ••••■• 51
a - A explicação preliminar, 52 / h - A preparação do
comentário, 52 / c - Construir um plano único, 53 I d - A
introdução e a conclusão, 54.
Seção II - Exercícios práticos
a - Dificuldades teórico-práticas, 591 b - A escolha dos textos,
601c - Pequena tipologia das dificuldades metodológicas, 611d -
Explicação e comentário, 62 / e - Como trabalhar?, 63.
Capítulo I - Um clássico conhecido, demasiado conhecido.... 67
Descartes, Discurso do método, primeira parte............................ 67
I. Métodos de trabalho............................ ............................68
a - De que se trata?, 69 / b - A identificação das noções-
chave, 701c-A argumentação de Descartes, 73.
II. A confecção do plano.............................................................. 79
III. Elementos para um comentário............................................... 81
Capítulo II - Exercitar-se no discernimento........................... . 85
Descartes, Discurso do método, quarta parte................................. 85
I. Um problema de leitura: a comparação entre Deus e o
triângulo........................ ............................................. .......... . 86
a - Localizar a dificuldade, 86 I b - Descobrir os elemen
tos corretores, 871c - Resolver a dificuldade, 88.
II. Problemas de discernimento: como situar e interpretar esse
texto?............................................................................................. 89
a - Identificar indícios, 90 I b - Lições e questões de dis
cussão do texto, 91.
Capítulo III - Um texto clássico, mas antigo............... ............... 95
Aristóteles, Ética a Nicômaco, II, 6,1106 b-1107 a ..................... 95
I. Métodos de trabalho...................................................... . 95
a - O problema da filosofia antiga, 96 / b - O problema
das traduções, 98 / c - O problema do vocabulário, 99.
n. O texto tal como se apresenta................................................... 101
a - De que se trata?, 102 I b - O desenvolvimento do pen
samento de Aristóteles, 103 / c - Conclusão, 106.
ÍNDICE SINÓPTICO 391
Capítulo IV - Um diálogo.........................................,.................. . 107
Platão, Teeteto, 150 a-c................................................. ................... 107
L Métodos de trabalho................................................................... 108
a - Particularidades do texto, 108 I b - O procedimento de
abordagem, 109.
II. A retomada do texto................................................................... 110
a - Introduzir, 110 I b - Preparar um plano, 111 I c - A
explicação do texto, 111 / d - Para concluir, 116.
Capítulo V - O obstáculo da transparência................................ 119
Rousseau, Discours sur /’origine de l'inégalité, 2- parte............. 119
I. Métodos de trabalho.................................................................. 119
II. Produzir as noções.................................................................... 120
III. Construir a explicação............................................................. 126
a - Para introduzir, 1271 b - O plano detalhado, 127 / c -
Para concluir, 128.
IV. Preparar um comentário............................................................ 129
a - O problema antropológico, 130 / b - O problema da co
munhão social, 1311 c - O problema do mal humano, 132 /
d - Para concluir, 133.
Capítulo VI - Fichas rápidas.......................................................... 135
I. Um mito (Platão)...................................................................... 136
II. O nó górdio de um sistema filosófico (Kant)....................... 139
III. Um nuançador sutil (Pascal).................................................... 143
IV. Às margens da filosofia (Durkheim)..................................... 147
SEGUNDA PARTE
A DISSERTAÇÃO FILOSÓFICA
Seção 1 - Abordagem teórica
Capítulo I - Definição do exercício................................................ 157
I. Por que a dissertação filosófica?............................................. 157
a - O exercício filosófico por excelência, 158 / b - Um exer
cício realizável, 159.
II. O ciclo pedagógico da dissertação........................................... 161
a - O momento da redação, 162 / b - O momento da ava
liação, 162 / c - O momento da correção, 164.
392 INSTRUMENTOS DE TRABALHO
III. A complexidade do exercício................. i ................................. 164
a - Mais uma aprendizagem do que um método. 165 / h - 0
domínio da língua fdosóftca, 167.
Capítulo II - A preparação de uma dissertação........................ 171
I. A leitura do tema........................................................................ 172
a - O que é um tema de dissertação filosófica?, 172 / b -
Análise e compreensão do tema, 172.
II. Os quatro tipos de temas........................................................... 176
a - Uma única noção, 176 I b - Várias noções, 177 I c -
A pergunta, 177 / d -A citação, 178.
III. A análise de noção..................................................................... 179
a - Seu objetivo: o trabalho da definição, 1801 b - As asso
ciações verbais, 1831 c - 0 trabalho de determinação con
ceituai, 185.
IV. A exposição dos exemplos........................................................ 188
a - A justeza dos exemplos, 188 / b - A insuficiência dos
exemplos, 189.
V. A interrogação............................................................................. 191
a - A necessidade das perguntas, 191 I b - Que perguntas
fazer?, 191 I c - Alguns modelos de perguntas, 192 / d -
Como formular as perguntas?, 193.
VI. A problematização..................................................................... 195
a - O “fora-do-tema”, 195 / b - O falso problema. 196 / c -
Problema filosófico e problema matemático, 198 I d - O
senso do problema, 199.
VII. O uso da referência: o papel dos autores................................205
a - O autor da dissertação e os autores filosóficos, 205 /
b - Quais referências?, 207.
Capítulo III - A realização da dissertação...................................213
I. O plano................................................ .........................................213
a - A estruturação do plano, 214 I b - A animação do pla
no, 217
II. A introdução.................................................................................218
a - As exigências, 218 I b - A fase de redação, 219 / c -
Alguns conselhos práticos, 221.
III. O desenvolvimento..................................................................... 222
IV. A conclusão.................................................................................. 226
V. Observações sobre a apresentação material da dissertação ... 228
ÍNDICE SINÓPTICO 393
Seção II - Exercícios práticos
Capítulo I - Uma citação familiar................................................ 237
Que significa: “Não entre aqui quem não for geômetra" ? .........237
I. Roteiro: preparação do trabalho...............................................237
II. Indicações de argumentação e de problematização.............. 240
a - Primeira parte, 240 / b - Segunda parte, 2431 c - Ter
ceira parte, 245.
Capítulo II - Uma definição denoção............................................251
O que é um mestre?................................................. ..........................251
I. Roteiro: preparação do trabalho..............................................251
II. Composição..............................................................................253
a - Introdução, 253 / b - Primeira parte, 254 / c - Segunda
parte, 2591d - Terceira parte, 261 / e - Conclusão, 262.
Capítulo III - Um problema já explícito...................................... 265
A imaginação pode ser definida como uma faculdade de ante
cipação? ............................................................................................. 265
I. Roteiro: preparação do trabalho.................................... ......... 265
II. Composição............................................................................. 268
a - Introdução, 268 / b - Primeira parte, 269 / c - Segunda
parte, 2731d - Terceira parte, 275 / e - Conclusão, 276.
Capítulo IV - Uma questão implícita..............................................279
O fim do Estado................................. ..................................................279
I. Roteiro: preparação do trabalho..................................................279
II. Indicações de argumentação e de problematização.................282
a - Primeira parte, 282 / b - Segunda parte, 284 I c - Ter
ceira parte, 287.
TERCEIRA PARTE
OUTROS EXERCÍCIOS
Seção I - Contração e síntese de textos
Capítulo I - A contração de texto................................................295
394 INSTRUMENTOS DE TRABALHO
a - Apresentação do exercício, 295 / b - Técnica da con
tração, 3001 c - Exercício, 305.
Capítulo II - A síntese de textos.................. ............................315
a - Apresentação do exercício, 315 / b - Técnica da sín
tese, 317 / c - Exercício, 319.
Seção II - As provas orais
Capítulo I - Os textos na prova oral........................................335
I. Métodos de trabalho...................................................................335
a • As regras do jogo, 335 I h - 0 treinamento, 336 / c - O
caráter oral do oral, 337.
II. O plano destinado ao oral.......................................................... 338
a - O fator tempo, 338 t b - A destinação do plano, 339 /
c - As notas tendo em vista o exame oral, 339.
III. Os ajustes próprios ao exame oral............................................. 341
a - A arte de apresentar, 341 / h -A argüição, 342.
Capítulo II - A lição ...........................................................................345
I. Métodos de trabalho................................................................... 345
a - As regras do jogo, 345 / b - O treinamento, 3471 c - O
caráter oral do oral, 348.
II. A apresentação da lição...............................................................349
a - A arte de apresentar, 3491b - A argüição, 350.
QUARTA PARTE
INSTRUMENTOS DE TRABALHO
Léxico....................................................................................................355
Orientações bibliográficas.................................................................375
índice remissivo............. ................................................................ 385
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