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BIOGRAFIA DE RICHARD WUMRBRAND

PREFÁCIO

Sou Ministro Luterano. Passei mais de 14 anos em diferentes prisões por causa
de minha fé cristã, mas não é este o motivo que me leva a escrever este livro. Sempre
fui avesso à idéia de que a pessoa uma vez presa injustamente deva escrever ou pregar a
respeito dos seus sofrimentos. Campanella, o notável autor de "Cidade do Sol", esteve
encarcerado durante 27 anos, nos quais sofreu torturas, como passar 40 horas deitado
numa cama de pregos. Isto nós sabemos porque seus biógrafos contaram, não que ele o
tivesse dito.
Os anos de prisão não me pareceram demasiado longos porque descobri, sozinho
em minha cela, que além da fé e do amor, há em Deus um deleite: um profundo e
extraordinário êxtase de felicidade, a que nada no mundo se pode comparar. Saindo do
cárcere, assemelhava-me a alguém que descia do cume de uma montanha, de onde
tivesse descortinado, na extensão de quilômetros ao redor, a paz e a beleza dos campos,
e agora voltava à planície.
Primeiro devo explicar por que, há mais de dois anos, vim para o Ocidente. Fui
solto em 1964, juntamente com alguns milhares de outros presos políticos e religiosos,
porque a República Popular Romena adotara uma política mais "amistosa" em relação
ao Ocidente. Deram-me a menor paróquia do país. A minha congregação contava 35
membros. Se esse número subisse para 36, disseram-me, iria haver perturbação. Eu,
porém, tinha muito que narrar e havia muita gente que queria me ouvir. Viajava
secretamente para pregar em povoados e aldeias. Antes que a polícia soubesse que um
estranho estava em terras de sua jurisdição, eu saía. Mas isso tinha de parar. Pastores
que me ajudaram foram demitidos pelo Estado e eu podia tornar-me a causa de novas
prisões e confissões arrancadas à força de torturas. Tornava-me um peso para aqueles a
quem desejava servir, e também um perigo.
Amigos insistiram comigo que eu deixasse o país e, assim, estando no Ocidente,
eu falasse em favor daquela igreja secreta. De declarações feitas por líderes da Igreja no
Ocidente concluía-se que alguns não sabiam e outros não queriam saber a verdade sobre
perseguição religiosa movida pelos comunistas. Prelados procedentes da Europa e da
América iam fazer visitas amistosas aos nossos inquisidores e perseguidores, quando
então se sentavam a banquetear-se com eles. Perguntávamos a eles qual a razão disso.
"Como cristãos", diziam, "temos que proceder amigavelmente com todo mundo, como o
senhor sabe. Até com os comunistas". Por que, então, não se mostravam amigos com os
que sofriam? Por que nada perguntavam (nem uma palavra sequer), a respeito dos
padres e pastores que haviam morrido na prisão ou debaixo de torturas? Ou por que não
deixavam um pouco que fosse de dinheiro para as famílias desses mártires, que haviam
ficado?
O Arcebispo de Cantuária, Dr. Ramsey foi em 1965 e assistiu a um serviço
religioso. Ele não sabia que a congregação consistia de oficiais e agentes da polícia
secreta e suas esposas; as mesmas pessoas que comparecem em cada ocasião daquelas.
Essa mesma gente já ouvira visitantes como rabinos e muftis, bispos e batistas. Tais
visitantes, voltando para casa, comentavam favoravelmente, segundo lemos, a liberdade
que, como julgavam, imperava na Romênia. Um teólogo inglês escreveu um livro em
que declarava que Cristo teria admirado o sistema presidiário comunista.

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Nesse ínterim perdi a licença que tinha para pregar. Fui posto numa lista negra e
passei a ser constantemente seguido e vigiado. Algumas vezes ainda preguei em casas
de amigos que não ligavam ao perigo que isso representava, pelo que não fiquei
surpreendido quando, algum tempo depois de terem começado as negociações secretas
para a minha partida rumo ao Ocidente, um estranho convidou-me a ir à sua casa. Deu-
me o seu endereço, não declinando o seu nome. Quando o procurei, estava sozinho.
"Quero prestar-lhe um serviço", disse-me. Reconheci que era um agente da
polícia secreta. "Um amigo meu diz que os dólares para o senhor foram recebidos.
Provavelmente o senhor gostaria de deixar logo o país. O meu amigo está preocupado.
O senhor é um homem que fala com franqueza e acaba de sair da prisão. Eles pensam
que seria melhor o senhor ficar detido por um pouco mais, ou um membro de sua
família permanecer aqui como fiador de sua boa conduta. Naturalmente sua soltura será
incondicional". Não lhe garanti nada. Eles tinham os dólares que deviam ser suficientes.
Organizações cristãs do Ocidente haviam pago 2.500 libras pelo meu resgate.
Negociantes recebem dinheiro estrangeiro e isso ajuda o orçamento da República
Popular. Os romenos gostam de pilheriar, dizendo: "Venderíamos o Primeiro Ministro,
se alguém quisesse comprá-lo". Vendem-se judeus a Israel a 1.000 libras por cabeça,
membros da minoria germânica à Alemanha Ocidental, armênios à América. Cientistas,
médicos e professores custam umas 5.000 libras cada um.
A seguir, fui chamado à repartição da polícia. Um dos funcionários disse-me:
"Seu passaporte está pronto. Pode ir quando quiser e para onde quiser e pode pregar
quanto queira. Só não fale contra nós. Atenha-se ao Evangelho. Do contrário, será
reduzido para sempre ao silêncio. Podemos alugar um ”gangster" que se encarregará
disso por 1.000 dólares, ou o traremos de volta para cá, como já fizemos com os outros
traidores. Podemos aniquilar sua reputação no Ocidente; para isso inventaremos um
escândalo em que dinheiro ou sexo esteja envolvido". Disse-me que eu podia sair. Era
essa a minha liberdade incondicional.
Vim para o Ocidente. Médicos examinaram-me. Um deles me disse: "O senhor
está todo crivado que só peneira". Não conseguia acreditar que os meus ossos se
tivessem restabelecido e a minha tuberculose se houvesse curado sem cuidados
médicos. "Não me fale em tratamento", disse-me. "Fale isso com Aquele que o manteve
vivo e no Qual eu não creio".
Começava o meu novo pastorado em favor da igreja subterrânea - igreja secreta.
Encontrei-me com amigos de nossa Missão Escandinava, na Noruega. Pregando lá, uma
senhora do banco da frente começou a chorar. Depois me disse que fazia anos lera a
notícia da minha prisão, e desde aquele tempo vinha orando por mim. "Vim hoje à igreja
sem saber quem ia pregar", disse ela. "Enquanto ouvia, descobri quem era o pregador e
chorei". Vim a saber que milhares de pessoas estiveram orando por mim, como oram
ainda pelos que estão nas cadeias comunistas. Crianças, a quem eu nunca vira,
escreviam-me, dizendo: "Por favor, venha à nossa cidade; as nossas orações a seu favor
foram respondidas".
Em igrejas e universidades, por toda a Europa e na América, encontrei pessoas
que, apesar de muitas vezes profundamente comovidas com o que eu dizia, não criam
que um perigo realmente as ameaçava. "O Comunismo aqui seria diferente". Na
Romênia também pensávamos assim, na época em que o Partido era insignificante. O
mundo está cheio de pequenos partidos comunistas, que estão à espreita. Com um tigre
novo a gente pode brincar: crescendo, ele nos devora.

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Defrontei líderes da Igreja no Ocidente que me aconselharam a pregar o
Evangelho e a evitar ataques ao Comunismo. Esse conselho também recebi da polícia
secreta de Bucareste. O mal, todavia, deve ser chamado pelo seu próprio nome. Jesus
disse aos fariseus que eles eram "víboras" e por isso, e não por causa do Sermão do
Monte, é que foi crucificado.
Denuncio o Comunismo porque amo os comunistas. Podemos odiar o pecado
enquanto amamos o pecador. Sobre os crentes pesa o dever de conquistar as almas dos
comunistas, e se falharmos nisto eles cairão sobre o Ocidente e daqui, de igual modo,
arrancarão o Cristianismo pelas raízes. Os chefes vermelhos são infelizes e desgraçados.
Podem ser salvos, e o modo de Deus agir com esta finalidade é enviar um homem. Ele
próprio não foi tirar os israelitas do Egito, mas para isso destinou Moisés. É assim que
nos cumpre ganhar para Deus líderes comunistas em todas as esferas - no campo das
artes, das ciências e da política. Conquistando os que possam modelar a mente dos
homens atrás da Cortina de Ferro, poderemos ganhar os povos que eles dirigem e sobre
os quais exercem influência.
A conversão de Svetlana Stalin, filha única do maior assassino de cristãos em
massa, uma alma criada na mais rigorosa disciplina comunista, prova que há uma arma
contra o Comunismo mais poderosa do que bombas atômicas: é o amor de Cristo!

RlCHARD WURMBRAND

PRIMEIRA PARTE

A primeira metade da minha vida terminou em 29 de Fevereiro de 1948.


Caminhava eu sozinho por uma rua de Bucareste quando um carro Ford, de cor preta,
parou de súbito do meu lado e dois homens pularam de dentro. Pegaram-me pelos
braços e empurraram-me para o assento traseiro do veículo, enquanto um terceiro, ao
lado do motorista, ficou apontando uma pistola para mim. O carro disparou, passando
pelo meio das poucas viaturas em trânsito naquela manhã de domingo. Depois, numa
rua chamada Calea Rahova, viramos e entramos por um portão de aço. Ouvi seu ruído
forte ao fechar-se atrás de nós.
Meus seqüestradores pertenciam à Polícia Secreta Comunista. Era ali a sede
deles. Uma vez lá dentro, os meus documentos e mais pertences, gravata, cordões dos
sapatos e por fim o meu próprio nome foram arrebatados de mim. "De agora em diante",
disse-me o oficial de serviço, "o seu nome será Vasile Georgescu".
Era um nome comum. As autoridades não queriam nem que os guardas
soubessem a quem eles estavam vigiando, no caso de circularem indagações lá de fora,
onde eu era bem conhecido. Eu tinha de desaparecer, como tantos outros, sem deixar
rastro.
Calea Rahova era um presídio novo e eu era o seu primeiro preso. A experiência
de prisão, entretanto, para mim não era novidade. Durante a guerra, eu havia sido preso
pelos fascistas que dominavam na época de Hitler e outra vez quando os comunistas
assumiram o poder. No alto da parede de concreto da cela havia uma janelinha; no piso,
duas camas de tábuas e o costumeiro balde em um canto. Sentei-me a esperar pelo
interrogatório, sabendo as perguntas que iriam fazer-me e as respostas que lhes deveria
dar.

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Conheço bastante o que é medo, mas naquele momento não senti nenhum.
Aquela prisão e tudo quanto a ela se seguiu, era a resposta a uma oração que eu fizera,
esperando que iria dar novo sentido à minha vida passada. Não sabia que coisas
estranhas e maravilhosas estavam reservadas para mim.
Meu pai tinha em casa um livro que orientava os jovens na escolha de
profissões, como a de advogado, médico, oficial do exército e outras. Certa vez, quando
eu tinha uns cinco anos, ele trouxe-nos o livro, perguntando aos meus irmãos o que eles
queriam ser. Depois de terem feito sua escolha, meu pai voltou-se para mim, que era o
caçula. "E você, Richard, que deseja ser?" Olhei mais uma vez para o título do livro -
"Guia Geral de Profissões" - e fiquei pensando. Depois respondi: "Quero ser um Guia
Geral".
Cinqüenta anos se passaram, quatorze dos quais em prisão e tenho pensado
muitas vezes naquelas palavras. Dizem que bem cedo na vida é que fazemos nossas
escolhas. Não conheço nada que melhor defina meu presente trabalho do que esse título
de "guia geral". Entretanto, a idéia de me tornar um pastor cristão estava muito longe de
mim e dos meus pais, que eram judeus. Meu pai morreu quando eu tinha nove anos e a
nossa família sempre sofreu penúria de dinheiro e de alimento. Um senhor, certa vez,
ofereceu-se para me comprar uma roupa. Quando fomos à loja e o vendedor apresentou
uma das melhores o homem disse: "Esta é boa demais para um menino como este".
Parece que ainda escuto sua voz. Meu estudo em escola foi deficiente, porém
tínhamos em casa muitos livros. Antes dos dez anos eu já os havia lido, tornando-me tão
cético quanto Voltaire, a quem admirava. Não obstante isso, a religião me interessava.
Assistia a rituais em igrejas ortodoxas e católico-romanas e, certa vez, numa
sinagoga, vi um conhecido a orar por sua filha enferma. Ela morreu no dia seguinte e eu
perguntei ao rabino: "Qual é o Deus que não ouviria uma oração como aquela,
desesperada?" Ele não me deu resposta. Não podia eu crer em um ser Todo-Poderoso
que deixava tanta gente a padecer fome e a sofrer, e menos ainda que ele tivesse posto
na terra um varão de tanta bondade e sabedoria como Jesus Cristo.
Cresci e entrei para o mundo dos negócios de Bucareste. Estava me saindo bem,
e antes dos vinte e cinco anos tinha bastante dinheiro para gastar em bares e cabarés
luxuosos, com as meninas da "Pequena Paris", como chamavam àquela capital. Não
ligava ao que acontecesse, contanto que minha sede de novas sensações fosse aplacada.
Levava uma vida que muitos invejavam, mas que, no entanto, deixava-me em grande
aflição mental. Sabia que tudo aquilo era falso e que eu estava jogando fora, como lixo,
algo em mim que era bom e que podia ser usado. Embora estivesse certo de que não
existia Deus, ansiava em meu coração que fosse de outro modo e que houvesse uma
razão para a vida no universo.
Certo dia, eu fui a uma igreja e fiquei com outras pessoas diante de uma imagem
da Virgem. Elas rezavam e eu tentei acompanhá-las, dizendo: "Ave Maria, cheia de
graça..." mas sentia um vazio dentro de mim. Eu disse à imagem: "De fato, és como
pedra. Tantos a pedir e nada tens para eles".
Depois que me casei continuei a andar atrás de outras moças. Prossegui na caça
de prazeres, mentindo, trapaceando, sem refletir em nada, prejudicando outros até que,
aos vinte e sete anos, tais excessos, combinados com as privações de outros tempos,
acabaram levando-me à tuberculose. Naquela época essa era uma moléstia perigosa,
chegando eu a ponto de me ver às portas da morte. Tive medo. Em um sanatório do
interior repousei pela primeira vez em minha vida. Deitado, punha-me a olhar as árvores
lá fora e me recordava de fatos passados. Estes se apresentavam a mim como que em
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angustiantes cenas teatrais: minha mãe chorando por mim; minha esposa também
chorando; e tantas jovens indefesas igualmente em pranto. Eu as havia seduzido e
difamado, ridicularizado e enganado, não passando de um impostor. Deitado ali, as
lágrimas me vieram aos olhos.
Naquele sanatório orei pela primeira vez em minha vida, a oração de um ateu.
Disse algo como o seguinte: "Deus, sei que Tu não existes. Mas, se por acaso existes, o
que eu nego, cabe a Ti que Te reveles a mim; não sou eu que tenho o dever de procurar-
Te".
Toda a minha filosofia até aí tinha sido materialista, porém meu coração não se
satisfazia com ela. Teoricamente cria que o homem não passava de matéria e que,
morrendo, decompunha-se em sais e minerais. Havia, no entanto perdido meu pai e
assistido a outros funerais, e jamais podia pensar nos mortos senão como pessoas. Quem
pode pensar que um filho seu, morto, ou esposa seja um amontoado de minerais? São
sempre as pessoas queridas o que temos em mente. Pode nossas mentes iludir-se de tal
forma?
Meu coração estava pleno de contradições. Passara horas em lugares barulhentos
de distração, entre jovens semi-nuas e música excitante, porém gostava também de
passear sozinho nos cemitérios, algumas vezes em época de inverno, quando os túmulos
se cobriam de neve pesada. Dizia a mim mesmo: "Um dia também serei defunto e a
neve me cobrirá a sepultura, enquanto os vivos estarão rindo, a gozar a vida. Não me
será possível participar das suas alegrias. Nem chegarei, a saber, quais serão elas.
Simplesmente não existirei mais. Depois de breve tempo ninguém mais se lembrará de
mim. Assim, pois, qual é a vantagem destas coisas?”.
Considerando os problemas sociais e políticos, pensava que talvez um dia a
humanidade encontraria um sistema que proporcionasse liberdade, segurança e saúde a
todos. Quando todos estão felizes, ninguém quer morrer. O simples pensamento de que
um dia deixará sua feliz vida pode fazê-los mais infelizes do que nunca. Recordava-me
de haver lido que Krupp, o homem que se tornou milionário com a invenção de armas
mortíferas e se horrorizava com a morte. Não permitia a ninguém que pronunciasse a
palavra "morte" em sua presença. Divorciou-se da esposa porque esta lhe contara a
morte de um sobrinho. Tinha ele tudo, porém era infeliz sabendo que a felicidade não
podia durar muito, teria de deixá-la para trás e ir apodrecer numa sepultura.
Conquanto tivesse lido a Bíblia pelo seu valor literário, minha mente fechava-se
no ponto que os adversários provocaram a Cristo: "Se és filho de Deus, desce da cruz".
Ao invés disso, Ele morreu. Pareceu isso provar que os Seus inimigos tinham razão, e
não obstante sentia que meus pensamentos se dirigiam espontaneamente a Cristo. Dizia
a min mesmo: "Gostaria de poder encontrá-lo e com Ele conversar". Todos os dias
minha meditação encerrava-se com este pensamento.
Havia no sanatório uma senhora que não se afastava do seu quarto, tão grave era
o seu estado de saúde. De algum modo ouviu falar a respeito de mim e mandou-me um
livro sobre os Irmãos Ratisbona, fundadores de uma ordem cujo objetivo era a
conversão de judeus. Outros tinham estado orando por mim, também judeu, enquanto
desperdiçava minha vida.
Após alguns meses em tratamento, obtive ligeira melhora, e fui convalescer
numa aldeia, situada num monte onde me tornei amigo de um velho carpinteiro. Certo
dia ele me deu uma Bíblia. Não era uma Bíblia como outras o que depois vim a saber,
pois ele e a esposa haviam passado horas sobre ela a orar por mim.

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Ficava eu deitado no sofá, em minha casa de campo, a ler o Novo Testamento, e
à medida que os dias iam passando Cristo me parecia tão real como o era a senhora que
me levava as refeições. Nem todos, porém que reconhecem Cristo se salvam. Satanás
também crê, e não é crente. Eu disse a Jesus: "Nunca terás a mim como discípulo. O que
eu quero é dinheiro, é viajar, é gozar. Já sofri bastante. O teu caminho é o da Cruz, e
ainda que seja o caminho da verdade, não te seguirei". Sua resposta veio-me à cabeça
com a força de argumento: "Venha comigo por este caminho! Não tema a Cruz! Você
verá que isto será o maior gozo".
Continuei lendo e outra vez as lágrimas me vieram aos olhos. Não podia deixar
de comparar a vida de Cristo com a minha; Seu modo de ver as coisas era tão puro; o
meu tão viciado. Sua natureza era tão desprendida e altruísta; a minha tão voraz e
cobiçosa. Seu coração era tão cheio de amor; o meu tão cheio de rancor. Minhas velhas
certezas começaram a desmoronar-se em face desta sabedoria e veracidade. Cristo
sempre apelara às profundezas do meu coração, a que minha consciência não tinha
acesso, e agora dizia eu a mim mesmo: "Se eu tivesse a mente que Ele tem, poderia
firmar-me nas conclusões dela". Eu era como o homem do velho conto chinês, a
caminhar penosamente e exausto debaixo de uma soalheira, chegando por fim a um
grande carvalho, em cuja sombra repousou. "Que felicidade foi a chance de encontrar-
te!" A que o carvalho respondeu: "Não foi chance nenhuma. Eu estava esperando você
aqui há 400 anos". Cristo esperara por mim toda a minha vida. E agora se dava o nosso
encontro.
Essa conversão ocorreu seis meses após meu casamento com Sabina; moça que
nunca tivera um lugar no pensamento para coisas espirituais. Foi um golpe terrível para
ela. Era uma jovem formosa, que na infância passara por tantas privações. Esperava
agora que uma vida mais feliz começasse. E eis que o homem a quem amava, seu
companheiro de prazeres, transformava-se num crente devoto a lhe falar em ser pastor.
Mais tarde confessou-me que tivera até pensado em suicidar-se.
Certo domingo, quando me propunha a assistir a um culto vespertino, ela
desatou em prantos. Dizia desejar ir ver um filme. "Está bem", disse-lhe eu. "Iremos -
porque amo você". Andamos de cinema em cinema e escolhi o filme que parecia mais
sugestivo. Quando saímos, levei-a a um bar, onde ela se serviu de bolo de creme. Então
eu disse: "Agora vá para casa dormir. Preciso procurar uma garota e levá-la a um hotel".
- Que você está dizendo? (ela perguntou)
- Falei bem claro. Você vá para casa. Vou procurar uma jovem para levá-la a um
hotel".
- Como é que você diz uma coisa desta?
- Ora, você me fez ir ao cinema, onde viu como foi que o herói procedeu - por
que não devo fazer o mesmo? Se amanhã e nos dias seguintes voltarmos a ver filmes
dessa ordem... qualquer homem acaba fazendo o que vê lá; mas se você quer que eu seja
bom marido, vá à igreja comigo algumas vezes.
Ela refletiu. Depois, calma e sossegadamente começou a ir sempre mais à igreja.
Mas ainda suspirava pela vida alegre e quando queria ir a alguma parte, eu a
acompanhava. Certa noite fomos a uma festa de muita bebedeira. O ar estava cheio de
fumaça. Casais dançavam e se entregavam abertamente as carícias do amor. De repente
minha esposa se aborreceu com tudo aquilo, e disse: "Ah, vamos embora! E já!".
Perguntei: "Por quê? Chegamos ainda há pouco". Ficamos até à meia-noite.
Outra vez ela quis ir para casa, e outra vez recusei. Repetiu-se isso a 1 hora da

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madrugada. E outra vez às 2 horas. Quando vi que ela estava completamente enjoada,
concordei em sair.
Viemos para o ar puro. Sabina disse: "Richard! Vou diretamente à casa do pastor
para que ele me batize. Será como tomar um banho depois de toda aquela sujeira". Ri e
observei: "Você já esperou tanto. Pode aguardar agora que o dia amanheça. Deixe o
pobre pastor dormir".
Toda a nossa vida mudou. Antes, brigávamos por ninharias. Um divórcio não
estaria fora de cogitação, se ela interferisse em minha vida de prazeres. Nasceu-nos um
filho. Mihai foi um presente de Deus, porque nos primeiros tempos não queríamos um
menino, o qual podia embaraçar nossos divertimentos. Sentimo-nos felizes quando o
Rev. George Stevens, presidente da Missão da Igreja da Inglaterra em Bucareste,
convidou-me para servir como secretário da mesma. Fiz o que pude para acomodar
meus instintos de comércio, porém surgiu uma dificuldade quando persuadi um agente
de seguros a aceitar um suborno em troca do arquivamento de uma exigência que ele
fazia da Missão. Para surpresa minha, o Sr. Stevens parecia não entender o arranjo
proposto por mim. "Mas, quem é que está com a razão?" perguntou. "A Companhia, ou
nós?" Respondi que de fato a exigência tinha sua razão. "Então devemos pagar",
acrescentou ele, dando por encerrada uma barganha que para mim era vantajosa.
Em 1940 as relações entre a Romênia e a Inglaterra foram suspensas. O Clero
inglês teve de deixar o país. Como não houvesse outra pessoa, tive de assumir o
trabalho da igreja.
Aprendi por mim mesmo a pregar, ordenando-me pastor luterano. Eu tinha
considerado as denominações rivais, existentes na Romênia. A igreja ortodoxa, à qual
pertenciam quatro de cada cinco pessoas, parecia muito afeiçoada a pompas externas.
Senti a mesma coisa com relação ao ritual católico: um domingo de Páscoa, depois de
ouvir sentado toda a liturgia em latim e uma alocução política feita pelo bispo, saí sem
ouvir sequer, em minha própria língua, que Cristo ressuscitou dos mortos. Atraíam-me
os cultos protestantes, mais simples, em que o sermão, pelo qual se podia ensinar e
apresentar uma festa para gozo do espírito, era a parte central. E depois, sem a
grandiosidade que lhe fora peculiar, eu tinha certa afinidade espiritual com Martin
Lutero. E assim me tornei luterano.
Sempre tive minhas cautelas com o pessoal do clero, e acima de tudo com
aqueles que me perguntassem se eu estava "salvo". Agora, se bem que não usasse veste
clericais, tinha o impulso irresistível de encerrar o mundo inteiro em minha paróquia.
Não podia fazer muitas conversões. Conservava comigo uma lista dos componentes de
minha congregação e quando num ônibus e em salas de espera, puxava-a do bolso e me
perguntava o que cada um estaria fazendo naquele momento. Se algum deles desertava,
eu ficava prostrado em angústia durante horas. Era um sofrimento físico, como se um
punhal me atravessasse o peito. Pedia a Deus que me livrasse daquilo. Não podia
continuar assim.
As condições de Stalin para auxílio econômico a Hitler durante a guerra
incluíam a partilha da Europa Oriental. Um terço de nosso território nacional foi divido
entre a Rússia, a Bulgária e a Hungria. A influência nazista apoiou a expansão de um
movimento denominado "Guarda de Ferro", cujos membros procuravam utilizar-se da
igreja ortodoxa, para fins de terrorismo político. Na noite antes do assassinato do
Primeiro Ministro Calinescu, seu principal opositor, nove fanáticos passaram horas
prostrados no chão de uma igreja, seus corpos dispostos na forma de cruz. Depois disso,
a Guarda de Ferro prestou auxílio ao protegido de Hitler, General lon Antonescu, para a

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conquista do poder. O rei Carol foi forçado a abdicar em favor do seu jovem filho
Miguel, em cujo nome Antonescu governou como ditador.
Agora a Guarda de Ferro tinha carta branca para agir com judeus, comunistas e
protestantes. Assassinatos eram perpetrados nas ruas. Nossa Missão foi acusada de
traição. Todos os dias eu recebia ameaças. Certo domingo, do púlpito, vi um grupo de
homens, vestindo a camisa verde da Guarda de Ferro, enchendo silenciosamente os
últimos bancos da igreja. A congregação, de frente para o altar, não se apercebia dos
intrusos, mas eu os vi empunhando revólveres. Eu pensava: se este vai ser meu último
sermão, deverá ser bom mesmo.
Falei sobre as mãos de Jesus. Disse como haviam enxugado lágrimas, pego em
crianças e alimentado famintos. Haviam curado enfermos, foram pregadas na cruz e
abençoaram os discípulos antes que Ele subisse ao céu. Depois ergui a voz, "Mas quanto
a vós outros? Que tendes feito com as vossas mãos?" A congregação olhava com
espanto. Todos seguravam seus livros de orações. Trovejei, "Vós estais matando,
espancando e torturando pessoas inocentes! Chamais a vós mesmos cristãos? Limpai as
mãos, pecadores!".

Os homens da Guarda de Ferro pareciam cheios de furor. Apesar disso não


cuidaram de interromper o culto. Levantaram-se de revólveres nas mãos enquanto elevei
uma oração e impetrei a bênção, depois do que os assistentes começaram a sair. Quando
quase todos se tinham retirado sem novidade, desci do púlpito e passei por trás de uma
cortina. Antes que eu atravessasse uma portinhola, fechando-a a chave, ouvi rumor de
passos apressados e gritos: "Onde está Wurmbrand? Vamos a ele!". Aquela passagem
secreta tinha sido construída muitos anos antes. Através de corredores ganhei a rua ao
lado, e assim escapei.
Com o prosseguimento da guerra, muitas pessoas das minorias cristãs:
adventistas, batistas, pentecostais; foram massacradas ou levadas para campos de
concentração com os judeus. Toda a família de minha esposa desapareceu; nunca mais
os vi. Fui detido pelos fascistas em três ocasiões; processado, interrogado, espancado e
preso. Deste modo fiquei bem preparado para o que havia de vir sob o domínio
comunista.
Através da janela da prisão em Calea Rahova podia ver um canto do pátio. Um
dia, enquanto olhava, um clérigo deu entrada pelo portão. Caminhava a passos rápidos
pelo asfalto, penetrando numa porta: era um informante, que ia dar relatório de sua
congregação.
Eu sabia que me aguardavam interrogatórios, maus-tratos, possivelmente anos
de prisão e morte, e não sabia se minha fé seria bastante forte. Lembrava-me então que
na Bíblia está escrito 366 vezes: uma para cada dia do ano; "Não temas!" Trezentos e
sessenta e seis vezes e não somente trezentos e sessenta e cinco, para que não se
excluam os anos bissextos. E o que me aconteceu foi em 29 de fevereiro; coincidência
que me dizia não precisar ter medo!
Os interrogadores não se mostravam impacientes por me ver, porque as prisões
comunistas assemelham-se a arquivos, cujas gavetas se puxam à medida que alguma
informação se torne necessária. Fui interrogado repetidas vezes durante todos os
quatorze anos e meio que passei preso. Sabia que aos olhos do Partido minhas ligações
com as missões da igreja ocidental e com o Concílio Mundial de Igrejas eram
traiçoeiras, desleais, mas havia muito mais coisas de importância que eles não sabiam e
que de mim não deviam ouvir.
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Havia-me preparado para prisão e torturas, como um soldado que em tempo de
paz se prepara visando as cruezas da guerra. Estudara as vidas de cristãos que tinham
enfrentado iguais sofrimentos e tentações para que se entregassem, e pensava como era
que eu podia acomodar-me às experiências deles. Muitos que não se prepararam assim
foram esmagados pelo sofrimento ou foram seduzidos a dizer o que não deviam. Os
interrogados sempre diziam a clérigos: "Como cristãos vocês devem prometer dizer a
nós toda a verdade sobre tudo". De minha parte, visto como tinha certeza de que me
dariam como culpado fosse o que fosse que eu dissesse, decidi que sob torturas
incriminaria a mim mesmo e nunca trairia amigos que me haviam ajudado a divulgar o
Evangelho. Assim, fiz o plano de deixar meus inquiridores ainda mais confusos no final
de suas investigações do que no princípio. Queria desnorteá-los por completo.
Minha primeira tarefa era conseguir de algum modo mandar aviso aos meus
colegas e à minha esposa sobre o lugar em que me encontrava. Pude peitar um guarda
para que se fizesse intermediário, porque naquele tempo minha família ainda tinha
dinheiro. Ele recebeu umas 500 libras para levar recados nas poucas semanas que se
seguiram. Depois, tudo quanto era nosso foi tomado.
O guarda levou-me a notícia de que o Embaixador da Suécia havia protestado
contra o meu desaparecimento, dizendo que eu tinha na Escandinávia e na Inglaterra
muitos que me queriam bem. A Sra. Ana Pauker, Ministra do Exterior, respondeu que
nada se sabia do meu paradeiro, visto que eu deixara o país ocultamente fazia já algum
tempo. O Embaixador, na qualidade de emissário neutro, pôde a custo exercer maior
pressão, no fim de tudo perante a Sra. Pauker, mulher à frente da qual homens fortes se
acovardavam. Eu a avistara antes e cheguei a conhecer o seu pai, um clérigo de nome
Rabinovici, que me declarou com tristeza: "Ana tem o coração vazio de piedade por
tudo quanto é judaico". Estudou medicina, depois passou a ensinar na Missão da Igreja
Inglesa antes de abraçar o Comunismo e de se casar com um engenheiro das mesmas
idéias, chamado Mareei Pauker. Ambos foram presos por conspiração, porém ela se
mostrava partidária mais violenta. Foi residir em Moscou e Mareei acompanhou-a, com
pouco entusiasmo. Em um dos expurgos promovidos por Stalin antes da guerra, ele foi
executado: fuzilado, como se disse, pela mão da própria esposa, sendo que poucos
punham em dúvida esta versão. Ana só exteriormente era mulher: intimamente era como
Lady Macbeth: "cheia, da coroa à ponta dos pés, da mais terrível crueldade". Depois de
passar os últimos tempos da guerra como cidadã soviética em Moscou, no posto de
oficial do Exército Vermelho, voltou a exercer o cargo de Ministro do Exterior, para se
tornar dominadora na Romênia.
Tamanha era a sua lealdade à Rússia, que certo dia, sendo o tempo claro,
perguntou-lhe alguém por que andava em Bucareste com a sombrinha aberta, ao que ela
respondeu, segundo boatejavam: "Não ouviu você o aviso meteorológico? Está
chovendo grosso em Moscou".
Depois que um grupo de líderes políticos, chefiados pelo jovem Rei Miguel,
retirou corajosamente do poder o General Antonescu, dando assim por encerrada sua
parceria com a Alemanha, convocou-se uma reunião em Moscou para se decidir a
configuração do mundo de após-guerra. Churchill perguntou a Stalin: "Que tal você
predominar em 90 por cento da Romênia, cabendo a nós 90 por cento do direito de
opinar na Grécia?" E escreveu estas palavras numa folha de papel. Stalin fez uma pausa.
Depois, com um lápis azul, riscou um sinal grande no papel e passou-o para trás. Tropas
russas de um milhão de homens invadiram a Romênia. Eram estes os nossos novos
"aliados".

9
"Os russos estão chegando!" era uma frase que, para nós, não tinha nada de
engraçado. Os novos ocupantes tinham uma única idéia na vida: beber, roubar e saquear
os "capitalistas exploradores". Milhares de mulheres, de todas as idades e condições,
eram raptadas por soldados que invadiam suas casas. Homens eram roubados em via
pública, arrebatando-se deles novidades tais como bicicletas e relógios de pulso.
Quando pelo fuzilamento se restabeleceu a ordem no Exército Vermelho e as lojas
começaram a levantar suas persianas, as tropas visitantes ficavam admiradas diante dos
artigos expostos à venda e ainda mais quando vieram, a saber, que a maioria dos
fregueses era fazendeiros e operários de fábricas.
A capitulação, proclamada em 23 de agosto de 1944, ainda é celebrada todos os
anos como o dia da libertação da Romênia. De fato, usaram-se os seus termos para
espoliar o país de toda a sua marinha de guerra, a maior parte de sua frota mercante, a
metade da sua frota terrestre e todos os automóveis. Produtos de granjas, cavalos, gado
e todo o nosso estoque de óleo e petróleo eram desviados para a Rússia. Foi assim que a
Romênia, conhecida como celeiro da Europa, viu-se reduzida a uma área de fome.
No dia em que me converti, orei: "Ó Deus, eu era ateu. Deixa-me agora ir à
Rússia para trabalhar como missionário entre os ateus, e não reclamarei se depois tiver
de passar todo o resto da minha vida em prisão". Deus, no entanto não me levou a
empreender a longa viagem à Rússia. Ao invés disso, os russos vieram a mim.
Durante a guerra, a despeito da perseguição, os membros de nossa missão
aumentaram grandemente em número. Muitos dos que haviam atormentado judeus e
protestantes, agora adoravam ao lado de suas vítimas de antes.
Passada a guerra, continuou meu trabalho pelas missões da igreja ocidental. Tive
um gabinete equipado, secretárias; uma "frente" para a minha campanha. Falo bem o
russo. Era-me fácil conversar com soldados russos nas ruas, lojas e trens. Não usava
uniforme clerical, de modo que me supunham um cidadão vulgar. Os jovens,
especialmente, estavam desconcertados e saudosos do lar. Apreciavam que lhes
mostrássemos aspectos de Bucareste, bem como receber convites para visitar uma casa
de amigos. Nisto recebi auxílio da parte de muitos jovens crentes que também falavam
russo. Dizia eu às moças que elas podiam usar a sua beleza para ajudar a levar homens a
Cristo. Uma jovem viu um soldado sozinho num bar. Sentou-se ao seu lado e aceitou o
oferecimento que o rapaz lhe fez de um copo de vinho; depois sugeriu que saíssem para
alguma parte, onde pudessem conversar mais tranqüilamente. "Com você, em qualquer
parte!" disse o russo, e ela o levou à minha casa. O soldado converteu-se e levou outros
a ter contato conosco.
Secretamente publicamos o Evangelho em russo. Mais de 100.000 exemplares
foram distribuídos em bares, parques, estações ferroviárias, onde quer que se achassem
russos; isso durante mais de três anos. Eram passados de mão em mão, até que ficavam
amarrotados. Muitos de nossos auxiliares foram presos, porém nenhum deles me
denunciou.
Ficávamos admirados não tanto com o número de conversões, senão com a sua
naturalidade. Os russos ignoravam religião por completo, mas era como se no profundo
dos seus corações buscassem a verdade. Agora reconheciam-na com deleite. Na maioria
dos casos eram jovens camponeses, que tinham trabalhado na lavoura, plantando e
colhendo, e sentiam no íntimo que alguém põe a natureza em ordem. Contudo haviam-
se criado ateus e acreditavam que o eram, assim como tantos acreditam que são cristãos,
quando não o são.

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Encontrei um jovem pintor, oriundo do extremo da Sibéria, quando viajava de
trem. Falei-lhe de Cristo, no percurso da viagem. "Agora compreendo!" disse ele. "Eu
só conhecia o que nos ensinaram nas escolas, que a religião é um instrumento do
imperialismo, e assim por diante. Mas eu costumava andar em um velho cemitério perto
da minha casa, onde podia ficar só. Muitas vezes me dirigia a uma casa pequenina,
abandonada entre os túmulos". (Compreendi tratar-se de uma capela ortodoxa, do
cemitério). "Na parede havia a pintura de um homem pregado a uma cruz. Pensava eu,
Ele deve ter sido um grande criminoso, para receber tal castigo". Mas, se foi um
criminoso, por que seu retrato haveria de ser colocado num lugar de honra - como se
fosse Marx ou Lênin? Conclui que a princípio o tiveram por criminoso, e que depois o
acharam inocente, e assim, tocados de remorso, expunham daquele modo a sua
“gravura”.
Eu disse ao pintor: "Você está a meio-caminho da verdade". Quando chegamos
ao nosso destino, horas depois, ele sabia tudo quanto lhe pude dizer de Jesus. Ao nos
separarmos, ele disse: "Planejava roubar algumas coisas esta noite, como todos
fazemos. Mas agora poderei fazer isso? Creio em Cristo".
Também trabalhamos entre comunistas romenos. Todo livro tinha de passar pela
censura deles. Apresentávamos obras que levavam no frontispício o retrato de Karl
Marx. Poucas das primeiras páginas repetiam os argumentos dele e os de Lênin contra a
religião. O censor não ia além daí, o que era bom, visto como o restante do livro era
cem por cento cristão. O censor gostou de outro dos nossos títulos: "Religião, ópio do
povo". Diante de pilhas de livros, velhos e novos para ler, não se dava ao trabalho de
olhar por dentro, onde encontraria só argumentos cristãos. Algumas vezes um censor
deixava passar qualquer coisa em troca de uma garrafa de aguardente.
O número de comunistas romenos havia crescido, passando de poucos milhares
para milhões, porque um cartão do Partido podia significar a diferença entre comer e
passar fome. Stalin instalara um governo de "frente unida", de sua própria escolha,
tendo a dirigi-lo o líder da "Frente de Lavradores", de nome Groza. À parte Ana Pauker,
que segundo se dizia "inventara" Groza, o poder dos russos era exercido mediante três
veteranos camaradas do Partido: Lucretiu Patrascanu, nomeado Ministro do Interior
assumiu o comando da polícia e da "segurança", e Gheorghe Gheorghiu Dej, um rijo
ferroviário, que era o Primeiro Secretário do Partido.
Assisti, na qualidade de observador, a uma reunião de padres ortodoxos, onde
Gheorghiu Dej falou, depois que os comunistas assumiram o poder. Jovial e atarracado
assegurou a todos estar preparado a "perdoar e esquecer". Apesar das muitas ligações da
igreja deles, no passado, com a Guarda de Ferro e outras organizações de ala-direita, o
Estado ia continuar a pagar-lhes salários, como antes. Suas observações finais, acerca da
identidade dos ideais cristãos e dos comunistas, mereceram aplausos.
Em ocasiões informais Gheorghiu Dej foi franco em declarar seu ateísmo e sua
convicção de que o Comunismo se propagaria pelo mundo inteiro e, no entanto falava
com indulgência a respeito de sua velha mãe, que enchia o lar dele de ícones e criou as
filhas como fiéis ortodoxas. Durante onze anos de prisão sob o velho regime, Dej tivera
tempo de estudar a Bíblia e discutir religião com muitos secretários aprisionados, aos
quais expressava simpatia. Fugindo da prisão pouco antes da chegada dos russos, teria
sido capturado e morto pelo ditador Antonescu, se não tivesse sido protegido por um
padre amigo. Todavia, se a religião chegou a tocar sua vida nos dias de luta, nenhum
lugar havia para ela agora que ele estava por cima. A esposa, que por tanto tempo
esperara pelo seu retorno, foi desprezada, tomando-lhe o lugar uma estrela de cinema. A

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casa vivia cheia de serventes e pessoas envolvidas em processos judiciais; Dej era rico e
famoso, e nenhuma disposição tinha para ouvir a quem quer que fosse.
Quando alguém dirigiu a conversação, na reunião que teve com os padres,
levando-a para o terreno espiritual, ele replicou com os argumentos normais do Partido.
Assegurou-nos que todos íamos ter completa liberdade de consciência na nova
Romênia, e em troca meus colegas prometeram não causar nenhuma perturbação ao
Estado. Eu ouvia e guardava comigo minhas restrições. Muitos padres sobressaíram-se
naquela reunião como campeões do modo comunista de vida, mas cedo ou tarde
tropeçaram em alguma doutrina do Partido e acabaram sendo presos.
A campanha para minar a religião progrediu com rapidez. Todos os fundos e
propriedades da igreja foram nacionalizados. Um Ministro de Cultos comunista
controlava completamente o clero, pagando-lhes salários e sancionando nomeações. O
ancião Patriarca Nicodim, um recluso virtual, foi aceito como figura-de-proa dos
ortodoxos, mas o Partido precisava de um instrumento mais dócil, e Dej conhecia o
homem adequado: o padre que o havia escondido dos fascistas um ano antes. E assim
foi que o padre Justiniano Marina, obscuro professor de seminário, provindo de
Rimincul Vilcea, foi feito bispo. Em breve todos os quatorze milhões de romenos
ortodoxos, freqüentadores da igreja, vieram a saber que ele era o seu Patriarca só no
nome.
A tarefa seguinte foi separar os católicos romanos dos católicos gregos, dos
quais havia dois milhões e meio. Os católicos gregos, comumente chamados Uniatas,
embora guardem muitas tradições propriamente suas (inclusive o direito que os padres
têm ao casamento), aceitam a supremacia do Papa. Eram agora assaltados e à força se
uniram à obediente Igreja Ortodoxa. A maioria dos padres e todos os bispos que se
opuseram a esse consórcio forçado, foram presos, suas dioceses foram abolidas e
confiscadas suas propriedades. Os católicos romanos, que receberam ordem de romper
com o Vaticano, recusaram-se. Estes igualmente pagaram caro por sua resistência. Com
os padres a encher os presídios e circulando pelo país inteiro, histórias sinistras do
tratamento que recebiam, as religiões minoritárias só fizeram baixar a cabeça e esperar o
desfecho da sua morte.
Não tiveram muito que esperar. Em 1945 um "Congresso de Cultos" foi
convocado para se realizar no edifício do Parlamento da Romênia, reunindo-se ali 4.000
representantes do clero, que lotaram o salão. Bispos, padres, pastores, rabinos e teólogos
muçulmanos aplaudiram quando foi anunciado que o Camarada Stalin (cujo retrato, em
tamanho grande, pendia da parede) era o patrono do congresso. Preferiam não se
lembrar que ele, ao mesmo tempo, era presidente da Organização Ateísta Mundial. O
velho e temente Patriarca Nicodim abençoou a assembléia e o Primeiro-Ministro Groza
abriu os trabalhos. Disse que ele mesmo era filho de um padre. Suas generosas
promessas de apoio, secundadas por outros personagens que falaram depois, foram
recebidas com reconhecimento e palmas.
Um dos principais bispos ortodoxos disse em resposta que no passado, muitos
riachos políticos haviam afluído para o grande rio de sua igreja: verdes, azuis, tricolores,
e agora ele saudava a perspectiva de que um vermelho viesse juntar-se àquele caudal.
Um líder calvinista, outro luterano e o Rabino Chefe, cada qual por sua vez, se
levantaram para falar. Todos manifestaram boa-vontade de cooperar com os comunistas.
Minha esposa, ao meu lado, não podia mais suportar. E disse: "Vai e lava esta vergonha
que atiram à face de Cristo!"
"Se eu fizer isso, você vai perder seu marido", respondi.

12
"Não quero ter por marido um covarde. Vá e fale", atalhou Sabina.
Pedi licença para falar e eles com prazer me convidaram à tribuna: os
promotores do Congresso esperavam publicar no dia seguinte um discurso de
congratulações do Pastor Wurmbrand, da Missão da Igreja da Suécia e do Concílio
Mundial de Igrejas.
Comecei com uma ligeira observação sobre o Comunismo. Disse que, como
clérigos, nosso era o dever de glorificar a Deus e a Cristo, e não aos poderes transitórios
do mundo, e a manter o seu reino eterno de amor contra as vaidades da hora presente. E
enquanto continuava, padres que durante horas estiveram sentados a ouvir lisonjas
mentirosas acerca do Partido, pareciam despertar de um sono. Alguém começou a bater
palmas. A tensão chegou ao máximo e eclodiu; aplausos ressoaram de súbito, onda após
onda, delegados levantando-se e dando vivas. O Ministro de Cultos, ex-padre ortodoxo,
de nome Burducea, que fora em outros tempos um fascista ativo, bradou da plataforma
que estava cassado o meu direito de falar. Respondi que esse direito eu o tinha da parte
de Deus, e continuei. Por fim desligaram o microfone, mas esse ponto o tumulto era tão
grande no salão, que ninguém podia ouvir mais nada.
Com isso deu-se por fim a sessão do congresso daquele dia. Ouvi que o Ministro
de Cultos tencionava cancelar minha licença de pastor e fui aconselhado a procurar
auxílio do influente Patriarca eleito. Depois de várias tentativas, consegui entrar em
contato com Justiniano, ao voltar ele de uma visita a Moscou, onde houvera grande
agitação a seu respeito. De barbas negras, sorridente, convencido de sua nova dignidade,
porém, não um insensato, era esse o homem que agora cuidava dos quatro quintos da
população que na Romênia freqüentava as igrejas. De repente decidi que poderia
empregar meu tempo com ele de melhor forma que conversando a respeito de meu
próprio caso. Disse então que, desde que fora promovido, fora objeto de minhas orações
constantes. A responsabilidade por quatorze milhões de almas devia na verdade ser uma
carga terrível para alguém levar. Devia ele sentir-se como Sto. Irineu, que chorou
quando o povo o fez bispo contra a sua vontade, dizendo: "Filhos, que fizestes - como
me poderei tornar o homem que este cargo exige? A Bíblia diz que o bispo deve ser
justo".

Enquanto eu falava, ele pouco dizia, mas depois que me retirei fez indagações
entre amigos sobre mim. Por certo não se falou mais na cassação de minha licença.
Posteriormente, quando fui detido pela polícia para um inquérito de seis semanas,
Justiniano esteve entre os que ajudaram a obter minha liberdade. Ainda depois me
convidou ao lashi, sede do seu episcopado, onde nos tornamos amigos. Era de espantar
sua ignorância da Bíblia, mas isso não era exceção entre os padres ortodoxos. Ouviu
com atenção quando lhe recordei a parábola do Filho Pródigo. Tomando suas mãos
entre as minhas disse-lhe que Deus recebia com prazer os desviados que voltavam,
mesmo que fossem bispos.
Outros crentes, além de mim, empregavam toda a sua influência sobre ele.
Começara já uma vida de oração e amor a Deus em vasta escala contra a religião, pelo
que o perdi de vista durante alguns anos.
A torrente do ateísmo avançava de par com a eliminação de partidos
oposicionistas, porque depois de Stalin haver conseguido tudo dos seus aliados do
tempo de guerra, as últimas reivindicações democráticas foram postas de lado. O grande
líder do Movimento Nacional Camponês da Romênia, Luliu Maniu, foi submetido a
julgamento com outras dezoito pessoas sob falsas acusações e, com a idade de mais de
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setenta anos, foi sentenciado a dez anos de prisão. Morreu na cadeia quatro anos depois.
No reinado de terror, que se seguiu, estima-se em uns 60.000 os "inimigos do Estado"
que foram executados.
Por ironia o Ministro da Justiça que presidiu todo esse expurgo, Lucretiu
Patrascanu, de quarenta e sete anos, recebera muito auxílio de Maniu na defesa de
comunistas perseguidos antes da guerra. Os dois também trabalharam juntamente com o
Rei Miguel no planejamento do armistício que Patrascanu depois assinou em Moscou,
em nome da Romênia. Uma vez Maniu reduzido ao silêncio, Patrascanu e outros líderes
do Partido forçaram nosso mui querido e jovem rei a abdicar.
Veio então a proclamar-se uma República Popular. Quem, no entanto seria o seu
líder? Não o títere Groza, por certo. Ana Pauker era detestada, até mesmo no Partido. Os
demais tinham desavença entre si. Muitos dos admiradores de Patrascanu viam nele um
comunista nacionalista que desviaria o país do extremismo Stalinista. Era um comunista
tipo "ocidental", oriundo de uma família proprietária de terras, e o melhor que se podia
dizer dele era que fora romeno antes de ser vermelho.
O problema da liderança foi assunto de vivos debates no Comitê Central do
Partido.
Minha vida como pastor, até esse tempo, havia sido plena de satisfação. Tinha
tudo quanto necessitava para a minha família. Gozava da confiança e do carinho dos
meus paroquianos. Mas não sentia paz. Por que me permitia viver como sempre, quando
uma ditadura cruel estava destruindo tudo quanto me era caro e quando outros sofriam
por sua fé? Muitas noites, eu e Sabina oramos pedindo a Deus que nos desse uma cruz
para levar.
Minha prisão, na ampla canoa que prosseguia por esse tempo, podia ser
considerada resposta à minha oração, porém jamais podia supor que o meu primeiro
companheiro de cela fosse o Camarada Patrascanu.
Quando a porta de minha cela em Calea Rahova se abriu, poucos dias depois de
minha chegada, para que entrasse o alto Ministro da Justiça, julguei a princípio que ele
ia interrogar-me na prisão. Por que teria eu tamanha honra? Mas logo a porta foi
trancada atrás dele: e mais era de estranhar, sua camisa estava aberta no pescoço, sem
gravata. Olhei para os seus sapatos muito polidos; nenhum cadarço. O segundo preso
em minha cela novinha em folha era o homem que levara o Comunismo ao poder em
nosso país.
Sentou-se na outra cama de tábuas e balançava os pés. Intelectual de
mentalidade rija, não iria permitir que a transformação de Ministro em pássaro
engaiolado afetasse a sua dignidade. Agasalhado em um dos nossos casacões, com que
nos protegíamos da friagem de março, começamos a conversar. Embora eu soubesse que
as suas doutrinas tinham esfrangalhado a justiça e causado tanta destruição, foi-me
possível apreciá-lo como homem e acreditar em sua sinceridade. Tinha ele em pouco
apreço sua prisão. Longe estava de ser aquele seu primeiro período de confinamento. Já
houvera sido dito várias vezes pelos governantes na Romênia de tempos idos. Parecia
que sua crescente popularidade havia unido os outros líderes do Partido contra ele. Num
congresso, poucos dias antes, fora denunciado como traidor burguês na luta de classes
pelo seu colega Teohari Georgescu, Ministro do Interior. Uma outra acusação, de ter
sido "possivelmente ajudado pelas potências imperialistas", fora apoiada por Vasile
Luca, Ministro das Finanças, que com ele estivera preso sob o antigo regime. As
acusações recebiam ênfase da parte de Ana Pauker, outra amiga sua de outrora.

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Vinham conspirando contra ele já por algum tempo, disse Patrascanu, mas um
incidente em particular denunciou-o como não-comunista. Perguntara ele a um dos
funcionários de Georgescu se havia verdade nos rumores de que prisioneiros estavam
sendo torturados. "Por que não?", respondeu o homem, da parte do Ministério. Tratava-
se de contra revolucionários que não mereciam piedade, especialmente quando se
negavam a prestar informações. Patrascanu ficou profundamente conturbado. Será então
este o pagamento, perguntou, de haverem lutado todos estes anos para levar o partido ao
poder? Seu protesto foi noticiado a Georgescu, seguindo-se a denúncia no Congresso.
"Ao deixar a sala", disse, "vi novo motorista a me esperar no carro, o qual me
observou", "Camarada Patrascanu, lonescu, seu chofer, adoeceu e levaram-no". Entrei
no carro, dois secretas subiram atrás de mim - e aqui estou!".
Tinha certeza de que em breve seria reconduzido ao seu posto, e quando a ceia
chegou, comecei a imaginar que isso bem que podia ser possível. Em lugar de cevadas
cozidas, trouxeram-lhe frango, queijo, frutas e uma garrafa de vinho branco do Reno.
Patrascanu sorveu um copo de bebida e afastou a bandeja, dizendo não estar com
apetite.
Enquanto eu procurava comer sem muita voracidade, ele foi contando histórias
divertidas. Uma foi em torno do senador suíço que desejava ser Ministro da Marinha.
"Mas não temos marinha nenhuma!" observou o Primeiro-Ministro. "Que importa?"
atalhou o senador. "Se a Romênia pode ter um Ministro da Justiça, por que não pode a
Suíça ter um Ministro da Marinha?" Patrascanu ria muito com esta anedota, apesar de
ridicularizar a "justiça" que ele havia implantado e da qual acabou sendo vítima.
Na manhã seguinte Patrascanu saiu escoltado da cela, supondo eu que para ser
interrogado. Voltou irritado à noite, dizendo que não estivera a responder perguntas, mas
a fazer uma preleção na universidade, onde ensinava Direito. O Partido queira que sua
prisão ficasse em sigilo por enquanto, e ele com trinta anos de disciplina comunista
atrás de si, tinha de curvar-se ao desejo deles. Conversava comigo porque com ninguém
mais, mesmo fora da prisão, podia falar. Revelar, mesmo que fosse à esposa, estar ele
"debaixo de inquérito", ou pedir conselho a alguém seria uma ofensa capital. Aquele
isolamento pesava-lhe no sistema nervoso, sendo esta mesma a sua finalidade. Só podia
abrir-se, ser autêntico, comigo, porque tinha razão de acreditar que nunca mais eu veria
o mundo exterior.
Relatando-me algo de sua vida primitiva, interessava-me ver que ele se tornara
comunista não por qualquer critério objetivo, mas em revolta contra tribulações de
outrora. Seu pai, cidadão abastado, defendera os alemães com entusiasmo na Primeira
Guerra Mundial, razão por que, com a vitória dos Aliados, toda a sua família sofreu
ostracismo. O jovem Patrascanu teve de ir para a Alemanha, a fim de receber educação
universitária, e, voltando, aderiu ao único partido político que lhe deu boas-vindas. Sua
primeira mulher, comunista, morreu num dos expurgos stalinistas. Casou-se de novo
com outro membro do Partido, acontecendo ser ela amiga de minha esposa, dos seus
tempos de escola.
Procurei mostrar-lhe a origem de suas convicções. "O senhor assemelha-se a
Marx e Lênin", disse eu, "cujas idéias e ações foram também o resultado de sofrimentos
do passado. Marx sentia em si algo de genial, mas sendo judeu e residindo na Alemanha
quando lá predominava o anti-semitismo, não podia dar vazão aos seus sentimentos
senão como revolucionário. O irmão de Lênin fora enforcado por atentar contra a vida
do imperador: ira e frustração levaram-no a querer subverter o mundo. Foi bem o que
aconteceu com o senhor".

15
Patrascanu rejeitava essa idéia. Seus nervos encontravam alívio em discussões
filosóficas contra a iniqüidade da igreja. Os calamitosos dias dos Papas Borgia, a
Inquisição Espanhola, a selvageria das Cruzadas, a perseguição movida a Galileu, tudo
isto vinha à tona da conversa.
"Mas são os crimes e erros da Igreja que nos fornecem muito mais o que admirar
nela", retorqui. Patrascanu ficou surpreso. "Que quer dizer com isso?"
Respondi: "Um hospital pode ter mal cheiro de pus e sangue; nisto reside sua
beleza, porque recebe doentes com as suas chagas repelentes e moléstias horríveis. A
Igreja é o hospital de Cristo. Milhões de pacientes nela se tratam, com amor. Ela aceita
pecadores, estes continuam pecando, e pelas transgressões deles a Igreja é censurada.
Para mim, por outro lado, a Igreja é qual uma mãe que se posta ao lado dos filhos, até
mesmo quando estes cometem crimes. A política e os preconceitos dos seus
serventuários são adulterações daquilo que nos vem de Deus, isto é, a Bíblia e seus
ensinos, o culto e os sacramentos. Sejam quais forem as suas faltas, a Igreja tem muita
coisa sublime em sí. O mar afoga milhares de pessoas cada ano, mas ninguém põe ,em
dúvida a sua beleza".
Patrascanu sorriu: "Eu podia alegar outro tanto em favor do Comunismo. Seus
praticantes não são perfeitos: há canalhas entre eles; mas isto não quer dizer que haja
erros em nossas teorias".
"Então julgue pelos resultados", atalhei, "como Jesus aconselhou. Ações
lamentáveis têm manchado a história da Igreja, contudo ela tem sido pródiga em amor e
cuidado pelo povo no mundo inteiro. Tem produzido uma multidão de santos, e tem a
Cristo, o maior de todos eles, como seu cabeça. Quem são os ídolos do senhor? Homens
como Marx, dado como ébrio pelo seu biógrafo Riazanov, diretor do Instituto Marx de
Moscou. Ou Lênin, cuja esposa nos conta ter sido ele jogador e cujos escritos destilam
veneno. "Por seus frutos os conhecereis". O Comunismo tem feito desaparecer milhões
de vítimas inocentes, tem levado países à bancarrota, tem enchido o ar de mentiras e
temor. Onde está o seu lado bom?"
Patrascanu defendeu "a lógica da doutrina do Partido". Respondi que as
doutrinas, como tais, nada significam. "O senhor pode cometer atrocidades dando-lhes
nomes bonitos. Hitler falava de uma luta pró Lebensraum (espaço vital) e trucidou
populações inteiras. Stalin disse:” Precisamos cuidar das pessoas como flores “, e matou
a esposa, a dele e a sua".
Patrascanu parecia incomodado, mas foi franco. "Nosso propósito de longo
alcance é comunizar o mundo. Poucos há que querem percorrer todo esse caminho
conosco, mas é-nos sempre possível achar alguns que se dispõem, levados por suas
razões particulares, a caminhar conosco por certo tempo. Primeiro tivemos as classes
dominantes da Romênia e o rei, que apoiaram os Aliados contra os nazistas. Quando
eles acabaram de servir aos nossos propósitos, nós os destruímos. Conquistamos a igreja
ortodoxa com promessas, depois nos servimos das seitas menores para miná-la.
Utilizamo-nos dos fazendeiros contra os donos de terras e posteriormente os
camponeses pobres contra os fazendeiros ricos; e agora todos serão coletivizados. Eram
estas as idéias táticas de Lênin, e funcionam!".
Disse-lhe eu: "Ninguém ignora que todos os seus companheiros de jornada
foram encarcerados, executados ou de alguma forma destruídos no passado. Como
podem os senhores esperar que continuarão utilizando-se de pessoas e jogando-as fora
depois?”.

16
Patrascanu riu. "Porque são estúpidas. Aqui está um exemplo. Dez anos depois
da Primeira Guerra Mundial, o Grande pensador Bolchevique Bukharin opôs-se aos
planos de Trotsky de fazer a revolução mundial pelas armas. Argumentava ser melhor
esperar até que os países capitalistas começassem a brigar uns com os outros. A Rússia
podia então aderir ao lado vencedor e arrebatar a parte do leão dos países vencidos. Era
uma profecia notável - mas ninguém a levou a sério. Se o Ocidente tivesse sabido que
metade da Europa e dois terços da Ásia se tornariam comunistas como resultado disso, a
última guerra jamais teria sido feita. Felizmente nossos inimigos não escutam nossos
argumentos nem lêem nossos livros, por isso podemos falar abertamente".
Chamei-lhe a atenção para uma falha no seu argumento: "Não vê, Sr. Patrascanu,
que assim como os senhores utilizam as pessoas e depois as lançam para um lado, de
igual modo os seus camaradas o têm usado e lançado fora? Não enxerga o senhor a
lógica maligna da doutrina de Lênin?"
Desta vez a amargura de Patrascanu se pôs à mostra. Disse: "Quando Danton foi
levado à guilhotina e viu Robespierre a observá-lo de uma sacada, bradou-lhe: Você virá
depois! -Asseguro-lhe agora que esses virão depois de mim - Ana Pauker, Georgescu e
Luca, por igual".
E assim aconteceu, dentro de três anos. Naquela noite não falamos mais,
contudo, às 22 horas, quando já tínhamos ido para a cama, a porta abriu-se e meu novo
nome foi chamado. Três homens estavam do lado de fora. Um deles, a quem depois
conheci como Appel, mandou que me vestisse. Obedeci, e Patrascanu cochichou-me que
vestisse o casacão também. Serviria para abrandar as pancadas. Uma espécie de óculos
pretos, de proteção, foram-me postos nos olhos para que eu não visse para onde me
levavam. Fui conduzido através de um longo corredor a uma sala onde me fizeram
sentar numa cadeira. Tiraram-me as vendas dos olhos.
Estava diante de uma mesa, tendo à frente de meus olhos uma luz viva e
desagradável. A princípio via somente uma figura indistinta, do lado oposto, mas
adaptando-se minha vista àquele brilho, reconheci um homem chamado Moravetz. Ex-
inspetor de polícia, que sofrera um contratempo por revelar segredos aos comunistas,
tinha sido agora recompensado com a função de inquiridor.
"Ah", disse ele, "Vasile Georgescu. Você tem papel e caneta naquela cadeira.
Leve sua cadeira e descreva suas atividades e sua vida". Perguntei o que lhe interessava
de modo particular.
Moravetz franziu sarcasticamente a sobrancelha, "Como padre, você tem ouvido
algumas confissões. Trouxemo-lo aqui para que nos relate isso".
Escrevi um esboço de minha vida até ao tempo de minha conversão. Depois,
julgando que essa declaração chegaria ao conhecimento dos líderes do Partido e
produziria algum efeito, expliquei minuciosamente como sendo ateu, como eles, tive os
olhos abertos para a verdade. Escrevi durante uma hora ou mais, quando Moravetz me
tomou o papel, dizendo. "Por hoje basta". Fui levado de volta à minha cela, encontrando
Patrascanu a dormir. Alguns dias se passaram novamente sem que me inquietassem. Os
comunistas invertem os métodos normais da polícia, que consistem em fazer o
prisioneiro falar enquanto se acha sob o choque da captura. Preferem deixá-lo
"amadurecer". O inquiridor não diz nunca o que quer; apenas aborda sua presa dando-
lhe esta ou aquela direção, insinuantemente, de modo a provocar ansiedade e sentimento
de culpa. Enquanto a pessoa dá tratos à bola para descobrir o motivo de sua prisão,
aumentam-lhe o nervosismo com outros ardis: um julgamento constantemente adiado, a
detonação das armas de um pelotão, gravada em "tape", gritos agudos de outros presos.
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Começa a fazer falsos juízos. Um lapso ou descuido conduz a outro, até que a exaustão
o força a admitir sua culpa. O inquiridor passa a mostrar simpatia. Dá esperança ao
preso de um paradeiro ao seu sofrimento, se ele admitir que merece o castigo e disser
tudo. Assim foi que Appel voltou poucos dias depois, começando o primeiro de meus
inumeráveis interrogatórios.
Desta vez fui levado a uma sala do subsolo, poucos degraus abaixo de minha
cela, por Appel, que me deu uma cadeira, ofereceu-me um ‘toffeë' (doce de caramelo)
que tirou de sua pasta, e instalou-se num sofá. Um dos seus colegas tomava notas.
Mascando firme, Appel conferia itens de minha declaração e observou que o
pensamento de uma pessoa era orientado pela classe a que pertencia. Não sendo eu de
origem proletária, estava propenso a ter opiniões reacionárias. Eu tinha certeza de que
Appel também não era proletário, e fiz ver que nenhum dos grandes pensadores do
Partido foi "operário" naquele sentido.
Marx foi filho de um advogado, o pai de Engel foi proprietário e Lênin veio da
nobreza. A classe, só por si, jamais ditou as convicções de ninguém. Appel interrompeu.
"Quais eram suas relações com o Sr. Teodorescu"?
"Teodorescu?" perguntei. "Existem muitos com este nome. A quem o senhor se
refere”?
Mas Appel não o disse. Pelo contrário, passou a discorrer sobre a Bíblia e as
profecias de Isaías acerca da vinda do Messias. De vez em quando, sem avisar,
mencionava os nomes de pessoas que haviam ajudado a distribuir meus livros com os
soldados soviéticos, ou encaminhavam socorro vindo do Concílio Mundial de Igrejas.
As setas vinham aparentemente ao acaso. Appel era sempre cortês e nunca insistia.
Parecia mais interessado em minhas relações às perguntas súbitas do que em minhas
respostas e, depois de outra hora, fui levado de volta à cela para pensar na significação
daquilo.
Patrascanu procurava divertir-se às minhas custas, conversando a respeito dos
planos do Partido para desarraigar o Cristianismo da Romênia. Já Ana Pauker,
Georgescu e outros membros do Comitê Central haviam estado secretamente com
Justiniano, decidindo que este serviria bem aos propósitos deles. "Justiniano", afirmou,
"tem tanto a ver com Deus quanto eu com o Imperador do Japão. Relativamente ao
velho Patriarca Nicodim, está caduco. Que respeito se pode ter a um homem que
expediu encíclicas no começo da guerra, convocando todo o mundo a combater o
dragão Bolchevique de sete cabeças, e depois, quando rompemos com Hitler, incitava o
seu rebanho a marchar com o glorioso Exército Vermelho contra o monstro nazista? Foi
o que ele fez, e o país inteiro sabe disto. São estes os príncipes da Igreja, e o resto não
lhes fica atrás. Eles não ficarão com você muito tempo".
Respondi-lhe que se ele não saísse da prisão logo, como esperava, poderia entrar
em contato com cristãos mais exemplares. "O Patriarca Nicodim é um bom homem",
continuei, "mas está velho e cansado. Nem posso condenar o futuro Patriarca Justiniano
e os outros que têm sido logrados, ou forçados a enveredar pelo caminho que o senhor
tomou. É o mesmo que abusar alguém de uma jovem e depois chamá-la prostituta".
Pensei, com essa cutucada, alcançar meu objetivo, visto como Patrascanu era
propenso a falar com gosto e rudeza sobre sexo. Aliás, procurei fazê-lo ver o que era o
amor cristão. Estava muito absorvido pelos seus contratempos, a princípio, para ouvir
muita coisa, mas era um homem estudioso, desapontado por nada ter para ler, e então
discutia para se distrair. Sobre religião avançou ele, "Na escola estudei tudo isso.
Costumava rezar, porém depois abandonei".
18
Inquiri por quê.
"O Jesus de vocês exige demais. Especialmente tratando-se da juventude".
Disse-lhe eu: "Nunca me apercebi que Jesus pedisse alguma coisa do homem.
Quando meu filho Mihai era criança, certa vez, lhe dei dinheiro para que me comprasse
um presente de aniversário. Assim, Jesus concede-nos as virtudes que parece pedir de
nós, e nos faz pessoas de melhor caráter. Mas talvez o senhor não tivesse bons
professores de religião".
- É provável. Não são muito comuns. Patrascanu ergueu-se e bocejou. "Além do
mais, há muita coisa intragável no Cristianismo".
- Dê um exemplo.
- A humildade, e em especial a submissão à tirania. Veja a epístola de S. Paulo
aos Romanos. Diz que toda autoridade vem de Deus, pelo que devemos comportar-nos
bem, pagar com prontidão nossos impostos e não dar coices contra aguilhões; e isto
num tempo em que Nero dominava o mundo!
Retorqui-lhe, "Leia de novo a Bíblia e o senhor a achará carregada de fogo de
revolução. Começa com os escravos hebreus, revoltados contra Faraó. Prossegue com
Samuel, Jaeljeú e muitos outros rebeldes à tirania. Antes de avançar, pergunte a si
mesmo como foi que a autoridade aprovada por Deus chegou ao poder. De ordinário é
isso resultado de uma sublevação de modo que submissão à autoridade significa
submissão àqueles que fizeram com êxito uma revolução. Washington tornou-se
autoridade por derrubar os ingleses".
"Como Lênin desbancou os Czares", observou Patrascanu.
"Só para introduzir um regime pior de terror. Chegará um dia o homem que
também há de dar cabo da tirania comunista, e instaurará um governo livre. Será essa
autoridade procedente de Deus. Devemos submeter-nos a ele. O que essa passagem da
Escritura ensina realmente não é submissão a tiranos, mas é evitarmos derramamento
inútil de sangue em revoluções sem possibilidade alguma de vitória".
Patrascanu continuou, "Que diz sobre 'Dai a César o que é de César?' Com este
axioma Jesus não estava com certeza insistindo na submissão dos judeus ao tirano de
Roma?”
"O primeiro César foi um usurpador", disse eu, "até mesmo em Roma. Era um
general que se fez ditador. Seus sucessores não tinham mais direitos na Palestina, que se
tornara colônia romana à força, do que os russos têm aqui. Ironicamente, até Jesus
poderia dizer: Dai a César o que lhe devemos; um pontapé no traseiro para expulsá-lo
daqui!”. Patrascanu deu uma gargalhada. "Se todos os clérigos explicassem a Bíblia
como você, não tardaria que a entendêssemos melhor", disse ele. Eu não tinha tal
confiança. Uma noite pediu-me que lhe declarasse a fé cristã em poucas palavras.
Recitei o Credo Niceno e depois disse, "Em troca, diga-me qual é de fato o credo
comunista".
Patrascanu refletiu por um momento. "Nós comunistas cremos que dominaremos
o mundo", disse isto e reclinou-se no seu colchão carunchento.
Na manhã seguinte foi levado da cela. Nunca mais o vi. Tínhamos tornado
íntimos na semana que passamos juntos. Senti que fora tocado por muita coisa que eu
lhe dissera, mas não estava nos seus planos admitir isso nem para si próprio. Anos
depois vim a saber do que lhe aconteceu.

19
Meu inquiridor seguinte, um homenzinho chamado Vasilu, que gostava de falar
pelo canto da boca, tinha uma lista de quesitos datilografados. O primeiro era o mais
difícil: "Escreva os nomes de todas as pessoas que o senhor conhece, onde tem tido
encontro com elas e quais têm sido suas relações com as mesmas". Havia muitos amigos
a quem eu queria defender, mas se os omitisse e a polícia o soubesse, tornar-se-iam duas
vezes suspeitos. Como eu hesitasse, Vasilu interveio de olhos fuzilantes, "Não se ponha
a escolher. Eu disse 'todas' as pessoas".
Para começar escrevi os nomes dos meus paroquianos e auxiliares que conhecia.
A lista ia já numa página ou duas. Acrescentei os membros comunistas do Parlamento e
todos os companheiros de viagem e informantes que pude lembrar.
"Pergunta Número Dois", disse Vasilu. "Que tem o senhor feito contra o
Estado”?
"De que me acusam?" indaguei.
Vasilu deu um murro na mesa, "O senhor sabe o que tem feito. Desembuche!
Comece pelos seus contatos com o seu colega ortodoxo Padre Grigoriu, e o que pensa
dele. Escreva logo e não pare!" Os clérigos eram sempre inquiridos uns a respeito de
outros: os protestantes sobre padres ortodoxos, os católicos acerca de adventistas, e
assim por diante, para a provocação de rivalidades sectárias. Qualquer coisa que se
escrevesse podia ser usada como armadilha. Um preso recebia a ordem: “Assine com
um apelido!: aqui é assim que se faz". Quando tinha feito várias declarações debaixo de
nomes diferentes, pediam-lhe que denunciasse um amigo, com a advertência de que se
recusasse a fazê-lo, a todo o mundo se diria ser ele um informante que já fizera relatos
sob nomes falsos. Bastava essa ameaça para que muitos se tornassem verdadeiros
informantes. Durante as prolongadas esperas em solidão, entre um e outro inquérito,
preparavam-se novos quesitos, procurando o preso lembrar-se do que dissera antes e do
que ocultara. Os inquiridores costumavam ir aos pares, com os quesitos escritos a
máquina. Se acontecia de um sair, o outro não falava enquanto aquele não voltasse.
Alguns deles, naqueles primeiros tempos, eram homens bastante decentes que tinham de
viver fosse como fosse. Um deles, quando o seu companheiro saiu da sala, mostrou-me
relatos feitos contra mim. Vários estavam assinados por pessoas de minha confiança,
podendo eu imaginar a pressão que sobre elas tinha sido feita.
Eu estava ainda na primeira fase de um longo processo. A quantidade de
prisioneiros era enorme e os inquiridores competentes, poucos porém, outros mais
estavam sendo treinados todos os dias nos métodos soviéticos. Pelo menos tive tempo
de preparar-me. Recebi novo alento quando um barbeiro, enquanto me barbeava,
segredou-me que Sabina estava passando bem e levando adiante nosso trabalho. O
alívio foi indescritível. Pensava que minha esposa tinha sido também presa e Mihai,
meu filho, passasse fome ou estivesse dependendo da caridade de vizinhos. Agora
estava pronto a me esmerar em tantos capítulos de minha biografia espiritual quantos
quisessem os inquiridores. Sobre outros assuntos revelava o menos possível. O simples
fato de um amigo ter visitado uma vez o Ocidente podia resultar na prisão de sua família
e fazê-lo levar uma bárbara surra.
Os interrogatórios continuaram meses a fio. A pessoa tinha de convencer-se
primeiro do seu crime para possibilitar deste modo os ideais comunistas serem
implantados, e eles só criariam raízes quando o indivíduo se rendesse à crença de que
estava inteiramente e para sempre em poder do Partido, entregando a este todos os
retalhos do seu passado.

20
Dizia-se por aquela época na Romênia que a vida consistia em quatro "autos": a
"autocrítica", que tinha de ser registrada com regularidade nos escritórios e fábricas; o
"automóvel", que levava as pessoas à Polícia Secreta; a "autobiografia", que eram
obrigadas a escrever; e a "autópsia". Sabendo que torturas me aguardavam, resolvi
matar-me antes a trair os outros. Sobre isto não alimentava escrúpulos morais, porque a
morte de um crente significa sua partida para junto de Cristo. Lá poderia eu dar-Lhe
explicações e por certo ele me compreenderia. Se Sta. Úrsula foi canonizada por se
matar, antes que perder a virgindade às mãos dos bárbaros que saquearam seu mosteiro,
então o dever que eu tinha de proteger meus amigos era também mais importante do que
a vida.
O problema era assegurar os meios do suicídio, antes que suspeitassem do meu
intento. Guardas revistavam os presos e suas celas constantemente, à procura de
instrumentos de morte: estilhaços de vidro, pedaços de corda, lâminas de barbear. Certa
manhã, por ocasião da visita rotineira do médico, disse-lhe que não podia lembrar de
todos os detalhes que os inquiridores precisavam porque já fazia semanas que não
dormia. Prescreveu-me um comprimido à noite para dormir; um guarda, toda vez que eu
o tomava, perscrutava minha boca para ver se o engolia. Mas o fato era que eu o prendia
debaixo da língua e daí o retirava quando o guarda saía. Mas onde esconder minha
presa? Não no copo, que estava sujeito a qualquer imprevisto. Não no meu colchão de
palha que todos os dias era sacudido e dobrado. Havia o outro, que fora de Patrascanu,
Ia abrindo nele alguns buracos, onde todos os dias ocultava um comprimido no meio da
palha.
No fim do mês eu tinha trinta comprimidos. Era para mim um conforto, em face
do receio de sucumbir debaixo de torturas. Tinha, porém, crises quando pensava em
tomá-los. Estávamos no verão. Ouvia rumores familiares, que me vinham do mundo lá
fora. Era uma jovem a cantar, o bonde que rangia nos trilhos virando na esquina, mães
que chamavam os filhos, "Silviu, Emil, Matei!" Sementes plumosas eram trazidas pelo
vento e caíam suavemente no piso cimentado de minha cela. Perguntava a Deus o que
Ele estava fazendo. Por que estava eu sendo forçado a dar fim à vida que se tinha
dedicado ao seu serviço? Olhando para cima, uma noite, pela estreita janela, vi a
primeira estrela aparecer no céu escuro. Veio-me ao pensamento que Deus enviava
aquela luz, a qual começara sua jornada aparentemente inútil fazia bilhões de anos, e
agora atravessava as grades de minha cela para consolar-me.
Na manhã seguinte um guarda entrou e, sem dizer palavra, pôs o catre
sobressalente ao ombro, com os meus compridos lá amealhados, e levou-o para outro
detento. Fiquei transtornado a princípio. Depois ri, sentindo-me mais calmo do que
semanas antes. Como Deus não queria o meu suicídio, iria dar-me forças para suportar o
sofrimento que se avizinhava. A Polícia Secreta tinha sido paciente, disseram-me, mas
agora chegava a vez de aparecerem resultados. O Coronel Dulgheru, o notável
investigado nela, não falhava em conseguí-los. Sentou-se diante de sua carteira, imóvel
e ameaçador, com as delicadas mãos estendidas para adiante. "O senhor tem estado a
brincar conosco", disse-me.
Dulgheru, antes da guerra, tinha trabalhado na Embaixada soviética. Depois, sob
os fascistas, foi internado e assim confraternizou com Gheorghiu Dej e outros
prisioneiros comunistas. Notaram sua tenacidade, inteligência e crueldade. Pois aí
estava, com poderes a ele confiados de vida e morte.
Imediatamente começou a inquirir-me acerca de um homem do Exército
Vermelho que fora apanhado a contrabandear Bíblias para a Rússia. Até então os
investigadores pareciam nada saber do meu trabalho entre os russos, mas apesar de o
21
soldado detido não ter revelado o meu nome, descobriram que estivemos juntos. Agora,
mais do que sempre, eu tinha de pesar cada palavra, porque na verdade eu balizara o
homem em Bucareste e o alistara em nossa campanha.
Dulgheru era persistente nas perguntas. Pensava estar sentindo o faro de algo
importante. Nas semanas seguintes fiquei extenuado por uma variedade de meios. As
camas foram retiradas da cela e eu tinha muito mal uma hora para dormir por noite
equilibrado numa cadeira. Duas vezes por minuto a fresta do espia dava na porta um
estalido metálico, aparecendo nele o olho do guarda. Muitas vezes, quando cochilava,
ele entrava e me despertava. No fim perdi toda a noção de tempo. Uma vez despertei e
vi a porta da cela entreaberta. Uma música suave ouvia-se no corredor; ou era ilusão?
Depois o som tornou-se desafinado, ouvindo-se soluços de mulher. Ela se pôs a gritar.
Era minha esposa! Não, não! Por favor, não me espanquem mais. Mais não! Não
agüento!”Ouviu-se um chicote a estalar na pele nua de alguém. O grito era de
horrorizar. Cada músculo do meu corpo retesava-se em contrações de terror. Pouco a
pouco a voz foi sumindo, em gemidos; mas agora foi a voz de um estranho. Extinguiu-
se no silêncio. Eu fiquei desfalecido, trêmulo e banhado em suor. Depois vim a saber
que aquilo era uma gravação em "tape", porém todo preso que a ouvia pensava que a
vítima era sua esposa ou namorada.
Dulgheru era um refinado selvagem, segundo o modelo dos diplomatas
soviéticos com os quais se misturara. "É com pesar que ordeno torturas", disse-me.
Sendo todo-poderoso nas prisões, podia dispensar notas e testemunhas e muitas vezes
foi sozinho à minha cela, à noite, para continuar o interrogatório. Uma dessas sessões
críticas arrastou-se durante horas. Inquiriu-me sobre meus contatos com a Missão da
Igreja da Inglaterra. Que tinha eu feito lá? Disse que fora visitar a Abadia de
Westminster. Ele ficou mais exasperado.
"O senhor sabe", disse com rancor, "que posso ordenar sua execução agora
mesmo, esta noite, como contra-revolucionário que o senhor é?” Respondi, "Coronel, a
oportunidade é sua de fazer uma experiência. O senhor diz que pode mandar fuzilar-me.
Sei que pode. Então ponha aqui a mão no meu peito. Se o coração estiver batendo
rápido, como demonstração de que estou com medo, saiba que não existe um Deus e
vida eterna alguma. Mas, se bate tranqüilamente, como a dizer 'vou para aquele a quem
amo', então o senhor deve refletir. Há um Deus e uma vida eterna".
Dulgheru esbofeteou-me e logo lamentou sua falta de domínio próprio.
"O senhor é um tolo!", disse. "Não vê que está completamente à minha mercê e
que o seu Salvador, ou seja, lá como o queira chamar, não vai abrir as portas de
nenhuma prisão? O senhor não verá mais nunca a Abadia de Westminster".
Respondi, "O nome dele é Jesus Cristo, e se ele quiser poderá soltar-me e, além
disso, far-me-á ver a Abadia de Westminster". Dulgheru olhou-me com ferocidade,
como se lhe faltasse o fôlego. Depois berrou, "Está certo. Amanhã você enfrentará o
camarada Brinzaru".
Por isso esperava eu. O Major Brinzaru, ajudante do coronel, tinha sob o seu
cuidado uma sala onde se guardavam porretes, cassetetes e rebenques. Seus braços eram
peludos quais os de um gorila. Outros investigadores usavam o seu nome para intimidar.
O poeta contemporâneo russo Voznesensky escreve. "Nos dias presente de sofrimentos
indizível, bem feliz com efeito é aquele que não tem coração", e Brinzaru era um
felizardo neste sentido. Apresentou-me sua coleção de armas. "De qual você se agrada?"
perguntou. "Gostamos de ser democratas aqui".

22
Exibiu a sua arma favorita, um cassetete comprido, de borracha preta. "Leia o
rótulo". Estava lá, MADE IN U.S.A. (fabricado nos Estados Unidos da América).
"Nós espancamos", disse Brinzaru mostrando num sorriso os dentes amarelos,
"mas os seus amigos americanos nos fornecem os instrumentos para isso". Depois me
mandou de volta à minha cela para que eu pensasse.
Disse-me o guarda que Brinzaru trabalhara antes da guerra para um político
proeminente, sendo tratado como um da família. Depois que os comunistas assumiram o
poder, ocasião em que foi alçado às fileiras da Polícia Secreta, um jovem preso foi
levado à sua presença para investigação. Era um filho do tal político, que procurava
desencadear um movimento patriótico. Brinzaru disse-lhe, "Quando você era criança eu
costumava sentá-lo nos meus joelhos!" A seguir torturou o rapaz e executou-o com suas
próprias mãos.
Curioso: Brinzaru não me deu a surra com que me ameaçou. Em sua ronda
noturna de inspeção, empurrou com um piparote a tampa da fresta do espia para me
observar um pouco. "Ainda aí, Georgescu? Que faz Jesus esta noite?"
Respondi, "Está orando pelo senhor". Afastou-se sem nada mais dizer.
No dia seguinte voltou. Sob sua supervisão fizeram-me ficar de pé, de frente
para uma parede com as mãos erguidas acima da cabeça, de modo a tocar nesta com as
pontas dos dedos. "Conserve-o nesta posição", ordenou ao guarda antes de se afastar.
Afinal começavam as torturas. Não quero considerá-las como de muita
importância, mas precisam ser referidas porque eram comuns em todas as prisões da
Polícia Secreta. Primeiro fiquei de pé durante horas, muito depois de meus braços terem
ficado dormentes, e minhas pernas começarem a tremer e depois inchar. Quando
desmaiava e caía no chão, davam-me uma crosta de pão e um gole d'água e me punham
de novo em pé. Um guarda rendia o outro. Alguns deles forçavam as vítimas a tomar
posições ridículas ou obscenas, e isto prosseguia, com breves intervalos, durante dias e
noites. À frente ficava a parede para onde olhar.
Pensava eu nas paredes referidas na Bíblia, e me recordava de uma passagem de
Isaías, que me deixava triste: Deus dizia a Israel que os seus pecados levantavam um
muro de separação entre Ele e o povo. As falhas do Cristianismo permitiram que o
Comunismo triunfasse, e era essa a razão de eu ter uma parede pela frente. Depois me
lembrava de uma frase dos Salmos. "Com o Senhor salto muralhas". Eu também podia
saltar aquela parede para o mundo espiritual da comunhão com Deus. Pensava,
outrossim, nos espias judeus que retornaram de Canaã relatando que as cidades eram
grandes e muradas; mas como as muralhas de Jericó ruíram, assim a parede à minha
frente podia ir abaixo pela vontade de Deus. Quando o sofrimento me esmagava,
recitava para mim mesmo uma frase do Cântico dos Cânticos: "O meu amado é
semelhante ao gamo, ou ao filho da gazela; eis que está detrás da nossa parede". Eu
imaginava Jesus postado atrás de minha parede, dando-me forças. Lembrava-me que,
enquanto Moisés, sobre o monte, tinha as mãos erguidas, o povo escolhido marchava
para a vitória. Talvez nossos sofrimentos estivessem ajudando o povo de Deus também
a ganhar sua batalha.
De quando em quando o Major Brinzaru olhava para dentro e perguntava se eu
queria cooperar. Uma vez, estando eu no chão, ele bradou, "Levante-se! Decidimos
afinal deixá-lo ir ver a Abadia de Westminster. Você parte agora".
"Ande!" mandou o guarda. Procurei calçar os sapatos, mas os meus pés estavam
muito inchados. "Vamos! Depressa! Fique fazendo voltas! Vou observar de fora".

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A cela media doze passos ao redor: quatro passos, uma parede; dois; a seguinte;
a seguir quatro; depois dois. Eu arrastava os pés, com umas meias furadas. A fresta do
espia dava um estalido. "Mais depressa!" bradava o guarda. Minha cabeça começava a
rodopiar. "Mais depressa - ou quer levar uma surra?" Dava com a cabeça pelas paredes,
o que me doía muito. O suor ardia-me nos olhos. Rodeava, rodeava e continuava
rodeando. Clique! "Alto! Dê meia volta! Ande!" E lá me punha a rodear, a rodear na
direção contrária. "Mais depressa!" Cambaleava, e me aprumava. "Continue o
movimento!" Quando caía, o guarda investia com um porrete e me dava forte pancada
num cotovelo, enquanto com esforço violento eu me erguia. O sofrimento era tão
angustiante que eu caía outra vez. "Ponha-se de pé! Continue andando! É este o seu
manejo!"
Quase todo mundo tinha de passar pelo manejo ou picadeiro de adestramento,
como era conhecido. Só depois de horas é que nos davam um pouco d'água ou alguma
coisa para comer. A sede extinguia a fome. Era até mais lancinante do que as furadas a
punhal quente pelas nossas pernas acima. O pior de tudo era ter que andar de novo
depois de nos darem alguns minutos de descanso, ou poucas horas à noite, quando
entorpecidos jazíamos no chão. As juntas rígidas, os músculos quebrados e os pés
lacerados não suportavam o peso do corpo. A gente agarrava-se às paredes, e os guardas
a berrar ordens. Quando não podíamos mais suster-nos de pé, ficávamos agachados, de
gatinhas.
Não sei quantos dias e noites passei no manejo. Punha-me a orar pelos guardas,
enquanto me movimentava. Pensava no Cântico dos Cânticos, em que se diz que a
Noiva de Cristo dançava em honra do seu noivo. Dizia a mim mesmo, "Mover-me-ei
com tanta airosidade como se fosse isto uma dança de amor divino, para Jesus". Durante
certo tempo me parecia isso mesmo. Se alguém quer fazer tudo quanto tem de fazer,
então o que faz é o que quer; e as mais severas tribulações, sendo voluntárias, tornam-se
mais suportáveis. Quando me punha a dar voltas, parecia como se tudo girasse ao redor
de mim. Acabava por não distinguir uma parede da outra, ou uma parede da porta, assim
como sob a influência do amor divino não distinguimos entre os bons e os maus, e a
todos podemos abraçar.
Estava virtualmente sem dormir havia já um mês, quando o guarda me colocou
nos olhos uma espécie de óculos enegrecidos e me conduziu a um gabinete para nova
entrevista. Era uma sala espaçosa e mobiliada. Atrás de uma mesa, sentados, estavam
três ou quatro vultos, aos quais só podia ver indistintamente devido à luz ofuscante dos
refletores diante do meu rosto. De pé diante deles, com algemas nos pulsos, descalço,
tinha sobre mim apenas uma camisa rota e suja. Repetiram perguntas já conhecidas.
Dei-lhes as mesmas respostas. Dessa vez havia uma mulher entre os investigadores. Em
dado momento ela disse em voz estridente: "Se não responde corretamente,
mandaremos esticá-lo no cavalete". A máquina de suplício que por último se usou na
Inglaterra para arrancar confissões, há 300 anos, acrescentara-se às armas de persuasão
do Partido! Eu disse, "Na epístola aos Efésios, S. Paulo diz que devemos esforçar-nos
por alcançar a medida da estatura de Cristo. Se os senhores me esticam no cavalete,
estarão ajudando-me a atingir meu objetivo". A mulher bateu com força na mesa,
ouvindo-se uma discussão atrás do brilho forte dos refletores. Algumas vezes uma
pronta resposta servia para desviar um soco. Não fui posto no cavalete; em lugar disso
retrocedemos à Inquisição, às bastonadas nas solas dos pés.
Fui levado à outra cela. Cobriram-me com um capuz. Mandaram-me ficar de
cócoras e abraçar os joelhos. Meteram-me uma barra de metal entre os cotovelos e os
joelhos, e depois fui içado a uma tripeça, girando e ficando de cabeça para baixo,
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amarrados os braços que se uniam ao corpo, com os pés para cima. Seguravam minha
cabeça enquanto alguém me vergastava as solas dos pés. As bordoadas eram como
explosões. Algumas me atingiram as coxas e a base do espinhaço. Tinha vertigem e
recobrava os sentidos por me ensoparem com água fria. Cada vez diziam que, se eu
dissesse apenas um dos nomes que eles queriam, aquilo ia parar. Quando me tiraram da
haste de metal precisei ser carregado para a minha cela.
Cada vez que me levavam àquela sala punham-me os óculos escuros, que me
impediam de saber a localização dela. Algumas vezes conservavam os óculos em mim
enquanto era esbordoado. Quando vemos que o golpe vai ser descarregado, recebemo-lo
sem surpresa. Mas de olhos vendados, sem saber onde vai ser desferido, o medo é duas
vezes maior.
Passei por outras torturas. Brinzaru tinha um chicote de nylon. Depois de
algumas chicotadas com ele eu ficava sem sentidos. Uma vez encostaram um punhal à
minha garganta, enquanto Brinzaru insistia que eu falasse, se quisesse viver. Dois
homens fizeram-me deitar; seguraram-me com força, sentindo eu as garras deles e o
punhal a me rasgar a pele. Outra vez perdi os sentidos; quando voltei a mim meu peito
estava coberto de sangue. Puseram-me água pela garganta por meio de um funil, até que
o estômago ficou cheio de arrebentar; então os guardas deram pontapés e me
pisotearam. Era deixado numa cela com dois rafeiros, cães de guarda adestrados a
avançar, rosnando, ao mais leve movimento, sem morder. Colocavam perto um pedaço
de pão, mas ninguém se atrevia a pegá-lo. Eventualmente descobríamos que os cães não
iam atacar; mas muitas vezes nos atacavam, ferindo nosso rosto a dentadas. Também fui
marcado com ferro em brasa.
No fim assinei, a meu respeito, todas as "confissões" que eles quiseram: que eu
era adúltero e, ao mesmo tempo, homossexual; que vendera os sinos da igreja e
embolsara o dinheiro (embora nossa igreja fosse uma casa de oração, e não tivesse
sinos); que sob o disfarce de trabalhar para o Concílio Mundial de Igrejas eu fazia
espionagem com o objetivo de derrubar o regime, e isso por meio de traição; que eu e
outros, tempos antes, tínhamos nos infiltrado na organização do Partido sob falsos
pretextos e revelado seus segredos. Brinzaru leu essas confissões e perguntou: "Onde
estão os nomes das pessoas às quais você passou os segredos?"
Ficou satisfeito quando lhe dei uma porção de nomes e endereço. Certamente
por isso eu iria ser gratificado e promovido. Poucos dias depois recebi outro açoite.
Tinham feito verificação dos nomes. Eram de pessoas que tinham fugido para o
Ocidente ou já haviam morrido. Mas na folga que me deram recobrei um pouco de
forças.
Talvez a espera fosse a pior tortura: deitado a ouvir gritos e choro, e sabendo que
numa hora qualquer chegaria minha vez. Deus porém me ajudou a nunca dizer uma
palavra que prejudicasse outras pessoas. Perdia os sentidos facilmente e eles me
queriam vivo. Cada preso podia ser uma fonte de informações, útil em algum futuro
contratempo na sorte do Partido, não tendo importância quanto tempo eles passassem
detidos. Um médico comparecia às sessões de tortura para tomar o pulso e verificar se a
vítima estava prestes a escapar para o outro mundo, quando a Polícia Secreta ainda
precisava dela. Era aquilo uma imagem do Inferno, onde o tormento não tem fim e
ninguém morre.
Era difícil lembrar a Bíblia. Não obstante, procurava ter sempre em mente a
possibilidade de Jesus ter vindo à terra na qualidade de rei, mas ao invés disso escolheu
ser condenado como criminoso açoitado. Os açoites infligidos pelos romanos eram

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horríveis, e a cada golpe que eu recebia lembrava-me que Ele também sabia o que era
aquele sofrimento, e então me regozijava por partilhar dele com Cristo.
A zombaria e as humilhações também excediam a capacidade de ser suportada.
Mais de uma vez Jesus disse que seria açoitado, escarnecido e crucificado. Eu
costumava pensar que os escarnios comparados com açoites e crucificação, eram nada.
Mas isso foi antes de ver um homem forçado a abrir a boca, para que outros nela
escarrassem e urinassem, enquanto os nossos torturadores riam e proferiam zombarias.
Não e fácil crer, mas assim como os agentes da Inquisição espanhola tinham
como coisa sagrada queimar hereges; assim muitos homens do Partido criam haver
justificação para o que fizessem. O Coronel Dulgheru parecia ser um deles. Costumava
dizer: "E no interesse vital da sociedade que pessoas sejam maltratadas, no caso de
esconderem informação necessária à proteção do povo". Muito depois, quando ele me
viu reduzido a frangalhos, a chorar de fadiga nervosa, disse-me como se estivesse
compadecido: "Por que você não cede? É uma coisa dessas de todo fútil. Você não passa
de carne e vai acabar arruinado". Eu, porem, tinha prova do contrário: fosse apenas
carne não teria resistido. O corpo,no entanto é só a residência temporária da alma. Os
comunistas firmando-se no instinto de autoconservação pensavam que um homem faria
qualquer coisa para evitar ser extinto. Enganavam-se. Os crentes, que criam no que
disseram perante a igreja, sabiam que morrer não era o fim da vida, senão o seu
cumprimento; não era extinção, e sim a promessa de eternidade.
Eu já passara sete meses na prisão de Calea Rahova. Era outubro e o inverno já
havia chegado. Sofríamos, dessa vez, muito frio, assim como fome e maus-tratos, e
ainda tínhamos pela frente meses de inverno. Contemplando pela janela a neve
acompanhada de chuva a cair no pátio da prisão, eu tremia de frio, mas não estava
desanimado. O que eu fizesse por Deus com paciente amor na prisão seria pouco, mas o
bem, nesta vida, sempre se afigura pouco, comparado com o montante de males.
Enquanto no Novo Testamento o mal é pintado como enorme animal de sete chifres, o
Espírito Santo apresenta-se como uma pombinha a descer voando. É a pomba que vence
a besta!
Certa noite apareceu-me um prato com saboroso ensopado de carne, e quatro
fatias de pão. Antes que os comesse, o guarda voltou, fez-me juntar meus pertences e
segui-lo a um lugar onde outros presos estavam enfileirados. Com o pensamento no
meu ensopado, fui de caminhão para o Ministério do Interior. É um edifício esplêndido,
que os turistas muito admiram, os quais não sabem ser ele construído sobre uma vasta
prisão com um labirinto de corredores e centenas de indefesos internados.
Minha cela ficava em profundo subterrâneo. Uma lâmpada acesa no teto
alumiava as paredes desguarnecidas, uma armação de cama com três tábuas e um
colchão de palha. O ar entrava por um cano no alto da parede. Não havia um balde, por
isso tinha sempre de esperar que o guarda me levasse à privada. Esta era a pior
imposição que faziam a qualquer detento. Algumas vezes faziam que esperássemos
durante horas, enquanto riam de nossas súplicas. Homens, e também mulheres,
deixavam de comer e beber com receio de que isso lhes aumentasse a agonia. Eu mesmo
comi no prato em que atendi depois a uma necessidade física, sem lavá-lo depois porque
não havia água para isso.
O silêncio aí era praticamente completo, e de propósito. Nossos guardas usavam
botinas de sola de feltro e podíamos ouvir as mãos deles à porta da cela antes que a
chave entrasse na fechadura, De vez em quando se ouvia o som longínquo de um preso
martelando firme a sua porta, ou berrando. A cela media somente três passos em cada

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direção, por isso quando me deitava tinha sobre mim a lâmpada, que ficava acesa a
noite inteira. Como desse modo não podia dormir, orava. O mundo exterior deixara de
existir. Todos os rumores que estava acostumado a ouvir; do vento e da chuva no pátio;
botas com tachões de aço nas pedras do calçamento; uma voz de pessoa, tudo se fora.
Meu coração parecia contrair-se, como querendo parar naquele silêncio de morte.
Conservaram-me no confinamento solitário dessa cela nos dois anos seguintes.
Não tinha nada para ler nem material de escrita. Por companhia tinha apenas meus
pensamentos. Não era, porém um homem meditativo, mas uma alma que raramente
conhecera calma. Eu tinha o meu Deus. Mas havia realmente vivido para servi-lo, ou
fora aquilo simplesmente uma profissão?
O povo espera que os pastores sejam modelos de sabedoria, pureza, amor e
fidelidade. Isso eles nem sempre podem ser verdadeiramente, porque também são
homens. Desta forma, com menor ou maior intensidade eles começam a desempenhar o
seu papel. Com o correr dos anos dificilmente poderão dizer quanto do seu
procedimento vai cumprindo aquilo que se deseja.
Lembrava-me do profundo comentário que Savonarola escreveu em torno do
Salmo cinqüenta e um na prisão, com os ossos tão quebrados que só pôde assinar o
papel de sua auto-acusação com a mão esquerda. Dizia ele haver duas espécies de
cristãos: os que sinceramente crêem em Deus, e os que, com igual sinceridade,
acreditam que crêem.
Podemos diferenciá-los uns dos outros por suas ações em momentos decisivos.
Se um ladrão, planejando roubar uma casa rica, vê um estranho que pode ser um
policial, recua. Se, reconsiderando, acaba arrombando a casa, prova com isso não ter
crido que o tal homem fosse um agente da lei. Nossas crenças provam-se pelo que
fazemos.
Cria eu em Deus? O teste chegara agora. Estava só. Não havia salário a ganhar,
nem opiniões excelentes a considerar. Deus só me oferecia sofrimentos - continuaria eu
a amá-lo?
Comecei a relembrar um dos meus livros favoritos, "The Pateric", que discorria
sobre certos santos do quarto século, os quais organizaram mosteiros no deserto, quando
a Igreja estava sendo perseguida. Tinha 400 páginas, mas na primeira vez que me veio
às mãos não comi, bebi ou dormi enquanto não terminei a leitura. Os livros cristãos
assemelham-se ao bom vinho - quanto mais velhos, melhores. Continha a seguinte
passagem:
Um irmão perguntou ao seu superior: "Padre, que é o silêncio?" A resposta
foi: "Meu filho, silêncio é você sentar-se sozinho em sua cela, na sabedoria e no
temor de Deus, defendendo o coração das setas abrasadoras do pensamento.
Silêncio como este faz nascer o bem. Oh, silêncio despreocupado, escada para o
céu! Oh, silêncio, em que a gente só cuida das primeiras coisas, e só fala com Jesus
Cristo! Quem guarda silêncio é quem canta: "Meu coração está pronto para
louvar-Te, ó Deus!" Imaginava eu como se podia louvar a Deus com uma vida de
silêncio. A princípio, orava muito para ser solto. Perguntava: "Disseste na
Escritura que não é bom o homem estar só; por que pois me conservas sozinho?"
Mas à medida que os dias e semanas passavam, o único que me visitava ainda era o
guarda, que me levava fatias de pão preto e uma sopa aguada, mas não me dizia
nunca uma palavra.

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Sua chegada lembrava-me todos os dias o ditado: "Os deuses andam com
sapatos macios". Noutros termos, os gregos acreditavam que ninguém percebia a
aproximação de uma divindade. Talvez aquele silêncio me aproximasse de Deus.
Também talvez fizesse de mim um melhor pastor, porque notara que os melhores
pregadores foram homens que, como Jesus, guardavam um silêncio íntimo. Quando a
boca se abre muito, mesmo para falar o bem, a alma perde o seu ardor, assim como uma
sala perde seu calor por uma porta que se abra.
Pouco a pouco fui aprendendo que da árvore do silêncio pende o fruto da paz.
Comecei a descobrir minha verdadeira personalidade, tendo certeza de que pertencia a
Cristo. Achei que mesmo onde estava, meus pensamentos e sentimentos se voltavam
para Deus, e que podia passar noite após noite em oração, em exercício espiritual e
louvor. Sabia agora que não estivera cumprindo a minha aspiração, embora acreditasse
que sim. Organizei uma rotina que procurei observar nos dois anos seguintes. Ficava de
vigília a noite inteira. Quando, às 22 horas, a campainha batia o sinal de silêncio,
começava meu programa. Algumas vezes ficava triste, outras alegre, mas as noites não
eram bastante longas para tudo quanto tinha a fazer.
Começava com uma oração em que lágrimas muitas vezes de agradecimento,
raramente faltavam. As orações, como os sinais de radio, soam mais distintamente à
noite: é então quando se ferem grandes batalhas espirituais. A seguir, pregava um
sermão como o faria na igreja, começando com a frase "Amados irmãos", um sussurro
que nenhum guarda pudesse ouvir, e terminando com "Amém". Por fim pregava a
verdade completa. Não tinha que me importar com o que o bispo pensasse, a
congregação dissesse ou os espiões relatassem. Não pregava ao vazio, Cada sermão era
ouvido por Deus, seus anjos e santos; mas eu sentia que entre os que ao redor me
ouviam, estavam os que me levaram a fé, membros do meu rebanho, tanto mortos como
vivos, minha família e amigos. Eram eles a "nuvem de testemunhas" de que a Bíblia
fala. Eu experimentava a "comunhão dos santos", referida no Credo.
Toda a noite falava à minha esposa e ao meu filho. Considerava tudo quanto
neles era bonito e bom. Algumas vezes meus pensamentos alcançavam Sabina para lá
das paredes do cárcere. Ela tem uma nota em sua Bíblia, escrita naquela época: "Hoje vi
Richard. Estava deitada na cama, acordada, e ele se inclinou e me falou". Concentrara
toda a minha força em transmitir-lhe uma mensagem de amor. Éramos ricamente
recompensados em pensar um no outro por poucos minutos, todos os dias; apesar de
tantos casamentos terem sido desfeitos pela prisão, o nosso permaneceu firme e se
fortaleceu.
Pensar na família também me podia magoar. Sabia que Sabina fora muito
pressionada para divorciar-se de mim. Se ela recusou e levava adiante o trabalho de sua
igreja, era quase certo que acabariam prendendo-a. Depois Mihai, com apenas dez anos,
seria deixando só. Virava o rosto para o colchão de palha e apertava-o com os braços,
como se fosse o meu filho.
Uma vez levantei-me de um pulo, bati violentamente com os punhos na porta de
aço, gritando:
"Restituam-me o meu menino!" Os guardas acorreram e me fizeram deitar,
enquanto me aplicaram uma injeção que me tornou inconsciente durante horas. Quando
voltei a mim, pensei que ia enlouquecer. Sabia de muitos a quem isso aconteceu.
Esse fato encorajou-me a pensar na mãe de Jesus, que ficou ao pé da cruz sem
uma palavra de queixa. Não sei se teríamos razão em interpretar o seu silêncio como
perfeito pesar: sentir-se-ia ela também orgulhosa porque o seu Filho dava a vida pêlos
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homens? À tardinha daquele dia, que era de Páscoa, ela deve ter cantado os louvores de
Deus, seguindo o rito judaico. Também eu devia agradecer a Deus os sofrimentos pêlos
quais meu filhinho pudesse estar passando. Por outro lado readquiri confiança: mesmo
se Sabina desaparecesse, tínhamos amigos que sem dúvida cuidariam dele.
Um dos meus constantes exercícios espirituais era imaginar, como num quadro
vivo mental, que eu entregava toda minha vida a Cristo: o passado, o presente e o
futuro; minha família, minha igreja, meus arrebatamentos, meus secretos pensamentos;
cada membro do meu corpo. Confessava meus pecados passados a Cristo sem reserva e
via-o limpando-os com sua mão. Muitas vezes chorei.
Nos primeiros dias gastei muito tempo esquadrinhando minha alma. Foi um
engano. Amor, bondade, beleza são criaturas tímidas, que se escondem quando sabem
que estão sendo observadas. Sobre este ponto meu filho deu-me uma lição, quando tinha
cinco anos. Eu o tinha reprovado, "Jesus tem um caderno grande; numa das páginas está
o seu nome. Hoje de manhã Ele teve de escrever lá que você desobedeceu a sua mãe.
Ontem você brigou com outro menino, dizendo que a culpa era dele; isso também foi
escrito no caderno". Mihai disse, depois de refletir um minuto: "Papai, Jesus só escreve
as coisas ruins que a gente faz, ou também as coisas boas?"
Meu filho estava tantas vezes no meu pensamento! Lembrava-me com prazer
como ele me havia ensinado teologia. Quando li na epístola aos Coríntios: "Examinai-
vos avós mesmos para ver se permaneceis na fé", ele perguntou: "Como vou examinar a
mim mesmo?"
Respondi: "Bata com força no peito e indague: Coração, você ama a Deus?" Dei
um murro no peito quando falei.
"Não está direito, não", atalhou Mihai. "Uma vez o homem que na estação bate
nas rodas do trem com um martelo, deixou-me experimentar, e disse:” Você bata nelas
de leve, no caso de estarem empenadas, não com força “. Assim também não tenho que
dar uma pancada forte em mim para saber se amo a Jesus". Sabia eu agora que o
silencioso "Sim" de meu coração, quando fazia a pergunta: "Você ama a Jesus?", era
suficiente.
Cada noite passava uma hora, identificando-me com a mente dos meus
principais adversários - o Coronel Dulgheru, por exemplo. Imaginando-me no seu lugar,
achava milhares de desculpas para ele. Deste modo podia amá-lo e aos outros
torturadores. Depois considerava minhas próprias faltas do ponto de vista dele, e
alcançava nova compreensão de mim mesmo. É mais fácil consolar os outros do que a
nós mesmos, assim como podemos ler com calma simpatia acerca das vítimas da
guilhotina, mas ficamos chocados quando uma revolução nos ameaça. Assim agora,
punha-me a inverter a época dos acontecimentos, pensando no presente como se
ocorresse em tempos idos, e no passado como se acontecesse agora. Por esta forma
pode-se até esperar ter um encontro com os outros de outrora.
Pensava no que faria se fosse um grande estadista, um multimilionário, o
Imperador da China, o Papa. Sonhava no que seria a vida, se eu tivesse asas ou a capa
da invisibilidade, e decidi ter encontrado por acaso uma definição do espírito humano
como força invisível, alada, que pode transformar o mundo. Eram fantasias divertidas,
mas que consumiam tempo. Um arquiteto atarefado não se põe a indagar o que poderia
fazer com materiais inexistentes - pedras sem peso, vidro elástico. A meditação, como a
arquitetura, deve ser construtiva. Tais digressões, porém, ajudavam-me a descobrir
como é que entidades opostas podem unir-se na vida do espírito, compreendendo eu

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agora como Cristo pode encerrar tudo em si, ser o Leão de Judá e ao mesmo tempo o
Cordeiro de Deus.
Não me faltavam divertimentos em minha cela vazia. Dizia gracejos a mim
mesmo e inventava novos. Jogava xadrez, usando peças feitas de pão: as Pretas vs. as
Menos-pretas de cal das paredes. Podia divertir minha mente de sorte que uma Preta não
sabia do próximo movimento de uma Menos-preta, e vice-versa, e desde que não perdi
uma partida em dois anos, achava que podia reivindicar o título de campeão.
Verifiquei que a alegria pode ser adquirida como hábito, da mesma forma como
uma folha enrolada de papel quando se abre e depois é solta, volta naturalmente a ficar
enrolada. "Regozijai-vos", é uma ordem de Deus. João Wesley costumava dizer que
"nunca se entristecia, nem mesmo por um quarto de hora". Não posso dizer a mesma
coisa de mim, mas aprendi a regozijar-me nas piores condições.
Os comunistas crêem que da satisfação material vem felicidade, mas na minha
cela, sozinho, com frio, fome, andrajoso, dançava de alegria todas as noites. A ideia me
veio com as lembranças da meninice, de ter observado dervixes a dançar. Houvera-me
comovido, além do entendimento, pelo êxtase deles, a grave beleza daqueles monges
muçulmanos, a graça dos seus movimentos, a rodopiar, enquanto proferiam o nome com
que expressam a pessoa de Deus, "Alá!" Depois aprendi que muitos outros - judeus,
pentecostais, primitivos cristãos, pessoas da Bíblia como Davi e Miriã, meninos acólitos
da catedral de Sevilha na comemoração da Páscoa, mesmo hoje, também dançaram e
dançam para Deus.
As palavras só por si nunca puderam expressar o que o homem sente na presença
da divindade. Algumas vezes eu ficava tão cheio de gozo que me parecia prestes a
arrebentar se não lhe desse expressão. Lembrava-me das palavras de Jesus: "Bem-
aventurados sereis vós quando os homens vos odiarem e vos expulsarem de sua
companhia, e vos vituperarem e de vós falarem mal por causa do Filho do homem.
Regozijai-vos e exultai!" Eu dizia a mim mesmo: "Só a metade deste mandamento é que
tenho cumprido. Tenho-me regozijado, o que não basta. Jesus diz claramente que
também devemos pular (exultar)".
Quando a seguir o guarda perscrutou pela fenda da espionagem, viu-me a pular
em volta da cela. As ordens deviam ser que procurasse cuidar de quem desse sinal de
prostração, porque ele saiu às pressas e voltou com algum alimento da sala da
administração: um pedaço grande de pão, algum queijo e açúcar. Recebendo-os,
lembrei-me como a passagem em S. Lucas continuava, dizendo: "Alegrai-vos nesse dia
e pulai de gozo -porque é grande o vosso galardão". Era um enorme pedaço de pão:
mais do que a ração de uma semana.
Raramente deixei passar uma noite sem dançar, a partir desse dia. Embora nunca
voltassem a me recompensar por isso, compus cânticos e os entoava baixinho, dançando
com a minha própria música. Os guardas acabaram acostumando-se com aquilo. Eu não
quebrava o silêncio e eles já tinham visto muitas coisas esquisitas naquelas celas
subterrâneas. Amigos a quem mais adiante falei de dança na prisão, perguntaram: "Para
que isso? Qual a sua utilidade?" Não se tratava de algo útil: Era uma manifestação de
alegria, como a dança de Davi, um santo sacrifício oferecido no altar do Senhor. Não me
importava se meus capturadores pensassem que eu estava maluco, visto haver
descoberto uma beleza em Cristo que não conhecera antes.
Algumas vezes tinha visões. Um dia, quando dançava, pareceu-me ouvir chamar
meu nome - não "Richard", mas outro nome, que não posso revelar. Sabia que tinha sido
eu que fora chamado pelo meu novo nome e de súbito me veio à mente, não sei por que:
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"Este deve ser o Arcanjo Gabriel". E a cela encheu-se de luz. Não ouvi nada mais,
porém compreendi que devia cooperar com Jesus e os santos na construção de uma
ponte entre o bem e o mal, ponte de lágrimas, orações e sacrifícios pessoais que os
pecadores atravessassem para se juntar aos bem-aventurados. Vi que nossa ponte tinha
de ser tal que até os mais fracos em bondade pudessem usar Jesus prometeu que no
Juízo Final os que tivessem alimentado os famintos e vestido os nus sentar-se-iam à sua
mão direita, enquanto os malfeitores seriam lançados nas trevas exteriores. Hoje toda
pessoa, com certeza, algumas vezes ajuda outros, e outras vezes deixa de fazê-lo: o
corpo é um, mas o espírito, não. A Bíblia fala do homem "interior" e do "exterior"; do
homem "novo" e do homem "velho"; do homem "natural" e do "espiritual". É o homem
interior e espiritual que pode alcançar felicidade na vida eterna.
Vi que devia amar o homem como ele era, não como devia ser. Outra vez
percebi grande multidão de anjos movendo-se calmamente através do escuro em direção
da minha cama. Aproximando-se cantaram um cântico de amor, que Romeu poderia ter
cantado para Julieta. Não podia crer que os guardas não ouvissem aquela música
maravilhosa e arrebatadora, que para mim era muito real.
Prisioneiros que por muito tempo ficam solitários, não raro têm visões. Há
explicações naturais para esses fenómenos que não os invalidam. A alma usa o corpo
para os seus próprios desígnios. Essas visões ajudaram a sustentar minha vida: o que
basta para provar não terem sido meras alucinações.
Certa noite ouvi pancadinhas na parede ao lado de minha cama. Novo
prisioneiro tinha chegado à cela vizinha e estava dando-me sinal. Respondi, e com isso
provoquei um frenesi de pancadas com renovado vigor. Dentro de pouco percebi que
meu vizinho estava transmitindo um código simples: A - uma pancada; B - duas
pancadas; C - três pancadas.
"Quem é você?" foi sua primeira mensagem.
"Um pastor", respondi.
Partindo desse começo cansativo, desenvolvemos um sistema novo: uma
pancada indicava as cinco primeiras letras do alfabeto; duas pancadas, o segundo grupo
de cinco; e assim por diante. De modo que B era uma pancada, seguida de uma pausa,
depois mais duas pancadas; F eram duas pancadas seguidas depois de um intervalo por
outra. Mas este código ainda não satisfez o meu novo vizinho. Ele conhecia o sistema
de Morse e me transmitiu letra por letra, até que aprendi todas.
Disse-me por sinais o seu nome. "Deus o abençoe", respondi com esforço. "Você
é cristão?"
Passou-se um minuto, "Não posso afirmar isso".
Era um técnico de rádio, como se revelou, que aguardava julgamento num
processo de certa relevância. Tinha cinquenta e dois anos, era de saúde precária.
Abandonara a fé poucos anos antes, casando-se com uma descrente. Estava em grande
depressão física. Falava com ele através da parede todas as noites, tornando-me fluente
no uso de Morse.
Não tardou que ele batesse: "Gostaria de confessar meus pecados.
Foi uma confissão interrompida com muitos silêncios: "Eu tinha sete anos... dei
um pontapé num menino... porque ele era judeu... Ele me amaldiçoou... 'Que sua mãe...
não o veja... quando ela estiver morrendo'... Mamãe estava morrendo... quando fui
preso".

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Quando o homem esvaziou o coração do fardo de tantas coisas, disse que se
sentia mais feliz do que anos antes. Tornamo-nos amigos pelo sistema Morse, como
outros se tornam amigos pela caneta. Ensinei-lhe versos da Bíblia. Dizíamos gracejos
um ao outro e transmitíamos o movimento das peças em jogo de xadrez. Mandei-lhe
mensagens acerca de Cristo, pregando em código. Quando o guarda me surpreendeu
nisso um dia, fui transferido para outra cela, onde tive outro vizinho, com o qual
comecei de novo. Com o tempo muitos aprenderam o código. Presos foram muitas
vezes removidos, e mais de uma vez fui traído por informantes, de modo que passei a
transmitir só versos bíblicos e palavras acerca de Cristo: não estava pronto a sofrer por
argumentos políticos.
Homens eram forçados por confinamento solitário a mergulhar em fatos
acontecidos e enterrados havia muito tempo. Traições e desonestidades de outras épocas
voltaram á tona com inevitável persistência. Era como se entrassem na cela e fitassem
as pessoas para censurá-las; Mãe, pai, meninas abandonadas havia tempo, amigos
caluniados ou fraudados em direitos seus. Todas as confissões que ouvi em Morse
começavam: "Quando eu era menino", "Quando estava na escola..." A memória de
transgressões antigas lá estava como feroz cão de guarda diante do santuário da paz de
Deus. Quando porém todas as outras portas de acesso ao céu se fecham para o homem,
diz a Cabala que resta a bab hadimot, a porta das lágrimas, e era por essa que nós,
prisioneiros, tínhamos de passar.
Certa manhã, quando um vizinho me transmitiu o aviso que aquele dia era
Sexta-feira Santa, encontrei um prego no banheiro e com ele risquei a palavra JESUS na
parede de minha cela, esperando que servisse de conforto aos que ali fossem parar
depois de mim. O guarda ficou irado. "Você vai para a gaiola!", disse.
Fui levado por um corredor a um armário embutido em uma parede, alto para
caber uma pessoa de pé, com vinte polegadas quadradas, dispondo de uns buraquinhos
por onde o ar passava, e um outro por onde se metia o alimento. O guarda me jogou lá
dentro e fechou a porta. Pontas agudas feriam minhas costas. Estremeci e inclinei-me
para frente, quando outra porção de cravos me furaram o tórax. O pânico apoderou-se
de mim, mas o esforço me sustinha de pé. Depois, movendo-me cautelosamente no
escuro, tateei os lados - tudo estava coberto de pontas de aço. Só me mantendo
rigidamente erguido podia evitar a empalação. Era isso a gaiola.
Minhas pernas começaram a doer. Passada uma hora todos os músculos
pareciam chagas. Meus pés, doloridos do manejo, inchavam. Quando sucumbi,
lacerando-me nas pontas agudas, fizeram-me sair para um descanso, depois do que me
puseram lá de novo. Procurei pensar nos sofrimentos de Cristo, mas os meus eram
fortíssimos. Depois me lembrei que meu filho Mihai, quando bem pequeno, certa vez
perguntou-me: "Que vou fazer, papai? Estou enfadado". Respondi: "Pense em Deus,
Mihai!" Ele atalhou: "Por que pensar nele? Minha cabeça é pequena: a dele é bem
grande. Assim é Ele quem deve pensar em mim". Dizia então a mim mesmo: "Não
experimente pensar em Deus. Deixe de pensar seja em que for". Naquela escuridão
sufocante recordava-me que os iogues indianos extinguem da mente todo pensamento,
repetindo uma fórmula sagrada muitas e muitas vezes. Este método é também usado
pêlos monges do monte Atos, na interminável reza deles chamada "oração do coração",
em que dizem uma palavra em cada pulsação do coração: "Senhor Jesus Cristo, Filho de
Deus, tem misericórdia de mim!" Eu já sabia que Cristo era misericordioso, mas como
costumava dizer à minha esposa todos os dias que a amava, assim pensava:
"Farei o mesmo com Jesus", comecei a dizer: "Jesus, querido noivo de minha
alma, eu Te amo As pulsações silenciosas de um coração amoroso são uma música que
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vai longe, por isso repetia essa frase no mesmo ritmo. A princípio pareceu-me ouvir o
sorriso escarninho do demónio: "Tu O amas, e Ele te deixa sofrer. Se Ele é onipotente,
porque não te fez sair da gaiola?" Continuava eu a dizer silenciosamente: "Jesus,
querido noivo de minha alma, eu Te amo". Em pouco tempo a significação daquelas
palavras apagou-se e perdeu-se. Eu havia deixado de pensar.
Mais adiante tive muitas vezes de praticar esse abstraimento em momentos
difíceis. Jesus diz no Evangelho segundo S, Mateus: "Porque na hora em que não
penseis virá o Filho do homem". Tem sido esta a minha experiência com Ele. Deixe-se
de pensar -e Cristo vira, de surpresa. Mas a claridade de Sua luz é difícil de suportar.
Algumas vezes inverti o processo, fugindo do mesmo e voltando aos meus
pensamentos.
Passei dois dias na gaiola. Alguns passaram uma semana ou mais, todavia o
médico avisou que meu estado se tornara perigoso. Já estava entre a vida e a morte. Em
consequência de meu confinamento prolongado e a falta de sol, alimentação e ar, meus
cabelos deixaram de crescer. O barbeiro só espaçadamente me visitava. As unhas
ficaram pálidas e amolecidas, como plantas conservadas no escuro.
Comecei a ter alucinações. Fitava meu corpo de estanho com água para
convencer, em momentos de desespero, que não estava no Inferno, onde não há água - e
então ele virava capacete. Via pratos deliciosos postos numa mesa que se estendia muito
além da cela. De muito longe vinha minha esposa e se aproximava; trazia um prato com
enorme pilha de salsichas fumegantes, mas eu rosnei para ela: "Isto é tudo? Como é
pouco!" Outras vezes minha cela se expandia tornando-se biblioteca, com estantes e
mais estantes de livros encadernados que subiam até desaparecer no escuro: novelas
famosas, poesias, biografias, obras religiosas e científicas. Elevavam-se à minha frente.
Outras vezes, milhares de rostos viravam-se ansiosamente para o meu lado: me via
cercado de enormes multidões, esperando que eu falasse. Gritavam perguntas. Vozes
respondiam. Ouviam-se aplausos e gritos em contrário. Um oceano de rostos estendia-se
ao infinito.
Também me atormentavam sonhos de violência contra os que me haviam
aprisionado, assim como fantasias eróticas. Este é um Inferno que não é facilmente
entendido pêlos que não têm passado por ele. Eu tinha trinta e nove anos quando fui
preso, gozava saúde e era vigoroso, e agora a recidiva da tuberculose despertava em
mim um maior impulso genésico. Deitado e em vigília, ficava inflamado, vindo à mente
mulheres e jovens, e depois apesar de procurar afugentá-las - sobrevinham-me visões de
perversões e exagerações do ato do amor. Frustração e senso de pecado causavam-me
um sofrimento horrível: algumas vezes agudo e causticante; outros, imprecisos, mas
presente sempre.
Encontrei um meio de combater tais alucinações, tratando-as como intrusas
hostis, tais como o vírus da tuberculose no meu corpo: longe de censurar-me pelas suas
invasões, reivindicava as alucinações não como pecados mas como inimigas, pude
planejar o meio de destruí-las. Maus pensamentos podem ser subjugados pelo
raciocínio, se atentarmos calmamente nas suas consequências. Não procurava expulsá-
las, sabendo que voltariam furtivamente por uma porta lateral; ao invés disso, deixava-
as à vontade, enquanto ponderava quanto custaria na vida real se a elas me entregasse.
Rendendo-me a tais tentações traria com certeza miséria a outras famílias e a mim
próprio. Minha esposa teria que procurar divórcio. O futuro do meu filho ficaria
arruinado. Meus paroquianos perderiam a fé. E depois, desprezado de todos, teria ainda
que responder a Deus pêlos danos causados. Como os médicos empregam um vírus para
combater outro, assim podemos empregar a máxima do diabo -"dividir para dominar" -
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e derrotá-lo. O demónio do orgulho - o medo de perder o bom conceito - pode ser
dirigido contra o demónio da sensualidade. O demónio da avareza odeia os vícios que
custam dinheiro!
Um dia, estando obstruídas nossas privadas, levaram-me ao banheiro dos
guardas. Acima da pia, na parede, havia um espelho. Pela primeira vez, em dois anos, eu
pude contemplar-me.
Era jovem e gozava saúde quando entrei para a penitenciária. Consideravam-me
simpático, naquela época. Agora, vendo a que ponto chegara, ri de mim mesmo: riso
triste, homérico. Tantos que me admiravam antes e me amavam, se pudessem ver agora
o velho medonho que ali estava a me fitar, ficariam apavorados. Era uma lição para
mim: o que é realmente belo em nós é invisível aos olhos físicos. Ainda ia ficar mais
feio - um esqueleto e uma caveira - e, lembrando disso, minha fé e o desejo de me
apegar à vida espiritual eram fortalecidos.
Vi no banheiro um pedaço de jornal, o primeiro em que peguei desde minha
prisão. Estava lá a notícia de que o Primeiro Ministro Groza havia tomado a decisão
firme de exterminar os ricos, o que achei engraçado - um governo inclinado a liquidar a
riqueza, quando o resto do mundo envidava esforços por dar fim à pobreza. Procurei o
nome de Patrascanu se por acaso tinha sido reconduzido à posição de antes, mas não o
encontrei entre os Ministros, na Câmara onde Groza proferiu seu discurso.
Voltado escoltado à minha cela, ouvi a mulher chorando e gritando como louca.
Seus berros estridentes pareciam vir de uma prisão em nível abaixo de nós. Chegaram
tais gritos a paroxismos, depois foram de súbito silenciados.
Poucos dias depois novo prisioneiro foi posto na cela contígua à minha. Bati a
mensagem: "Quem é você?" e recebi pronta resposta. Era lon Mihalache, que fora
membro de vários governos de antes da guerra e colega do notável líder político luliu
Maniu. Quando começou o terror do Partido, Mihalache aderiu a um grupo que tentou
evadir-se. Foi preso no aeroporto e, em outubro de 1947, foi sentenciado à prisão
perpétua. Tinha mais de sessenta anos. "Passei toda a minha vida lutando para ajudar
meus patrícios, e esta é a recompensa", disse ele.
"Quando é de sua vontade tudo quanto acontece, então o que acontece é apenas
o que o senhor quer", disse-lhe por sinais. "A renúncia é o caminho da paz".Ele
retrucou-me, "Não há paz sem liberdade".
Continuei: "Num país onde reina a tirania... cadeia é lugar de honra".Disse-me
que para ele Deus desaparecera.
Atalhei por sinais: "Deus nunca desaparece de ninguém... Nós é que somos os
desaparecidos... Se nos encontramos a nós mesmos... achamos a divindade dentro de
nós... A prisão pode ajudar-nos nessa busca". Respondeu que ia tentar outra vez.
Antes de Mihalache ser removido dois dias depois, disse-me que a mulher cujos
gritos tínhamos ouvido era a esposa de um ex-Primeiro-Ministro, lon Gigurtu. A
maneira como seus bramidos pararam mostrou que lhe deram injeção para fazê-la calar-
se. Quando logo mais bati na parede, não houve resposta. Mihalache fora embora.
Logo depois disso recomeçou meu interrogatório. Passou a ser dirigido pelo
Tenente Grecu, um jovem forte, inteligente e confiante em si mesmo, imbuído da crença
de estar construindo um mundo melhor. Sua inquisição levou-nos a reconsiderar uma
vez mais a obra de alívio à fome de que eu fora encarregado pela missão da igreja
escandinava. Negaria eu ainda, perguntou-me, que o numerário recebido fora
empregado na espionagem?
34
Respondi: "Posso compreender suas suspeitas de estarem os ingleses e
americanos gastando dinheiro aqui em espionagem, mas que interesse podia ter a
Noruega ou a Suécia em tais atividades?"
Ele me redarguiu: "Uma e outra são instrumentos de que se servem os
imperialistas".
"Mas a Noruega tem fama de possuir espírito democrático, e a Suécia tem
governo socialista já há quarenta anos".
"Tolice!" retorquiu-me. São fascistas como todas as outras".
Em nosso próximo encontro Grecu me disse haver refletido que eu podia ter
razão.
Inquiriu a seguir sobre a distribuição do Evangelho em russo. Sugeri que um dos
diretores da Sociedade Bíblica, de nome Emile Klein, podia tê-la promovido. Perguntou
por que eu fizera repetidas visitas à cidade de lashi (um dos centros desse trabalho).
Respondi que tinha um convite para sempre comparecer à residência do atual Patriarca.
Na manhã seguinte fui de novo chamado. Grecu estava na sua carteira,
segurando um bastão de borracha.
"Sua conversa foi mentira", bradou. "Emile Klein morreu antes de você ser
preso. Por isso foi que falou nele. Verificamos as datas de suas viagens a lashi - o
Patriarca Justiniano dificilmente estaria lá".
Empurrou a cadeira para trás. "Basta! Aqui está papel. Sabemos que você se tem
comunicado em código com outros presos, inclusive Mihalache. Agora precisamos
saber com exatidão o que cada um deles disse. Queremos saber que outras infrações do
regulamento da prisão você cometeu. E diga a verdade. Se não..."

Bateu na carteira com o bastão: "Tem meia hora para isso", disse e foi saindo da
sala.
Sentei-me para escrever. A primeira palavra tinha de ser "Declaração". Tive
dificuldade em começar: já fazia dois anos que não pegava em caneta. Admiti haver
infringido regulamentos. Transmitia por sinais a mensagem do Evangelho para o outro
lado das paredes. Amealhara comprimidos para me suicidar. Fizera uma faca de um
pedaço de estanho, figuras de jogo de xadrez com pedaços de pão e cal da parede.
Comunicara-me com outros presos, cujos nomes não sabia. (Não disse que ouvira
confissões e até levara alguns à fé pelo sistema de Morse). Escrevi: "Nunca falei contra
os comunistas. Sou discípulo de Cristo, que nos capacita amar os nosso inimigos.
Compreendo-os e oro pela conversão deles, para que se tornem meus irmãos na Fé. Não
posso declarar nada do que outros me transmitiram por sinais, porque um ministro de
Deus jamais pode ser testemunha em processos judiciais. Minha profissão é defender, e
não acusar".
Grecu voltou no tempo marcado, brandindo o bastão. Estivera surrando presos.
Tomou minha "Declaração" e começou a lê-la. Logo depois colocou o bastão
para um lado. Quando terminou a leitura, lançou-me um olhar perplexo. Disse: "Sr.
Wurmbrand (nunca antes me tratara por "senhor") por que diz que me ama? Esse é um
dos mandamentos do seu Cristianismo, que ninguém é capaz de cumprir. Eu não amaria
alguém que me trancasse em prisão solitária durante anos, que me fizesse padecer fome
e me surrasse".

35
Respondi: "Não é questão de guardar um mandamento. Quando me tornei
cristão foi como se tivesse nascido de novo, com um novo caráter cheio de amor. Como
somente água pode manar de uma fonte, assim só o amor pode brotar de um coração
amoroso".
Durante duas horas conversamos sobre o Cristianismo e suas relações com as
doutrinas marxistas, com as quais ele se criara. Grecu surpreendeu-se quando eu disse
que a primeira obra de Marx foi um comentário ao Evangelho de S. João; nem sabia que
Marx, no prefácio de sua obra "Capital" escreveu que o Cristianismo - especialmente
em sua forma protestante - é "a religião ideal para a renovação das vidas estragadas pelo
pecado". Uma vez que a minha tinha sido infelicitada pelo pecado - disse-lhe - eu
apenas segui o conselho de Marx quando me tornei cristão protestante.
Depois desse encontro Grecu me chamava ao seu gabinete quase que todos os
dias, quando conversávamos uma ou duas horas. Confirmou as citações que lhe fiz. Isto
se tornou o pretexto de longas discussões em torno do Cristianismo, nas quais pus em
relevo o seu primitivo espírito democrático e revolucionário.
Repetidas vezes me afirmou: "Fui criado ateu e nunca serei outra coisa".
Observei-lhe: "Ateísmo é um termo sagrado para os cristãos. Nossos antepassados,
quando lançados às feras por causa de sua fé eram chamados ateus por Nero e Calígula.
De sorte que se alguém se diz ateu, respeite-o".
Grecu sorriu. Continuei: "Tenente, um dos ancestrais era rabino - isso no século
dezessete. Seus biógrafos registram que certa vez ele encontrou um ateu e disse: "Invejo
você, caro irmão! Sua vida espiritual deve ser muito mais pujante que a minha. Quando
vejo alguém atribulado, digo quase sempre, 'Deus que o ajude', e passo adiante. Você
não crê em Deus, por esta razão toma sobre si o fardo dos outros e ajuda a todos quantos
encontra".
"Os cristãos não criticam o Partido pelo seu ateísmo, mas por produzir ateus de
tipo errado. Há deles duas espécies: os quais dizem: "Não há Deus, portanto posso
praticar todo o mal que quiser"; e aqueles que raciocinam: "Visto que não há
Deus,preciso praticar todo o bem que Ele faria, caso existisse". O maior ateu desta
segunda espécie foi Cristo. Quando ele via pessoas famintas, enfermas e aflita, não
passava de largo, dizendo: "Deus que os ajude". Agia como se toda a responsabilidade
dos outros pesasse sobre Ele. Por isso o povo perguntava: "Este homem é Deus? Ele faz
as obras de Deus!" Foi assim que descobriram que Jesus era Deus. Tenente, se o senhor
pode tornar-se esta espécie de ateu, amando e servindo a todos, os homens cedo
descobrirão que o senhor se tornou um filho de Deus; e o senhor mesmo descobrirá em
si a Divindade".
Estes argumentos podem chocar algumas pessoas. Mas S. Paulo nos diz que os
missionários entre judeus devem ser judeus, entre os gregos devem ser gregos. Com o
marxista Grecu tive de ser marxista e falar a linguagem que ele entendesse. As palavras
atingiram-lhe o coração. Começou a pensar e a amar a Jesus. Duas semanas depois, no
seu uniforme caqui, na gola os distintivos azuis da Polícia de Defesa, confessou-se a
mim, vestindo eu a roupa esfarrapada e remendada da prisão. Tornamo-nos irmãos. Daí
por diante ele destemidamente ajudou os prisioneiros quanto lhe era possível,
enfrentando dificuldades e perigos. Continuou prestando serviço ao Partido, mas só de
lábios, exteriormente. Um dia, porém, desapareceu, ninguém sabendo o que lhe
acontecera. Fiz cautelosamente alguma investigação entre os guardas, pensando eles que
tinha sido preso. Ocultar uma verdadeira conversão não é coisa fácil. Seu emprego

36
desagradável. Deus olha para o coração e vê numa boa súplica a promessa de vida nova
no futuro.
Durante meu segundo ano de detenção, uma dessas almas divididas foi em
minha cela. Todo o tempo que esteve comigo suas mãos permaneceram algemadas nas
costas. Tinha eu de lhe dar comida e fazer tudo para ele.
Dionisiu era um jovem escultor, cheio de ideias novas naquele mundo que só
pedia bustos lisonjeadores de Stalin. Não tendo dinheiro com que comprasse alimento,
assumiu um posto na Polícia Secreta que o obrigava a surrar prisioneiros, mas ao
mesmo tempo corria grande risco por adverti-los contra informantes. Quando viu que
dele suspeitavam, decidiu fugir do país. Depois, estando perto da liberdade, foi
compelido por algum impulso íntimo a voltar e entregar-se. Tais personalidades partidas
encontram-se por toda parte sob o Comunismo. Dionisiu levou a vida inteira a ser
empurrado em duas direções.
Durante dez noites inteiras ensinei-lhe a Bíblia. Seu senso de culpa desapareceu.
Antes de ser removido de minha cela, disse: "Se um dos quinze padres de minha
cidadezinha tivesse conversado comigo quando eu era mais moço, teria encontrado a
Jesus há mais tempo".
Encontrei outros crentes ocultos trabalhando na Polícia Secreta, e alguns ainda
desempenham seus deveres. Não se diga que um homem não pode torturar e ao mesmo
tempo orar! Jesus fala-nos de um cobrador de impostos (ofício que na época não se
exercia sem extorsão e brutalidade) o qual orou, suplicando misericórdia para si,
pecador, e saiu para casa "justificado". O Evangelho não diz que aquele homem
imediatamente abandonou o interrogatório não terminou com a partida do Tenente
Grecu, porém Deus me concedeu o dom de esquecer os nomes de todos a quem poderia
causar dificuldades. Embora enquanto preso compusesse mais de 300 poesias, num total
de 100.000 palavras, e as lançasse ao papel quando fui solto, tornei-me inexpressivo,
reticente durante o inquérito. Por esta causa tentaram novo ardil.
Sob o pretexto de que minha tuberculose se tinha agravado - e de fato eu tossia
quase de contínuo - os médicos prescreveram-me nova droga, uma cápsula amarela que
me fazia dormir muito e ter sonhos deleitáveis. Quando acordava, davam-me outra.
Fiquei inconsciente por alguns dias, só despertando quando os guardas me levavam
comida, que agora era leve e saudável.
Minha recordação do interrogatório reatado é confusa, indistinta. Sei que a droga
não me faz trair meus amigos, porque quando adiante fui julgado, estive sozinho.
Nenhum julgamento imponente dos homens da "rede de espionagem" do Concílio
Mundial de Igrejas jamais ocorreu. Ministraram a droga ao Cardeal Mindszenty, a
trotskystas e muitos outros. Ela debilitava o poder da vontade ao ponto de a vítima
entrar num delírio de auto-acusação. Depois, eu passava a ouvir homens que, por seu
turno, vinham bater ruidosamente na porta das celas, pedindo para ver o oficial político,
afim de fazerem novas acusações contra si próprios. Aquele tratamento podia também
produzir efeitos a longo prazo: homens que, meses antes, haviam tomado a droga,
depois confessavam a mim pecados que nunca tinham tido oportunidade de cometer.
Talvez a tuberculose em mim neutralizasse os efeitos dela. Ou talvez a dose que me
ministravam era excessiva. Seja como for, pela graça de Deus, fui salvo de trair os
outros.
Fiquei ainda mais fraco depois da droga, e um dia desfaleci por completo. Mas
embora só pudesse levantar-me da cama com esforço extremo, minha mente ficou
lúcida por algum tempo. Tinha até medo de sua lucidez.
37
Não é lendo que o grande Sto. António, Martinho Lutero e muitos outros
homens de menor categoria viram o Demônio.
Eu mesmo o vi uma vez, quando menino. Sorriu para mim arreganhando os
dentes. Esta é a primeira vez que refiro a isto, em meio século. Sozinho na cela, agora,
senti outra vez sua presença. Estava escuro e fazia frio, e ele zombava de mim. A Bíblia
fala de lugares "onde os sátiros dançam", e minha cela se fez um deles. Ouvia sua voz
de dia e de noite: "Onde está Jesus? O teu Salvador não te pode salvar! Foste enganado
e enganaste a outros. Ele não é o Messias - seguiste a quem não devias seguir!" Bradei
em alta voz: "Então quem é o verdadeiro Messias que há de vir?" A resposta veio clara,
mas por demais blasfema para ser aqui repetida. Eu tinha escrito livros e artigos
provando que Cristo era o Messias, mas desta vez não pude pensar num só argumento.
Os demônios que levaram Nyils Hauge, o grande evangelista norueguês, a vacilar em
sua fé quando na prisão, eles que até fizeram João Batista duvidar, preso no cárcere,
enfureceram-se contra mim. Eu estava desarmado. Minha alegria e serenidade tinham-se
acabado. Antes havia sentido Cristo tão junto a mim, suavizando minhas amarguras,
alumiando minha treva, mas agora exclamava: "Eloí, Eloí, lama sabactâni?", tendo a
impressão de completo abandono.
Naqueles dias negros e horríveis, vagarosamente compus uma longa poesia que
não pode ser facilmente aceita pêlos que não têm conhecido nenhum estado físico e
espiritual igual ao meu. Foi a minha salvação. Por palavras, ritmo e exorcismo pude
derrotar Satanás. Vai adiante uma versão sem rima e sem métrica, que apresenta o
sentido exato do original romeno:
Desde menino frequentei templos e igrejas. Neles Deus era glorificado.
Diferentes ministros cantavam e com zelo queimavam incenso. Afirmavam ser justo
amar-te. Mas ao crescer vi tão profundos sofrimentos no mundo deste Deus que eu disse
a mim mesmo: "Ele tem um coração de pedra. Se não fosse assim, Ele minoraria as
dificuldades do caminho para nós". Crianças enfermas agitam-se febris nos hospitais:
pais tristes oram por elas. O céu fica surdo. Pessoas a quem amamos vão pelo vale da
morte, até mesmo se por elas prolongamos nossas súplicas. Homens inocentes são
queimados vivos em fogueiras. E o céu queda-se em silêncio. Deixa que tais coisas
aconteçam. Pode Deus estranhar-se, em voz baixa, até os crentes passem a duvidar?
Famintos, torturados, perseguidos em seu próprio país, não têm resposta para tais
perguntas. O Todo-Poderoso fica desacreditado pêlos horrores que nos assaltam.
Como posso amar o criador de micróbios e tigres que dilaceram os homens?
Como posso amar aquele que tortura todos os seus servos porque um deles comeu do
fruto de uma árvore? Mais triste que Jó, não tenho esposa, nem filho, nem pessoas que
me confortem, e nesta prisão estou privado de sol e de ar, e o regime de vida é duro de
suportar.
Da cama de tábuas em que me deito farão meu ataúde. Estirado nela, procuro
descobrir por que meus pensamentos voam para ti, por que tudo quanto escrevo se
dirige a ti. Qual a razão deste amor veemente em minha alma? Por que o meu cântico só
tem a ti em mira? Sei bem que estou rejeitado; logo mais apodrecerei num túmulo.

A noiva dos Cantares de Salomão não amava ao inquirir se havia "razão de seres
amado". O amor justifica-se a si mesmo. O amor não é para os sensatos, os que
raciocinam. Pelo meio de mil provações ela, a noiva, não deixará de amar. Ainda que o
fogo a consuma e as ondas a submerjam, ela beijará a mão que a fere. Se não encontra

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resposta para suas indagações, confia e espera. Um dia o sol brilhará nos lugares escuros
e tudo terá sua explicação.
O perdão dos muitos pecados só fez que aumentassem o amor inflamado de
Madalena. Ela, porém, deu perfume e derramou lágrimas antes que dissesses tua palavra
de perdão. E ainda que não a disseras, mesmo assim ficaria sentada a chorar, tamanho
era o amor que por ti nutria ainda que pecadora. Ela te amava antes que vertesse o teu
sangue. Ela te amava antes que a perdoasse, tampouco te pergunto eu se é razoável
amar-te. Não amo na esperança de salvação. Amar-te-ia mesmo que fosse em
desventura eterna. Amar-te-ia mesmo dentro de fogo consumidor. Se recusares baixar
até ao nível dos homens, ainda sereis meu sonho distante. Se recusares semear a tua
Palavra, ainda te amaria sem ouvi-la. Se tiveres hesitado e fugido da crucificação, e eu
não fosse salvo, ainda assim eu te amaria. Até mesmo se em ti eu descobrisse pecado,
cobri-lo-ia com o meu amor.
Agora ousarei dizer palavras loucas, para que todos saibam quanto eu te amo.
Ferirei agora cordas virgens, ainda não tocadas, e te magnificarei com música nova. Se
os profetas houvessem predito outro, abandoná-los-ia, não a ti. Apresentassem eles
milhares de provas, ficar-te-ia amando. Se adivinhasse que eras um enganador, oraria
por ti com lágrimas, e embora não te pudesse acompanhar na falsidade, isso não
diminuiria o meu amor. Por Saul, Samuel passou ávida em pranto e rigoroso jejum.
Assim o meu amor resistiria, ainda que te soubera perdido. Se tu, e não Satanás, te
houveras rebelado injustamente contra o Céu e perdido o encanto das asas, caindo como
um arcanjo lá das alturas, em desesperança, ainda assim eu esperaria que o Pai te
perdoasse e que um dia andarias com Ele outra vez pelas ruas áureas do Céu.
Se foras um mito, eu abandonaria a realidade e contigo viveria em sonho. Se
viessem a provar que tu não existes, passaria a viver do meu amor. Meu amor é louco,
sem motivo, como o teu também. Senhor Jesus procura achar felicidade aqui. Porque
mais não te posso dar. Quando terminei este poema, não senti mais a proximidade de
Satanás. Retirara-se. No silêncio, senti o ósculo de Cristo, e quem quer que seja beijado
queda-se em silêncio. Voltaram a mim a tranquilidade e alegria.

SEGUNDA PARTE

Depois de quase três anos de confinamento solitários, cheguei às portas da


morte. Tinha frequentemente lemoptises. O Coronel Dulgheru disse: "Não somos
assassinos como os nazistas. Queremos que você viva - e sofra". Foi chamado um
especialista. Querendo a todo custo evitar contágio, fez seu diagnóstico pela fresta do
espia, na porta da cela. Vieram ordens sobre minha transferência para um hospital-
presídio.
Fizeram-me subir das celas subterrâneas; no pátio do Ministério do Interior
voltei a ver o luar e as estrelas. Deitado numa ambulância pude contemplar cenários
conhecidos de Bucareste. Iam tomando a direção de minha casa e por um momento
julguei que me levavam para lá, onde iria morrer. Quando já estávamos perto, a
ambulância desviou-se e começou a subir a encosta de uma montanha, nos arredores da
cidade. Vi então que nos dirigíamos a Vacaresti, um dos grandes mosteiros de
Bucareste, o qual no decurso do último século foi transformado em presídio. A bela
igreja e a capela paroquial agora eram armazéns. Muitas paredes, que separavam as
celas dos monges, tinham sido derrubadas e agora havia salas espaçosas em que os

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prisioneiros viviam em grande número. Restavam poucas celas em que pessoas podiam
ficar isoladas.
Enrolaram minha cabeça com um lençol antes de os guardas me retirarem da
ambulância. Pegaram-me por baixo dos braços e assim fui ajudado a andar, atravessando o
pátio, subindo algumas escadas e ao longo de uma sacada. Quando retiraram o lençol, vi-me
sozinho em uma cela estreita e vazia. Ouvi um oficial dizer ao guarda, fora da varanda:
"Ninguém tem permissão de ver este homem, exceto o médico, e mesmo assim você
esteja presente". Minha existência ali tinha de permanecer em segredo.
O guarda, já meio grisalho, teve a curiosidade despertada por essa advertência.
Quando o oficial se afastou, perguntou o que eu havia feito. Disse: "Sou um pastor e filho
de Deus".
Inclinando-se para mim, sussurrou-me: "Louvado seja o Senhor! Eu sou um dos
soldados de Jesus!" Era um membro secreto do "Exército do Senhor", movimento
avivalista separado da igreja ortodoxa, o qual apesar de perseguido pelos comunistas e pelo
clero, propagara-se rápido pelas vilas, arrebanhando centenas de milhares de adeptos.
O nome do guarda era Tachici. Trocamo-nos versículos da Bíblia e ele me ajudou o
mais que pôde - guardas tinham sido sentenciados a doze anos de prisão pelo fato de darem
uma maçã ou um cigarro a algum detento. Eu estava muito fraco para me levantar da
cama, pelo que eram frequentes as dejeções nela. Em curto período, cada manhã, sentia
lucidez mental, depois me agitava de um lado para outro e entrava em delírio. Dormia pouco.
Havia, porém, uma janelinha pela qual pude voltar a contemplar o céu. Ao amanhecer era
despertado por uns sons diferentes, que havia tanto não escutava: trinado dos pássaros!
Disse a Tachici: "Martinho Lutero, quando passeava pelos bosques, costumava tirar
o chapéu para os passarinhos e dizer:
"Bom dia teólogos - vocês despertam e cantam, ao passo que eu, bobo velho, sei
menos do que vocês e vivo preocupado com tudo, em vez de simplesmente confiar no
cuidado do Pai celestial".
Da janela se via um canto do pátio coberto de relva, de ordinário desocupado.
Algumas vezes médicos, de batas brancas, passavam apressados, sem sequer olhar de
relance para cima. Tinham de praticar a medicina "no espírito da luta de classe".
Podia ouvir homens conversando, quando saíam para exercício. Em dias
passados, algumas vezes tinha saudade do timbre da voz humana, mas agora me irritava.
Nada valia o que diziam. Seus pensamentos pareciam triviais e falsos.
A voz de um ancião me veio da cela contígua, certa manhã. "Sou Leonte Filipescu. E
quem é o senhor?"
Reconheci o nome de um dos primeiros socialistas da Roménia, indivíduo
talentoso de quem o Partido se utilizara e depois abandonara: "Combata a sua doença",
continuou, "Não ceda! Vamos ser libertados dentro de duas semanas".
"Como sabe?", perguntei. "Os americanos estão pondo os comunistas para trás, na
Coreia. Estarão por aqui duas semanas mais".

Eu disse: "Mas ainda que não encontrem oposição, levarão por certo mais de quinze
dias para chegar à Roménia".
"Asneira! Distância nada representa para eles. Têm jatos supersônicos!"
Não discuti. Os presos viviam de ilusões. Se acontecia a papa certa manhã ser um
pouco mais grossa, aquilo queria dizer que um ultimato americano tinha amedrontado a
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Rússia, razão por que o tratamento que nos davam estava melhorando! Se alguém era
derrubado no chão com o soco de um guarda, significava aquilo que os comunistas
estavam aproveitando ao máximo o restante dos dias do seu predomínio. Os homens
voltavam do pátio de exercício cheios de animação: "O Rei Miguel disse pelo rádio que estará
de volta ao trono no mês vindouro".
Ninguém podia suportar o pensamento de ter de passar os próximos dez ou vinte
anos preso. Filipescu ficou ainda mais convencido de uma soltura em breve quando foi
removido, um mês depois, para outro hospital-presídio, onde nos iríamos encontrar outra
vez. Para o seu lugar chegou um líder da Guarda de Ferro Fascista, Radu Mironovici, que se
dizia fervoroso cristão, mas que sempre estava a extravasar o ódio aos judeus.
Pedi a Tachici que me ajudasse a levantar da cama e fui até onde estava Mironovici:
"Quando você toma a Santa Comunhão em sua igreja ortodoxa, o pão e o vinho se
transmudam no corpo e no sangue reais de Jesus Cristo?" Respondeu que sim.
"Jesus era judeu", disse-lhe. "Se o vinho se torna o seu sangue, então esse sangue é
de judeu, não é mesmo?"
Relutantemente admitiu que sim. Prossegui: "Jesus diz que todo aquele que come o
seu corpo e bebe o seu sangue terá vida eterna. Assim, pois, para ter vida eterna você
precisa adicionar ao seu sangue ariano algumas gotas de sangue de judeu. Como é possível,
então, odiar os judeus?"
Não teve resposta. Pedi que visse o absurdo de um seguidor de Jesus, que era judeu,
odiar judeus - assim como era absurdo os comunistas serem anti-semitas, uma vez que
acreditavam no judeu chamado Karl Marx. Mironovici dentre em pouco foi removido
para uma cela distante, mas afirmou a Tachici: "Desmoronou-se uma parte de minha vida,
que era falsa. Era um cristão que muito me orgulhava de seguir a Cristo".
Um dia em que minha temperatura era elevada e me sentia abatido, os guardas voltaram a
mim. Enrolaram-me a cabeça com um lençol e me levaram por um corredor. Quando me
descobriram a cabeça, vi-me numa sala grande, vazia, com janelas gradeadas. Quatro homens e
uma mulher estavam sentados a uma mesa e me encararam. Ia ser julgado, e eles eram os
meus juizes.
"Nomeou-se um advogado para defendê-lo", disse o presidente do tribunal. "Ele
abriu mão do seu direito de chamar testemunhas. Pode sentar-se".
Guardas me fizeram ocupar uma cadeira, enquanto me davam injeção para me
acalmar. Quando passaram as náuseas e a tontura, o promotor levantou-se. Disse que eu na
Roménia defendia a mesma ideologia criminosa que Josef Broz Tito defendia na lugoslávia. Pensei
que eu estivesse delirando. Ao tempo de meu aprisionamento o Marechal Tito era
considerado um comunista modelo - não sabia eu que depois ele se tivesse revelado separatista e
traidor. Continuou seu interminável discurso em torno do meu crime: trabalho de
espionagem por intermédio das missões da igreja escandinava e do Concílio Mundial de
Igrejas, propaganda de ideologia imperialista sob o disfarce de religião, infiltração no Partido
sob o mesmo pretexto, sendo o meu real objetivo a destruição dele, e assim por diante. Enquanto
ele continuava, senti que ia caindo da cadeira, fazendo eles uma pausa enquanto me aplicavam
outra injeção.
O advogado da defesa fez o que pôde. Não foi muito. "Tem o senhor algo a dizer?"
perguntou o presidente. Sua voz soava-me distante e a sala começou a escurecer. Uma coisa só
me veio à cabeça aturdida.
"Eu amo a Deus", disse.

41
Ouvi minha sentença: vinte anos de trabalho forçado. O julgamento tomara dez
minutos. Ao sair, envolveram-me outra vez a cabeça com o lençol.
Dois dias depois Tachici segredou-me: "Você vai embora. Deus o acompanhe!" Outro
guarda veio após e, entre um e outro, fui conduzido ao portão principal. Um panorama de
Bucareste estendia-se lá embaixo - a última vez que teria de vê-la nos seis anos seguintes.
Os grilhões da praxe, pesando uns 23 quilos, foram postos a marteladas em volta dos
meus tornozelos. Fui erguido para dentro de um caminhão, onde já estavam uns
quarenta homens e poucas mulheres. Todos, até os doentes, estavam em grilhões. Perto de
mim uma jovem começou a chorar. Procurei consolá-la.
"O senhor não se lembra de mim?" disse em soluços.
Olhei-a mais de perto, mas o seu rosto a ninguém me fazia lembrar.
"Eu pertencia à sua congregação". Depois que fui presa, a pobreza constrangeu-a a
furtar - contou-me -e agora tinha sido sentenciada a três meses de prisão. "Tenho tanta
vergonha". Suas palavras entrecortavam-se de soluços. "Eu estava na sua igreja, agora o
senhor é um mártir e eu, uma ladra".
"Também sou pecador, salvo pela graça de Deus", atalhei. "Creia em Cristo e seus
pecados lhe serão perdoados".
Ela beijou minha mão, prometendo que, ao ser libertada, faria minha família saber
que me vira.
Num desvio de estrada de ferro passamos para um vagão especial, destinado a
transporte de presos. As janelas eram pequeninas e foscas. Enquanto avançávamos
ruidosa e vagarosamente através da planície na direção dos contrafortes dos montes
Cárpatos, descobrimos que todos ali tínhamos tuberculose, sendo bem provável que nos
levassem a Tirgul-Ocna, onde havia um sanatório sofrível para prisioneiros portadores daquela
moléstia. Durante uns 400 anos indivíduos condenados tinham trabalhado nas jazidas locais de
sal, e fazia trinta anos que um médico afamado, Romascanu, construíra o sanatório, doando-o
ao Estado. Tivera boa celebridade antes que os comunistas dele tomassem conta.
Depois de uma viagem de 200 milhas, que tomou um dia e uma noite, chegamos à estação
de Tirgul-Ocna, cidade de 30.000 habitantes. Com seis outros homens incapacitados de andar, fui
posto numa carroça. Os demais foram arrastados, sob as vistas dos guardas, para um enorme
edifício no perímetro da cidade. Quando era introduzido nele, vi um rosto conhecido. Era o Dr.
Aldeã, ex-fascista, que se converteu e se tornou nosso amigo chegado. Depois que me ajudou
a subir para um leito na sala de isolamento, ele me examinou.
"Também sou prisioneiro aqui", disse-me, "mas me deixam trabalhar como médico. Não
há enfermeiras; há apenas um médico. De sorte que temos de cuidar uns dos outros da melhor
maneira possível".
Tomou minha temperatura e fez seu diagnóstico.
"Não quero enganá-lo", disse. "Não há mais o que fazer no seu caso. O senhor pode
ter ainda duas semanas de vida. Procura comer o que lhe derem, embora não seja do bom.
Do contrário..." Bateu no meu ombro e saiu.
Nos dias seguintes dois homens morreram, dos que tinham ido de carroça lá da estação.
Ouvi outro daqueles, com voz rouca, a argumentar com Aldeã: "Juro, doutor, que estou melhor.
Afebre
vai baixando, eu sei. Ouça, por favor! Hoje escarrei sangue só uma vez. Não
deixe que me levem para a Sala 4!"

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Perguntei ao homem que me levou um mingau muito ralo o que acontecia na Sala
4. Baixou o prato com cuidado e respondeu: "Para lá mando os que estão desenganados!"
Procurei tomar o mingau, mas não pude. Alguém me fez toma-lo com uma colher.
Eu não podia firmá-la na mão. O Dr. Aldeã me disse: "Sinto muito, mas eles insistem. O
senhor vai ter que ir para a Sala Quatro".
E assim reuni-me aos meus companheiros de carroça.
Eu já podia estar morto. Presos faziam o sinal da cruz ao passar pelo pé de meu leito.
A maior parte do tempo estive em coma. Se gemia, outros me viravam de lado, ou me davam
água.
O Dr. Aldeã pouco podia fazer. "Se ao menos tivéssemos algum medicamento
moderno", dizia. A estreptomicina, nova descoberta americana, estava operando prodígios
contra a tuberculose, segundo rumorejavam, mas o Partido, segundo suas normas decidira que
tudo era propaganda ocidental.
Nos quinze dias que se seguiram, quatro dos que haviam entrado na sala comigo
morreram. Algumas vezes eu não tinha certeza se estava vivo ou morto. À noite meu sono era
intermitente, acordando com dores agônicas. Outros presos me viravam de lado, numa média
de quarenta vezes, para que as dores abrandassem. Pus escorria de uma dúzia de feridas.
Meu tórax estava intumescido e a espinha também estava afetada. Escarrava sangue
constantemente.
Alma e corpo estavam prestes a quebrar os laços que os uniam. Encaminhava-me
para as fronteiras do mundo físico.
Perguntei ao anjo que me guardava: "Que espécie de guardião és tu, que não podes afastar
de mim este sofrimento, nem sequer os pensamentos que nada têm de cristão?" E num fuzilar
de luz ofuscante, cuja duração pareceu ser a de um milésimo de segundo, vi um vulto com tantos
braços quanto os de Crisna, e ouvi sua voz: "Não posso fazer tudo quanto devo por você.
Também sou um convertido".
Naquela época não conhecia a Bíblia nem dogmas. Minha mente não trabalhava, pelo que
não podia julgar o valor objetivo daquela visão. Vinha-me uma vaga lembrança de que os místicos
ortodoxos falavam de casos isolados em que anjos negros foram levados de volta ao serviço de
Deus. Entretanto a conversão não podia mudar completamente o caráter dos que tinham sido muito
maus, mesmo que o arrependimento tivesse sido profundo. Em qualquer caso, naquelas
circunstâncias, a visão que me apresentava alguma explicação de coisas que me
aconteciam ajudou-me bastante.
Sobrevivi à primeira crise. O olhar de piedade do Dr. Aldeã começou a mudar e ficar algo
perplexo, à medida que eu me agarrava à vida. Não tomei remédio algum, mas durante uma
hora, de manhã, a febre baixava um pouco e minha mente ficava mais clara. Comecei a olhar à
volta e a ficar atento às coisas ao meu redor.
A sala tinha doze leitos, juntos uns dos outros, e algumas mesinhas. As janelas
mantinham-se abertas, podendo eu ver homens a trabalhar num canteiro de hortaliças, e
mais além muros altos e arame farpado. Eu estava muito calmo. Não havia sinetas de
despertar nem guardas aos brados - de fato, não havia guarda nenhum. Eles temiam contágio e
se mantinham à distância dos pacientes tanto quanto possível. Sendo assim, Tirgul-Ocna era
administrada de longe e por negligência e indiferença tornou-se uma das prisões de menos rigor.
Raramente se providenciava ou se fazia alguma coisa por nós. As roupas, que usávamos, eram as que
tínhamos quando fomos detidos, emendadas e remendadas no decorrer dos anos com qualquer
coisa que se pudesse encontrar.

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Comida era levada por criminosos comuns até à porta da secção política, e daí conduzida às
celas. Os que podiam andar iam receber sua ração; os demais a recebiam na cama. Consistia em sopa
aguada de repolho, algumas vezes de legume ou um caldo ralo de cevada ou milho.
Alguns presos, em boas condições físicas, cavavam terra à roda do edifício. Os outros ficavam
deitados em seus leitos de tábuas e passavam as horas a prosar. Na sala Quatro, no entanto, era diferente
a atmosfera. Porque ninguém saía vivo de lá. Era conhecida como a "Sala da Morte".
Muitos morreram, no decurso dos trinta meses que lá passei, sendo seus lugares ocupados
por outros. Há, porém, uma circunstância notável. Ninguém morreu ateu. Fascistas,
comunistas, santos, homicidas, ladrões, padres, ricos proprietários de terras e os mais
pobres camponeses eram metidos todos juntos numa pequenina cela. Entretanto nenhum deles
morria sem fazer suas pazes com Deus e o próximo.
Muitos deram entrada na Sala Quatro como incrédulos de firmes convicções. Via a incredulidade
deles sempre se desmoronar em face da morte. Eu ouvira dizer: "Se um gato atravessa uma ponte, isso
não quer dizer que ela seja sólida; mas se um trem passa por ela, então é porque é sólida mesmo".
Assim, pois, se alguém se diz ateu enquanto com a esposa se senta a tomar chá e a comer bolo, isso
não é prova nenhuma de ateísmo. Uma convicção para ser genuína deve sobreviver a
enorme pressão, e isto é o que não acontece com o ateísmo.
O velho Filipescu costumava recitar trechos de Shakespeare, a quem os apreciava, ou nos
contava histórias de sua vida, para matar o tempo. Durante cinquenta anos fora revolucionário. A
primeira de suas muitas prisões por agitação política deu-se em 1907. Mas em 1948 a Polícia
Secreta foi no seu encalço: "Sofri pelo Socialismo antes de vocês nascerem", disse-lhes.
Retorquiram que nesse caso ele devia ter aderido aos comunistas e partilhado dos frutos da vitória.
"Fiz ver àqueles moços: 'O Socialismo é um corpo vivo de dois braços - a Democracia Social
e o Comunismo revolucionário. Decepe-se um deles e o Socialismo ficará aleijado'. Eles riram".
Filipescu foi sentenciado a vinte anos. Um guarda me disse: "O senhor vai morrer na prisão!"
Respondi: "Não fui sentenciado à morte, por que então querem matar-me?"
Contou-nos que começara a vida como sapateiro, mas educara-se e aprendera a apreciar
as coisas belas da vida. Aceitou os ensinos marxistas sobre a religião - que a igreja estava do lado dos
opressores, que o clero era mantido pêlos ricos a fim de persuadir os pobres, que a recompensa
deles receberiam no Céu.
Mas ninguém conhece as profundezas do seu próprio coração. Assim como tantos se
julgam religiosos e não o são, assim alguns pensam que são ateus sem o serem. Filipescu negava a
Deus, mas o que negava era apenas sua primitiva concepção dessa palavra, não as realidades
do amor, da retidão e da eternidade.
Foi isso o que lhe sugeri.
"Creio em Jesus Cristo e O amo como o maior dos seres humanos", disse ele, "mas
não posso pensar nele como Deus".
Sua condição piorava sem intermitências. Dentro de uma quinzena, após uma série
de hemorragias, chegou ao fim. Pronunciou para mim, murmurando, suas últimas palavras:
"Eu amo a Jesus". Naquela semana houve várias mortes, sendo ele jogado despido numa
vala comum, cavada pelos presos.
O General Tobescu, ex-chefe do corpo degendarmes, disse de um canto em voz alta
quando ouviu isso: "É esta a sorte que os socialistas ocidentais preparam para si, quando se
fazem aliados dos comunistas".
O Abade Superior de Iscu, Tismânia, meu vizinho, benzeu-se. "Pelo menos
podemos ser gratos por haver ele ido para Deus no final de tudo", disse calmamente.

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O Sargento-mor Bucur discordou, do outro lado da sala. "Nada de sorte! Ele nos
dizia que não podia pensar em Cristo como Deus".
Respondi: "Filipescu descobrirá a verdade, agora no outro mundo, porque amava a
Jesus, que a ninguém rejeita. O salteador que no Gólgota se converteu e a quem Jesus
prometeu o paraíso, chamou-o homem, apenas. Creio na Deidade de Jesus - e também no seu
amor por aqueles que não podem vê-la".
Bucur não amava a ninguém, mas cultuava o seu conceito de Estado, ele próprio na
qualidade de vice-rei da vila onde havia exercido sua justiça. Adorava contar a todo mundo
como, sendo sargento da gendarmaria, tinha surrado ladrões e mendigos, espancado os
próprios homens a seu serviço quando estes ousavam responder-lhe, e - especialmente,
surrado judeus. "Não deixava marca nenhuma neles", dizia com orgulho. "Punha-lhes
primeiro sacos de areia frouxa nas costas. Isso machucava e dói muito, mas eles não
podiam queixar-se porque nada tinham a mostrar!"
Não podia entender por que fora deposto sob o novo regime. Estava pronto a dar
sovas em anticomunistas com tanto gosto quanto outro qualquer no cumprimento do dever.
Conquanto muito doente, Bucur não queria admitir isso. Quando o Dr. Aldeã o
examinava um dia, ele explodiu: "Por que estão me conservando aqui? Não tenho nada de
doença. Não sou o que estes outros são!"
Aldeã olhou o termômetro, meneou a cabeça e disse: "Pelo contrário, você está muito pior
que eles. Deve parar de discutir e pensar em sua alma!".
Bucur ficou irado: "Quem o senhor pensa que é?", exclamou depois que o médico
saiu.
"Desconfio que Aldeã tem sangue de judeu", acrescentou - era a pior coisa que podia
pensar de alguém.
Gostava de contender com Moisescu, um judeu baixinho, de meia-idade, cuja cama
ficava junto à sua.
"A Guarda de Ferro sabia como tratar vocês", disse. "Você sabe", redarguiu Moisescu
calmamente, "que fui preso na qualidade de membro da Guarda de Ferro?". O riso foi geral na
sala, "Foi mesmo", protestou. "Após a Guarda de Ferro ter sido derrubada, era crime terrível
possuir uma camisa verde, porque era considerada distintivo dela. Nós, judeus, perdemos
tanto durante o seu domínio que cheguei a pensar: 'Eis uma oportunidade de voltar às
nossas mãos alguma coisa do que perdemos. Vou comprar todas as camisas verdes que não
foram vendidas, para tingi-las de azul e vendê-las'. Minha casa foi abarrotada de quantas
camisas verdes havia em Bucareste. Foi quando a polícia apareceu para uma investigação. Não
quiseram ouvir minhas explicações e assim fui classificado de Guarda de Ferro. E então aconteceu
um judeus ser preso como simpatizante dos nazistas!"
Não obstante Bucur declara a plenos pulmões ser cristão militante, sua vida inteira foi uma
luta com Deus. Ia à Igreja, mas não havia quem o orientasse. Os padres de sua aldeia não eram
ministros de religião, senão mestres de cerimônias. Não podia compreender, agora, a razão de
estar sofrendo e morrendo, nem qual a verdade que havia na fé.
Disse-lhe eu: "Você é de parecer, agora, que não há razão para esperança. Todavia o mais
escuro da noite é o que se avizinha do nascer do sol. Os cristãos crêem que aurora vai raiar. A fé
pode ser declarada em duas locuções:” ainda que o" e "mesmo assim". Lemos no Livro de Jó:
"Ainda que o Senhor me mate, mesmo assim nele esperarei". Muitas vezes aparecem,
correlacionadas na Bíblia, essas duas locuções. Ensinam-nos a ter fé nos momentos mais
caliginosos".

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Bucur sentia-se grato por alguém interessar-se no seu caso. Contudo não manifestava
remorso algum pelas crueldades e maldades de outrora, até o dia em que viu que o Dr. Aldeã
tivera razão. Sua vida declinava rápido. Disse com voz assustada: "Morro por meus pais".
Passou horas inconsciente. Voltando a si, declarou: "Quero confessar-me - diante de todos
vocês. Tenho pecado tanto. Não posso morrer pensando nisso". Sua voz adquiriu uma calma
estranha. Contou-nos como trucidara judeus em quantidade, agindo não para cumprir ordens,
mas porque sabia que nunca seria castigado. Matara mulheres e um menino de doze anos.
Tivera sede de sangue, como um tigre.
No fim de sua narração, murmurou: "Agora o Sr. Wurmbrand vai ter ódio de mim".
Repliquei: "Não - você é quem odeia esta criatura que matava. Você a injuriou e repeliu
de si. Não é mais aquele assassino. O homem pode nascer de novo".
Na manhã seguinte ele ainda vivia: "Não disse tudo ontem, tive medo", declarou-me.
Atirara em crianças nos braços das mães. Quando a munição se acabava, esbordoava-as
com cacete até morrerem. Sua história terrível parecia não ter fim, mas quando a deu por
terminada caiu em prostração. Sua respiração era difícil e irregular. O peito arfava, como
se lhe faltasse ar suficiente. Todos estávamos em silêncio. Suas mãos cerravam-se e se
descerravam sobre o sujo lençol, e depois agarraram a pequena cruz que trazia ao pescoço. Da
garganta vinha o ruído da agonia e logo após expirou.
Alguém chamou um preso no corredor. Dois homens entraram e levaram o corpo
de Bucur. O sol matinal penetrou pelas janelas, alumiando-lhe o rosto, mas agora que os
olhos estavam fechados e os traços rígidos da boca se haviam relaxado, sua feição cadavérica
tinha uma expressão de profunda paz, que nunca na vida ele houvera conhecido.
Presos de outras salas do hospital vinham muitas vezes à Sala Quatro a fim de passar
a noite conosco, prestando auxílio aos moribundos e os confortando.
Pela Páscoa um amigo levou alguma coisa enrolada num pedaço de papel para Valeriu
Gafencu, um ex-soldado de cavalaria da Guarda de Ferro, Ambos procediam da mesma cidade.
"Trouxe isto escondido", disse. "Abra!”
"Gafencu desembrulhou. Eram dois torrões de uma substância alvíssima açúcar!
Já fazia anos que nenhum de nós via pedaços de açúcar. Nossos corpos depauperados
ansiavam por aquilo. Todos os olhares caíram em Gafencu e na presa que ele sustinha nas
mãos. Devagar embrulhou de novo.
"Ainda não vou comê-lo", disse. "Alguém pode estar em piores condições do que eu
durante o dia. Mas, agradeço-lhe".Colocou o presente com cuidado ao lado da cama, onde
ficou. Poucos dias depois minha febre subiu, enfraquecendo-me muito. O açúcar foi
passado defuma cama para outra até que parou na minha.
"É um presente", disse Gafencu. Agradeci-lhe, mas deixei o açúcar intacto, para o
caso de alguém precisar dele mais do que eu no dia seguinte. Quando minha crise
serenou, dei-o a Soteris, o mais idoso de dois comunistas gregos, cujo estado era grave.
Durante dois anos o açúcar passou de mão em mão na Sala Quatro (e duas vezes
esteve comigo); cada vez o paciente tinha forças de resistir a ele. Soteris e Glafkos eram
guerrilheiros comunistas, que fugiram para a Roménia ao fim da guerra civil na Grécia.
Foram detidos, como outros muitos dos seus camaradas, por serem maus combatentes. Agora
não se cansavam de blasonar das suas proezas, antes que a maré da luta se voltasse
contra eles. Assaltaram os famosos mosteiros do monte Atos, pilhando o que puderam levar e
destruindo o que não levaram. Não se permitia a presença de mulheres no monte, e muitos
dos 2.000 monges não as viam já fazia anos. "Levamos conosco um grupo de moças

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guerrilheiras", adiantou Soteris. "Vocês precisavam ver como aqueles marmanjos
dispararam a correr!"
Soteris orgulhava-se do seu ateísmo, ao passo que pilheriava e tinha esperança de viver:
mas à aproximação da morte, clamava a Deus por auxílio. Só a voz sumida do padre, a prometer-
lhe o perdão celestial, podia sossegá-lo. Também ele, depois, encontrou grande força moral para
renunciar aos dois pedaços de açúcar.
Seu corpo foi preparado para a sepultura por um preso de fora, que muitas vezes foi
ajudar-nos. Era conhecido, respeitosamente, como "Professor", sendo Popp o seu nome.
Raramente seu vulto de homem ilustrado, ombros baixos, aparecia desacompanhado de alguém que
dele recebia lições de história, francês ou outra matéria.
Perguntei-lhe certa vez como conseguia haver-se sem material de escrita. Explicou:
"Esfregamos um pedaço de sabão numa mesa e depois riscamos as palavras com a unha".
Admirando-me de sua tenacidade, seus inocentes olhos azuis brilharam: "Eu costumava pensar
que ensinava para viver. Na prisão aprendi que ensino porque amo os meus alunos!"

"O senhor tem vocação, como os padres dizem". "Bem, replicou, "aqui descobrimos o que
valemos".
Ao perguntar-lhe se era cristão, pareceu embaraçado. "Pastor, tenho tido muitas
decepções. Na minha última prisão em Ocnele-Mari, a igreja foi transformada em armazém.
Pediram que alguém fosse derrubar a cruz da torre. Ninguém ligou. Por fim um padre
voluntariamente atendeu ao pedido".
Disse-lhe que nem todos quantos recebem ordens sacras têm coração sacerdotal; nem
todos quantos se têm chamado cristãos são discípulos de Cristo no verdadeiro sentido do termo. "O
homem que vai ao barbeiro para barbear-se, ou encomenda roupa ao alfaiate não é discípulo dele, e
sim freguês. Assim, quem se chega ao Salvador somente para ser salvo é cliente dele, não seu
discípulo. Discípulo é aquele que diz a Cristo: "Como anseio realizar uma obra igual à tua! Ir de
lugar em lugar expulsando o medo, e em substituição deixando alegria, verdade, consolo e vida
eterna!"
Popp sorriu. "Mas que diz daqueles que se tornam discípulos na undécima hora?
Tenho-me intrigado em ver tantos ateus convictos virarem crentes no fim".
Observei-lhe que nossas mentes não operam sempre no mesmo nível. "Um gênio
pode conversar asneiras às vezes, ou brigar com a esposa, mas não é julgado por essas ações.
Devemos respeitar nossas mentes, como à dele, quando operam no máximo de sua
autenticidade - quando lutam por encontrar uma saída em momentos de crise suprema.
Quando a mente se vê forçada a atravessar o desfiladeiro da morte é que a fachada de
ateísmo quase sempre rui por terra".
"Como admitir que um homem qual o Sargento Bucur chegue a desejar com
ardor confessar seus crimes de público?"
Respondi: "Já morei perto de uma estrada de ferro, mas nunca notei os trens durante
o dia por causa do barulho da cidade. À noite, entretanto, ouvia bem distintamente os apitos.
Assim é que a gritaria e alvoroço da vida podem fazer-nos surdos à voz mansa da
consciência. Quando a morte se aproxima no silêncio da prisão, onde não há distrações, é
que ouvimos a voz nunca antes ouvida".
O Abade interveio: "Na minha última prisão, em Aiud, havia um pobre homicida em
confinamento solitário. Passava a noite a se levantar e bradar: Quem está na cela aí junto?
Por que não para de bater na parede"."E parou?" indagou Popp. "Na cela junto não havia
ninguém".
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"Vou rematar com mais uma", disse Moisescu interrompendo. "No lugar em que
por último estive, havia um Guarda de Ferro que tinha assassinado um rabino. Sentia e estava
certo que o rabino montava nos ombros dele e lhe metia esporas nas ilhargas".
Não tendo forças para me banhar, o professor Popp tomou a si essa tarefa. Perguntei-
lhe se havia chuveiros lá para os outros lados da prisão, onde ele estava. "Sim!" respondeu.
"Na República Popular da Romênia temos as mais modernas instalações. Só que não
funcionam! Os chuveiros não têm visto água já faz anos". Empertigou-se e continuou:
"O senhor já ouviu contar do comunista e do capitalista que morreram e se
encontraram no Inferno? Viram eles lá dois porões. Em um estava o aviso "Inferno
Capitalista" e no outro, "Inferno Comunista". Apesar de os dois homens serem de classes
inimigas, começaram a raciocinar juntos para decidir qual dos infernos era o melhor. O
comunista disse, "Camarada, entremos no departamento comunista. Lá, quando há carvão
não há fósforos. Quando há fósforos não há carvão. E se acontece haver carvão e fósforos, a
fornalha enguiça!"
O Professor continuou a banhar-me enquanto os outros riam. Aristar, que era
fazendeiro, disse: "Os primeiros comunistas foram Adão e Eva".
"Por quê?", perguntou o obsequioso Popp. "Por que não tinham roupa nem casa e
tiveram de dividir entre si uma maçã só - e ainda se julgavam no paraíso".
As piadas e histórias que contavam faziam-nos bem. Homens que passavam o dia
inteiro deitados, só a pensar na sua miséria, tinham como obra de misericórdia alguém
para ajudá-los a esquecer aquilo. Eu conversava muitas vezes durante horas a fio, embora
doente e tonto de fome: uma história, como um pedaço de pão, podia segurar a vida de
qualquer um. Quando Popp insistia comigo para que me poupasse, eu dizia que ainda
sentia bastante disposição para mais uma anedota naquela manhã.
O Talmude conta-nos que um rabino passeava na rua, quando ouviu a voz do
profeta Elias, a dizer: "apesar de você jejuar e orar, nunca mereceu o lugar elevado no
Céu que está esperando por aqueles dois homens lá do outro lado da rua". O rabino
correu para os forasteiros, perguntando-lhes: "Os senhores dão muito para os pobres?"
Eles riram: "Não, nós somos mendigos".
- Então os senhores oram continuamente, não é?
- Não. Somos ignorantes. Não sabemos orar.
- Digam-me então o que fazem.
- Dizemos gracejos. Fazemos pessoas rir, quando estão tristes.
Popp olhou com surpresa: "Está-nos dizendo que os que fazem os outros rir
podem ter maior honra no Céu do que aqueles que jejuam?"
"É isto o que ensina o Talmude, que é um livro sapiencial judaico. Entretanto
podemos também ler na Bíblia - no salmo dois - que Deus algumas vezes ri".
Popp observou, enquanto me ajudava a vestir roupa: "Ele aqui não acharia muito
do que rir - mas onde Deus está, pastor, e por que não vem em nosso auxílio?"
Respondi: "Houve um pastor que foi chamado a ver um moribundo. Encontrou a
mãe procurando consolar uma filha que chorava. A moça indagou: 'Onde está o braço
protetor de Deus, a que o senhor se refere quando prega, pastor?” Replicou-lhe: "Está no
seu ombro, sob a forma do braço de sua mamãe".
"Cristo está conosco de muitos modos na prisão. Primeiro, pode ser visto em
nossos médicos crentes, que são castigados e maltratados, mas continuam ajudando-nos.

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Alguns funcionários médicos em Vacaresti também fizeram entrar lá remédios
secretamente, e por isso ganharam dez anos de cadeia".
"Segundo, Cristo está aqui na pessoa dos padres e pastores que trabalham para
suavizar a carga dos demais, e na pessoa de todos os cristãos que fornecem alimento, roupa
e ajuda aos que estão em piores condições do que eles. Terceiro, Ele está conosco na pessoa
dos que ensinam a seu respeito e também na dos que contam histórias. E o senhor tem Cristo
ao seu lado não só através dos que lhe prestam serviço como também sob a forma daqueles a
quem o senhor possa servir".
"Diz-nos Jesus que, no Juízo Final, Deus vai separar os bons dos maus,
colocando-os à sua direita e à esquerda. Jesus dirá aos da direita:” Vinde, possuí o reino que
vos está preparado desde da fundação do mundo, porque tive fome e me destes de comer;
era estrangeiro e me fostes ver; nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; estive na prisão e
me procurastes “. Os bons perguntarão:” Senhor, quando foi que fizemos tudo isso?”Cristo
responderá:” Quando o fizestes ao menor dos meus irmãos, a mim o fizestes .”
Gafencu passara toda a sua vida adulta na prisão, mas à semelhança de outros
membros da Guarda de Ferro, conquistados a fé cristã, não podia fazer o bastante que
compensasse os erros passados. Todos os dias ele dava o exemplo de pôr à parte um
pouco de sua magra ração para ajudar na alimentação dos mais fracos do nosso meio.
Seu anti-semitismo ficara para trás, e quando alguns dos seus velhos amigos fascistas
iam visitá-lo na Sala Quatro, saía-se de repente com a observação que os escandalizava:
"Eu gostaria de ver o país governado unicamente por judeus".
Seus camaradas fitavam-no horrorizados. "Sim", continuava Gafencu calmamente.
"O Primeiro Ministro, legisladores, funcionários públicos - todos. Só imporia uma
condição. Que fossem eles homens como os antigos governantes judaicos, como José,
Moisés, Daniel, S. Pedro, S. Paulo e Jesus mesmo. Porque se sobre nós tivermos outros
judeus da marca de Ana Pauker, a Romênia estará liquidada".
Gafencu fora preso contando dezenove anos. Passou a sua mocidade sem nunca
conhecer uma moça. Quando outros conversavam sobre sexo, perguntava: "Que é isso?"
Contou-me um dia: "Meu pai foi deportado da Bessarábia pelos russos. Não tivemos nunca
o bastante para comer. Eu era castigado na escola, depois fui posto na cadeia por fugir e
alistar-me na Guarda de Ferro. Nunca estive com uma só pessoa boa, de confiança e amável.
Dizia a mim mesmo:” O que se diz de Cristo não passa de lenda. Não existe hoje no mundo
ninguém com ele parecido, e não acredito que já houve “. Mas passados que foram poucos
meses na prisão, tive de admitir minha falta de razão. Estive com homens doentes que
davam a outros sua última fatia de pão. Numa cela vivi com um bispo de tanta bondade,
que tinha a impressão de que o contato da roupa dele podia curar". Gafencu passou um ano
na Sala Quatro, e todo esse tempo não podia deitar-se de costas, o que o fazia sofrer muito.
Precisava ser apoiado de contínuo. Cada dia que passava era menor sua capacidade de
governar o corpo, muitas vezes atendendo na cama suas necessidades. A seguir tinha de
esperar, algumas vezes à noite durante horas, que alguém fosse fazer limpeza.
Pacientes mais fortes, da outra parte do presídio, tinham de se encarregar dos que
não podiam tomar conta de si, lavando camisas, roupas de baixo, fronhas, algumas vezes
vinte lençóis por dia, embora para isso tivessem de quebrar o gelo no pátio para encontrar
água. O que era meu sempre estava rijo de pus e sangue, mas quando procurava impedir que um
amigo o lavasse, ele se zangava.
Gafencu nunca se queixava. Sentava-se em silêncio na cama, algumas vezes movendo a
cabeça de leve em sinal de afirmação ou de agradecimento. Quando se veio, a saber, que não ia

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viver muito, seus amigos, velhos e novos, rodearam-lhe o leito com lágrimas nos olhos. Suas
últimas palavras foram: "O Espírito de Deus deseja-nos para si com afeição extrema".
Quando faleceu, os outros ajoelharam-se e oraram. Eu disse: "Jesus nos afirma que se
uma semente não cai na terra e não morre, nenhum fruto poderá produzir, e que assim como a
semente renasce em bela flor, assim o homem morre e seu corpo mortal se renova em corpo
espiritual. E o seu coração, que chegou a encher-se dos ideais do Cristianismo, com certeza dará
fruto".
Depois que um padre pronunciou uma oração. Gafencu foi envolvido no seu lençol e
levado para a sala mortuária. À noite foi sepultado numa vala comum por criminosos
sentenciados, aos quais cabia sempre aquela tarefa.
Levas de novos presos foram chegando sempre mais a Tirgul-Ocna, os quais nos
puseram a par de fatos que estavam ocorrendo lá fora, parecendo-nos às vezes que nós,
naquele presídio, dificilmente estaríamos em piores condições do que os “livres"
operários e camponeses. Os salários nunca foram tão baixos. Proclamou-se que o dia de
trabalho seria de oito horas, mas podiam-se trabalhar doze, sendo essa a diária "normal",
e depois, o trabalho "voluntário" e preleções marxistas consumiam o resto do tempo que se
podia dedicar à vida no lar; em qualquer caso, todo apartamento abrigava duas ou mais
famílias.
Greves eram ilegais. Um recém-chegado, idoso e torto, antigo membro do
sindicato de trabalhadores, de nome Bons Matei, disse-me: "Faz quarenta anos que fui
preso por lutar a favor da jornada de trabalho de oito horas, e agora que o governo é
comunista trabalho quatorze horas na prisão". Seu crime consistiu em escrever uma carta
anônima ao Camarada Gheorghiu Dej, chefe do Partido, protestando a favor dos seus
companheiros de trabalho e contra a grave condição deles, e dizendo que, em qualquer
Estado capitalista, eles teriam o direito de negar-se ao trabalho. A Polícia Secreta foi ao seu
depósito de material rodante e apreendeu exemplares de caligrafia dos 10.000 operários. Após
semanas de investigação, Boris foi acusado de procurar fomentar uma greve, recebendo
quinze anos de cárcere por tentativa de sabotagem.
Continuou ele firme no seu credo marxista. Não simpatizava com os grupos dissidentes
que, com ele, deram entrada na cadeia: maçons, rotarianos, teosofistas, espíritas. Nem tinha
pena dos poetas e novelistas que tinham sido trancafiados por seu descortino
independente: foram por seu turno convocados ao Q.G. do Partido para receber suas
ordens, devendo eles fazer outra coisa melhor que correr atrás do fogo-fátuo de verdades
objetivas.
Boris argumentou que Lenin havia frisado em seus livros a importância de se encontrar
na vida um ponto de vista a que se devia apegar. "A linha de conduta do Partido?"
Perguntei. "Mas sua doutrina inverte todos os conceitos filosóficos. Se da minha cama
contemplo a cela, vejo só a janela. Se olho de onde o senhor está sentado, vejo a porta. Se fito
o chão, a sala não tem teto. Cada ponto de vista é em verdade um ponto de cegueira, porque
nos incapacita de maneira total para enxergarmos outros pontos de vista. Somente quando
abandonamos todos os "pontos de vista" e aceitamos nossa intuição do conjunto é que
encontramos a verdade. S. Paulo diz: "O amor crê tudo" - não só o credo deste ou daquele
grupo.
Mas falar em religião era provocar raiva em Boris. "Não há Deus nenhum, nem
alma nenhuma! Só existe matéria. Desafio o senhor a que me prove o contrário".
Respondi que ele devia extrair seus argumentos de um livro de texto comunista, no
qual eu via a seguinte definição de beijo: "Beijo é a aproximação de dois pares de
lábios, transmitindo eles um ao outro micróbios de dióxido de carbono". "O amor, o
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desejo ardente, ou a falsidade que o beijo pode representar, isso não tem lugar na filosofia
dos senhores. Esse esgotamento dos valores espirituais afeta o lado material da vida, isso
que os senhores consideram de toda importância. Arranca dos operários o coração, de sorte
que a qualidade inferior dos produtos de países comunistas tem-se tornado proverbial".
Boris interveio: "Conheço o dito de ter sido o descanso feito para o homem, não o
homem para o descanso, porém todos existimos para beneficiar o Estado. A perda da
liberdade individual e da propriedade privada são passos que levam” a liberdade universal
“.
Eu pensei que até um cachorro luta com alguém que tente arrebatar-lhe o osso que
tem, mas se uma sentença de quinze anos não curara Boris de suas ilusões, argumentar
com ele provavelmente não adiantava. Ele também podia ser um da mais recente safra de
informantes. As informações delatórias tinham-se espalhado como praga. A pessoa podia ser
denunciada por falar em Deus ou orar alto; até por aprender ou ensinar uma língua
estrangeira. Acontecia muitas vezes que o dedo delatório era de um amigo, dentro ou
fora da prisão, de um filho, pai, esposa ou esposo. A pressão exercida para que se
denunciasse era forte e cruel. De fato, o informante era provavelmente uma ameaça pior
aos homens "livres" do que aos que jaziam atrás das grades. Na Sala Quatro falávamos
mais livremente do que era possível acontecer em qualquer outra parte da Romênia, de
vez que todos lá nos encaminhávamos para a morte.
Chegou o aniversário dos "dez dias que abalaram o mundo" a revolução russa do mês
de novembro de 1917 - e o Professor Popp comemorou o fato com uma anedota. No
primeiro aniversário da vitória do Bolchevismo, disse ele, os novos governantes realizaram
uma caçada nas florestas perto de Moscou. Lá pelas tantas repousaram junto a uma fogueira e
Lenin perguntou: "Digam-me, camaradas, o que é que vocês consideram o maior prazer da
vida?" "A guerra", disse Trotsky. "Mulheres", acudiu Zinoviev.
"A oratória - a força de manter vasta multidão presa aos nossos lábios", disse
Kamenev por sua vez. Stalin, como sempre, ficou taciturno, mas Lenin insistiu: "Diga-me a
sua opinião!" Por fim, Stalin falou: "Nenhum de
vocês sabe o que é um verdadeiro prazer. Vou dizer: É odiarmos uma pessoa e durante
anos fingir que a estimamos, até que um dia ela reclina confiantemente a cabeça no nosso
peito. Nesse ponto cravamos-lhe um punhal nas costas. Não há na vida maior prazer do que
este!"
Fez-se longo silêncio. Já por essa época conhecíamos algo da crueldade de Stalin: o
resto, revelado depois de sua morte por seus próprios companheiros, provou a veracidade
dessa história arrepiante.

TERCEIRA PARTE

Por algum tempo veio a falar-se assustadoramente de um sistema de "reeducação"


de prisioneiros, que se adotava nas penitenciárias de Suceava e Piteshi. Tal sistema
dispensava livros, mas empregava açoites. Os mestres eram de ordinário vira-casacas da
Guarda de Ferro, que formavam uma "organização de prisioneiros de convicções
comunistas" (PCC). Ouvíamos referir os nomes de Turcanu, Levitkii e Formagiu, como sendo
os organizadores desses grupos. Ao que se dizia, eles se portavam como selvagens.
Temíamos que esse processo fosse adotado entre nós, mas Boris chacoteava. Não
podia crer que seus ex-companheiros esquerdistas viessem a permitir atrocidades.

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Disse: "Eles sabem que 'o terror nunca extirpou ideias pelas raízes'. Foi o que Karl
Kautsky, o pensador Social Democrata, escreveu no início da revolução russa".
Retorqui: "Sim lembro-me do que Trotsky, que foi Ministro da Guerra, respondeu:
'Sr. Kautsky, o senhor não sabe qual o terror que vamos pôr em prática". É uma ironia que
as próprias ideias de Trotsky fossem desarraigadas efetivamente pelo terrorismo na Rússia
quanto o foi o Capitalismo".
O Abade interveio: "Temo que terror e tortura, praticados impiedosamente e por longo
tempo, esmaguem a resistência de qualquer pessoa, a menos que Deus opere um milagre".
"Não creio em milagres", disse Boris: "Podemos passar sem eles, obrigado. Nada
ainda abalou minhas convicções”.
A atmosfera no presídio piorou depois de uma breve visita de Formagiu, líder da
"reeducação" em Piteshi, trazendo ele instruções para inaugurar o sistema entre nós. Até então,
embora os suplícios ocorressem na maior parte do dia, sabia-se que cedo ou tarde os guardas se
afastavam para comer ou dormir. Agora os "prisioneiros de convicções comunistas" vieram ficar
conosco. Tinham o poder de espancar e intimidar à vontade, possuindo para isso cassetetes de
borracha. Tinham sido escolhidos a dedo pelas autoridades dentre os piores prisioneiros e os mais
violentos, sendo que não havia um grupo de dez ou vinte homens do PCC, e o número destes
crescia sem parar. Os que se declarassem prontos a tornarem-se comunistas tinham de provar
sua conversão, "convertendo" outros de modo igual.
Grosseira violência era realçada por períodos de mais apurada crueldade, sob
supervisão médica para que os presos não morressem. Acontecia muitas vezes que médicos eram
PCCs. Conheci um Dr. Turcu que, depois de examinar um companheiro de cela, aconselhava
uma pausa, dava no homem uma injeção para aumentar-lhe a resistência e dizia aos
reeducadores quando deviam recomeçar. Era Turcu quem decidia quando o homem chegava
ao limite de resistência e podia ser jogado de volta na sua cela até ao dia seguinte.
Uma onda de loucura varria a prisão. Os pacientes tuberculosos eram despidos,
deitados na laje fria e molhados com baldes de água gelada. Lavagem (comida de porco)
era atirada ao chão na frente de presos que por vários dias não tinham visto comida; com as
mãos atadas às costas eram forçados a lamber aquilo. Nenhuma humilhação, por mais vil
que fosse, era dispensada. Em, muitas penitenciárias os valentões PCCs faziam presos
engolir excremento e beber urina. Alguns choravam e suplicavam que pelo menos lhes
desse o excremento deles próprios e não de outros. Alguns enlouqueciam e passavam a
gritar por mais. Sentenciados eram levados a praticar de público atos de perversão sexual.
Nunca imaginei que tais maneiras de levar a ridículo o corpo e a alma fosse possíveis.
Os que se apegavam à sua fé eram os que mais sofriam maus-tratos. Cristãos
eram atados em cruzes durante quatro dias e diariamente as cruzes eram colocadas no
chão. Mandava-se então que outros presos defecassem nos rostos e corpos deles. Depois
disso as cruzes eram de novo levantadas.
Um padre católico, levado à Sala Quatro, contou-nos que na prisão de Piteshi,
num domingo, fora empurrado para dentro da fossa sanitária, recebendo ordem de dizer a
Missa sobre excremento e dá-lo aos demais presos em comunhão.
"O senhor obedeceu?" perguntei.
Ele cobriu o rosto com as mãos e chorou: "Sofri mais do que Cristo", afirmou.
Tais coisas se faziam com o incentivo dos administradores da prisão, e ordens vindas
de Bucareste. Turcanu, Formagiu e os outros especialistas eram levados de uma prisão a
outra para recrutarem PCCs e desse modo não deixarem que a campanha esfriasse.
Líderes do Partido, até homens do Comitê Central, como Constantino Doncea e o Sub-
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Secretário do Ministério do Interior, Marin Jianu, foram observar aquela brincadeira
macabra. Boris, que trabalhara com Jianu, rompeu pelo meio dos guardas para protestar,
mas se Jianu chegou a reconhecer o seu ex-coleganão quis admitir aquela manifestação.
"Não interferimos quando um porco ataca outro!" disse; noutras palavras, o Partido nada
tinha a ver com os torturadores, mas permitia que torturassem. "Leve-o daqui", disse Jianu.
Boris foi surrado até que em gritos pediu misericórdia.
O velho combatente sindicalista ficou de todo abatido. Exposto a humilhações e
tortura dia e noite algo nele se consumiu. Rastejava para beijar as mãos de quem o surrava.
"Obrigado, camarada", dizia. "Você me trouxe para a luz". E passava a tagarelar em torno
das alegrias do comunismo, e como se tornara ele criminoso em persistir no erro. Depois
de um colapso daquele, seu respeito próprio exigia dele um revezamento total de
lealdade; do contrário pareceria ridículo aos seus próprios olhos. Boris aderiu ao grupo
PCC. Um dos primeiros em que ele empregou seu cassetete foi o Dr. Aldeã.
O sistema de reeducação - importado da Rússia - produziu resultados incríveis.
Vítimas deixavam escapar segredos que haviam guardado durante meses de interrogatório.
Denunciavam amigos, esposas, pais. Daí a onda de milhares de novas prisões.
Por esse tempo um grupo de doentes das minas de chumbo foi trazido para uma cela
especial em Tirgul-Ocna. A esses juntaram-se outros presos que, vendo serem padres
alguns dos recém-chegados, confessaram-se e deste modo ganharam a confiança deles.
Os homens procedentes das minas falavam livremente de suas secretas atividades religiosas
e políticas. Depois foram removidos para uma cela maior, a fim de serem reeducados - e aí
souberam que tinham estado a conversas com delatores.
Um deles foi levado contundido e sangrento para a Sala Quatro. Contou-nos que o
"reeducador" em serviço era um jovem possante, de sorriso franco, que passava todo o
tempo a gracejar. "Isto dói?" perguntava. "Que pena!" Vamos experimentar outra coisa.
Já gozou isto?". "Se eu pudesse agarrar aquele sujeito um dia", exclamava a vítima, "eu o
esfolaria vivo". "Pois não", fremiu o velho fazendeiro Badaras. "E por cima sal e pimenta,
sem falta!" Badaras recitava diariamente uma prece: "Em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo. Ó Deus, destrói os comunistas, faze-os sofrer, fere esses porcos!"
"Por que diz isso?" perguntei-lhe. "Não é de se esperar tal coisa de um cristão".
De punhos cerrados para o Céu, imprecava: "Digo isso porque Deus não há de
receber no paraíso quem não amaldiçoar esses bastardos!"
Muitos, como Badaras, viviam a pensar como poderiam torturar os seus
torturadores; acreditavam no Inferno somente para poder fritar nele os comunistas.
"Não devemos dar largas ao ódio", dizia eu. "Esses homens, como Boris, sucumbiam
sob terrível pressão".
Boris no entanto era agora um assunto que irritava e pungia na Sala Quatro. A
tentativa de provar sua conversão ao comunismo com o espancamento do Dr. Aldeã - que não
escondia o desprezo que voltava a Tuircu e aos outros médicos PCCs - fez dele, Boris, um
dos homens mais odiados na prisão. Aldeã sofria muito com uns furúnculos que tinha nas
costas e nos ombros, pois Boris espancou-o exatamente nas costas. Presos teriam dado a
vida por Aldeã, que a eles estava dando a sua. Depois da surra, o médico foi ocupar um
leito na Sala Quatro. Após isto chegou alguém para dizer que um preso gravemente
enfermo pedia a presença dele.
"O médico não pode andar, de tão doente que está!", disse o Abade. Aldeã
perguntou: "Quem é ele?" "Boris", foi a resposta. Aldeã desceu penosamente do leito e
ninguém lhe disse nada ao sair ele da sala.
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O Abade Iscu falou algumas vezes de suas experiências nos acampamentos de
escravos do canal Danúbio - Mar Negro, onde milhares morriam de maus-tratos e fome. O
canal tinha sido começado a instigações da Rússia - de vez que ajudaria a escoar da Romênia
os seus produtos com maior rapidez do que já vinha sendo feito e também por ser ele um
projeto que prestigiaria nosso Governo. Era um plano gigantesco e de tal forma se tornara um
símbolo das realizações comunistas, que, advertindo um grupo de engenheiros que não era
provável que o rio viesse a suprir bastante água que desse para o canal e ainda para a rede de
irrigação, eles foram fuzilados como "sabotadores da economia" do país. Os recursos da
Romênia foram aplicados prodigamente na execução do projeto, e mais de 200.000
prisioneiros, tanto políticos como de crimes comuns, trabalharam nele de 1949 a 1953.
O Abade fora parar na Poarta Alba, uma das colónias penais ao longo da rota do canal.
Vivendo em barracas desengonçadas, atrás de cerca de arame, 12.000 pessoas tinham, cada
uma, de remover à mão oito metros cúbicos de terra por dia. Empurravam carrinhos de mão por
ladeiras íngremes, sob as pancadas dos guardas. A temperatura no inverso chegava a 25
graus Celsius abaixo de zero, e a água, levada em barris, gelava. As doenças eram frequentes.
Muitos presos penetravam em áreas proibidas ao redor do acampamento na esperança de
serem fuzilados.
Os criminosos mais violentos ficavam encarregados de "brigadas", cada uma de mais
ou menos cem presos, e recebiam, pelo que produzissem, pagamento em comida ou cigarros.
Os cristãos eram agrupados na chamada "Brigada dos Padres"; bastava que aí alguém
fizesse o sinal da cruz - ação reflexa entre os ortodoxos - para levar pancada. Não tinham dia
de descanso nem Natal nem Páscoa.
Entretanto em Poarta Alba, informou o Abade, ele testemunhou as mais nobres
ações. O jovem padre católico Cristea incorreu no ódio de um padre ortodoxo feito delator,
que lhe perguntou: "Por que você fecha tanto os olhos? É orando? Desafio que me diga a
verdade: você ainda crê em Deus?"
Responder "sim" significaria no mínimo levar umas chicotadas.
O Padre Cristea ponderou-lhe: 'Sei, Andreescu, que você me tenta como os fariseus
tentaram a Jesus, a fim de me acusar. Mas Jesus disse-lhes a verdade e é o que lhe digo. Sim,
creio em Deus".
"Bem! Crê também no Papa?" prosseguiu Andreescu.
Andreescu foi apressado ao oficial político, que veio e chamou o jovem diante
dos demais. Cristea estava magro e exausto: tremia de frio na sua roupa esfarrapada. O
oficial, bem nutrido, envolto no seu casacão e usando um chapéu de pelica russa, foi
dizendo: "Ouço contar que você crê em Deus".
O Padre Cristea abriu a boca para responder, e nesse instante alguém podia
entender por que está escrito no Evangelho segundo S. Mateus, que Jesus "abria a boca" para
proferir suas parábolas - uma coisa estranha por certo, visto como ninguém fala de boca
fechada. E aí estava Cristea com os lábios só semiabertos para falar, mas todos sentiam que
uma pérola preciosa ia escapar de sua boca naquele momento decisivo. Os cristãos
presentes ficaram cheios de pasmo.
Disse ele: "Quando fui ordenado, sabia que milhares de padres, através da história,
tinham pago com a vida a sua fé. E sempre que subia ao altar, prometia a Deus: "Agora eu
vos sirvo como estes belos paramentos, mas ainda que me trancassem em prisão eu ainda
vos serviria". E assim pois, tenente, prisão não é argumento contra a religião. Eu creio em
Deus".

54
O silêncio que se seguiu era quebrado apenas pelo ruído do vento. O tenente
parecia procurar o que dizer sem achar. Por fim disse: "E você crê no Papa?" Veio a
resposta: "Sempre tem havido Papas desde S. Pedro. E até que Jesus volte os haverá sempre. O
atual Papa não procurou fazer paz com os comunistas, nem disso cogitarão os seus
sucessores. Sim, acredito no Papa!"
O Abade terminou sua história, dizendo: "Achei difícil perdoar meu irmão
ortodoxo que se fizera delator, e não sou adepto de Roma absolutamente, mas naquele
instante foi como se gritasse Viva o Papa!"
"Que aconteceu ao Padre Cristea?" Alguém indagou. "Foi trancado uma semana
na gaiola, onde se fica de pé e não se dorme; depois foi açoitado. Recusando-se a negar
sua fé, desapareceu das vistas. Nunca mais o vimos".
A reeducação reclamava novas vítimas todos os dias e a impressão cada vez
maior era que a menos que se fizesse alguma coisa todos acabaríamos "convertidos" ou
mortos. À Sala Quatro chegou o rumor de que uma espécie de protesto estava-se
preparando entre os presos comunistas, que eram os mais brutais de nosso meio: os
guardas estavam mais prevenidos com eles, porque os que hoje estavam presos, ontem
estiveram no poder e poderiam voltar a ele amanhã.
Os cristãos debatiam o que iam fazer: se houvesse um motim, dar-lhe-iam sua
adesão? Ou estavam eles no caso de "oferecer a outra face"? Vários presos eram de parecer
contrário a uma luta. Eu disse: "Costuma-se pintar Jesus como “manso e humilde" - mas
Ele também foi um combatente. Expulsou os vendilhões do templo com um azorrague e
aos seus primeiros seguidores apresentou como diretriz o Velho Testamento com o seu fogo e
violência".
Decidimos cooperar com os rebeldes. Pouco podia ser feito em sigilo por causa dos
muitos delatores no nosso meio e as desconfianças que havia entre anti-semitas e judeus,
entre camponeses e donos de terras, entre ortodoxos e católicos.
Na cidade de Tirgul-Ocna, a única distração que havia era um jogo semanal de futebol,
num estádio junto à prisão. No dia primeiro de maio, que coincidiu com uma explosão
selvagem de reeducação, ouvimos que um jogo comemorativo do Dia do Trabalho ia
realizar-se no estádio às 17 horas e que a cidade em peso estaria presente. Era uma
oportunidade que tínhamos de fazer uma demonstração. O sinal seria o despedaçamento de
uma janela.
Logo depois que o jogo começou ouviu-se um tilintar de vidro que se quebrava, e
então o presídio inteiro explodiu o alvoroço. Janelas eram espatifadas. Pratos e canecos eram
atirados fora com violência. Quebravam-se cadeiras. Alguém começou a cantar: "Ajudem-nos!
Ajudem-nos!" Das janelas mais acima, que davam para o estádio, homens gritavam: "Somos
torturados aqui! Seus pais, irmãos e filhos estão sendo assassinados!"
O jogo chegou ao fim. A multidão debandou e logo centenas de pessoas se postaram na
estrada ao pé do muro. Dentro, um dos presos cortou os pulsos e os guardas começaram a
zurzir com cacetetes. Os grupos na rua foram dispersados rapidamente por tropas a
coronhadas. Restava a tarefa de pôr em ordem o presídio e apurar os estragos e
acidentados. Entre eles estava Boris, que foi jogado ao chão a socos e ferido gravemente
ao procurar socorrer outro preso que estava sendo pisoteado pelos guardas. Outra vez o
Dr. Aldeã teve de atendê-lo. Mandamos recados amistosos, mas não houve resposta.
Depois soubemos que ele fora removido para outra penitenciária.
Notícias do motim espalharam-se rapidamente pelo país. Não houve represálias
imediatas; apenas o regime passou a ser mais severo. Os suspeitos de serem cabeças-de-

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motim foram removidos para outras prisões; privados da assistência médica que tinham
em Tirgul-Ocna, muitos deles morreram.
O Abade Iscu veio a ter maiores acessos de tosse todos os dias. Seu corpo, gasto por
anos de inanição e exposição às intempéries no canal, era atormentado por crises
terríveis. Ficávamos deitados a vigiá-lo nas vascas da morte. Algumas vezes não reconhecia
amigos que iam ajudá-lo. Quando ficava consciente, passava horas a murmurar orações, e
sempre tinha palavras de conforto para os demais.
Outros sobreviventes do canal tinham chegado a Tirgul-Ocna. O que relatavam dos
seus horrores soava como a notícia da escravidão dos israelitas no Egito, com a amargura
adicional de terem os oprimidos de louvar os seus opressos. Um famoso compositor, entre
os presos, fora forçado a escrever hinos de exaltação a Stalin, e ao som dos mesmos as
brigadas marchavam para o trabalho.
Certa vez um homem teve síncope e um médico deu-o por morto. O Coronel Albon, o
odiado comandante de Poarta Alba, bradou: "Porcaria!" Deu com o pé no cadáver.
"Ponham-no a trabalhar!"
Meu leito ficava entre o do Abade e o do jovem Vasilescu, que (era uma vítima de
espécie diferente do canal. Este era um criminoso comum que tinha sido encarregado da
Brigada dos Padres. Fizera-a trabalhar até que todos sucumbiram. Mas por alguma razão
o Coronel Albon começou a ter-lhe aversão, sendo ele tratado por seu turno com tanta
brutalidade que também se avizinhava da morte. Sua tuberculose estava bem adiantada.
Vasilescu não era um moço mau por natureza. Tinha a fisionomia grosseira, cara
larga com cabelos escuros, encrespados e baixos na testa, o que lhe dava a aparência de
um touro assustado. Rijo, sem instrução, gostava demais do que considerava as coisas boas
da vida para se fixar num estável; e ele tivera uma vida difícil. Assemelhava-se ao assassino
assalariado de "Macbeth" - "aquele a quem os torpes reveses e bofetadas do mundo têm
exasperado por tal forma que estou indiferente ao que faça para contrariar esse mundo".
Contou-nos: "Uma vez que vocês se vejam naqueles acampamentos farão seja o
que for para de lá escapar, seja o que for! E Albon me disse que se eu fizesse o que me
mandasse, eles me dariam Uberdade". Ele queria roupas, uma moça para levar a dançar. E o
Partido dava-lhe licença de escolher entre aderir aos torturados ou aos torturadores.
"Levaram vários de nosso meio a um acampamento especial onde treinavam a polícia
secreta", disse: "Uma das coisas que tínhamos de fazer era atirar em gatos e cães, e
liquidar com espigões de aço os que ainda ficassem vivos!" Eu falei para eles: "Não posso
fazer isso, não". Uma cara respondeu: "Então faremos com você".
Vasilescu tinha agora tristeza de si mesmo. Contou-me repetidas vezes as coisas
terríveis que fizera no canal. Não pouparam nem o Abade. Vasilescu estava a olhos vistos
as portas da morte, e procurei confortá-lo um pouco, mas ele não podia sossegar. Certa
noite despertou ofegante, com a respiração difícil. "Pastor, estou-me acabando", disse.
"Peço que ore por mim!" Cochilou e outra vez despertou, exclamando: "Creio em Deus!" e
desatou a chorar.
Ao romper do dia o Abade Iscu chamou dois presos para junto de si e pediu:
"Levantam-me daqui!". "O senhor está muito doente para andar", disseram. A sala inteira
ficou em alvoroço. "Que é que há?" alguns perguntaram. "Deixe que nós façamos!"
"Vocês não podem fazer", respondeu. "Levantem-me!"
Levantaram-no. "Levem-me ao leito de Vasilescu", disse.
O Abade sentou-se ao lado do jovem que o havia antes torturado, e pôs a mão
carinhosamente no seu braço. "Tenha calma", disse aquietando-o. "Você é moço. Era
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difícil você saber o que fazia". Enxugou o suor da testa do rapaz com um trapo. "Eu o
perdoo de todo o meu coração, e o mesmo fazem outros cristãos. E se perdoamos,
certamente Cristo, que é melhor do que nós, perdoará. Há no céu um lugar para você
também". Recebeu a confissão de Vasilescu e lhe deu a Santa Comunhão, antes de ser
recambiado ao seu leito.
À noite daquele dia o Abade e Vasilescu faleceram. Creio que de mãos dadas
ambos entraram no Céu.
O Dr. Aldeã disse-me que eu precisava de um pneumotórax. Podia ser feito em
poucos minutos, consistindo na introdução de uma agulha oca, por onde me entrasse ar
nos pulmões para intumescê-los. Foi uma operação relativamente indolor, depois da
qual ferrei no sono. Quando despertei, fiquei muito alegre por ver o Professor Popp
sentado à beira do meu leito. Estivera fora alguns meses, na penitenciária de Jilava;
também sofrera muito, submetido ao sistema de "reeducação". Conversamos durante
horas.
Contou-me que tinha havido muitos suicídios em Jilava. O mesmo acontecia noutras
prisões. Em Gherla e Piteshi homens lançavam-se dos andares superiores, até que os
espaços entres as plataformas foram cobertos de arame que os aparasse. Alguns cortavam os
pulsos com vidro, outros se enforcavam e ainda havia quem morresse depois de ingerir
detergentes que se usavam na limpeza. Um pobre ancião, padre ortodoxo, lançou-se de
cima de uma tarimba no chão, fraturando o crânio. Fizera isso várias vezes antes, sem
resultado. Desta vez morreu.
"Fora torturado", disse o professor. "Receava que, se os reeducadores viessem
sobre ele de novo, sucumbiria e trairia sua fé. Era um homem muito severo - um preso
confessou-lhe que uma vez trabalhara para os comunistas, e o Padre loja proibiu-o de
comungar durante quinze anos!"
Alguns dos suicídios eram afamados, como George Bratianu, um figurão da
política da Romênia de antes da guerra. Não achou outro meio de dar cabo da vida senão
negando-se a comer até morrer de inanição, sem ser notado entre os presos que nada
sabiam nem se incomodavam. O chefe do Partido Liberal, Rosculet, matou-se no cárcere
de Sighet: era um dos que tinham pensado que os comunistas "locais" não eram iguais aos
do tipo russo; depois, porém, de lhe darem o título de Ministro dos Cultos, o Partido
prendeu-o como contra-revolucionário.
As brutalidades da "reeducação" causavam inquietação em muitas penitenciárias,
propagando-se seus rumores pelo país. Foi quando dois incidentes isolados trouxeram à
luz a verdade.
Durante uma inspeção em Tirgul-Ocna, um odiado coronel da Polícia Secreta,
Sepeanu, descobriu uma nova cerca. "Por que vocês construíram isto?" Indagou do
Comandante Bruma. "A madeira podia ser muito mais bem empregada no espancamento
desses contra-revolucionários". E riu a valer.
A história causou uma raiva feroz. A atmosfera de revolta estava a explodir em Tirgul-
Ocna. Um ex-major exclamou: "Alguma coisa se precisa fazer!" E decidiu que ele era o homem
talhado para isso. Quando Sepeanu se foi, o major pediu que um investigador fosse trazido
especialmente de Bucareste, a fim de ouvir um segredo que ele deixara de confessar.
O investigador veio. O major disse-lhe: "O senhor sabe que estou cumprindo pena de
vinte anos como criminoso de guerra, por haver executado prisioneiros russos. Como major de
brigada, eu próprio não atirei naqueles homens. Vou dizer-lhe quem atirou. Foi um tenente
chamado Sepeanu, que hoje é o coronel da Polícia Secreta".

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E assim também Sepeanu foi julgado por crimes de guerra e sentenciado a vinte anos.
Durante o julgamento referiu o que estava acontecendo nas prisões sob o sistema de
"reeducação".
O segundo incidente envolveu outro chefe da Polícia Secreta. O Coronel Virgil Weiss
fora amigo de Ana Pauker e outros do Governo. Depois se desaveio com eles, e acabou na prisão de
Piteshi às mãos de Turcanu, chefe dos "Prisioneiros de Convicções Comunistas".
O homem que ajudava Turcanu a torturar vítimas contou-me depois que o Coronel Weiss
desfaleceu três vezes numa hora, enquanto trabalhavam nele. Faziam-no recuperar os sentidos com
água fria. Ele dizia: "Está certo - vou contar-lhes tudo quanto não disse - e vejamos se os seus
patrões vão agüentar-se". Turcam cria que ia topar segredos que dariam a ele a soltura que lhe
fora prometida. "Se você mentir agora eu o mato", advertiu. Weiss falou: "Tenho coisas
importantes a dizer, mas não a você. Concernem a traidores que ocupam altos postos".
Foi levado a Bucareste, onde passou várias semanas hospitalizado. Membros do
comité Central do Partido, rivais da súcia de Pauker, foram entrevistá-lo. Revelou ele
que Pauker, Luca e Georgescu, ministros do Governo, tinham-no aliciado para que obtivesse
passaportes falsos, com os quais pudessem escapar da Romênia, apressadamente, caso
houvesse necessidade. Tinha também transferido grandes somas de dinheiro para bancos
da Suíça.
A informação foi passada para Gheorghiu-Dej, Secretário Geral do Partido e
principal tramador contra o grupo de Pauker.
O Coronel Weiss narrou a história da reeducação e exibiu para os amigos de Dej
os efeitos dela no seu próprio corpo. Ficaram alarmados. Estava à vista outra reversão
na sorte do Partido: eles podiam em breve esperar por igual tratamento. Alguns
ignoravam tais excessos, e outros fingiam ignorá-los; mas agora começavam inquéritos. Os
principais "reeducadores" foram interrogados na sede da Polícia Secreta e alguns deles,
inclusive Turcanu, receberam pena capital.
O escândalo da reeducação usou-se como arma contra o Ministro do Interior, a
cuja frente estava Theohari Georgescu, e no expurgo político de 1952 o triunvirato que
havia governado a Romênia, desde que os comunistas assumiram o poder, foi derrubado.
Os outros Ministros envolvidos nas acusações do Coronel Weiss, isto é, Vasile Luca e Ana
Pauker, foram feitos bodes expiatórios da catastrófica inflação e dos desastres ocasionados
pela coletivização.
Muitos dos que foram ajudar-nos na Sala Quatro eram agricultores que se tinham
rebelado contra a coletivização forçada de suas terras. As cadeias da Romênia ficaram
cheias deles. Milhares de outros tiveram de enfrentar pelotões de fuzilamento.
Contaram-me histórias de estarrecer. Suas propriedades tinham sido tomadas sob
o regime da lei de "reforma agrária" de 1949, e nenhuma compensação receberam.
Tornados vagabundos da noite para o dia, sem mais nada a perder, contra-atacaram.
Funcionários públicos expunham-se a receber tiros, a levar surras ou serem queimados
vivos com gasolina. Tudo sem nenhum proveito. Aos agricultores faltava organização. A
rebelião deles ocorria em tempos e regiões diferentes, de sorte que o governo pôde
sempre esmagá-los.
Um velho rijo, criador de ovelhas, de nome Ghica, narrou-me: "A Polícia Secreta
mostrou-me dois rifles enferrujados. 'Desenterramo-los no seu celeiro', disseram. 'Se o
senhor aderir à coletivização poderá evitar um processo'. Bem, concordei. Quando,
entretanto, foram buscar meus animais, perdi a cabeça e procurei fazê-los parar com
aquilo. Deram-me uma surra e aqui estou cumprindo sentença de quinze anos. Perdi tudo.

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Terras, ovelhas, esposa, filhos!" Todos os fazendeiros lamentavam suas perdas no mesmo
sentido.
Contou-me outro como fora despojado dos seus rebanhos. Pediu para ficar pelo
menos com os chocalhos. Os funcionários riram, mas deixaram. O homem retirou os
chocalhos do pescoço dos animais, levando-os para o seu palheiro onde os dependurou
numa corda. A noite inteira ficou lá sentado, balançando os chocalhos de vez em quando.
Quando amanheceu, saiu correndo pelo meio da vila em direção da sede do Partido, e lá,
com uma facada, matou o secretário.
Um outro fazendeiro tinha dois cavalos que trabalhavam na lavoura. Seu maior
prazer era alimentá-los e tratar deles. Quando os levaram, ele queimou os estábulos da
fazenda coletiva.
Naquele ano, poucas pessoas da zona rural foram presas. Gheorghiu-Dej,
enquanto teve nas mãos as rédeas do Partido, fez-se a si mesmo Primeiro Ministro, em
1952, e procurou ganhar popularidade diminuindo o ritmo da coletivização. Luca, Pauker e
Goergescu foram demitidos dos seus cargos.
Chegou o inverno com pesadas nevascas. Grossos pingentes de gelo apareceram no teto,
e geada branquicenta emoldurava a vidraça das janelas. Fora, o frio tornava ofegante a
respiração. Em dezembro a neve chegou a l metro de 80 cm. Foi o mais rigoroso inverno
de quantos houve em cem anos, disseram. Não havia sistema de calefação, mas agora
tínhamos dois ou três lençóis para cada um, em lugar de um só do regulamento, porque
sempre que morria um da Sala Quatro tomávamos a sua roupa de cama. Foi quando
fizeram uma inspeção - e nos deixaram com um só lençol para nos cobrirmos. Dormíamos
com as nossas roupas durante todo o inverno. Acontecia muitas vezes não termos pão. A sopa,
feita de cenouras, das que não prestavam para se vender de tão carcomidas e moles que
estavam, ficou ainda mais rala.
Na véspera do Natal a conversa na prisão adquiriu um tom de maior seriedade. Houve
pouca briga, nenhuma praga, pouco riso. Todos nós pensávamos nas pessoas queridas de
casa, havendo um sentimento de solidariedade com o resto do género humano, o que de
ordinário ficava tão fora de nossas vidas.
Falei de Cristo, mas, o tempo todo tive meus pés e mãos frias como aço, meus
dentes a estalejar, e uma sensação de peso gelado no estômago, causada pela fome, parecia
espalhar-se pelo corpo todo, só ficando vivo o coração. Quando estanquei, um rapaz
simples, agricultor tomou-me a palavra no ponto em que eu parei. Aristar nunca frequentara
escola. Apesar disso falou com naturalidade, descrevendo a cena do Natal, como se tivesse
ocorrido em seu próprio celeiro naquela semana, provocando lágrimas em todos quantos o
ouviam.
Alguém começou a cantar na prisão, naquela noite. Começou baixinho, vindo-
me ao pensamento, entre outras cogitações, minha esposa e meu filho. Mas pouco a pouco a
voz foi aumentando de intensidade até ecoar nos corredores, fazendo todo o mundo suspender o
que estava fazendo.
Estávamos em profundo silêncio quando ele acabou. Os guardas, reunidos lá para os
seus aposentos em torno de um fogareiro, não se mexeram toda aquela noite. Começamos a
contar histórias e quando me pediram uma, pensei no cântico e narrei para eles a seguinte lenda
judaica: O Rei Saul levou Davi, o pastor de ovelhas, festejado por haver matado Golias, à sua
corte. Davi apreciava a música e ficou contente em ver uma harpa muito bonita num canto do
palácio real. Saul disse: 'Aquele instrumento custou-me caro, mas fui enganado. Só emite
sons desafinados'.

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Davi tomou a harpa a fim de experimentá-la, e nela tocou uma melodia tão encantadora
que todos ficaram comovidos. A harpa parecia rir, cantar e chorar. O Rei Saul perguntou: "Por
que foi que todos os músicos que chamei só tiraram ruídos dissonantes desta harpa, e só
você pôde produzir música?"
Davi, o futuro rei, replicou: 'Os que vieram antes procuraram tocar nestas cordas o
cântico que era deles mesmos. Eu, no entanto, fiz a harpa tocar o seu próprio cântico. Recordei, a
dedilhá-la, como tinha sido ela uma árvore nova, os pássaros a chilrear nos seus galhos de folhas
verdes, floridas, à luz do sol. Lembrei a seguir o dia em que alguns homens foram cortá-la,
por isso ouvimo-la gemer ao toque dos meus dedos. Expliquei então que esse ainda não era o
fim. Sua morte, como árvore, significava o começo de nova vida, em que glorificaria a Deus,
como harpa; por este motivo, ouvimo-la em notas de alegria".
"Assim, pois, quando o Messias chega, muitos procuram cantar em sua harpa os seus
próprios cânticos, vindo daí serem dissonantes os sons que emitem. Devemos cantar na sua
harpa o seu próprio cântico, a melodia de sua vida, do seu entusiasmo, suas alegrias, dores,
morte e ressurreição. Só assim a música será autêntica".
Foi uma melodia dessa natureza que ouvimos pelo Natal no presídio de Tirgul-
Ocna.
Aristar faleceu em fevereiro. Tivemos de cavar sua sepultura afastando neve densa e
quebrando a terra, dura como ferro, no pátio da prisão, ao lado do Abade Iscu, Gafencu,
Bucur e uma quantidade de outros que ele conheceu na Sala Quatro. Seu leito foi ocupado
por Avram Radonovici, que foi crítico de música em Bucareste.
Avram conhecia longos trechos das partituras de Bach, Beethoven e Mozart e
podia cantarolá-los horas a fio - soavam tão bem quanto num concerto sinfônico. Levara,
porém consigo uma dádiva mais preciosa. Por causa de sua tuberculose, que lhe afetara a
espinha, estava engessado quando o levaram a Tirgul-Ocna, e observando, vimo-lo meter
a mão naquela carapaça cinzenta e retirar um livrinho esfarrapado. Nenhum de nós,
durante anos vira um livro de qualquer que fosse a espécie. Avram ficou lá silenciosamente a
volver as páginas, até que se apercebeu dos nossos olhares curiosos pregados nele.
"Um livro seu..." falei. "Qual é? Onde o conseguiu?" "É o Evangelho segundo S.
João", respondeu Avram. "Consegui escondê-lo aqui dentro do gesso, quando a polícia
veio no meu encalço". Sorriu. "Gostaria o senhor que eu lho emprestasse?" Tomei o
livrinho em minhas mãos como se fora um pássaro vivo. Nenhum medicamento salva-vida me
podia ser mais precioso. Eu, que tinha decorado muita coisa da Bíblia e a havia ensinado no
seminário, estava esquecendo-a cada vez mais. Muitas vezes procurei advertir-me da grande
vantagem dessa falta de uma Bíblia enquanto lemos o que Deus disse aos profetas e santos, podemos
esquecer de ouvir o que Ele tem a dizer-nos.
O Evangelho passou de mão em mão. Era difícil abandoná-lo. Julgo que para homens
instruídos a penitenciária era mais dura de suportar. Operários de fábricas e agricultores
encontravam lá um meio social mais variado do que conheciam antes, mas o homem dado a
leitura era como peixe jogado na areia.
Muitos aprenderam todo o Evangelho de cor, sendo ele objeto de discussões diárias entre
nós, mas precisávamos estar prevenidos sobre quais prisioneiros participariam do segredo. Esse
Evangelho ajudou a levar muitos a Cristo, entre eles o Professor Popp que, por estar perto de
muitos cristãos vivos, chegava agora com firmeza mais perto da fé. As palavras de S. João
vieram completar a obra, mas havia uma última barreira a ser transposta.
"Tenho tentado voltar a rezar", disse o professor. "Mas entre recitar as fórmulas
ortodoxas que aprendi em criança e pedir favores ao Todo-Poderoso, aos quais não tenho

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direito, não há muita coisa para dizer. Tal e qual o rei no "Hamlet", minhas palavras sobem e meus
pensamentos ficam cá embaixo".
Contei-lhe o caso do pastor que fora chamado ao leito de morte de um ancião. Ia
sentando-se numa poltrona, junto ao leito, quando o velho disse: "Por favor, não se sente aí!" O
pastor então arrastou um tamborete, ouviu a confissão dos pecados do enfermo e lhe deu a Sagrada
Comunhão.
O ancião reanimou-se e disse: "Deixe que lhe conte a história dessa poltrona. Há
cinquenta anos, quando eu era rapaz, o velho pastor daqui me perguntou se eu dizia minhas
orações. Respondi: "Não". Ninguém existe a quem eu dirija orações. Se eu gritasse a plenos
pulmões, o homem no andar de cima não me ouviria, como iria Deus ouvir-me lá no Céu?" O
velho pastor respondeu mansamente: "Neste caso não ore mesmo! Mas sente-se em silêncio de
manhã, tendo outra cadeira à sua frente. Imagine que sentado na outra cadeira esteja Jesus
Cristo, como Ele costumava sentar-se em tantos lugares da Palestina. Que diria você a
Ele?" Eu disse: "Para ser honesto, diria que não cria nele". "Bem, disse o pastor, "isso mostra,
pelo menos, o que existe de fato em sua mente. Você podia ir adiante e desafiá-lo: se ele existe,
que dê provas disso! Ora, se você não gosta do modo como Deus dirige o mundo, por que não
dizer-lhe isto? Não seria você o primeiro a queixar-se. O Rei Davi e Jó disseram a Deus
que pensavam ser Ele injusto. Talvez você queira alguma coisa. Então diga-lhe exatamente o
que é. Se o receber, dê-lhe graças. Todas essas permutas de ideias podem ser assunto de oração.
Não recite frases sagradas! Diga o que realmente está no seu coração!"
O moribundo prosseguiu: "Eu não cria em Cristo, mas acreditava no velho pastor.
Para satisfazê-lo sentei-me diante desta poltrona e simulei que Cristo estivesse aí sentado.
Durante poucos dias aquilo foi um passatempo. Depois eu sabia que Ele estava comigo.
Falava a um Jesus real acerca de coisas reais. Procurei e recebi direção. A oração tornou-se um
diálogo. Moço, cinquenta anos já se passaram e todos os dias eu falo com Jesus aí nessa
cadeira".
O pastor estava presente quando o homem faleceu, estendendo a mão, como seu
último gesto, para o amigo invisível na poltrona.
O professor perguntou: "É assim que o senhor ora?" Respondi: "Gosto de pensar que
Jesus está junto de mim, e que posso falar-lhe como faço com o senhor. Pessoas que tiveram
contato com Ele em Nazaré não lhe recitavam preces. Diziam o que lhes ia no coração, e isto
é o que devemos fazer".
Continuou Popp: "Que diz dos muitos que com Ele falaram na Palestina, há 2.000
anos, e não se tornaram seus discípulos?" Respondi: "Durante séculos os judeus oraram
pedindo a vinda do Messias, e ninguém fazia isso com maior eloquência do que o Sinédrio, a
corte suprema deles. Todavia, quando Ele veio, injuriaram-no, cuspiram nele e o mataram,
porque o que eles menos queriam era que alguém transtornasse a rotina confortável em que
viviam. O mesmo se diga de muitas nações de hoje!" O Professor Popp tornou-se cristão.
Disse-me: "Quando vi o senhor a primeira vez tive um pressentimento de que tinha algo para
me dar". Tais intuições não são fora do comum nos presídios. Quando o mundo de fora fica
afastado de nossas vistas, um sentido novo surge para o invisível.
Ficamos muito íntimos. Sentados juntos em silêncio algumas vezes, ele como
que adivinhava o pensamento que se agitava em minha mente. E assim deve ser, mas
raramente acontece entre amigos e entre o homem e sua mulher.
O degelo veio em março. Os pingentes de gelo passaram a derreter-se e a neve
ficou em pedacinhos agarrados às paredes. Nas árvores, desfolhadas e nuas, começavam
a aparecer rebentos, e os pássaros voltaram a cantar. Pelas nossas mãos friorentas, nossos
pés envoltos em trapos e nossos rostos rígidos sentíamos que a vida voltava.
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O presídio galvanizou-se com notícias novas. Um preso fora conduzido ao
hospital da cidade onde uma mulher, que esfregava o assoalho, chorava. "Que é que há?
Perguntou. "Nosso pai Stalin morreu", dizia soluçando. "Os jornais publicaram". Não
vertemos nenhuma lágrima. Todo o mundo fazia conjecturas, excitado, sobre quais seriam as
decorrências do fato.
Disse Popp: "Se Stalin morreu, com ele se foi o staünismo; uma ditadura não sobrevive
ao ditador". "Mas o Comunismo sobreviveu a Lenin", observou alguém.
Poucos dias depois ouvimos apitos de trem e dobres de sinos que anunciavam os
funerais de Stalin em Moscou. No presídio reboaram gargalhadas e maldições. Os guardas
pareciam mal-humorados e os oficiais estavam nervosos. Ninguém sabia o que os próximos dias
iriam trazer.
Depois de semanas de incerteza, chegou um funcionário de alta categoria do
Departamento Legal e compreendemos que fora enviado a estudar as condições do presídio.
Era recebido com silêncio e frieza ao passar de cela em cela perguntando se havia queixas a
serem apresentadas. Muitos pensaram tratar-se de um ardil. Ao chegar ele à Sala Quatro eu
disse: "Tenho alguma coisa para dizer, mas não começarei antes de o senhor me prometer
que me ouvirá até ao fim".
"Foi para isto que vim aqui", disse cortesmente o serventuário púbüco. Falei:
"Promotor, o senhor teve um renomado predecessor na história, chamado Pôncio Pilatos.
Pediram a ele que julgasse um homem que ele sabia ser inocente. "Vou lá me envolver nisso?"
pensou Pilatos de si para si mesmo. "Prejudicar minha carreira por causa de um carpinteiro
judeu?"
"Apesar de já se terem passado 2.000 anos, o seu desserviço à justiça não caiu no
esquecimento. Em qualquer igreja onde o senhor entrar, no mundo inteiro, ouvirá dizer no
Credo que Jesus foi crucificado sob o governo de Pôncio Pilatos".
Os outros na Sala Quatro pareciam preocupados comigo. Continuei: "Examine o seu
coração e verá que somos vítimas de injustiça. Ainda que fôssemos réus aos olhos do Partido,
teríamos que expiar nossos crimes na prisão - mas isto aqui é uma pena de morte arrastada.
Antes de o senhor redigir o seu relatório, veja a nossa comida, a falta de calefação e de
medicamentos simples, a sujeira e as enfermidades. Pergunte a respeito de algumas das
barbaridades que temos sofrido. Depois escreva a verdade. Não lave as suas mãos de homem
que nada pode fazer, como Pilatos fez".
O promotor olhava-me melancolicamente, depois deu meia-volta e saiu sem dizer
palavra. A notícia de que ele me prestara atenção espalhou-se pela penitenciária e
encorajou outros a falar. Soubemos que antes de ele se retirar, palavras zangadas foram
proferidas no gabinete do comandante. Mais tarde, naquele mesmo dia, os guardas se
mostravam corteses, quase que a pedir desculpas. Uma semana depois o comandante foi
demitido.
Melhorando a rotina na prisão, comecei a levantar-me do leito e a andar um pouco
todos os dias. O Dr. Aldeã levou o funcionário médico para me ver.
Aldeã disse: "O seu caso é um enigma. Seus pulmões estão como uma peneira, as
vértebras estão afetadas, não pude engessá-lo e não houve praticamente intervenção cirúrgica
nenhuma. O senhor não está melhor, mas também não está pior, e por isso vamos tirá-lo da Sala
Quatro".
Meus amigos ficaram contentes. Cobraram coragem pelo fato de, após dois anos e
meio, ser eu o primeiro a deixar a cela vivo.

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"Como foi que isto aconteceu, pastor?" disse um gracejando. "Por que esse corpo
velho não obedeceu às ordens do médico e não morreu?"
Disse eu: "Acho que se você quiser descobrir uma razão médica para isso, haverá de
descobri-la. Todavia na guerra aprendi uma lição em torno de procurar explicações. Encontrei
alguns homens do Partido que tinham estado na Rússia. Ao indagar por que a União
Soviética havia moderado sua campanha anti-religiosa naquela época, um deles me disse:
"Ao senhor cabe informar". Redargui que pensava ter sido uma concessão feita à
Inglaterra e à América, que estavam prestando auxílio à Rússia na guerra. O oficial sorriu:
"Esta é a explicação que eu daria, como comunista. Se eu fosse cristão, diria que era
resposta de Deus às orações". Fiquei em silêncio, porque ele tinha razão. A Bíblia conta
que certa vez uma jumenta repreendeu um profeta. Assim digo agora a vocês que, se me
recuperei, foi por um milagre de Deus em resposta à oração".
Eu sabia que muita gente - prisioneiros com os quais estive, e minha congregação
também - orava por mim, entretanto durante muitos anos não soube que muitos milhares
no mundo inteiro também oravam.

QUARTA PARTE
A SALA QUATRO tornara-se um altar em que as pessoas eram transformadas e
transfiguradas para o exercício fé. Alegrava-me o fato de ainda estar vivo, mas abandonar
aquela sala era baixar de nível. Deixando sua atmosfera de nobreza e sacrifício pessoal, voltei ao
mundo de brigas, vaidade e fingimentos. Era triste e cómico ver quantos da classe superior se
apegavam às suas ilusões. "Excelências" sujas cumprimentavam-se com "bom dia".
"Generais" famintos indagavam uns dos outros como passavam de saúde. Eram intermináveis
as discussões deles sobre sua volta opulência que lhes ficara para trás.
Um deles, Vasile Donca, aceitou um pedaço de cordão que lhe ofereci para com ele
segurar as calças. Cordão era uma preciosidade no presídio. No dia seguinte, porém, falei
com ele e fez que não me ouviu porque o tratei de "brigadeiro".
Donca, como muitos outros, faria qualquer coisa por um cigarro. Os guardas eram os
únicos que possuíam fumo; e eram proibidos de passá-lo a outras pessoas. À noite fumavam
uma quantidade de cigarros e jogam as pontas fora do pátio, que delas ficava alastrado. Os
encarregados de celas e os informantes delatores eram os primeiros que tinham permissão
de sair cada manhã, de modo a monopolizarem a coleta de restos de cigarros. Às vezes, no
entanto, algum outro preso descobria uma pontinha daquelas, e então os seus colegas
rodeavam-no, fumando-a revezadamente na extremidade de um pino, à guisa de piteira.
Certa manhã um guarda acendeu o cigarro, recostado à porta da cela, perto do meu
leito. Donca foi lentamente, fazendo voltas pela cela e começou a conversar com ele em voz
baixa e insistente.
"Guarda! Quanto você quer por esse cigarro?" O guarda arregalou um sorriso. "Que
tem o senhor para oferecer, brigadeiro?" Donca não tinha nada, mas experimentou blefar.
"Não pense que não tenho amigos em altos postos. Você será recompensado por qualquer
atenção que me der!" "Amigos influentes?" inquiriu o guarda. "Apesar de tudo o senhor é de
fato comunista, brigadeiro?" "Sargento, sou um romeno leal à pátria". "Bem, se o senhor
fosse um comunista romeno leal, eu lhe daria este cigarro"
Donca hesitou e olhou ao redor disfarçadamente. O guarda fez menção de se
afastar. "Espere! Naturalmente sou um comunista romeno leal!"
O guarda acenou para os seus camaradas a fim de que fossem participar da
brincadeira.
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"O senhor dança ao som de uma música russa, brigadeiro? Dance para nós! Dance
à maneira de um russo da Rússia! "E apresentou o cigarro.
De braços abertos, sorriso forçado, Donca começou a pular num pé e noutro. Os
guardas romperam em gargalhadas. Os presos desviaram o rosto, ao remexer Donca por
entre as pernas deles à procura do cigarro atirado ao chão.
Quando Donca se mudou para outro lugar, seu leito foi ocupado por outro ex-membro
do Estado-Maior, General Stavrat. As dragonas não fazem o oficial assim como o hábito não
faz o monge, e Stavrat era tudo o que Donca não era. Apesar de pequena estatura, sobrepujava os
seus colegas de prisão em pura força de personalidade. Duro, não suportando fraquezas, e não
obstante cheio de bondade e bom-senso, gostava de se dirigir ao pessoal da cela em geral
chamando-os "Homens!"
Juliu Stavrat era general sem botas. Desfizeram-se das suas. Coube-me um par, com o
qual saia em dias alternados para fazer exercício no pátio. Logo depois de sua chegada
permitiu-me a entrega dos primeiros pacotes de alimento, dando-se-lhe um. Abriu-o diante
dos circunstantes boquiabertos. Um murmúrio de estupefação percorreu o grupo. Presunto,
salsichas defumadas, bolo de frutas, chocolate - que sacrifícios sua esposa não fizera para
comprar tais coisas! Stavrat, que vivera de sobejos durante oito anos, embrulhou de novo seu
farnel e se dirigiu ao meu leito. "Pastor", disse, "tenha a bondade de repartir isto com os
homens".
Stavrat era cristão antes de ser soldado. Quando ouvimos que a Rússia tinha feito
explodir sua primeira bomba atómica, ele disse: "Agora é que não devemos procurar uma
intervenção militar americana em larga escala: melhor para nós será apodrecer na cadeia
do que ver milhões de pessoas morrerem numa guerra atómica".
"O senhor pensa que isso destruiria a humanidade?" perguntei. "O futuro da
humanidade tanto quanto o seu passado", disse, "não ficará ninguém para conhecer nossa
luta e progresso através das eras". Stavrat tinha muito gosto pela História. Podia discorrer
eloquentemente sobre o passado da Romênia.
"Mas se uma guerra nuclear nada resolve", acrescentou, "e a civilização não pode
coexistir com o Comunismo, não sei qual seja a resposta".
"O Cristianismo é a resposta", disse eu, "numa forma vital. Pode transformar a vida dos
grandes homens como dos de menor categoria. Lembre-se de muitos governantes bárbaros,
como Clóvis da França, Estêvão da Hungria, Vladimir da Rússia, que se converteram e
tornaram cristãos os seus países. A coisa pode repetir-se. Veremos derreter-se a Cortina de
Ferro".
"Devemos começar com Gheorghiu-Dej?" disse Stavrat sorrindo.
"Uma ordem de grande envergadura!"
Gheorghiu-Dej, eclipsados todos os seus rivais, era agora o nosso ditador. Admita
francamente que erros graves tinham sido cometidos, entre os quais o maior fora o
projeto do canal Danúbio-Mar Negro. Depois de três anos em que milhões de libras haviam
sido esbanjadas e mimares de vidas, perdidas, somente cinco das suas quarenta milhas
projetadas se aprontaram. Os principais engenheiros e dirigentes do acampamento
foram acusados de sabotagem. Três tiveram sentença de morte e dois foram
sumariamente executados. Outros, em número de trinta, tiveram sentenças que variaram
de quinze anos de cadeia a prisão perpétua. Nova pesquisa acabou provando que o
Danúbio não podia suprir água suficiente para o projeto - exatamente como disseram os
engenheiros no início da obra e em razão do que foram fuzilados. O canal foi
abandonado. Tudo quanto daquilo continuou a ter utilidade, desse imenso investimento de
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tempo e dinheiro da Romênia na primeira década de domínio comunista, foram os campos de
trabalho. Estes não podiam conter o pessoal que transbordava das penitenciárias.
Enquanto discorríamos sobre esse fiasco, o Professor Popp me chamava à parte. Disse:
"Tenho evitado dizer-lhe uma coisa desde que voltei para Tirgul-Ocna. O Dr. Aldeã pensou
que o choque seria forte demais para o senhor, na condição em que estava. Sua esposa
está presa e já esteve no canal".
Popp havia reunido informações de vários presos que tinham estado trabalhando
lá. Sabina fora aprisionada dois anos depois de mim. Nenhuma acusação houve contra ela.
Dirigia as mulheres na igreja, na qualidade de diaconisa, e lhe disseram o que havia de
pregar, mas seu temperamento não se submetia a essa imposição. Em Poarta Alba ela ficou
com as mulheres que tinham de padejar terra para carrinhos de mão e levá-los a grandes
distâncias. As que não dessem conta de sua parte do trabalho ficavam sem comer. Havia
entre elas moças colegiais patriotas e prostitutas, senhoras da sociedade e outras que sofriam
por sua fé. No Acampamento Km 4, o Comandante Kormos foi logo mais sentenciado a
trabalho forçado por violar trinta jovens presas: a acusação foi de ter ele "prejudicado o
prestígio do regime".
Minha mulher ficou sob as ordens de uma figura notável, o Coronel Albon, chefe da
Poarta Alba. Ela comia capim à maneira dos animais: ratos, cobras, cachorros, tudo era comida.
Algumas das que comiam cachorro diziam gostar. Perguntei-lhes: "Vocês gostariam de voltar
a comer aquilo?" "Ah não!" disseram. Sabina era franzina e fraca, de modo que uma troça dos
guardas consistia em atirá-la ao Danúbio frígido e pescá-la. Ela, no entanto, sobreviveu.
Sua vida foi salva com o colapso do projeto. Foi enviada com outras prisioneiras a uma
fazenda do estado, onde se criavam porcos, e aí também o trabalho era duro.
O professor disse que um preso de Vacaresti falara com a minha esposa no
hospital.
"Ela tem estado muito mal", disse Popp, "mas não vai morrer. Sabe que o senhor
está seguro e salvo. As mulheres com as quais estava, falavam de um pastor que se
supunha estar à beira da morte e que pregava de trás das paredes. Disseram à sua esposa
terem deixado de ouvir sua voz em 1950 - pelo que o davam como morto. Ela, porém,
disse que não; cria que o senhor estava vivo, quaisquer que fossem as provas em
contrário".
Esta notícia quase que me aniquilou. Procurei orar, mas uma depressão mental
me abateu. Durante dias não falei com ninguém. Foi quando certa manhã vi no pátio da
prisão um padre velho, de aspecto nobre, barbas brancas flutuando ao vento frio, junto ao
Corpo da Guarda. Era um recém-chegado e tinham-no deixado ali. Vários oficiais
vieram e rodearam-no.
"Que faz este padre velho aqui?" perguntou um deles. "Veio ouvir em confissão",
disse outro chacoteando. Foi o que o Padre Suroianu passou a fazer logo mais. Havia ao
redor dele uma aura de santidade tal que provocava um desejo enorme de lhe dizerem toda
a verdade. Até eu, embora não cresse em confissão sacramental, revelei-lhe o desespero
em que estava e pecados que nunca antes houvera contado. As raízes do mal nem
sempre ficam à mostra no confessionário. Quanto mais, porém, eu me acusava, tanto
mais o Padre Suroianu olhava para mim não com desprezo senão com amor.
Ele tinha mais razão de sentir pesar do que outro qualquer de nós. Uma tragédia
abatera-se sobre toda a sua família. Uma de suas filhas aleijada, fora privada do marido,
detento conosco em Tirgul-Ocna. Outra filha e seu marido tinham recebido sentença de
vinte anos. Um dos filhos morrera na cadeia. O segundo filho, em quem ele depositara
todas as suas esperanças, esse rebelou-se contra o pai. Seus netos tinham sido expulsos
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da escola ou perderam seus empregos por causa das atividades dos pais "contrários ao
Partido". Nada obstante, o Padre Suroianu, um homem simples, autodidata, gastava o seu
tempo a encorajar e confortar os outros.
Nunca o seu cumprimento era "bom dia", mas sempre saudava com a frase bíblica
"Alegrai-vos!" Disse-me: "No dia em que o senhor não puder sorrir, não abra a sua loja.
Sorrindo movemos dezessete músculos do rosto, mas para uma carranca empregamos
quarenta e três!"
Perguntei-lhe: "O senhor tem passado por tantos infortúnios - como pode 'alegrar-se'
sempre?"
"Ora, porque o contrário é pecado grave", disse. "Há sempre boas razões para que
a gente se alegre. Há um Deus no Céu e no coração da gente. Hoje de manhã deram-me um
pedaço de pão. Estava tão bom! Veja agora como o sol está brilhando! E tantos aqui me
estimam! O dia em que o senhor não se alegra, esse é um dia perdido, meu filho! Nunca
mais o terá de volta".
Também eu podia regozijar-me, pelo menos no sentido de estar realizando o
desejo acariciado desde que fora ordenado ser um pastor em prisão. Lá fora todos os
dias tangem sinos e espera-se que o povo vá à igreja; mas na prisão meus paroquianos
estavam "na igreja" comigo, não só um dia na semana, senão o dia inteiro e todos os
dias. Eles tinham de ouvir, embora nem sempre com disposição.
Lazar Stancu, um linguista inteligente, cujo crime fora trabalhar para uma
agência estrangeira de notícias, interveio para dizer: "Basta de Cristianismo, por favor!
Existem outras religiões interessantes".
"Bem", disse eu. "Conheço alguma coisa de Confúcio e do Budismo". E contei uma
parábola do Novo Testamento, das menos conhecidas.
"Fascinante!" exclamou Stancu, e elogiou sua beleza e originalidade.
"Alegra-me o senhor pensar assim", disse e expliquei que de fato era aquilo um
ensinamento de Cristo. "Por que vai o senhor atrás de outras religiões?" perguntei. Seria o
caso de um velho provérbio romeno. "A galinha do vizinho sempre é peru?" Ou seria
apenas a sôfrega procura intelectual de novidades?
Disse Stancu, "Bernard Shaw uma vez insinuou que as pessoas quando na
infância são de certa maneira inoculados de pequenas doses de Cristianismo, raramente
contraem a coisa como deve ser".
Certa noite um jovem preso levantou-se de um pulo e começou a gritar: "Parem
com isto! Parem com isto! Parem com isto!" Houve um silêncio. Era um recém-chegado
e os outros olhavam surpresos para ele. Voltou correndo para a cama e deitou-se. Fui até onde
ele estava. Tinha o rosto delicado, mas o queixo e o pescoço estavam cobertos de ataduras
improvisadas. Fitou-me com lágrimas e voltou as costas. Pensando que se procurasse falar-
lhe naquele momento ainda mais perturbado ficaria, desisti. O Dr. Aldeã disse-me chamar-se
o rapaz Josif. "É um moço atraente", revelou-me, "mas vai ficar para o resto da vida com
uma cicatriz de úlcera no rosto. É ele outro caso de tuberculose nos ossos". Contou-me
que quatro anos antes, quando tinha quatorze, Josif fora detido ao tentar alcançar a
Alemanha, onde vivia uma irmã. A Polícia Secreta o colocou sob a guarda de cães
amestrados, que o atacavam quando se mexia, abocanhando a garganta. Susto e medo
encheram-lhe a mente: conversa repetidas vezes acerca das horas que passou na fronteira à
mercê dos cães.

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Depois, suspeito de ser um penhor em algum jogo político, foi levado a Bucareste
onde sofreu torturas para informar o que não sabia. A seguir foi mandado com um bando
para trabalho forçado no canal, onde passou fome e contraiu tuberculose.
Fiquei a vigiar Josif quando ele ficou afeito ao nosso ambiente. Era de uma
honestidade e sinceridade espontâneas, que a vida não conseguira corromper. Às vezes,
esquecendo suas provações, sacudia para trás a cabeleira escura em gargalhadas
estrondosas, enquanto rememorava alguma brincadeira da prisão de outro tempo.
Entretanto levava sempre a mão ao rosto deformado. Doía-lhe: pior, no entanto, era
pensar que sua bela aparência se perdera para o resto da vida.Certo de poder ajudá-lo,
aguardei oportunidade.
Por poucos meses, depois da morte de Stalin, permitiram que recebêssemos
mensalmente pacotes de casa. Esperávamos ansiosos por eles. Nos cartões-postais que nos
davam eu escrevia pedindo, além de comida, cigarros e "roupas usadas do Dr. Filon".
Eu não gostava de fumo, mas uma vez que aqueles homens viviam desesperados por
cigarros, eu sempre pedia minha quota inteira deles para distribuí-los. O resultado era ficarem
ressentidos aqueles a quem não dava nenhum, e aqueles a quem eu dava suspeitavam
quase sempre que dava mais a outros.
O pedido de roupa do Dr. Filon deixava minha família aturdida. O médico era
baixinho. Eu era alto. Esperava eu compreendessem que estreptomicina do médico era o
que eu queria. Aldeã dissera-me que a medicina socialista estava agora admitindo que aquele
medicamento, descoberto na América fazia dez anos, tinha valor. Se eu recebesse algum,
podia tratar-me;mas não tínhamos permissão de pedir que o mandassem em nossos
pacotes.
Além de tuberculose, eu sofria também de frequentes dores de dente, que eram uma
praga entre nós. Os dentes cariavam rápido por falta de alimentação e tratamento, ou se
quebravam nos espancamentos. Algumas vezes punham-me nos tornozelos grilhões
pesando uns vinte e três quilos, o que não me permitia andar um pouco para aliviar as
dores. Mas nunca foi pior do que o acesso sofrido em Tirgul-Ocna. Um dente do lado
superior atormentava-me o dia todo; à noite a dor passava para o maxilar inferior. Não
tínhamos dentistas e nem esperança de alívio. Dizem que Pascal combatia a dor de dente
resolvendo problemas de matemática, e assim experimentei compor sermões, mas as dores
deviam amenizar-se mais com aqueles do que com estes, visto os meus serem uns sermões
miseráveis. Dei para fazer poesias, mas eram poesias de desesperação.
Tentei esquecer as dores conversando com Josif. Sentei-me ao seu lado e
perguntei-lhe por que se zangara quando lhe falei.
Disse ele: "Tenho ódio de Deus! Se o senhor continuar vou chamar os guardas".
Seus olhos começaram a encher-se de lágrimas. "Deixe-me sozinho!"
Mas a natureza boa do rapaz sempre cedia; um ou dois dias depois dizia-me ele
de suas esperanças de encontrar a irmã na Alemanha e juntos partirem para ficar com
parentes na América. "Você deve então começar a aprender inglês", disse-lhe. "Gostaria,
sem, porém aqui quem vai me ensinar?" Disse-lhe que, se quisesse, eu poderia dar-lhe
algumas lições. "O senhor pode? É mesmo?" Ficou fora de si contente e revelou-se um
aluno inteligente, embora não tivéssemos livros nem papel nem lápis. Falei-lhe de livros
em inglês que eu lera, e fi-lo repetir comigo passagens da Bíblia que eu sabia de cor.
Josif não foi o único preso que ameaçou denunciar-me, mas o verdadeiro perigo no
nosso meio era o informante secreto. Muitas vezes tais homens se fingiam de patriotas para
alcançar seus fins, especialmente com os moços.

67
Os guerrilheiros que resistiram durante anos nas montanhas da Romênia inspiravam
com o seu exemplo muitos jovens a formar seus próprios grupos anticomunistas, de modo que
rapazes e moças de dezessete e dezoito anos foram detidos e encarcerados: havia até um de quatorze
anos conosco em Tirgul-Ocna. Gostavam de ouvir as histórias que um ex-coronel do serviço secreto de
informações militares, chamado Armeanu, costumava contar de nosso Rei Estêvão, o Grande, e
outros heróis patriotas que lutaram contra a dominação estrangeira.
O General Stavrat, que antes conhecera Armeanu, disse: "Não confio neste homem.
Precisamos ficar de olho nele". Mais tarde naquele dia, passava eu vagarosamente quando Armeanu
estava com um jovem guerrilheiro chamado Tiberiu. "Eles me pegaram", dizia Tiberiu, "mas
outros vão prosseguindo na luta..." quando passei outra vez ouvi-o dizer que uma moça estava
entre eles. Armeanu, vendo-me perto, bateu-lhe no ombro e se foi.
Pedi a Josif para escutar; Armeanu notá-lo-ia menos. De fato, poucas noites se passaram,
e ele pegou de surpresa trechos da conversa.
"Um cara simpático como você não arranjou uma moça?" perguntava Armeanu a Tiberiu.
"Sem dúvida arranjou - aposto que é também bonita. Como é o nome dela?... Maria - donde ela
é?... Sim, conheço o lugar. É mesmo, tive relações de amizade com uma família de nome
Celinescu, onde havia uma fluía moça deste mesmo nome... Ah, sua Maria é uma Srta. Cuza. E o
pai dela? Um capitão do exército, não é? Não do 22° regimento por certo... Oh, do 15°. Sim,
sim".Depois desse relatório cheguei à conclusão que provavelmente Armeanu era um agente
e que a moça Maria seria presa em poucos dias. O General Stavrat quis acareá-lo
imediatamente, mas eu sabia que nada podíamos provar contra ele. Quando logo após encontrei
Armeanu só, entabulei com ele uma conversa. Ele perguntou por que eu estava preso e então me vi
diante de uma oportunidade tremenda.
"Por espionagem", disse eu, e acrescentei saber que podia falar livremente a um
nacionalista como ele. "Minha prisão não tem importância. Eu não passo de um dentinho na
engrenagem da organização". Com outras indiretas animei-o a insinuar nomes e endereços dos
meus "contactos". No seu rosto vi estampar-se um ar de vitória ardilosa: pensava ele estar de posse da
informação que lhe valeria a liberdade.
Logo que as celas se abriram no dia seguinte, Stavrat viu Armeanu cochichando para o
guarda. Imediatamente depois o coronel foi chamado para uma "inspeção médica" - era este um
frequente pretexto para consultas a informantes. Depois o oficial político mandou chamar-me. Já se
supunha com mais uma estrela no ombro, porque sem qualquer tentativa de defender Armeanu,
imediatamente pediu toda a história da grande rede de espionagem internacional que eu lhe
referira.
"Tenente", respondi, "se o senhor passar adiante a informação que dei a Armeanu
ontem, isso vai provocar um delírio de entusiasmo em Bucareste. Por isso aconselho-o a não
fazer isso. O senhor vai somente prejudicar-se".
"Que quer dizer com isto?" indagou. Respondi: "Inventei toda essa história. Quis
verificar minhas suspeitas em torno de Armeanu, se procedentes ou não. Agora sei". O
oficial fitou-me sem acreditar. Depois soltou uma gargalhada.
Saí e contei a Stavrat. Ele segurou Armeanu. "Homens valentes morreram sob o
seu comando", disse-lhe, "e agora você vira traidor!"
Armeanu tentou esbravejar, mas daquele dia em diante se tornou um proscrito.
Anos depois ouvi que morrera na prisão. Todas as traições só lhe trouxeram vergonha.
Meu pacote do mês seguinte inclui 100 gramas de estreptomicina. O sinal que eu
dera fora compreendido! Pensando nos pacientes que eu deixara na Sala Quatro, pedi ao
General Stavrat que desse o medicamento a quem estivesse lá em estado mais grave.
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"É Sultaniuc", disse com repugnância. "Um guarda de ferro fascista consumado. Está
às portas da morte, embora não queira admiti-lo. Muito melhor é o senhor mesmo toma-
lo... Mas, se insiste..."
Stavrat em breve estava de volta. "Quis ele saber de onde procedia o remédio, e
quando lhe disse que era seu, afirmou não querer tomar nada que partisse de um opositor
da Guarda de Ferro. Nada se pode fazer com um fanático daquela marca".
Pensei que podíamos contornar a situação. Quando Stavrat saiu, pedi a Josif - de quem
não se podia suspeitar de duplicidade - que agisse como mediador.
“Diga a Sultaniuc que o general se equivocou. É um presente da parte de Graniceru. Ele
também é da Guarda de Ferro, e ouvi dizer que ainda há pouco recebeu alguns
medicamentos".
Josif não teve êxito. "Sultaniuc não acredita que Graniceru lhe dê qualquer coisa. Não
quer nem olhar para esse pó, a menos que o senhor declare sob juramento que não procede do
senhor".
"Por que não?" disse eu. "Dei-lhe o remédio e posso também dar-lhe o
juramento. A estreptomicina de fato não é minha, mas de Deus. Entreguei-a a Deus no
momento em que me chegou às mãos".
O Dr. Aldeã, que estava ocupado noutra parte quando a estreptomicina chegou,
não disse palavra ao ouvir o que acontecera com ela. Até Stavrat ficou perplexo com o meu
ato de dar um "falso testemunho". Ele disse: "Pensei que os senhores, clérigos, insistissem
sempre pela verdade integral, e por nada senão só a verdade".
Em breve Stavrat teve um exemplo do que podia custar "a verdade integral", quando
dois novos presos, um dos quais testificara contra o outro, foram metidos em nossa cela.
O primeiro era um bispo católico, que desejava que Roma soubesse quão amargamente sua
igreja estava sendo perseguida. O outro era um advogado que entregara a carta de queixa do
bispo ao Núncio Papal - quando havia um em Bucareste - para que a encaminhasse ao
Vaticano. Quando o advogado deixou o palácio do Núncio foi preso e, tendo negado haver
entregue a carta, foi acareado com o bispo. O bispo disse: "Não posso mentir. Sim, dei a ele
uma carta".
Ambos foram torturados e acabaram em Tirgul-Ocna, onde discutiram sobre o que fora
justo fazer. O bispo esperou que eu o apoiasse; não pude fazer isso. Eu disse: "Se uma pessoa
recusa-se a dizer uma mentira, está muito bem, mas neste caso deve guardar consigo os
assuntos de gravidade. Se decide pôr em risco a segurança de outro qualquer, deve defendê-la a
todo custo".
O bispo protestou: "Todo esse caso fez-me sofrer muito, mas como podia eu dizer uma
coisa que não era a verdade?"
Repliquei que se fazemos o bem aos nossos inimigos, com certeza temos a obrigação de
ajudar nossos amigos. "Se minha hospedeira passou o dia inteiro no preparo de um jantar que
me causou muito mal, ainda me sinto obrigado a cumprimentá-la: isto não é dizer-lhe uma
mentira, é simples cortesia. Quando aqui os homens perguntam: 'Quando virão os americanos?'
digo-lhes: 'Não podem demorar muito'. Não é verdade, infelizmente, mas também não é uma
mentira. É uma palavra de esperança".
O bispo não se convencia. Continuei: "Se o senhor submeter todas as artes aos puristas,
elas se tornam mentiras. Fausto não assinou mesmo um contrato com o diabo, o senhor sabe;
isso não passa de invenção do mentiroso Goethe. Hamlet nunca existiu - é uma mentira de
Shakespeare. As mais simples brincadeiras (espero que o senhor ache graças em
brincadeiras) são invencionices".
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"É possível que sim", replicou o bispo, "mas aqui está em jogo um caso pessoal.
Quando o senhor é interrogado pêlos comunistas, Sr. Wurmbrand, não acha que deve dizer a
verdade?"
"Naturalmente não. Não tenho tais escrúpulos que me impeçam de dizer a
primeira coisa que me venha à cabeça, contanto que desoriente assim os que procuram
pegar meus amigos em armadilha. Devo lá prestar informação que essa gente possa empregar
para atacar a Igreja? Sou um ministro de Deus!"
"O mundo costuma dar nomes bonitos a coisas feitas. Fraude é chamada habilidade,
talento. Somiticaria recebe o nome de economia. Sensualidade cinge a coroa do amor. Aqui se usa
a palavra feia "mentira" para significar o que o instinto nos diz ser correto. Respeito a
verdade, mas não vacilo em "mentir" se com isto salvo um amigo".
Quando estávamos a sós, Josif perguntou-me: "Que é pois uma mentira?" "Por que
esperava você de mim uma definição? Sua própria consciência, se for guiada pelo Espírito
Santo, lhe dirá em cada circunstância da vida o que quer dizer e o que deixar de dizer.
Você não pensa que o juramento que levou a Sultaniuc, no caso da estreptomicina, foi
uma mentira, pensa?" "Oh! não", disse Josif, com o seu cativante sorriso. "Foi um ato de
amor".
A amargura de Josif serenou e um dia, depois de nossa lição de inglês, perguntei-
lhe: "Por que diz você que tem ódio de Deus?"
"Por quê?" repetiu ele. "Diga-me primeiro qual a razão de Deus haver criado o
bacilo da tuberculose". Ele pensava que com isso dava por finda a conversa.
"Posso explicar", - disse eu - "se você me escutar em silêncio".
Respondeu acabrunhado: "Escutarei a noite toda se o senhor puder explicar".
Adverti que ia pegá-lo em sua própria palavra. Era um problema, disse-lhe, esse
que estava na raiz do sofrimento humano e do mal. Josif não era o único e indagar por que
tais coisas acontecem sob as vistas de um Deus misericordioso; provavelmente todos nós
no cárcere fazíamos essa mesma pergunta, e não havia uma resposta só, senão várias.
"Primeiro, somos propensos a confundir o desagradável com o ruim. Por que o
lobo seria mau? Porque devora ovelhas, e isto me constrange. Por minha vez quero comer
carne de ovelha! E ao passo que o lobo precisa comer ovelhas para viver, eu não preciso
fazer isso, porque posso comer outras coisas. Pior ainda, o lobo não tem deveres para com
as ovelhas, enquanto nós as criamos, damos-lhes comida e água, e quando elas estão
com toda a confiança em nós, um dia cortamos-lhe o pescoço. Ninguém acha que por isso
somos maus".
Josif olhava para mim com a cabeça apoiada numa das mãos.
"Diga-me o mesmo dos bacilos. Um bacilo vive - e faz a massa do pão fermentar;
outro bacilo vive - e danifica os pulmões de uma criança. Nem um nem outro sabe o que
fazer, mas eu aprovo um e condeno o outro. Destarte as coisas em si mesmas não são boas
nem más - classificamo-las de acordo com a sua conveniência ou inconveniência em
relação a nós. Queremos que o universo inteiro se adapte a nós, nos convenha, embora
sejamos dele uma parte infinitesimalmente pequena".
A cela escura e inesperadamente em silêncio. "Em segundo lugar", disse eu, "o que
chamamos 'mau' é muitas vezes apenas um bem inacabado".
"Isto para mim vai precisar de prova", interveio Josif.
Eu disse: "Você teve um homônimo há 4.000 anos, que foi vendido como escravo
por seus irmãos e sofreu muitas outras injustiças no Egito. Depois ascendeu ao posto de
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Primeiro Ministro, e assim capacitou-se a salvar o país tanto quanto os seus irmãos
ingratos de morrer de fome. Assim pois enquanto você, como José, não alcançar o final da
história, não pode saber se o que aconteceu até aí vai redundar em bem ou em mal. Ao
iniciar o pintor um quadro, tudo o que vemos são uns borrões de tinta. Leva tempo para que
o modelo do pintor apareça. Todos admiramos o retrato de Monalisa, mas Leonardo levou
quarenta anos para terminá-lo. Escalar um monte é difícil antes de se poder gozar o
panorama lá do pico.
"Mas os homens que morrem aqui na prisão", disse Josif, "nunca chegarão a ver o
panorama".
- Mas, quanto a isso, um período na cadeia pode ajudá-lo a galgar o cume. Teria o
camarada Gheorghiu-Dej chegado ao poder na Romênia se não tivesse estado na prisão
como nós?
- E os que não vivem para tornar a ver a liberdade?
"Lázaro morreu em pobreza e doença", concluí, "mas Jesus diz-nos em uma
parábola que os anjos o levaram para a bem-aventurança eterna. Depois da morte virá
para todos nós uma compensação. Somente quando virmos o fim de tudo é que
podemos esperar compreender". Josif prometeu pensar nisso.
Uma cura rápida de dor de dentes é notícia boa, e uma carta que recebi levantou-
me da minha prostração erguendo-me até ao céu: dizia-me que minha esposa estava livre.
Ainda permanecia confinada a Bucareste, mas o meu filho em breve teria licença para
visitar-me! A carta terminava aí: era toda a informação permitida.
Deixei Mihai com nove anos, agora ele tinha quinze. Não podia imaginá-lo
crescido. Sempre fôramos muito pegados um ao outro. Comecei a impacientar-me dia e
noite por revê-lo. Por fim levaram-me a um salão, onde tive de me sentar numa guarita
provida de uma janela vedada por três barras de ferro, tão pequena que o visitante só podia
ver uma pequena parte do meu rosto.
O guarda anunciou: "Mihai Wurmbrand!". Ele veio e sentou-se diante de mim.
Estava pálido e franzino, tinha as faces encavadas e uma promessa de bigode.
Disse às pressas, antes que o interrompessem: "Mamãe diz que mesmo que o
senhor morra na prisão, não deve o senhor ficar triste porque todos nos encontraremos no
paraíso".
Primeiras palavras de consolação! Eu não sabia se devia rir ou chorar. Recobrei a
calma e perguntei: "Como vai ela? Vocês tem comida em casa?"
"Ela está bem", disse ele: "E temos comida. Nosso Pai é muito rico".
Os guardas encarregados de presenciar nossa conversa mostraram os dentes num
sorriso forçado. Pensavam que minha esposa tinha-se casado de novo.
Para cada pergunta Mihai encontrava alguma resposta com um verso da Bíblia, de
sorte que nos poucos minutos de que dispusemos recebi pequenas notícias da família;
contou-me no entanto que deixara um pacote com os guardas no portão.
Recebi o pacote no dia seguinte, como excedente do que me era permitido, por que
Mihai o endereçara a "Ricardo Wurmbrand". Os outros tinham sido encaminhados ao meu
nome de cadeia, Vasile Georgescu. Logo depois voltaram todas as restrições anteriores:
nada mais de visitas nem pacotes nem cartas.
Antes que terminasse aquele período de desafogo, um guarda levou um cesto à
cela. Continha lençóis e toalhas, mais do que o suficiente desses inimagináveis artigos de
luxo para todos.
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"Houve um erro na contagem!" disse EmiJ, alfaiate. "Vamos recortar o que sobrar
e fazer roupa! Posso confeccionar umas camisas quentes com este material!"
lon Madgearu, advogado, disse nervosamente: "Isto é roubar o que é propriedade
do Estado".- Quem vai saber? Não há inventário!
- Eu sou prisioneiro político, não um criminoso comum.
- Você é um toleirão, isto sim!
A discussão esquentou com palavras dirigidas de parte a parte. Josif apelou para
mim.
Eu disse: "Toda esta 'propriedade do Estado' foi roubada de nós. Fomos reduzidos
a farrapos; temos o direito de reaver o que for possível. É nosso dever para com nossas
famílias fazer tudo que pudermos para sobreviver durante o inverno. Acontece o mesmo
quando o guarda chega quase dormindo de manhã cedo e pergunta: ”Quantos estão nesta
cela hoje?” Exageramos o número dos que estão conosco para recebermos um pouco mais
de pão - o que absolutamente também está certo!"
Madgearu atalhou: "Prefiro conformar-me com a lei". "Mas toda lei é injusta para
com alguém", repliquei. "A lei diz uma coisa a um milionário, que tem de tudo para não
precisar furtar, e a mesma coisa diz a você e a mim, que nada possuímos. Jesus escusa a
Davi por fazer uma coisa que não lhe era lícita quando esteve com fome".
Madgearu por fim concordou conosco, mas depois me disse ter uma razão
especial para não fazer concessões daquela natureza.
"Já fui promotor oficial e no meu tempo mandei centenas para a cadeia. Pensava:
'Ora, o que digo não faz diferença; o Partido em qualquer caso os meterá no cárcere'.
Quando depois me tornei bode expiatório de alguns erros, recebendo a pena de quinze
anos de prisão, fiquei assombrado. Mandaram-me para as jazidas de chumbo de Valea
Nistrului. Lá um preso cristão tornou-se meu amigo. Dividia comigo seu alimento e foi para
mim um bom pastor. Sinto que já tinha tido contato com ele antes, e então perguntei a razão de
ter sido preso. 'Oh', disse, 'ajudei um colega em dificuldade, como você. Ele foi à minha
fazenda, em busca de comida e proteção. Depois foi preso como guerrilheiro e eu peguei
vinte anos'. Eu disse: 'Que baixeza!', lançando-me ele um olhar esquivo... Aquela
objurgatória, que proferi, recaiu sobre mim. Eu fora o promotor no seu caso. O homem
nunca me censurou, mas o seu exemplo de pagar o mal com o bem levou-me a decidir ser
cristão".
Josif exultou ao experimentar a camisa que Emil lhe fizera dos panos de toalhas
excedentes. Era à maneira de túnica, com uma abertura onde enfiava a cabeça, mas ficou
contente de ter alguma coisa nova em cima da pele. "Propriedade do Estado! Hoje em
dia todo mundo furta", dizia prazenteiro.
Stavrat interveio: "Ele tem isso como coisa aceita. Em dez anos tornamo-nos uma
nação de ladrões, mentirosos e reles espiões. Fazendeiros roubam das terras que já
foram suas; lavradores roubam da organização coletivista; até os barbeiros roubam as
navalhas das lojas que eram suas e que a cooperativa confiscou. E depois precisam
encobrir seus furtos. Pastor, o senhor fez restituições de taxas absolutamente certas?"
Admiti não ver qualquer razão para entregar o dinheiro dos meus paroquianos ao
Partido ateu.
' 'Furtar vai ser em breve uma matéria ensinada nas escolas", disse Stavrat.
Josif observou: "Eu não lhes dava atenção na escola. Os professores diziam que a
Bessarábia, a qual todo o mundo sabe que nos foi roubada, sempre fizera parte da Rússia".

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"Excelente rapaz!", disse o general. "Espero, Josif, que você também rejeite o que eles
ensinavam contra a religião", acrescentei, e contei-lhe de um professor do meu conhecimento que
era obrigado a prejecionar regularmente sobre o ateísmo. "Depois de benzer-se, sozinho no seu
quarto, pedindo perdão de Deus, saía para dizer aos alunos que Deus não existia".
"Bem, era natural", disse Josif, "devia haver espiões a observá-lo". Não podia ele imaginar
um mundo em que as pessoas não precisassem olhar à sua volta antes de abrir a boca para falar.
A conversa passou a girar em torno de um novo delator, chamado Jivoin, que desertara do
exército iugoslavo e fora preso na fronteira como espião. Agora, para ganhar as boas graças das
autoridades da prisão, passava por aníititoista e trazia os guardas em polvorosa delatando-os, se
acontecia de relaxarem os regulamentos.
"Alguns de nós decidimos assustar a Jivoin", disse Josif. "Se todos juntos cairmos em cima
dele, não poderão castigar-nos muito".
"Esperem mais um dia", disse eu. "Tenho uma ideia que dará melhor resultado".
Jivoin era mal visto na cela, por isso sentiu-se lisonjeado quando o procurei e indaguei a
respeito de sua terra natal. Não demorou a dizer gracejos da Croácia e provérbios da Sérvia,
rememorando a beleza de Montenegro, suas cantigas e danças. La ficando sempre mais excitado, eu
a instigá-lo.
"E qual é o novo Hino Nacional de sua pátria?" perguntei. - Oh, é magnifico - ainda não o
ouviu?
- Não, gostaria muito.
Todo regozijo, Jivoin saltou e começou a cantar. Os guardas do lado de fora não
reconheceram o hino titoísta senão quando chegou a vez do estribilho. E logo Jivoin foi
agarrado e levado a enfrentar um irado oficial político.
"Bem, é o fim dele", disse Josif. E começamos a rir.
Não muito depois de Jivoin ter sido afastado do nosso meio, um ex-guarda de ferro,
Capitão Stelea, foi removido para a nossa cela, vindo de outra abaixo da galeria. Lá deixara,
com tristeza, um velho companheiro dos tempos de guerra.
"Qual o nome dele?" perguntou o General Stavrat.
"lon Coliu", respondeu Stelea. "Foi posto comigo na noite que se seguiu à minha
chegada em Tirgul-Ocna, quando conversamos a valer sobre os tempos de outrora.
Stavrat perguntou se ele havia contado a Coliu algum segredo que não revelara no
interrogatório e sob tortura.
"Sim, tudo", disse Stelea. "Ele foi meu amigo íntimo durante anos. Eu arriscaria minha
vida por ele".
Ao dizer Stavrat que lon Coliu se tornara o mais vituperado alcagüete de Tirgul-Ocna,
Stelea não pode acreditar. Pediu-me confirmação do fato. Durante horas Stelea ficou sentado
em sua tarimba qual soldado traumatizado que sofresse de uma neurose de guerra. A seguir
deu um salto e começou a bradar e lutar conosco, histericamente, até que os guardas o
levaram.
Reserva-se uma sala em todos os presídios para os que sucumbem. São deixados
lá a esbravejar e gritar, a defecar no chão e a se engalfinharem, às vezes até morrerem. A
comida lhes é empurrada por uma portinhola e aí deixada. Guarda nenhum arrisca a vida
entre eles.

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A sentença de Josif ia expirar dentro de poucas semanas. Fazia planos para o futuro, disse-
me: "Minha irmã na Alemanha procurará conseguir licença para viajarmos à América.
Aperfeiçoarei o meu inglês e aprenderei um ofício!"

Mas ainda abominava o seu rosto desfigurado. Certa noite contei-lhe como Helen Keller,
apesar de cega, surda e muda, veio a ser uma das grandes personalidades da América. Ficou fascinado
ao descrever-lhe eu como aprendera sozinho piano, tornando-se exímia pianista, auxiliada
apenas por um pedaço de madeira ressonante preso nos dentes, a outra extremidade fixado ao
piano, e como o seu trabalho trouxe o sistema Braille para milhares de cegos.
"Escreveu em um dos seus famosos livros que, não obstante nunca ter visto o Céu estrelado,
levava-o no coração. Estava aí a razão de ter podido expor ao mundo, que possui estes sentidos,
mas que muitas vezes deixa de usá-los, a beleza da criação de Deus".
Contei-lhe ainda que Helen Keller veio de uma família rica. Se tivesse sido "felizarda" como
outras moças, possuindo todos os cinco sentidos, teria dissipado sua vida em trivialidades. Ao
invés disso, usava o que o mundo chamava "mal" como estímulo para alcançar as altitudes de novas
realizações.
Josif refletiu. "Helen Keller deve ter sido um caso entre mil", disse.
"Não. Há muitos iguais a ela. O escritor russo Ostrovsky era cego, paralítico e tão pobre
que precisou escrever sua novela em papel de embrulho. Hoje tem fama universal. Grandes homens o
mais das vezes têm sido doentes. Schiller, Chopin, Keats foram tuberculosos como nós.
Baudelaire, Heine e nosso poeta Eminescu foram sifilíticos. Dizem os cientistas que os
bacilos dessas enfermidades excitam nossas células nervosas e por esta forma aumentam nossa
inteligência e força de percepção, embora possam ocasionar loucura ou morte no fim. A
tuberculose pode tornar pior uma má, contudo as boas tornam-se melhores; vêem que suas vidas
vão-se apagando e desejam fazer todo o bem que podem no tempo que lhes resta".
Josif ajudou muitas vezes na Sala Quatro. Eu disse: "Você não viu a excepcional serenidade,
gentileza e lucidez que sobrevêm a alguns daqueles que sofrem de tuberculose?"
Seus olhos brilharam. "Isto é certo. Como é esquisito!" Continuei: "Durante milênios o
homem considerou o fundo - esse mofo de paredes - como coisa ruim. Há vinte e cinco anos,
porém, Sr. Àlexander Fleming achou naquilo um bem, descobrindo a penicilina que tantas
doenças cura. Até que se conhecesse sua real utilidade esse fungo era um mal. Pode ser até que
ainda precisemos conhecer o meio de fazer o vírus da tuberculose agir em benefício nosso.
Quando acontecer que esta nossa moléstia incurável se vença, em nossos filhos talvez se
inoculem pequenas doses do seu germe para lhes ativar a inteligência".
"Deus fez o Céu e a Terra, também a sua vida e tanta beleza, Josif! Há sentido no seu
sofrimento, como o houve no de Jesus, porque foi sua morte na cruz que salvou a humanidade".
Josif tiritava em sua camisa nova, que já estava ficando poída. Peguei a jaqueta de lã
que meus parentes me haviam mandado, e dela tirei o forro para mim. Persuadi Josif a ficar
com a jaqueta. Com os braços envolveu-a de encontro ao peito para mostrar como se sentia com
ela aquecido. Sua conversão começou naquele dia. Apesar disso ainda faltava alguma coisa para
levá-lo de todo à fé.
E isso aconteceu durante a distribuição das rações de pão. Estas eram postas em carreiras
sobre uma mesa todas as manhãs. Cada porção devia pesar uns cem gramas, porém, algumas eram
um pouquinho maiores, outras, menores. Muitas vezes havia discórdia sobre a quem tocava a
vez de escolher antes de outros, e brigavam a respeito de quem seria o último. Uns indagavam o
parecer de outros: qual será a maior porção das que ali estavam. E tirando a porção indicada por
outros, suspeitavam que tinham sido logrados, e assim amigos se tornavam azedos uns com os
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outros por causa de um bocado a mais ou a menos de pão preto. Ao procurar lograr-me um preso
intratável chamado Trailescu, Josif ficou observando.
Eu disse a Trailescu: "tome também a minha ração. Sei que você está com muita
fome". Ele deu de ombros e meteu o pão na boca.
Sentamo-nos a traduzir versos do Novo Testamento naquela noite para o inglês e Josif
adiantou: "Já lemos quase tudo o que Jesus disse, mas ainda gostaria de saber como era ele, com
quem se parecia".
Respondi: "vou dizer-lhe. Quando eu estava na Sala Quatro, havia um pastor que dava tudo
quanto tinha - seu último pedaço de pão, seu medicamento, o casaco que usava. Eu também dei
coisas assim algumas vezes, quando delas precisava para mim. Mas outras vezes, quando os
homens estavam famintos, doentes e necessitados eu podia estar muito tranquilo, não me
incomodava. Aquele pastor parecia-se de fato com Cristo. Era de se pensar que o simples contato de
sua mão podia curar e acalmar. Certo dia ele conversava com um pequeno grupo de prisioneiros e
um deles fez a pergunta que você me fez: com quem Jesus se parece? Nunca encontrei ninguém
como esse homem que o senhor descreve, tão bom, amável e digno de confiança'. E o pastor
replicou, num momento de muita coragem, simples e humildemente: 'Jesus é como eu". E o
homem que tantas vezes tinha sido atendido bondosamente por ele, respondeu sorrindo: 'Se Cristo
era como o Senhor, então eu o amo'. São muito poucas, Josif, as vezes em que alguém pode falar
assim. Mas para mim é isto o que significa ser cristão. Crer em Cristo não é tão grande coisa como
se tornar a pessoa que Ele é “.
"Pastor, se Jesus é como o senhor, neste caso eu também o amo", disse Josif. Afirmou isto
com um olhar fixo, pleno de inocência e paz.
Passou aquele momento e prosseguimos a nossa lição. Contei-lhe como Jesus respondeu
aos judeus que pediam um sinal, para que nele pudessem crer. "Nossos pais", disseram,
"receberam pão do Céu. Moisés o conseguiu para eles". Jesus replicou-lhes: "Eu sou o pão da
vida. O que vem a mim nunca terá fome ou sede. Vossos pais comeram e morreram. Falo do pão
que vem do Céu; quem dele comer nunca morrerá".
No dia seguinte Josif foi servir na Sala Quatro, como tantas vezes fazia. Quando à noite nos
encontramos, ele disse: "Quero ser cristão mais do que outra coisa". Batizei-o com um pouco de
água de um caneco de estanho, dizendo: "Em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo". A
amargura dissipou-se do seu coração completamente antes de ser libertado.
No dia de sua partida abraçou-me. Dos seus olhos corriam lágrimas. Ele disse: "O senhor me
ajudou como se fosse meu pai. Agora posso agüentar-me, com o auxílio divino".
Anos depois voltamos a encontrar-nos. Ele era cristão. Mas agora se orgulhava da cicatriz que
antes detestava.
Os diretores do nosso presídio logo ficaram refeitos do susto causado pela morte
de Stalin. Tinha havido sérias perturbações nos campos de escravos da Sibéria, e eles
estavam determinados a não mostrar fraqueza. As velhas restrições voltaram a vigorar e
foram criadas outras. As janelas foram fechadas e seus vidros pintados, apesar dos protestos
do médico; só à noite, quando os guardas não estavam vigiando é que podíamos abrir uma
brechinha nelas. No verão o calor e o fedor eram horríveis.
Fora, igualmente, aumentaram os sofrimentos da Igreja. Ouvimos de padres
ortodoxos recém-detidos, que o Patriarca Justiniano se tornara cem por cento um
instrumento do Partido. Um dos seus piores atos foi sua maneira de tratar Madre Verônica,
uma freira reverenciada por toda a Romênia. Anos antes, quando era uma camponesa analfabeta,
Verônica alegava ter tido uma visão da Virgem Maria, que lhe apareceu num campo e lhe disse
que fosse construído um convento naquele local. Depois de várias aparições daquela natureza
75
começaram a chegar donativos e 200 moças tomaram o hábito. Nos anos seguintes o
santuário da Virgem tornou-se lugar de peregrinação como Lourdes, e depois que os
comunistas assumiram o poder a lenda de que ela redimiria a Romênia adquiriu novo
sentido. Um dia Justiniano chegou em um carro preto lustroso e começou o seu serviço
excomungando o capelão da igreja do convento. Depois, como chefe da igreja, disse às
freiras que elas estavam perdendo o seu tempo em preparar-se para uma vida além desta;
muito melhor seria que saíssem dali e fossem gozar os prazeres do mundo - por que
haveriam de renunciar os direitos que o sexo lhes dava em troca de uma ilusória bem-
aventurança futura? As freiras não lhe deram ouvido. Recusaram-se a deixar seu refúgio. Assim, à
vista de Justiniano seguiu-se uma batida pela Polícia de Segurança. As irmãs que não quiseram
quebrar seus votos foram vergonhosamente maltratadas, e acabou fechando-se o convento. A
notícia desse fato abalou a Romênia: o Partido ficou preocupado. Madre Verênica foi
submetida a enorme pressão em uma prisão secreta e obrigada a confessar que a visão que
tivera foi uma burla. Depois que foi solta, casou-se e teve filhos. E assim foi que acabou a Lourdes
romena.
Outro golpe nos fiéis foi o que aconteceu a Petrache Lupu, conhecido como o "santo
zagal" de Oltenia. Quando guardava seu rebanho muitos anos antes, vira a figura de um velho.
Este se apresentou como Deus, declarando que mais igrejas deviam ser construídas e dinheiro
dado aos pobres. Apesar de Lupu ter sífilis hereditária, mal podendo falar que se entendesse,
acreditou-se em sua história. Milhares de pessoas foram vê-lo. Rebentando a guerra, e sendo ele
encaminhado à frente de batalha para animar as tropas, os soldados disputavam o privilégio de
beijar-lhe a mão. Ia de um setor a outro dizendo-lhes que Deus queria que matassem mais
russos. Sendo capturado pêlos comunistas, Petrache Lupu perguntava aos seus
companheiros de prisão quando era que os americanos iriam resgatá-los. "Por que esperar pêlos
ianques?" diziam-lhe. "O seu 'Velho' com certeza virá libertá-lo em breve. Lupu cacarejava. Ele
gostaria de fazer isto, mas não arranjou ainda uma espingarda!"
Os padres ortodoxos narravam com tristeza outro caso: o de um frade milagreiro, Arsene
Boca, cujos adeptos diziam não precisar confessar-lhe os pecados, porque ele sabia quais eram
estes só em olhá-los de relance. Boca passou um tempo preso. Depois abandonou o hábito,
casou-se, vivendo como os demais homens.
Muitos dos golpes desferidos pelo Partido na religião, apenas decepavam galhos
de crendices supersticiosas, deixando a fé autêntica mais pura do que nunca. Mas a natureza
humana é tal que se a superstição religiosa vem a ser tosada drasticamente é possível que a
superstição ateística lhe tome o lugar. Em vez de veneração às imagens sagradas, temos a
idolatria a Stalin, o assassino de multidões, passando o segundo demônio a ser pior do que
o primeiro.
Nova leva de presos chegou e um deles, que tinha sido surrado gravemente, mandou
chamar-me. Fui com o Professor Popp corredor afora.
Era Boris. O velho sindicalista dos trabalhadores tinha estado em várias penitenciárias
desde que a reeducação tivera fim. Jazia no chão, onde os guardas o soltaram. Os outros da cela
estavam fora, em exercícios, e ninguém lhe tinha prestado qualquer auxílio até que Popp
passou. Pusemo-lo com cuidado num leito de tábuas. Sua camisa imunda estava grudada à pele
com sangue coagulado. Devagar e doloridamente ensopamo-la e despregamos, pondo-se à
mostra nas costas marcas entrecruzadas, novas e antigas, de chicotadas. Foi o pagamento que lhe
deram por cooperar com os reeducadores, e o prêmio de todos os seus companheiros que
pensavam granjear as boas graças do partido brandindo cassetetes.
Os presos, vindos do exercício, puseram-se em fila, e muitos lançavam a Boris um olhar de ódio
e desprezo.

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"Eu mesmo dei lugar a isto", disse o coitado, enquanto eu e Popp lavávamos os ferimentos.

"Está aí o que você arranjou", disse alguém. Boris segurou firme o meu braço,
"encontrei uma pessoa que o senhor conhece. Patrascanu mandou-lhe um recado por mim".
Disse que Lucretiu Patrascanu, ex-Ministro da Justiça comunista, que estivera
comigo na cela depois de nossa detenção em 1948, estava morto. Durante o ano de incertezas que
se seguiu ao desaparecimento de Stalin, os mandões do Partido ficaram temerosos, tanto
quanto nossos guardas, de que podiam ficar submersos numa contra-revolução. Viam no
detento Patrascanu um homem de popularidade que podia liderar um movimento liberal e
tomar vingança contra eles. Depois de seis anos de prisão, instauraram contra ele um processo
rápido, sendo condenado à morte.
Boris esteve com ele por breve tempo. Disse que Patrascanu, que tanto fizera para
levar o Comunismo ao poder, foi torturado antes de morrer. Queixara-se do frio; deram-lhe
para vestir roupas pesadas e puseram-no em grilhões. "Ainda sente frio?" disseram, e
aqueceram a cela até que, ofegante e ensopado de suor, pediu-lhes que desligassem o
aquecedor. Assim fizeram, depois do que o deixaram só com a camisa e baixaram a
temperatura até ao ponto de gelo. Patrascanu foi assim alternadamente cozido e
congelado, e como não morresse, levaram-no para fora e o fuzilaram.
Boris concluiu: "Ele me disse: 'Se você voltar a ver Wurmbrand, diga-lhe
que ele tinha razão"'. O Dr. Aldeã entrou e foi dizendo a Boris: "Temos de levá-lo para a
Sala Quatro".
Passei o tempo todo que pude com Boris na "sala da morte", e alguns dias depois
pareceu-me que ele se restabelecia. Embora seu orgulho não o deixasse admitir, estava
contente por voltar àquela atmosfera de compreensão humana.
Acenou com a cabeça na direção de seu vizinho, testemunha de Jeová: "O velho
Losonczi está orando por mim. Faz bastante orações por nós dois". Erguendo mais a voz,
disse: "Losonczi, você diz tudo a Deus, não é?"
O velho companheiro respondeu: "Peço o bem para todos nós".
"Você ainda não teve uma resposta", observou Boris. "Ele está esticando sua canela,
talvez; está refinando você, qual outro Jó!"
Agarrou o meu punho. "É algo que exige explicação, não é? Ano após ano os
homens oram pedindo liberdade, notícias de seus familiares, uma refeição só que seja para
saborearem. Que recebem? Nada!"
Boris prosseguiu. "Estive em Jilava, o pior cárcere da Roménia. Meus amigos
oravam: 'Deus, se tu nos amas, dá-nos alguma coisa para comer, que não esteja bichado'".
"E a comida melhorou?" perguntou Losonczi.
"Nada, ficou pior!"
Eu intervim. "Quando o médico o submete a tratamento, não acontece quase sempre
causar-lhe dores? Pense um momento nos animais que morrem submetidos às experiências
dos cientistas. Se houvesse um cachorro ciente de que, pelo que sofresse, podia salvar a
vida de milhões de seres superiores, não aceitaria o sofrimento de boa-vontade, até mesmo a
morte? Creio
que o que sofremos pode ser útil a gerações futuras. Jesus suportou suas dores, ciente de
que por elas salvaria o género humano".
Losonczi observou: "No mundo inteiro, todos os dias, pessoas dizem o 'Pai
Nosso', e declaram que o Reino de Deus está para vir, e ele não vem. Penso porém saber a
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razão. É que as pessoas que oram não querem de fato o que pedem. Dizem: 'Venha o teu Reino',
mas não é uma súplica do coração. O que realmente querem é o retorno da Guarda de Ferro,
ou a vinda dos americanos, ou o regresso do Rei, ou quem mais possa vir para ajudá-las".
Boris escutava sério.
"Mas a última coisa na mente de tais pessoas, com certeza, é o Reino dos Céus, se
bem que podiam tê-lo como certo se nele pensassem e por ele trabalhassem. Na minha
aldeia tínhamos um culto de oração em favor dos pobres. Todos compareciam, menos um
agricultor rico, cujo banco ficava vazio. Enquanto pensávamos que éramos muito
melhores do que ele, seu filho apareceu um dia levando quatro sacos de trigo. Colocou-os
à porta da igreja e disse: "Meu pai mandou a oração dele". Aquele homem fizera algo para
criar o Reino de Deus".
Eu disse: "Aí tem você a resposta, Boris! A Bíblia prometia que os judeus viriam dos
confins da terra e receberiam o seu reino na Palestina - mas a profecia não se teria
cumprido por mais de 1.000 anos se homens como Herzl e Weizmann não trabalhassem
e lutassem por cumpri-la".
Outros por ali perto, macilentos, sorumbáticos, naquela sala da morte, fizeram-me
perguntas sobre o sentido da oração e em que consistia o auxílio que prestava. Expressei
meus pensamentos em voz alta: "Muitos vêem Deus como um ricaço a quem recorrem
pedindo favores. Muitos se apegam a superstições.
Mas os cristãos sabem que nos cumpre realizar uma forma mais pura de religião, ainda
que isto não toque a todos. Nossas orações assumem a forma de meditações, aceitação, amor.
"Milhões invocam ao Pai diariamente. Mas visto como na terra somos filhos de Deus,
e os filhos participam das responsabilidades paternas, tais orações são devolvidas anos por
igual. O Pai a quem todos oram não está no meu coração?
"Assim pois, quando eu digo 'Santificado seja o teu nome', devo santificar o nome de Deus;
'Venha o teu Reino', devo batalhar para dar fim ao governo das bestas bravias em grande parte do
mundo; 'Seja feita a tua vontade' e a vontade dos homens bons, não dos maus; 'Perdoa os nossos
pecados', devo também perdoar; 'Não nos induzas a tentação', devo procurar que outros não sejam
tentados; 'Livra-nos do mal', devo fazer tudo possível para livrar os homens do pecado".
Losonczi e eu tornamo-nos amigos. Ele era interessante; era um agricultor cujo bom-
senso, simples, brilhava através das opiniões estranhas que mantinha como testemunha de Jeová
que era. Achei que a seita o escolhera, não ele à seita. Desiludido da Igreja Ortodoxa e
procurando uma religião em consequência de uma crise pessoal em sua vida, abraçou a primeira
que encontrou. Havia muitos desses "refugiados", saídos das confissões maiores. Tivesse Losonczi
sido atraído a uma seita aprovada por lei, tais como os batistas ou adventistas, não teria pegado
vinte anos de cadeia como um dos testemunhas fora da lei.
Certo dia, quando conversava com ele, perguntou-me: "Sabe qual o verdadeiro
motivo de eu estar aqui? Não foi só -disse ele - porque o Partido odiava os testemunhas em
virtude da atitude rígida deles. "Anos antes eu cometera um grande pecado relacionado com o
sexo. Arrependi-me e pedia a Deus que me fizesse sofrer para expiá-lo. Ainda o estou expiando".
Losonczi não estava em condições de ouvir, por ora, outra doutrina. Estava à beira
da morte.
"Até os santos tiveram dificuldades em subjugar sua natureza carnal", disse-lhe
eu. "Jesus sabia disto. Ele expiou nossos pecados, pelo que não há necessidade alguma
de você expiá-los por si mesmo". Ele replicou: "Não posso esquecer o que fiz".
Poucos dias depois fui à sala e encontrei vazia a cama de Losonczi. Morrera
naquela noite.
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O velho morrera pensando no pecado sexual de sua mocidade, e ali não era ele o
único a sofrer. O sexo era um angústia constante de todos na prisão. Prisioneiros sentavam-se
fitando o vácuo, tendo a cabeça cheia de fantasias sexuais. Procuravam
alívio conversando horas a fio e muitas vezes me atazanavam com
perguntas provocadoras.
Homens casados, pensando no que estariam fazendo suas esposas, sofriam mais do
que todos. Boa parte já se tinha divorciado na ausência dos maridos; era forte a pressão
para que elas se divorciassem de "contra-revolucionários", e mulheres que já haviam deixado
seus maridos presos por outros homens não tinham razão de resistir àquela pressão.
Um líder da conversa em torno de sexo, a qual já se tornara obsessão, comprara certa
vez um andar do edifício de grande departamento comercial e - segundo sua própria
narrativa -seduziu muitas funcionárias dali. Um homem mundano de meia-idade,
NicolasFrimu, envaidecia-se do apelido que tinha na prisão, 'O Grande Conquistador'.
Vangloriava-se muito da esposa, jovem atriz, que, dizia ele, o adorava.
Ao ser chamado um dia ao gabinete do comandante, esperava ouvir o resultado de sua
apelação da sentença. "Estarei livre daqui a pouco", disse. "E então...!" estalava beijos nos dedos.
Logo estava de volta, vermelho de raiva. "Minha apelação foi impugnada - e ela
divorciou-se de mim, casando com outro!" explodiu. Durante alguns minutos descreveu sem parar
a vingança que ia tomar da mulher e do seu novo marido - que era o diretor do Teatro do Estado.
Outros maridos abandonados instigavam-no, bradando e rindo com amargura, inventando
outros castigos ainda mais atrozes.
Eu disse: "Mas quantos de nós ficariam fiéis às suas esposas se estivéssemos livres, e elas
na cadeia?"
"Não nos venha com preleções!" exclamou Frimu.
Continuei: "Sinto serem más as notícias que você recebeu. Mas você sempre está se
referindo às moças que tem desencaminhado; como pode esperar que sejam puras as
mulheres que têm a rodeá-las homens como você!"
Novac, um deão que de ordinário era reservado e tímido, surpreendeu-nos, dizendo:
"Nem sempre o marido merece censura. Procurei fazer feliz minha mulher. Pensei que
tinha conseguido. Ao voltar para casa, depois de minha primeira detenção, quem me abriu a
porta foi um estranho. Minha mulher saiu e disse: 'Casei com ele - por favor vá saindo!' Procurei
falar com ela, mas não me quis ouvir. 'Já passei por bastantes provações, não quero mais
contra-revolucionários em minha casa', bradou ela. Tive então de passar minha primeira noite
de liberdade numa sala de espera de estação ferroviária".
"Tolo que você foi!" disse Frimu.
Petre, um aviador, perguntou: "E como se foi na segunda noite?"
O deão ruborizou-se e saiu.
Emil, que era agricultor, tremia de raiva ao contar como tinha voltado a casa
depois de uma prévia sentença. "Minha cachorra sentiu-me o faro a meio caminho da
rua. Arrancou a corrente que a prendia à cerca e correu ao meu encontro, e ao inclinar-
me, ela pulava para me lamber o rosto. Dali saí para casa onde encontrei minha mulher
deitada na cama com outro homem".
Seus olhos fuzilavam à volta de nós: "qual das duas era mais cachorra, pastor?"
O Partido comunista trabalhava deliberadamente para solapar a moralidade. Mas,
pondo de parte esse fator, respeitava-se a doutrina cristã relativamente a assuntos de sexo? Do
que se ouvia no presídio parecia improvável, e uma porção de presos cristãos procurava
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descobrir algo sobre isso pedindo uma resposta exata a uma pergunta simples: "Você
sempre obedeceu à regra básica da igreja cristã de guardar a castidade por palavras,
pensamentos e ações antes do casamento, e a fidelidade conjugal depois dele?"
De 300 presos, todos cristãos nominais, dois responderam sim. Um foi o virtuoso
ancião Padre Suroianu, e o outro um rapazinho de quinze anos.
Sentamo-nos a comparar impressões. O General Stavrat disse: "À igreja tem de
pensar de novo no assunto. Um exército não pode sair à guerra com ordens que ninguém
obedece".
"Pregar o que ninguém pratica desvaloriza tudo quanto um padre tenha a dizer",
observou Stancu, jornalista.
"Não podemos ir de encontro à Bíblia", objetou o Deão Novac.
"Certo que não", disse eu. "Mas conquanto não possamos chegar a um acordo a respeito
do pecado, devemos ter maior compreensão do pecador. Nos tempos bíblicosLas mulheres
usavam véu e vestidos que se pareciam com cobertas de tenda. O homem precisava ser um tarado
para desencaminhar uma jovem. Hoje em dia as roupas que elas usam têm por objetivo atrair o
sexo oposto, e as oportunidades para isso aparecem com abundância.
"Lembram-nos como Jesus tratou a mulher apanhada em adultério. Ninguém pôde
atirar-lhe a primeira pedra. Os acusadores debandaram e Jesus perguntou: "Mulher, ninguém te
condenou? Vai e não pesques mais".
O deão estava preocupado: "A mocidade hoje é tão licenciosa. Precisa de
orientação".
Concordei, mas acrescentei: "Precisamos também ensinar que sexo é uma dádiva de
Deus ao gênero humano. Temos de falar toda a verdade para excluir dele toda mancha de
obscenidade. Há aí um que de divino. O mais antigo livro religioso do mundo, o "Maneva-Darma
Sostra", diz: "A mulher é um altar em que o homem deposita, como sacrifício agradável a Deus,
sua semente".
"A maioria de nós vê a mulher como parte de uma rotina", queixou-se Stancu. "Vemo-la
assim como objeto de uso, de prazer, ou de uma boneca enfeitada que se tem para mostrar. Uma
escrava para lavar e cozinhar, ou um ídolo em cujo o homem se perde. Ninguém parece
considerá-la sua igual, mesmo nas relações sexuais".
"A coisa principal é o homem escolher uma companheira que o faça feliz", disse o deão.
"Ou vice-versa", sugeri. "Um dos homens mais felizes que conheci escolheu uma jovem
desgraciosa da vila, porque julgava que ela não acharia nenhum outro que a quisesse em
casamento".
"Que camarada romântico!" escarneceu Stancu. "O casamento não passa de um
contrato. Quando meus pais encontraram uma moça fina com um dote razoável, a transação
se fez. Temos vivido bem contentes, a nosso próprio modo".
"Então você absolutamente não está casado", disse eu - O sim foi trocado na igreja!
- Considero sem validez à vista de Deus o casamento feito por interesse material,
mesmo que o Papa de Roma lhe dê sua bênção.
Stancu sorriu. "Então há por aí uma quantidade imensa de casamentos sem validade.
Rapazes vendem-se a moças ricas, assim como moças pobres se vendem a homens ricos. Não
é mais irracional a validez que se baseia em boa aparência, que não dura, do que a que se
firma em sólido saldo bancário, que é durável?"
Respondi a Stancu narrando a história de uma moça cujos pais a fizeram casar com um
cidadão rico. Depois de anos de infelicidade ela se enamorou de um costureiro, o que lhe fazia
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os vestidos, e foi morar com ele. Muitos membros da minha igreja não queriam nada com ela.
Viver com um homem fora do matrimónio é pecado, mas eu procurei entender a situação
dela. Seus pais, por meio de castigos e outras coisas forçaram-na àquele casamento. A melhor
coisa a fazer era não desprezar aquela mulher, mas ajudá-la, encorajando-a a legalizar uma
situação que era irreversível. Pedi ao meu pessoal que não a julgasse apressadamente.
"A moça veio agradecer-me, chorando. Eu disse que o fichário de membro da igreja
não era igual ao fichário que Deus mantém no Céu. "Deus compreende, mesmo que não aprove,
os sentimentos que levaram a senhora a lançar-se nos braços de outro homem. Deus continua
amando-a". Ela abraçou-se ao meu pescoço e beijou-me, e nesse momento minha esposa foi
entrando".
Os outros rebentaram uma gargalhada. Stancu perguntou: "E como foi que o
senhor explicou a ela a situação?"
"Não havia nada a explicar", disse eu. "A mulher viveu feliz com o costureiro e
quando ele faleceu, anos depois, contei à minha esposa o que acontecera".
Julga-se que as penitenciárias estimulam o homossexualismo, mas não vimos
nenhuma prova disso, talvez por causa das enfermidades, da exaustão e da aglomeração de
detentos nas celas. O Professor Popp referia em tom de repulsa um ou dois casos suspeitos.
Eu dizia que devíamos condenar o pecado, mas procurar compreender esses homens
não raro infelizes e perdoar-lhes as faltas, como fazíamos no caso de outras falhas humanas,
e tentar saná-las. Muitos homens notáveis foram homossexuais -Alexandre, Adriano, Platão,
Leonardo; e muitos manifestaram, no que realizaram, um profundo sentimento cristão,
desde Sócrates - que foi chamado "cristão antes de Cristo"- até Miguel Angelo e, já em nossa
própria época, Oscar Wilde e André Dunant, fundador da Cruz Vermelha Internacional.
"Sim, conheço a lista das coisas que lhes deram renome", disse Popp, "mas grande
número deles, no teatro ou seja onde for, fazem gala desse problema seu e levam a
público um caso que é um particular deles. Uma vez que a sociedade condena essa
tendência, devem pelo menos usar um pouco de prudência".
Um rabino lembrou a palavra de conselho existente no livro de grande sabedoria
prática, o Talmude: "Diz que se um rabino não pode dominar um impulso mau, deve ao
menos evitar escândalo, cingir um véu e ir a outra cidade; e aí continue a pregar a lei".
Paul Cernei, um jovem que pertencera à Guarda de Ferro, estava deitado num leito
próximo. Levantou-se e disse: "Vou expor aos senhores um problema enrascado, que me
estragou a vida... Anos atrás encontrei uma moça - chamemo-la Jenny. Começamos a
namorar. Ela nunca me deixou ir à sua casa. Afinal decidi pedi-la em casamento. Quando
encontrei a casa e me apresentei, o pai saiu e foi dizendo: "Meu filho, Jenny já me disse
tudo a seu respeito!" Olhei para ele horrorizado. Era um rabino, ostentando no peito a
Estrela de Davi. Eu era anti-semita. Fiquei sem saber o que fazer. Disse, murmurando entre
os dentes, que nunca fizera ideia de que Jenny fosse de família israelita, e fui embora".
Fez uma pausa. "Nunca mais vi a moça. E fiquei solteiro. Não podia esquecê-la.
Ouvi dizer que ela também ainda está solteira".
Cernei contou essa história comovido. Stavrat ponderou:
"Quando você for libertado, pode não ser tarde demais..."
"Mas se nós tivéssemos casado", obtemperou Cernei, "quem ia mudar de
religião? Eu sou ortodoxo e ela, judia".
Eu disse: "Ou a sua fé vale alguma coisa para você, e neste caso não pode trocá-la
por nada no mundo, ou não vale coisa alguma, e então pode abandoná-la. Todavia, se

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vocês dois se amam, por que cada qual não fica com a religião que escolheu?" "Eu queria
filhos", atalhou ele. "Tínhamos de criá-los numa ou noutra religião".
Fiz ver que os meninos, quando crescessem, Cernei e a esposa de per si podiam
explicar-lhes suas crenças, e então deixar que eles escolhessem mais adiante a que
desejassem. "Você podia fazer do amor que lhe votava um meio de trazê-la, com mansidão, à
verdade".
"Os pais dela jamais aprovariam que ela mudasse de religião", observou Cernei.
"Ela devia ouvi-los, por certo, mas^íão submeter-se, sabendo que eles não tinham
razão".
Stavrat meneou a cabeça: "Honrarás a teu pai e à tua mãe", disse citando o mandamento.
"Mas, general", replicou Cernei, "meu pai abandonou a casa quando eu ainda estava
no berço. Minha mãe foi embora com outro. Fui criado num orfanato".
Ninguém podia achar resposta para o problema.
"Acho que devia ter refletido antes de me ir embora naquele dia", concluiu Cernei.
Quantas vezes não ouvi presos proferir palavras como essas! Assemelhamo-nos a
automóveis com os faróis postos na parte traseira. Olhando retrospectivamente vemos o dano
causado e as pessoas que prejudicamos. Descobrimos muito tarde que, se apenas
tivéssemos parado para calcular o que custou às nossas famílias, à nossa saúde ou
simplesmente ao nosso amor-próprio, não agiríamos como agimos.
Quando Cernei nos deixou, o general disse: "É um moço decente. O povo sempre
censura a péssima criação quando os homens procedem mal hoje em dia, mas o rancor e a
inimizade também influem neles. Dedicamos cuidado à criação de animais, no entanto
criminosos degradados, imprestáveis não são dissuadidos de gerar filhos segundo a sua
espécie".
Os cristãos não podem ignorar este problema fundamental da hereditariedade.
Procuramos reformar pessoas adultas, ou castigar criminosos, porém nunca pedimos aos
que aspiram a ser pais que considerem se algo na sua ascendência pode prejudicar os que
lhes vão nascer no futuro. Não existe sexo apenas para trazer bebês ao mundo: tem seu
valor próprio de tornar a vida mais nobre e mais feliz. E com isto nos desculpamos se acontece
trazermos filhos ao mundo por descuido, como consequência de um momento de prazer,
esquecidos de que a procriação é um ato sagrado.
A maioria dos presos, que sempre têm escassez de comida, colocam a necessidade sexual
no mesmo pé de igualdade. No Juízo Final os homens serão repreendidos por deixarem de
alimentar os famintos; e também o serão - dizem alguns - se deixarem de satisfazer a sede de
amor dos seus companheiros, sempre que puderem fazê-lo, enobrecendo-os e tornando-os mais
felizes.
Existe injustiça sexual, naturalmente, assim como há injustiça social e econômica.
É ela uma das grandes causas do sofrimento humano. Mas neste caso toda lei contém
inevitavelmente um elemento de injustiça, visto que dá os mesmos encargos a homens desiguais e
que vivem em condições desiguais. A lei estabelece as mesmas normas tanto para os ricos
como para os pobres, para os de fraca como os de forte sexualidade, para os ignorantes como
para os letrados.
O casamento deve ser uma questão de honra. É um dever que as pessoas assumem - o de
serem fiéis. Amor é um sentimento, e todo sentimento sofre alteração; ninguém ama a ninguém e
se zanga na mesma intensidade por toda a vida. É uma lei da natureza que a paixão ou entusiasmo
baixa de intensidade à medida que se vai ficando velho, por isso não pode também ser garantia

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de um casamento feliz. Deve então haver alguma outra coisa: é a decisão de ser leal, de fazer
feliz o companheiro.
Desde que é obviamente impossível satisfazer a necessidade sexual de todos, discutimos a
castidade como uma alternativa. Os católicos diziam que o pensavam a favor do celibato dos
padres.
Eu disse: "Se o celibato é obrigatório e o casamento é proibido por voto, então o
fracasso na abstenção pode prejudicar a fé do padre".
"Pode-se tornar-se grande força criadora", lembrou o professor. "É duvidoso
qucTSpinoza, Kant, Descartes, Newton, Beethoven tenham chegado a conhecer uma mulher
no sentido bíblico".
Fiz ver que o principal estímulo estava em se ensinar aos homens a sublimação
desse impulso natural, encaminhando-o a obras úteis à sociedade e a Deus. Castidade, ao meu
ver, era coisa para poucos. Contudo precisamos compreender mais e mais que nossos corpos
não nos pertencem para que deles abusemos em prazeres egoísticos; são templos de Deus,
para se consagrarem ao seu serviço.
Popp e eu nos revezávamos para tratar de Boris, que estava na Sala Quatro, combalido e
tossindo. O Dr. Aldeã disse: "Se ele se alimentar pode durar uns dez dias. Minhas visitas
não o ajudavam realmente. Está cheio de remorso por haver-me espancado. Minha
presença até lhe faz mal".
Perguntei se ele podia ser removido para a minha cela. Aldeã conseguiu isto. Assim
Boris foi levado para a cama junto da minha. Cuidei dele em sua última semana de vida.
Definhava sob as nossas vistas. Seus cabelos ficaram reduzidos a poucos fios,
suas faces, fundas. Suava febrilmente, enquanto eu o enxugava, dia após dia.
"Tudo vai acabar logo", murmurou. "Um padre certa vez me disse: 'Você vai
apodrecer no inferno'. Que seja!"
"Que foi que o levou a dizer isso?" perguntei.
Eu estava amaldiçoando Deus por causa dos meus sofrimentos. Ele disse que eu
seria castigado eternamente.
Um pastor chamado Valentino interveio: "Os homens amaldiçoam o Partido
Comunista, mas pode acontecer que ele os liberte. Se o inferno fosse sem fim, Deus seria
pior do que a nossa Polícia Secreta".
Boris abriu os olhos: "Quer dizer que o senhor não crê em Fogo Eterno?"
"A doutrina bíblica do inferno sem fim é verdadeira subjetivamente, sem dúvida,
mas que é o inferno? Dostoievsky chama-o estado de consciência, e ele é um fiel ortodoxo.
No livro "Irmãos Karamazov" escreveu sobre o inferno, "Creio que o seu sofrimento
consiste na incapacidade de amar".
"Acho que essa espécie de inferno não me dá cuidado", disse Boris.
Respondi: "Talvez você nunca soube o que pode ser viver onde não existe nenhum
amor. Quando os maus só têm por companhia gente má, imagine o que pode ser isso! Diz-
se que ao entrar Hitler no inferno olhou à volta de si até que viu Mussolini: 'Que tal a coisa
por aqui?' perguntou. Mussolini respondeu: 'Não é tão ruim, mas há muito trabalho forçado'.
E começou a soluçar: 'Vamos, Duce', disse-lhe Hitler: 'diga-me, o que há de pior por aqui?'.
'Bem, é isto aqui - Stalin é o chefe da turma de trabalho!'
Boris sorriu: "Eu por certo acharia detestável encontrar por lá minha velha chefe
política Ana Pauker". Ficou a refletir: "Aquele padre católico, que disse que eu iria para o

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inferno por blasfemar, era um bom homem. Nunca prejudicou ninguém, mas julgava que, só
por vingança, Deus me torturaria eternamente. O Deus em que ele cria era pior do que ele".
O Pastor Valentino interveio: "Não tenho dúvida de que os que estão no inferno
sentem-no como castigo eterno. (Obs.A opinião sobre o inferno aqui mencionada, não
representa a posição do autor, o qual crê no castigo eterno). . Neste sentido a Bíblia o
chama interminável, como a prisão nos parece sem fim. Mas, até sob^s piores condições,
vemos homens chegando-se para amar a Deus e descobrir que procederam mal. A parábola
do rico e Lázaro, proferida por Jesus, mostra sinais de mudança de coração no inferno! O
rico tinha sido egoísta, e agora estava interessado nos irmãos. Nada é fixo em parte alguma da
natureza. Se no inferno há alguma evolução para o bem, então abre-se lá uma porta de
esperança!"
Boris, debilitado, fez sinal para os presos nos leitos próximos.
"Boas notícias, rapazes! O Pastor Valentino diz ser possível que não vamos ser torrados
para sempre, apesar de tudo!"
Houve risos. Frimu, Stavrat e outros aproximaram-se de nós.
"Bem", perguntou Frimu, "qual vai ser o meu castigo?" Frimu era um glutão. Eu
disse: "Os primitivos cristãos costumavam contar de um homem que foi parar no inferno,
onde teve a surpresa de encontrar a mesa posta de um banquete. Reconheceu muitos
vultos históricos ao redor da mesa. 'Vocês têm sempre festas assim por aqui?' perguntou, "pois
não, podemos pedir o que quisermos!' 'Então qual é o castigo de vocês?' 'É que não
conseguimos nunca levar à boca a mão que sustenta a comida'. O recém-chegado viu
uma solução. 'Mas vocês não podem levar a comida à boca uns dos outros?' 'O que?'
exclamou um deles. 'Ajudar outra pessoa? Eu prefiro continuar morrendo de fome!"
O General Stavrat disse: "Ensinaram-me na escola e na igreja que Deus castiga
eternamente aqueles que morrem impenitentes e sem fé. É dogma aceito".
"Aceito em sua mente, porém não talvez no seu coração, general. Vemos homens ao
nosso redor amaldiçoando Deus e negando sua existência porque sofrem injustamente. Com
certeza serão julgados segundo suas obras, palavras e pensamentos. E daí? Suponha que vê
um desconhecido em perigo de morte – o senhor seria o primeiro a correr e ajudá-lo. E se
um cristão de fato crê que seu vizinho será torturado eternamente no inferno, deve
procurar dia e noite persuadi-lo a arrepender-se e crer. Como é triste não acontecer assim'
Os velhos preconceitos de Boris desfizeram-se um após outros, mas ao invés de
ficar animado tornou-se deprimido. "Acho que desperdicei minha vida", disse, "eu me
julgava sagaz, inteligente. Desencaminhei muitas pessoas nos últimos cinquenta anos. Se o
seu Deus existe, não há de me querer no Céu! Assim, vou mesmo ficar com a porca velha
Pauker - estou mesmo amedrontado!"
Muitas vezes, quando ele não podia dormir, pedia-me que conversasse.
"Se eu fosse o senhor, não perderia tempo em rezar por mim". E riu bastante
provocando em si um acesso de tosse.
Disse Valentino: 'Estou certo que você praticou muita coisa boa. Há sem dúvida muita
gente pior. Mas eu rezo pêlos piores de todos - Stalin, Hitler, Himmler, Beria".
"Que pede o senhor na oração?" perguntou-me Boris com voz débil.
Eu respondi: "Ó Deus, perdoa os grandes pecadores e criminosos e, dentre os
piores deles, perdoa a mim também".

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Sentei-me junto dele por longo tempo. Tudo estava tão silencioso que podíamos
ouvir as bazófias de Frimu na cela vizinha. Gargalhavam e outras vezes riam baixinho,
ouvindo as proezas dele em matéria de sexo.
Boris ficou calado algumas horas. Pensei que dormisse. De repente murmurou:
"Como será isso?"
"Isso o quê?" perguntei.
O juízo de Deus. Senta-se Ele em elevado trono, a dizer: 'Inferno, Céu... Inferno,
Céu', à medida que as almas vão chegando à sua presença? Eu mesmo não posso imaginar".
Então falei-lhe o que eu imaginava que fosse. "Deus senta-se num trono tendo atrás de si
grande cortina e, um a um, vamos chegando à frente dele. Então Deus faz um sinal com a
mão direita e de trás da cortina saem criaturas cada qual mais bela do que a outra: tão
esplêndidas que não podemos suportar fitá-las. Cada uma daquelas criaturas fica diante dos
que vão ser julgados. Os que são acusados perguntam: 'Quem é esta bela criatura comigo
aqui?' Deus responde: 'Essa é você, como você seria se me tivesse obedecido'. E então
sobrevêm, para os desobedientes, o eterno inferno de remorsos". "Remorso", disse Boris
num murmúrio. Durante a noite ele teve uma hemorragia. Vi-me atrapalhado com ele; depois
caiu em coma. Ficou quieto, os olhos abertos e parados, fixos no teto, durante uma hora.
Tomei-lhe o pulso, estava fraco, mas à pressão dos meus dedos podia ser sentido. De
súbito, com os braços esticados, ergueu-se um pouco da cama e soltou um grito que parecia
arrancar a alma do corpo: "Senhor Deus, perdoa-me!"
Alguns dos presos ao nosso redor acordaram e começaram a resmungar; depois
voltaram a dormir.
Ao clarear do dia comecei a lavar o corpo e prepará-lo para o enterro, e enquanto
fazia isso alguém informou ao bispo ortodoxo, numa cela adiante no corredor, que um
homem morrera. Ele chegou e começou o ritual. Continuei com o que estava fazendo. De
vez em quando o bispo parava para me imitar: "Levante-se! Tenha-me alguma consideração!"
Mas eu não ligava. Terminado o ritual, o bispo ainda voltou a repreender-me.
Respondi-lhe: "Onde estava o senhor quando este homem toda a semana passada
esteve moribundo? Levou-lhe à boca um copo de água, quando ele sentia sede? Por que
somente agora apareceu para realizar uma cerimónia que a ele nada adianta?"
Zangamo-nos. O ritual dele afigurava-se uma coisa vã, ao lado daquele brado
simples, partido das profundezas do coração: "Senhor Deus, perdoa-me!"
A primavera de 1955 trouxe sinais de abrandamento na política. Uma porção de
comandantes de presídio foi presa por "sabotagem". A Tirgul-Ocna chegaram muitos dos
obreiros escravos que tinham sido vítimas dos "sabotadores". Foi necessário arranjar
camas para eles, e eu fiquei no grupo que no princípio de junho recebeu ordem de se
aprontar para ser transferido a outra penitenciária.
O Dr. Aldeã disse: "O senhor não está em condições de se mudar, mas nada podemos
fazer. Tenha cuidado consigo. Se lhe vier às mãos mais alguma estreptomicina - não dê a
ninguém!"
Despedi-me de meus amigos com lágrimas.
"Ainda nos veremos, eu sei", disse o Professor Popp.
Ouvi chamar o meu nome e me pus em linha ao lado de outros no pátio. Éramos
um grupo bizarro, todos de cabeça rapada, com roupas de muitos remendos, cada um de
nós sobraçando uma trouxa de trapos - tudo quanto possuíamos. Alguns mal podiam
andar; não obstante, aqueles que cumpriam penas maiores tiveram ordem de avançar e
depois sentar-se no chão, enquanto recebíamos grilhões nos tornozelos.
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O oficial político observava o ferreiro, ao passar de um homem para outro.
Chegada a minha vez, o oficial sorriu displicentemente.
"Ah, Vasile Georgescu! Com certeza você já tem algo a contar desta coisa de ser
metido em ferros, não é?"
Deitado de lado, olhei para ele e disse: "Sim, tenente, posso dar-lhe uma resposta
cantando".
Pôs as mãos para trás e disse: "Oh, pois não! Estou certo que todos gostaremos de
ouvi-lo".
Cantei as palavras do primeiro verso do Hino da República: "Os grilhões,
quebrados, ficaram para trás de nós..." O martelo do ferreiro com alguns golpes mais
dava por finda sua tarefa, e naquele silêncio constrangido acrescentei: "Cantamos que os
grilhões ficaram despedaçados para trás de nós - mas este regime tem agrilhoado mas gente
do que outro qualquer".
O tenente buscava uma resposta a dar, quando do Corpo da Guarita partiu o aviso
da chegada do transporte. Fomos levados à estação e aí metidos em vagões. Demoramos
horas inteiras até que o trem começou a ranger e avançar ruidosamente pela estrada afora.
Através de buracos nas janelinhas entrevíamos regiões florestais e montanhas. Era um
dia de verão, cálido e bonito.
PARTE QUINTA
A VIAGEM através de planícies de Bucareste rumo ao oeste era de umas 200 milhas,
mas houve tantas aradas, que tomou quase dois dias e duas noites. Circulou entre nós a
notícia de nosso destino antes que avistássemos as muralhas centenárias do Presídio de Craiova.
Nossos grilhões foram retirados no pátio calçado de lajes e fomos tocados a socos ao longo de
passagens escuras atopetadas de lixo. Jogaram-nos, em pequenos grupos, em celas ao longo de uma
galeria. Altos protestos vieram de dentro delas: "Não há espaço aqui! Estamos já ficando
sufocados!" Os guardas empurraram à força os recém-chegados. Parecia trem
subterrâneo na hora de maior movimento de passageiros, os porteiros empunhando cassetetes.
Um empurrão que recebi pelas costas fez com que me arrojasse à frente, batendo a porta
com estrondo atrás de mim. O fedor na cela me causava náuseas. A princípio nada enxergava. Tateei
ao redor e recuei a mão ao tocar num corpo quase despido e suado. Pouco a pouco, quando me
adaptei à luz fraca de uma lâmpada no teto, vi fileiras de tarimbas umas sobrepostas às
outras, apinhadas de homens ofegantes, sem ar para respirar. Outros, também seminus,
estavam sentados no chão, ou encostados as paredes. Ninguém podia mover-se sem
tropeçar num outro ali junto, que acordava esconjurando e despertando todos os demais.
Minha permanência nesta cela durante os dois meses seguintes foi interrompida
somente por idas à fétida latrina que ficava fora, para onde levava caçambas de detritos das
privadas.
Eu disse aos presos que era pastor, e fiz uma oração breve. Uns me rogaram praga,
porém muitos ouviram calados. Depois alguém me chamou pelo nome, de uma tarimba lá em
cima, oculta no escuro.
"Reconheço sua voz", disse ele. "Ouvi seu discurso naquele Congresso de Cultos faz
muitos anos".
Indaguei quem era, ao que me replicou: "Falaremos amanhã".
A longa noite terminou às 5 da manhã, quando foi dado o sinal de despertar por um
guarda a bater com um barra de ferro num pedaço de trilho dependurado. O homem da

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tarimba de cima, de baixa estatura, com um pano enrolado à cabeça, desceu e me apertou a
mão.
"Foi bom conhecer sua voz no escuro", disse ele, fitando-me com os olhos injetados.
"Não o reconheceria de vista. O Partido vingou-se do seu protesto, estou vendo. Como está
magro!"
Era um Hodja chamado Nassim, que representara a pequena comunidade muçulmana
em 1945, no Congresso de Cultos.
Nossa amizade começou quando experimentei tomar minha primeira refeição em Craiova.
O cheiro repulsivo de gordura da sopa era sentido antes que ela chegasse à cela.
Fragmentos de repolho podre e miúdo de boi, mal lavado, nadavam numa espuma. Comer
era obrigatório, por isso esvaziei o prato.
"Como consegue comer isto?" perguntou o Hodja, cujo estômago ficou dando voltas.
Era um segredo cristão, respondi. "Penso nas palavras de S. Paulo: 'Alegrai-vos com os
que se alegram'. Depois lembro-me de amigos na América que neste momento comem frango
assado, e eu agradeço a Deus, juntamente com eles, ao tomar minha primeira colher de sopa. A
seguir regozijo-me com amigos na Inglaterra, que podem estar comendo rosbife. E então tomo
outra colherada. Deste modo, percorrendo pela imaginação muitos países amigos, vou-me
alegrando com os que se alegram - e estou vivo".
O Hodja e eu tivemos de dividir uma tarimba entre nós dois durante aquelas noites
quentes e abafadas. Fui feliz em não dormir no chão.
"O senhor fica muito silencioso", disse ele, enquanto outros tossiam e se remexiam ao
redor de nós. "Em que está pensando? São Paulo o ajuda também nisto?"
Repliquei: "Sim, por enquanto alegro-me com os do Ocidente, pensando nos seus
lares confortáveis, nos livros que têm, nas férias que planejam, na música que ouvem, no
amor que cultivam pelas pessoas e filhos. E lembro-me da segunda parte do verso, como vem
na Epístola aos romanos: "Chorai com os que choram". Estou certo que no Ocidente muitos
milhares pensam em nós e procuram ajudar-nos com suas orações.
Todos na penitenciária sentem necessidades de fazer-se valer, de impor-se.
Gostam de argumentar, de persuadir com argumentos. Encolerizam-se com simples
palavras. E quando encontram alguém que não responde um insulto com outro,
atormentam-no ainda mais. Nas condições de Craiova as dificuldades que defrontei
eram quase insuperáveis. Quando pregava, tinha de sobrepor minha voz a gemidos e
roncos de quem simulava dormir. Os presos ficavam desesperadamente enfadados. Eram
faltos de recursos íntimos e ansiavam por seus divertimentos conhecidos. Verifiquei que os
sermões davam lugar a discussões, que degeneravam em brigas. Todavia quem tivesse a contar
uma história, particularmente história de crime, podia ter certeza de audiência. Assim,
contava-lhes novelas sensacionais de minha própria invenção, nas quais a mensagem cristã
tinha seu lugar central, ainda que velada.
Meu herói mais popular era um bandido chamado Pipa, nome que na Roménia todo
o mundo conhecia. Descrevi como a minha mãe, ainda menina, o vira certa vez no tribunal
sendo julgado, de cuja fisionomia selvagem e hostil nunca se esquecera.
Os pais de Pipa eram ricos. Morreram quando era menino, ficando ele aos cuidados
de um tutor que o esbulhou de suas propriedades. Pipa arranjou trabalho numa hospedaria,
cujo dono prometeu guardar-lhe o salário até que voltasse do serviço militar, de modo a poder
montar seu próprio negócio. Ao voltar do exército, o dono da hospedaria negou aquele
acordo, pelo que o rapaz, cego de furor, matou-o com uma punhalada.

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Pipa tornou-se um fora-da-lei. Lá de sua toca nas montanhas saiu várias vezes tendo
feito uma série de assaltos - todos em hospedarias. Com o correr do tempo chegou a matar
trinta e seis donos de estalagem. (Neste ponto meus ouvintes soltaram silvos de espanto). Não
lhe faltou companhia. Com dois outros bandidos, todos envergando as melhores roupas
furtadas, encaminhou-se a uma vila, onde persuadiram três moças a jantar com eles.
Narcotizaram o vinho e levaram as jovens para a caverna deles.
Até aí tudo fora verdade; mas nesse ponto, na minha versão dessa história, as jovens ao
despertar mantiveram seus capturadores à distância de uma braçada por contar-lhes histórias, no
estilo de "Mil e Uma Noites". Esses romances terminaram com a história do Evangelho,
narrada pela jovem mais linda das três, e ainda mais com a conquista dos bandidos.
"Pastor", disse um guarda florestal de nome Radion, "tenho ouvido muitas histórias de
crimes, porém nenhuma como as suas, em que sempre acabam indo o criminoso, a vítima e o
policial, todos juntos, à igreja".
Teve também boa aceitação uma narrativa épica de Dillinger, cuja evolução de
indivíduo faminto e derrotado ao ponto de ser o pior "gangster" da América era a reprodução
fiel de muitos na cela. Uma infância arrumada, ou injustiça social são os costumeiros prelúdios
de uma carreira de crimes, e Dillinger começou a sua roubando de um bilheteiro de cinema uns
poucos dólares.
Quando compreendíamos como foi que Pipa e Dillinger vieram a ser o que foram,
podíamos ter pena deles, dizia eu; e da pena vinha o amor, e o amor entre uns e outros do género
humano era o principal alvo do Cristianismo. Condenamos o homem, mas como é raro oferecermos
o amor que pode salvá-lo do crime!
Eu podia falar vinte e quatro horas por dia, e mesmo assim não deixavam de pedir mais
histórias. Comecei a recorrer aos clássicos que me apresentavam pontos de vista cristãos: "Crime
e Castigo", de Dostoievsky, "Ressurreição", de Tolstoy, contados em episódios.
Muitas vezes outros presos narravam suas próprias histórias, burlescas, trágicas, ou
ambas as coisas juntas. Radion, alto e magro como as árvores que costumava zelar, levara uma
vida sossegada até o dia em que passou por um bosque com dois amigos e, olhando para trás, viu
o arvoredo em chamas.
"Ao chegarmos à vila próxima fomos presos, acusados de termos provocado o incêndio",
disse ele. "Fomos espancados até confessar que tínhamos feito aquilo para sabotar a
'organização coletivista' local. Mas no nosso julgamento apresentou-se o verdadeiro
culpado, e assim fomos despronunciados.
"Não ficamos livre. Levaram-nos de volta à delegacia de polícia e disseram: 'Agora
confessem que outra coisa fizeram!' Sob tortura confessamos um plano de sabotagem que foi
completamente invenção. Eu tinha de dizer qualquer coisa para que o sofrimento parasse!" Foram
sentenciados cada um a quinze anos.
Havia muitas histórias como essa, em Craiova. Não se passou muito para que nos
conhecêssemos por dentro e por fora. Era aquilo uma atmosfera de nervosismo, carregada.
Ninguém suportava ser contraditado, perdendo-se todo senso de proporção ou de lógica.
Quando repeti a novela "Fome" de Knut Hamsun, muitos ficaram de olhos arregalados, e um
preso, de nome Herghelegiu, disse-me, quando o grupo se dispersou para a ceia, que tinha sido
muito tocante. Sugeri-lhe que oferecesse um pouco do seu pão ao Hodja, que temia o alimento
contivesse gordura de porco, proibida pelo Alcorão. Mas se Herghelegiu ficara tocado no coração,
não o ficara no estômago. Não atendeu à minha proposta.
Os intelectuais eram prisioneiros de palavras. Se alguém mencionava uma descoberta
científica americana, esta era ridicularizada como propaganda dos EUA. Se falasse de um
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escritor russo moderno, mandavam-no embora como mercenário assalariado pelo Estado. Católicos
nada queriam ouvir de filósofos judeus. Os judeus pouco conheciam do pensamento da igreja.
Certa vez descrevi um livro religioso em que estivera refletindo à noite. De repente se
emitiu juízo sobre ele. "Eivado de Luteranismo!" exclamou um ouvinte ortodoxo. "É fácil ver
que você é protestante", disse outro. Alguns dias depois, durante uma conversa com os dois citei
muita coisa de "O Problema da Verdade", de autoria do "eminente escritor romeno" Naie lonescu. O
acolhimento foi entusiástico. Descobri que se desejasse que minhas opiniões fossem bem
acolhidas, seria melhor publicá-las sob anonimato, visto como as duas referências eram a uma obra
só.
Alexandra, estudante, sorria condescendentemente ao recitar poemas de sua lavra.
Calmamente sugeri que ele lesse outro, que foi anunciando como soneto shakesperiano.
"Soberbo!" disseram os críticos em coro. Sem revelar o segredo de Alexandra, disse-lhes que
ninguém devia ficar amedrontado com nomes famosos. Shakespeare, Byron - só para referir poetas
ingleses - não raro exaltaram ideias indignas.
Um velho oficial de cavalaria discordou. "Não tenho nada de literato", disse, "mas sempre
admirei GungaDin. Kipling criou lá um herói de soldado!"
Eu disse: "GungaDin pode ter sido melhor do que eu, mas deu a vida combatendo a favor
dos ingleses contra o seu próprio povo. Que diria o senhor de um romeno que morresse
combatendo com os russos contra seus patrícios?"
Um erudito inglês defendeu a nobreza de pensamento de hakespeare.
Respondi que ao tempo em que Shakespeare escrevia, os problemas da Reforma e do
Puritanismo levaram até os varredores de rua a discussões acaloradas - e, não obstante, quem só
tivesse as peças teatrais de Shakespeare para ler, dificilmente saberia que o Cristianismo tinha
aportado à Inglaterra.
"Em todos os seus dramas não há um só personagem cristão", disse eu, "exceto talvez
a pobre Cordéüa. Cláudio mata seu rival. A rainha desposa o assassino do seu marido. Hamlet
sonha com vingança, não age e não pode perdoar. Polónio é um intrigante. O único meio de
fuga de Ofélia é a loucura. Otelo é um assassino profissional. Desdêmona faz o papel de vaca
com o seu touro. lago é um monstro de cinismo e falsidade... Shakespeare foi um
magnífico poeta e um psicólogo nato, mas não tinha ideia nenhuma do caráter cristão".
O erudito atalhou: "Talvez não existe mesmo essa coisa 'caráter cristão' para ser
descrita".
Respondi-lhe saber que ele estava na prisão havia poucas semanas apenas; quando
passasse mais tempo conheceria melhor. Veria alguns atos de bondade que eu presenciara: os
pecadores que se confessavam tais já no último alento, os santos que perdoavam aos seus
verdugos, assim como por nossa vez esperávamos ser perdoados no fim. E citei-lhe uns
versos que mostravam o notável poeta cristão que Shakespeare podia ter sido:
Dizem que os lábios de quem morre prendem a atenção como se emitissem grave
harmonia, Suas palavras sai escassas, raramente se perdem, Porque sussurram verdade os que
sofrendo sussurram suas palavras.
Como teria ele aplicado tão bem esta passagem às últimas palavras de Jesus na Cruz.
O minúsculo Hodja tinha muito a ensinar sobre submissão à vontade de Deus.
Muitas vezes nos fez lembrar que todo capítulo do Alcorão, o livro mais divulgado no
mundo depois da Bíblia, começa com a invocação: "Em nome de Alá, o Misericordioso
e Compassivo" e procurava ele fazer desse preceito uma parte da vida cotidiana. Cinco
vezes no dia Nassim ajoelhava-se no chão duro e fazia uma mesura na direção de Meca.

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Nassim e eu conversávamos muito, sentados lado a lado num leito baixo no meio
da sordidez e confusão da cela. Ele discorria sobre sua fé - a qual os muçulmanos acreditam
ter sido revelado ao Profeta pelo anjo Gabriel - com um fervor tal que por momentos
transfigurava aquele lúgrube lugar. Para surpresa minha, falava em Jesus com muito amor.
"Para mini Jesus é um profeta santíssimo e sapientíssimo, que fala a linguagem do
próprio Deus. Mas não pode, ao nosso modo de ver, ser o filho de Deus. Espero não ofendê-
lo falando assim".
"De maneira alguma", repliquei. "De fato concordo com o senhor".
- Como pode um cristão dizer isto?
- Digo porque um filho é resultado das relações entre um homem e uma mulher.
Nenhum cristão crê neste sentido que Jesus é o Filho de Deus. Chamo-lo "Filho de Deus"
em sentido diferente e exclusivo, como emanação do Criador. Ele é o Filho por trazer em si
a própria estampa de Deus, como uma pessoa traz a do seu pai. Ele é o Filho por serem
seus atos repletos de amor e verdade. À vista desses atos não podemos duvidar de ser Ele o
Filho de Deus.
"Desta forma também posso aceitar", disse Nassim, mostrando o seu grave sorriso
muçulmano.
Jesus não repele a ninguém que o ame, ainda que a pessoa não conheça o verdadeiro
título daquele a quem ama. O ladrão penitente referiu-se a Ele somente como homem,
mas Jesus prometeu que ele estaria no paraíso.
Presos iam e vinham; só o ar é que nunca mudava. À medida que uns iam embora, outros
tomavam os seus lugares, e eu reencetava meu "trabalho paroquial".
Entre os recém-vindos estava o General Calescu, antigo presidente da Justiça Militar,
que adorava rememorar suas batalhas. A maioria delas, admitia ele, foram no "boudoir"
(toucador), e seus melhores dias passara-os na guerra. "Tantas espias bonitas - sempre procurei
mandá-las em paz se fossem boazinhas comigo!"
Quando Calescu não discorria sobre mulheres falava em comida. Certa noite ele
anunciou: "Hoje é dia de meu aniversário: convido todos vocês para o jantar!" E como, quando
jovem, passara muitos aniversários felizes em Paris, disse -"Encaminhemo-nos ao Maxims.
São vocês meus convidados!" Durante uma ou duas horas, sem olhar a despesas, regalou-nos com
o melhor que a casa pôde oferecer. "Maitre d'hôtel!" bradou. "Que tem você a oferecer? Talvez seja
muito para o começo não? Que diz de foie gras com trufas de Périgord, e mais torradas com
manteiga fresca da Normandia? Tudo tão simples! Depois canard à 1'orange - o senhor aprecia
pato, não é, pastor? Ou um coq au vin? E, para o Hodja, xaslik numa espada flamejante!"
Cada prato acompanhava-se de uma relação de vinhos a escolher: Borgonha e Hock,
uma garrafa de champanha, um dourado Château Yquem, licores e conhaque. Charutos escolhidos:
Henry Clay, Romeu e Julieta. Não havia fim para aquele desfile de delícias. Foi quando a porta se
abriu para entrar a costumada barrica de dobradinhas podre e repolho.
Nesse discorrer sobre aumentos, como nos devaneios à luz do dia em torno de sexo, a
imaginação dirigia à solta. Almas mais simples do que Calescu inventavam fantasias de frangos
recheados de bananas, batatas sobrepostas em geléia de morangos e muitos outros acepipes que
felizmente não guardei na memória. De fato, a comida de Craiova foi a pior que encontrei -
salvo um dia em que, para nossa surpresa absoluta e inacreditável, os guardas levaram uma
lata de sopa de cebolas, outra de ensopado de carne, com puré de batatas, cenouras novas,
depois pães de forma para cada um, e um cesto grande de maçãs.
Qual era a razão daquilo? Os presos viam muita significação na mais leve mudança que
ocorresse na rotina, e aguardávamos novos prodígios. À tarde o General Calescu bradou
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animadamente da janela: "Mulheres - que danadas! Já vão embora". Um grupo rodeou as
grades e olhou com curiosidade para baixo. Meia dúzia de senhoras bem vestidas estavam sendo
conduzidas em direção ao portão pelo comandante. Eram, segundo informação do guarda,
uma delegação de "mulheres democratas" do Ocidente, que iam retirar-se dentro de uma
horas, as quais teciam comentários em torno da excelência da comida.
Na semana seguinte as refeições ainda foram piores. Mais adiante ouvi dizer que o
testemunho de vista daquelas visitantes sobre as prisões modelares da Roménia estava
circulando na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos.
Houve várias dessas viagens ao recreio, dirigidas naquela época. Quando a
liderança russa muda de mãos há de ordinário um breve degelo e agora, depois de uma
luta abafada entre os sucessores de Stalin, o Marechal Bulganin surgiu como Presidente do
Conselho de Ministros.
Disse Calescu que a ascensão ao poder desse antigo Ministro da Guerra queria
dizer que "os americanos teriam que vir à luta afinal". Rumores na prisão sustentavam essa
opinião. As "próprias palavras" do Presidente Eisenhower sobre a questão eram citadas:
"Tenho só que abotoar o último botão do meu uniforme para que os cativos da Europa
Oriental sejam libertos!"
O sonho de Calescu era que, uma vez destroçados os exércitos vermelhos, o rei
voltasse ao trono. Essa fé na monarquia era partilhada pela maioria dos fazendeiros e
lavradores. O raciocínio deles era simples: "Quando o rei estava aqui, eu tinha meu campo
e meu gado. Agora que está fora, não tenho nada".
Quando chegava o antigo Dia da Pátria da Roménia, muitos nas celas se reuniam numa
cerimónia religiosa que incluía orações pelo Rei Miguel e a Família Real. Os informantes
delatores decidiram ser mais seguros e tomar outra iniciativa. Mas o republicano de
nossa cela, e mestre-escola Constantinescu, argumentava contra a monarquia e seu "fútil
cerimonialismo".
Radion, o guarda florestal, disse: "Pompa e glória podem nada significar para você,
mas a um rei essas coisas vêm com naturalidade. Não precisava lutar para alcançá-las. Não
é como o político, que precisa ganhar renome com guerras e revoluções, e sempre às nossas
custas. O rei deixa-nos pacificamente. É por isso que sou a favor do rei!"
Radion também levava com melhor o General Calescu, que apreciava gracejar com a
religião.
"Se Jesus podia de fato transformar vinho em água", disse Calescu, "por que não
abriu uma casa de negócio e não fez fortuna?"
Radion replicou: "Não há por certo quem prove que o Salvador realizou tal
milagre. Mas posso dar-lhe uma prova pessoal de que Ele pode transformar vinho em
mobília".
"Assombroso!" disse Calescu reprimindo o riso.
"Sim", continuou Radion, antes de me converter, gastava todo o dinheiro que
possuía em bebidas, e minha mulher não tinha nem uma cadeira em que se sentar.
Quando abandonei as bebidas, economizamos dinheiro e obiliámos nossa casa".
Com a primavera chegaram notícias, agora oficiais, que deram fim aos exércitos
táticos do General Calescu. Os russos tinham prometido retirar suas tropas da Áustria, e
a primeira "reunião de cúpula" do Oriente com o Ocidente, depois de dez anos de guerra
fria, estava para se realizar em Genebra.

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Logo começou a fazer furor a "coexistência pacífica". Constantinescu encheu-se
do entusiasmo com ela. "Por que não deve o Ocidente viver em harmonia com o Oriente
comunista?" perguntava.
Eu disse: "Não sou político, mas sei que a Igreja, pelo menos, não pode nunca
fazer paz com o ateísmo, assim como a polícia não pode reconciliar-se com os "gangsters",
nem a doença com a saúde".
"Você então odeia os ateus?" inquiriu Constantinescu.
Respondi: "Odeio o ateísmo como credo, mas amo os ateus, assim como odeio a
cegueira, mas simpatizo com os cegos. Uma vez que o ateísmo é uma forma de cegueira
espiritual, deve ser combatido".
O rosto alongado de Constantinescu esboçou uma surpresa de mofa. "Você fala em
combate, pastor? Eu pensava que os cristãos oferecessem a outra face. S. Francisco não
salvou um lobo dos que queriam matá-lo, dizendo: "Não matem o irmão lobo, ele
também é criatura de Deus?"
Retruquei-lhe: "Admiro muito S. Francisco, mas se não atiro no irmão lobo, ele
vai devorar a irmã ovelha. Minha obrigação é de matar o lobo, se for impossível contê-lo,
inspira-se no amor. Jesus nos mandou amar nossos inimigos, mas Ele próprio lançou
mão da força quando não houve outro recurso. Deus tira milhares de vidas todos os dias:
é de sua natureza dar morte tanto quanto vida".
Um recém-chegado a Craiova, o engenheiro Glodeanu, disse ter ouvido irradiações da
BBC que defendiam o ponto de vista de não deverem as potências ocidentais continuar
interferindo nos negócios internos do bloco comunista.
Objetei: "Mas se eu começo a abrir uma fenda em um barco que pertence a nós dois, e
digo: 'Não interfira - este lado do barco é meu', o senhor concorda? Não! A fenda no meu
lado acaba por levar o barco inteiro a pique". "Os comunistas", continuei, "apoderaram-
se de países inteiros e trataram de envenenar a juventude com ódio. O plano deles, de
subverterem a ordem estabelecida no mundo inteiro, não é um negócio interno".
"É banditismo internacional!" interveio Calescu.
Constantinescu voltou à carga. "O ocidente não pode sempre estar com a razão,
general, e Stalin não era de todo mau. Ele chegou a dizer: 'O homem é o nosso mais precioso
capital.”
"Ah, então esta é a razão de estarmos todos debaixo de chave", disse Calescu, rindo
com desdém. Mas Constantinescu insistia que tinha havido progresso industrial e até cultural
sob o Comunismo. "Não se pode negar isto", disse ele.
Retruquei-lhe: "quem visitasse o Egito nos tempos antigos poderia espantar-se com os
monumentos de Faraó, porém Deus não os admirava. Foram eles trabalho de escravos, para
libertar os quais Deus enviou Moisés. Na Rússia e seus satélites de hoje o trabalho escravo está
edificando casas, fábricas e escolas de que você fala. E que se está ensinando nessas escolas?
Ódio a tudo quanto é ocidental".
"Os comunistas dizem que estão planejando para o futuro", disse Constantinescu.
"Uma ou duas gerações terão que ser sacrificadas, mas o alicerce está sendo posto para o
bem futuro da humanidade".
Eu disse: "Para que se façam comunistas estão de contínuo se denunciando uns aos
outros como sendo os piores criminosos. Os mais poderosos da União soviética têm sido
assassinados por seus próprios camaradas. Qual o comunista que pode ser feliz, sabendo
que pode cair no próximo expurgo do Partido?"

92
"Há algo de bem neles", objetou Constantinescu. "Não há homem inteiramente mau,
e os comunistas são homens que conservam alguma coisa da imagem de Deus".
Minha resposta foi: "Concordo. Até em Hitler havia algum bem. Ele melhorou a sorte da
maioria dos alemães. Tornou o seu país o mais forte da Europa. Sua morte com Eva Braun no
paiol, seu casamento com ela no último momento, podem ser considerados comovedores.
Quem no entanto liga para isto, se ele massacrou tantos milhões? Hitler ganhou o mundo
para a Alemanha destruindo-lhe a alma, antes mesmo de sua derrota. Os sucessos
comunistas têm também sido alcançados às custas da alma, esmagando o elemento mais
vital do homem, sua personalidade".
-Você não pode dizer que todos os comunistas são farinha do mesmo saco, disse
Constantinescu, Tito, por exemplo, é considerado um ditador brando.
- Todos no entanto têm um alvo só: levar a revolução comunista ao mundo inteiro,
e erradicar a religião. O "brando" Tito matou milhares de inimigos e encarcerou seus amigos.
- Continuo afirmando que tem havido progresso, disse Constantinescu.
- De minha parte não admiro o progresso que se compra com lágrimas e sangue,
ainda que de fora possa impressionar. Nunca povo algum escolheu o Comunismo em eleição
livre, nem se viu livre dele por sufrágio público.
- O mundo quer paz; que outra coisa você quer - guerra atómica?
Eu disse: "Uma guerra nuclear não é a outra alternativa; ninguém a deseja. O mundo
enfrenta o grave problema do vício de entorpecentes, porém não pensamos em adotar para
ela a solução de Hitler, de meter os viciados em câmaras de gás. Por outro lado, não podemos
adotar a "coexistência pacífica" em relação com o tráfico de narcóticos; uma solução
precisa ser encontrada, ainda que tenhamos de lutar por ela cinquenta anos. Como podemos
viver pacificamente com um povo que não tem paz dentro de si, porque o que todos os seus
líderes querem é poder e sempre mais poder? Os comunistas vão acalmando nossas desconfianças
enquanto planejam a próxima investida".
Constantinescu estava resolvido a tomar as gestões comunistas em seu valor
nominal, por isso era inútil levá-lo a encarar a coisa de outro ângulo. Inclinei-me para fora de
minha tarimba e arrebatei-lhe o travesseiro - a pequena trouxa encaroçada de objetos de
uso pessoal em que ele costumava apoiar a cabeça. O crânio bateu na parede. Ficou furioso.
"Mas por que não pode você coexistir pacificamente comigo?" perguntei. "Estou
pronto a proceder amigavelmente, agora que lhe arrebatei tudo quanto você tem".
Tive porém de lhe devolver seus pertences antes que a conversa degenerasse em
outra coisa.
Constantinescu era vítima do hábito de pensar boas coisas sobre o Comunismo. Os
homens treinados na escola de Lenin e Stalin vêem boa vontade como fraqueza a ser explorada.
Para o próprio bem deles cumpre-nos trabalhar por vê-los derrotados. O amor não é panaceia,
remédio para todos os males; não toma o lugar de um emplasto de trigo. Os governantes
comunistas são criminosos de estatura internacional, e somente quando o criminoso é subjugado é
que se arrepende; só então pode ser trazido a Cristo.
No Senado Romano, sempre que surgia um problema, Cato respondia: "Destruamos
primeiro nossa inimiga Cartago, e tudo o mais se arranjará! Delenda est Carthago!" Eu
tinha certeza de que o destino do Ocidente estava ou em destruir o Comunismo, ou em ser
por ele destruído.
O desejo de dar ao Comunismo um melhor aspecto antes da reunião de cúpula fez que
diminuíssem alguns dos piores excessos do sistema penitenciário. Em Salcia, onde os castigos

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incluíam a suspensão de presos pêlos calcanhares e a submersão de mulheres em água gelada
durante horas, todo o quadro de auxiliares foi encarcerado. Testemunhos oficiais diziam que
cinquenta e oito pessoas morreram nas competições entre "líderes de brigadas" para verem quem
podia, por meio de trabalho forçado, ocasionar mais mortes de prisioneiros - e de fato, os
sobreviventes de Salcia, chegados a Craiova, diziam que tinham havido no mínimo 800 mortes.
Numa demonstração de indignação judicial, os funcionários de Salcia receberam longas
sentenças, e o expurgo produziu um efeito corretivo em outras penitenciárias. Cessaram os
espancamentos. Os guardas cuidaram mais de ser corteses. Quando o comandantes de Jilava,
Coronel Gheorghiu, pediu que apresentassem queixas, e teve um prato de cevada lançado no seu
rosto, o réu sofreu apenas um dia de confinamento solitário.
As reformas duraram pouco. Em breve os espancamentos e injúrias voltaram à rotina outra
vez. Um ano mais ou menos depois, quando os julgamentos caíram em esquecimento, os assassinos
de massas em Salcia foram reinstalados nos seus postos e até promovidos. Somente os presos de
crimes comuns, que agiram como instrumentos deles na tortura dos outros, ficaram presos.
Nessa movimentação dos cárceres, fui removido várias vezes. Essas viagens de
pesadelo fundiram-se numa só em minha mente. Fecho os olhos e vejo uma frisa de
presidiários barbados, cabeças raspadas, em leves solavancos com o movimento do trem.
Sempre levávamos grilhões de vinte e tantos quilos nos tornozelos, os quais através da roupa nos
esfolavam, produzindo feridas que passavam meses para cicatrizar, devido ao nosso
estado de subnutrição.
Em uma viagem fizemos parada durante a noite. O silêncio foi quebrado por um
lamento de aflição: "Fui roubado!"
Sentei-me, deparando-se-me o minúsculo Dan, um escroque de Bucareste, movendo-se
de uma pessoa à outra, agitando a todos para acordá-los. Dan ia ouvindo pragas e recebendo
sopapos, mas prosseguia lamentando-se: "eu tinha escondidos 500 léus e desapareceram! Era
tudo o que eu possuía no mundo!"
Na esperança de acalmá-lo, eu disse: "Meu amigo, espero que você não suspeite de
furto um pastor, mas se desconfia pode revistar-me até na pele".
Os outros também permitiram que Dan os revistasse, por amor ao sossego, porém
nada se encontrou. O trem afinal se pôs em movimento e um a um caímos no sono. Despertei
ao romper da aurora por um novo rebuliço e ainda pior. Todos os outros dezoito presos
tinham sido roubados também.
"Eu sabia que tínhamos um ladrão aqui entre nós!" exclamou Dan.
Dias depois, em Poarta-Alba, nossa próxima parada, contei a história a um homem
sentenciado por roubo. Soltou uma gargalhada e disse: "Conheço Dan há anos. Ele
apenas quis descobrir onde cada um de vocês guardava qualquer coisa que valesse a pena
surripiar!"
Havia muitos "Dans" em Poarta-Alba, onde criminosos "políticos" e réus de crimes
comuns viviam misturados. Uma vez eu cochilava enquanto um grupo jogava dados de
fabricação caseira. Um toque de leve em meu pé despertou-me. Aprumei-me, esfregando os
olhos, e vi um preso desatando um dos meus sapatos. O outro já tinha desaparecido.
- Que está fazendo com os meus sapatos? interpelei-o.
- Acabei de ganhá-los com os dados, disse, sorrindo maliciosamente, e ficou
ofendido porque eu não quis entregá-los.
O mundo dos ladrões é muito separado. Descobri que eles gostam de conversar em
torno das suas proezas, quanto mais arriscadas melhor. Adoram excitação, enquanto os

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outros homens são loucos por bebidas, jogo ou mulheres. Admirava-se ver a dedicação
deles a essa atividade.
Uma noite, quando a maior parte dos presos estava fora, a porta abriu-se
violentamente e os guardas empurraram um bate-carteiras conhecido de todos pelo nome
"Dedo". Rolou ao chão, ofegante e gemendo, ajudando-o eu a subir para a sua tarimba.
Ensopando um trapo em água, comecei a limpar o sangue de sua boca inchada. Parecia que
ele estivera surripiando na cozinha.
"O senhor não é má pessoa, pastor", disse Dedo. "Quando eu sair e fizer meu
primeiro lanço de rede, não vou esquecer o seu quinhão".
Retruquei-lhe dizendo esperar que ele encontrasse um meio melhor de vida. Ele
riu. "Estão perdendo o tempo em surrar-me", disse, "gosto do meu serviço. Nunca desistirei
dele".
Pus meu braço à volta dos seus ombros e disse-lhe: "Obrigado. Você me ensina
uma notável lição".
- Que quer dizer com isto? Perguntou.
- Se as surras não o persuadem a abandonar sua atividade, por que hei de ouvir os que
desejam que eu mude a minha? Devo pelo menos concentrar tanta atenção à conquista de
uma alma, quanto você procura ser bem sucedido no seu próximo golpe.
Quanto mais ouço as histórias que você e seus amigos contam, tanto mais aprendo.
Sorriu a custo. "O senhor está gracejando, pastor".
"Não", disse eu. "Por exemplo, você age à noite; se fracassa na primeira, experimenta
na segunda. Assim eu, como pastor, devo gastar minhas noites em oração, e se não
consigo o que quero, não devo desistir. Você furta dos demais, contudo os ladrões são
honestos uns com os outros: nós cristãos devemos ser unidos. E embora vocês arrisquem sua
liberdade e suas vidas por dinheiro, logo que o conseguem esbanjam-no; não devemos
também superestimar o dinheiro. Vocês gatunos não se deixam intimidar com castigos; nem
nós devemos recuar diante do sofrimento. Assim vocês se arriscam a tudo, assim deve
ser conosco, cientes de que há um paraíso a conquistar".
A prisão de Poarta-Alba continha os remanescentes do campo de trabalho ao lado
do projeto do canal, em que minha esposa fora forçada a trabalhar. Eu sabia que agora ela
vivia em alguma parte de Bucareste. Não se passava uma hora que não pensasse nela.
Vivíamos em cabanas compridas, mal providas, em que cabiam cinquenta homens. À volta
havia barracas abandonadas e canteiros de hortaliças que Sabina devia ter conhecido.
Esse pobre consolo me foi arrebatado quando, poucas semanas depois, recebi aviso de me
preparar para outra mudança.
Dedo veio despedir-se. Com ele estava um comparsa de nome Calapod, um vil
bandido, temido em todo o interior. Deu uma palmadinha em minhas costas, exclamando:
"Olá, Santo Reverendo, que gosta de ladrões e salteadores!"
"Sr. Calapod", respondi, "Jesus não se importou de se comparar com um ladrão.
Ele prometeu: 'Virei como ladrão de noite'. Assim como aqueles a quem o senhor roubava
nunca sabiam que o senhor estava vindo, assim uma noite Jesus virá para a sua alma, e o
senhor não estará apercebido".
As semanas passadas na frieza úmida de Craiova e Poarta-Alba e nas viagens de turmas
metidas em ferros fizeram que minha tuberculose se agravasse. Cheguei à minha próxima
prisão em Gherla, nas montanhas da Transilvânia, em tal estado que fui posto em uma cela do
grupo conhecido por "hospital". Nossa médica, uma jovem chamada Marina, disse ser

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aquele o seu primeiro posto. Outros pacientes disseram-me que no seu primeiro dia ela
empalidecera ao passar de cela em cela. No seu adestramento como médica nada houve que a
preparasse para enfrentar a sujeira, a fome, a falta de simples remédios e equipamento, a
crueldade do descaso. Eles julgavam que ela ia desfalecer, mas ia levando adiante.
Marina era uma moça alta, frágil, cabelos claros a emoldurar um rosto extenuado.
Depois de um exame, disse-me: "O senhor precisa de boa alimentação e bastante ar puro".
Não pude conter o riso: "Mas a senhora não sabe onde estamos, Dra. Marina?"
As lágrimas marejaram-lhe nos olhos. "Foi o que aprendi na escola de medicina".
Dias depois oficiais superiores vieram fazer uma visita. A Dra. Marina deteve-os na
galeria fora de nossas celas. "Camaradas, estes homens não tiveram sentença de morte. O Estado
paga-me para mantê-los vivos, assim como para aos senhores para mantê-los seguros. Peço
apenas condições que me permitam realizar o meu trabalho".
Uma voz de homem fez-se ouvir: "Você assim toma o partido de réus proscritos!"
"Eles podem ser proscritos no caso do senhor, camarada Inspetor", replicou ela,
"mas no meu caso são pacientes".
As condições não melhoraram, mas em lugar disso recebemos notícias que valeram
para mim por todos os remédios de farmacopeia. Antes da reunião de cúpula em Genebra iam
ser permitidas visitas de parentes.
A excitação foi extraordinária. Ficamos todos nervosos. Em dado momento as pessoas
ficavam alegres; em outro ficavam quase a chorar. Alguns já fazia de dez a doze anos que não
tinham notícias de seus familiares. Havia oito anos eu não via Sabina.
Chegou o dia e, quando fui chamado, fizeram-me marchar para um "hall" de forte
acústica e ficar de pé atrás de uma mesa. A uns vinte metros adiante vi minha esposa atrás de
uma mesa. O comandante, ladeado de oficiais e guardas, postava-se perto da parede que
ficava entre nós dois, como se estivesse preparado para arbitrar um jogo de ténis.
Olhei para Sabina e ela me parecia que nos anos de sofrimento por que passara
tinha conquistado uma paz e beleza tais como não vira nunca antes. Ela ali estava, de pé,
mão entrelaçadas, sorrindo.
Segurando firme a mesa, falei: "Vocês em casa vão passando bem?"
Minha voz reboava de modo estranho no salão. Ela respondeu: "Sim, todos vamos
bem, graças a Deus".
O comandante interrompeu: "Não tem permissão de mencionar aqui o nome de
Deus".
- Minha mãe ainda vive? Indaguei.
- Louvado seja Deus, ainda vive.
-JÁ DISSE QUE AQUI NÃO TEM PERMISSÃO DE FALAR EM DEUS.
Então Sabina perguntou: "Como vai de saúde?"
- Estou no hospital-prisão...
- Você não tem permissão de dizer o lugar da prisão onde está, interveio o comandante.
Tentei uma vez mais. "quanto ao meu julgamento, há esperança de apelação?"
O comandante: "Não tem licença de discutir seu julgamento".
E continuou assim até eu dizer: "Vá para casa, querida. Eles não nos deixam conversar".
Minha esposa tinham-me levado um cesto com comida e roupa, mas não teve permissão
de me dar nem uma maçã. Ao me conduzirem, olhei por cima do ombro e vi Sabina escoltada por
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guardas armados atravessando a porta do outro lado do "hall". O comandante acendeu novo
cigarro, tendo pensamento distante.
Naquela noite a Dra. Marina parou ao pé do meu leito. "Oh, meu caro!" disse ela, "eu
pensei que a visita de sua esposa ia fazer-lhe muito bem".
Ficamos amigos: disse-me que nada aprendera de religião, mas supunha-se ateia. "Hoje em
dia todo mundo não é isso?"
Um dia, estando sozinho com Marina e outro preso, cristão, no cubículo que a ela servia de
sala de operações cirúrgicas, disse que aquele era o dia de Pentecostes.
"Que é isso?" indagou ela. Um guarda servente procurava algo no fichário; esperei até que
ele levasse a ficha desejada. Então respondi: "É o dia em que Deus nos deu os Dez
Mandamentos, há milhares de anos".
Ouvi as pisadas do guarda que voltava, e acrescentei alto: "Dói aqui, doutora, quando
tusso".
O guarda devolveu a ficha ao seu lugar e retirou-se outra vez, e então continuei:
"Pentecostes é também o dia em que o Espírito Santo veio para os Apóstolos".
Outra vez as pisadas do guarda, e eu continuei mais depressa: "E à noite a dor em
minhas costas é terrível".
A Dra. Marina mordeu os lábios para conter o riso. Continuei com o meu sermão
interrompido, enquanto ela me batia de leve no peito dizendo-me que tossisse, e examinava
minha garganta, até que por fim rebentou numa risada. "Pare!", sussurrou-me, levando
um lenço à boca, enquanto o rosto imperturbável do guarda surgia de novo à porta.
"Conte-me depois".
Nas semanas seguintes contei-lhe a história do Evangelho, e quando eu, com outros
em Gherla, levamos a Dra. Marina a Cristo, mais arriscado se tornou para ela prestar-nos
auxílio.
Anos depois, em outra prisão, soube que ela morrera de febre reumática, que lhe
afetara o coração. Sempre esteve sobrecarregada de trabalho.
Fui mandado de volta para Vacaresti, o hospital-prisão onde passara um mês depois de
meu confinamento solitário nas celas do subsolo do Ministério do Interior. Estava superlotado
como nunca. Os pacientes tuberculosos tinham de estar em salas com outros de moléstias
diferentes a permutarem entre si suas infeções.
Dois oficiais da Polícia Secreta que foram fazer interrogatório perguntaram-me em
tom de troça o que eu pensava agora do Comunismo. "Que devo dizer?" repliquei. "Só posso
julgá-lo pelo que vejo dentro das prisões".
Mostraram os dentes num sorriso e um disse: "Agora você pode aprender o que ele é à
vista de um VIP: Vasile Luca - o antigo Ministro das Finanças - está na sua cela".
A demissão de Luca sob acusação de peculato, em março de 1953, deu lugar à
derrubada dos comparsas de Ana Pauker. Sendo Theohari Georgescu Ministro do Interior,
Luca fora expulso do Partido, estando agora todos os três em prisões diferentes com as
vítimas do império deles que durara cinco anos. Nos dias do seu apogeu, Luca era muito
adulado, porém pouco estimado. Agora guardas e presos aproveitavam o ensejo de
demonstrar-lhe desprezo. Sentado sozinho a um canto de nossa cela, mordiscava as juntas
dos dedos resmungando de si para si; estava velho, doente e irreconhecível como aquele cujo
retrato aparecia tão regularmente nos jornais.
Luca não achava alívio para os seus padecimentos. O cristão, quaisquer que
fossem suas tribulações, sabia que por sua fé palmilhava o caminho que Cristo percorrera,
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porém a Luca, que dera toda a sua vida ao comunismo, não restava esperança nem crença.
Se os nacionalistas galgassem ao poder, ou se os americanos, ele e seus camaradas
seriam os primeiros a ir à forca. Nesse ínterim, eram castigados por seus ex-amigos do
Partido. Luca estava prestes a sucumbir quando nos defrontamos.
Depois de seu infortúnio político, disse-me, foi forçado a confessar sob tortura fatos
absurdos de que o acusavam. Uma corte militar condenou-o à morte, mas a sentença foi
comutada em prisão perpétua.
"Sabiam que eu não ia durar muito", disse tossindo.
Era acometido de explosões de cólera contra seus inimigos no Partido. Certo dia, não
podendo comer o que lhe meteram na cela, ofereci-lhe o pão que tinha. Tomou-o com
voracidade.
- Por que fez isto? Rezingou.
- Tenho aprendido o valor do jejum na prisão.
- Qual pode ser ele?
Eu disse: "Primeiro, mostra que o espírito se sobrepõe ao corpo. Segundo, poupa-
me de deblaterar e me amargurar por causa de comida, o que é tão comum aqui. Terceiro -
ora, se um cristão não jejua na prisão, que meios ele tem de ajudar os outros?"
Luca admitiu que todo auxílio que recebeu desde que fora preso, partira de cristãos.
Sua cólera acendeu-se de novo.
"Conheço porém muitos clérigos que são uns verdadeiros canalhas. Fazendo eu parte
do Comité Central do Partido, mantive um controle severo das seitas e religiões. Meu
departamento tinha um fichário de cada clérigo do país - inclusive você. Comecei a perguntar
a mim mesmo se havia um na Roménia que em breve não chegasse batendo à minha porta de
trás altas horas da noite. Que quadrilha de irmãos!"
Eu disse que o homem podia degradar a religião, mas a religião enobrecia o homem
muito mais. Isso ficou demonstrado pelo exército de santos: não só os da antiguidade, senão
muitos cristãos notáveis que se podem encontrar hoje.
Luca zangou-se. Seu rancor ao mundo não lhe permitia admitir bondade em
pessoa alguma. Declamava conhecidos argumentos ateísticos acerca da perseguição da
Igreja à ciência. Lembrei-lhe os grandes cientistas que têm sido cristãos - de Newton e
Kepler a Pavlov, e o descobridor de anestésicos, Sir. James Simpson.
Retrucou ele: "Conformaram-se às convenções de seu tempo".
Continuei: "Conhece a declaração de Louis Pasteur, que descobriu micróbios e a
vacina?" "Je crois comme una charbonnière lê plus que je progresse en science". Ele cria
como um trabalhador em jazidas de carvão do último século. Esse homem que passou a
maior parte de sua vida a empreender investigações científicas tinha a fé da mais humilde
criatura humana".
Luca retorquiu indignado: "Que diz de todos os cientistas perseguidos pela Igreja?"
Pedi que os referisse.
"Galileu, naturalmente, que foi preso. Giordano Bruno, que eles queimaram..." E parou.
Respondi: "O senhor então só pode encontrar dois casos no decurso de dois milénios!
Julgava a coisa à luz de qualquer critério humano, foi um triunfo, essa da Igreja. Compare
os registros do Partido nos últimos dez anos, somente aqui na Roménia. Muitos milhares
de pessoas inocentes metralhadas, torturadas e presas; o senhor mesmo, sentenciado à força

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de evidência de testemunho falso, obtido com ameaça e subornos! Quantos maus sucessos
judiciais pensa o senhor não tem havido em todos os países sob governo comunista?"
Certa noite falei acerca da Última Ceia e referi as palavras de Jesus a judas: "O que
fazes, faze-o depressa!"
Luca disse: "Nada me fará crer em Deus, mas se viesse a crer, a única oração que lhe
faria era esta: 'O que tens a fazer, faze-o logo'".
Seu estado ia de mal a pior. Escarrava sangue, e, com febre, um suor frio irrompia em sua
testa.
Por esse tempo fui removido para outra prisão. Antes de sair, ele prometeu pensar em
sua alma. Não tenho meios de saber o que aconteceu; quando porém um homem começa a
argumentar consigo mesmo, as oportunidades de encontrar a verdade são diminutas. As
convenções de ordinário são instantâneas. A mensagem fere o coração. E das suas
profundezas algo novo e salutar surge de repente.
Muitos se me depararam como Luca naquele tempo, e muitas vezes discuti com
amigos sobre como tratar os líderes comunistas e seus colaboradores quando o Comunismo
caísse.
Cristãos opunham-se à vingança, mas discordavam entre si: alguns a pensar que o
perdão devia ser completo, e outros a dizer que Jesus - em recomendar a Pedro que
perdoasse a quem lhe causasse dano "não sete, mas setenta vezes sete" - fixava um limite que
os comunistas tinham ultrapassado de muito.
Meu parecer é que, julgando cada homem separadamente, com discernimento das
forças malignas que o moldaram, assiste-nos somente o direito de, sem exercer vingança,
colocar o malfeitor em situação tal que não possa continuar a causar dano. Os comunistas já
gastam muito tempo e esforço em se castigarem reciprocamente. Stalin envenenou Lenin,
dizem. Fez que Trotsky fosse assassinado com um furador de gelo. Khruschev odiava tanto o
seu "camarada" que lhe destruiu a reputação e despojou o túmulo. Luca, Theohari
Georgescu, Ana Pauker e tantos outros foram vítimas do seu próprio sistema cruel.
Minha viagem seguinte foi em rodovia, num caminhão em que se lia "Truste Oficial de
Alimentos". Carros de proteção não raro levavam legendas assim para que o povo não
soubesse quantas pessoas estavam sendo transportadas, e talvez também por medo de tentativas
de socorro a elas. Dois homens estavam comigo. Um era ex-líder da Guarda de Ferro, sentenciado a
vinte anos. O outro, um reles ladrão, estava para ser solto logo, cumprida que estava sua
sentença de seis meses.
"Não verei mais isto", disse o guarda de ferro animadamente, sacudindo as algemas.
Depois, voltando-me as costas, disse ao gatuno que se tinha chegado ao acordo de libertar todos
os "políticos" antes da reunião de cúpula a que ele estaria entre os primeiros a serem soltos.
O ladrão explicou por sua vez que tudo quanto queria era um emprego decente, mas
ninguém lho daria.
O guarda de ferro assumiu uns ares de simpatia. Depois, tomando seu vizinho pela
manga, disse: "Tenho uma ideia! Por que não nos ajudarmos mutuamente? Os russos
abriram o caminho, os americanos estarão por aqui dentro de um mês. Tenho entre eles
amigos influentes. Supunha trocarmos as identidades - na próxima parada você responde
à chamada do meu nome, e eu respondo à sua. Assim que me deixarem ir no seu lugar,
começarei a preparar o caminho para o golpe dos americanos. Você, usando o meu nome,
será solto como preso político no dia da chegada deles. Deixe o resto comigo - seu futuro
estará garantido!"

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O ladrão ficou encantado. Quando o carro-transporte estancou no pátio da prisão,
os dois homens responderam um pelo outro à chamada e foram encaminhados a
conjuntos diferentes. Dez dias depois o guarda de ferro, que tinha ido à seção de curta
sentença, foi solto. O ladrão viu passar semanas e meses sem notícias dos americanos.
Defrontando a possibilidade de cumprir a sentença do outro até o fim, contou a verdade ao
comandante. O guarda de ferro foi caçado, esperando o ladrão ser libertado afinal. Ao
invés disso, foi julgado por ajudar um criminoso fascista a escapar, recebendo por seu turno
a sentença de vinte anos. Assim pois os dois tiveram de continuar vivendo juntos - como
tantos outros que se prejudicaram mutuamente.
A nova prisão chamava-se Jilava, que significa em romeno "lugar encharcado". O
nome era bem empregado. Para entrar nela, o caminhão desceu uma rampa íngreme e
afundamos pela terra abaixo para dentro de uma escuridão.
As maiores profundidades em Jilava ficavam a mais de 1Om abaixo do nível do solo.
Tinha sido projetada para ser um forte, com valas ao redor. Pessoas estranhas podiam passar
perto sem notar sua existência. Ovelhas pastavam em cima dela, sentíamo-nos como
sepultados vivos, debaixo de milhares de toneladas de terra. A finalidade de Jilava fora
conter 500 soldados, mas agora tinha que abrigar 2.000 detentos numa série de celas e
túneis mal iluminados, que aqui e ali se alargavam em pequenos pátios onde os homens
faziam exercício. Em alguns pontos olhos de água surgiam ao pé das paredes que
apresentavam grandes manchas de mofo esverdeado.
O homem na tarimba junto a mim, antigo chefe de polícia de Odessa, Coronel
Popescu, disse que as condições eram muito piores quando ele chegou. Cem homens se
comprimiam em nossa pequenina cela, as janelas vedadas com tábuas, morrendo alguns por
sufocação.
Disse-me Popescu que se escondera dos russos durante doze anos depois da
guerra numa cova que tinha as entradas vedadas com blocos. Dormia em esteira e comia
o que amigos lhe davam por um buraco. Mas por fim a Polícia Secreta encontrou-o.
Agachado em espaço apertado por tanto tempo, suas pernas se paralisaram. Só depois de
meses pode andar.
Da conversa irreverente de Popescu deduzia-se que religião fazia anos estava fora de
suas cogitações. Perguntei como ele passava o tempo na solidão de sua caverna.
"Arranjei uma novela", disse. "Se a escrevesse, tomaria umas 5.000 páginas.
Ninguém entretanto se atreveria a publicá-la".
Vi a razão, quando ele recitou trechos dela. Nunca ouvi tanta coisa obscena.
Anunciou-se nossa refeição com um brado no corredor. Levei minha sopa de
cenoura podre à tarimba de um vizinho e sentamo-nos a conversar um pouco. Era um
jovem técnico de rádio que enviara informação ao Ocidente a pedido de um grupo patriótico, e
revelou ter sido levado a Cristo pelo conhecimento que tinha do sistema Morse.
"Aconteceu há cinco ou seis anos. Fui submetido a interrogatório nas celas do
Ministério do Interior e, enquanto estive lá, um pastor desconhecido da cela contígua
transmitia-me por pancadas na parede versos da Bíblia".
Quando me contou onde sua cela ficava, eu disse que era o pastor.
Por esse meio arranjei um núcleo de cristãos que espalhavam sua influência por
toda a prisão. Havia porém um homem a quem todos puseram de lado.
Gheorge Bajenaru era filho de um bispo ortodoxo. Era conhecido como "o clérigo
mais ímpio da Roménia". Falsificava a assinatura do pai na concessão de honrarias e títulos
universitários. Desviou fundos de um colégio, do qual sua esposa era diretora. Suicidando-se ela
100
para esconder o crime do marido, Bajenaru não manifestou remorso algum. Até por dinheiro deu
informações contra seu pai. Depois retirou-se para o Ocidente, fazendo-se passar como
refugiado. Foi feito bispo, com jurisdição sobre todos os exilados romenos ortodoxos. Destes
conseguiu dinheiro, bem como do Concílio Mundial de Igrejas. Enquanto isso, os comunistas o
esperavam.
Bajenaru fora mundano, arrogante, forte, como um touro, mas agora estava magro e
abatido. Contou-me o que tinha acontecido. Fora à Áustria para o casamento de um romeno
rico, e lá permaneceu uns dias. Ao sair certa noite de um restaurante na zona francesa ouviu
passos atrás de si. Descarregaram-lhe um cacetada na cabeça. Recobrou os sentidos num instante
e virou-se para brigar. Engalfinhou-se com quatro homens. Sentiu espetarem-lhe uma agulha na
perna.
"Quando despertei estava na zona soviética. Havia um espelho na parede, olhei e não
pude reconhecer-me. Minha barba negra havia desaparecido. Cortaram meu cabelo à
escovinha e tingiram-no de vermelho. Fui mandado de avião a Moscou. Inquiridores na
prisão de Lubianka julgaram que eu fosse a figura principal do mundo da espionagem anglo-
americana. Quiseram saber o que o Concílio Mundial de Igrejas planejava fazer atrás da
Cortina de Ferro e quais eram as maquinações dos exilados romenos no Ocidente. Nada
lhes pude dizer. Eu estivera apenas gozando a vida. Os russos não acreditavam. "Muito
bem, Excelência", disseram, "vamos estimular sua memória numa operação cirúrgica".
Bajenaru abriu as mãos para mostrar que quase todas as unhas lhe haviam sido
arrancadas.
"Quebraram-nas uma após outra", disse. "O médico estava vestido de branco. Duas
enfermeiras de igual modo. Houve toda a assistência científica imaginável; só não houve
anestesia".
Bajenaru foi torturado durante semanas. Esteve perto de enlouquecer quando os
russos, vendo que nada conseguiram, passaram-no para a Polícia Secreta de Bucareste. Aí foi
novamente torturado.
Em Jilava seu interrogatório ainda prosseguia, e quando voltou para a nossa cela,
após a inquirição, presos acusaram-no de ser informante. De fato, queria apenas expiar o que
fizera. O sofrimento depurou-o, mas os outros não podiam acreditar, embora ele
mostrasse sua mudança de coração de muitas maneiras. Certa vez, quando presidia uma
ato litúrgico, orando em voz alta pelo rei e a família real, alguém contou aos guardas. Foi
mandado para a "Sala Negra" comigo e outros clérigos dentre as vítimas dos informantes.
Fomos conduzidos por um lance de escada abaixo, a uma câmara sem janelas, no
subsolo profundo do forte, a qual provavelmente fora um antigo depósito de munição, à
prova de bombardeio. A água, gotejando do teto, mantinha inundado o piso da "Sala
Negra"; mesmo no verão o frio era intenso. "Precisamos ficar andando", disse alguém lá
de um canto escuro como breu. E assim nos pusemos a andar à roda, escorregando no chão
lodoso, e continuamos por muitas horas até que, exaustos e contundidos com as quedas,
fizeram-nos sair.
Outros disseram que tínhamos tido sorte. Aconteceu muitas vezes que homens eram
despidos por completo antes de serem trancados na "Sala Negra". Ainda contavam a
história de como um grupo de dezoito conseguiu ficar vivo depois de dois dias lá. Eram
todos de meia-idade ou membros idosos do Partido Camponês Nacional. Para evitar a
morte por congelamento, uniram-se para formar uma cobra humana no escuro. Cada um
se colava ao outro da frente para ser aquecido, e tratavam de andar vigorosamente,
dando voltas sem parar, enlameados dos pés à cabeça. Houve muitos casos de desmaio,
mas os outros sempre puxavam a pessoa desmaiada da água e forçavam-na a prosseguir.
101
Bajenaru continuou orando pelo rei. Quando por fim foi levado a julgamento,
voltou dizendo calmamente ter recebido pena capital. Conseguiu ser humilde. Tenho
observado que homens humildes, que pecaram brutalmente, podem quase sempre
resistir a perseguições melhor do que cristãos de alta espiritualidade. S. João
Crisóstomo, que viveu nos dias das corridas de carro em Roma, disse uma vez: "Se um
carro puxado pêlos cavalos da Retidão e do Orgulho entrar em competição com outro
puxado pelo Pecado e Humildade, acredito que este segundo, chega ao Céu em primeiro
lugar".
O Coronel Popescu sugeriu a Bajenaru uma apelação à clemência. Retorquiu:
"Não reconheço esses juizes. Obedeço a Deus e ao rei".
Ao ser ele removido para a cela dos condenados, disse Popescu: "Talvez fizemos
mal em procurar ser juizes dele também".
Nada ouvimos a respeito dele durante quatro meses; depois voltou à nossa cela, tendo
comutada sua sentença em prisão perpétua. Apesar de todo o seu caráter achar-se mudado, a
maioria dos presos não o aceitava. "Mais um de seus truques, seu diabo!", disseram. Havia
injustiça no caso. Bajenaru tivera a oferta de liberdade se aceitasse trabalhar para a Polícia
Secreta. Retorquiu: "Deixarei a prisão quando o último clérigo tiver sido solto".
A suspensão de sua execução foi considerada suspeita, porque era mais comum a
sentença ser aumentada, e não diminuída. Em qualquer tempo, sob o Comunismo, o Estado
pode obter uma pena mais severa para um sentenciado. De fato, um preso, condenado a
prisão perpétua, e que já passara doze anos no cárcere, foi informado, sem explicação
alguma, que sua sentença fora revista. No dia seguinte foi metralhado.
Bajenaru foi transferido para outra cela, onde recebeu pontapés e foi surrado pêlos
presos. Duas vezes tentou o suicídio. Depois foi deslocado para outro cárcere, onde faleceu.
A primeira execução, enquanto estive em Tilava, foi a dos irmãos Arnautoiu.
Tinham vivido na floresta durante anos como guerrilheiros, até que uma mulher, que
visitou o esconderijo deles, foi rastreada por soldados e eles foram capturados.
As execuções se processaram com um cerimonial de meter medo. Antes da meia-
noite, guardas enfileram-se nos corredores; das celas centenas de olhos espreitavam por
rachaduras e frestas de espia. Em dado momento, o comandante marchou à frente de
pequena procissão rumo ao pátio do lado de fora. Dois oficiais superiores chegaram
primeiro; a seguir os irmãos condenados, arrastando grilhões, cada qual seguro por um
guarda de um lado e de outro, e seguidos de um médico e guardas com metralhadoras.
Ouvimos os golpes do martelo em plena madrugada fria, retirando os grilhões. Sacos foram
postos em suas cabeças, depois do que foram empurrados para dentro do carro que os
levou a um campo perto, onde foram metralhados atrás da cabeça, à queima-roupa.
Ouvimos as detonações.
O executor era um homem descendente de ciganos, chamado Nita, que recebia um
bônus de 500 léus em cada ocasião. Era o guarda mais bem-amaneirado que tínhamos:
chamavam-no o Anjo Negro de Jilava.
"Sempre dou a eles um último cigarro na cela, antes que chegue o momento",
disse-nos. "Procuro conservá-los bem dispostos, e não é tão difícil como vocês possam
imaginar, porque cada um deles pensa até ao último instante que será salvo".
Aconteceu isso no caso de um jovem de dezenove anos, de nome Lugojanu. Seu pai,
antigo ministro do governo, tinha sido torturado na prisão até morrer. O rapaz, ajudado
por alguns amigos, fez uma série de assaltos a milicianos, em represália. Um dos

102
assaltantes deu com a língua nos dentes, ao ser capturado, e assim Lugojanu e oito cúmplices
foram sentenciados à morte.
Os primeiros dois marchavam para o pátio, depois um segundo par. Os outros
ouviram a retirada dos grilhões. Ouviram os tiros. Ouviram os passos dos guardas indo buscar
os restante. Um deles me disse depois: Fiquei perfeitamente calmo. Abriu-se a porta da cela.
Era o comandante. Chegara aviso de Bucareste que as sentenças dos restantes tinham sido
comutadas. Muitas vezes no cárcere eu vi em ação força misteriosa que sustém os homens
nos seus último momentos.
A polidez do Anjo Negro era como uma espécie de apresentação de desculpas pela sua
odiosa função. "Não sou nenhum monstro", dizia ele, e de fato. Os outros guardas, e os de sua
confiança dentre os presos, não sentiam a necessidade de tal excusa.
A índole de Jilava era particularmente má. Era uma prisão de trânsito, onde os homens
quase sempre encontravam velhos inimigos. Muitos presos eram ex-policiais. Os de muita
prática da antiga polícia, até os que trabalharam contra o Comunismo, foram mantidos por
mais dois anos a fim de treinarem os candidatos do Partido. Esses homens de experiência
então receberam ordem de prender alguns dos seus próprios camaradas. Depois eles, por sua
vez, foram presos pêlos homens por eles treinados. Uma vez sentenciados, grupos desses políticos
tiveram de partilhar da mesma cela, porque no fim nenhum oficial do velho regime escapou ao
expurgo.
Um dia concentraram-se as explosões de ódio em um homem recém-chegado à
prisão.
Foi jogado em nossa cela vindo de outra - machucado, desgrenhado, sujo, com o maxilar
solto. Olhou à volta com terror. A seguir ouviu-se um bramido: "Albon!"
O comandante de Poarta-Alba, responsável pela morte de milhares, fora feito bode
expiatório do fiasco do canal. Lembrávamo-nos como o Coronel Albon saudava os que iam
chegando ao seu acampamento. "Professores, médicos, advogados, padres - todos meus
talentosos amigos! Aqui não há necessidade de usar o crânio; só as mãos, suas mãos fidalgas!
Pelo trabalho vocês são pagos com o ar que respiram. Não pensem que serão libertos, a não ser pela
morte - ou quando suspenderem o trabalho no canal e me meterem debaixo de chave!"
Agora Albon nos fitava como um coelho hipnotizado. Um preso agarrou-o pela gola e
arrastou-o, pondo-o de pé. Outro pegou-o e fê-lo girar em redor. Um terceiro deu-lhe um
pontapé na virilha. Caiu debaixo de uma cascata de murros, guinchando histericamente.
Procurei salvá-lo. Os homens viraram-se para mim: "Assim você está tomando o
partido deste assassino!"
Albon debatia-se, sujo de sangue e poeira, no meio de risos, escárnios e apupos. Caiu
outra vez a caminho da porta, cortando-se no canto aguçado de uma tarimba. Em outra
escaramuça as costas da camisa foram-lhe arrancadas. Levou as mãos à frente do rosto para
defendê-lo. Por fim desmaiou e ficou deitado no chão.
Albon recebia esse tratamento de cela em cela, até que foi transferido para o cárcere
de Ocnele-Mari, reservado pelas autoridades aos oficiais e funcionários caídos em
desonra e desgraça.
Dias depois, reconheci outro rosto. O Coronel Dulgheru, que durante uma semana
me submetera a interrogatório em confinamento solitário, acabou preso. Contei-lhe o que
acontecera a Albon. Ele procurou não se preocupar, mas era inevitável que alguém não
tardasse a notá-lo.
Contou-me ter sido acusado de ser espião da polícia nos dias que prenderam o
advento do Comunismo - acusação que se costumava fazer quando o Partido queria incriminar
103
um dos seus próprios homens - e descreveu como fora detido. Dirigia-se às celas para
interrogar alguém, com a sua comitiva de três subalternos. Abriram a porta da cela
cortesmente, fizeram o coronel entrar e fecharam-na. Dulgheru viu-se fechado numa cela
vazia. Bateu na porta pedindo para sair. Seus homens riam. Ouviu um deles dizer: "Chegou
agora a sua vez de ficar aí!"
Quando identificaram Dulgheru em Jilava, puseram a mira nele, pelo que teve de ser
transferido para Ocnele-Mari. O cárcere do Partido em breve ficou superlotado como os
demais.
Logo depois de sua partida, fui enviado a Bucareste para ser interrogado. Óculos de
proteção, como de piloto, foram colocados em mim antes de ser levado em carro à capital.
No"-Q.G. da Polícia Secreta as inquirições de um coronel uniformizado pareceram ter antes o
objetivo de sondar minha atitude para com o regime do que obter informação. Não me deu
pista nenhuma do verdadeiro propósito que tinha em ver-me.
O local estava apinhado de presos "secretos" tinham também sua vez nas celas. Fui
posto com um indivíduo atarracado e taciturno. Era Vasile Turcanu, o principal
"reeducador", sentenciado à morte pelo regime que antes lhe dera licença de matar. O
Partido mantivera-o vivo por três anos, tencionando, como de costume, anunciar sua
execução quando alguma violenta perturbação política tornasse necessário levá-lo a cabo.
Turcanu descreveu como prenderam Theohari Georgescu, Ministro do Interior, durante
o expurgo de 1953. Estava sentado em seu gabinete, diante de uma fila de telefones, quando
três dos seus próprios oficiais da defesa entraram altivos, empunhando revólveres. Fizeram
Georgescu olhar para o seu próprio retrato, dependurado na parede em sua moldura dourada,
enquanto eles lhe baixavam as calças para serem revistadas.
Procurei levar algo do Cristianismo para a vida de Turcanu, nas poucas horas que passei
com ele, mas pouco se podia fazer por um homem tão a fundo emaranhado em doutrinas
de violência.
A notícia mais sensacional que colhi nas celas do Q.G. da Polícia Secreta foi que
Stalin tinha sido denunciado como assassino e tirano pelo seu sucessor Khrushchev. Os
primeiros relatos de como Beria e seis dos seus homens de cúpula foram executados na véspera
do Natal de 1953 - ao lado de mimares de agentes soviéticos de menor categoria - acabavam
de ser publicados, e o processo do descrédito de Stalin começara na Roménia. Gheorghiu
Dej, o novo ditador romeno, estava introduzindo uma política mais popular. Dej gostava de viver
bem consigo mesmo; seu temperamento, pelo menos, era melljor que o da camarilha de
Pauker.
As notícias que levei de volta a Jilava puseram a cela em rebuliço. Todo o mundo
gozava Stalin por ter sido derrubado do seu pedestal. Esperavam que isso apressasse a soltura
deles.
Mas Popescu observou: "Conheço o Partido. Eles denunciam o ladrão - mas não
devolvem o roubado".
"De qualquer modo, Stalin acabou-se", disse outro preso.
"Que vá para o inferno!" exclamou um segundo.
Em meio a risadas, gritos e aplausos e motejos dois prisioneiros valsaram ao redor
da cela, guinchando comentários obscenos ao "Tio Zé". Só os guardas estavam silenciosos. A
denúncia de Stalin deixava incerto o futuro deles.
Popescu veio a mim: "O senhor não parece estar contente, pastor!"

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Respondi: "Não posso sentir prazer em explosões de ódio contra ninguém. Não
conhecemos o destino de Stalin. Ele pode ter sido salvo à última hora, como o ladrão da cruz".
"O que! Depois de todos os crimes que Stalin cometeu?" indagou alguém.
"Talvez assemelhe-se ao rico, que em sua vida só teve um momento para o
arrependimento, em entanto findou no Céu", retorqui.
Narrei para eles o caso de um homem que por viver a explorar os pobres, criou um
ódio profundo ao ministro da vila, simplesmente porque ele era bom. Quando se encontravam
na rua, o homem cuspia no rosto do ministro, que não se incomodava com isso, pensando:
"É um prazer para essa pobre criatura". Uma vez por ano, todavia, o rico, que se chamava
Bodnaras, ia à igreja e sempre na sexta-feira Santa. Ao ouvir a história da Crucificação, duas
lágrimas rolaram por suas gordas bochechas. Enxugava-as depressa e saía antes de ser levantada
a coleta.
Em certa Sexta-Feira Santa grande congregação aguardava o início do culto. O ministro
não apareceu nem Bodnaras também. Passou-se uma hora. Por fim alguém olhou para trás do
altar. Lá estava o pastor, estirado no chão, respirando calmo, olhos fechados, com o rosto
a expressar tão grande felicidade que o povo achou estar ele transfigurado por um êxtase santo.
Na manhã daquele dia Bodnaras morrera, comparecendo ao juízo e quando os
demônios puseram todas as más ações dele num lado da balança, um anjo apareceu, nada
tendo a colocar no outro lado, exceto as duas lágrimas que vertera todos os anos. Nada obstante,
aquelas lágrimas pesaram exatamente tanto quanto todas as más ações juntas.
Que havia a fazer? Bodnaras começou a suar e tremer. Mas naquele momento exato Deus
olhou para um lado e o rico tirou rápido um punhado de obras más da balança. Esta inclinou-
se para o lado do Bem.
Deus porém percebe as coisas, mesmo quando desvia o olhar para outra parte. Disse
tristemente ao rico: "Nunca em toda a criação alguém tentou lograr-me no Dia do Juízo". E
olhando ao redor do Céu, indagou: "Quem quer defender este homem?"
Os anjos ficaram calados. "Venha", continuou Deus, "isto aqui não é a República
Popular da Roménia. Não podemos condenar alguém sem que ele se defenda".
Até o anjo guardião recuou ante a tarefa. "Mas", observou "há um ministro na cidade dele,
de tantas virtudes que bem pode dispor-se a falar em seu favor".
O ministro foi levado ao Céu, enquanto seu corpo permaneceu lá em baixo. Quando
viu o homem a quem humilhara tantas vezes, Bodnaras pensou que fugia sua última oportunidade,
mas o pastor aceitou sem hesitar o caso judicial.
"Pai Celestial", começou ele, "qual de nós é melhor, Tu ou eu? Se sou melhor do que Tu,
desce do trono e deixa-me tomar o teu lugar, porque todos os dias eu permitia a Bodnaras o gozo
de cuspir em mim, e não ficava com amargura. Certamente, se eu posso perdoá-lo, o mesmo
podes fazer.
"Minha segunda contestação é que Jesus morreu na cruz pêlos pecados do homem,
embora em nosso desgraçado país hoje sejamos castigados muitas vezes pelo mesmo crime,
não é justo que Bodnaras sofra outra vez pêlos seus pecados, quando já foram punidos no corpo
de Jesus.
"E em terceiro lugar, ó Deus, uma pergunta prática - que perdes tu se ele for para o Céu?
Se o paraíso é muito apertado, tu podes ampliá-lo. Se não queres colocar gente má no meio dos
bons, então faze outro Céu para as almas perdidas - dá-lhes também um pouco de felicidade".

105
Essas palavras agradaram tanto a Deus que ele imediatamente chamou Bodnaras: "Vá
agora mesmo para o Céu!" Mas o rico escapuliu-se. Deus então virando-se muito comovido para o
ministro, disse: "Fique aqui um pouco e conversemos".
"Obrigado", disse o pastor, "mas ainda não comecei o culto e todos na igreja esperam ainda
sair em tempo para o jantar em casa. Preciso voltar e cumprir a minha obrigação e dizer ao povo
que se precavenha do pecado. Contudo, também ensinarei a ele que tu cumpres o teu dever
perdoando-nos, porque o teu amor atinge até os piores pecadores. Se começas a julgar o
homem de acordo com o que ele merece, nenhum de nós escapará".
A cela ouviu esta história em silêncio.
"E o senhor defenderia Stalin na presença de Deus?" interpelou Popescu.
"Quem sabe se Stalin não chorou os seus pecados?" respondi. "Os psicólogos
dizem que quanto piores forem os crimes de alguém, tanto menos responsável é por
eles. Um maníaco da marca de Hitler, que incinera em fornos milhões de pessoas
inofensivas, que ele nunca viu; um assassino de gente em massa da igualha de Stalin, que
trucida milhares de seus próprios camaradas - tais homens não são normais, e neste caso
não podemos julgá-los usando o critério que adotamos em relação com outros".
O Coronel Popescu observou: "Tenho ouvido muita doutrina cristã nesta cela,
porém esta é a melhor - e a mais difícil de por em prática".
Na primavera de 1956 algumas andorinhas fizeram ninho no alto da cela, perto da
janela. Certo dia um pipilar anunciava que as avezinhas tinham saído dos ovos. Um preso,
trepado nos ombros de outro, espiou para dentro do ninho. "São quatro!", exclamou. Os
pais dos filhotes estavam agitados. Aquilo nos fez mudar de assunto: em vez de conversar
sobre nossa soltura, agora contávamos as vezes que disparavam no voo, entrando e saindo
para aumentar a prole - 250 viagens por dia. Um velho do interior disse: "Dentro de vinte
dias eles começarão a voar". Os outros riram. "Vocês vão ver", acrescentou. No vigésimo
dia nada aconteceu, mas no vigésimo primeiro, pipilando e adejando agitados, os novos
pássaros voaram. Gostamos de ver. "Deus arranja o programa certo deles", disse eu. "O mesmo
poderá fazer para nós".
Passavam-se as semanas e parecia que a denúncia de Stalin preanunciava de fato outro
"degelo". Não podia demorar; aliás muitos presos estavam soltos por efeito de uma anistia.
Estaria eu no número deles? Este pensamento só me fazia ficar triste: se me soltarem agora,
para que vou servir? Mqu filho crescera e dificilmente se lembrava do pai. Sabina acostumara-
se a cuidar de si. A Igreja tinha outros pastores, que lhe causavam menos dissabores.
Certo dia bem cedo uma voz interrompeu esses pensamentos: "Interrogatório, logo!
Vamos!" Estaria de volta à arrogância, ao medo e às perguntas para as quais teria de achar
respostas falsas? Comecei a juntar meus pertences. O guarda berrou: "Venha, venha! O
carro está à espera". Saí às pressas com ele corredor a fora e atravessei o pátio. Um após
outro os portões de aço iam-se abrindo, à medida que subíamos degraus. Afinal estava do lado de
fora!
Não havia carro à vista, apenas um escrevente, que me entregou um papelzinho.
Recebi-o, era um despacho do tribunal, no qual se declarava que eu estava livre, por força de uma
anistia.
Fitei o papel, imbecilizado. Tudo o que pude dizer foi: "Minha sentença é de vinte
anos, mas só cumpri oito e meio".
- Você tem de ir embora. É ordem do tribunal superior.
- Tenho ainda quase doze anos a cumprir.

106
- Não discuta! Suma-se!
- Mas olhe para mim!
Minha camisa estava rasgada e suja. Minhas calças ostentavam uma coleção de
remendos de vários tamanhos e cores. Minhas botas pareciam ter sido emprestadas por Charlie
Chaplin.
- Vou ser preso pelo primeiro policial que encontrar.
- Não temos roupa aqui para você. Ponha-se na rua!
O escrevente voltou-me as costas e entrou na prisão. O portão fechou-se e o
ferrolho rangeu. Fora da prisão não se via ninguém; achei-me só em um mundo vazio.
Naquele dia quente de junho tudo estava tão calmo que eu podia ouvir insetos zumbindo
a cuidar de si. Uma estrada longa, auspiciosa, estendia-se além, sob árvores de um verde
escuro maravilhoso. Vacas pastavam à sombra de um vasto castanhal. Como tudo era
tranquilo!
Falei alto, de modo a poderem os guardas ouvir do outro lado dos muros: "Ó
Deus, ajuda-me a não ter maior alegria por estar livre do que a de ter tido a ti comigo na
prisão!"
Jilava distava de Bucareste pouco menos de uma légua. Pus minha trouxa no
ombro e parti atravessando campinas. Continha ela apenas uma porção de trapos
catinguentos, mas a mim tinham valido tanto na prisão que nunca pensei em deixá-los.
Em breve chegava eu ao fim da estrada para enveredar pelo meio do capim denso e tocar
aqui e ali na casca áspera das árvores, enquanto avançava. Algumas vezes parei para fitar
uma flor ou um rebento de folhas.
Encontrei dois vultos - um casal de velhos matutos. Pararam diante de mim e
disseram com abelhudice: "Você vem de lá?" O homem tirou um léu, moeda valendo cerca
de cinco centavos, e me deu. Olhei para ele em minha mão e quase tive vontade de rir.
Ninguém nunca antes me dera um leu.
- Dê-me seu endereço, para que eu possa reembolsá-lo.
- Não, não, fica com ele, insistiu o velho, usando o pronome "tu", como se faz na
Roménia falando a crianças e mendigos.
Prossegui com a minha trouxa. Outro pessoa, uma mulher, fez-me parar. "Você
vem de lá?" Esperava ela de mim notícias do padre da vila de Jilava detido meses antes. Eu
não o vira, mas expliquei que eu mesmo era pastor. Sentamo-nos num murinho à beira
do caminho. Fiquei tão contente por encontrar alguém que se dispunha a conversar sobre
Cristo que não me impacientei por chegar logo a casa. Quando por fim me ia retirando,
ela também me deu um léu: "É para a passagem do bonde":
- Mas eu tenho um leu.
- Leve então este por amor de nosso Senhor.
Fui andando até que cheguei a uma parada de bonde no perímetro da capital.
Pessoas me rodeavam, sabendo logo de onde eu vinha. Perguntavam sobre irmãos, pais,
primos - todos tinham alguém na prisão. Ao tomar o bonde não me deixaram pagar.
Várias pessoas se levantaram oferecendo-me seus lugares. Presos que saem da cadeia na
Roménia, longe de serem proscritos, são altamente respeitados. Sentei-me com a trouxa
nas pernas, mas logo que o bonde começou a movimentar-se ouvi brados de fora: "Pare!
Pare!" Quase pensei que era o meu coração que ia parar. Com a freada brusca todos nos
inclinamos à frente, enquanto a motocicleta de um miliciano dava guinadas à dianteira do

107
bonde. Tinha havido um engano - ele vinha levar-me de volta? Mas o condutor virou-se
e gritou: "Ele diz que há alguém de pé no estribo".
Junto a mim estava uma mulher com um cesto de morangos frescos. Olhei para eles
sem acreditar.
- Não comeu nenhum ainda este ano? Perguntou ela.
- Há oito anos que não os vejo, respondi.
- Vá, tome alguns!
E encheu minhas mãos de uns bem madurinhos. Faminto que estava, comi-os de
boca cheia, qual uma criança.
Por fim cheguei à frente de minha casa e hesitei por um momento. Não era
esperado, e andrajoso e sujo como estava metia medo. Por fim, abri a porta. Na sala
estavam dispersos jovens, entre os quais um de aparência desajeitada, que me fitou e
explodiu: "Papai!"
Era meu filho Mihai. Deixei-o com nove anos; agora tinha dezoito.
Depois saiu minha esposa. Seu rosto delicado estava mais magro, contudo seus
cabelos ainda eram negros; julguei-a mais bela do que nunca. Minha vista ficou toldada.
Ela abraçou-me e com muito esforço fui dizendo: "Antes de nos beijarmos, preciso dizer
uma coisa. Não pense que apenas saí da miséria para a felicidade! Vim da alegria de
estar com Cristo na prisão para a alegria de estar com ele ao lado de minha família. Não
venho do meio de estranhos para os meus, mas venho dos meus em prisão para os meus
em casa". Ela soluçava; eu disse: "Agora, se quer, pode beijar-me". Mais adiante cantei
baixo uma cançãozinha que fizera para ela anos antes na prisão, a fim de cantá-la se um
dia nos encontrássemos de novo.
Mihai veio dizer-me que a casa estava cheia de visitantes que não queriam sair
sem antes ver-me. Membros de nossa igreja tinham estado a telefonar para Bucareste
inteira; a campainha da porta tocava a todo instante. Velhos amigos levaram outros novos.
Pessoas precisavam ir saindo para que outras pudessem entrar na sala. Toda vez que era
apresentado a uma mulher tinha de me inclinar respeitosamente nas minha calças
absurdas, sustentadas por um cordão. Quando todos se retiraram já era quase meia-noite
e Sabina insistiu que eu comesse alguma coisa. Mas eu não sentia fome. Disse: "Hoje
tivemos felicidade bastante. Façamos do dia de amanhã um dia de jejum em ação de
graças, com a Santa Comunhão antes da ceia".
Voltei-me para Mihai. Três de nossos visitantes - um deles professor de filosofia da
universidade, a quem não conhecia antes - disseram-me naquela noite que meu filho os
levara à fé em Cristo. E eu temera que, deixado sem pai nem mãe, ele viesse a perder-se.
Não podia achar palavras com que exprimisse a minha felicidade.
Mihai interpelou-me: "Papai, o senhor passou por tanta coisa, quero saber o que
aprendeu de todos os seus sofrimentos".
Pus meu braço à volta dele e respondi: "Mihai, quase que esqueci minha Bíblia todo
este tempo. Quatro coisas, porém, estiveram sempre em meu pensamento. Primeiro, há um
Deus. Segundo, Cristo é o nosso Salvador. Terceiro há uma vida eterna. Quarto, o amor é o
melhor expediente".
Meu filho retorquiu: "Era tudo o que eu queria". Mas adiante me disse que
decidira ser pastor.
Na minha cama limpa e macia daquela noite não pude dormir. Sentei-me e abri a
Bíblia. Queria o Livro de Daniel, que tinha sido o meu favorito, mas não conseguia achar
108
onde ficava. Meus olhos deixaram-se então prender por uma passagem da segunda
Epístola de S. João: "Fiquei sobremodo alegre em ter encontrado dentre os teus filhos os
que andam na verdade". Esta alegria era minha também. Entrei no quarto do meu filho, porque
queria ter a certeza de que ele lá estava. Na prisão muitas vezes sonhei com isso, mas
somente para acordar e me achar na cela.
Passaram-se duas semanas e só então vim a dormir regularmente. Já então estava
sendo tratado na cama mais bem situada da enfermaria mais banhada de sol e do melhor
hospital possível. Sendo eu um egresso do cárcere, todo o mundo queria ajudar-me - nas
ruas, nas lojas, em toda parte - e a torrente de visitantes recomeçou.
PARTE SEXTA
Agora que estava livre, ansiava no profundo de meu coração por tranquilidade e
descanso. Mas o comunismo agia em toda parte para levar a termo a destruição da Igreja.
A paz que eu desejava seria uma evasão da realidade e um perigo para a minha alma.
Estava de volta a um lar pobre, todavia eu era mais afortunado do que muitos.
Tínhamos um pequeno sótão de dois quartos, quase com mobília nenhuma. Dormia em uma
cama velha de tábuas, com um colchão macio emprestado por um vizinho; a cama era provida
de uma almofada à cabeceira para adaptá-la ao meu comprimento. Água vinha do porão, três andares
abaixo, e o banheiro mais próximo ficava em outro edifício. Não podia esperar nada melhor. Na
prisão todos estávamos cientes das moradias de que dispúnhamos e da escassês de mantimentos,
bem como dos edifícios das igrejas fechadas ou expropriados, como era o caso da nossa.
Nosso confortável apartamento fora confiscado quando da prisão de minha esposa. Visto ter
ela se recusado a divorciar-se de mim.
depois que foi solta, não podia arranjar trabalho, vivendo em pobreza extrema,
serzindo meias de mulheres e dependendo da bondade de amigos. Disse que fora um
transe duro para eles e mais para Mihai.
Aos treze anos ele teve permissão de visitar a mãe durante os três anos que ela
passou de trabalho forçado no canal. Privado de ambos os pais, vivendo da caridade pública,
tornou-se ríspido.
"Tomei emprestado o dinheiro para ir ao acampamento", disse ele. "Encontramo-
nos num local onde duas séries de barras de ferro nos separavam. Mamãe vestia a farda da
prisão, estava suja e magra, meio chorosa; precisou gritar para que eu ouvisse. Exclamou:
"Mihai, creia em Jesus e seja fiel!" Respondi: "Mamãe, se num lugar como este a senhora
ainda é crente, então eu devo sê-lo também".
Voltando a Bucareste, Sabina encontrou Mihai trabalhando como afinador de piano,
depois de uma aprendizagem com o afinador do Teatro Lírico; seu ouvido musical era
apurado de tal forma que já trabalhava por conta própria. Em breve já ganhava o bastante
para ajudar a mãe e estudar. Levavam uma vida de pobreza, mas tinham o que comer.
Os contratempos de Mihai com o Partido começaram cedo ao conquistar ele o
direito, concedido aos alunos modelares, de usar uma gravata vermelha - recusando-a por
ser "O distintivo dos opressores". Expulso de público, foi sigilosamente readmitido na
escola quando o rebuliço serenou, porque seus professores serviam o regime com
adulação apenas de lábios. Aos quatorze anos foi de novo expulso por declarar que a
Bíblia e que os ataques à religião, feitos nos livros didáticos, baseavam-se em
falsidades. Dessa vez tratou de continuar os estudos em aulas noturnas.
Mihai era cristão, sem nenhum amor ao comunismo. Mas um pássaro que vive em
um ninho perto de uma família de gralhas emite notas dissonantes, e Mihai sabia pouca coisa
além do que lhe chegava aos ouvidos. No dia seguinte ao de meu regresso precisei dizer-lhe
109
estar ele enganado em crer que os operários nos países capitalistas morriam de fome. Seus
colegas estudantes tinham issa como certo, e uma jovem me contou haver chorado na aula
pelas crianças famintas da América.
Até os menores moços pareciam confusos e desnorteados. Não somente se viam
privados da oportunidade de ler notáveis autores cristãos, como nem podiam adquirir as
obras de pensadores como Platão, Kant, Schopenhauer e Eistein. Os amigos de Mihai
afirmavam que seus pais lhe diziam uma coisa, os professores diziam outra, pedindo eles
muitas vezes o meu parecer.
Um jovem estudante de teologia, da universidade de Cluj, precisava de uma ajuda para
escrever sua tese.
— Qual é o assunto? Perguntei.
— A história do canto litúrgico na Igreja Luterana.
Eu disse: "Você deve começar escrevendo que não devemos encher a cabeça dos moços
com trivialidades históricas, quando amanhã poderão ter de enfrentar a morte por sua fé".
"Que devo estudar neste caso?" perguntou.
Respondi: "Estude como devemos nos aprontar para o sacrifício e o martírio".
Contei-lhe alguma coisa do que vi no cárcere, e não tardou que ele trouxesse os amigos.
Todos tinham a mesma dificuldade em traçar um programa de curso. Inquiri deles acerca dos
seus estudos.
Um deles disse: "Nosso professor de teologia afirma que Deus deu três revelações. A
primeira a Moisés. A segunda a Cristo. E a terceira a Karl Marx".
— Que pensa seu pastor sobre isso?
— Quanto mais ele fala menos parece dizer.
O desfecho dessas conversações foi eu concordar em ir a Cluj e pregar na catedral.
Os estudantes quiseram ver livros meus, porém todos os meus escritos tinham sido
interditados.
Antes de ir precisava fazer uma breve visita em cumprimento de uma promessa feita
na prisão a membros do Exército do Senhor, organização parecida com o Exército da
Salvação, e que estava sendo hostilizado implacavelmente pela Polícia Secreta. Já fazia
vários anos que eu me avistara com o Patriarca Justiniano Marina, pensando eu que ele
pudesse ajudar. O dano por ele causado à Igreja fora enorme; estava também em suas mãos
fazer algum bem.
Encontrei-o a passear no terreno atrás do seu palácio. Desconfio que ele preferiu
ver-me no jardim para ficar livre de microfones e afastado dos seus empregados, que
podiam ficar escutando a conversa às escondidas. Eu disse: "O senhor é Patriarca e à sua
presença chegam pessoas à procura de emprego e pensão. Em todo lugar cabe-lhe pregar e
cantar - de modo que pensei deve vir e cantar para o senhor. É um hino do Exército do
Senhor, que aprendi na prisão". Cantei o hino para ele e pedi que fizesse algo em favor
daquela gente simples e boa: "Eles não devem ficar sentados para sempre no cárcere, somente
por pertencerem a determinada organização religiosa". Respondeu-me que ia tentar fazer
algo, e então conversamos bastante.
Procurei chamá-lo de volta para Deus. Afirmei: "No Jardim do Getsêmani, Jesus até
ajudas tratou de 'amigo', abrindo-lhe o caminho da salvação". Queria eu plantar uma
semente da qual germinasse uma mudança de coração. Ele ouviu em silêncio, e mais
ainda com humildade, porém disse poder fazer pouco em vista de ter sido colocado ao seu
lado o Metropolita de lasi, Justino Moisescu; se ele se aventurasse a muita coisa ou
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resignasse, Moisescu o substituiria como Patriarca, e então as coisas iriam a pior. Justiniano
tinha-me certo respeito, mas embora tivesse o coração dividido, suas vacilações sempre
acabavam em submissão as exigências do Partido.
Mais adiante soube que o assunto do "Exército" tinha sido levado à consideração do
Santo Sínodo, onde o Patriarca enfrentou a oposição do Metropolita - que (logo quem!) fora
aceito como representante ortodoxo junto ao Concílio Mundial de Igrejas. A seguir foi
censurado pelo Ministro dos Cultos por haver-me recebido - seu secretário,
naturalmente, relatou minha visita, assim como o Patriarca sempre dava relatório do que o
secretário fazia. Justiniano tinha concordado em receber delegados da parte do "Exército",
mas ao chegarem, mandou-os embora sem cerimónia, dizendo: "Wurmbrand disse a vocês
que viessem, não foi? Já é tempo de ele voltar para a cadeia!"
A notícia de haver eu prometido fazer uma série de preleções na antiga cidade
universitária da Roménia chegou logo ao conhecimento das autoridades, com o aviso de
que meu verdadeiro propósito era atacar o Marxismo e causar perturbação entre os estudantes
sob o disfarce de prelecionar sobre filosofia cristã. O zeloso denunciante no caso foi um
ministro protestante, que me disse na cara o que fizera.
Seu ato não me surpreendeu. Desde que fora solto, encontrei muitos dos meus
colegas - padres, pastores e até bispos - que levaram aquela denúncia ao Ministro dos
Cultos. De ordinário as denúncias visavam seus próprios rebanhos, e comumente os
clérigos sentiam vergonha e tristeza pelo que faziam. Diziam que não era tanto visando
a segurança deles mesmos, senão para livrar suas igrejas de serem fechadas. Cada cidade
tinha seus delegados do Ministério dos Cultos junto à Polícia Secreta, os quais inquiriam
regularmente os ministros sobre a conduta de suas congregações; aparte questões políticas,
queriam saber quais era os paroquianos que comungavam frequentemente, quais
procuravam obter conversões, que pecados as pessoas confessavam. Os que recusassem
responder a tais perguntas eram depostos, e igrejas eram fechadas. De sorte que na época a
Roménia tinha quatro categorias de ministros: os que estavam presos; os que delatavam
coagidos e depois procuravam tornar atrás; os que davam de ombros e faziam o que se
lhes mandava; e os que pelo hábito adquiriram o gosto de delatar. Estes últimos eram
poucos. Os pastores oficiais, por mais respeitáveis que fossem, não tardavam em ter caçada
sua licença de pregar se não colaborassem. Mas os traidores, tipo maria-vai-com-as-outras,
saíam-se bem com o seu descaramento, e meu colega delator era um deles.
Seu aviso foi recebido por um funcionário espião de nome Rugojanu. O Ministério dos
Cultos tinha também suas categorias de serventuários. Uns eram moles, outros se
aproveitavam do poder que tinham para extorquir do clero "dinheiro de proteção", mas
Rugojanu era um fanático que ia de uma igreja a outra fariscando incansavelmente
"contra-revolucionários". Ele em pessoa assistiu às minhas preleções.
Em Cluj, na primeira noite, houve um grupo de cinquenta estudantes, e uns poucos
professores de teologia. Como Danvin com suas teorias evolucionistas, sempre tinha as
honras de primeiro lugar lecionar nas aulas de teologia; procurei abordá-lo. Declarei que a
nova Roménia, avançada e socialista, rejeitava todas as ideias capitalistas; não era de
estranhar que se abrisse uma exceção para o burguês britânico Sir Charles Danvin?
Rugojanu, encurvado à frente do banco, fitava-me de frente. Olhei para ele e continuei:
"O filho de um médico quer ser médico também, o de um compositor de música quer ser
musicista, o de um pintor quer ser artista, e assim por diante. Se credes que fostes criados
por Deus, então haveis de procurar ser semelhantes a ele; mas se preferes crer que sois
progénie de macacos, correis o perigo de virar animais".

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Comecei minhas preleções numa segunda-feira. Na terça o auditório tinha
duplicado. No fim da semana eram mais de mil os rostos que tive pela frente - a
universidade em peso parecia lotar a catedral. Sabia que muitos ansiavam ouvir a verdade,
mas temiam as consequências de abraçá-la. Por isso contei-lhes o conselho que me dera
um pastor que morreu por sua fé as mãos dos fascistas. Ele me disse: "Você entrega seu
corpo como um sacrifício a Deus quando o entrega a todos quantos desejam espancá-los
e ridicularizá-lo. Jesus, sabendo que sua crucifixão se aproximava disse: "Meu tempo é
chegado". Seu tempo foi o do sofrimento, e sua foi a alegria de padecer para a salvação do
gênero humano. Nós, por igual, devemos encarar o sofrimento como uma
responsabilidade e encargo que Deus nos impõe. S. Paulo escreveu na Epístola aos
Romanos (12.1): "Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis
os vossos corpos por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus".
Passei a vista pela congregação inteira em silêncio. Por um momento era como
se tivesse retrocedido à minha igreja durante a guerra, no dia em que os da Guarda de Ferro,
arrogantes e cruéis, encheram o banco de trás, portando revólveres. Ameaças nos rodeavam;
não apenas o lugar onde Rugojanu estava a tomar notas.
Continuei: "Não permitais que o sofrimento vos alcance de surpresa! Meditai nele
muitas vezes. Tomai pelo pensamento as virtudes de Cristo e"dos seus santos para vós
outros. O pastor de que vos falei, meu professor que morreu por sua fé, deu-me a receita
de um chá contra o sofrimento, receita que vou passar a vós outros também".

Contei-lhes então a história de um médico dos primitivos tempos do Cristianismo,


que foi preso injustamente pelo imperador. Depois de algumas semanas, seus familiares
tiveram permissão de visitá-lo, e a princípio choraram. A roupa dele eram farrapos, seu alimento
uma fatia de pão com um copo de água diariamente. Sua esposa espantou-se e perguntou:
"Como é que sua aparência é tão boa? Você tem os ares de quem acaba de sair de uma festa de
casamento!" O médico, sorrindo, respondeu ter encontrado um remédio para todas as
tribulações. Sua família indagou qual era. O médico disse: "Descobri um chá que é eficaz no
combate a todos os sofrimentos e tristezas. É feito de sete ervas, e vou enumerá-las para vocês:
"A primeira erva chama-se contentamento: fiquem satisfeitos com o que têm. Posso
tremer de frio na minha roupa esfarrapada enquanto vou roendo minha crosta de pão, mas como
seria muito pior se o imperador me tivesse lançado nu em calabouço sem nadinha para
comer!
"A segunda erva é senso comum. Quer me alegre, que me exaspere estarei de qualquer
modo na prisão. Então para que me impacientar?
"A terceira é a lembrança dos pecados passados: contem quantos são e na suposição de
que cada um deles merece um dia no cárcere, calculem quantas vidas vocês teriam de passar atrás
das grades - a sentença é até muito leve!
"A quarta é a reflexão em torno das tristezas que Cristo arrastou alegremente por nós.
Se o único homem que podia escolher sua sorte sobre a terra escolheu sofrimento, que valor
enorme ele devia ver nas dores! Observamos assim que, levado com serenidade e gozo, o
sofrimento redime.
"A quinta era é saber que o sofrimento nos tem sido dado por Deus na qualidade de Pai,
não para nos prejudicar, mas para nos purificar e santificar. O sofrimento pelo qual passamos
tem o propósito de depurar-nos e preparar-nos para o Céu.
"A sexta é saber que sofrimento algum pode fazer mal a nossa vida cristã. Se os
prazeres da carne são tudo na vida, então o sofrimento e a prisão acabam extinguindo o alvo
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que o homem tem na sua existência; mas se a essência da vida é a verdade, eis o que prisão
alguma pode mudar. Na prisão ou fora dela dois mais dois são quatro. O cárcere não me faz
deixar de amar; barras de ferro não podem desbancar a fé. Se estes ideais constituem
minha vida, posso ficar sereno seja onde for.
"A última erva da receita é a esperança. A roda da vida pode meter o médico do
imperador no cárcere, mas prossegue girando. Pode fazer que eu volte ao palácio amanhã
e até pode colocar-me no trono".
Pausei por um momento. A igreja repleta era toda silêncio.
Continuei: "Tenho bebido tonéis desse chá desde então, e posso recomendá-lo a vós
outros. Tem produzido bom efeito".
Quando acabei de falar, Rugojanu levantou-se e foi saindo sem olhar para trás. Desci
do púlpito; no auditório o zum-zum era enorme, todos a conversar. Fora, estudantes
aplaudiam e vibravam, procurando apertar-me a mão. Telefonei para Sabina que ficou
alegre pelo que eu fizera, se bem que soubesse que represálias haviam de vir.
No dia seguinte fui chamado pelo meu bispo, que me disse estar Rugojanu fazendo
confusão. Enquanto ele me referia os protestos partidos do Ministério dos Cultos,
Rugojanu adentrou a sala. "Ah, o senhor!" exclamou. "Que desculpas está procurando
apresentar? Uma cachoeira de sedição - eu ouvi!"
Perguntei-lhe o que foi que em particular o desgostou. Foi tudo mas particularmente
a minha cura do sofrimento.
"Mas o que havia de mal no meu pobre chá?" indaguei. "Qual a erva de que não
gostou?"
Respondeu com violência: "O senhor disse que a roda dá voltas. Mas nessa
explosão contra-revolucionária o senhor se engana. A roda não tornará atrás, meu amigo;
o comunismo está aqui para nunca mais sair!" Seu rosto estava desfigurado de rancor.
"Não mencionei sequer o Comunismo", retorqui. "Disse apenas que a roda da
vida conserva-se girando. Por exemplo, eu estive na prisão, agora estou livre. Estive mal
de saúde, agora estou melhor. Perdi minha paróquia, agora posso trabalhar..."
"Não, não, não! O senhor quis dizer que o Comunismo havia de sair e todos
viram que era este o sentido. Não pense que a coisa vai ficar assim!"
Rugojanu convocou os líderes da igreja ao palácio episcopal de Cluj, onde fui
denunciado por tentar envenenar a mocidade com ataques velados ao Governo. "Fiquem
certos os senhores que ele não pregará mais", bradou Rugojanu num acesso feio de ira.
Por fim exclamou: "Wurmbrand está liquidado!" Agarrou a capa e o chapéu e foi saindo
do edifício.
A uns cem metros da porta, ao procurar desviar-se de um cachorro, o seu carro
subiu a calçada e foi de cheio contra uma parede, esmagando-o Rugojanu morreu ali
mesmo.
A história de suas últimas palavras e do que aconteceu a seguir espalhou-se por
todo o país. Muitas vezes naqueles anos Deus mostrou sinais de sua intervenção.
A cassação de minha licença de pastor não me fez deixar de pregar, mas agora
precisava agir tão ocultamente quanto fizera entre soldados soviéticos antes da guerra.
Um novo perigo surgia agora com visitas de velhos amigos da prisão, que vinham pedir-
me conselho e auxílio. Alguns deles, transformados em delatores, procuravam provocar-
me. Aqueles infelizes esperavam muito de sua liberdade. Encontrando transtornado o
mundo que conheceram antes, achavam dever entregar-se à caça de prazeres sexuais para
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recuperar sua juventude perdida. Isso comumente custa mais do que eles tinham a oferecer; e a
maneira mais simples de encetar atividades com o regime e obter lucros imediatos estava em fornecer
informações ao Partido. A liberdade deles foi mais trágica do que a prisão.
Nossa melhor defesa contra informantes estava nas advertências que amigos na
Polícia Secreta nos faziam. Muitos dos nossos seguidores tinham empregos no Partido de uma ou
outra espécie. Um jovem casal que empregava o seu tempo no departamento de propaganda
passava suas tardes orando conosco, e mais de uma vez nos reunimos na casa de um oficial
proeminente da Polícia Secreta enquanto ele estava fora, sua empregada sendo do nosso grupo.
Outras vezes nos reuníamos em porões, sótãos, apartamentos, casas no campo. Nossos cultos eram
tão simples e tão belos como os dos primitivos cristãos há 1.900 anos. Cantávamos em voz alta; se
perguntassem o motivo, dizíamos que era festa de aniversário; famílias cristãs de três ou quatro
membros tinham trinta e cinco aniversários no ano! Às vezes tínhamos reuniões em campo
aberto. O céu era a nossa catedral; os pássaros davam-nos sua música, as flores eram o nosso
incenso, as estrelas nossas velas, os anjos eram acólitos que se acendiam, e as vestes puídas de
um mártir, recém-saído da prisão, significavam para nós muito mais do que os ricos
paramentos dos clérigos.
Eu sabia, naturalmente, que cedo ou tarde seria novamente preso. Depois da
revolução na Hungria, a situação se tornava cada vez mais difícil. Khruschev anunciou
novo plano setenal, "para erradicar os vestígios da superstição". Igrejas fechadas ou
adaptadas ao funcionamento de clubes comunistas, museus, depósitos de cereais. Aqueles
que os jornais do Partido injuriavam chamando de "trapaceiros de sotaina preta" eram
apanhados aos milhares.
Eu orava: "Ó Deus, se há gente no cárcere a quem posso ajudar, almas que posso
salvar, manda-me de volta para lá e de boa-vontade aceitarei esse encargo". Sabina às vezes
hesitava, mas acabava dizendo "Amém". Havia por esse tempo um gozo íntimo por ela
experimentado, o qual provinha de sabermos que cedo serviríamos a Cristo mais
consagradamente. Uma vez mais pensei se a figura que imaginávamos não estaria também ela
plena de gozo porque seu filho ia ser o salvador do mundo?
Fui procurado à 1 hora da madrugada de 15 de janeiro de 1959. Nosso sotãozinho
foi virado pelo avesso numa busca que durou quatro horas. Meu filho descobriu um cinturão
seu atrás de um armário deslocado do lugar. "E ainda haver gente que diz não prestar pra nada
a Policia Secreta!" disse ele. "Procurei este cinturão por toda parte". No dia seguinte foi posto
fora da escola noturna por sua insolência.
Quando me levaram, Sabina apanhou minha Bíblia. Encontrou nela um pedaço de
papel, em que estava uma sentença que eu copiara da Epístola aos Hebreus (11.35), a qual
dizia "pela fé... mulheres receberam, pela ressurreição, os seus mortos". Eu escrevera
embaixo: "Tenho uma mulher assim por esposa".
Ainda era escuro e as ruas estavam cobertas de neve semiderretida quando
chegamos à Delegacia de Polícia de Bucareste. Passei pelas formalidades iniciais
conhecidas, antes que os guardas me levassem a uma cela. Ali encontrei um homem de cerca
de trinta anos, chamado Draghici, um dos odiados iïderes da reeducação, em Piteshi. Cada
vez que a porta da cela se abria ele se virava bruscamente. Disse: "Sinto estar tão nervoso;
não sei se vêm me buscar para um banho ou se é para fuzilar-me. Já faz quatro anos que
estou sentenciado à morte".
Draghici contou-me a história de sua vida. Quando menino tinha veneração por um
padre local, que disse um dia: "Seu pai é relojoeiro - peça a ele para vir consertar o relógio
da igreja e cobrar barato". Draghici persuadiu o pai a fazer o trabalho de graça. O padre
então pediu em recibo de 500 léus, para que ele embolsasse o dinheiro debitando a igreja.
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Draghici sorriu com ar de escárnio: "Eu podia criar-me cristão e dar à Igreja uma
quantidade de dinheiro pêlos anos a fora, mas não para uma coisa daquela".
Seu pai, um ébrio, desapareceu com as economias da família. Aos quatorze anos o
menino alistou-se na Guarda de Ferro porque apreciava a camisa verde, os cânticos
marciais e a admiração das moças. Poucos meses depois a Guarda foi extinta. Draghici foi
preso, e quando os comunistas galgaram ao poder foi automaticamente sentenciado a onze
anos como fascista ativo. Depois de cumprir sete anos, prometeram-lhe em Piteshi: "Surre os
outros presos e você será
liberto".

Contou-me: "Tinha então vinte e um anos. Não queria ficar preso, e assim fiz o que
me disseram. Acreditei neles, e agora tenho de morrer pelo que fiz".
Parecia-me que ele já estava à beira da morte, tuberculoso. "Eu só mereço isto
menino", dizia.
Fiquei deitado a ouvir Draghici tossindo e pensei: se Deus me chamasse e
perguntasse: "Depois destes seus cinquenta e seis anos na terra, que pensa você do homem?"
Eu teria de responder: "O homem é pecador, mas a culpa não é dele. Satanás e seus anjos
caídos estão agindo para nos tornar tão desgraçados quanto eles".
Durante dez dias e noites argumentei com Draghici: "Não foi por sua livre escolha
que você tornou-se criminoso", disse-lhe, "mas o seu senso de culpa pede uma expiação.
Jesus tomou sobre si este castigo que você sente merecer".
Na décima noite ele caiu em pranto. Oramos juntos, desaparecendo seu remorso e
temor. Assim pois a minha súplica, de me ser permitido ajudar outros presos, foi
respondida logo nos primeiros dias de meu retorno à prisão. A seguir fui levado à prisão
Urano de Bucareste para ser interrogado. Um major da Polícia Secreta tentou fazer que eu
desse os nomes dos "contra-revolucionários" com os quais entrara em contato.
Eu disse que teria satisfação em mencionar contra-revolucionários: da Rússia como
os de nosso país. Vários milhares deles tinham sido mortos na União Soviética durante a década
de trinta por Yagoda, então Ministro do Interior, mas no final o verdadeiro contra-
revolucionário revelou-se na pessoa do próprio Yagoda. Depois, sob o seu sucessor Beria, a
polícia secreta soviética levou centenas de milhares à morte, até que Beria por igual foi
fuzilado. Acrescentei que o supremo inimigo da revolução, o assassino de milhões, foi
Josef Stalin, que mais adiante foi exumado do seu túmulo na Praça Vermelha. De modo que
melhor seria - sugeri - procurar contra-revolucionários em outra parte do que em minha
pobre igreja.
O oficial ordenou que me surrassem e guardassem em confinamento solitário. Aí
fiquei até meu julgamento. Consistiu este em uma revisão de dez minutos, em sessão
secreta, do primeiro julgamento ocorrido dez anos antes. Minha esposa e meu filho
estiveram presentes desta vez para ouvir a pronúncia contra mim.
Esperei mais adiante numa cela pelo transporte que me levasse à nova prisão.
Enquanto conversava com os outros a respeito de Cristo, um oficial entrou para anunciar a
nova decisão do tribunal. Agradeci-lhe e continuei o que vinha dizendo. A sentença fora
aumentada de vinte para vinte e cinco anos.

PARTE SÉTIMA

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HAVIA outros clérigos recém-sentenciados comigo no 0B "• caminhão da Polícia
Secreta. Depois de curto percurso descemos uma rampa íngreme e paramos. Meu coração
quase desmaiou, porque supus que estava voltando para a prisão do subsolo de Jilava. Vozes
bradavam: "Fora com eles!" e as portas do veículo se abriram.
Um grupo de guardas brandindo bastões fez-nos passar debaixo de pancadas ao
longo de um corredor. Tinham estado bebendo e à vista dos clérigos soltaram berros de
alegria - oba! Atiraram para nós fardas de prisão, cinzentas e encardidas. Os vagarosos em
trocar de roupa tiveram as costas de suas vestes rasgadas. As barbas foram cortadas no
meio de gargalhadas estrondosas. As cabeças foram rapadas. Sangrando e seminus fomos
conduzidos a uma cela grande.
Sentamo-nos no piso de lajes, comprimindo-nos uns aos outros no frio de fevereiro.
Daí a pouco um guarda entrou cambaleando e gritando: "Saiam todos os padres". Ouviram-
se risadinhas abafadas e resfôlegos fora da porta. Enfileiramo-nos e fomos saindo debaixo de
pauladas, às carreiras, protegendo nossas cabeças e mais que pudemos com os braços.
Os que caíram, receberam pontapés de botas pesadas e foram cuspidos.
Meia hora depois todos os clérigos foram chamados de novo para fora. Nenhum
se arredou do lugar. Os guardas investiram cela a dentro, vergastando sem discriminação.
Procurei confortar os de perto de mim. Um deles teve alguns dentes quebrados e um
lábio partido. Quando limpava o sangue de sua face ele me disse: "Sou o Arquimandrita
Cristescu".
Tínhamos entrado em contato, fazia anos, quando estive de visita ao patriarca
ortodoxo. Miron Cristescu trabalhava no gabinete dele, e contei-lhe as nossas tribulações.
Ele colocou as mãos nos meus ombros e disse: "Irmão, Cristo virá outra vez: é o que
esperamos" - algo que um homem de Deus deve dizer sempre, mas que raramente diz. Não o
esqueci. Mas, sem barba, como estava, com o rosto raiado de sangue e sujo, estava
irreconhecível.
As horas iam-se passando e nós sentados e tremendo de frio. Miron Cristescu
contou como ele e outros à roda do Patriarca tentaram salvar a Igreja de se tornar um
instrumento do Estado. Pensavam que podiam influir no lado bom da natureza dele. Mas
Gheorghiu-Dej fora sabido na escolha. Justiniano foi enviado a Moscou para uma visita,
onde sua cabeça ficou ainda mais transtornada. Desferiu golpe sobre golpe nos católicos, nos
uniatas e em todos os intransigentes do seu rebanho.
"Aqui estou como todos os outros", disse o arquimandrita. "Enganei-me em fazer uma
tentativa - devia ter resistido desde o início".
"Não deixe que estes pensamentos o entristeçam demais", disse eu.
Levantou para mim seus olhos claros e respondeu: "Irmão Wurmbrand, só conheço
uma tristeza, a de não ser um santo".
Dita de cima de um púlpito teria sido uma bela frase; naquela hórrida cela,
depois de um espancamento feroz como aquele, tais palavras demonstravam a nobreza de
quem as proferia.
Miron estava comigo quando, poucos dias depois, fiz parte de um comboio com destino
as montanhas. Depois de muitas horas, a cidade Transilvana de Gherla, com o seu maior
edifício que era o presídio, foi avistada. Aí foi que recebi a visita de minha esposa, durante minha
permanência de dois meses, em 1956. Aquele lugar fazia-me lembrar outras coisas também. Das
janelas do andar superior do cárcere, que foi construído no reinado da Imperatriz Maria Tereza
no século dezoito, podiam-se ver as velhas forcas, que não se usavam mais, porque o método
comunista de execução é o fuzilamento à altura da nuca. Além das muralhas víamos a cidade
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em sua movimentação. Os prisioneiros contemplavam de lá o panorama e sonhavam. Mas
ao meio-dia ninguém podia suportar: era a hora de os meninos saírem da escola, fazendo
algazarra e rindo, todos a caminho de casa, e cada preso tinha o pensamento na família.
Uns 10.000 presos se amontoavam nas primitivas acomodações feitas para 2.000,
e o regime no presídio era tão severo quanto nos piores dias de campanha de reeducação. No
verão anterior tinha havido um tumulto sério em Gherla. Prisioneiros defenderam-se com
barricada em uma parte lateral em protesto contra o fechamento de postigos por onde entrava
luz e ar. As portas foram despedaçadas por guardas da prisão. Começou um combate em
retirada. A força militar foi chamada e abriu fogo, matando e ferindo muitos presos. Como
castigo o alimento foi reduzido ao nível de inanição e centenas de condenados foram
distribuídos por outros cárceres.
Nós, pastores e padres, logo tomamos o lugar deles, ao lado de milhares de outros
presos políticos colhidos na nova onda de detenções - donos de terras, oficiais do exército, médicos,
proprietários de lojas, artesãos que não quiseram entrar nas cooperativas, fazendeiros que se
opunham às últimas apreensões de terras que o Partido estava planejando. Depois de dois
desastrosos Planos Quinquenais, Dej anunciou um Plano de Dezesseis Anos, que iria até
1975 - "Se houver alguém em liberdade para fazê-lo funcionar", disse-me um preso.
As celas eram uns alojamentos compridos, escuros, repercussivos, cada um contendo
de oitenta a cem homens, mas dispondo só de 50 a 60 camas. Num leito deitavam-se diversos.
Dormir era coisa difícil. Além das costumeiras saídas pela noite inteira de grupos que iam aos baldes
sanitários, os quais ficavam logo a transbordar, tínhamos uma dúzia de habituais
ressonadores: cada qual na sua própria tonalidade; se um parava, outro entrava na roncadeira. Nem
de dia era possível descansar, quando a disciplina era reforçada a chicotadas e com o pisar de botas
de tachões. Os guardas faziam inopinadas "visitas de segurança" às celas, batendo com força
nas barras de ferro das janelas com os seus bastões para se certificarem de que elas não tinham sido
partidas a limadas. Ao mesmo tempo os presos se deitavam de bruços no chão, em fila, para
serem contados. Os guardas pisavam em cima de um à medida que o nome era chamado.
A mais leve transgressão das regras dava lugar a um mínimo de vinte e cinco chicotadas, na
presença de um médico - porque alguns tinham falecido debaixo desse castigo. Raramente havia na
prisão quem não tivesse sido flagelado, e alguns tinham recebido já várias vezes as "vinte e
cinco". Não havia dúvida que as chicotadas doíam mais do que as bastonadas. Os lanhos delas
queimavam como fogo. Era como se as costas estivessem assando em grelha, além do grande
trauma nervoso. Era também de se notar nos guardas, nossos patrões, o efeito brutalizante
daquelas flagelações. Sangue e poder pareciam afetar até os melhores dentre eles como
bebida; e do cárcere levavam para a sociedade, cada dia, o veneno da crueldade.
Havia um banheiro com descarga em cada patamar, e para lá Miron e eu levávamos
todos os dias os baldes com dejetos. Tínhamos de entrar na fila de outros presos que
aguardavam sua vez de despejar os baldes. O arquimandrita era um homem refinado e
culto, mas obrigava-se a fazer aquele trabalho. Certa manhã resvalou no piso escorregadio e um
pouco daquele líquido atingiu a bota de um guarda.
"Cretino!" berrou o homem, dando-lhe com rancor um soco no ombro. "Você vai
acabar no Rozsa Sandor!"
Mais tarde, quando tomávamos nossa papa, ele me perguntou o que significava
aquilo.
"O cemitério", respondi. "Sempre estão a dizer isso - não ligue para eles".
Rozsa Sandor era o cemitério da prisão, suas pedras tumulares cinzentas, cobertas
de capim, podiam ser vistas das janelas. Esse nome era de um homicida que, no século
passado, fora sentenciado a vinte anos, quando ele tinha dezenove. Olhando pelas grades de
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Gherla via num jardim uma mulher com uma criança nos braços. Dia após dia vigiava-os. O
padre foi batízar a garotinha; houve mais adiante a festa de sua primeira comunhão; depois ela
foi para a escola, cresceu e se fez moça. Rozsa Sandor foi vendo tudo isso à medida que o
tempo passava. Ela se tornou a vida dele: resolveu casar-se com ela quando fosse liberto. Por
fim chegou esse dia, saindo ele do cárcere. Foi as pressas pela estrada e aí encontrou um
préstito – Era um casamento. Ela ia recebê-lo naquele aparato todo - imaginou. Correu para ela
e disse: "Não tenho palavras que expressem minha felicidade por recebê-la hoje como esposa".
A moça olhou para Rozsa Sandor, repulsivo e desdentado, e desatou a rir. "Que quer esse pobre
coitado dizer?" Perguntou ela. Depois, tomando pela mão o rapaz que tinha ao lado, disse: "Este é
o meu noivo". Rozsa Sandor, embasbacado, fitou o casal. Num acesso de furor e loucura arrancou
de um trinchante e cravou-o nos dois, matando-os. Foi enforcado pêlos dois homicídios e
sepultado no cemitério da prisão que lhe tomou o nome.
"Você vai acabar no Rozsa Sandor!"
Essa ameaça, que eles bradavam, era um lembrete diário de que estávamos
envelhecendo. Os presos nunca se apercebem da passagem do tempo. Para eles ficam na
mesma idade que tinham quando ingressaram no cárcere; sonham com as jovens esposas e
namoradas que deixara lá fora, e nunca esperam encontrar mulheres atormentadas de
cuidados, gastas, quando forem libertos.
Até o relógio do portão principal de Gherla tinha parado. Nunca andou nos seis anos
que lá passei.
O comandante do presídio era um grosseiro. Nerozinho, de faces avermelhadas, que
não parava de comer. Os presos levados à presença dele, Major Dorabantu, ficavam
admirados quando, no meio de alguma investiva, metia a mão numa gaveta e de lá tirava um
pedaço de salsicha, temperada a alho, ou uma maçã.
Meu primeiro encontro com ele foi típico. Estava eu de pé ouvindo com atenção sua
arenga de ódio, desconexa e embrulhada. Parecia haver só duas coisas que Dorabantu não
odiava: comida e o som de sua voz.
"Então, Wurmbrand!" exclamou, expelindo da boca cheia sobre a mesa uma chuva de
farelo de bolo. "Monge, hein!"
Eu disse que era pastor. "Pastores, padres, monges! Tudo para mim é a mesma
coisa. Moendo a cara dos pobres para afogar os seus ninhos, eu sei!" Agitava os braços
comicamente a contar histórias de sua infância desgraçada. Guardava as ovelhas do pai perto
de um dos mais ricos mosteiros da Roménia, quando elas invadiam o terreno da Igreja, os
monges surravam-no brutalmente.
"Já viu um padre detonar uma espingarda de dois canos numa criança faminta,
Wurmbrand? Que beleza de santidade!"
Dorabantu também se queixava de ter sido explorado como operário de uma fábrica,
mais adiante em sua vida. Agora estava aproveitando bem a oportunidade de retribuir a
padres e capitalistas.
Havia em minha cela alguns indivíduos indomáveis, homicidas e ladrões, que de
presos políticos só tinham o nome por haverem matado um comunista, ou porque o roubo
era algo havido por sabotagem econômica. Outros eram criminosos de guerra, em prisão
perpétua por haverem massacrado russos e judeus. Eram homens revoltados, e todas as
minhas tentativas de lhes oferecer conforto religioso eram repelidas aos berros. Os que
haviam matado judeus eram de modo particular implacáveis contra mim, porque eu sou de
descendência judaica. Nunca ocultei este fato e muitas vezes quando fui inquirido sobre
isto, expressei o amor natural que dedico à minha raça, embora exercendo o direito de
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cada pessoa escolher sua fé. Escolhi outra fé, diferente daquela da maioria do meu povo.
Quando comecei um dia a falar calmamente a um homem num canto, outros formaram
um círculo ameaçador ao nosso redor.
"Já lhe dissemos que parasse de falar!" Rosnou o censor. Levantei-me e alguém me
puxou. Outro estendeu a perna à minha frente e bati com o rosto no chão. Recebi um violento
pontapé nas costelas. Mas, caindo a matilha em cima de mim, ouviu-se um brado de
advertência.
Um guarda, olhando pela fresta de espia, vira a luta e vinha em socorro. O grupo
dispersou-se. Quando a porta da cela se abriu, todos estavam em seus leitos.
"Wurmbrand!" O comandante, de ronda nos corredores, ouviu a história. O
guarda tinha-me reconhecido como o mais alto da cela, mas na penumbra não pode
identificar os agressores.
- Wurmbrand, quem foram eles?
Cuidando de um lábio ferido, disse não poder responder.
- Por que não?
- Como cristão que sou, amo e perdoo meus inimigos. Não os denuncio.
- Então você é um idiota! falou brusco Dorabantu.
- O senhor tem lá suas razões, disse eu. Todo aquele que não é cristão de todo o
seu coração é um idiota.
- Você está me chamando de idiota? Trovejou o comandante.
- Não disse isto - quis dizer que eu não sou tão bom cristão quanto devia ser.
Dorabantu deu uma palmada na testa com a mão. "Leve-o daí. Trinta chicotadas!"
disse.
Saiu bamboleando a rezingar. "Que monges malucos!"
Quando voltei, os guardas ainda estavam interrogando os presos. Uma vez que
nenhuma informação foi colhida, ninguém foi castigado. Mas depois disso houve poucas
intervenções quando eu procurava pregar.
As vezes as brigas no cárcere eram cômicas, se bem que os envolvidos nelas
raramente pensassem assim. Em várias e diferentes celas, nunca com menos de sessenta
homens, tendo sempre por janelas duas estreitas fendas barradas. Deviam elas ficar
abertas, a deixar-nos tiritantes em nossas camas, ou deviam ser fechadas, ficando nós
abafados e sentido maus cheiros, resultando levantar-nos de manhã com dor de cabeça. O
tópico foi debatido durante horas, dia após dia, como se estivéssemos no Parlamento.
Havia dois partidos. Os afastados das janelas diziam: "Ar fresco nunca fez mal a
ninguém". Os de perto replicavam: "Milhares cada ano morrem de pneumonia".
"Se poderosos interesses materiais ditarem que duas vezes dois devem ser outra
coisa e não quatro, então que seja", é um axioma de Lenin. Vimos isso provado no
cárcere. Os guardas entediavam-se com os nossos exercícios. "Está na hora - todo o
mundo para dentro!" exclamavam. Nós protestávamos: "Ainda não faz quinze minutos".
Ambas as partes acreditavam-se com razão; o interesse próprio era que ditava o nosso
senso de tempo.
Os criminosos comuns depressa se adaptavam, sentindo-se quase tão à vontade na
cadeia quanto fora. Tinham a sua rotina, sua ordem de precedência, sua gíria própria. Era
de admirar a astúcia deles em contrabandear sobejos de pão. Chamavam os guardas por
apelidos e procuravam filar cigarros pelas frestas de espia na porta. Obtinham as posições

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de confiança, deixando o trabalho de sujeira aos políticos - e os mais sujos aos padres e
cristãos praticantes.
Devido à superlotação, ficava eu imprensado num leito entre outros dois que
certo dia altercavam como aves de rapina, na época de muda, fechadas num mesmo viveiro.
Alto, o macileno ex-Sargento Grigore tinha metralhado judeus às centenas, em
obediência a ordens recebidas. Seu inimigo Vasile, "sabotador econômico", fez Grigore
bode expiatório de todos os seus erros. Vasile, de baixa estatura e magricela, não tardou a
descobrir o ponto fraco do seu adversário. O rosto contorceu-se com o ar de triunfo ao
expectorar a palavra "Assassino!" Grigore encolheu-se, nada podendo responder Eu disse
a Vasile: "Por que diz isto? Ele está velho e doente, e não sabemos onde vai passar a
eternidade: se é com Cristo, você está abusando de um futuro cidadão do Céu; e se é no
inferno, por que acrescentar maldições ao seu sofrimento?"
O ladrão olhou surpreso. "Não sabe quantos russos e judeus aquele renegado
matou?"
"Isso aconteceu durante uma guerra horrível há vinte anos", repliquei-lhe, "e ele
pagou com quinze anos de fome, surras e cárcere. Você me chamaria hoje de palhaço por
haver brincado com rodas de carro no meio da sala, quando eu tinha três anos? Ou
analfabeto, porque aos quatro anos não sabia ler? Aquele tempo passou".
Vasile aborreceu-se. No dia seguinte um grupo começou perto de mim a
conversar sobre o tratamento que dariam aos russos, se lhes chegasse uma oportunidade.
"Forca ainda era bom demais para eles", guinchou Vasile. "Deviam ser esfolados
vivos..." Por fim, não suportando mais, objetei que os russos nem qualquer outra gente
deviam ser tratados dessa maneira.
"Mas ontem", protestou Vasile, "você defendeu um homem que matou centenas de
russos, e agora diz que matar russo é um mal!"
Grigore sentia-se profundamente miserável ao rememorar seus crimes, e
perguntou-me: "Faço expiação se sofro assim... sendo-me imposto o sofrimento à força?"
"Sim - a Bíblia diz que aquele que sofreu na carne extinguiu o pecado". Contei-lhe o
caso do pobre Lázaro que, sofrendo, foi para o céu. "Se você crer em Cristo, será salvo",
disse eu.
"O povo pensa de maneira diferente", continuou ele. "Veja Eichmann, o homem
que em Israel querem enforcar".
"Não há prova de que ele consentiu nisso - mas em todo caso não julgo que
alguém deva ser acusado de crimes cometidos há tanto tempo. Ele pode não ser o mesmo
homem. Sei que não sou", eu disse. "E estou certo de que muitos judeus concordariam"
(Só depois de anos ouvi que Martin Buber, o grande pensador judeu, opôs-se à sentença de
Eichmann).
Grigore disse: "Eu não sou o mesmo, porque estou arrependido do que fiz; mas
outros podem estar dispostos a continuar fazendo".
"Ninguém pode ser castigado pelo que venha a fazer de mal no futuro. Todos temos
qualquer coisa de perverso. Alguns dos piores homens têm também suas grandes virtudes. E
você está neste caso, Grigore".
Ouvindo isso, animou-se um pouco.
Na cela não faltavam gargalhadas. Alegria, diz-se nos Atos dos Apóstolos, é um testemunho
da existência de Deus; e sem tal crença não se explica por que havia gozo no cárcere.

120
Alguns riam dos seus sofrimentos. O Major Braileanu era um deles: baixo, vivo, ex-
oficial, com uma guedelha de criança, levou uma notícia nova à cela. Ia haver outra conferência de
cúpula naquela primavera de 1959, do Ministro Soviético do Exterior Gromyko com delegados
ocidentais. Dizia-se que a reunião seria no dia 10 de maio. Os presos adotaram então nova
forma de saudação - erguiam todos os dez dedos, como indicação do dia esperado da liberdade.
No dia conferência os guardas abriram, de fato, a cela e chamaram quatro homens. O
Major Braileanu estava entre eles. Seriam os primeiros a ser soltos? Olhamos para eles com inveja.
Mas logo ouvimos gritos agudos de agonia que vinham do pequeno recesso na extremidade do
corredor, onde infligiam açoites. Era impossível abafar o ruído. Três homens fora açoitados; mas
ao chegar a vez do quarto, não soltou um gemido sequer debaixo das costumeiras vinte e cinco
chicotadas. Braileanu acompanhou os demais de volta à cela, pálido e sem poder falar. Ergueu-se de
súbito. "Senhores", disse, "apresento-lhes nossa nova saudação". Levantou dois dedos da
mão direita e cinco da esquerda, como sinal de vinte e cinco.
Histórias e adivinhações apareciam com frequência. Todos davam sua contribuição.
Houve uma espécie de disparate que nos fez rir mais do que outra qualquer.
"Que é que têm três cores, trepa em árvore e canta tará-bum-chá-chá?" perguntou
Florescu, ladrão meio aciganado. Ninguém soube responder - "Arenque" - "Arenque não
tem três cores?" - "Posso pintar um assim". - "Nem trepa em árvores". -"Trepa, sim, se eu o
prender num galho". - "Não canta tará-bum-chá-chá!" - "Eu só disse isto porque sabia que
vocês não iam adivinhar".
Gastão, pastor unitário de rosto delgado, óculos espessos, apresentou outra
adivinhação: "Um cavalheiro viaja de trem, sua mulher chama-se Eva e moram numa casa
vermelha: qual é o seu nome?" Todos ficaram embaraçados - se um homem viaja de trem e
vive com a esposa Eva numa casa vermelha, como é que isso pode ajudar a lhe descobrir o
nome?" "É fácil", disse Gastão, "chama-se Carlos". "Mas como você sabe?" "Há anos eu
o conheço, é o meu melhor amigo".
O Arquimandrita Miron contou o que jurava ser uma história verídica, acerca do
comandante: deambulando ao lado de uma fileira de condenados numa parada, fazia a
cada um a mesma pergunta: "Qual foi o seu crime?"
- Não fiz nada, senhor, e peguei dez anos. Dorabantu passou adiante: "E qual foi o
seu crime?"
- Nada, senhor, e peguei vinte anos.
- Canalha mentiroso, explodiu Dorabantu indignado. Por nada ninguém na
República Popular pega mais de dez anos!
Os pequenos ladrões e batedores de carteira eram os que contavam as melhores
histórias. Viviam escandalosamente de seu engenho e sagacidade. Florescu afirmou haver
roubado um joalheiro na Rua Carol, em Bucareste, rua em que havia diversas joalherias.
Contou-nos a história do seguinte modo:
O Sr. Hershcovici, o mais cortês dos joalheiros, recebeu em sua loja um elegante
casal de jovens. "Bom dia", disse o cavalheiro, que naturalmente era ele, Florescu. "Esta é a
minha noiva, a moça mais encantadora de Bucareste!" E uma também das mais ricas,
segundo foram tagarelando. "Vimos escolher os anéis - de diamantes, é claro... Oh, não,
estes são muito pequenos". Dos anéis passaram a um relógio com mostrador adornado de
jóias, para a mãe da moça, um estojo de toucador, feito de couro de crocodilo, para o pai, e
então a jovem interveio, "Oh, querido, não nos devemos esquecer do bispo. Ele é meu tio, e
por isso não vai aceitar pagamento pela cerimónia, e você conhece a nossa tradição:
cerimónia que não é paga não é aceita no Céu". "É mesmo, é mesmo, mas o que é que se
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dá a um bispo?" Nesse ponto deram com os olhos numa vitrina onde estava um jogo completo de
paramentos episcopais dourados. "Eis ali o que é!" exclamou Florescu. "Mas, querido", disse a
moça, "não sabemos se fica bem ajustado nele". Florescu olhou para o joalheiro de alto a
baixo. "Eles dois têm a mesma compleição física!" E Hershcovici, na esperança de vender
os paramentos custosos, deixou-se vestir de uma batina dourada. Passaram-lhe um cinto à
cintura e na cabeça arrumaram uma mitra cintilante. "Fica perfeitamente bem!" disse
Florescu. "Agora segure este cetro!"
Feito isso, o casal apanhou as jóias, meteu-as no estojo de crocodilo, e saiu correndo da
loja. Hershcovici ficou imóvel com o choque; depois foi saindo e gritando: "Ladrões!
Peguem os ladrões! Acudam! "Os negociantes judeus correram à porta de suas lojas viram
Hershcovici em disparada por uma rua deserta, revestido das insígnias de um metropolita
ortodoxo. "Hershcovici enlouqueceu!" bradaram. Três deles agarraram-no, enquanto ele se
debatia e protestava: "Não, não! Por que fazem isto? Os ladrões escapuliram-se!" E foi mesmo o
que aconteceu, tomando eles um lado da rua, para nunca serem pegos.
Quando as gargalhadas pararam, o Pastor Castão disse: "Mas no fim você acabou
sendo preso, Florescu". O ladrão não quis discutir o que fora este episódio.
"Bem, que tal o senhor contar-nos a razão de estar aqui, pastor?" disse ele.
"Pois não!" retorquiu Gastão. É também uma história engraçada. Recebi a sentença
de sete anos por um sermão de Natal sobre a fuga da Sagrada Família para o Egito".
Gastão foi denunciado por um membro de sua congregação. No seu julgamento foi-
lhe dito que, em deplorar a tentativa de Herodes para matar o menino Jesus no massacre dos
inocentes, Gastão estava de fato atacando a campanha comunista contra a religião; enquanto que
as referências feitas ao Egito revelaram sua esperança de que Nasser ingressasse no campo
capitalista.
O Pastor Gastão perguntou depois a um inquiridor o que ele de fato havia feito para
transtornar o Partido "Sempre tomei o lado dos trabalhadores", protestou. "Inaugurei uma
escola e uma cooperativa. Fiz minha congregação chegar ao dobro".
O oficial riu. "A espécie de clérigo que nós queremos é o homem da paróquia próxima à
sua - ébrio devasso, cuja igreja sempre está vazia".
Gastão falou-me algumas vezes de sua miserável infância. Sempre estava com fome e,
quando nada tinha para comer, furtava. "Certa vez assaltei um galinheiro", disse. "Fizeram-me andar
pelo meio da vila com uma legenda ao pescoço - "Ladrão". Cresceu com "vontade de virar o
mundo de pernas para o ar".
Estudou vários sistemas de política e filosofia, e juntou-se à Igreja Unitária. Indo
a polícia no seu encalço, encontraram entre as suas centenas de livros um exemplar da
obra "Psicologia Individual", deAdler.
"Há!" exclamou o detetive. "É um individualista!" e levou o livro como prova.
Numa leva de novos presos fui surpreendido ao ver o Professor Popp. Parecia
doente, movendo-se como um velho. Não nos tínhamos visto desde a anistia de 1956, não
tendo tido resposta as cartas que lhe escrevi. Naquela noite explicou o motivo.
Como tantos outros presos que foram soltos, ele se entregara à caça de prazeres.
"Sentia-me definhar", disse. "Temia que a vida se tivesse evaporado. Precisava mostrar que ainda
podia gozar. Esbanjei dinheiro, bebi demais, deixei minha esposa por uma mulher mais
jovem.

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"Depois me sobreveio tristeza. Não estava esquecido dos meus votos de cristão.
Queria ver o senhor, mas estava muito longe. Contei tudo a outro pastor, censurando o
Comunismo por estar destruindo o país. Ele ouviu - e depois me denunciou".
Popp teve nova sentença de doze anos. Seu primeiro período de reclusão pusera
em relevo toda a sua força e generosidade. Fora como uma ave marinha que levanta voo alto,
impelida pelo vento, e cai quando o vento cessa. Sua vontade estava agora enfraquecida.
Procurei trazê-lo de volta a Deus, mas a vida lhe parecia vazia e sem sentido.
Disse que logo depois da sentença, fora informado acerca do seu "sepultamento cívico".
Era isto uma novidade na República Popular. Quando um contra-revolucionário entrava no
cárcere, seus colegas, amigos e a família eram reunidos por um funcionário do Partido que lhes
dizia: "Camaradas, este homem morreu para sempre e para todos. Estamos aqui para sepultar sua
memória". Uma a uma as ofensas dele ao Estado tinham de ser denunciadas pêlos "pranteadores".
A filha viúva de Popp falou pêlos demais. Tivesse ele recuado, podia ter perdido seu emprego,
sendo ela mãe de duas crianças.
Popp foi posto a trabalhar comigo no segundo dia. Cumpria-nos limpar o piso da sela, que
era grande, esfregando-o de um canto ao outro. Um preso, escolhido pêlos guardas como censor
da cela, veio caminhando quando já tínhamos quase acabado o serviço e tropeçou no balde de
água suja, dizendo: "Agora limpem de novo!" Por fim, um guarda veio inspecionar. Agarrou o
censor, baixou-lhe a cabeça para o chão mostrando um bocado de lama que ele próprio trouxera
nas botas. "Imundo!" berrou. Esfregamos durante outra hora, acompanhados de chutes e insultos do
censor. Não há pior opressor do que um oprimido.
Esta experiência deixou Popp tremendo de exaustão. Para distraí-lo, apresentei-o depois
da refeição ao Pastor Castão. O rosto deste ficou com um expressão de choque. Popp
simplesmente voltou as costas e fechou os olhos.
Passaram-se os dias e o professor fechava-se mais dentro de si mesmo. Precisávamos
insistir para ele comer e ajudá-lo a aprontar-se cada manhã. Não mais sorria, nem chorava,
nem participava da vida na cela. Mas certa manhã, espicaçado por uma observação escarninha
do censor, agarrou-o pela garganta, apertando-o como um louco, até que dois guardas, com
bordoadas, os apartaram. Foi levado consciente para o hospital ao lado. No dia seguinte
soubemos de sua morte.
A tragédia encheu a cela de tristeza. Enquanto os outros rezavam pela alma de
Popp, segundo o costume dos ortodoxos, Castão jazia silencioso em seu leito, e quando
lhe falei da vida eterna levantou-se e se foi.
Naquela noite, na cela, a conversa versou sobre a vida após a morte. Perguntaram a
Castão o que pensava do assunto. "Os unitários progressistas não crêem em sobrevivência
sobrenatural", disse.
- Mas não estamos falando a unitários progressistas, repliquei. Estamos falando
com você. Tenhamos a coragem de ser autênticos, de ser o que somos. Acabemos com essa
coisa de "nós católicos, nós protestantes, nós romenos..."
- Falando por mim, não creio nisso.
- Se fala por si mesmo, intervim, é este o primeiro passo que leva à fé, visto como
a personalidade é o maior dom de Deus ao homem, a única coisa que permanece ao passo
que o corpo vai mudando. Os átomos de oxigénio e hidrogénio no meu corpo são os
mesmos do seu. A temperatura do meu corpo pode ser medida pelo mesmo instrumento
que mede a sua. Todas as energias do corpo - químicas, elétricas - são iguais em todas as
pessoas. Porém os meus pensamentos, meus sentimentos e minha vontade, estes são meus e
de mais ninguém. A energia física é como um fragmento de atiçador de fogo, que não
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tem marca em si. A energia espiritual é qual uma moeda que leva gravada a efígie de um
rei. Por que então deve tomar parte na sorte do corpo?
Florescu, que tinha puxado um tamborete, disse, num gesto obsceno: "Creio eu que
vejo, saboreio e apalpo. Não passamos de matéria, como esta coisa de madeira em que
estou sentado, e, morrendo, a gente fica nisso".
Avancei e dei um pontapé no tamborete, fazendo Florescu resvalar de debaixo dele,
estendendo-se de cheio no chão. Levantou-se furioso e avançou para mim, mas os
outros o detiveram: "Que está pensando você?" Rosnou.
Repliquei-lhe manso: "Ora, você disse ser matéria igual ao tamborete. Não ouvi o
tamborete queixar-se!"
Alguns riram, inclusive Gastão.
"Sinto muito, Florescu", continuei. "Eu quis apenas provar que, visto como a matéria
não reage com amor ou ódio, é no fim de tudo diferente de nós".
Florescu ficou zangado por algum tempo, depois voltou a intervir:
- Eu podia crer se os mortos voltassem para conversar conosco.
A discussão do tamborete atraiu outros ouvintes, e comecei a pregar ardorosamente
sobre a vida após a morte. Não constituía assunto acadêmico, mas um tópico de interesse
ardente e imediato. Pessoas morriam todos os dias em Gherla.
"Se Deus nos tivesse feito apenas para esta vida", disse eu, "ter-nos-ia dado primeiro
com a idade a respectiva sabedoria, depois com a juventude o seu vigor. Parece absurdo
reunir conhecimento e compreensão somente para levá-los à sepultura. Lutero compara
nossa vida na terra à vida de uma criança por nascer: ele diz que se o embrião pudesse
raciocinar no ventre materno ficaria sem saber a razão de lhe crescerem mãos e pés, e por
certo chegaria à conclusão de que deve haver um outro mundo por vir em que terá de
brincar, correr e trabalhar. Assim como o embrião se prepara com vistas a um estado futuro,
assim somos nós".
Eu me esqueci dos guardas e ergui a voz a pregar aos presos nos leitos que se
sobrepunham até ao teto. Olhos me fitavam na luz ténue da lâmpada que acima de nós
parecia tornar o silêncio ainda mais lúgubre.
Eu disse: "Suponham vocês que eu procuro convencê-los de que uma garrafa de
litro pode conter dez litros de leite. Vocês dirão que estou maluco. No entanto, na minha
cabeça cabem pensamentos de uma ocorrência como o Dilúvio, que sucedeu há
milénios, de minha esposa e meu filho na sala onde os deixei, de Deus e do demônio.
Como é que os estreitos limites de minha cabeça abarcam os fatos cotidianos da vida, o
infinito e o eterno? O ilimitável deve ser contido em algo ilimitável: este é o espírito. Se o
espírito de vocês, sem grilhões e sem impedimento algum, pode ir a toda parte, no tempo
e no espaço, crêem vocês que ele participa da sorte desta concha que é nosso corpo?"
Enquanto eu falava sobre estas coisas o silêncio era maior do que em qualquer
igreja. Ninguém bocejava, nem se mexia, nem os pensamentos vagueavam distantes. Os
presos, em roupas sujas, faces encavadas e olhos esbugalhados de fome, receberam o
pensamento da sobrevivência após a morte como a terra seca acolhe a chuva.
No dia seguinte, antes da alvorada, acordei e vi desocupado o leito de Gastão.
Depois vi o perfil de seu frágil corpo à janela. Envolvi meus ombros num lençol e fui para
junto dele. Olhávamos para baixo através das grades. A luz era baça. A garoa caía no
pátio, mas podíamos divisar uma fileira de esquifes pretos ao lado do portão principal.
Continham cadáveres de homens que morreram nas últimas vinte e quatro horas: um seria

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Popp. Aquilo era uma cena de todos os dias em Gherla, e eu fiquei a imaginar por que Gastão
escolhera aquele para se levantar e olhar. Procurei fazê-lo voltar à cama, mas nem se moveu.
Sob as nossas vistas um guarda atravessou o pátio e levantou as tampas dos esquifes,
deixando expostos os cadáveres. Atrás dele seguiu um vulto corpulento com um espeto de
aço na mão. Enterrou-o nos cadáveres, um após o outro.
Os guardas com aquilo certificavam-se de que todos estavam mortos e que
nenhum suposto fugitivo do cárcere se tinha colocado no lugar de um cadáver. Castão
tremia. Envolvi-o com o lençol, mas ele continuou a olhar enquanto os esquifes eram
cobertos e postos no caminhão que os levaria ao cemitério de Rozsa Sandor.
Dias depois Gastão ficou meditativo. Fosse o que fosse que ocupava sua mente não
quis revelar-nos. Repelia todas as minhas tentativas de penetrar na sua angústia. Sempre à
noite ouvia os outros na permuta de histórias, mas só uma vez contribuiu com uma.
Os presos trocaram relances de vista; ele tinha estado silencioso e mal-humorado
por tanto tempo que eles não sabiam o que ia sair.
Por fim falou: "Eu estava sentado num restaurante pouco antes de minha captura.
Pensei em levantar meu ânimo com uma boa refeição. Assim, pendurei meu paletó num
canto da mesa e pedi tudo de que gostava. Outro freguês perto olhou para mim preocupado
e se levantou para falar, mas com a mão fiz sinal para que se afastasse. "Por favor", disse
eu, "todos temos nossas tribulações e gostaria de jantar em paz". A refeição foi boa. Acendi um
charuto e pensei em pedir desculpas por ter sido incivil; pedi perdão ao cavalheiro, dizendo
que talvez agora ele quisesse me referir a dificuldade. "É tarde demais", respondeu, "o
fogareiro fez um rombo no seu paletó".
A história de Gastão mereceu algum riso, mas ele voltou para o seu leito e ficou
deitado no escuro. Durante certo período passou horas dizendo-nos como honrava a
Cristo como o maior mestre, porém, não como Deus, e o que os unitários aceitavam.
Uma nova apreciação das doutrinas deles não deixou muito a que a gente se apegasse.
Não se preocupavam muito com a vida eterna, disse ele. Depois voltou a falar no
Professor Popp. Que prova havia de que algo restava depois da cena horrível que
tínhamos presenciado naquela madrugada? A criatura humana, do sexo masculino, dizia
ele, precisava de quatro coisas para sobreviver: alimento, calor, sono e uma companheira.
"A última pode ser dispensada", prosseguiu. "Minha mulher foi viver com outro. Nossos
dois filhos estão num estabelecimento do governo".
"Você mesmo não crê nisso", observei. "Nossa vida aqui depende de um mínimo
dessas coisas, e todavia você ouve risos e gente a cantar. Os corpos deles não apresentam
nenhum motivo de canto. É outra coisa neles que canta. Você acredita na alma, não é?
Isto que os antigos egípcios chamavam Kaa, os gregos psyche, os hebreus nexama? Por
que aliás você se preocupa com a criação dos seus filhos? Se tudo vai acabar para eles
dentro de poucas décadas, para que nos serve a religião, a moral e a decência?"
"É tarde demais", disse ele. "Não posso mudar agora. Minha vida vem-se
consumindo a fogo lento, como o meu paletó no restaurante, e pessoas têm procurado
fazer-me advertências; mas agora já vou muito longe. Nada tenho que sirva de alvo à vida, e
a única coisa que me impede o suicídio é a morte me assustar. Outro dia guardei um
fragmento de vidro - tencionava cortar os pulsos, mas não tive coragem".
Eu disse: "O suicídio nada prova, senão que a alma é forte e bastante independente
para matar o corpo, levado por suas próprias razões. Mesmo que você estivesse livre e
tivesse tudo quanto quisesse, podia sentir da mesma forma. O caso de sua esposa e filhos
é terrível: mas percebo haver outra coisa que o atribula, e que não tem dito a ninguém".

125
Gastão ficou em silêncio.
Continuei: "Conheci um preso que intencionalmente passava fome para dar o seu
pão a um filho que estava encarcerado com ele, até que morreu de desnutrição. Isso mostra a
força da alma. Um homem como Kreuger, o milionário sueco, que tinha tudo quanto o
corpo podia precisar, suicidou-se, deixando um bilhete em que falava de "melancolia". Ele
possuía algo mais do que o corpo, a alma de que não tinha cuidado. Mas você tem
recursos íntimos, tem o Cristianismo para ajudá-lo. Fale com Jesus: Ele lhe dará conforto
e forças".
Gastão suspirou no escuro: "Você fala como se ele estivesse aqui vivo conosco".
"É certo que ele está vivo", repliquei. "Nem na ressurreição você crê? Amanhã prová-
la-ei a você!".
"Como você é insistente!" exclamou. "É pior do que um comunista!"
Na noite seguinte, enquanto os presos conversavam, lembrei-lhes que a Páscoa
estava próxima - minha segunda em Gherla.
"Se tivéssemos alguns ovos duros podíamos pintá-los de vermelho e quebrá-los
juntos, seguindo costume ortodoxo", disse eu. Estirei a mão como a oferecer um ovo de
Páscoa, e continuei: "Cristo ressuscitou!" O velho Vasilescu, um dos fazendeiros, bateu no
meu punho com o seu e exclamou: "Ele ressuscitou de verdade!" Um coro de vozes ecoou a
resposta tradicional.
"E estranhável!" observei, voltando-me para os demais. "Cristo com certeza
morreu na Cruz? Que provas vocês tem de que ele ressurgiu?"
Fez-se silêncio. Vasilescu torcia o grosso bigode. "Sou um simples fazendeiro, mas
creio nisso porque meu pai e minha mãe, meu avô e todos os nossos padres e mestres
diziam assim. Creio nisso porque vejo a natureza ressuscitar todos os anos. Quando a
neve cobre a terra, nem se acredita que os campos darão safra na primavera. No entanto
as árvores rebentam folhas, o ar se aquece e o mato reverdece. Se o mundo pode
revivescer, Cristo também pode.
"Boa resposta", disse Miron.
"Mas no mundo em que cada afirmação cristã é contestada, essa não basta",
interveio Gastão.
"Precisamos das provas mas fortes, concordo", disse eu, "e elas existem.
Mommsen, o grande historiador do Império Romano, chama a Ressurreição o fato da
história mais bem provado. Você crê que os historiadores clássicos fossem em grande
parte verazes?"
Ninguém discutiu.
"Comumente eram cortesãos, bajuladores dos reis, homens que elogiavam por amor
ao lucro ou para agradar a protetores poderosos. Quanto mais devemos acreditar em
Paulo, Pedro, Mateus, André, apóstolos que morreram mártires pela difusão da
verdade!"
Perguntei ao Major Braileanu: "Quando o senhor servia em conselhos de guerra,
levava em consideração o caráter das testemunhas tanto quanto as suas palavras?"
"Naturalmente", replicou. "Havendo provas em conflito, isso era de toda a importância".
"Então, nesse fundamento, devemos dar crédito aos Apóstolos, visto como
passaram o tempo fazendo e pregando o bem".
"São os milagres, como o da alimentação dos cinco mil com cinco peixes, que
pedem demais de minha fé, disse o major.
126
"Que é um milagre?", interpelei-o "Missionários da África dizem que a princípio eles
são recebidos como operadores de milagres; o primitivo membro da tribo espanta-se em
ver riscar um fósforo. Pearl Buck dizia às mulheres, numa parte remota da China, que em seu
país carros se moviam sem serem puxados a cavalos. "Que mentira!" murmuravam elas.
Milagre é então simplesmente algo que uma criatura superior é capaz de fazer, e Jesus era
um homem de poderes excepcionais".
Gastão objetou: "Um homem primitivo podia aceitar isso. Mas para um racionalista,
é difícil".
"É racional crer que Cristo se levantou dos mortos; do contrário temos de aceitar
o impossível - que a igreja, que vem há 2.000 anos sobrevivendo a assaltos externos e
corrupções internas, assenta em mentira. Considere-se somente que Jesus em sua vida não
tivesse organizado igreja nenhuma, nem escrito livro algum. Dispunha de um pequeno grupo
de pobres discípulos, sendo que até um deles o traiu por dinheiro, enquanto os outros fugiram
ou o negaram na hora da prova. Morreu na Cruz, exclamando: "Deus meu, Deus meu, por
que me desamparastes?" Seu túmulo foi fechado com uma enorme pedra".
- Começo nada promissor, disse Braileanu.
- Então como explica que deu lugar a uma religião universal?
- Os discípulos reuniram-se outra vez, disse Gastão hesitante.
- Mas que foi que lhes deu o poder de pregar e morrer por sua fé?
- Venceram o medo com o passar do tempo, suponho.
- Sim, eles dizem como o dominaram: ao terceiro dia Cristo apareceu em pessoa e lhes
deu coragem. Pedro, que se acovardara diante de uma empregada, ergueu-se em Jerusalém
e declarou que ele e seus irmãos viram Jesus e com ele falaram; ressurgia em verdade.
Pedro afirmou que podiam matá-lo, antes que ele voltasse a negá-lo. E foi o que os
romanos fizeram.
"Seria racional crer", indaguei, "que Pedro e os discípulos se deixassem crucificar
por causa de uma mentira? Pedro proferiu seu primeiro sermão sobre a Ressurreição a uns
400 metros do túmulo vazio. Sabia que os fatos não podiam ser contraditados, e nenhum
dos inimigos de Cristo se atreveu a tanto".
"Por que Saulo de Tarso se converteu com tanta facilidade pela visão que teve de
Cristo a repreendê-lo, na estrada de Damasco? Saulo era o flagelo do Cristianismo", disse
eu.
- Deve ter sido uma alucinação auditiva e visual, disse Braileanu.
- Paulo conhecia estas coisas. Uma aparição não constitui argumento para um
experimentado como ele. Entregou-se tão rápida e completamente porque, como
membro do Sinédrio, conhecia o grande segredo - o túmulo estava vazio!
O Arquimandrita Miron sentara-se a costurar um remendo em suas calças, enquanto
conversávamos. Ergueu seus olhos de intensa luminosidade para Gastão e disse: "Anos
atrás recebi um postal de meu irmão em Nova York, que dizia ter estado no alto do Empire
State Building. Para subir lá não investigou primeiro as condições dos alicerces, Pastor
Gastão. O fato de estar lá há quarenta anos é prova de que as suas fundações são boas. O
mesmo se dá com a Igreja, que se tem alicerçado há 2.000 anos na verdade".
Nossos argumentos produziram efeito em Gastão. Seu sofrimento foi mitigado e sua
fé aprofundou-se. O desejo de suicídio desvaneceu-se com o passar das semanas; mas
ainda parecia carregar um fardo de sentimento de culpa.

127
O verão trouxe nova afluência de prisioneiros. Fomos transferidos para diferentes
celas, pelo que o perdi de vista.
Passaram-se meses, pregando eu e trabalhando numa dúzia de celas em Gherla. Várias
vezes fui castigado, e foi por causa de uma surra que me avistei outra vez com Gastão.
Jogávamos xadrez na cela um dia com figuras feitas de pedaços de pão, quando
Dorabantu, fazendo ronda nos corredores, entrou de repente: "Não quero jogo aqui!" berrou.
Fiz ver que xadrez era um jogo de prova de habilidade, não de azar.
O comandante arfando o peito, protestou: "Irra, como é ridículo! Habilidade também é
negócio de azar!"
Satisfeito com esta resposta, lá se foi todo empertigado. Quando saiu, os presos
rebentaram a rir, arremedando a voz dele. A porta escancarou-se de novo. Dorabantu tinha
ficado à escuta.
"Wurmbrand - saia!" Outros receberam ordem de sair comigo.
"Desta vez vocês vão rir do outro lado da cara", berrou o comandante.
Recebemos cada um vinte e cinco vergastadas e depois fomos levados a uma cela
isolada. Lá, sozinho no leito, deitado de bruços, encontrei Gastão. Também ele fora surrado. Suas
costas eram uma porção de feridas ensanguentadas. Procuramos amenizar-lhe as dores com
aplicações de uma camisa ensopada em água, e quando o pior havia passado, catei nas
feridas em carne viva taliscas de madeira. O corpo estremecia como se estivesse febril. A
princípio não podia falar muito, mas aos poucos, em frases partidas, explicou ter sido castigado
por estar pregando. Um preso o delatara.
Disse-me: "Preciso dizer-lhe uma coisa..."
- Você não deve falar.
- Agora ou nunca mais. É sobre o Professor Popp... e o pastor que o traiu...
Parou; seus lábios tremiam.
- Você não precisa contar-me, disse-lhe.
- Não pude suportar a angústia! Tenho sofrido. Quando ele morreu...
Começou a soluçar. Oramos juntos. Disse não poder nunca perdoar a si mesmo.
- O professor não perdoou; como outro pode? Perguntou.
- Naturalmente pode, até Popp, se soubesse tudo, eu disse. Deixe-me contar de um
homem que estava muito pior do que você. Isso nos ajudará a passar a noite. Foi o
assassino da família de minha mulher. Ela o perdoou e ele se tornou um dos nossos
amigos mais íntimos. Só existem dois homens a quem minha mulher beija - eu, seu
marido, e o assassino de sua família. E contei a história a Gastão.
Quando a Roménia entrou na guerra ao lado dos alemães, começou um movimento
popular de violências contra os judeus, em que muitos mimares foram mortos ou
deportados. Somente em lasi 11.000 foram massacrados num dia. Minha mulher, que é
protestante comigo, é também judia de origem. Morávamos em Bucareste, de onde os judeus
não foram deportados, mas os pais dela, um dos irmãos, três irmãs e outros parentes que
moravam em Bucovina foram levados a Transmistria, uma província agreste da fronteira que
os romenos tinham tomado à Rússia. Os judeus que não foram assassinados no final dessa
viagem, foram deixados a morrer de fome, e foi aí que a família de Sabina morreu.
Tive que dar essa notícia. Ela, recobrando o equilíbrio, disse: "Não chorarei. Você
tem direito a uma mulher contente, e Mihai a uma mãe alegre, e nossa igreja a uma serva

128
corajosa". Se ela verteu lágrimas a sós não sei, mas daquele dia em diante não vi mais Sabina
chorar.
Algum tempo depois nosso senhorio, um bom cristão, contou-me com tristeza de
um cidadão que estava em sua casa, de licença do "front". "Eu o conhecia antes da guerra",
disse, "mas está de todo mudado. Tornou-se um indivíduo brutal, que gosta de gabar-se de se
haver alistado como voluntário para exterminar judeus na Transmistria e como matou
centenas com suas próprias mãos".
Fiquei profundamente aflito e resolvi passar a noite orando. Para não incomodar Sabina
que não estava passando bem e que mesmo assim desejaria fazer comigo aquela vigília,
subi ao apartamento do senhorio no andar de cima, depois da ceia, para orar com ele.
Movendo-se numa cadeira de balanço estava um indivíduo agigantado, que o senhorio me
apresentou como sendo Borila, o assassino de judeus da Transmistria. Ao levantar-se era mais
alto do que eu, e pareceu haver à volta dele uma emanação de odor, como de cheiro de sangue.
E logo passou a descrever-nos suas aventuras na guerra e os judeus que trucidara.
"É uma história horrorizante", disse eu, "mas não receio pêlos judeus - Deus os
compensará pelo que sofreram. Só me pergunto com angústia o que vai ser dos assassinos
ao comparecerem perante o tribunal do juízo divino".
Uma cena selvagem foi evitada pelo senhorio, que disse sermos nós dois visitantes
de sua casa, e mudou o assunto da conversa. O assassino provava não ser apenas homicida.
Ninguém é uma coisa só. Tinha uma conversa agradável, e por fim descobrimos gostar muito
de música.
Declarou que, enquanto serviu na Ucrânia, ficou fascinado pelas canções de lá.
"Gostaria de ouvi-las outra vez", disse.
Eu conhecia algumas daquelas antigas canções. Pensei comigo mesmo, olhando
para Borila: "Fisguei o peixe com o meu anzol!"
Se o senhor gosta de ouvir algumas daquelas canções", disse-lhe, "venha ao meu
apartamento - não sou pianista, mas posso tocar algumas melodias ucranianas".
O senhorio, a esposa e uma filha acompanharam-nos. Minha mulher estava
deitada. Acostumada a me ouvir tocar em surdina à noite, não se levantou. Toquei canções
populares, que palpitavam de sentimento e afeto, e pude ver que Borila ficou muito
emocionado. Lembrei-me como, estando o Rei Saul aflito com um espírito mau, o rapaz Davi
tocou para ele a harpa.
Parei me voltei para Borila: "Tenho algo muito importante a lhe dizer".
- Diga, por favor.
- Se o senhor olhar para lá daquela cortina, poderá ver alguém dormindo no
quarto. É minha esposa, Sabina. Os pais dela, suas irmãs e seu irmão de doze anos foram
mortos com o restante da família. O senhor me contou haver matado centenas de judeus perto
de Golta, e foi lá que eles foram capturados.
Olhando para dentro dos olhos dele, continuei: "O senhor mesmo não sabe em quem
atirou, de modo que podemos supor ser o senhor o assassino da família dela".
O homem levantou-se de um pulo, olhos faiscando, parecendo querer estrangular-
me. Levantei minha mão e disse: "Agora - façamos uma experiência. Vou acordar minha
esposa e dizer-lhe quem é o senhor e o que fez. Posso dizer ao senhor o que vai acontecer.
Minha esposa não dirá uma palavra de reprovação! Abraçá-lo-á, como se o senhor fosse seu
irmão. Dar-lhe-á ceia, o que melhor tenha em casa.

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"Agora, se Sabina, que é pecadora como todos nós, pode perdoar e amar assim,
calcule como Jesus, que é perfeito Amor, pode perdoá-lo e amá-lo! Volte-se para ele,
somente isto - e tudo quanto tiver feito lhe será perdoado!"
Borila não era insensível: no íntimo consumia-se de sentimento de culpa e
miséria pelo que praticara, voltando-se contra nós num gesto brutal como caranguejo faz
com suas pinças. Uma batida leve nesse ponto fraco, e toda sua resistência iria abaixo. A
música já havia comovido o seu coração e agora - ao invés do ataque por ele esperado -
ouviu palavras de perdão. Sua reação foi admirável. Deu um salto e agarrou com ambas as
mãos o próprio colarinho, rasgando a camisa de alto a baixo. "Ó Deus, que devo fazer, que
devo fazer?" exclamou. Levou as mãos à cabeça e soluçando alto sentou-se na cadeira que ficou
a balançar. "Sou um assassino, estou ensopado de sangue, que farei?" Lágrimas lhe
corriam pelo rosto.
Bradei: "No nome do Senhor Jesus Cristo ordeno ao demônio do ódio que saia de
sua alma!"
Borila caiu de joelhos tremendo e começamos a orar em voz alta. Ele nada sabia de
oração; apenas pediu perdão repetidas vezes, dizendo esperar e saber que lhe seria
concedido. Ficamos juntos de joelhos por algum tempo; depois nos levantamos e nos
abraçamos, dizendo eu: "Prometi fazer uma experiência e quero cumprir minha palavra".
Fui ao quarto e encontrei minha esposa ainda a dormir calmamente. Estava
naquela época muito fraca e esgotada. Acordei-a delicadamente e disse: "Está aí um
cidadão que você precisa conhecer. Cremos ter sido o assassino de sua família, mas está
arrependido, e agora é nosso irmão".
Ela saiu em seu chambre e estendeu os braços para abraçá-lo: ambos começaram a
chorar e a se beijar repetidas vezes. Nunca vi casal de noivos beijando-se com tanto amor,
sentimento e pureza como esse homicida e a sobrevivente de suas vítimas. Depois, como eu
predisse Sabina foi à cozinha para lhe trazer alimento.
Enquanto Sabina estava no interior da casa veio-me o pensamento de que o crime
de Borila tinha sido tão terrível que era necessário outra lição. Fui ao quarto junto e voltei
com meu filho Mihai, que tinha dois anos, dormindo nos meus braços. Fazia poucas
horas que Borila se tinha gabado de matar meninos judeus nos braços dos pais, e agora ele
estava horrorizado; o que via era uma repreensão insuportável. Esperava que eu o acusasse,
mas eu disse: "Vê como ele dorme tranquilamente? O senhor é também uma criança
recém-nascida que pode repousar nos braços do Pai. O sangue que Jesus derramou o
purificou".
O contentamento de Borila era muito comovente: ficou conosco aquela noite e
quando acordou no dia seguinte disse: "Fazia tempo que não dormia assim".
Sto. Agostinho diz: "Anima humana naturaliter christina est" - a alma humana
é por natureza cristã. O crime é contra a nossa natureza, resultado de coação social ou de outras
muitas causas, e que alívio quando é atirado fora, como no caso desse homem!
Naquela manhã, Borila querendo conhecer nossos judeus, levei-o a muitos lares de
hebreus cristãos. Em toda parte foi contando sua história, sendo acolhido como o pródigo de
volta ao lar. Depois, com um Novo Testamento que lhe dei, foi juntar-se ao seu regimento noutra
cidade.
Logo mais foi comunicar-me que sua unidade recebera ordem de seguir para o
"front". "Que devo fazer?" perguntou. "Vou começar a matar outra vez".
Eu disse: "Não, o senhor já matou mais do que cumpre a um soldado matar. Não
quero dizer que o cristão não deva defender sua pátria, no caso de ser atacada. Mas o
130
senhor, pessoalmente, não deve matar mais - será melhor deixar-se matar. A Bíblia não o
proíbe!"
Contada que foi essa história, Gastão ficou mais calmo. No fim sorriu e estendeu-me
a mão para um aperto; e em seguida caiu em sono tranquilo.
Na manhã seguinte fomos levados de volta a outra cela. Entre os presos encontrei
Grigore, que também era criminoso de guerra, responsável pelo massacre de judeus.
Conheceu Borila.
Eu disse a Castão: "A história do homem que matou a família de minha esposa tem um
epílogo. Este aqui pode contá-lo a você''.
Grigore explicou como servira com Borila em Transmistria, onde ambos
massacraram judeus. "Quando fomos outra vez à Rússia, era ele um homem
transformado", disse ele. "Não podíamos entender isso. Punha de lado as armas e ao
invés de tirar vidas, salvava-as. Alistou-se como voluntário para socorrer os feridos
debaixo de fuzilaria, e no final salvou o seu próprio oficial".
Os meses tornaram-se anos: dois já se haviam escoado, e a não ser os rostos que
iam e vinham, tudo permanecia no mesmo. O cárcere fez santos de alguns homens, e de
outros fez brutos, sendo difícil dizer quem ia ser uma coisa ou outra; isto no entanto era
certo - a maioria dos presos continuaria a viver, por assim dizer, num vácuo.
Escarrapachavam-se nos leitos, horas a fio, sem nada para fazer. Conversar tornou-se tudo
na vida. Fiquei a imaginar o que aconteceria se a ciência chegasse a tornar desnecessário
trabalhar. Há um limite à inovação em matéria de sexo, filmes e novos entorpecentes, e
assim muitos ficariam sem nada mais em que pensar.
À medida que avançava meu terceiro ano em Gherla, as coisas amainaram um
pouco. Tivemos mais alguma liberdade de falar, uns bocados a mais de alimento. As
condições fora do cárcere mudavam uma vez mais, segundo ouvíamos. Não sabíamos em que
sentido, nem que a maior provação ainda estava para vir.

PARTE OITAVA
CERTA MANHÃ DE MARÇO de 1962, os guardas invadiram Al de repente as
celas bradando: "Todos os padres para fora!" Meus companheiros juntaram seus
pertences e obedientemente se enfileiraram nos corredores. Quanto a mim, não me mexi.
Tínhamos novo comandante, um oficial rigoroso chamado Alexandrescu. Essa
mudança, qualquer que fosse a sua finalidade, significava maiores tribulações, e eu queria
trabalhar e pregar sem novos empecilhos. Veio a saber-se que o presídio inteiro estava
sendo dividido por classes: os "intelectuais" numa cela, camponeses em outra, militares
numa terceira, e assim por diante. A superlotação e a estupidez dos guardas causaram
desordens. Um membro de um grupo chamado "Estudantes da Bíblia" foi colocado
numa cela de escritores e professores; era um operário sem instrução, mas para os
funcionários do presídio todos os "estudantes" eram intelectuais.
Quando os clérigos tinham saído, um guarda perguntou-me o que eu era.
"Pastor", respondi num sotaque matuto. E assim fui posto numa cela com os que
guardavam ovelhas e trabalhadores em fazendas.
Fiquei ali por poucas semanas. Um informante traiu-me e, depois de um açoite, fui
levado à cela em que os padres estavam reunidos. Ia ser meu lar no restante de minha
estada em Gherla

131
- lar cavernoso, com paredes de cimento sujo. A luz era a que entrava por duas
janelas estreitas. Os leitos se comprimiam, sobrepostos em quatro camadas. Havia alguns
banquinhos e uma mesa. Os presos - na maioria clérigos e alguns crentes cristãos -eram
uns 100. Havia sempre uma fila esperando usar os baldes sanitários.
Ao entrar ouvi uma voz grave: "Seja bem-vindo, seja bem-vindo!" Era o velho Bispo
Mirza, homem exemplar da fé ortodoxa e muito bondoso. Seu pulôver preto e desbotado
estava todo esburacado. Seus olhos eram tristes e meigos, uma auréola de cabelos
brancos circundava-lhe a cabeça.
Cabeças ergueram-se quando saudei pessoas que conhecia
- inclusive o Arquimandrita Miron, cujo leito ficava acima dos de Gastão e do bispo.
À noite, na hora reservado à oração, os católicos juntavam-se num canto, os
ortodoxos ocupavam outro, os unitários outro. Os testemunhas de Jeová aninhavam-se
nos leitos de cama; os calvinistas reuniam-se embaixo. Duas vezes no dia, realizavam-se
nossos vários cultos: mas entre todos aqueles ardorosos adoradores não havia dois que
dissessem juntos o "Pai Nosso".
Longe de promover compreensão, nossa situação comum, que era má, fomentava
conflitos. Os católicos não perdoavam a hierarquia ortodoxa por colaborar com o
Comunismo. Minorias discordavam em torno de "direitos". Havia disputa a respeito de
cada ponto de doutrina. E enquanto as discussões normalmente se desenvolviam com
elegante malícia, como haviam aprendido nos seminários em tardes chuvosos de domingo,
algumas vezes perdiam as estribeiras, zangando-se.
Quando celebravam a missa, o pastor evangélico Haupt, do seu leito, à distância de
poucos metros, dia após dia evocava palavras de Martin Lutero.
"Que é aquilo?" perguntava um dos católicos.
Haupt erguia mais a voz condescendentemente: "Repeti palavra de Lutero - 'Todos
os bordéis que Deus condena, todos os homicídios, roubos, adultérios não causam os
danos que a abominação da missa papal ocasiona'".
Depois da cerimónia, um dos católicos, Padre Fazekas, disse: "Caro irmão, você
ainda não ouviu dizer - 'o gênero humano tem sofrido três grandes catástrofes - a queda de
Lúcifer, a de Adão e a revolta de Martin Lutero'?"
O Padre Andicu, ortodoxo, aderiu ao contra-ataque: "Lutero e Lúcifer são uma e a
mesma coisa!" Católicos e ortodoxos tornavam-se assim aliados temporários. Mas antes de
anoitecer, estavam eles disputando em torno da supremacia de Roma.
Fazekas era de origem húngara, e isto lhe era atirado ao rosto até pelo seus irmãos
católicos. Quando rezava em voz alta à Virgem Maria, chamando-a "padroeira da Hungria",
todos se mostravam incomodados.
"A Santa Virgem não é também padroeira da Roménia?" perguntava um padre
patriota ortodoxo.
- Certo que não, ela é padroeira da Hungria.
Gastão ironicamente indagava se a Virgem não era Padroeira da Palestina, visto
como parecia traição deixar o país do nascimento dela à proteção de outros.
"Acaso você nunca ouviu que os judeus mataram o filho dela?" disse Fazekas. O
Bispo Mirza, sorrindo gentilmente, procurou acalmar os ânimos. "A Virgem não está
circunscrita a nenhum país", disse ele. "Ela dirige a Igreja, é a Rainha do Céu, move os
planetas e rege o coro dos anjos!"
Eu disse que nesse caso não restava muito para Deus fazer.
132
Outros protestantes deram-me apoio, mas de uma maneira que não gostei. "Por que
devo venerar desse modo a mãe de Jesus", disse um. "Ela não pode salvar".
Fazekas replicou: "Coitado! Então você só venera a quem salva? A mão do Senhor
canta no Magnificai: 'Todas as gerações me chamarão bem-aventurada'. Elas fazem isto
porque Maria foi a mãe de Jesus, não porque distribui favores".
Foi boa resposta. Honro muito a Virgem Maria, entretanto creio que seu papel tem
sido exagerado pêlos seus adeptos, começando esse desvirtuamento em tempos antigos.
Quando os cristãos começaram a pensar no Céu, vinha-lhes à mente uma corte oriental: um
lugar de luxo, música e perfumes. Alguém que quisesse pedir um favor ao sultão, procurava um
amigo; este falava com um vizir, que por seu turno levava o caso à esposa favorita do sultão, e
ela então se comunicava com o marido. Isso criou a ideia de uma hierarquia espiritual, em
que simples pessoas apresentavam suas rogativas aos padres, estes as transmitiam aos santos,
e os outros à Virgem.
Minha fé alicerça-se no seguinte: qualquer pessoa pode falar diretamente a Deus,
mas há tempos em que argumentar só faz acirrar ódio. Contei o caso dos dois mártires de
confissões diferentes, que foram condenados à fogueira. Perguntaram-lhes se tinham um
último pedido a fazer. Ambos disseram: "Sim! Amarremo-nos de costas um para o outro,
porque assim não verei morrer esse herege que foi condenado como eu".
Algumas vezes também não pude esconder minhas impressões. Durante horas
ouvia o Padre Ranghet, dominicano, no leito abaixo do meu, rezar o seu terço. Por fim eu
disse: "Por que precisa você invocar a Virgem mil vezes no dia? É surda, ou indiferente, ou
relutante em ouvir? Quando aqui peço um favor a alguém, ele faz o favor se pode; mas
não fico a pedir, a pedir, se essa pessoa não me atende".
Ranghet agastou-se. "Uma vez que vocês luteranos não crêem na infalibilidade do
Santo Padre, muito menos motivo têm de crer na sua", disse. "O que no seu entender
defeituoso está errado, no meu está certo". E continuou repetindo "Ave Maria..." ainda mais
alto do que antes.
"Você sempre está a falar no 'Santo Padre' - quer referir-se a Deus?" perguntei.
"Refiro-me à Sua Santidade o Papa!" - respondeu.
"A mim afigura-se blasfémia empregar títulos divinos tratando-se de seres
humanos", repliquei. "Você o chama Vigário de Cristo na terra, o que significa seu substituto
- mas não posso aceitar tal substituto, assim como não posso consentir que minha mulher
tenha outro homem que me substitua".
"Você está indo muito longe!" exclamou.
Mas eu é que pensava isso dele. Só naquele dia ele dissera que todos os sacrifícios
de vida, de liberdade, oferecidos por todos os homens, nada eram comparados com a
oferenda por ele feita no altar ao sacrificar o filho de Deus. Eu não podia aceitar que um
padre, de um pedaço de pão, fizesse Deus, ou que houvesse necessidade para isso. Não
podia crer que meu destino eterno dependesse da absolvição dada por um homem, que por
sua vez podia não ter ele mesmo certeza do Céu.
Procurei assuntos em que pudéssemos assentir. Quando o Pastor Weigartner,
modernista, discutia com os católicos sobre o nascimento virginal de Jesus, vi-me forçado a
tomar o lado deles.
Weingartner disse não poder aceitar tal inversa semelhança científica.
Repliquei: "É muito tarde para se abrir um inquérito histórico em torno do
nascimento virginal, mas também é muito cedo para ser repudiado como cientificamente

133
impossível. Um biólogo americano, chamado Loeb, já produziu um nascimento sem o
concurso de macho e infra-organismos. O que os biólogos podem fazer com um pequeno
ser, Deus certamente pode fazer com o homem".
"Mas a história das religiões está cheia de nascimentos virginais", disse ele. "Só
pode ser mito".
Respondi contando a história de um famoso rabino que vivia na Ucrânia na época
dos czares, e que certa vez foi convidado a apresentar prova em defesa de um adepto seu. O
aspecto nobre e de espiritualidade do Rabino Hofez Haim impressionou o tribunal, mas
o ancião recusou fazer o juramento; não queria, disse ele, envolver o nome de Deus em
sua prova testemunhal. O promotor protestou: "Precisamos ter uma garantia de que ele diz
a verdade".
O advogado da defesa levantou-se: "Excelência, posso mencionar algo que prova
o caráter de minha testemunha e mostra que podemos aceitar o seu testemunho, mesmo se,
por motivos religiosos, ele não se submete a juramento? O Rabino Hofez Haim muitas vezes
anda de loja em loja pedindo dinheiro para os pobres. Certo dia um ladrão derrubou-o e
arrebatou-lhe a bolsa que continha o dinheiro coletado. O rabino ficou perplexo - não tanto
com a perda do dinheiro, que logo ele decidiu substituir com as suas minguadas
economias guardadas em casa - mas com o prejuízo dado à alma do ladrão. Correu atrás
dele, dizendo: "Você não tem culpa nenhuma diante de Deus; o dinheiro era meu e eu lho
dou livremente! O dinheiro dos pobres está seguro em casa! Gaste o que você me
arrebatou com a consciência tranquila!"
O juiz fitou austeramente o advogado: "O senhor crê nessa história?" perguntou.
- Não, não creio.
- Então por que nos conta histórias em que o senhor mesmo não acredita?
- Excelência, já contaram uma história desta a seu respeito, ou acerca de mim, ou do
promotor seu amigo? Ao invés disso dizem - naturalmente é de todo inverdade - que nós
somos loucos por mulheres, ou bebidas, ou jogo. Que santo este homem então deve ser para
que tais lendas envolvam o seu nome!"
Weingartner disse: "É muita divertida - mas não sei se a história a respeito do
rabino é verídica, e tampouco eu posso acreditar na história do nascimento virginal".
"Os cristãos crêem na palavra de Deus!" eu disse. "Mas se é mito, como você lhe
chama, não zombe. Os mitos ocupam um lugar importante no pensamento humano. São
muitas vezes a medida da grandeza de uma pessoa".
"Quer dizer que o povo deve ter feito de Jesus um elevado conceito de modo a tornar
acreditável que ele não nasceu como os demais homens?" disse ele.
"Meu filho, quando muito jovem, perguntou-me como foi que Jesus nasceu",
continuei. "Então contei para ele a história da manjedoura. "Não", objetou ele, "não é isso
que quero saber. Algumas vezes o povo diz: 'O que nasce de gato come rato', e se Jesus
nascesse como nós, teria sido ruim também como nós".
O Bispo Mirza estava-nos escutando: "Que criança para falar como essa!" disse.
"Você tem o seu objetivo", admitiu o Pastor Weingartner. "precisamos procurar com
afinco entender cada ponto de vista dos outros".
Eu disse: "Confesso que teria aceitado o Cristianismo noutra forma que não o
Luteranismo, se me tivesse sido apresentado ao tempo de minha conversão. O que importa
é o respeito às Escrituras como única regra, e a salvação pela fé em Jesus. Nomes e formas não
têm valor".
134
Na manhã seguinte aconteceu uma coisa agradável. O Bispo Mirza veio a mim e disse: "À
noite estive pensando na Oração Dominical que nos ensina a pedir, 'Pai nosso que estás no céu...
perdoa-nos as transgressões'. Jesus não disse que nos confessássemos a um padre e dele
recebêssemos a absolvição -ele nos mandou pedir perdão ao Pai. Naturalmente a questão não é
simples, mas se eu fosse protestante usaria este argumento. Pensei fazer-lhe, por amizade, um
presente disto em troca da defesa que fez da Virgem Maria".
O bispo deu-nos assim um exemplo. Se falhássemos em viver unidos e em paz, cairíamos
na armadilha que os comunistas nos armavam: fechando-nos à chave todos juntos, privavam os
outros presos de direção espiritual, enquanto nós íamos arruinando nossa causa com
disputas. Que outra coisa seria que eles tinham em mira?
Eletricistas estiveram trabalhando na prisão durante algum tempo, e em muitas celas
instalados alto-falantes, um em cada parede, íamos ter programas de rádio.
Gastão disse: "Não vai ser música suave".
Quando o presídio inteiro foi dividido em classes, começou uma série de preleções,
pareciam absurdas. Um jovem oficial político, petulante, explicou que um eclipse do sol
estava para ocorrer, mas não havia razão para alarme - a ciência socialista libertara-nos
de superstições. Continuou explicando o processo de um eclipse solar a uma audiência
enfadada de personagem ilustres e médicos. O caso ia dar-se a 15 de fevereiro, e visto
como cumpria à República Popular alargar nossos conhecimentos, podíamos olhar do pátio.
Weingartner ergueu a mão: "Por favor, se chover, podemos olhar o eclipse no salão?"
"Não", disse o preletor em tom sério, e começou sua explanação outra vez do
princípio.
As preleções doutrinárias duravam horas. Os mesmos pormenores eram
apresentados repetidas vezes. Ao fim do dia, exaustos e mal-humorados éramos despedidos
para que nos entregássemos às nossas próprias discussões.
As alterações quase sempre eram provocadas pelo Padre Andricu, para quem Lutero e
Lúcifer eram a mesma coisa. Seu extremismo fê-lo oscilar entre uma cruzada contra os
russos durante a guerra e uma defesa das ideias comunistas depois dela. Tinha viajado pelo país
pregando a favor do Partido até que seus ex-camaradas decidiram que o "Padre Vermelho"
tinha ultrapassado seu ciclo de utilidade, de modo que foi preso, açoitado e sentenciado a
dez anos por suas atividades no tempo da guerra. Agora era um campeão vociferante da fé
ortodoxa. "E a única religião verdadeira!" gostava de trombetear. "O resto são fraudes e
contrafações!"
Uma vez perguntei: "Quando você se batizou, Padre Andricu, foi na Igreja
Ortodoxa?"
- Naturalmente! Por um bispo!
- E estudou doutrina religiosa em colégio ortodoxo?
- Em colégio da mais alta qualidade da Roménia!
- Então não vai ficar surpreso se eu lhe disser a única razão honesta e lógica pela
qual você é um crente ortodoxo? É que há cinquenta anos um cidadão romeno ortodoxo teve
contato sexual com uma mulher romena ortodoxa.
Ficou furioso; mas eu disse que esse princípio valia para a maioria de nós. Somos
postos em forma desde a primeira mocidade; ensinam-nos apenas os argumentos
favoráveis à religião de nossos pais. No entanto ficamos convencidos de que as conclusões
que chegamos a tirar desses argumentos são nossas e de ninguém mais.

135
Continuei: "Uma vez surpreendi os moradores de uma estrebaria discutindo suas
crenças. Os cordeiros diziam que a única religião verdadeira era dizer Be, Be. Os
bezerros diziam que o ritual correto era dizer Mon. Os porcos afirmavam que a música
exata do louvor era Ron, Ron.
"Não nos ponha no mesmo nível dos animais", protestou Andricu. "Posso ser um
padre simples, mas estudei outras crenças além da minha".
Eu disse que todos fazemos assim, mas de um ângulo que é nosso através do
acidente do nascimento. Voltando-me para um grupo de protestantes, perguntei de
improviso. "Quantos de vocês conhecem as noventa e cinco teses que Lutero afixou na
porta da igreja de Wittenberg?"
Todos eles conheciam. O Pastor Haupt citou as palavras de Lutero: "Aqui estou; outra
coisa não posso fazer!"
Perguntei se os protestantes podiam repetir, da bula papal, as razões da excomunhão
de Lutero. "Leão X não era nenhum maluco", disse eu; "devemos conhecer suas razões".
Nenhum deles, porém, havia lido aquela grande e história letra papal.
O Padre Andricu estava agora discutindo com um rabino, que a ele se dirigia
perguntando: "Por acaso você conhece nosso Talmude?"
Andricu retrucou-lhe: "Você jápôs os olhos no nosso Novo Testamento?"
A resposta em cada caso foi um incisivo "Não".
Para evitar outro choque, perguntei ao grupo: "Vocês conhecem a história de
como Tolstoy certa vez explicou sua fé ponto por ponto a um rabino: mansidão,
humildade, paciência... 'Não precisamos do Novo Testamento para ter essas virtudes;
também nós as honramos', disse o rabino. Finalmente Tolstoy disse: 'Jesus ensinou-nos uma
coisa que a religião judaica não ensina. Manda que amemos nossos inimigos'. 'Isto não
praticamos, admitiu o rabino, 'nem vocês cristãos".
Continuando as palestras no cárcere, vi que, embora ridículas em si mesmas,
obedeciam a um plano astuto. Os locutores, deixando de lado a política, passaram a dirigir-se
àquela parte irresponsável em todos nós, sedenta de prazeres, que os freudianos denominam
Id. Diziam-nos quanto estávamos perdendo no mundo lá fora. Falavam de alimento, de
bebida, de sexo - assuntos em que estavam mais versados do que em dialética marxista, embora não
esquecessem esta. Uma palestra levou-nos de volta aos macacos de Darwin. Um jovem
oficial político mediante uma súmula de razões, introduziu-se pouco a pouco na teoria da
evolução, e com citações mutiladas de Marx, Lenin e Darwin prosseguiu sob o pretexto de conflitos
entre o Cristianismo e a ciência, alegando as tristes consequências disso na América, onde
milhões morriam de fome.
A princípio animamo-nos a argumentar, e quando um preletor disse que "somente
um punhado de substâncias químicas" ficava do corpo, depois da morte, eu perguntei por
que razão, sendo assim, alguns comunistas tinham dado a vida por suas crenças. "No caso de
um cristão o sacrifício de si mesmo", disse eu, "pode ser considerado judicioso. Abrir mão
das coisas transitórias da vida em troca da eternidade é como entregar dez dólares para
ganhar um milhão. Mas por que deve \um comunista dar a vida - a não ser que ele tenha coisa a
ganhar com isso?"
O oficial político não pôde encontrar resposta. Assim, sugeri que a resposta a isso foi
dada por Sto. Agostinho, quando disse que "a alma é por natureza cristã".
"O ateísmo é máscara dos seus sentimentos. No profundo do seu coração - a que
nunca se chega a não ser pela prática da meditação ou oração - o senhor também acredita

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haver uma recompensa para quem vive por um ideal. No profundo do seu coração o
senhor também crê em Deus".
"Vejamos o que Lenin diz sobre isto!" continuou o preletor, e de um livreto bem
manuseado, que já antes lhe dera algumas ideias, leu: "Até o namoro com a ideia de Deus é
inexprimível vileza, contágio da espécie mais abominável. Atos de torpeza e violência, e
infecções físicas são muito menos perigosas". Sorriu. "Mais alguma pergunta?"
- O senhor tem filhos? perguntei.
- Tenho uma filha no grupo das Jovens Pioneiras.
- O senhor prefere que seja acometida de uma moléstia horrível a chegar a crer no
seu Criador? É o que Lenin diz - que o câncer é melhor do que a religião".
O oficial político chamou-me à frente e me esbofeteou.
Sob essa doutrinação violenta, uma bofetada ainda parecia um preço módico a pagar
pela defesa da fé. Era claro que ainda mais estava para vir. Sentíamos que estávamos sendo
espionados de contínuo. Uns alto-falantes que havia silenciosos deixavam-nos intrigados.
Até então tínhamos sofrido fome, recebido açoites, sido injuriados, mas não
procuravam saber o que pensávamos. "Inventem quantos novos Gabinetes quiserem nas
suas celas, bandidos - temos o Governo em Bucareste!" costumava dizer o Comandante
Dorabantu. Mas ele se fora - transferido por falsificar suas prestações de conta. As palestras
mostravam mudança nessa atitude, seguindo a nova política de Gheorghiu-Dej, ditador
romeno, que experimentava amenizar o domínio exercido pelo Kremlin e fazer negócio com o
Ocidente. Para isso Dej unha de apresentar uma fachada mais "democrática". O exército de
prisioneiros políticos mantido na Roménia era um embaraço para ele, e no entanto não
podíamos simplesmente ser libertados para a disseminação de "credos contra-revolucionários".
Nossa maneira de pensar precisava ser modificada, por meio de lavagem cerebral em massa.
Para prisioneiros de Gherla em 1962, isso era uma teoria entre muitas, e poucos
acreditavam nela. Não se tinha certeza sobre o que de fato acontecia na lavagem cerebral. Os
pareceres eram sumariados por Radu Ghinda, autor cristão bem conhecido, que havia se juntado a
nós. "Se eles não mudaram em quinze anos, como é que vão consegui-lo agora?"
Conversávamos sobre isto quando a porta da cela se abriu para entrar novos detentos.
Entre eles estava um vulto alto, envergonhado, de andar esquivo, virando-se de um para o outro
lado, como procurando fugir aos olhos dos presos.
Radu Ghinda foi o primeiro a reconhecê-lo. "Daianu!" exclamou.
Arrastou os pés, desajeitado, para abraçar o amigo. Nichifor Daianu fora grande figura na
Roménia. Poeta, professor de Teologia Mística, líder da "Liga de Defesa Cristã Nacional", anti-
semita, vinha a Gherla procedente do cárcere de Aiud para continuar sua sentença de vinte e
cinco anos.
A princípio mal o reconheci. Sua barriga enorme desapareceu. A pele no queixo
estava enrugada lembrando a de peru. O indivíduo bon viveur e sedutor de mulheres, cuja face
uma vez fora esbofeteada num restaurante de Bucareste, era agora um velho trémulo, de compleição
débil.
Colegas prisioneiros vindos de Aiud disseram-nos o que acontecera lá. Daianu,
acostumado a comer muito, tentou uma repetição de sua papa de cevada, pedindo-a aos
cozinheiros. O diretor do cárcere mandou-o embora. No dia seguinte, o diretor lá estava de
novo. "Pare!" disse, "Aquele sujeito é gordo demais. Deixe que ele espera até amanhã". No dia
imediato, chegada a vez de Daianu, o diretor disse: "Diga-me, Daianu, existe um Deus?" O
cozinheiro manteve a concha suspensa. Daianu murmurou alguma coisa. "Fale alto para nós

137
ouvirmos!" Daianu disse: "Não existe Deus". "Mais alto", interveio o diretor. "Não existe Deus!"
bradou Daianu. O diretor fez sinal com a cabeça para que fosse servido. Daianu comeu a papa
com sofreguidão. Esse espetáculo tanto agradou ao diretor que fez fosse repetido todos os dias
da semana seguinte. A história espalhou-se por toda a Roménia e mais tarde também no
exterior.
Mas não desapareceu o dom de que Daianu tinha para a poesia religiosa. Amigos dos
seus dias de fascismo animavam-no a declamar alguns versos por ele escritos em Aiud. Eram
canções de aflição e arrependimento, mais lindas do que outras já compostas. Conservou
entretanto seu anti-semitismo, como seu amigo Radu Ghinda. Seus seguidores, dentre ex-
guardas de ferro prisioneiros, contrabandeavam restos de comida e até cigarros para eles na
sala dos padres. É difícil o anti-semitismo morrer; Daianu e Ghinda eram mártires dessa
causa.
Ao serem discutidas, uma noite, teorias sobre lavagem cerebral, Ghinda escarneceu.
"Asneira! Pavlov fazia truques com os hábitos do comportamento próprio de cachorros e os
comunistas na Coreia aplicavam algumas de suas ideias para fazer prisioneiros americanos
bandear-se para eles - mas tais métodos não influem em pessoas educadas e inteligentes.
Não somos pracinhas!""Nem cães", atalhou Daianu. Ninguém discordou.
O Pastor Weingartner referiu-nos um teste simples de personalidade que
aprendera quando estudava psicologia: traça-se uma linha no centro de um cartão, depois
pede-se a alguém que com aquilo desenhe a primeira coisa que lhe venha à cabeça. Nós
usamos uma mesa esfregada com sabão e riscávamos com a unha.
Um dos presos desenhou uma espada, outro um capacete, outros uma flor, um
crucifixo, um livro, uma figura geométrica. Eu disse: "Preciso de outra mesa - esta é muito
pequena para o que quero desenhar".
Nem um entre dez de nós mostrou em seu desenho o toque do misticismo que está no
âmago da natureza de um padre.
Weingartner riu. "Não admira que não me deixasse experimentar isso no
seminário! Talvez todos devamos aprender a fazer sapatos - porque o sapateiro que temos aqui
é quem parece ter um caráter verdadeiramente espiritual!"
Referia-se a Gelu, crente sectarista que conhecia muito a Bíblia. Isso pareceu irritar
Daianu.
"Meu caro", disse ele, "se você falar-nos a respeito de sapatos e como consertá-los,
está muito bem. Mas você aqui está no meio de homens que se graduaram em teologia em
grandes universidades da Europa e não precisamos de aulas de Bíblia".
- Está certo, professor, replicou Gelu. Sou eu é que preciso de instrução. Pode o
senhor dizer-me de que trata o livro de Habacuque, no Velho Testamento?
- É um dos profetas bem menores, disse Daianu. Não quebre sua cabeça com ele.
- Bem, e o livro de Obadias?
- Obadias é outro profeta que os sapateiros não precisam conhecer.
- Talvez me possa dizer algo de Ageu.
Daianu não pôde. Não havia na sala um teólogo que pudesse arranjar três períodos sobre
o assunto. Gelu deixava-nos espantados citando de cor capítulos inteiros desses profetas.
O clero estudava livros que versavam sobre a Bíblia, não as próprias Escrituras. Outra
censura que bem podia fazer-se a eles era que se baseavam em dogmas e dialética, mas quase
nada sabiam da ideologia comunista que procurava destruí-los.

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Em 1963 ouvimos falar do apelo feito pelo Papa João no sentido de uma
reconciliação dos "irmãos separados", e logo nos pusemos a disputar sobre os meios de
alcançar essa unidade.
"Disputamos sobre o Reino do Céu, que nenhum de nós possui", eu disse. "Se o
possuíssemos, não disputaríamos. Os que em verdade amam a Cristo devem amar-se
mutuamente. Como tantos cegos curados por Jesus, discutimos como foi que nossa visão nos
foi restaurada. Um diz: "Foi pelo poder da fé". Outro afirma: "Ele tocou nos meus olhos".
Outro ainda: "Ele me pôs nos olhos lodo feito de terra e saliva". Se Jesus estivesse no nosso
meio, diria: "Curei vocês de maneiras diferentes. Agora não devem brigar, mas regozijar-se!"
Goethe diz que "as cores são o sofrimento da luz": passando através de um prisma, ela se
decompõe. Eu via nossa divisão em busca da verdade como dores sofridas por Cristo.
O alto-falante na parede afinal estalou dando sinais devida. "Um-dois-três-quatro-
testando", disse uma voz repetidas vezes. Depois ouviram-se as palavras: "O Comunismo é
bom.O Comunismo é bom. O Comunismo é bom". Uma pausa. Mais estalos. A voz
voltou em maior volume, ressonância e autoridade:
O Comunismo é bom.
O Comunismo é bom.
O Comunismo é bom.
Continuou pela noite inteira até o dia seguinte. Em breve, apenas de vez em
quando, tínhamos consciência daquelas palavras gravadas em "tape", que ainda assim
penetravam em nossas mentes, e quando afinal a voz parou, feita a desligação num centro
de controle em alguma parte do presídio, as palavras soavam em minha cabeça: "O
Comunismo é bom. O Comunismo é bom. O Comunismo é bom".
Weingartner disse que aquilo era o primeiro estágio de um longo processo.
"Nossos governantes aprenderam isto dos russos, e os russos de Pequim. Adiante vai ser
confissão pública. Sob Mao-Tsé-Tung os chineses devem assistir a palestras em fábricas,
escritórios e ruas. Depois são levados a denunciar-se a si mesmos, a dizer como
conspiravam contra o proletariado cinco, dez ou vinte anos antes. Se a pessoa não
confessa, é presa como obstinada contra-revolucionária: se confessa, vai para a cadeia
por causa do que disse. Sendo assim, o povo procura confessar e ao mesmo tempo não
confessar: confessar que deu guarida a pensamentos insidiosos, mas negando haver-se
deixado levar por eles. Uma pessoa denuncia outra. Toda confiança entre amigos e dentro
das próprias famílias fica destruída. O mesmo processo começa agora conosco!"
O Padre Fazekas disse: "Satanás sempre arremeda Deus. É uma zombaria da
confissão cristã".
"Quanto tempo isso vai durar?" perguntou Gastão.
"Até você crer que 'O Comunismo é bom'; talvez dure anos", disse Weingartner.
Nossa palestra seguinte foi prolongada e prazenteira. Dizia-nos da nova e maravilhosa
Roménia, que se estava desenvolvendo sob o Plano de Dezesseis Anos de Gheorghiu-Dej, e referia-
nos o paraíso que já estavam gozando aqueles que o Partido considerava dignos. Descrevia os
privilégios concedidos aos trabalhadores leais, a boa alimentação, a abundância de vinho, as
esplêndidas férias nas estações balnearias do mar Negro, onde por toda parte se viam moças de
biquini.
"Mas esqueço!" ria ele. "A maioria de vocês, colegas, nunca viu um biquini. Vocês nem sabem
o que é isso, meus chapas! Vou explicar. As melhores coisas da vida não fica no Ocidente
decadente!"

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Seus olhos cintilavam e a voz ia ficando rouca ao começar a descrever com maligna
satisfação bustos, barrigas e coxas, misturando os prazeres do vinho e de viagens em sua
conversa indecente. Nunca vi estampada em rostos humanos tal fome de lascívia, como vi então
na maior parte dos que estavam ao redor de mim no vasto salão. O aspecto deles era feio e de
amedrontar, parecendo animais na época do cio. A decência humana deles fora expulsa pela
conversa sem freio do locutor, ficando apenas voracidade sensual.
Tantos prazeres aguardavam-nos lá fora, dizia o prelecionador.' 'A porta está lá. Vocês
podem abri-la, se quiserem. Lancem de si o lixo de ideias reacionárias, que fizeram de vocês uns
criminosos. Passem para o nosso lado! Aprendam como ficar libertos!"
Pouco se disse depois dessas palestras. Ninguém pensava agora nas esposas e no trabalho
duro que os esperavam no mundo lá fora. O desejo natural que é parte de nossa vontade de viver foi
habilmente despertado.
Os protestantes e padres ortodoxos, que tinham suas esposas, sofriam certamente
muito mais ouvindo aquele apelo ao instinto sexual do que os padres católicos acostumados ao
celibato desde a mocidade.
Durante meses tivemos rações reduzidas e nos pesávamos com regularidade para ter certeza
de que nos mantínhamos uns dezoito quilos abaixo do peso normal. Por último a alimentação
melhorou, mas tinha um sabor estranho. Suspeitei da presença de afrodisíacos, e médicos
aprisionados mais adiante concordavam comigo em que drogas excitantes do apetite sexual
tinham sido adicionadas as nossas refeições. Muitos funcionários saíram e agora os médicos, os
escreventes que vinham ler qualquer anúncio ou veredicto de tribunal eram quase sempre
moças. Usavam vestidos apertados, provocadores, perfume e maquilagem. Parecia que de
propósito se demoravam nas celas.
"Vocês só têm uma vida", dizia o preletor todos os dias. "Ela passa rapidamente. Quanto
tempo ainda lhes resta? Lancem sua sorte conosco. Queremos ajudá-los a aproveitar o máximo do
que lhes resta para viver!"
Esta solicitação ao ego, àquela parte da natureza humana que se impõe, que se defende de
si mesma, chegou quando as emoções primárias estavam em franca fermentação. Finalmente,
estourando a camada superficial, a solicitação atingia o superego, a consciência, os valores
sociais e padrões de ética. Os preletores diziam que nosso patriotismo tinha sido falso, nossos
ideais uma fraude, e no lugar deles procuravam implantar a ideologia comunista.
"Encontros de luta" era o nome dado a essas sessões de sugestão de massa, e a luta não
parava nunca. "Que estão fazendo agora suas esposas?" perguntava o preletor em tom jovial. "O
que vocês mesmos gostaria de fazer!" Estávamos exaustos e para a histeria não faltava muito. As
gravações em "tape" tocavam a mensagem de que o Comunismo era bom durante todas as horas
quando as palestras não estavam sendo apresentadas. Os presos brigavam entre si.
Daianu, o poeta, foi o primeiro a romper. No fim de uma palestra levantou-se de um
pulo e começou a falar em torno dos seus crimes contra o Estado. "Agora vejo, estou
vendo tudo! Desperdicei minha vida numa causa falsa!" Censurava seus pais proprietários
de terra por havê-lo posto no caminho errado. Ninguém lhe pedira que atacasse a religião,
mas ele repudiava sua fé, os santos e os sacramentos. Berrava contra a "superstição" e
blasfemava contra Deus. E por aí afora ia ele.
Depois Radu Ghinda se levantou e continuou no mesmo diapasão. "Fui tolo",
exclamou. "Fui desencaminhado por mentiras de capitalistas e de cristãos... Nunca mais
porei os pés numa igreja, só se for para cuspir nela".
Daianu e Ghinda apelavam para os presos, no sentido de renunciarem sua velhas
crenças, com entusiasmo maior do que o de preletores. Ambos tinham talento para falar, e
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muitos que ouviram os louvores eloquentes deles à alegria e liberdade que o Comunismo
traz, ficaram profundamente abalados e convictos de que o que falavam lhes era ditado por
uma fé genuína.
Quando Ghinda se sentou, um velho macilento e trémulo exclamou: "Todos vocês
me conhecem - o General Silvianu do Exército Real. Renego minha posição social e minha
lealdade. Envergonha-me o papel que fiz movendo uma guerra criminosa à nossa aliada, a
Rússia. Servi às classes exploradoras. Desgracei minha pátria..."
Depois do general faliu um ex-chefe de polícia que "confessou" não ter chegado o
Comunismo ao poder mais cedo porque a polícia o impediu; como se todos ali não
soubessem que o Comunismo fora imposto pêlos russos.
Um após outro os homens se levantavam e repetiam como papagaios suas confissões.
Foi esse o primeiro fruto de meses de Nos SUBTERRÂNEOS DE DEUS
fome planejada, degradação, maus-tratos e sugestão de massa. Os primeiros a ceder
foram aqueles como Daianu e Ghinda, cujas vidas já estavam consumidas de culpas
particulares. Daianu pregara ascetismo, mas praticara a glutonaria e vivera atrás de mulheres.
Dizia aos estudantes que renunciassem o mundo por amor a Deus, e ele mesmo se fez
propagandista de Hitler. Dizia: "Amém a jesus", e odiava os judeus. Julgava-se crente, mas aquilo
em que o homem crê manifesta-se na sua vida diária: suas poesias, belas que fossem, exprimiam
aspirações, não realizações. Ghinda, de igual modo, fora dividido por ideologias, de um lado o
anti-semitismo, do outro, sua fé. E os dois homens estavam envelhecendo: já haviam
cumprido mais de quinze anos de cadeia e ainda tinham mais pela frente.
Outros na sala dos padres não se entregaram tão rapidamente assim, e para eles
estava reservado maior sofrimento. Nossas alterações, afinal, pararam. Aprendemos que todas
as nossas denominações podiam ser reduzidas a duas: a primeira era o ódio, que fazia de ritos
e dogmas um pretexto para atacar os outros; a segunda era o amor, pelo qual pessoas de todas
as espécies descobriam sua unidade e irmandade perante Deus. Às vezes parecera que uma
missão que tivesse os padres por alvo valeria mais do que outra qualquer. Muito mais agora, que
a cela estava inflamada do espírito de sacrifício pessoal e fé renovada. Em tais momentos os
anjos pareciam estar à volta de nós.
Para o Culto de Comunhão necessitava-se de pão, e muitos prontificaram a sacrificar sua
ração. Mas o ritual ortodoxo exige que o pão seja consagrado em altar que encerre uma relíquia
do corpo de um mártir. Não havia tal relíquia.
"Temos mártires vivos conosco", disse o Padre Andricu. Consagraram o pão e um
pouco de vinho num copo rachado que viera escondido de um hospital e que passara sobre o
corpo do Bispo Mirza, estando ele doente guardando o leito.
Não tardou que os presos que se tinham "convertido" fossem solicitados a fazer
por seu turno palestras para os demais, e eles passaram a fazer isso com entusiasmo,
crendo que sua soltura dependia dos seus esforços naquele sentido. E logo circulou a
notícia de um trágico resultado da defecção de Daianu e Ghinda. Dois membros da Guarda
de Ferro furtaram um formão da carpintaria, abriram com eles as veias e morreram, em
sinal de protesto.
Encontrei Daianu e Ghinda em um canto da cela. "Que pensam de si mesmos,
agora que sua traição custou a vida de dois que acreditavam em vocês?" perguntei.
Ghinda respondeu: "Eles morreram para que o povo viva!"
"Uma semana atrás vocês figuravam entre os inimigos do povo", retorqui-lhe.
Daianu explodiu: "O que pretendo é sair daqui, sofra quem sofrer".

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Ficaram tão malquistos que foram transferidos para outra cela. Miron disse: "É de
estranhar que homens que escreveram aparentemente com tão profunda fé cristã virassem
traidores tão facilmente!"
Talvez a resposta fosse que nos seus escritos Daianu e Ghinda exaltaram Cristo
pelas dádivas que ele nos faz de paz, amor e salvação. Um verdadeiro discípulo não
procura dádivas, mas sim ao próprio Cristo, e assim dispõe-se a sacrificar-se até ao fim.
Eles não eram seguidores de Jesus, mas fregueses; quando os comunistas abriram adiante
uma loja vendendo a preços mais baixos, eles bateram lá. Voltei a piorar muito da saúde.
Durante 1963 fui removido para o hospital-presídio. Depois de uma semana lá, todos tivemos
ordem de nos levantar. Alguns andavam com dificuldade, mas fomos nos ajudando uns aos
outros a sair para um pátio espaçoso onde todos nos reunimos. Lá ficamos de pé durante
uma hora enquanto apresentaram uma peça, tendo por atores presos escolhidos. A peça
escarnecia do Cristianismo e quando os oficiais à volta do comandante batiam palmas e riam, o
auditório fazia o mesmo.
Quando terminou, Alexandrescu ergueu sua voz áspera pedindo comentários,
positivos ou negativos. Não bastava aprovar; deviam ser dadas razões disso. Daianu começou.
A seguir falou Ghinda. Um após outro ia à frente para repetir "slogans" contra a religião.
Enquanto iam e vinham, alguns me abraçaram com lágrimas, dizendo: "Devemos dizer o
mesmo antes de terminar!"
Quando o comandante me chamou, lembrei-me do que minha esposa me dissera
muitos anos antes, no Congresso dos Cultos: "Vai e lava esta vergonha da face de Cristo!"
Eu era muito conhecido em Gherla, pois tinha estado em muitas celas.
Centenas de ornares caíram sobre mim, e todos pareciam indagar uma coisa só: "Ele
também vai louvar o Comunismo?"
O Major Alexandrescu insistiu: "Vamos, fale!" Não temia oposição. Se os obstinados
acabavam cedendo - isto era apenas uma questão de tempo, pensavam - era prova da força do
Partido.
Comecei cautelosamente: "É manhã de domingo; nossas esposas, mães e filhos
estão orando por nós, nas igrejas ou em casa. Devíamos querer orar por elas também...
Ao invés disso assistimos a esta peça".
Ao falar dos familiares deles, os olhos dos presos encheram-se de lágrimas. Continuei:
"Muitos aqui falaram contra Jesus, mas que é que vocês apresentam contra ele? Vocês
falam de proletariado, mas Jesus não era carpinteiro? Vocês dizem que quem não trabalha
não deve comer, mas isso foi dito há muito tempo na Epístola de S. Paulo aos
Tessalonicenses. Vocês falam contra os ricos, mas Jesus expulsou os cambistas do templo
a chicotadas. Vocês querem o Comunismo, mas não esqueçam que os primeiros cristãos
viviam numa comunidade, dividindo entre si o que possuíam. Vocês desejam soerguer os
pobres, mas o Magnificai, cântico que a Virgem Maria entoou às vésperas do nascimento
de Jesus, diz que Deus exalta os pobres e abate os ricos. O que há de bom no Comunismo
vem dos cristãos!"
Prossegui: "Ora, Marx disse que todos os proletários devem unir-se. Alguns, porém,
são comunistas, outros são socialistas e ainda outros, cristãos, e se escarnecemos uns dos
outros não podemos nos unir. Nunca que eu zombe de um ateu. Mesmo do ponto de vista de
Marx isso é um erro, porque se dele zombamos cindimos o proletariado".
Citei o que Marx diz na introdução de sua obra "Capital", que o Cristianismo é a
religião ideal para se refazer uma vida estragada pelo pecado. Perguntei se havia
alguém, mesmo comunista, que estava sem pecado - porque mesmo não tendo pecado
142
contra Deus, pecava contra o Partido. Fiz muitas citações dos próprios autores deles. O Major
Alexandrescu mexia-se na cadeira e batia no chão com a ponta do sapato, mas não me
interrompeu.
Os presos também se mantiveram calmos, e notando eu que eles estavam sendo
tocados esqueci-me do lugar onde estava e comecei a pregar abertamente a respeito de
Cristo, e do que Ele fizera por nós, e o que Ele significa para nós. Disse que assim como
ninguém nunca ouvira falar de escola sem exames, fábrica em que o trabalho não fosse
fiscalizado para se saber se estava bom, assim todos seremos julgados, por nós mesmos, por
nossos companheiros, por Deus. Olhei para o comandante e disse: "Também o senhor será
julgado, Major Alexandrescu".
Outra vez deixou passar. Referi como Jesus ensina o amor e dá vida eterna. No final
os presos romperam de súbito em aplausos.
Quando tomei meu lugar Miron disse: "Você desfez tudo quanto eles fizeram", mas
eu sabia que não. Castão murmurou: "Você ouviu os aplausos?" Respondi: "Aplaudiram o
que viram em seus próprios corações, não em mim".
Até então só uma minoria barulhenta de clérigos tinha sucumbido à influência da
lavagem cerebral. Nós, que nos opúnhamos a ela francamente, também éramos poucos,
mas os que simpatizavam conosco eram muitos, ainda que lhes faltasse a coragem ou o tino
de baterem em retirada.
Não era fácil. Como resultado desse discurso perdi o asilo sagrado do hospital-
presídio, e fui mandado de volta à sala dos padres.
Os oficiais políticos disseram-nos que Daianu e Radu Ghinda, em suas celas
particulares, tinham-se apresentado voluntariamente para escrever sobre as maravilhas da
República Popular, a qual nenhum deles via já fazia uns quinze anos. Receberam caneta
e papel e toda a literatura do Partido, bem como propaganda turística de que pudessem
necessitar. Os dois aproveitaram-se ao máximo dessa oportunidade para provar suas novas
convicções, e algumas semanas depois foram libertos. Foi um golpe tremendo desferido
contra a nossa resistência. Foram os primeiros a ser soltos sob o novo sistema, e não
sabíamos que também foram os últimos.
O Tenente Konya, oficial político, levou um jornal à sala dos clérigos e chamou o
Padre Andricu.
"Leia isto alto", disse, "para que todos ouçam".
Andricu leu a manchete: UM PAÍS QUE RI E CORAÇÕES QUE CANTAM. Era um
artigo de Radu Ghinda, com uma foto do autor a sorrir, tirada antes de ser preso.
O Tenente Konya disse: "Queremos que saibam que todos vocês terão a mesma
oportunidade de uberdade e trabalho assim que abandonarem suas crenças ridículas e
desatualizadas e se juntarem ao povo da nova Roménia!"
Corações que cantam! Todos estavam lembrados de Ghinda, um saco de ossos.
Sabíamos que sua família estava aflita e a um filho tinham recusado educação.
Daianu também emprestou seu nome à glorificação da liberdade na Roménia
Socialista, mas, como os estudantes franceses de medicina que inutilizaram seus
cadernos de apontamentos e foram marcados como "bom pour POrient" -"bons para uso
do Oriente" - a produção de Daianu e Ghinda servia apenas para o Ocidente. Aí podiam
tirar partido da ignorância dos que não conheciam o país. Os artigos que escreveram
foram publicados em jornais e revistas de edição especial, enviada a milhares de romenos
no exterior, mas que ninguém podia obter para ler na Roménia.

143
Todo o mundo ficou perplexo com a soltura dos dois homens. Muitos que haviam
sofrido crueldades e humilhações durante anos, sem recuar, agora começavam a ceder.
Contudo os que se entregavam, ao invés de serem libertos, tinham de provar sua conversão
prontificando-se a trabalhar quatorze a dezesseis horas por dia. Retornando as suas celas
tinham de assistir a mais palestras, ou fazê-las. Tinham de manter um "gráfico de temperatura de
sanidade política" - o que significava terem todos de escrever acerca da atitude dos seus
vizinhos para com o Comunismo, se era morna, fria ou mesmo hostil.
As autoridades não podiam receber bons relatórios a meu respeito. O Tenente
Konya foi levar-me duas notícias. Primeiro, disse que minha esposa estava presa algum
tempo já. Segundo, que eu ia ser açoitado as 10 horas daquela noite, como castigo dos
meus repetidos desafios a minha insolência, que culminaram naquele discurso feito no
pátio.
A notícia sobre Sabina foi um choque terrível, e ao meu sofrimento com isso
juntava-se o medo dos açoites que ia receber. Todos tínhamos pavor desses períodos de
espera. O tempo demorava a passar e depois passava rápido, ao ouvir eu passos no
corredor. O som das botas continuou adiante. Alguém foi tirado da cela contígua. Daí a pouco
ouvi os golpes e gritos que vinham da sala no fim do corredor. Ninguém foi buscar-me
naquela noite. Na manhã seguinte fui avisado outra vez. Durante seis dias o "suspense" foi
mantido. Afinal fui levado. Os açoites queimavam como fogo. Quando terminou, o Tenente
Konya, que assistiu, gritou: "Dê-lhe mais alguns!" Demorei a me por de pé. "Mais dez!"
disse Konya. Fui ajudado a voltar à cela, onde o alto-falante trombeteava:
O Cristianismo é uma estupidez.
O Cristianismo é uma estupidez.
O Cristianismo é uma estupidez.
Por que não o renuncia?
Por que não o renuncia?
Por que não o renuncia?
O Cristianismo é uma estupidez.
O Cristianismo é uma estupidez.
O Cristianismo é uma estupidez.
Por que não o renuncia...?
Algumas vezes os açoites eram dados na cela por guardas em razão de "pequeninas
irregularidades". "Desça as calças pra apanhar!" Descíamos.
"Deite de barriga pra baixo!" Deitávamos.
"Fique de barriga pra cima e levante os pés". Ficávamos.
Procurávamos orar. Algumas vezes um padre dizia: "Eu invoco 'Pai Nosso', mas
que espécie de pai, que Deus é este que me abandona assim aos meus inimigos?" Eu
insistia com ele: "Não desista. Continue dizendo 'Pai Nosso'. Seja teimoso. Persistindo
você renova sua fé. Ele pode ouvir-nos porque participamos dos seus sofrimentos".
Quando os guardas ficavam enfadados de açoitar, lançavam mão de dois presos e
diziam: "Muito bem! Dê uma bofetada na cara do seu amigo!" Se ele não obedecia, diziam:
"Você perdeu sua oportunidade", e mandavam o outro que esbofeteasse o primeiro. Ele
desferia um soco às cegas. "Agora devolva-lhe o soco!" E os dois batiam na cara um do
outro, até que o sangue corria. Os guardas rebentavam-se de rir.

144
Certa noite o Tenente Konya mandou que eu juntasse meus pertences. Visto como eu
não tinha correspondido ao tratamento recebido, um estágio na quadra especial podia
ajudar neste sentido. Corriam muitos rumores na prisão sobre aquela secção da mesma.
Eram poucos os que voltavam de lá. Morriam, ou se rendiam à lavagem cerebral e eram
removidos. Alguns passavam a integrar o quadro do pessoal do doutrinamento e aprendiam
o processo de lavagem cerebral para aplicá-la em outros.
Atravessamos o pátio, viramos diversas esquinas e paramos diante de uma série de
portas. Uma foi aberta e fechada atrás de mim com duas voltas.
Fiquei sozinho numa cela cujas paredes eram cobertas de azulejos brancos. O teto
refletia fortíssima luz esbranquiçada de lâmpadas escondidas. Era pleno verão, mas o
aquecimento a vapor - que não havia em parte alguma de Gherla - estava em perfeito
funcionamento. Konya deixara-me algemado, de modo que só me podia deitar de costas ou
de lado. Fiquei lavado de suor. A fresta de espia tilintou e o guarda do lado de fora, com
risadinha abafada, perguntou: "Alguma irregularidade no aquecimento?" Senti dor no
estômago. O alimento tivera um sabor diferente, pensando eu que lhe tinham outra vez
adicionado droga. O alto-falante aí apresentou uma mensagem nova:
Ninguém mais crê em Cristo.
Ninguém mais crê em Cristo.
Ninguém mais crê em Cristo.
Ninguém mais vai à igreja.
Ninguém mais vai à igreja.
Ninguém mais vai à igreja.
Desista.
Desista.
Desista.
Ninguém mais crê em Cristo... Konya voltou na manhã seguinte, deixando entrar
uma lufada fria pela porta aberta. Minhas algemas foram retiradas. Estendi os braços
rígidos e obedeci à ordem de segui-lo pelo
corredor.
Nova cela me aguardava e novas roupas. Havia uma cama com lençóis, uma mesa
com toalha e um vaso de flores. Era demais: sentei-me e comecei a chorar. Quando
Konya saiu, recobrei o equilíbrio. Vi um jornal sobre a mesa. Era o primeiro que via em
todos os anos de meu encarceramento. Procurei ver lá a notícia de um boato que se
propalava em Gherla, de ter a Sexta Esquadra norte-americana entrado no mar Negro, a fim
de exigir eleições livres nos países escravizados, mas o que encontrei foi um tópico sobre um
ditador comunista que galgara ao poder em Cuba e estava provocando a América nos seus
próprios batentes.
Quem primeiro me visitou foi o Comandante Alexandrescu. Disse que meu novo
ambiente era uma amostra da vida boa que estava à minha disposição. Começou a atacar a
religião. Cristo, dizia ele, era uma fantasia inventada pêlos Apóstolos com o intuito de iludir
escravos dando-lhes esperança de liberdade em um paraíso.
Peguei o jornal e dei a ele. "Foi impresso nas oficinas do Partido", disse eu. "Traz
uma data de julho de 1963. Quer isso dizer 1963 anos contados do nascimento de uma
pessoa que -segundo o senhor diz - nunca existiu. O senhor não crê em Cristo, mas aceita-o
como sendo o fundador de nossa civilização".

145
Alexandrescu deu de ombros. "Isso não quer dizer nada; é costume contar desse
modo".
"Mas se Cristo nunca veio à terra, como apareceu esse costume?" perguntei.
"Alguns mentirosos começaram com ele". Eu disse: "Suponha que o senhor me diz
que os russos aterrissaram em Marte. Não sou obrigado a crer nisso. Mas se ligo o rádio e
ouço Nova York e os americanos se congratulando com eles então sei que é verdade. De igual
modo, devemos aceitar a existência de Cristo como um fato histórico visto como os piores
inimigos dele, os fariseus, reconhecem isso na Talmude, mencionando até o nome de sua
mãe e de alguns dos Apóstolos. Aliás, devemo-nos impressionar quando os fariseus atribuem
milagres a Cristo, embora afirmando que foram operados por magia negra. Muitos escritores
pagãos também o reconheceram. Só os comunistas negam esse fato evidente da História,
simplesmente porque não se coaduna com as suas teorias".
Alexandrescu não quis argumentar. Em vez disso, mandou-me um livro. Que
maravilha ter nas mãos um livro, depois de todos aqueles anos, embora fosse o "Guia do
Ateu". Esse manual, desconhecido no Ocidente, é indispensável a todos quantos querem
fazer carreira atrás da Cortina de Ferro.
Meu exemplar era de boa encadernação, ilustrado e com argumentos
cuidadosamente arranjados. Começando com as origens da religião, passa ao Hinduísmo,
Budismo, Confucionismo e Islamismo. Depois vem o Cristianismo, dando-se um capítulo a
cada confissão cristã. O Catolicismo é muito mal apresentado; o Luteranismo aparece
muito melhor (Lutero desafiou o Papa), porém tudo é apresentado como imposturas. A
ciência provou isso, por este motivo a Igreja sempre a perseguiu. Um capítulo inteiro
retrata a Igreja como instrumento do capitalismo através dos séculos; a exortação de Cristo
sobre o amor aos inimigos não quer dizer outra coisa senão curvar a fronte diante dos
exploradores. Uma secção especial é dedicada à corrupção do clero russo (o livro
evidentemente é tradução do russo). Uma gravura após outra mostra enganosamente que
os ritos cristãos se baseiam em superstições pagãs. O último capítulo analisa "Formas de
Propaganda Ateística", concluindo com uma relação dois decretos soviéticos contra a
religião. Depois disso caí no sono.
Nas poucas semanas seguintes alternaram-se promessas e ameaças, minha sala
particular ornada de flores e a cela ofuscante com alto-falante, boas refeições mas
provavelmente com drogas que lhes eram adicionadas e regime de fome, argumentos e
castigos. Certa manhã, enquanto eu passava pelo castigo do calor, juntou-se a mim o Padre
Andricu, o antigo "Padre Vermelho", que se arrependera. Sentou-se arquejante até que
não pôde mais suportar. Levantou-se de súbito e bateu com força na porta, pedindo para
sair. Daí a pouco o comandante apareceu.
"Pode ser mais quente ainda", disse Alexandrescu. Ou podíamos ser homens
libertos, se preferíssemos, repetiu ele. "Mas se vocês forem soltos, como irão proceder e
que espécie de sermões irão pregar? Quero que vocês escrevam um esboço". Deu-nos
caneta e papel, e saiu,
Sentamo-nos a escrever. Quando terminei, passei aAndricu minhas folhas de papel,
e tomei as dele para ler.
"Você pode ouvir sermões como estes todos os domingos", disse ele, pondo-se na
defensiva. "Progressistas, de uma forma científica e marxista".
Eu disse: "Não se engane, Padre Andricu. Você sabe que isto é uma retratação de
tudo quanto você crê. Mesmo no caso de um padre perder a fé, deve ficar calado. Eu não
falo do juízo diante de Deus. Que pensarão seus paroquianos, seus amigos, sua família

146
ouvindo-o pregar essa droga? Não deixe que os comunistas o iludam outra vez.
Compram você com promessas que não cumprem nunca".
Discuti longo tempo com Andricu, dizendo-lhe que em seu coração ele ainda estava
certo da verdade do Cristianismo. Por fim ele disse: "Devolva-me os sermões", e rasgou-
os.
Nova série de "encontros de luta", assistidos por centenas de presos, começou no
salão principal e fomos enviados da quadra especial a fim de presenciá-los. A maior parte
das palestras eram agora feitas por homens que, não fazia muito, foram nossos colegas
de cela. Depois de receber instruções, voltavam agora a declamar louvaminhas ao
Comunismo, que lhes tinha dado anos de sofrimentos. Os ataques deles à religião baseavam-
se quase sempre em teólogos modernistas que negam as Escrituras: propagandistas como
esses da escola da 'Morte de Deus'. Diziam-nos: "Estudem os seus próprios pensadores! Eles têm
provado não haver qualquer verdade objetiva no Cristianismo".
Durante dez a doze horas por dia ouvíamos palestras, entrávamos em discussões e
absorvíamos os "slogans" gravados em "tape". As palestras de lavagem cerebral apelavam ao Id mais
frequente e grosseiramente do que os funcionários locutores; e as visões deles de liberdade,
dinheiro; emprego estável - e assalto ao Ego - eram mais conviventes.
Em cada cela um punhado de homens relatavam diariamente a "sanidade
política" dos demais. Os que se sujeitavam a eles estavam bem seguros. Os que não se sujeitavam,
acabavam na quadra especial. A febre de delação alcançava a todos. Um homem perto de mim
queixou-se a um oficial a respeito de um guarda que vasculhava seu leito, mas não olhara debaixo
dele!
No dia 23 de agosto, aniversário do armistício com a Rússia, a maioria dos presos estava
pronta a crer em qualquer coisa que lhes dissessem. A um grande número de presos reunidos no
salão o Major Alexandrescu dirigiu a palavra, começando: "Temos boas notícias".
Camponeses, cujas fazendas tinham sido tomadas, ficaram sorridentes quando ouviram o
anúncio de que suas terras estavam florescentes na organização coletivista. Antigos negociantes e
banqueiros aplaudiram quando ele lhes disse que os negócios começavam a desenvolver-se.
"Alguns de vocês", disse o comandante, "afinal estão ouvindo a voz da razão. Outros
são muito tolos. Idiotas! Vocês estão parados no cárcere dez ou quinze anos, à espera dos
americanos que venham libertá-los. Tenho notícias a dar a vocês.
Os americanos estão vindo - não para soltá-los. Estão vindo para fazer comércio
conosco!"
Disse que o Partido, sob o Primeiro-Ministro Gheorghiu-Dej tinha tomado medidas
no sentido de obter favores comerciais no Ocidente. Empréstimos estavam sendo levantados,
fábricas se construíam, usinas nucleares estavam operando, tudo com o auxílio do
Ocidente.
"Tolos!" expectorou novamente a palavra. "Todos vocês tem vivido de ilusões.
Conhecemos os americanos melhor do que vocês. Se vocês pedem, eles não lhes dão nada.
Se vocês os insultam e ridicularizam, arranjam tudo quanto quiserem. Temos sido mais
ladinos do que vocês".
Alguém riu alto e outros aderiram. De repente o salão inteiro se agitava. O
barulho ia-se tornando histérico quando, levantando a mão, o comandante o reprimiu.
Bem-humorado disse que em compensação de não podermos tomar parte nos festejos do
"Dia da Liberdade", tinha tomado providências para que os víssemos - um aparelho de
televisão instalara-se para aquele fim.

147
O programa de TV começou com discursos feitos por Gheorghiu-Dej e outros
sobre a queda do regime fascista na Roménia. Nenhum dos oradores, naturalmente,
mencionou o papel vital desempenhado em 23 de agosto de 1944 pelo jovem Rei Miguel,
nem pelo estadista Juliu Maniu, do movimento Nacional Camponês, e pelo comunista
Ministro da Justiça Patrascanu, visto como o rei fora exilado e os outros dois morreram
no cárcere.
Lembrava-me que nos primeiros tempos do comunismo o povo procurava se afastar
da parada de aniversário, mas agora, quando começou a passeata, fiquei admirado de ver
colunas passando a pé diante dos retratos de Marx, Lenin e Dej, com bandeiras
vermelhas desfraldadas ao vento. Ouvimos a banda marcial, os aplausos das multidões e os
brados - "O 23 de agosto nos traz a liberdade!"
"No passado nunca houve isto", disse eu ao Padre Andricu ao meu lado.
Ele murmurou em resposta: "A primeira vez que uma jovem é violada, ela luta. Na segunda vez,
protesta. Na terceira vez, acaba gostando".
Terminando o espetáculo, começou outro.
"Agora vamos discutir a festa", disse Alexandrescu.
Uma após outra as pessoas apresentaram seu testemunho. Ex-soldados, antigos policiais,
proprietários de terras, camponeses, industriários. Todos eles, terminada sua contribuição,
bradavam: "O 23 de agosto trouxe-nos liberdade!"
Chegou minha vez. Comecei ferindo a nota do dia.
"Se alguém há a quem no 23 de agosto trouxe liberdade, essa pessoa sou eu", disse. "Os
fascistas odiavam-me, e se Hitler tivesse ganhado sua guerra eu hoje seria uma barra de sabão. Mas
estou vivo, e a Bíblia tem um ditado: 'Vale mais um cão vivo do que um leão morto'".
Continuei, enquanto ouvia murmúrios de aprovação, "Mas em outro sentido eu estava livre antes
do 23 de agosto. Vou dizer a vocês como foi. Em tempos antigos o Tirano de Siracusa leu o livro de
Epicteto, o escravo filósofo, e o admirou tanto que lhe ofereceu a liberdade. "Liberte-se o senhor
mesmo!" O filósofo retrucou-lhe: "Um tirano que é dominado por sua luxúria está em escravidão;
um escravo que governa suas paixões, esse é livre. Ó rei, liberte-se a si mesmo!"
O salão era todo silêncio. "Embora eu esteja preso, sou livre. Fui liberto de minhas culpas
por Jesus, e também das trevas de minha mente. Posso ser grato aos acontecimentos de 23 de agosto
por me haverem libertado do Fascismo. Mas a outra liberdade, liberdade de tudo quanto é
transitório, libertação da morte, essa eu agradeço a Jesus".
O comandante levantou-se. "Diga essas tolices a Gagarin. Ele esteve lá no espaço e
não viu sinal nenhum de Deus!"
Ele riu. Os presos riram com ele.
Respondi de uma maneira prosaica: "Uma formiga que ande à volta da sola do
meu sapato pode dizer que não vê sinal nenhum de Wurmbrand".
Fui castigado com outro estágio na Quadra Especial, e estava lá quando Alexandrescu
me procurou especialmente para me informar que o Presidente dos Estados Unidos tinha
sido assassinado.
"Que é que você pensa disso?" inquiriu.
Respondi: "Não posso acreditar".
Mostrou-me um jornal que relatava a morte de Kennedy em um curto parágrafo.
"E então?" interpelou-me. Insistindo em perguntas desse tipo usava a técnica para
descobrir como ia funcionando a mente dos presos.
148
Ao responder eu que, se Kennedy era cristão estava feliz no céu, Alexandrescu
foi debandando.
Mais tarde estava numa cela com o Padre Andricu quando os guardas vieram ter
conosco. Tivemos os olhos vendados e as mãos algemadas antes de sermos levados para
fora - pelo que tudo indicava íamos ser executados.
Os guardas iam dizendo: "Virem à direita", "Agora dobrem à esquerda".
Em local distante, na prisão, nossas vendas foram retiradas. Achamo-nos num
conjunto de gabinetes limpos e aquecidos.
Andricu foi levado a outra parte do que devia ser o setor administrativo central.
Fiquei fora de um porta, sozinho com um guarda que, em dias passados, ouvira-me falar
calmamente a respeito de Cristo.
Ele me sussurrou: "Meu pobre amigo! Você está passando uns maus bocados, mas em nome
de Deus continue!"
Afastou-se alguns passos, seu rosto inexpressivo, mas suas palavras animaram-me.
Ao abrir-se a porta, fui conduzido à presença de um homem fardado de general. Era Negrea, o
Ministro-Substituto do Interior, cuja inteligência emparelhava com a energia candente de seu
rosto vigoroso de gitano. O oficial e alguns funcionários de Bucareste estavam sentados ao seu
lado.
Negrea disse cortesmente: "Tenho estado estudando o seu caso, Sr. Wurmbrand. Não me
importo com as suas opiniões, mas aprecio um homem que mantém firme sua posição. Nós
comunistas também somos teimosos. Já tenho estado preso e muita coisa se fez para que eu
mudasse de ideia, mas fiquei firme.
"Creio que é tempo de fazermos concessões. Se o senhor está preparado para esquecer
o que tem sofrido, nós esqueceremos o que o senhor tem feito contra nós. Podemos virar a
página e nos tornar amigos em vez de inimigos. Assim, longe de agir contra suas próprias
convicções, o senhor pode agir baseado nelas e ainda ingressar num período de frutuosa
cooperação".
Um arquivo estava aberto diante dele. "Li até mesmo os seus sermões. As explanações
feitas à Bíblia são tecidas com muita beleza, mas o senhor precisa reconhecer que vivemos numa era
científica..."
"E daí?" perguntei a mim mesmo, ao penetrar Negrea na conversa do Partido acerca de
ciência. Teria sido para isto que um importante ministro viajara 50 léguas?
Tal como o Danúbio que vai serpenteando para um e outro lado das planícies,
mas acaba desaguando no mar, seu discurso chegou ao fim.
"Precisamos de homens como o senhor! Não queremos gente que adere a nós por
acomodação às circunstâncias, mas por ver as falácias do seu pensamento passado. Se o
senhor está preparado para ajudar-nos na luta contra a superstição, pode encetar
imediatamente uma nova vida. Terá uma posição com elevado salário, e sua família, ao
seu lado, gozando conforto em segurança. Que diz?"
Respondi já ter alegria na vida que ia levando, mas quanto a ajudar o Partido, eu
estivera pensando num modo de fazer isso, se fosse solto.
O oficial político levantou-se. Negrea disse: "Quer dizer que vai trabalhar para nós?"
"Sugiro que o senhor me envie de cidade em cidade, de vila em vila com o melhor
professor marxista que tiver. Primeiro exporei minha ignorância e os absurdos de minha
retrógrada religião cristã; a seguir o seu professor marxista poderá explicar suas teorias, e o
povo ficará então habilitado a arrazoar e escolher entre nós dois".
149
Negrea lançou-me um olhar severo. "O senhor está-nos provocando, Sr.
Wurmbrand. É isto o que aprecio no senhor. Foi este precisamente o modo que nós,
comunistas, empregamos para responder aos mandões de outrora. Assim pois não
discutamos. Vou fazer-lhe ainda uma proposta melhor. Ninguém quer que o senhor se torne
um propagandista de ateísmo. Se o senhor está realmente assim aferrado a uma fé cediça -
ainda que não possa eu compreender como é que um homem culto aceita tamanho absurdo
- então conserve-a consigo. Mas tenha também em mente que o poder está conosco! O
Comunismo já conquistou um terço do mundo, a Igreja precisa entrar em acordo
conosco.
Ponhamos as cartas na mesa, por esta vez. Francamente, estamos cansados de líderes
da Igreja que fazem tudo quanto pedimos, e algumas vezes até mais. Têm-se desacreditado
aos olhos do povo; não se apercebem mais do que vai acontecendo, perderam o contato com a
realidade".
Um a um, Negrea mencionou os bispos remanescentes. Todos estavam reduzidos à
impotência, disse ele, ou eram homens do Partido; e todo o mundo sabia disso.
"Agora, se um homem como o senhor se tornar bispo, poderá conservar sua fé e
ainda ficar leal ao regime. Sua Bíblia diz que o senhor deve submeter-se à autoridade, visto
proceder ela de Deus; por que não à nossa?"
Eu nada adiantei. Negrea pediu aos outros oficiais que se retirassem, deixando-nos a nós
dois sozinhos por um momento. Estava convencido que eu aceitaria a oferta e falou-me
confidencialmente sobre uma coisa que não queria que os outros ouvissem.
"O Partido cometeu um erro atacando o seu Concílio Mundial de Igrejas. Este
concílio começou num conluio de espionagem, mas os pastores envolvidos são quase
todos de origem proletária; não são acionistas, por assim dizer, mas são funcionários de alta
categoria. Em lugar de nos opormos a homens assim, devemos ganhá-los para o nosso lado, de
modo que o próprio concílio se tome um instrumento nosso".
Inclinando-se sobre a carteira, continuou: "Sr. Wurmbrand, é nisto que o senhor pode
ajudar. O senhor trabalhou para o Concílio Mundial de Igrejas. É largamente conhecido no
exterior: ainda estamos colhendo muitos informes a seu respeito. Se o senhor for feito bispo,
poderá ajudar nossos outros aliados do CMI a construir um baluarte para nós - não de
ateísmo, mas de Socialismo e paz. Certo que o senhor reconhece o universal idealismo de
nossas campanhas em prol do banimento da bomba e da guerra fora da lei, não é? E
poderá prestar seu culto para o seu próprio contentamento: aí não interferiremos".
Pensei por um momento.
"Até onde deve ir essa cooperação? Bispos que trabalharam com os senhores no
passado têm sido obrigados a delatar seus próprios padres. Será que esperam isto também
de mim?"
Negrea começou a rir. "O senhor, por força do seu ofício, não ficará sob nenhuma
obrigação especial", disse ele. "Quem quer que seja sabedor de um ato qualquer que possa
prejudicar o Estado é obrigado a denunciar a pessoa autora desse ato, e como bispo o
senhor certamente ouvirá coisas assim.
"O atual bispo luterano da Roménia está muito velho. O senhor será bispo-eleito
e chefe efetivo de sua igreja na Roménia, desde logo".
Pedi que me desse tempo para refletir, e Negrea concordou.
"Voltaremos a encontrar-nos antes de voltar para Bucareste a fim de dar entrada aos
seus papéis solicitando libertação", disse ele.

150
Fui levado de volta a uma cela isolada e fiquei pensando durante horas. Lembrei-
me do velho conto judaico de outro homem que pedira tempo para pensar: um rabino,
enfrentando a Inquisição, que lhe pedira negasse sua fé. Na manhã seguinte o rabino disse:
"Não me tornarei católico, mas faço um último pedido - que antes de ser queimado vivo,
minha língua seja cortada por não ter respondido imediatamente". A tal solicitação a
resposta foi "Não!"
Mas este era apenas um lado da questão: o outro era eu saber que a Igreja oficial
num país comunista só pode sobreviver por meio de alguma transigência; até em pagar
impostos a um Estado ateu o cristão transige. Era fácil dizer que a Igreja podia agir as
ocultas, mas uma Igreja secreta precisa de cobertura para realizar o seu trabalho. Na falta de
cobertura, milhões de pessoas são deixadas sem lugar onde se reunam para o culto, ficam
sem pastores que preguem, batizem, casem, sepultem os seus mortos - uma alternativa
inconcebível, quando eu podia ajudar a evitar isso, dizendo umas poucas palavras em favor
da coletivização ou das chamadas campanhas pró paz.
E depois, não via minha esposa e filho havia anos já; não sabia se estavam vivos. O
oficial político dissera que Sabina estava presa; que seria dela e de Mihai, se eu recusasse
aquela proposta?
Precisava de força de cima para dizer não, quando agindo assim teria de cumprir
mais onze anos, com o sacrifício de minha família e uma morte quase certa sob condições
terríveis, mas naquele momento a face de Deus ficou velada e minha fé falou. Tinha diante
dos olhos o fantasma enorme do Comunismo que já cobria tantas áreas do mundo e
ameaçava o resto; e minha imaginação foi vencida pelo perigo de morrer, de ser açoitado
repetidas vezes, e pela ideia da fome e das privações a que estava condenando minha mulher
e meu filho. Minha alma estava como um navio levado de um para outro lado, agitado por
violenta tempestade, um momento baixando ao abismo, outro momento elevando-se ao
Céu. Bebi naquelas horas o cálice de Cristo; aquilo era para mim o Jardim do Getsêmani. E tal
qual Jesus, lancei-me com o rosto em terra e orei aos soluços, pedindo a Deus que me
ajudasse a vencer aquela horrível tentação.
Depois da oração senti-me um pouco mais calmo. Mas ainda via diante de mim
Nichefor Daianu e Radu Ghinda e tantos outros que tinham prejudicado sua fé, inclusive o
Patriarca; eles eram mimares, e agora tinha-me tornado um homem de fé medíocre e seria
engolido como eles foram, por causa da fraqueza da carne. Comecei a pensar detidamente de
todas as vezes que eu tinha demonstrado a verdade do Cristianismo. Fazia a mim mesmo as
mais simples perguntas. É o caminho do amor melhor do que o do ódio? Tinha Jesus Cristo
tirado de sobre mim o fardo de pecados e dúvidas? É Ele o Salvador? Não havia
dificuldade alguma em responder imediatamente "Sim". E com isto como que um peso
enorme era removido de minha mente.
Durante uma hora, deitado na cama, dizia a mim mesmo: "Vou experimentar agora
não pensar em Cristo". Mas era em vão. Não podia pensar em nada mais. Sem o
Cristianismo o coração me ficava vazio. Uma última vez minha mente se deteve na proposta
de Negrea. Pensei nos tiranos, começando com Nabucodonosor, que estabeleceu um rei
sobre os judeus, até Hitler, que nomeou seus fantoches na Europa. No meu cartão de visita
ler-se-ia: "Ricardo Wurmbrand, Bispo Luterano da Roménia, nomeado pela Polícia Secreta".
Não seria um bispo de Cristo num lugar sagrado, mas um espião da polícia numa instituição
estatal. Orei outra vez, e depois senti minha alma tranquila. No dia imediato fui outra vez
chamado. O Comandante Alexandrescu compareceu, entre outros ao lado de Negrea, e
quando eu disse que não podia aceitar, toda a questão voltou a ser debatida. Somente
quando tocamos no assunto do Concílio Mundial de Igrejas Negrea outra vez pediu-me que
os outros se retirassem. Insistiu que eu reconsiderasse minha recusa.
151
Eu disse: "Não me acho digno de ser bispo - não me achava digno de ser pastor, e
mesmo ser um simples cristão era demasiada grandeza para mim. Os primeiros cristãos
marchavam para a morte dizendo 'Christianus sum!' - 'Sou cristão' - e eu não fiz isso;
pelo contrário, ainda cheguei a ponderar sua oferta vergonhosa. Mas não posso aceitá-la".
"Acharemos outro que queira", advertiu-me. Repliquei: "Se o senhor crê poder
provar-me que estou errado, apresente-me seus argumentos ateísticos! Tenho os
argumentos em defesa de minha fé: só procuro a verdade".
Perguntou-me: "O senhor sabe, por acaso, o que isto pode significar para o seu
futuro?"
- Já ponderei bem, já pesei os perigos, e alegro-me em sofrer pelo que estou
certo ser a verdade anal.
Negrea lançou-me o olhar de quem descobre que está perdendo o tempo. Cortês
até ao fim, inclinou a cabeça em saudação, fechou sua pasta, levantou-se se dirigiu à
janela de onde ficou olhando para fora enquanto os guardas me punham algemas e me
levavam dali.
Durante longo tempo fiquei na "quadra especial", quanto não sei ao certo. O tempo
reunia todos os dias de certos períodos de minha vida de preso num dia gigante. A lavagem
cerebral aumentou de intensidade, mas mudou pouco de método. O alto-falante agora dizia:
O Cristianismo está morto.
O Cristianismo está morto.
O Cristianismo está morto.
Recordo-me bem de um dia. Deram-nos postais para que convidássemos nossas
famílias a que nos levassem pacotes. No dia marcado, barbearam-me, tomei banho e deram-
me para vestir uma camisa limpa. As horas passaram-se. Sentado na cela contemplava os
azulejos brancos a cintilar, mas ninguém aparecia. Com o cair da noite tivemos apenas uma
rendição de guardas. Não podia saber que meu postal não fora enviado, e o mesmo
estratagema fizeram com outros presos obstinados. O alto-falante dizia:
^Ninguém mais o estima.
Ninguém mais o estima.
Ninguém mais o estima.
Comecei a chorar. O alto-falante continuava:
Não querem mais saber de vocês.
Não querem mais saber de vocês.
Não querem mais saber de vocês. Não podia suportar ouvir aquilo e não podia evitá-
lo. No dia seguinte houve um brutal "encontro de luta", reservado aos desapontados.
Muitíssimas outras esposas tinham vindo, disse o preletor. Nós é que éramos os tolos.
Tínhamos sido abandonados. Nossas esposas estavam vivendo com outros homens -
naquele momento exato. Descreveu o que estava acontecendo entre elas e eles, e isto em
termos livre. E onde estavam nossos filhos? perambulando nas ruas, ateus todos eles! Não
tinham nenhum desejo de ver os pais. Como nós éramos estúpidos!
Na quadra especial, dia após dia, eu escutava:
O Cristianismo morreu.
O Cristianismo morreu.
O Cristianismo morreu.

152
Com o passar do tempo cheguei a acreditar no que eles nos disseram naqueles
meses todos. O Cristianismo estava morto. A Bíblia prediz um tempo de grande
apostasia, e eu acreditava que já tinha chegado.
Depois pensei em Maria Madalena, e talvez isto, mais do que outra coisa, livrou-
me a alma do veneno mortal da última e pior fase da lavagem cerebral. Lembrei-me
como ficou ela fiel a Cristo, até mesmo quando Ele bradou do alto da cruz: "Deus meu,
por que me desamparaste?" E quando Ele era cadáver no túmulo, ela chorava junto,
esperando até que Ele ressurgiu. Assim pois quando por fim cheguei a acreditar que o
Cristianismo estava morto, eu disse: "Mesmo assim, crerei nEle e chorarei ao pé do seu
túmulo, até que ele ressurja, como é certo que ressurgirá".
PARTE NONA
JULHO DE 1964 todos os presos foram reunidos no salão principal. O comandante
entrou com os seus ficiais e nos preparamos para novo estágio na "campanha da luta".
Ao invés disso, o Major Alexandrescu anunciou que por força de uma anistia geral,
concedida pelo governo, os presos políticos de todas as categorias iam ter liberdade.
Não podia eu acreditar. Olhando à volta de mim, vi atónitos todos os rostos. Foi quando
Alexandrescu bradou uma ordem, e o salão inteiro estrugiu em vivas. Se lhes tivesse dito:
"Amanhã todos vocês serão fuzilados", ainda assim teriam ovacionado, e berrado: "Muito bem!
Não merecemos viver!"
O anúncio não foi, como a princípio pensamos, outro ardil. O verão daquele ano viu a
soltura de muitos milhares de presos. Agradecíamos isto a outro chamado "degelo" entre o
Oriente e o Ocidente, e também - embora que naquele tempo eu não soubesse - a uma verdadeira
mudança no coração do nosso Primeiro Ministro Gheorghiu-Dej. Após muitos anos de
dúvidas sobre o dogma do Comunismo, retornou à fé em que fora criado por sua mãe e na
qual ele permaneceu até à morte. Dej tinha-se convertido pela instrumentalidade de uma
empregada de sua casa e um tio dela, um bom velho que muitas vezes lhe falou sobre a
Bíblia. O Cristianismo, embora não confessado por ele abertamente, deu-lhe forças para
desafiar seus patrões soviéticos. Sem ligar para as ameaças deles, reatou relações com o
Ocidente, e em fazer isto deu um exemplo a outros países escravizados. Infelizmente
morreu poucos meses depois, apressado o seu fim, dizia-se, pêlos agentes soviéticos.
Chegou minha vez de liberdade. Achei-me entre um dos últimos grupos de cem
homens mais ou menos reunidos no enorme salão. Quase que fomos os últimos presos
deixados em Gherla. Estranho silêncio imperava nos corredores. Cortaram nosso cabelo
e nos deram roupas usadas, mas bem limpas.
Enquanto eu imaginava o que teria acontecido com o primeiro dono do terno que
eu estava usando, ouvi alguém chamando, "Irmão Wurmbrand!" Chegou-se a mim e
disse ter vindo de Sibiu, pelo que supus ser ele membro de nossa igreja ali.
"Ouvi muita coisa a seu respeito, contada pelo seu filho", acrescentou. "Vivíamos
juntos numa cela".
Interrompi. "Meu filho - preso?" Não, não; você está enganado!"
"Quer dizer que não sabia?" continuou o homem. "Faz seis anos que está preso".
Virei as costas e ele se afastou. O choque era quase mais do que podia suportar. A
saúde de Mihai não era boa; nunca que resistiria a tensão de um encarceramento
prolongado.
Minha mente ainda estava sob o choque do sofrimento quando o Comandante
Alexandrescu chegou. "Bem, Wurmbrand", perguntou em tom de curiosidade, "aonde vai,

153
agora que está livre?" Respondi: "Não sei. Fui informado oficialmente que minha mulher está
presa, e agora acabo de saber que também meu filho único. Não tenho ninguém mais".
Alexandrescu sacudiu os ombros. "O rapaz, também! Como você se sente com um filho
engaiolado como pássaro?"
- Tenho certeza que não está preso por roubo ou qualquer outro crime, e se está na
cadeia por amor a Cristo, então orgulho-me dele.
- O que! Gastamos tanto dinheiro mantendo-o na prisão durante anos, e achar você
que é motivo de orgulho ter a família no cárcere por estas coisas!
- Não foi de minha vontade que gastassem fosse o que fosse comigo.
E assim nos separamos. Saí da prisão com a roupa de outro. As ruas de Gherla pareciam
deslumbrantes. Carros passavam e eu comecei a ficar nervoso. As cores do casaco de uma
mulher, de um ramalhete chocavam minha vista. A música de rádio que saía de uma janela
aberta soava extremamente doce. O ar tinha o cheiro de pureza e novidade, como de feno que
estivesse sendo carreado além dos limites da pequena cidade. Mas tudo se mesclava de
tristeza, pensando eu na minha mulher e meu filho que estavam presos.
Fui de ônibus à cidade próxima de Cluj, onde tinha amigos, mas eles se haviam
mudado. Saí andando de casa em casa, no calor abafado de pleno verão, até que afinal os
encontrei. Ofereceram-me bolo e frutas, toda espécie de coisas boas. Mas na mesa havia
uma bonita cebola roxa, e era o que me apetecia. Tantas vezes suspirara por uma cebola, que
me tirasse da boca o gosto da comida do cárcere. Agora, porém, não via mais necessidade
dela.
Dei uma telefonada para um vizinho nosso em Bucareste.
A voz de quem atendeu era a de Sabina!
"Sou Ricardo", disse eu. "Julgava você presa!"
Houve um barulho de vozes. Mihai tomou o fone: "Mamãe
desmaiou - continue!" Houve ainda sons estranhos. Depois ele
disse: "Ela está bem. Pensamos que o senhor tivesse morrido!" Mihai nunca
esteve preso. A notícia falsa que recebi foi uma última volta na rosa para testar minhas
reações à lavagem cerebral.
Tomei o trem para Bucareste. Ao aproximar-se da estação vi uma multidão de
homens, mulheres e crianças. Carregavam ramalhetes e fiquei imaginando quem seria a
pessoa felizarda, que ia ser recepcionada daquela forma. Depois reconheci rostos, debrucei-me
na janela a acenar para eles. Ao descer, parecia que todo o povo de nossa igreja corria ao
meu encontro, e logo abraçava minha esposa e meu filho.
Naquela noite Sabina contou-me haver tido notícia de minha morte anos antes.
Recusou-se a acreditar, mesmo quando estranhos a procuraram, fazendo-se passar por ex-
prisioneiros que tinham assistido aos meus funerais.
"Vou esperar por ele", disse ela.
Passaram-se os anos e nenhuma notícia, até que telefonei. Para ela foi como se eu
tivesse ressurgido dos mortos.
Um domingo, meses depois de minha soltura, saí a passeio com um grupo de
meninos de escola. A Polícia Secreta perseguiu-nos logo, porém vendo que tomávamos a
direção do Jardim Zoológico deixaram-nos.
Levei os meninos à jaula dos leões e os reuni à minha volta, de modo a poder falar-
lhes baixinho.
154
Eu disse: "Os antepassados de vocês na fé cristã foram lançados às feras, como
estas. Morreram alegremente, porque criam em Jesus. Pode chegar o tempo de vocês
também serem presos e sofrerem por ser cristãos. Agora vocês precisam decidir se estão
prontos a enfrentar esse tempo".
Com lágrimas nos olhos cada um disse "sim". Não fiz nenhuma outra pergunta
nessa última aula de confirmandos, que tive antes de deixar minha pátria.
Revelei no prefácio por que decidi sair do meu país, e como vim para o
Ocidente. Agora tenho só o seguinte a acrescentar. Na parede de um edifício da
municipalidade em Washington D.C. vê-se uma grande placa onde se lê a Constituição dos
Estados Unidos, belamente gravada em cobre. Ao primeiro olhar, vemos somente as palavras
gravadas da Constituição; depois, dando passos para trás, de modo que a luz incida de outro
ângulo, a face de George Washington aparece, esculpida no texto.
É o que deve acontecer com este livro, que narra episódios da vida de um homem, e a
história dos que com ele estiveram na prisão. Atrás deles todos ergue-se um ser invisível, Cristo
que nos conservou a fé e nos deu forças para vencer.
RlCHARD WVWBRAND

BEIJANDOUMHERÓI
Estávamos saindo para mais uma viagem missionária. O nosso coração batia
forte.
"Alo, Alo, estamos falando com o querido filho do Rev. Richard Wurmbrand,
Michael Wurmbrand? Aqui fala o Rev. Adan Alvear presidente da Missão A Voz dos
Mártires no Brasil".
Estamos de viagem marcada ao Vietaã - via Estados Unidos -Japão, Tailândia, Laos
e Vietnã, e na volta gostaríamos muito de visitar o nosso mui amado fundador da Missão
A Voz dos Mártires, Rev. Richard Wurmbrand". O Rev. Richard já havia tempo que se
encontrava em casa de cama, com uma assistência médica diuturna. Michael pediu a data
em que viríamos, eu disse dia tal, ele me respondeu que conforme a agende dele, não
haveria a possibilidade de vê-lo, pois ele já se havia comprometido com mais de 200
pessoas. "Devido à sua complicada situação de saúde, há pessoas que vêm da Coreia do
Sul, África, Roménia, Alemanha, Austrália e muitos outros países somente para vê-lo
um instante". "Muito bem, mas eu já comprei a minha passagem a Los Angeles e não
posso mais cancelar, que farei?" Michael responde, então, que somente poderia vê-lo se
viesse desacompanhado. Viajei tranquilo ao Vietnã, onde passei momentos
inesquecíveis, e tive a oportunidade de levar um grande homem de Deus, que é o Pastor
Virgilio, presidente das Assembleias de Deus no Sergipe. Durante a nossa viagem ao
Vietnã ele me disse que fora por causa do Rev. Richard e por intermédio do seu livro
"Torturado por amor a Cristo" que ele fora missionário em Madagáscar e que tinha
vontade de conhecê-lo mais do que ao Papa. Chegando a Los Angeles o Pr. Renault já
estava no aeroporto me esperando, e sem demora estávamos a caminho da casa do Rev.
Richard.
Queridos irmãos e irmãs, leitores deste livro, conto esta História detalhada para
vocês poderem entender um pouco de missões, e sobre seus líderes e respectivas
experiências.
Chegando ao lar de Richard Wurmbrand, Michael nos explicou por que não nos
poderia deixar entrar no quarto dele. Ele disse: "Papai é considerado o apóstolo do século
20, como também Billy Graham o chama e o mundo cristão o reconhece. Ele é um
155
verdadeiro mártir, herói do cristianismo, o homem do século 20. Por intermédio dele a
igreja clandestina foi organizada e sustentada por mais de 30 anos. Mas ao passar desta
porta você verá uma outra pessoa, uma pessoa desgastada pêlos anos de sofrimento, de
prisão, fome, tortura e lágrimas derramadas pela igreja do Senhor. O homem que mais se
esforçou pela igreja do Senhor está muito velho, doente, nos seus últimos dias de vida. A
imagem não é bonita, por isso eles não podem entrar, somente você, Rev. Adan, pode,
porque esteve ao lado dele por 18 anos". Eu disse ao Michael: "Você está equivocado; para
nós, ele continua sendo nosso herói, não importa a sua aparência portanto, vamos entrar.
Quando o Rev. Richard me viu, aos seus 92 anos, ele gritou, lúcido e com seu coração
emocionado: "Alvear! Irmão Alvear!"
Falamos com ele, cantamos com ele, relembrando a canção na prisão comunista
com as correntes nas mãos e pés que pesavam 20 quilos, tornando-se um instrumento
musical que produzia um sonido de "plin, plin, plin" ao batê-las juntas.
Rev. Richard se lembrou comovido das multidões que o assistiram em suas
campanhas pelo Brasil. Ao total foram ganhas 26 mil almas para Jesus, e ele falava isto ao
seu filho Michael, viu, viu...
Querido amigo leitor, possivelmente para você não tenha nenhum valor a igreja
perseguida, mas ela tem suas histórias e seus mártires. Sua aparência não é bonita, você a
encontra feia, não quer nem saber dela e nem sequer tocar nesse assunto, mas ela existe em
todo o lugar e é a maior força do cristianismo no mundo.
A igreja do Senhor cresce, crescerá e vencerá, por que tem o maior dos
conquistadores ao seu lado, Jesus Cristo. Quero lhe apresentar esta igreja perseguida, mártir,
sofredora, sem apoio governamental, a igreja não registrada por não se curvar a um
governo tirano ou a uma falsa ideologia ou religião.

Você conhecerá irmãos simples mas cheios do poder de Deus que entregaram suas
vidas ao Senhor e que estão prontos a morrer por ele.
A imagem de um herói envelhecido e debilitado através dos anos de luta, que deu a sua vida
pela igreja do Senhor. Eu me curvo e beijo não sabendo que seria a última vez que aqui na Terra
estaria beijando alguém cujo nome já fora pronunciado nos céus para ser recebido e
condecorado pelo meu mui amado e querido Salvador Jesus, que, cada vez que um mártir
morre, Se levanta de Seu trono e o recebe em pé.
Rev. Adan Alvear - A VOZ DOS MÁRTIRES -

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