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- Parte II -

CONSTRUTIVISMO SOCIAL

O primeiro capítulo desta parte combina contributos da filosofia


da tecnologia e dos estudos construtivistas da tecnologia numa
teoria crítica da tecnologia. As tecnologias são analisadas a dois
níveis que atravessam todos os dispositivos e sistemas. Num ní-
vel primário, as pessoas e as coisas são descontextualizadas para
identificar potencialidades (a). Embora seja essencial para tudo o
que é tecnológico, o nível primário por si só não é suficiente para
constituir uma tecnologia. Ao nível secundário, os elementos
descontextualizados são recontextualizados para se adaptarem
aos seus ambientes natural, técnico e social. Este processo de re-
contextualização é também essencial. O código técnico é a regra
sob a qual as tecnologias se concretizam num contexto social,
com enviesamentos que refletem uma distribuição desigual do
poder. Os grupos subordinados podem desafiar o código técnico,
influenciando a evolução do projeto técnico.
O segundo capítulo aplica estes conceitos à primeira rede de
computadores doméstica bem sucedida, o sistema francês Mini-

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tel. O sistema foi projetado para distribuir informação de acordo
com as previsões de uma “idade da informação” pós industrial,
mas transformou-se em algo inesperado à medida que os utiliza-
dores o redirecionavam para a comunicação humana. A primeira
grande rede de computadores desvia-se, portanto, claramente
das teorias que eram a sua razão inicial. Um olhar mais cuidado
sobre este caso mostra o papel da agência dos utilizadores no
contraponto ao enviesamento tecnocrático da conceção dominan-
te da sociedade pós industrial.
O terceiro capítulo foca-se no Japão, o primeiro país não oci-
dental a modernizar-se. O Japão representa um caso de teste para
a universalidade dos sucessos modernos. Este capítulo mostra a
relevância da experiência japonesa através da análise de vários
exemplos de transferência de tecnologia e através de uma discus-
são de Kitaro Nishida, o principal filósofo japonês do período
anterior à guerra. O capítulo introduz os conceitos de desenvol-
vimento tecnológico por “ramificação” (b) e por “camadas” (c) e
aplica-os à teoria do “lugar” de Nishida (basho). O caso japonês
não resolve as nossas questões acerca da natureza da modernida-
de, mas mostra que a racionalidade tecnológica assume formas
complexas que são culturalmente relativas. Precisamos de globa-
lizar a nossa conceção de tecnologia, que não se pode continuar a
identificar exclusivamente com os feitos ocidentais.

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Capítulo IV
TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA:
UMA VISÃO GERAL

TECNOLOGIA E CULTURA
Nas explicações padrão da tecnologia, a eficiência serve como
princípio de seleção entre as iniciativas técnicas bem e mal
sucedidas. Porque a eficiência é uma quantidade calculável, a
tecnologia aparece dotada das virtudes da necessidade e
universalidade geralmente atribuídas à racionalidade científica. A
teoria crítica da tecnologia desmistifica esta imagem ao apontar
que a tecnologia não é meramente instrumental para fins
específicos, mas conforma um modo de vida. Este impacto mais
amplo pode ser intencional ou não; pode resultar de escolhas
específicas no projeto ou de efeitos laterais. De qualquer forma, o
impacto da tecnologia não é uma quantidade, mas sim uma
qualidade, e nada tem a ver com racionalidade universal. Precisa
de um tipo muito diferente de explicação.
A sociologia construtivista da tecnologia mostra que
diferentes configurações dos recursos podem resultar em versões

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CAPÍTULO IV

alternativas do mesmo dispositivo básico capazes de


desempenhar com eficiência as suas funções. Os diferentes
interesses dos vários atores envolvidos no projeto refletem-se em
diferenças subtis na função e nos efeitos laterais daquilo que é
nominalmente o mesmo dispositivo. A eficiência não é, portanto,
decisiva para explicar o sucesso ou o fracasso de projetos
semelhantes, pois geralmente há várias opções viáveis a
competir no início de uma linha de desenvolvimento. A
tecnologia é “subdeterminada” pelo critério de eficiência e
responde aos vários interesses particulares e ideologias que
fazem a seleção entre essas várias opções. As escolhas sociais
intervêm tanto na fase de definição do problema como na sua
solução. A tecnologia não é “racional” no sentido antigo do
positivismo, mas é socialmente relativa. Isto explica como o
resultado das escolhas técnicas pode ser um mundo que apoia o
modo de vida de um ou outro grupo social influente.
Introduzi o conceito de “código técnico” para articular a
relação entre o projeto técnico e social (Feenberg 2002:74–80). Um
código técnico é a realização de um interesse ou ideologia numa
solução tecnicamente coerente para um problema. Embora
alguns códigos técnicos sejam formulados explicitamente pelos
próprios tecnólogos, o termo, tal como eu o uso, refere-se a uma
ferramenta mais geral de caráter analítico, que pode ser aplicada
mesmo na ausência de tais formulações. Mais precisamente, um
código técnico é um critério que seleciona entre vários projetos
técnicos viáveis, mas alternativos, em termos de um objetivo
social, e concretiza esse objetivo no projeto. “Viável”, neste caso,
significa tecnicamente viável. Os objetivos são “codificados” no
sentido de escalonar os itens como eticamente permitidos ou
proibidos, esteticamente melhores ou piores, ou mais ou menos
desejáveis sob o ponto de vista social. “Socialmente desejável”
refere-se não a um critério universal, mas sim a um bem
geralmente valorizado, como a saúde ou o lucro. Os códigos
técnicos são formulados pelo teórico social em termos de tipos

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TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

ideais, ou seja, como uma simples norma ou critério. Um caso


exemplar na história da industrialização é a necessidade
imperativa de desqualificar o trabalho através da mecanização
em vez de preservar ou melhorar competências.
Em qualquer caso, um código técnico descreve a congruência
entre a exigência social e uma especificação técnica. Geralmente
materializa-se em dois registos ontológicos diferentes: o
discursivo e o técnico. Um processo de tradução liga os dois
registos. Exigir mais atenção, por exemplo, sobre a segurança dos
veículos traduz-se em cintos de segurança e balões individuais de
segurança; em termos operacionais, estas funcionalizações são o
significado de segurança. Logo, tecnologia e sociedade não são
domínios alheios um do outro, tal como são factos e valores nos
tratados de filosofia. Antes comunicam constantemente através
da realização de valores no projeto e pelo impacto do projeto
sobre os valores. Esta fluidez da técnica - sublinhada por Bruno
Latour no seu conceito de delegação -   explica porque é que a tão
propalada troca compensatória entre eficiência e ideologia, tão
cara aos comentadores conservadores da economia e dos
negócios, é largamente um mito (Latour 1992).
Os códigos técnicos estão sempre enviesados, em certa
medida, pelos valores dos atores dominantes. A teoria crítica da
tecnologia procura pôr a nu esses desvios. O enviesamento
técnico, no entanto, é difícil de identificar dado que as
consequências sociais injustas das decisões técnicas parecem ser
meros efeitos colaterais do “progresso”. Onde os códigos técnicos
são reforçados pela percepção individual do auto-interesse dos
indivíduos e pela lei, a sua importância política normalmente
passa despercebida. Isto é o que significa chamar um certo modo
de vida como “culturalmente protegido” e um poder
correspondente como “hegemónico”.
Esse tal poder hegemónico é apoiado pela noção liberal
segundo a qual o capitalismo democrático é um sistema neutro
de valores em que todos podem seguir a sua concepção privada

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CAPÍTULO IV

de bem. Demonstrar que o sistema é inerentemente enviesado


exige um tipo de argumento pouco familiar, que tem sido usado
com frequência por certos filósofos da tecnologia. Eles rejeitam a
alternativa -   racionalidade técnica ou enviesamento social - e
argumentam que este último aparece na racionalidade técnica
através do conteúdo social das escolhas técnicas. Exemplos
desses argumentos podem ser encontrados na noção de Marcuse
de que a neutralidade da tecnologia a coloca ao serviço dos
grupos sociais dominantes, assim como na crítica que Albert
Borgmann faz das implicações mútuas entre o liberalismo e o
“paradigma do dispositivo”, numa cultura enviesada na direção
do consumo privado (Marcuse 1964; Borgmann 1984).
A teoria crítica da tecnologia generaliza estes argumentos
por meio da distinção entre tipos de enviesamentos (Feenberg
2002, 80 ff; ver também cap. 8). A noção de enviesamento (a), tal
como aparece no senso comum, atribui uma discriminação injusta
ao preconceito e à emoção. Este “enviesamento substantivo”
baseia-se em convicções factualmente questionáveis. Decisões
enviesadas substantivamente no domínio tecnológico, onde a
racionalidade fria deveria prevalecer, conduzem a ineficiências e
rupturas evitáveis. Mas as operações eficientes são muitas vezes
injustas, até mesmo em casos onde o enviesamento, neste sentido
comum, é evitado. Logo a teoria crítica da tecnologia introduz o
conceito de “enviesamento formal” para compreender como é
que um sistema ou dispositivo técnico racionalmente coerente,
bem projetado e corretamente operado pode, apesar disso,
discriminar num dado contexto social. O conceito de
enviesamento formal também lança luz sobre noções como o
racismo institucional e serve o mesmo propósito, isto é, facilita
uma crítica de atividades socialmente racionais que parecem
justas quando abstraídas do seu contexto, mas que têm
consequências discriminatórias nesse contexto. Hoje, a justiça
exige a identificação e a alteração de códigos técnicos enviesados
formalmente.

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TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

AUTONOMIA OPERACIONAL
Para muitos críticos da sociedade tecnológica, Marx agora é
um autor irrelevante, um advogado de teorias económicas
ultrapassadas. Mas Marx teve contributos importantes para a
filosofia da tecnologia, que não se devem perder em conjunto
com a sua desacreditada abordagem económica.   Ele focou-se de
uma forma assim tão exclusiva sobre a economia porque, no seu
tempo, a produção era o principal domínio de aplicação da
tecnologia. Com a penetração da mediação técnica em todas as
esferas da vida social, as contradições e os potenciais semelhantes
aos que ele identificou na fábrica tiveram o mesmo destino.
Na visão de Marx, o capitalista é, em última instância,
alguém que se distingue não só por deter a posse da riqueza, mas
também pelo controlo das condições de trabalho. O proprietário
tem interesse técnico, tanto quanto económico, no que acontece
dentro da sua fábrica. Reorganizando o processo de trabalho,
pode aumentar a produção e os lucros. O controlo do processo de
trabalho, por sua vez, dá origem a novas ideias para a
maquinaria, e daí segue-se, a curto prazo, a mecanização da
indústria.
Ao longo do tempo, isso conduz à invenção de tipos
específicos de maquinaria que desqualificam trabalhadores e que
exigem gestão. A gestão age tecnicamente sobre as pessoas,
estendendo a hierarquia dos sujeitos e objetos técnicos às relações
humanas, na procura da eficiência. Afinal os gestores
profissionais representam, e em certo sentido substituem, os
proprietários no controlo das novas organizações industriais.
Marx denomina isto de “dominação impessoal” inerente ao
capitalismo, em oposição à dominação pessoal das anteriores
formações sociais. Materializa-se no projeto de máquinas e na
organização da produção. Num estádio final, que Marx não
antecipou, as técnicas de gestão e organização e os tipos de
tecnologia inicialmente aplicadas no setor privado são exportadas

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CAPÍTULO IV

para o setor público, onde influenciam a gestão governamental, a


medicina e a educação. Todo o ambiente da vida em sociedade
fica sob o domínio da técnica. Desta forma, a essência tecnológica
do sistema capitalista pode ser transferida para os regimes
socialistas construídos sobre o modelo da União Soviética.
Todo o desenvolvimento das sociedades modernas é,
portanto, marcado pelo paradigma do controlo não qualificado
sobre o processo de trabalho em que assenta o industrialismo
capitalista. O desenvolvimento técnico está orientado no sentido
de reduzir o poder dos trabalhadores e de massificar o público.
Esta é a “autonomia operacional”, a liberdade do proprietário ou
seus representantes para tomar decisões autónomas sobre como
conduzir os negócios da organização, independentemente dos
pontos de vista ou dos interesses dos atores subordinados e da
comunidade vizinha. A autonomia operacional da gestão e
administração posiciona-se numa relação técnica com o mundo,
mas a salvo das consequências das suas ações. Estas
consequências podem ser sombrias quando a empresa trata com
desprezo os interesses do trabalhador e da comunidade, mas
desde a supressão dos luditas e até aos dias de hoje, os
representantes empresariais têm sido normalmente protegidos do
clamor resultante. Soma-se a isto o facto da autonomia
operacional lhes permitir reproduzir as condições de sua própria
supremacia em cada alteração nas tecnologias sob o seu
comando. A tecnocracia é uma extensão de tal sistema para a
sociedade como um todo, como resposta à difusão da tecnologia
e da gestão para todos os setores da vida social. A tecnocracia
blinda-se a si mesma contra as pressões públicas, sacrifica os
valores da comunidade e ignora as necessidades incompatíveis
com a sua própria reprodução e com a perpetuação das suas
tradições técnicas.
A tendência tecnocrática das sociedades modernas
representa uma via possível de desenvolvimento, uma trajetória
conformada pelas exigências do poder. Ao submeter seres

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TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

humanos ao controlo técnico, à custa dos modos tradicionais de


vida, enquanto restringe fortemente a participação no projeto, a
tecnocracia perpétua as estruturas de poder das elites herdadas
do passado em formas tecnicamente racionais. O processo mutila
não só os seres humanos e a natureza, mas também a tecnologia.
A tecnologia possui potencialidades benéficas que são suprimidas
sob o capitalismo e sob o socialismo de estado. Estas
potencialidades poderiam ser realizadas ao longo de trajetórias
diferentes de desenvolvimento em que o poder fosse distribuído
mais equitativamente.
A teoria crítica da tecnologia identifica os limites dos códigos
técnicos elaborados sob o domínio da autonomia operacional.
Exactamente o mesmo processo que libertou capitalistas e
tecnocratas para tomar decisões sem levar em conta as
necessidades dos trabalhadores e das comunidades gerou uma
riqueza de novos “valores”, exigências éticas forçadas a procurar
uma voz discursiva. A democratização da tecnologia reside em
encontrar novos caminhos que privilegiam estes valores
excluídos e que os realizam nos arranjos técnicos.
Uma realização mais plena da tecnologia é possível e
necessária. Somos alertados, com uma frequência cada vez maior,
para esta necessidade pelos ameaçadores efeitos colaterais do
avanço tecnológico. Estes efeitos colaterais constituem ciclos de
retroalimentação (b) dos objetos sob o nosso controlo técnico sobre
nós, como sujeitos desse controlo. Normalmente a
retroalimentação é reduzida ou diferida de tal maneira que o
sujeito da ação técnica fica segura relativamente às forças
desencadeadas pelas suas próprias ações. Mas a tecnologia pode
“morder-nos na volta”, como Edward Tenner nos recorda, com
consequências assustadoras à medida que os ciclos de
retroalimentação que ligam sujeito e objeto se tornam cada vez
mais obstrusivos (Tenner 1996). Hoje estamos obviamente mais
conscientes deste facto a partir do exemplo da mudança climática,
uma consequência não intencional de quase tudo aquilo que

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CAPÍTULO IV

fazemos. O próprio sucesso da nossa tecnologia assegura que


estes ciclos se tornarão cada vez mais curtos à medida que
perturbamos mais violentamente a natureza enquanto a tentamos
controlar. Numa sociedade como a nossa, que está
completamente organizada em torno de tecnologias cada vez
mais poderosas, as ameaças à sobrevivência são claras.

TEORIA DA INSTRUMENTALIZAÇÃO (1)


Embora a teoria crítica da tecnologia procure identificar os
aspetos sociais da tecnologia, esta abordagem não impede o
reconhecimento da importância da funcionalidade simples. As
tecnologias devem realmente “funcionar” para servir no âmbito
de estratégias sociais, e um desiderato não pode ser reduzido ao
outro.
Assim, a teoria crítica da tecnologia distingue analiticamente
entre o aspeto da tecnologia que decorre da relação funcional
com a realidade, a que eu chamo “instrumentalização primária”,
e o aspeto decorrente dos seus envolvimentos sociais e da sua
implementação, a que eu chamo “instrumentalização
secundária”. Juntos, estes dois aspetos da tecnologia constituem o
“mundo”, num sentido próximo daquele que Heidegger dá ao
termo (2).
A instrumentalização primária inicia o processo de
construção do mundo pela desmundialização (c) dos seus objetos,
revelando as suas potencialidades (d). Extrai-as dos seus contextos
originais e expõe-os à análise e à manipulação, enquanto
posiciona o sujeito técnico para o controlo à distância. A
desmundialização reduz os elementos da realidade que podem
ser implementados para as características funcionais e situa-os
num contexto novo, em que servem um tipo de propósito.
A teoria complica-se, entretanto, pelo facto dos dispositivos
técnicos e os sistemas serem construídos a partir de elementos

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TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

simples com uma grande variedade de potencialidades. O


processo que combina esses elementos consiste em sucessivas
descontextualizações e recontextualizações, através das quais são
impostas limitações crescentes aos materiais. A
instrumentalização primária é iterativa: os elementos individuais
configurados para servir a um dado propósito podem ser ainda
mais descontextualizados e reunidos com outros elementos em
combinações que servem outros propósitos. Por exemplo: pode-
se apanhar uma pedra e usá-la para abrir uma concha. No
processo, ela perde as ligações com o seu ambiente original; mas
a mesma pedra pode depois perder a sua nova função e ser
recontextualizada como um componente de uma entidade
superior quando se junta com um pau para criar um martelo, útil
para trabalhos de construção.
As escolhas sociais contribuem para determinar as
especificidades do processo. Outro exemplo simples: uma árvore
é derrubada e são retirados os ramos e a casca, para ser cortada
em madeira. Todas as suas ligações com outros elementos da
natureza são eliminadas, exceto as relevantes para o seu uso para
construção. Mas este aspecto do processo de produção não é
puramente negativo. Incorpora muitas decisões motivadas
socialmente. Por exemplo, especificações elementares, como a
espessura padrão das placas de madeira, variam de país para
país. Mas não se pode fazer nada com a árvore antes dessas
especificações estarem definidas. Este processo de determinação
social é a “instrumentalização secundária”. Estabelece o
significado social do artefato.
Ao nível secundário, os objetos técnicos integram-se entre si
como a base de um modo de vida. O nível primário simplifica os
objetos para incorporação num dispositivo, enquanto o nível
secundário integra o objeto simplificado num ambiente social.
Isso envolve um processo que, seguindo uma vez mais
Heidegger, chamarei “aparecimento” (e) ou “revelação” de um
mundo. A revelação qualifica a funcionalização original

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CAPÍTULO IV

orientando-a para o mundo para cuja criação contribui.


O social aparece no domínio técnico sob duas formas
principais, que denomino “sistematizações” e “mediações
valorativas”. “Sistematização” refere-se ao sistema de
significados, estabelecidos socialmente, que determina a natureza
das tecnologias e as interligações entre as suas várias partes e os
ambientes técnico, humano e natural. Na medida em que não
existe uma única lógica causal a determinar as interligações
ótimas, o estudo empírico descobre qual a escolha social neste
aspecto técnico. As mediações valorativas governam aspectos da
tecnologia que se situam nos campos da ética, dos critérios
estéticos ou de outras normas sociais gerais. Estes aspectos não se
limitam a proibições e aparências externas, mas penetram no
próprio coração do objeto. Formam o horizonte cultural da
sociedade ao mesmo tempo que configuram os artefatos técnicos.
Os automóveis exemplificam ambos os aspectos, pois são
projetados para ser   propriedade privada, mas para usar e operar
com tipos específicos de estradas e combustíveis (sistematização);
estilisticamente apelam a vários gostos estéticos (mediação), e
estes últimos, por sua vez, influenciam características técnicas tais
como as dimensões e a posição do motor. A interação destes dois
aspectos com a engenharia automóvel é um processo iterativo em
que o significado que as tecnologias assumem no mundo da vida
retroalimenta o seu projeto, em cada fase do seu desenvolvimento
para a fase seguinte.
A evolução do frigorífico ilustra a relatividade do projeto,
quer em relação ao significado como ao horizonte cultural, tal
como exemplificadas pelas considerações de género e de
ambiente. A especificação do volume padrão do frigorífico reflete
o tamanho da família, enquanto que a forma externa se foi
“simplificando” a partir dos anos 1930 por incorporação no
espaço do trabalho doméstico das mulheres (Nickles 2002) (3).
Numa fase mais recente, a descoberta que o refrigerante destrói a
camada de ozono levou a um redesenho como resposta às

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TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

preocupações ambientais. Nenhum dispositivo é demasiado


banal para o estudo social da tecnologia.
É importante ter em conta que as duas formas de
instrumentalização, na maioria dos casos, apenas se diferenciam
analiticamente. Não interessa quanto abstratas sejam as
potencialidades identificadas no nível primário, elas incluem um
conteúdo social do nível secundário na sua abordagem aos
materiais. De forma semelhante, as instrumentalizações
secundárias, tais como os requisitos estéticos do projeto,
pressupõem a identificação das potencialidades a reunir e
concretizar. Derrubar uma árvore para fazer madeira e construir
uma casa com essa madeira não são, respectivamente, a
instrumentalização primária e a instrumentalização secundária.
Tal como mencionei antes, derrubar uma árvore
“descontextualiza-a” mas de acordo com várias especificações
que determinam o tamanho e a forma das tábuas. Para além
disso, considerações de ordem técnica, legal e estética
determinam quais os tipos de árvores que se podem converter em
pranchas de madeira. O ato de cortar as árvores não é, portanto,
simplesmente instrumentalização “primária” mas envolve ambos
os níveis, tal como seria de se esperar de uma diferenciação
analítica.
Os impactos das instrumentalizações secundárias aumentam
à medida que acompanhamos o artefato, desde o seu princípio e
ao longo das fases sucessivas do seu desenvolvimento, até ao
dispositivo final. Seja o processo de derrube das árvores: a árvore
é cortada e derrubada, mas apenas a árvore legal. A fase de
processamento: a árvore transforma-se em tábuas de madeira de
acordo com as especificações de um sistema de construção em
particular. A fase da construção: a casa é construída com base nas
tábuas de madeira, segundo um código de construção e uma
estética arquitetural. Até mesmo depois de entregue, um
dispositivo técnico continua sujeito a transformações adicionais,
ou por iniciativa do proprietário ou devido à regulamentação

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CAPÍTULO IV

governamental: as casas são remodeladas. O mundo da vida em


que os artefatos têm origem, e para onde retornam, tem o poder
de lhes dar forma e de os modificar. Neste sentido limitado,
podemos dizer que são socialmente conformados ou
“construídos”.
As duas instrumentalizações caracterizam a produção técnica
em todas as sociedades, mas só nos tempos modernos é que são
claramente distintas. Isso criou a ilusão de que os dois processos
são completamente separados, embora externamente
relacionados. De facto, ainda hoje em dia a diferença é
primariamente analítica, embora as grandes organizações as
separem com frequência, como o empacotamento e as operações
de engenharia. Logo a função estética, uma importante
instrumentalização secundária, pode ser isolada e atribuída a
uma “divisão de projeto corporativo”. Assim os artistas
trabalharão, lado a lado, com os engenheiros. Esta separação
institucional parcial das instrumentalizações estimula a convicção
de que são completamente distintas. A existência de disciplinas
técnicas parece confirmar a ideia do senso comum segundo a qual
tecnologia e sociedade são entidades separadas, mas estas
disciplinas mostram traços de escolhas sociais passadas que
cristalizaram em padrões e materiais. Há um inconsciente
tecnológico que dissimula essa história.
Mesmo assim, as versões radicais do construtivismo estão
erradas ao insistir em que não existe literalmente diferença entre
o técnico e o social. Se isso fosse verdade, então não existiriam
disciplinas técnicas e os produtores e utilizadores dos produtos,
mesmo dos mais simples, comunicariam mais facilmente. Seria
mais rigoroso afirmar que a tecnologia moderna é uma expressão
particular do social nos artefatos e sistemas, mediada por
disciplinas técnicas diferenciadas. As convicções e
comportamentos sociais correntes são muito diferentes,
misturando promiscuamente as dimensões técnicas e não
técnicas. Os significados guiam a ação de improviso na vida do

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TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

dia-a-dia, formando padrões que se intersectam dificilmente com


os produtos da engenharia, tal como Lucy Suchman argumenta
persuasivamente (Suchman 2007).
Uma filosofia da tecnologia adequada deve oferecer uma
explicação tanto da instrumentalização primária como
secundária. A tradição existencialista focou-se exclusivamente na
instrumentalização primária. As suas reflexões sobre o que
Verbeek chamou de pré condições “transcendentais” da
tecnologia formam a base de uma crítica da modernidade
(Verbeek 2005). Segundo esta crítica, a “essência” da tecnologia é
a orientação para o controlo e para a dominação. As sociedades
modernas submetem tudo à ação técnica e assim negam as
potencialidades e o valor intrínseco de tudo o que existe.
Esta abordagem excessivamente negativa ignora a
instrumentalização secundária, que complementa a
funcionalização inicial a que os objetos foram submetidos quando
entraram no domínio técnico. O mundo continua a ter significado
até mesmo na idade da tecnologia, embora os significados
tenham certamente mudado e se tenham tornado mais fluidos. A
instrumentalização secundária é estudada pelos cientistas sociais
e pelos historiadores, que se focam precisamente naquilo que os
filósofos negligenciam, as forças sociais concretas ativas no
processo de projeto. Mas sem uma teoria sobre a estrutura
intrínseca do técnico, falta-lhes uma perspectiva normativa sobre
os limites próprios da tecnologia.
Estes limites precisam de ser respeitados porque a
instrumentalização primária é, de facto, incompatível com muitos
aspectos da vida e da natureza humanas. Os objetos introduzidos
nas redes técnicas carregam a marca da funcionalização a que
foram submetidos. Nem todo o valor pode sobreviver a essa
transformação. Consequentemente, rejeitamos a ideia de que
meios, mais ou menos eficientes sob o ponto de vista técnico,
possam ser capazes de coisas como fazer amizades e apreciar um
jantar natalício. As descontextualizações e reduções da

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CAPÍTULO IV

instrumentalização primária têm, no máximo, um lugar


subordinado no pano de fundo das relações humanas mais
próximas e das ocasiões festivas.

ESTRATÉGIAS DE RECONTEXTUALIZAÇÃO
As sociedades pré-modernas e modernas atribuem pesos
relativos diferentes à sistematização e à mediação. Nas
sociedades pré-modernas, como assinala Latour, as redes técnicas
eram relativamente curtas e os seus nós ligados de forma frágil
(Latour 1993). No entanto, mediações valorativas muito
elaboradas controlam todos os aspetos da vida técnica; aqui, a
técnica é inseparável daquilo que nós, modernos, chamamos arte
e religião. Logo, armas tribais e palhotas podem ter um mesmo
simbolismo, mas não estão sistematicamente relacionados por
especificações técnicas de grande precisão, tal como estão as
tecnologias modernas. Como resultado, as sociedades pré-
modernas têm um alcance espacial limitado - as suas redes
confinam-se a regiões locais - mas conquistam o tempo, no
sentido em que podem ser reproduzidas com sucesso ao longo de
milhares de anos.
As sociedades modernas enfatizam a sistematização e
constroem redes de grande dimensão através de ligações fortes a
grandes distâncias entre tipos muito diferentes de coisas e
pessoas. Isto exige que o artefato seja despojado da maior parte
das mediações valorativas. O excesso resultante de ênfase, sobre a
instrumentalização primária e a sistematização, torna possível
tanto as organizações hierárquicas de grande dimensão como as
disciplinas técnicas. Mas, a despeito do poder sobre os seres
humanos e sobre a natureza, ou talvez por causa disso, as
sociedades modernas têm tão pouco controlo do tempo que é
incerto se irão sobreviver para além este novo século.
Até há pouco tempo, era moda os críticos sociais

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TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

condenarem a tecnologia por si mesma. Essa atitude perdura e


inspira um certo desdém arrogante pela tecnologia entre os
intelectuais que, apesar disso, a usam constantemente nas suas
vidas diárias. Porém, cada vez mais a crítica social tem-se virado
para o estudo e para a defesa das reconfigurações e
transformações possíveis da tecnologia a fim de a acomodarem
aos atores excluídos das redes originais de projeto. Esta
abordagem emergiu primeiro no movimento ambientalista, que
tem tido sucesso na alteração do projeto de tecnologias através da
regulação e da litigação. Hoje, continua a manifestar-se nas
propostas para transformar a biotecnologia e a informática.
A crítica construtivista da tecnologia tenta concentrar-se nas
deficiências da instrumentalização secundária, pois é aí que o
projeto recebe enviesamentos específicos. Isto é particularmente
claro sob o capitalismo, onde estratégias bem sucedidas de
negócios implicam frequentemente romper com várias
condicionantes na busca pelo lucro. As recontextualizações
técnicas favorecidas tendem a ignorar os valores e os interesses
de muitos dos envolvidos, sejam eles trabalhadores,
consumidores, ou a comunidade que acolhe as unidades de
produção. Por exemplo, no caso do corte das árvores para a
produção de madeira tem sido difícil convencer, até agora, as
grandes empresas a prestarem atenção à saúde das florestas e à
beleza da natureza. Estes são bens que apelam às comunidades
locais, aos desportistas e aos ambientalistas, mas habitualmente
estes atores não são convidados para participar no planeamento
deste tipo de projetos.
Uma modernidade alternativa, digna desse nome, deveria
restabelecer o poder mediador da ética e da estética. O que se
poderia conseguir não por um retorno ao tradicionalismo cego,
mas através da democratização das instituições tecnicamente
mediadas. O poder seria devolvido aos membros das redes
técnicas, ao invés de permanecer concentrado no topo das
hierarquias administrativas. À medida que mais atores

171
CAPÍTULO IV

ganhassem acesso ao projeto, um espectro cada vez mais amplo


de considerações valorativas passaria a informar as escolhas
técnicas. Estas mudanças formais resultariam em novos projetos
técnicos e em novas formas para alcançar as eficiências que
caracterizam a moderna atividade tecnológica. Em que medida é
que este tipo de sociedade é possível? Aí está algo que divide os
críticos da tecnologia.
As controvérsias do mundo real que envolvem a tecnologia
dependem frequentemente de uma suposta oposição entre os
padrões correntes da eficiência técnica e os valores. Esta oposição,
no entanto, é falsa, tal como argumentei no capítulo 2. Os
métodos ou padrões técnicos correntes foram outrora formulados
como valores e depois traduzidos nos códigos técnicos que agora
tomamos como bem reconhecidos. Este ponto é muito importante
para responder às habituais objeções práticas aos argumentos
para uma reforma social e tecnológica, como se a melhor maneira
de fazer qualquer trabalho ficasse comprometida por se prestar
atenção a aspetos externos, como a saúde e a beleza natural. Mas
a divisão entre aquilo que aparece como uma condição da
eficiência técnica e aquilo que aparece como um valor externo ao
processo técnico depende de decisões políticas e sociais
anteriores, que estavam enviesadas por desequilíbrios de poder.
Todas as tecnologias incorporam os resultados de tais decisões e,
desta forma, favorecem ou uns ou outros dos valores dos atores
ou, no melhor dos casos, combinam os valores de múltiplos
atores por meio de combinações inteligentes capazes de atingir
objetivos múltiplos.
Esta última estratégia envolve o que Gilbert Simondon (f)
denominou “concretização”, a multiplicação das funções servidas
em simultâneo pela estrutura de uma tecnologia (4).   As suas
ilustrações deste conceito são casos politicamente neutros de
inovações, como o motor arrefecido a ar, que combina duas
funções, arrefecimento com contenção do espaço, numa estrutura
única , elegante e eficiente. Modifiquei esta abordagem para ter

172
TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

em conta aquilo que aprendemos do construtivismo acerca das


forças sociais por trás das funções técnicas. Tal como vimos no
capítulo 1, o pneu insuflável permitiu uma bicicleta
inerentemente mais estável, apesar de menos veloz, que
ultrapassa as suas desvantagens nas corridas de bicicletas, ao
mesmo tempo que retém a estabilidade que a tornou atrativa
para o transporte (Pinch and Bijker 1989, 44–46). A troca
compensatória entre velocidade e estabilidade dissolveu-se à
medida que esta inovação reconciliou dois grupos sociais
diferentes: os jovens desportistas, interessados nas corridas, e os
cidadãos comuns, utilizadores da bicicleta para as suas atividades
quotidianas.
O conceito de concretização explica como contextos mais
amplos, ou ignorados, se podem implementar num projeto
tecnológico, sem perda de eficiência. Um frigorífico equipado
para usar um refrigerante protetor da camada de ozono atinge
propósitos ambientais com as mesmas estruturas que servem
para manter o leite frio. Bram Bos e colaboradores (2003)
argumentam que a produção animal à escala industrial pode ser
reorganizada de forma a respeitar as necessidades dos animais,
usando os seus comportamentos espontâneos num ambiente
adequadamente reconfigurado para proteger a saúde animal e,
consequentemente, a eficiência da operação. O que é verdade
para animais e para dispositivos é ainda mais verdadeiro para
seres humanos envolvidos em redes técnicas. As suas
capacidades plenas podem ser empregues produtivamente num
sistema técnico projetado para respeitar o corpo humano e para
tirar partido da inteligência e competências.

TECNOLOGIA E DEMOCRACIA
A teoria crítica da tecnologia é uma teoria política da

173
CAPÍTULO IV

modernidade com uma dimensão normativa. Pertence a uma


tradição que se estende desde Marx até Foucault, passando pela
Escola de Frankfurt. Nesta tradição, o progresso é analisado
como um processo contraditório. Os avanços no reconhecimento
formal dos direitos humanos assumem um papel central,
enquanto que a centralização insidiosa de instituições públicas e
organizações privadas, cada vez mais poderosas, impõe uma
ordem social autoritária.
Marx atribuiu esse padrão à racionalização capitalista da
produção. Atualmente está presente em muitas instituições, para
além das fábricas e de todos os sistemas políticos modernos,
incluindo os chamados sistemas socialistas. Este padrão emergiu
para manter o domínio sobre uma força de trabalho
desqualificada e destituída de poder, mas prevalece sempre que
as massas estão organizadas, seja nas prisões de Foucault ou na
sociedade unidimensional de Marcuse. O projeto e o
desenvolvimento tecnológico são moldados por este padrão para
servirem como a base material de uma ordem social distinta.
Marcuse chamou a isto o “projeto” na base da “racionalidade
tecnológica”. Libertar a tecnologia deste projeto é uma tarefa da
política democrática.
De acordo com esta abordagem geral, a teoria crítica
considera que as tecnologias mais como um ambiente do que
como uma coleção de ferramentas. Vivemos hoje com as
tecnologias que organizam a nossa forma de viver, ou até mesmo
dentro dessas tecnologias. Com as pressões constantes para
construir centros de poder, inscrevem-se muitos outros valores e
significados no projeto tecnológico. No seu conjunto, todas estas
influências formam um mundo. Uma hermenêutica da tecnologia
precisa de tornar explícitos os significados implícitos nos
dispositivos que usamos e nos rituais que estabelecem. As
histórias sociais da tecnologias como a bicicleta e a luz elétrica,
assim como os estudos sobre consumo e projeto de produtos, têm
dado contribuições relevantes sobre este tipo de análise (5). A

174
TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

teoria crítica da tecnologia tenta construir uma abordagem


metodológica com base nas lições desses relatos.
Como um mundo, as tecnologias moldam os seus habitantes.
A este respeito são comparáveis às leis e aos costumes que, na
antiguidade, eram consideradas como influências quase parentais
sobre os cidadãos, levando-os a conformarem-se de acordo com
um certo tipo humano desejado. Pode-se dizer que leis, costumes
e tecnologias tanto conformam como representam os que vivem
sob o seu controlo, privilegiando certas dimensões da sua
natureza humana. As leis da propriedade representam o interesse
de posse e controlo. Costumes como o casamento representam o
interesse da família na continuidade geracional e no apoio
mútuo. Da mesma maneira, um automóvel representa os seus
utilizadores enquanto interessados na mobilidade. Interesses
como estes constituem a versão da natureza humana sancionada
pela sociedade.
A representação tecnológica torna-se proeminente quando os
indivíduos descobrem que certos aspectos importantes de sua
humanidade não são bem servidos pelo ambiente tecnológico.
Emergem assim controvérsias, como no caso de leis e costumes
considerados como injustos ou ultrapassados. Estas controvérsias
têm como objetivo alterar os projetos tecnológicos para garantir
uma melhor representação da humanidade dos utilizadores e,
nalguns casos, vítimas da tecnologia. As lutas em torno da
tecnologia assemelham-se, em muitos aspectos importantes, às
lutas políticas. De facto, no mundo contemporâneo, as lutas em
torno da tecnologia são muitas vezes as lutas políticas mais
importantes.
Também porque os fundamentos das nossas filosofias
políticas e constituições foram elaborados nos séculos XVII e
XVIII, ainda há uma tendência para uma separação nítida entre
política e tecnologia, a primeira supostamente baseada em
direitos, e a segunda no conhecimento. Muita da teoria política
argumenta que o consenso pode ser alcançado por meio do

175
CAPÍTULO IV

exercício democrático desses direitos. Na realidade, o consenso


político é largamente conformado pela disponibilidade de formas
tecnológicas de vida, mais do que por deliberação racional.
As escolhas tecnológicas são, na sua maioria e hoje em dia,
decisões privadas e estão protegidas do envolvimento público
pelos direitos de propriedade e pela ideologia tecnocrática. O que
se pode fazer para reverter esta tendência? A democratização da
tecnologia exige, em primeira instância, uma difusão do
conhecimento mas, por si só, isso não é suficiente para fazer a
diferença. Para além disso, o espetro de interesses representados
por quem controla a tecnologia deve ser alargado para tornar
mais difícil a descarga de externalidades da ação técnica sobre os
grupos com menos poder. Apenas uma aliança democrática de
atores, capaz de abarcar todos os que são afetados, está
suficientemente exposta às consequências da sua própria ação
para que possa resistir a projetos nocivos, desde o seu início. Tais
alianças técnicas mais alargadas teriam em consideração os
efeitos destrutivos da tecnologia sobre o meio ambiente assim
como sobre os seres humanos. Os movimentos democráticos na
esfera técnica procuram construir essas alianças. O que exige
uma segunda condição de democratização técnica, mais política,
mas num sentido mais restrito.
Os movimentos democráticos de todos os tipos confrontam-
se com um ambiente hostil dominado pela manipulação dos
meios de comunicação social. Têm que ultrapassar as
dificuldades com os meios de comunicação social para conseguir
pôr novas questões na agenda pública. Conseguir mudar essa
agenda tem sido o sucesso mais importante dos movimentos
feministas e ambientais. Agora é chegada a hora de uma
mudança semelhante sobre o lugar da tecnologia na esfera
pública.
A teoria crítica da tecnologia projeta um futuro em que a
política da tecnologia é reconhecida como sendo um aspeto
normal da vida pública. Tal como em todos os movimentos

176
TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

democráticos anteriores, a democracia gera democracia: os


públicos técnicos, como todos os grupos anteriores sem poder,
podem aprender, pelo exercício da agência, a entender os seus
interesses e a pressionar as instituições públicas para os servirem.
Os meios de expressão democrática das questões técnicas já estão
a ser antecipados em muitas práticas correntes, como audiências
públicas, júris populares, controvérsias técnicas, protestos,
boicotes e disputas judiciais, pirataria e outras formas criativas de
apropriação de tecnologias, para além, é claro, dos métodos mais
familiares, como campanhas eleitorais e regulação governamental
(Callon et al. 2009).
Numa democracia técnica, o trabalho técnico assumiria um
outro caráter. O projeto seria conscientemente orientado para
valores humanos politicamente legitimados, mais do que sujeito
aos caprichos das organizações com fins lucrativos e das
burocracias militares. Estes valores seriam instalados nas
próprias disciplinas técnicas, tal como os valores da cura
prevalecem sobre o conhecimento biológico do corpo humano, na
medicina.
A teoria crítica clássica esteve acima de tudo dedicada à
interpretação do mundo, à luz das suas potencialidades. Estas
potencialidades são identificadas por meio do estudo sério
daquilo que existe e, especialmente, através do estudo dos
protestos e formas de resistência que apontam para além do
horizonte atual. Logo a investigação empírica pode, portanto, ser
mais do que um mero reunir de factos e, com o tempo, pode
informar um argumento. A filosofia da tecnologia pode unir os
dois extremos - potencialidade e atualidade, normas e factos - de
uma forma que nenhuma outra disciplina pode rivalizar. Precisa
de desafiar os preconceitos disciplinares, que confinam a
investigação e o estudo, e precisa de abrir perspectivas para o
futuro.

177
CAPÍTULO IV

CONCLUSÃO
Toda a tecnologia aponta para um operador, por um lado, e
para um objeto, por outro lado. Quando tanto o operador como o
objeto são seres humanos, a ação técnica é um exercício de poder.
Onde, para além disto, a sociedade se organiza em torno da
tecnologia, o poder tecnológico é a principal   forma de poder na
sociedade. Realiza-se por projetos que reduzem o leque de
interesses e preocupações e que podem ser representados pelo
funcionamento normal da tecnologia e das instituições
dependentes. Este estreitamento distorce a estrutura da
experiência e causa sofrimento humano e danos ao ambiente
natural.
O exercício do poder técnico evoca resistências de um novo
tipo, imanentes ao sistema técnico unidimensional. Os excluídos
do processo de projeto sofrem eventualmente as consequências
indesejáveis da tecnologia e protestam. Abrir a tecnologia para
um leque mais amplo de interesses e preocupações levaria a um
novo esforço de projeto com vista a uma maior compatibilidade
com os limites e poderes humanos e naturais. Uma
transformação democrática, a partir da base, pode reduzir os
ciclos de retroalimentação a partir dos prejuízos nas vidas
humanas e na natureza e dirigir uma reforma radical da esfera
técnica.
Uma compreensão adequada da substância da nossa vida
comum não pode continuar a ignorar a política da tecnologia. A
maneira como vivemos é largamente moldada pela forma como
configuramos e projetamos cidades, sistemas de transportes,
meios de comunicação e a produção industrial e agrícola.
Estamos a fazer, cada vez mais, escolhas sobre saúde e
conhecimento ao projetarmos as tecnologias de que dependem a
medicina, a investigação e a educação. Para além disso, os tipos
de coisas que parece plausível propor como avanços ou

178
TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA: UMA VISÃO GERAL

alternativas são, em grande parte, condicionadas pelas carências


das tecnologias existentes e pelas possibilidades que elas
sugerem. A controvérsia polémica do passado, segundo a qual a
tecnologia é política, parece agora óbvia.

179
Capítulo V
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO:
A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

INFORMAÇÃO OU COMUNICAÇÃO?
Noções como “sociedade pós-industrial” e “era da informa-
ção” são antecipações - ficções da ciência social - de uma ordem
social baseada no conhecimento (Bell 1973). O antigo mundo do
carvão, do aço e dos caminhos de ferro vai-se evaporando numa
nuvem de fumo industrial à medida que vai nascendo um mun-
do novo baseado nas comunicações e nos computadores. Os vul-
garizadores desta visão rejubilam com muitas das mesmas
tendências que são lamentadas pela crítica distópica, tal como os
níveis cada mais elevados de organização e integração da econo-
mia e a importância crescente das especialidades.
Os computadores têm um papel especial nestas antevisões,
porque a gestão das instituições sociais e das vidas humanas de-
pende cada vez mais do acesso fácil a dados. Os computadores
não só arquivam e processam dados, como também podem ser
ligados em rede para distribuir os dados. No futuro pós-industri-

181
CAPÍTULO V

al, a comunicação mediada por computadores (CMC) penetrará


em todos os aspetos da vida diária e servirá a procura crescente
por informação.
No final dos anos sessenta, estas previsões eram assumidas
pelos líderes políticos e empresariais como tendo o poder de
transformar o mundo. Aprende-se muito acerca de uma visão a
partir das tentativas para a realizar. Quando, como neste caso, os
resultados ficam aquém das expectativas, as teorias inspiradoras
das previsões originais são postas em questão. Este capítulo ex-
plora o hiato entre a teoria e a prática num caso particularmente
importante de computorização em massa: a introdução do video-
texto em França.
O videotexto é um tipo de software projetado para facilitar o
acesso a dados em redes de computadores. Os sistemas de video-
texto funcionam como bibliotecas online que arquivam “páginas”
de informação na memória de um computador, informação essa
acessível por utilizadores equipados com um terminal e um mo-
dem. Hoje em dia a internet faz essa função, mas o videotexto foi
originalmente pioneiro de um sistema semelhante. Esta foi, por-
tanto, uma primeira grande concretização da ideia de uma socie-
dade pós-industrial.
A teoria da era da informação prometia um mercado emer-
gente de videotexto. A experiência com videotexto, por sua vez,
testou na prática alguns dos seus pressupostos principais. As pri-
meiras previsões antecipavam que toda a gente se ligaria aos ser-
viços de videotexto ainda antes dos anos noventa. Nos finais dos
anos setenta, os ministérios das telecomunicações e as empresas
estavam preparados para enfrentar com confiança essa previsão do
futuro através de novos sistemas interativos. Lançaram-se sistemas
experimentais para testar diferentes configurações da tecnologia.
Mas muitas dessas experiências resultaram em tristes insucessos.
Este resultado pode ter sido devido, em parte, às regulamen-
tações “anti trust” que impediam as empresas gigantes de telefo-
nes e de computadores de fundirem as suas tecnologias com-

182
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

plementares em sistemas públicos em grande escala. A incapaci-


dade da FCC(a) impôr um padrão para os terminais agravou a si-
tuação. Sem os recursos e o conhecimento das grandes empresas,
e com os seus esforços sem qualquer coordenação pelo governo,
não surpreende que as empresas editoras e de entretenimento, de
menor dimensão, tenham sido incapazes de transformar o video-
texto comercial num sucesso (Branscomb 1988).
Os resultados desapontadores nos Estados Unidos foram
confirmados por todas as experiências com videotexto no estran-
geiro, com a exceção do sistema francês Teletel. O sistema inglês
Prestel(b) tinha introduzido o videotexto três anos antes dos fran-
ceses entrarem em cena. Ironicamente, os franceses entraram em
grande escala no videotexto, em parte pelo medo de ficarem atrás
dos ingleses.
O Prestel tinha a vantagem do apoio estatal, que nenhum sis-
tema americano podia ter. Mas também tinha uma desvantagem
correspondente: a sobre centralização. Inicialmente, os fornecedo-
res de informação não podiam ligar sistemas remotos(c) ao sistema
do Prestel, o que limitava muito o crescimento dos serviços. Mais,
o Prestel obrigava os utilizadores a comprarem um descodificador
para as suas televisões, uma peça de hardware cara que punha o
videotexto em competição com a programação televisiva. A base
de subscritores cresceu com uma lentidão patética, tendo chegado
apenas aos setenta e seis mil utilizadores nos primeiros cinco anos
(Charon 1987, 103-106; Mayntz and Schneider 1988, 278).
Entretanto, as aplicações bem sucedidas de CMC foram to-
das organizadas por, e para, empresas privadas, universidades e
entusiastas dos computadores. O público em geral tinha ainda
pouco, ou nenhum, acesso a essas redes e não tinha qualquer ne-
cessidade de usar serviços especializados, tal como pesquisas bi-
bliográficas e software bancário. Depois de uma fase inicial de
entusiasmo breve pelo videotexto, as CMC eram vistas primaria-
mente como adequadas para o trabalho, mas não para o prazer;
esperava-se que serviriam as necessidades dos profissionais, mais

183
CAPÍTULO V

do que o consumo ou o lazer (Ettema 1989).


Como explicarei adiante, a história do Teletel é bastante dife-
rente. Entre 1981, data dos primeiros testes do sistema francês, e
o final da década, o Teletel tornou-se, de longe, o maior sistema
público de videotexto no mundo, com milhares de serviços, mi-
lhões de utilizadores e centenas de milhões de dólares em recei-
tas. Até ter sido eclipsado pela internet, o Teletel era o ponto mais
brilhante da imagem então pouco impressionante do videotexto
comercial (o Teletel ainda existe, mas foi substituído pela internet
para a maioria das finalidades) (d).
Este resultado deixa-nos perplexos. Os franceses seriam di-
ferentes de todos os os outros? Essa explicação tola torna-se me-
nos plausível na medida em que a CompuServe e a Prodigy, da
IBM/Sears, cresceram até ao milhão de subscritores nos inícios
dos anos oitenta. A dimensão desses sistemas iniciais confirmou
a existência de um mercado habitacional para o videotexto mas,
no princípio, só os franceses souberam como o explorar. Como
explicar o surpreendente sucesso do Teletel, e quais são as suas
implicações sobre a teoria da era da informação, que inspirou a
sua criação?
O Teletel é especialmente interessante pois empregava
apenas tecnologia facilmente disponível em todos os outros paí-
ses em que o videotexto foi tentado e falhou. O seu sucesso só
pode ser explicado identificando as invenções sociais que desper-
taram um grande interesse do público pelas CMC. Uma observa-
ção mais cuidada destas invenções mostra as limitações não só
das primeiras experiências com o videotexto, mas também da te-
oria da era da informação (Feenberg 1991, cap. 5).

A EXPERIÊNCIA DE UM NOVO MEIO DE COMUNICAÇÃO


Embora o Teletel incorpore descobertas válidas acerca das CMC
domésticas em geral, também é um caso peculiarmente francês.

184
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

Muito do seu caráter único deriva da confluência de três fatores:


(1) uma política especificamente francesa de modernização; (2) a
ideologia voluntarista da burocracia no serviço público nacional;
e (3) uma forte cultura de oposição política. Cada um destes fato-
res contribuiu para um resultado que nenhum grupo na socieda-
de francesa tinha inicialmente antecipado. Em conjunto, abriram
o espaço de experimentação social que o Teletel tornou tecnica-
mente possível.

MODERNIZAÇÃO
A questão da modernidade está muito viva em França, de
uma maneira que é difícil de imaginar nos Estados Unidos. Os
americanos experimentam a modernidade como um direito de
nascença; a América não se esforça pela modernidade, antes defi-
ne-a, ou pelo menos eles assim acreditam. Por isso os Estados
Unidos não tratam a sua própria modernização como uma ques-
tão política, mas antes confiam no caos criativo do mercado.
A França, pelo seu lado, tem uma longa tradição de preocu-
pações teóricas e políticas com a modernidade. Primeiro na som-
bra da Inglaterra, e depois da Alemanha e dos Estados Unidos, a
França tem lutado por se adaptar, por si mesma, a um mundo
moderno que sempre sentiu, em certa medida, como sendo um
desafio externo. O extraordinário atraso do seu sistema telefónico
era um símbolo desse conservadorismo em geral e, por isso, a sua
modernização rápida, sob o presidente Giscard d’Estaing, signifi-
cava uma vontade de ir ao encontro do desafio. Este é o espírito
do famoso Relatório Nora-Minc, que Giscard encomendou a dois
quadros públicos de topo, para definir os meios e objetivos de
uma política concertada de modernização da sociedade francesa
nos últimos anos do século (Nora e Minc 1978).
Nora e Minc apelaram para uma ofensiva tecnológica em
“telemática”, o termo que cunharam para descrever o casamento

185
CAPÍTULO V

entre computadores e comunicações. A revolução telemática, ar-


gumentavam, mudaria a natureza das sociedades modernas, de
forma tão radical como a revolução industrial. Mas, adicionavam,
“a telemática, ao contrário da eletricidade, não transporta uma
corrente inerte, mas antes informação, o que significa poder”.
“Dominar a rede é, portanto, um objetivo importante. O seu qua-
dro de referência precisa, por isso, de ser concebida segundo o
espírito do serviço público” (1978, 11, 67). Em suma, tal como a
guerra é demasiado importante para que se deixe só ao cuidado
dos generais, também o desenvolvimento pós-industrial é dema-
siado importante para que se deixe apenas ao cuidado dos em-
presários, e deve se tornar antes num assunto político.
Nora e Minc prestaram uma atenção especial à necessidade
de ganhar a aceitação pública da revolução telemática, para ter
sucesso na nova divisão internacional do trabalho através dos
mercados emergentes de telemática (1978, 41-42). Argumentaram
que um serviço nacional de videotexto podia ter um papel central
para atingir esses objetivos. Este serviço podia sensibilizar o pú-
blico francês, ainda atrasado, para as maravilhas da idade da in-
formação, ao mesmo tempo que criava um enorme mercado
protegido para terminais de computadores. Alavancando o mer-
cado interno, a França poderia eventualmente tornar-se num lí-
der exportador de terminais e assim beneficiar da esperada
reestruturação da economia internacional, em vez de ficar ainda
mais para trás (1978, 94-95). Estas ideias estão na origem do pro-
jeto Teletel que, como uma mistura peculiar de propaganda e de
política industrial, teve um aroma distintamente estatizante, des-
de a sua origem.

VOLUNTARISMO
Assim concebido, o projeto caíu naturalmente nas mãos do servi-
ço público. Mas a escolha, que pode parecer estranha para os

186
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

americanos sempre desconfiados da inaptidão da burocracia, fa-


zia todo o sentido em França, onde as empresas tinham ainda pi-
or imagem do que o governo.
Quando é a burocracia, mais do que as empresas, a difundir
a modernização então o espírito de corpo da administração pú-
blica deixa a sua marca nos resultados. Em França isso não é as-
sim tão mau. Os burocratas franceses definem a nação em termos
da oferta uniforme de serviços como os correios, os telefones, as
estradas, as escolas, etc. O funcionamento desses serviços é uma
missão moral incluída no ideal republicano do igualitarismo. Os
franceses chamam “voluntarista” a esta abordagem da burocracia
porque, para o melhor e para o pior, ignora as situações locais e
as restrições económicas ao servir o interesse público universal.
É preciso ter em mente este sentido voluntarista de missão
para compreender como é que uma companhia francesa de tele-
fones, propriedade do Estado, e encarregada do desenvolvimento
do Teletel, pode ter concebido e implementado um serviço nacio-
nal de videotexto, sem qualquer garantia de uma operação rentá-
vel. De facto, o Teletel era menos um plano para ganhar dinheiro
do que uma ligação na cadeia da identidade nacional. Como tal,
pretendia chegar a cada habitação francesa como parte de uma
infra estrutura de unidade nacional, tal como o telefone e o cor-
reio (Nora e Minc 1978, 82).
Para chegar a este resultado, a companhia dos telefones dis-
tribuiu gratuitamente milhões de terminais, chamados “Mini-
tel” (d). Embora a publicidade inicial fosse dirigida diretamente
para as zonas habitacionais mais prósperas, qualquer pessoa po-
dia requisitar um Minitel. Eventualmente todos os subscritores de
telefones seriam equipados com um terminal. A França poderia
ultrapassar a sua posição de país industrial com o sistema telefó-
nico mais arcaico e passar diretamente para uma tecnologia do
século seguinte.
Uma companhia americana de telefones teria certamente co-
brado por uma melhoria tão sofisticada nos equipamentos dos

187
CAPÍTULO V

utilizadores. Até mesmo o governo francês estava preocupado


com a justificação desta liberalidade sem precedentes. A desculpa
foi a criação de um diretório eletrónico da rede telefónica nacio-
nal apenas acessível por Minitel mas, de facto, o ponto fulcral do
exercício foi simplesmente instalar um número enorme de termi-
nais tão depressa quanto possível (Marchand 1987, 32-34). A dis-
tribuição gratuita dos terminais precedeu o desenvolvimento de
um mercado de serviços, que era suposto trazer. Tal como os ne-
gócios à berma da estrada seguem as estradas, também se espe-
rava que os negócios telemáticos seguissem a distribuição dos
terminais Minitel.
Os primeiros quatro mil terminais Minitel foram entregues
em 1981 (Marchand 1987, 37); dez anos depois, mais de cinco mi-
lhões de terminais tinham sido distribuídos. A rapidez e a escala
deste processo são pistas para a economia da grande aventura te-
lemática. O programa ambicioso de modernização da companhia
dos telefones tornou-a no maior cliente individual da indústria
francesa nos anos setenta. O programa brilhante de telemática foi
desenhado para ocupar a capacidade disponível na produção de
telefones, que certamente se seguiria à saturação desse mercado,
evitando assim o colapso de um importante setor industrial.

OPOSIÇÃO
Tal como foi inicialmente concebido, o Teletel estava desenhado
para trazer a França para a idade da informação através de uma
grande variedade de serviços. Mas será que aquilo que cada uma
das habitações precisa é realmente de mais informação (Iwaasa
1985, 49)? E quem estava mais qualificado para oferecer serviços
de informação numa democracia (Marchand 1987, 40ff)? Essas
questões receberam uma variedade de respostas antagónicas du-
rante os primeiros anos do videotexto francês.
A modernização através do serviço nacional define o progra-

188
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

ma de um Estado altamente centralizado e controlador. Para tornar


as coisas ainda piores, o projeto Teletel foi iniciado por um gover-
no conservador. Esta combinação começou por inspirar uma des-
confiança generalizada e acordou o fraccionismo bem conhecido
de importantes setores da opinião. O padrão familiar do controlo
central e da resistência popular repetia-se, uma vez mais, com o
Teletel, um programa que caiu de paraquedas sobre um público
que não suspeitava de nada, e que depressa se transformou de
uma forma que nunca tinha sido imaginada pelos seus criadores.
A imprensa liderou a luta contra o controlo governamental
do videotexto. Quando o chefe da empresa francesa de telefones
anunciou o advento da sociedade sem papel (em Dallas, entre to-
dos os lugares possíveis), os editores reagiram negativamente,
com medo de perder as receitas publicitárias e a independência.
As implicações distópicas de uma sociedade dominada por com-
putadores não passaram sem notícia. Um editor, muito irritado,
escreveu que “Quem deitar a mão ao fio ficará poderoso. Quem
deitar a mão ao fio e ao écran ficará muito poderoso. Quem um
dia deitar a mão ao fio, ao écran e ao computador terá o poder do
próprio Deus” (citado por Marchand 1987, 42).
A imprensa sentiu-se triunfante com a chegada de um go-
verno socialista, em 1981. Para evitar a interferência política com
os conteúdos online, a própria companhia dos telefones só foi
autorizada a oferecer a versão eletrónica do diretório dos telefo-
nes. Entretanto, as portas do Teletel continuavam muito abertas,
pelos padrões de então: qualquer editor com licença podia ligar-
se ao sistema. Em 1986 até mesmo essa restrição foi abandonada;
agora qualquer pessoa com um computador podia ligar-se ao
sistema, listar um número de telefone no diretório e receber uma
fração do rendimento gerados pelos serviços na companhia dos
telefones.
Porque os pequenos computadores onde alojar os conteúdos
eram relativamente baratos e o conhecimento de videotexto era
tão acessível às empresas pequenas como às grandes, essas deci-

189
CAPÍTULO V

sões tiveram inicialmente um efeito altamente descentralizador.


O Teletel tornou-se um vasto espaço de experimentação desorga-
nizada, um “mercado livre” de serviços online que se aproximava
muito mais da ideia liberal do que muitos outros mercados de
comunicação nas sociedades capitalistas contemporâneas.
Este exemplo de sucesso do mercado tem grandes implica-
ções, mas não tão amplas como os advogados da desregulação
imaginam. O facto dos mercados, por vezes, mediarem a procura
de mudança técnica não os torna numa panaceia universal. Mui-
tas vezes os mercados são manipulados por grandes empresas,
para venderem tecnologias bem estabelecidas e para fazerem
murchar a procura de produtos existentes, ou para recanalizar
essas exigências para domínios onde não são precisas mudanças
técnicas básicas. No entanto, os consumidores podem voltar a
abrir o seu projeto através do mercado. Esta é certamente uma
razão para ver os mercados como instituições ambivalentes e com
um papel potencialmente dinâmico no desenvolvimento de um
nova tecnologia.

COMUNICAÇÃO
Surpreendentemente, embora os subscritores de telefones esti-
vessem agora equipados para a era da informação, fizeram rela-
tivamente pouco uso da riqueza de dados disponíveis no Teletel.
Consultavam regularmente o diretório eletrónico, mas não muito
mais. Mas, em 1982, os piratas(e) transformaram um serviço cha-
mado “Gretel” num sistema de mensagens (Bruhat 1984, 54-55).
Depois de uma resistência inicial fraca (ou talvez simulada), os
operadores deste serviço institucionalizaram a invenção dos pi-
ratas e fizeram uma fortuna. Logo se seguiram, rapidamente, ou-
tros serviços com nomes como “Désiropolis”, “La Voix de
Parano”, “SM”, “Sextel”. As mensagens “cor-de-rosa” tornaram-
se famosas pelas conversas picantes e pseudo anónimas em que

190
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

os utilizadores procuravam gente com ideias semelhantes para


conversas e encontros.
Depois das mensagens assumirem uma escala nacional, as
pequenas empresas de telemática reconstruíram o Teletel como
um meio de comunicação. Desenharam programas para gerir
grande número de utilizadores em simultâneo, emitindo e rece-
bendo informação, e inventaram um novo tipo de interface. Ao
entrar no sistema, era pedido de imediato aos utilizadores um
pseudónimo e um currículo sumário (carte de visite). Eram então
convidados a consultar os currículos daqueles já online e a iden-
tificar parceiros de conversa com ideias “parecidas”. Os progra-
mas usavam a capacidade gráfica do Minitel para dividir o écran,
atribuindo um espaço separado para as mensagens de cada uma
dos utilizadores, até meia dúzia. Era aí que as energias criativas
despertadas pela telemática chegavam aos franceses, e não nos
obscuros desafios técnicos tão queridos aos corações dos buro-
cratas governamentais, tal como assegurar a influência francesa
na configuração dos mercados internacionais de bases de dados
então emergentes (Nora e Minc 1978, 72).
Os planos originais do Teletel não excluíam completamente a
intervenção humana, mas a sua importância para a disseminação
de dados, transações online, até mesmo jogos, foi certamente su-
bestimada. Os serviços de mensagens quase que não foram cita-
dos nos primeiros documentos oficiais sobre telemática (por
exemplo, Pigeat et al 1979). A primeira experiência com Teletel,
em Vélizy, revelou um entusiasmo inesperado pela comunicação.
Originalmente concebido como um mecanismo de retorno(f) para
ligar os utilizadores com a equipe de projeto em Vélizy, o sistema
de mensagens depressa se transformou num espaço geral e aberto
de discussão livre (Charon e Cherky 1983, 81-92; Marchand 1987,
72). Mesmo depois dessa experiência, ninguém imaginava que a
comunicação humana viesse a ter um lugar principal num sistema
maduro. Mas foi precisamente isso que aconteceu.
No verão de 1985, o volume de tráfego na Transpac, a rede

191
CAPÍTULO V

francesa de transmissão por comutação de pacotes(g), excedeu a


sua capacidade e o sistema colapsou. O campeão orgulhoso da
alta tecnologia francesa foi posto de joelhos perante os bancos e
as agências governamentais, obrigados a passar para offline por
centenas de milhares de utilizadores que mudavam de um servi-
ço de mensagens para outro, à procura de entretenimento. Foi a
demonstração última da distribuição do uso da nova telemática
(Marchand 1987, 132-134). Embora só uma minoria de utilizado-
res estivesse envolvida, por volta de 1987 cerca de 40% das horas
de tráfego doméstico eram usadas por serviços de mensagens
(Chabrol e Perin 1989, 7).
As mensagens “cor-de-rosa” podem parecer um resultado
trivial de uma geração de especuladores sobre a era da informa-
ção, mas transformaram-se num caso sério, candidato a uma
avaliação mais positiva. Mais importante, o sucesso dos serviços
de mensagens mudou o imaginaire(1) da telemática, da informação
para a comunicação. Isto, por sua vez, encorajou uma grande va-
riedade de experiências em domínios como a educação, saúde e
notícias (Marchand 1987; Bidou et al 1988). Alguns exemplos:
Os programas de televisão ofereceram serviços para os
espectadores acederem a informação suplementar ou
trocarem opiniões, adicionando um elemento interativo à
difusão unidirecional;
Políticos em diálogo com os seus constituintes, e movi-
mentos políticos, abriram serviços de mensagens para
comunicar com os seus membros;
Experiências educacionais juntaram alunos e professores
em aulas eletrónicas e tutoriais, como, por exemplo, nu-
ma escola médica de Paris;
Um serviço de psicologia oferecia a oportunidade de
pessoas discutirem anonimamente problemas pessoais e
procurarem ajuda;

192
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

O serviço de mensagens do jornal Libération coordenou


uma greve nacional de estudantes em 1986. Talvez o caso
mais interessante das experiências de mensagens, o ser-
viço oferecia informações acerca de controvérsias e lutas,
grupos de discussão online, atualizações horárias de no-
tícias, e até mesmo um jogo que ridicularizava o ministé-
rio da educação (Marchand 1987, 155-158). Terá sido uma
das primeiras, senão mesmo a primeira, aplicação de
uma rede eletrónica em protestos públicos.

Estas aplicações revelaram o potencial insuspeito da CMC


para criar novas formas surpreendentes de sociabilidade. Mais
do que imitar o telefone ou a escrita, as CMC jogam na capacida-
de única da telemática para mediar uma comunicação altamente
pessoal e, muitas vezes, também anónima. Estas experiências
prefiguram uma organização muito diferente da vida privada e
pública nas sociedades avançadas, cuja dimensão começa agora a
ser visível com a Web 2.0 (Feenberg, 1989a: 271-275; Jouet and
Flichy, 1991)(h).

O SISTEMA
Embora ninguém tivesse planeado previamente todos estes ele-
mentos, eventualmente acabou por emergir um sistema coerente
a partir do jogo das várias forças. Composto de elementos cor-
rentes, formou um todo único que finalmente rompeu as barrei-
ras da aceitação pública da CMC.
O sistema caraterizava-se por cinco princípios básicos:
1. Escala. Só um governo, ou uma empresa gigante, teria os
meios para iniciar uma experiência como o Teletel, com uma es-
cala suficiente para garantir um teste adequado do sistema. Pro-
jetos piloto mais pequenos soçobraram todos num dilema do ovo

193
CAPÍTULO V

e da galinha: criar um mercado de serviços quando os utilizado-


res precisassem dele, mas não se podiam atrair os utilizadores
sem um mercado de serviços a funcionar. A solução, demonstra-
da em França, foi fazer um enorme investimento inicial em facili-
dades de transmissão e em terminais, que atraísse um número
suficiente de utilizadores num estádio inicial e justificasse uma
massa crítica de proveitos(2).
2. Gratuitidade. Talvez a característica mais revolucionária do
sistema tenha sido a distribuição gratuita dos terminais. A rede de
comutação de pacotes e os terminais eram tratados como um todo
único, ao contrário de todas as outras redes nacionais de computa-
dores. Foi a gratuitidade que ditou as decisões sobre a qualidade
dos terminais. A ênfase era sobre a durabilidade e sobre uma in-
terface com grafismo simples. Assegurava também aos fornecedo-
res de serviços uma base ampla desde o princípio, ainda antes
mesmo do público ter percebido o interesse de um sistema pouco
familiar e de ter investido num terminal ou numa subscrição cara.
3. Estandardização. A posição monopolista da companhia
francesa de telefones e a distribuição gratuita dos terminais Mi-
nitel asseguravam a uniformidade em diversas áreas vitais. O
equipamento e os procedimentos de entrada(i) eram padroniza-
dos, e foi implementada uma interface simples de navegação no
teclado do terminal, semelhante à de um browser da internet. A
maior parte do serviço era oferecida a partir de um único número
nacional de telefone e a um preço único, independente da locali-
zação. A empresa dos telefones usava o seu sistema de faturação
para cobrar todos os débitos, partilhando os recebimentos com os
fornecedores de serviços.
4. Liberalismo. A decisão de facilitar a ligação dos compu-
tadores à rede de pacotes foi tomada contra a tradição da empre-
sa de telefones controlar todos os aspetos do seu sistema técnico.
No entanto, uma vez tomada a decisão, abriu as portas a um flo-
rescimento notável de criatividade social. Embora o Minitel tenha
sido projetado primariamente para acesso à informação, também

194
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

podia ser usado para muitas outras coisas. O sucesso do sistema


deve muito ao encontro do mercado livre de serviços com a flexi-
bilidade do terminal.
5. Identidade. O sistema adquiriu uma imagem pública
através da sua identificação com um projeto de modernização e
através da distribuição maciça de terminais distintivos. Uma
imagem telemática única também foi moldada pelo diretório es-
pecial dos telefones, através de um estilo gráfico associado ao
mosaico alfa numérico do Teletel, pela adoção da gestão de é-
crans do videotexto, em vez de écrans deslizantes(j), e pelo fenó-
meno social das mensagens “cor-de-rosa”.

O CONFLITO DE CÓDIGOS
Estas interpretações do Teletel contradizem os pressupostos de-
terministas acerca do impacto social dos computadores, que ins-
pirou Nora, Minc e muitos outros teóricos do pós-industrialismo.
A lógica da tecnologia simplesmente não ditou uma solução níti-
da para o problema da modernização; em vez disso, foi um pro-
cesso muito confuso de conflitos, negociação e inovação, que
produziu um resultado socialmente contingente. Quais eram es-
ses fatores, e como é que influenciaram o desenvolvimento da
CMC em França?

CONSTRUTIVISMO SOCIAL
A evolução do Teletel confirma a abordagem do construtivismo
social, introduzida nos capítulos precedentes. Ao contrário do
determinismo, o construtivismo social não explica o sucesso de
um artefato pelas suas caraterísticas técnicas. De acordo com o
“princípio da simetria”, há sempre alternativas que poderiam ter
sido desenvolvidas em vez da alternativa que teve sucesso. O que

195
CAPÍTULO V

carateriza um artefacto não é uma propriedade intrínseca, como a


“eficiência” ou a “eficácia”, mas sim as suas relações com o am-
biente social.
Como vimos no caso do videotexto, esta relação é negociada
entre inventores, administradores do serviço público, empresári-
os e empresas, consumidores e muitos outros grupos sociais, num
processo que acaba por definir, em última instância, um produto
específico adaptado a uma combinação específica de exigências
sociais. Este processo termina num “encerramento” (k) que produz
uma “caixa negra” estável , um artefato que pode ser agora trata-
do como um todo acabado. Antes de uma tecnologia nova chegar
ao encerramento final, o seu caráter social é evidente; mas, uma
vez bem estabelecida, um olhar ingénuo sobre o passado pode
sugerir que o seu desenvolvimento terá sido puramente técnico,
até mesmo inevitável. Tipicamente, os observadores posteriores
esquecem a ambiguidade original da situação em que, pela pri-
meira vez, se encerrou a “caixa preta” (Latour 1987,2-15).
Esta abordagem tem várias implicações para o videotexto:
Primeiro, o desenho de um sistema como o Teletel não é
determinado por um critério universal de eficiência, mas
sim por um processo social que julga as alternativas téc-
nicas de acordo com critérios diversos.
Segundo, esse processo social não é acerca da aplicação
de uma tecnologia de videotexto pré-definida, mas diz
respeito à própria definição de videotexto e à natureza
dos problemas a que se dirige.
Terceiro, diferentes definições concorrentes refletem vi-
sões sociais da sociedade moderna, em conflito entre si, e
que se concretizam em diferentes escolhas técnicas..
Quarto, emergem novos grupos sociais e categorias à
volta da apropriação da nova tecnologia ou da resistência
aos seus impactos, o que conduz a modificações do seu
projeto.

196
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

Estes quatro pontos indicam a necessidade de uma revolu-


ção no estudo da tecnologia. O primeiro ponto alarga a amplitu-
de do conflito social para passar a integrar questões técnicas que,
tipicamente, tinham sido tratadas como os objetos de um consen-
so puramente “racional”. Os dois pontos seguintes implicam que
os significados entram na história não só através da produção
cultural e da ação política, mas também através da esfera técnica.
Compreender a perceção social ou a definição de uma tecnologia
exige uma hermenêutica dos objetos técnicos. O último ponto in-
troduz a co-construção da sociedade e da tecnologia.
As tecnologias são objetos com significado. A partir do ponto
de vista do dia a dia, há dois tipos de significados que lhes estão
associados. Em primeiro lugar têm uma função e, para a maior
parte dos seus fins, o significado reflete a sua função. No entanto,
também reconhecemos uma penumbra de “conotações” que as-
sociam os objetos técnicos com outros aspetos da vida social, in-
dependentemente da função (Baudrillard 1968, 16-17). Assim, os
automóveis são meios de transporte, mas também significam o
dono como sendo mais ou menos respeitável, rico, atraente, etc.
No caso de tecnologias bem estabelecidas, a distinção entre
função e conotação é habitualmente clara. Há uma tendência pa-
ra projetar esta clareza sobre o passado e imaginar que a função
técnica precedeu o objeto e o criou. O programa de construtivis-
mo social argumenta, pelo contrário, que as funções técnicas não
estão pré definidas, mas que são descobertas no decurso do de-
senvolvimento e uso do objeto. Certas funções vão ficando gra-
dualmente bloqueadas(l) pela evolução do ambiente social e
técnico. Por exemplo, as funções de transporte do automóvel fo-
ram institucionalizadas nos planos urbanos de baixa densidade,
que criam uma procura que os automóveis satisfazem. O encer-
ramento final depende, em parte, da criação de ligações firmes
numa rede técnica mais ampla.
No caso das novas tecnologias, não há uma definição inicial
clara da sua função. Em consequência, não há uma definição cla-

197
CAPÍTULO V

ra entre os diferentes tipos de significados associados à tecnolo-


gia. Recorde-se o exemplo de Pinch e Bijker sobre a bicicleta, dis-
cutido no capítulo 1. As conotações de um projecto podem ser
funções, quando vistas de outro ângulo. Estas ambiguidades não
são meramente conceituais se o dispositivo ainda não estiver
“encerrado” e se nenhum bloqueio institucional o ligar decisiva-
mente a um de entre vários usos. Assim, as ambiguidades na de-
finição de uma nova tecnologia precisam de ser resolvidas
através do próprio desenvolvimento técnico. Projetistas, compra-
dores e utilizadores têm todos um papel no processo pelo qual o
significado de uma nova tecnologia é finalmente estabelecido (3).
O encerramento tecnológico é eventualmente consolidado
num código técnico. Os códigos técnicos definem o objeto em
termos estritamente técnicos, de acordo com os significados soci-
ais adquiridos. Com as bicicletas, isto foi conseguido na década
de 1890. Uma bicicleta segura para o transporte apenas se podia
produzir de acordo com um código técnico que ditava um assen-
to posicionado muito atrás de uma roda dianteira pequena.
Quando os consumidores encontraram uma bicicleta produzida
de acordo com este código, imediatamente a reconheceram por
aquilo que ela era: uma “segurança”, na terminologia desse tem-
po. Esta definição, por sua vez, associou-se a ciclistas femininos e
idosos, com as viagens à mercearia, etc. e excluiu as associações
com jovens desportistas à procura de emoções.
Os códigos técnicos são interpretados através dos mesmos
procedimentos hermenêuticos usados para a interpretação de
textos, obras de arte e ações sociais (Ricoeur 1979). Mas o trabalho
complica-se quando os códigos se tornam em apostas em disputas
sociais significativas. Nesse caso, as visões ideológicas consoli-
dam-se no desenho ou projeto. Daí o “isomorfismo, a congruência
formal entre as lógicas técnicas dos aparelhos e as lógicas sociais
dentro das quais se difunde” (Bidou et al 1988, 18). Estes padrões
de congruência explicam o impacto do ambiente sociocultural
mais amplo nos procedimentos de encerramento final (Pinch e

198
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

Bijker 1989, 46). O caso do videotexto é um caso impressionante.


No que se segue tentarei reconstituir esse padrão, desde o nível
macro das visões do mundo até aos detalhes do desenho técnico.

UMA UTOPIA TECNOCÁTRICA


Neste caso, a questão é a própria natureza da sociedade pós-in-
dustrial. A era da informação foi originalmente concebida como
uma sociedade mais de cientistas, uma visão que legitimou as
ambições tecnocráticas de governos e empresas. Os pressupostos
racionalistas acerca da natureza humana e da sociedade, subja-
centes a esta fantasia, já eram familiares, há um século ou mais,
como um tipo de utopia positivista.
Os seus traços mais importantes são familiares. O pensa-
mento científico e técnico torna-se na lógica de todo o sistema
social. A política é uma mera generalização dos mecanismos
consensuais da investigação e do desenvolvimento. Os indiví-
duos integram-se na ordem social através da prosperidade, não
através da repressão. Este bem estar atinge-se através do domí-
nio técnico do ambiente pessoal e natural. Logo, o poder, a li-
berdade e a felicidade baseiam-se todos no conhecimento.
Esta visão global suporta a generalização dos códigos e
práticas associadas com a engenharia e a gestão. Não é preciso
partilhar explicitamente uma fé utópica para acreditar que as
abordagens profissionais dessas disciplinas são úteis fora dos
contextos em que são habitualmente aplicadas. A difusão das
ideias de engenharia social baseadas na análise de sistemas, te-
oria da escolha racional, análise do risco e do benefício, etc., tes-
temunha este avanço na racionalização da sociedade. Supo-
sições semelhantes influenciaram os patrocinadores do Teletel, o
que não surpreende, dado o culto da engenharia na burocracia
francesa.
Ao nível micro, estes pressupostos funcionam na tradicional

199
CAPÍTULO V

interface do computador, com os seus menus claramente hierár-


quicos, consistindo em descritores com uma só palavra para as
“opções”. Um espaço lógico formado por essas alternativas cor-
relaciona-se com um “utilizador” individual empenhado numa
estratégia pessoal de otimização. Projetada na sociedade como
um todo, na forma de um serviço público de informação, esta
abordagem implica um certo mundo.
Nesse mundo, a “liberdade” é a escolha mais ou menos in-
formada entre opções pré-selecionadas, que foram definidas por
uma instância universal, tal como uma autoridade tecnocrática.
Essa instância reivindica ser um meio neutro, e o seu poder é
precisamente legitimado pela sua transparência: os dados são
precisos e são classificados com lógica. Mas não deixa de ser um
poder acerca disso.
Os indivíduos são aprisionados precisamente num sistema
deste tipo, nas suas interações com as instituições empresariais,
governamentais, médicas e escolásticas. O videotexto simplifica
este universo tecnocrático. De facto, alguns dos serviços mais
bem sucedidos no Teletel ofereciam informação sobre regras bu-
rocráticas, planeamento de carreiras ou resultados de exames.
Estes serviços jogam sobre o “efeito de ansiedade” da vida numa
sociedade racional: a individualidade como um problema de au-
togestão pessoal (Bidou et al 1988,71). Mas o papel da ansiedade
revela o lado negro desta utopia. O sistema parece incorporar um
elevado grau de racionalidade social, mas é um pesadelo de
complexidade e arbitrariedade, confuso para aqueles cujas vidas
molda. Este é o “palácio de cristal” tão temido e odiado nos
“subterrâneos” de Dostoievski ou na Alphaville de Godard(m), em
que a regra benigna dos computadores é a suprema opressão de-
sumanizante.

200
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

O SUJEITO ESPECTRAL
O Teletel foi apanhado numa disputa sobre qual o tipo de experi-
ência pós-industrial que deveria ser projetado tecnologicamente
através da computação doméstica. Como vimos, a definição de
interatividade, em termos de um código técnico racionalista, en-
controu uma resistência imediata a partir dos utilizadores que ig-
noraram o potencial de informação do sistema e que, em vez
disso, o utilizarampara fins de comunicação humana e anónima.
Esta aplicação inesperada revelou toda uma outra dimensão
da experiência do dia-a-dia nas sociedades pós-industriais, mas-
carada pela utopia positivista. Como o hiato entre pessoas indivi-
duais e o papel social se vai alargando, e os indivíduos são a-
panhados pelas “massas”, a vida social reorganiza-se cada vez
mais à volta de interações impessoais. O indivíduo facilmente
desliza entre papéis diferentes e não se identifica inteiramente
com nenhum deles, entra e sai diariamente de várias massas ou
multidões, e não pertence completamente a qualquer uma das co-
munidades. A solidão da “multidão solitária” consiste numa mul-
titude de encontros ambíguos e triviais. Os códigos simplificados
de interação no “sistema” oferecem poucas possibilidades de au-
to expressão pessoal ou de ligação aos outros. O anonimato tem
um papel central nesta nova experiência social e dá origem a fan-
tasias de sexo e violência que estão representadas na cultura das
massas e que, em menor grau, se realizam nas vidas individuais.
Tal como o videotexto permite ao indivíduo personalizar
uma pergunta anónima a uma agência de planeamento de carrei-
ras ou a uma burocracia governamental, agora também a relação
com textos eróticos, até aqui não articulada, pode agora alcançar
uma personalidade, e até mesmo reciprocidade, graças ao Mini-
tel. A privacidade da habitação assume agora funções previa-
mente atribuídas a espaços públicos, como bares e clubes, mas
com uma alteração importante: o écran não liga apenas os inter-
locutores, mas também protege as suas identidades.

201
CAPÍTULO V

Tal como os “anúncios pessoais” dos classificados dos jor-


nais, os indivíduos têm a impressão que o Minitel lhes dá um
controlo total de todos os sinais que emitem, ao contrário dos ar-
riscados encontros face a face, em que o controlo é incerto, na
melhor das hipóteses. Um controlo melhorado, através das auto-
apresentações escritas que viabiliza jogos elaborados de identi-
dade. “Em vez da identidade ter um estatuto de dado inicial (com
que a comunicação geralmente se inicia), torna-se antes num su-
porte, um produto da comunicação” (Baltz 1984, 185).
A experiência de comunicação pseudoanónima faz recordar a
dupla definição de ego por Erving Goffman, como “imagem” ou
identidade e como “objeto sagrado” a quem é devida considera-
ção:
“o ego como uma imagem reunida a partir das implicações ex-
pressivas do fluxo completo de acontecimentos de um evento;
e o ego como uma espécie de jogador num jogo ritual, que lida
com as contingências dos juízos da situação, com ou sem hon-
ra, com ou sem diplomacia” (1982,31).

Ao aumentar o controlo sobre a imagem enquanto reduz o risco


de embaraço, o sistema de mensagens altera a relação sociológica
das duas dimensões da identidade e abre um novo espaço social.
A dessacralização relativa do sujeito enfraquece o controlo
social. É difícil fazer pressão de grupo sobre alguém que não
consegue ver o olhar severo da desaprovação. A CMC aumenta,
portanto, o sentido de liberdade pessoal e de individualismo, ao
reduzir o compromisso “existencial” do ego nas suas comunica-
ções. “Flamejante” - a expressão das emoções online sem censura
- é uma consequência negativa deste sentimento de libertação.
Mas o sentido alterado da realidade do outro também pode
aumentar a carga erótica da comunicação (Bidou et al 1988,33).
Marc Guillaume introduziu o conceito de “espetralidade”

202
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

para descrever estas novas formas de interação entre indivíduos


que estão reduzidos ao anonimato na vida social moderna e que
usam esse anonimato para proteger e afirmar as suas identidades.
As teletecnologias, consideradas como uma esfera cultural,
respondem a um desejo maciço e incontrolado de escapar, par-
cial e momentaneamente, tanto das restrições simbólicas que
persistem na sociedade moderna como da funcionalidade tota-
litária. Escapar, mas não na forma ainda ritualizada dos perío-
dos breves de celebração e de desordem permitidos pelas
sociedades tradicionais, mas antes escapar conforme a conve-
niência do sujeito, que paga essa liberdade com uma perda.
Torna-se um espetro ... no sentido triplo do termo: desaparece
para vaguear livremente como um fantasma numa ordem sim-
bólica que se lhe tornou transparente (1982:23)

O avanço social aparece aqui não como a difusão de elementos


tecnocráticos através de toda vida quotidiana, mas sim como gene-
ralizações da lógica comutativa do sistema telefónico. As redes na-
cionais de computadores, como o Teletel, baseiam-se no standard
X.25, que permite aos computadores servirem “clientes” distantes
através de linhas telefónicas(n). Embora essas redes possam ligar
todos os seus computadores, tal como o sistema telefónico liga to-
dos os seus assinantes, isso não é bem aquilo para que foram inici-
almente projetadas. Eram antes supostas facilitar grupos de
utilizadores na partilha de tempo em computadores especializa-
dos(o). Habitualmente, os utilizadores desses sistemas não estão em
comunicação uns com os outros.
O Teletel começou como uma rede X.25 corrente, em que o
utilizador é um ponto numa interação na forma de estrela, estrutu-
rada hierarquicamente a partir do centro, o computador central (p).
Mas, na prática do sistema, o utilizador tornou-se num agente de
interligação horizontal e generalizada (Guillaume, 1986, 177ff). Es-

203
CAPÍTULO V

ta mudança simboliza a emergência das redes como uma alternati-


va, tanto à organização formal como à comunidade tradicional. O
sistema de computadores proporciona um ambiente particular-
mente favorável onde se pode experimentar esta nova forma social.
Na CMC, a pragmática dos encontros pessoais está radical-
mente simplificada, de facto reduzida, aos protocolos de ligação
técnica. De forma correspondente, a facilidade de passagem de
um contato social para outro aumenta muito, uma vez mais se-
guindo a lógica da comutação. As mensagens “cor-de-rosa” são
um mero sintoma desta transformação, pontuando um processo
gradual de mudança na sociedade em geral. Uma vez mais, para
compreender esta alternativa é útil olhar para as metáforas técni-
cas que invadem o discurso social.
O colapso generalizador dos últimos rituais que bloqueiam
os indivíduos no reduto do eu sagrado, é acompanhado por uma
retórica de libertação. A vida pessoal torna-se uma questão de
gestão de redes, enquanto a família e outras estruturas estáveis
colapsam. Os novos indivíduos pós-modernos são descritos co-
mo flexíveis, adaptáveis, capazes de encenar as suas próprias
performances em cenários múltiplos e cambiantes, de um dia pa-
ra o outro. A rede multiplica o poder dos seus membros, unindo-
os em contratos sociais temporários ao longo de vias digitais de
confiança mútua. O resultado é uma “atomização pós-moderna
da sociedade em redes flexíveis de jogos de linguagem” (Lyotard
1979, 34).
O Teletel alterou profundamente as coordenadas espaciais e
temporais da vida diária, acelerando os indivíduos para além da
velocidade do papel, que era então a velocidade máxima conse-
guida pelos confusos dinossauros empresariais e políticos. Os
utilizadores atingiram uma libertação relativa: se não se pode es-
capar do pesadelo pós-industrial da administração total, pelo
menos que se multiplique o número de ligações e de contactos,
para que o seu ponto de interseção se torne num local de escolha,

204
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

rico e sumarento. Ser é conetar-se. Começa, assim, a luta pela de-


finição da idade pós-industrial.

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO MINITEL


O compromisso peculiar que tornou o Teletel num sucesso foi a
resultante destas forças em tensão. Reconstitui os termos desse
compromisso, ao nível macro da definição social do videotexto
em França, mas a sua marca pode também ser identificada no có-
digo técnico da interface do sistema.

CABLAR O INTERIOR DA BURGUESIA


O Minitel é um índice sensível dessas tensões. Os responsá-
veis pelo projeto tinham medo da rejeição pública de qualquer
coisa que fosse parecida com um computador, máquina de escre-
ver ou outros equipamentos profissionais, e esforçaram-se por o
encaixar no ambiente doméstico. Consideraram cuidadosamente
os “fatores sociais” envolvidos, assim como os fatores humanos,
para persuadir milhões de pessoas a aceitarem um terminal em
sua casa (Feenberg 1989b, 29).
Este problema do projeto tem uma história longa e interes-
sante. O seu pressuposto é a separação entre o público e o priva-
do, o trabalho e a casa, que começa, de acordo com Walter
Benjamim, sob a chamada Monarquia de Julho (q): “Para uma pes-
soa singular, o espaço onde vive torna-se, pela primeira vez, anti-
tético do espaço de trabalho. O primeiro é constituído pelo
interior (da casa); o escritório é o seu complemento. A pessoa sin-
gular que reconcilia as suas relações com a realidade, no seu es-
critório, exige que a aparência do interior seja mantida”
(Benjamim 1978, 154).

205
CAPÍTULO V

A história do projeto mostra como essas aparências familiares


são conformadas gradualmente por imagens extraídas da esfera
pública, através da contínua invasão do espaço privado pelas ati-
vidades públicas e pelos artefactos. Tudo, desde a iluminação a
gás até ao uso do crómio no mobiliário, começa no domínio pú-
blico e vai gradualmente penetrando no lar (Schivelbusch 1988;
Forty 1986, cap. 5). O telefone e os meios de comunicação eletró-
nicos intensificam essa penetração, ao mudarem decisivamente as
fronteiras entre as esferas pública e privada.
O desaparecimento final daquilo a que Benjamim chama o
“interior burguês” aguarda pela generalização da interatividade.
As novas tecnologias da comunicação prometem atenuar, e talvez
até mesmo dissolver, a distinção entre as esferas doméstica e pú-
blica. Espera-se que o teletrabalho e o telemarketing fundam os
dois mundos num só. “A casa não pode continuar a pretender ser
o lugar da vida privada, privilegiando as relações não económi-
cas, autónomas do mundo comercial” (Marchand 1984, 184).
O Minitel é uma ferramenta para se alcançar essa desterrito-
rialização final. O seu projeto modesto é um compromisso sobre
qual a via para um tipo radicalmente diferente de interior das ha-
bitações. Os primeiros sistemas de videotexto empregavam ter-
minais dedicados, muito elaborados e caros, ou adaptadores de
televisão, ou computadores equipados com modems. Nos Estados
Unidos, as CMC domésticas baseavam-se em computadores. A
sua difusão teve que esperar pela generalização da posse dos
computadores. Até aí ficou largamente confinada à subcultura
dos passatempos e do lazer. Não havia princípios de projeto a
aprender dessas pessoas, que não se sentiam incomodadas pelo
aparecimento incongruente de um grande equipamento eletróni-
co no seu quarto ou na mesa da sala de jantar. Funcionalmente, o
Minitel até nem é um autêntico computador. É apenas um “ter-
minal estúpido”, ou seja, um écran de vídeo e um teclado com
uma memória e capacidades de processamento mínimas e com
um modem incorporado. Esses dispositivos existiam há décadas,

206
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

primariamente para uso dos engenheiros na operação de grandes


computadores(r). Eram geralmente grandes, caros e feios. Obvia-
mente, esses desenhos não se qualificavam para uma decoração
atrativa de interiores.
Os projetistas do Minitel romperam com todos esses prece-
dentes e associaram o Minitel a um melhoramento do telefone,
mais do que a um computador ou a um novo tipo de televisão
(Giraud 1984, 9). Camuflado como um dispositivo telefónico
atraente, o Minitel era uma espécie de cavalo de Tróia para os có-
digos técnicos racionalistas.
O terminal era pequeno e com um teclado, que se pode rodar
e fechar sobre o écran. Primeiro estava equipado com um teclado
alfabético, para o distinguir de uma máquina de escrever. O te-
clado não agradava nem aos datilógrafos nem aos que não esta-
vam treinados em dactilografia, e foi eventualmente substituído
por um teclado standard; mas, mesmo assim, o aspeto geral do
Minitel continuava a ter pouco de uma imagem de negócios ou
empresarial (Marchand 1987, 64; Norman 1988, 147). Mais impor-
tante, não tinha discos nem disquetes, era fácil de encontrar o bo-
tão para o ligar, e não havia cabos intimidatórios e desagradáveis
à vista, a sair da parte traseira do equipamento - apenas o fio ha-
bitual do telefone.
O terminal Minitel domesticado adotou uma abordagem te-
lefónica, mais do que de computador, relativamente às capacida-
des técnicas assumidas para os seus utilizadores. Os programas
de computadores tipicamente oferecem um grande número de
opções, trocando facilidade de uso por potência. Mais, até ao su-
cesso do Windows, a maior parte dos programas tinham interfa-
ces tão diferentes que cada uma delas exigia uma aprendizagem
própria. Quem usou os primeiros softwares de comunicação em
DOS, com os seus écrans iniciais para definir uma dúzia de parâ-
metros obscuros, pode compreender bem como eram inapropria-
dos para um uso doméstico generalizado. Os projetistas do Minitel
conheciam bem os seus clientes e ofereceram um procedimento

207
CAPÍTULO V

de ligação extremamente simples: marcar o número no telefone,


ouvir o sinal de ligação e carregar num único botão.
O projeto das teclas funcionais também contribuiu para a fa-
cilidade de uso. Estavam destinadas a operar o diretório telefóni-
co eletrónico. Primeiro, houve alguma discussão sobre atribuir a
cada tecla um nome muito específico, adequado para o seu pro-
pósito, por exemplo, “cidade”, “rua”, etc. Mas foi antes decidido
dar-lhes um nome geral, como “guia”, “écran seguinte”, “para
trás”, em vez de as ligar a um serviço específico (Marchand 1987,
65). Como resultado, o teclado impõe uma interface de navegação
standard para o utilizador, não muito diferente da world wide
web, algo que só muito mais tarde se atingiu no mundo dos
computadores e com equipamentos muito mais elaborados.
O Minitel é um testemunho do ceticismo original dos proje-
tistas relativamente às aplicações comunicacionais do sistema: as
teclas funcionais eram definidas para a interrogação de bases de
dados, orientada pelo écran, e o teclado, com as suas teclas não
esculpidas, tipo “chiclete”, era tão desajeitado que desafiava as
tentativas de teclar. Aqui os franceses pagaram o preço de se ba-
searem num modelo telefónico: os fornecedores cativos da Tele-
com eram ignorantes dos mercados de consumo eletrónicos e
forneceram um teclado de qualidade abaixo dos padrões interna-
cionais, até mesmo para a mais barata das máquinas de escrever
portátil. Será escusado dizer que a exportação de tal terminal era
quase impossível.

REDES AMBIVALENTES
Assim desenhado, o Minitel é um objeto paradoxal. Com o seu
disfarce telefónico, pensado como necessário para o sucesso nas
casas, introduz ambiguidades na definição da telemática e convi-
da para aplicações comunicacionais não antecipadas pelos proje-
tistas (Weckerlé 1987, I, 14-15). Para eles, o Minitel continuaria

208
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

sempre como um terminal de computador para acesso a dados,


mas o telefone doméstico, a que o Minitel estava ligado, é um
meio social, não um meio de informação. A definição técnica ofi-
cial do sistema entra, portanto, em contradição com as práticas
telefónicas que imediatamente o colonizaram, uma vez instalado
nas casas (Weckerlé 1987, I, 26).
Na medida em que o Minitel não exclui completamente a
comunicação humana, como aconteceu em muitos outros siste-
mas de videotexto, pode ser subvertido do seu propósito origi-
nal, apesar das suas limitações. Por exemplo, embora as teclas
funcionais originais não tenham sido desenhadas para aplicações
de mensagens, puderam ser incorporadas nos programas de
mensagens e os utilizadores adaptaram-se ao teclado inadequado
através de uma estenografia online rica de um calão novo e de
abreviações inventivas. O Minitel tornou-se então num dispositi-
vo de comunicações.
Os muros de Paris ficaram rapidamente cobertos de cartazes
a publicitar serviços de mensagens. Uma iconografia totalmente
nova do Minitel reinventado substituiu o modernismo sóbrio da
propaganda oficial dos PTT. Nesses cartazes, o dispositivo já não
é mais um terminal banal de computador, mas está agora associ-
ado a uma flagrante provocação sexual. Nalguns anúncios, o Mi-
nitel anda, fala, acena; o seu teclado, que pode mover-se para
cima ou para baixo, transforma-se numa boca, e o écran numa fa-
ce. O silêncio da telemática utilitária é quebrado por uma cacofo-
nia bizarra.
Ao fragilizar as fronteiras entre o privado e o público, o Mi-
nitel abre uma via de dois sentidos. Numa direção, as habitações
tornam-se cenários de atividades até aí públicas, como consultar
horários dos comboios ou contas bancárias. Mas, na outra dire-
ção, a telemática liberta uma verdadeira tempestade de fantasias
privadas, num mundo público insuspeito. O indivíduo continua
a exigir, na frase de Benjamim, que a “ a aparência do interior se-
ja mantida”. Mas agora essas ilusões tomam um aspeto agressi-

209
CAPÍTULO V

vamente erótico e são difundidas por toda a rede.


A mudança técnica no Minitel implicada por esta mudança
social é invisível, mas essencial. O Minitel foi desenhado como
um nodo cliente, ligado aos computadores da rede, e sem inten-
ção de ser usado como um sistema universal de comutação que,
tal como a rede telefónica, permitisse uma ligação direta de um
subscritor com outro. À medida que a imagem do sistema muda-
va, a empresa de telecomunicações respondeu criando um servi-
ço de correio universal e eletrónico, chamado “Minicom”, que
oferecia uma caixa de correio a quem tivesse um Minitel. Mas,
infelizmente, faltava ao novo grupo de burocratas que geriam o
sistema a imaginação e a ousadia dos projetistas originais. O Mi-
nicom baseava-se nas habitações. A menos que se vivesse sozi-
nho, era impossível envolver-se em trocas de mensagens
privadas nesse serviço. Escusado será dizer que nunca teve um
sucesso como o do correio eletrónico pela internet.
Apesar dos proveitos ganhos por estas aplicações de comu-
nicações, a telecom francesa queixava-se que o seu sistema estava
a ser mal usado. Curiosamente, um século antes, aqueles que in-
troduziram o telefone tiveram uma luta semelhante com os utili-
zadores acerca da sua definição. O paralelo é instrutivo. Primeiro,
o telefone foi comparado com o telégrafo e foi primariamente
publicitado como uma ajuda ao comércio. Por oposição a esta
identificação “masculina” do telefone, as mulheres foram-no gra-
dualmente incorporando nas suas vidas diárias, como um instru-
mento social (Fischer, 1988b). Apareceu então uma crítica ge-
neralizada ao uso social do telefone, e houve mesmo uma
tentativa para restringir o seu uso exclusivamente aos negócios
(Fischer 1988a; Attali e Stourdzé 1977). Tal como um funcionário
de uma companhia de telefones protestava em 1909:
“O telefone está a ir para além do seu projeto original, e é um
facto positivo que uma grande percentagem dos telefones hoje
em dia em uso, numa base de renda mensal, seja usada mais

210
DA INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO: A EXPERIÊNCIA FRANCESA COM VIDEOTEXTO

para entretenimento, diversão, relações sociais e acolhimento


dos outros do que em casos efetivos de negócios ou necessida-
des da habitação” (citado por Fischer 1988a, 48).
Em França, as conotações eróticas agruparam-se à volta des-
tes primeiros usos sociais do telefone. Era preocupante que estra-
nhos pudessem intrometer-se em casa, enquanto o marido e o pai
estavam fora, a trabalhar. “Na imaginação de um francês da Belle
Epoque, o telefone era um instrumento de sedução” (Bertho 1981,
243). A companhia dos telefones estava tão preocupada com a
virtude das suas operadoras femininas que as substitui durante a
noite por operadores masculinos, presumivelmente mais à prova
das tentações (Bertho 1981; 242-243).
Apesar destas dificuldades iniciais, por volta de 1930 a soci-
abilidade tinha-se tornado um referencial inegável do telefone,
nos Estados Unidos. (Em França demorou mais um bocado). Lo-
go, o telefone é uma tecnologia que, tal como o videotexto, foi in-
troduzida com uma definição oficial que depois foi rejeitada por
muitos utilizadores. E como o telefone, o Minitel adquiriu novas
e inesperadas funções à medida que se foi tornando num instru-
mento privilegiado de encontros pessoais. Em ambos os casos, o
jogo mágico da presença e da ausência, da voz ou texto desencar-
nados, cria possibilidades sociais inesperadas, inerentes à própria
natureza da comunicação mediada.

CONCLUSÃO: DO TELETEL À INTERNET


Na sua configuração final, o Teletel foi largamente moldado pelas
preferências dos utilizadores (Charon 1987, 100). A imagem que
emerge é muito diferente das expectativas iniciais. Quais são as
lições deste resultado? A imagem racionalista da sociedade pós-
-industrial não sobreviveu sem mudanças ao teste da experiência.
O Teletel não é só um mercado de informação. Para além das

211
CAPÍTULO V

aplicações esperadas, os utilizadores inventaram uma forma nova


de comunicação humana, adequada às necessidades dos jogos
sociais e dos encontros numa sociedade impessoal e burocrática.
Ao fazê-lo, pessoas comuns passaram por cima das intenções dos
projetistas e converteram um recurso de informação num ambi-
ente social pós-moderno(o).
O significado da tecnologia de videotexto foi irreversivel-
mente modificado por esta experiência. Quando a internet abriu
ao público, iniciativas semelhantes de utilizadores resultaram na
proliferação de novas formas sociais num sistema originalmente
desenhado para partilha de tempo em grandes computadores.
Se a internet acabou por ser mais bem sucedida, isso deve-se
ao seu desenho técnico original. Ao contrário das redes X.25 cria-
das pelas empresas de telecomunicações nacionais, a internet
permitia que cada computador ligado ao sistema pudesse gerir os
seus próprios dados. O sistema difundiu-se onde existissem
computadores pessoais, sem considerações de padrões locais do
tipo imposto pela telecom francesa e outras. O resultado foi a
emergência de um sistema de comunicação global que suporta
uma variedade de aplicações sem precedentes.
Para além destes particulares, há, no entanto, uma cenário
mais vasto em formação(s). Em qualquer caso, a dimensão huma-
na da tecnologia da comunicação apenas emerge gradualmente,
em oposição aos pressupostos culturais daqueles que a origina-
ram e que lhe deram, primeiro lugar, um significado público
através de códigos racionalistas. Este processo revela os limites
da ideologia pós-industrial.

212
Capítulo VI
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

INTRODUÇÃO
O Japão sempre foi visto como o caso de teste para a universali-
dade da cultura ocidental. Os japoneses foram o primeiro povo
não ocidental a modernizarem-se com sucesso. Construíram uma
economia poderosa baseada na ciência e na tecnologia. Mesmo
assim, a sociedade japonesa continua significativamente diferente
dos modelos ocidentais que imita. Estas diferenças não são meros
vestígios superficiais de uma tradição moribunda, mas são visí-
veis na própria estrutura da ciência e da tecnologia japonesas
(Traweek 1988). O Japão é suficientemente diferente para se qua-
lificar como uma “modernidade alternativa”? Refuta ou confirma
as reivindicações do universalismo? São questões que o Japão nos
levanta, hoje em dia. Uma primeira resposta a essas questões vem
do próprio Japão. Nos anos trinta, o fundador da moderna filo-
sofia japonesa, Kitaro Nishida, propôs uma teoria inovadora para
a modernidade multicultural. Neste capítulo irei considerar o ca-

213
CAPÍTULO VI

so japonês e introduzir a notável teoria de Nishida, uma das pri-


meiras tentativas para compreender as implicações filosóficas da
globalização. Na conclusão mostrarei como a resposta japonesa à
modernização tecnológica antecipa problemas futuros no Oci-
dente.

DOIS TIPOS DE DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO


O Japão cortou quase todas as relações com o resto do mundo
desde os princípios do século XVII até quando o país foi obriga-
do a abrir-se ao comércio, pelos navios de guerra americanos, em
1854. A partir daí o Japão modernizou-se com uma rapidez incrí-
vel. O processo de modernização tocou todos os aspetos da vida,
incluindo o modo de fazer compras.
Os grandes armazéns comerciais(a) foram introduzidos no
Japão no período tardio da era Meiji (1868-1912), pela família
Mitsui. O armazém Mitsukoshi teve um grande sucesso e expan-
diu-se até se tornar tão grande como os armazéns ocidentais que
imitava (Seidensticker 1983).
No entanto, há um aspeto em que o grande armazém japo-
nês era bastante diferente dos seus modelos: no Mitsukoshi o pa-
vimento era de esteiras de tatami(b), o que criava alguns pro-
blemas únicos. Os compradores japoneses habitualmente não
tiravam os sapatos para entrar nas pequenas lojas tradicionais,
onde estavam habituados a fazer as compras. Antes caminhavam
sobre a calçada ou plataformas perto da entrada e enfrentavam
os balcões atrás dos quais os vendedores, em cima de esteiras de
tatami, aviavam as suas compras. Ainda hoje é possível encontrar
algumas dessas lojas. Embora as esteiras de tatami dos pisos do
Mitsukoshi não fossem adequadas para sapatos, os clientes ti-
nham que entrar no armazém para fazer compras. E entravam
muitos milhares por dia.

214
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

À entrada, um funcionário do vestiário encarregava-se dos


sapatos dos clientes e entregava-lhes chinelos, para serem usa-
dos nos pavimentos frágeis do armazém. À medida que o nú-
mero de clientes ia aumentando, também aumentava a pressão
sobre o sistema. Um dia enganaram-se na troca de quinhentos
pares de sapatos, e o historiador de Tóquio, Edward Seidenstic-
ker, especula que este desastre pode ter reduzido o ritmo de
aceitação dos métodos ocidentais de distribuição, até depois do
tremor de terra de 1923, quando os pavimentos de madeira fo-
ram finalmente introduzidos.
A evolução do Mitsukoshi diz-nos algo que agora já devía-
mos saber, acerca da tecnologia: não é um mero meio para um
fim, uma ferramenta neutra, mas reflete cultura, ideologia, polí-
tica. Neste caso, competiram duas técnicas muito diferentes de
revestimento enquanto ocorria uma alteração, aparentemente
sem relação, nos hábitos de compras. Nem os pavimentos de
madeira, nem os de esteiras de tatami, se podem considerar co-
mo tecnicamente superiores, mas cada um deles tem implicações
para a compreensão do “dentro” e do ”fora” em qualquer área da
vida social, incluindo, como é óbvio, as compras. Eventualmente
tornou-se claro para o Mitsukoshi que os métodos ocidentais de
distribuição exigiam pavimentos ocidentais.
O conflito entre estas técnicas para pavimentos foi há muito
resolvida a favor dos métodos ocidentais na maioria dos espaços
públicos do Japão, exceto em restaurantes, estalagens e templos
tradicionais, onde ainda se tiram os sapatos antes de entrar. Ape-
sar disso, as esteiras de tatami conservam uma poderosa carga
simbólica para os japoneses e muitas casas têm washitsu (quartos
no estilo japonês) e yoshitsu (quartos em estilo ocidental). Esta
dualidade tornou-se emblemática do ecletismo cultural japonês.
Aí, a globalização significou conservar, em larga medida, os as-
petos da técnica, artes, ofícios e costumes tradicionais japoneses,
a par de uma massa crescente de equivalentes ocidentais. Pri-
meiro, pareceu que um ramo ocidental tinha sido enxertado no

215
CAPÍTULO VI

tronco da árvore japonesa. Hoje podemos também perguntar se


não será um ramo japonês a sobreviver de forma precária numa
árvore importada do Ocidente.
Esta história ilustra a ideia de um ramo de desenvolvimento
especificamente nacional. A ramificação é uma característica geral
do desenvolvimento social e cultural. As ideias e os costumes cir-
culam facilmente, mesmo entre as sociedades primitivas, mas re-
alizam-se de uma forma muito diferente à medida que circulam.
Embora o desenvolvimento técnico seja condicionado, numa cer-
ta medida, por uma lógica causal, o seu projeto é subdetermina-
do, e há uma variedade de possibilidades a explorar no início de
uma certa linha de desenvolvimento. Cada projecto corresponde
aos interesses ou visão de um grupo diferente de atores. Nalguns
casos as diferenças são consideráveis e vários projetos distintos
podem coexistir durante um período longo. No entanto, nos
tempos modernos, o mercado, as regulamentações políticas ou o
domínio empresarial, ditam a decisão por um ou por outro dos
projetos. Uma vez consolidada a decisão, o ramo vencedor trans-
forma-se numa caixa negra(c) e permanece para além das contro-
vérsias e polémicas.
Até à pouco tempo, foi precisamente este último passo que
não teve lugar nas relações entre os ramos nacionais do projeto.
Más comunicações e dificuldades de transportes significavam
que os ramos nacionais podiam coexistir durante séculos, até
mesmo milénios, sem muita consciência um do outro e sem qual-
quer possibilidade de uma vitória decisiva para um ou outro dos
projetos. A globalização intensifica a interação entre os ramos na-
cionais, levando a conflitos e decisões como a que exemplifica-
mos com os pavimentos de Mitsukoshi.
No entanto, conflitos e decisões não são as únicas conse-
quências de um mundo globalizado.Uma segunda história ilustra
um outro padrão, a que chamo desenvolvimento “em estratos”
(Malm 1971).
Pouco depois da abertura do Japão ao mundo, o domínio

216
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

Satsuma (d) contratou um chefe de banda inglês, William Fenton,


para treinar a primeira banda militar japonesa. Fenton notou a
falta de um hino nacional japonês e propôs-se criar um. Identifi-
cou um poema, que ainda hoje continua a ser cantado como a lí-
rica do hino nacional japonês, e fez a música. Este hino não oficial
começou em 1870, mas era quase impossível de cantar e rapida-
mente caiu em desuso.
A falta de um hino era especialmente sentida na marinha. Os
oficiais japoneses ficavam embaraçados pela sua incapacidade de
cantar o seu próprio hino durante as cerimónias da bandeira, no
mar. Por isso, a marinha convidou músicos da corte para treinar a
banda da marinha na música tradicional japonesa, com a esperan-
ça que aparecesse um compositor entre os intérpretes. Mas o pro-
cesso era muito lento, e a marinha finalmente acabou por pedir aos
próprios músicos da corte para fazerem uma composição adequa-
da. Uma vez mais os resultados foram desapontantes. Os músicos
da corte apareceram com uma peça num modo antigo, com um ar-
ranjo para um conjunto tradicional, que era o tipo de coisa que di-
ficilmente se poderia esperar encontrar num navio da marinha!
Por essa altura, Fenton foi substituído por um chefe de ban-
da alemão, Franz Eckert, que esteve à altura da ocasião. Fez um
arranjo do hino proposto pelos músicos da corte, para uma banda
ocidental, com as adaptações adequadas para ser fácil de tocar.
Em 1880, o Japão tinha finalmente o seu hino nacional, ainda atu-
al.
Esta história é muito diferente da história do Mitsukoshi. Tal
como o pavimento, a música desenvolveu-se, no Japão e no Oci-
dente, segundo ramos diferentes; no entanto, o hino nacional ja-
ponês não é nem japonês nem ocidental, mas inspira-se em
ambas as tradições. Neste caso, as relações entre tradições são
muito complexas. A própria ideia de hino nacional é ocidental.
Um hino é uma auto afirmação que implica a existência de tercei-
ros perante quem afirmar o ego nacional. Mas isso não existia pa-
ra o Japão, durante os 250 anos de isolamento num mundo

217
CAPÍTULO VI

fechado sobre si próprio. Com a abertura do país, a auto afirma-


ção tornou-se um problema e foi preciso um hino. Mas como po-
dia o hino afirmar o Japão, a não ser que refletisse o estilo musical
japonês? Logo, a composição tinha que ser japonesa. Isto era mais
fácil de dizer do que fazer, porque o hino era para ser tocado por
instrumentos ocidentais e em cerimónias inspiradas pelo Ociden-
te. Assim, no estádio final, uma camada de composição japonesa
original teve que ser sobreposta com mais uma camada ocidental.
Aqui não temos quartos de estilos diferentes, lado a lado,
mas sim uma verdadeira síntese. Esta fusão de tradições tem lu-
gar num processo de estratificação, que também é caraterístico de
muitos tipos de desenvolvimentos sociais, culturais e tecnológi-
cos. Muitas vezes, vários ramos podem-se combinar por camadas
que se organizam segundo as exigências dos vários atores sobre
um projeto básico único. No processo, aquilo que parecia ser um
conflito de concepções acaba por se mostrar conciliável, apesar de
tudo. O hino soa vagamente japonês quando tocado por uma
banda de música. De forma semelhante, a moderna política, lite-
ratura, pintura, arquitetura e filosofia japonesas emergiram, na
era Meiji, como uma síntese de técnicas e visões nativas e ociden-
tais.
A estratificação por camadas não deve ser entendida como
um modelo de compromisso político, embora construa alianças
entre grupos com posições inicialmente diferentes, ou até mesmo
hostis. O compromisso político envolve cedências mútuas em
que cada parte cede nalguma coisa para obter uma outra coisa
qualquer. Não há dúvida que no desenvolvimento tecnológico,
tal como na composição musical e nas atividades criativas com
algum tipo de base técnica, as alianças nem sempre exigem com-
promissos de trocas. Idealmente, as invenções inteligentes dão a
volta aos obstáculos para combinar funções e o produto estratifi-
cado é melhor em tudo o que faz, não comprometendo a sua efi-
ciência por tentar fazer demasiadas coisas em simultâneo. Isto é o
que o filósofo francês da tecnologia, Gilbert Simondon, chama

218
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

“concretização” (Simondon 1958). A concretização dá origem à


tecnologia global combinando muitos sucessos nacionais num
único fundo de invenção mundial.

A GLOBALIZAÇÃO DO DESENVOLVIMENTO
Ramificação e estratificação são dois padrões fundamentais do
desenvolvimento. As suas relações alteram-se à medida que a
globalização continua. Noutro local descrevi dois tipos de proje-
tos correspondentes a diferentes estádios deste processo. O está-
dio inicial carateriza-se por um “projeto centrado na mediação”,
em que cada nação desenvolve a sua tecnologia de uma forma
relativamente independente das outras (1). O peso esmagador das
tradições nacionais específicas garante que as ideias, mesmo as
ideias de origem estrangeira, são incorporadas de modo diferente
nos dispositivos, em contextos diferentes. Estas diferenças são
devidas, em larga medida, a mediações éticas e estéticas, que são
específicas de cada país, e que moldam o projeto. Portanto, cada
projeto exprime o fundo nacional contra o qual se desenvolve.
A globalização impõe um padrão muito diferente, a que cha-
mo “projectado centrado no sistema”. A economia globalizante
desenvolve-se em torno de um mercado internacional de bens de
capital, onde cada nação procura os elementos que precisa para
construir as tecnologias de que necessita. Este mercado mo-
vimenta módulos construtivos como engrenagens, eixos, fios elé-
tricos, chips de computadores, etc., que podem ser montados em
muitos padrões diferentes(2).
O mercado dos bens de capital é um recurso de tal modo
formidável que, uma vez intensificadas as trocas entre as nações,
rapidamente se torna indispensável. Mas quando o projeto se ba-
seia na montagem de partes pré-fabricadas, deixa de poder aco-
modar as diferentes culturas nacionais com facilidade. Em vez de
exprimir um contexto cultural, os produtos tendem cada vez

219
CAPÍTULO VI

mais a ser projectados de forma a ajustarem-se harmoniosamente


ao sistema já existente de peças e dispositivos. A acomodação à
cultura nacional continua a existir, mas partilha esse campo com
um imperativo de sistematização que não conhece fronteiras na-
cionais. Entretanto, a cultura nacional exprime-se, indiretamente,
na contribuição que faz para a inovação nos mercados de bens de
capital.
Esta mudança para o projeto centrado em sistemas tem impli-
cações para o papel das mediações valorativas na estrutura da tec-
nologia moderna e globalizada. As tecnologias tradicionais ge-
ralmente ajustam-se bem. O pavimento japonês de esteiras de
tatami, a arquitetura tradicional, os hábitos de comer e dormir, e os
sapatos, tudo isso faz parte de uma peça. Como tal, exprimem uma
escolha bem definida de modo de vida, um quadro de referência(e)
enraizado na cultura japonesa. No entanto, em termos puramente
técnicos, as ligações entre estes artefatos são relativamente distan-
tes. É verdade que as casas japonesas precisam de entradas onde se
possam deixar os sapatos, que os “futons” (f) se devem estender so-
bre as esteiras de tatami, etc., mas adaptar cada um destes artefatos
aos outros não é muito restritivo. A grande margem de escolha fa-
cilita a implementação dos valores culturais nos projetos técnicos.
A globalização da tecnologia altera tudo isto. Quando o de-
senho é baseado em sistemas, tem que trabalhar com componen-
tes técnicos ligados de forma muito apertada. Os fios elétricos e
as fichas não se podem desenhar de forma independente dos
utensílios que vão usar a eletricidade. Rodas, engrenagens, poli-
as, etc., vêm em tamanhos e tipos fixados por decisões que foram
tomadas nos seus pontos de origem. Um dispositivo que as
utilize precisa de acomodar os resultados dessas decisões.
O projeto centrado em sistemas impõe muitas restrições na
sua fase inicial, restrições essas com origem nos países centrais do
sistema mundial. Estas restrições são impostas sobre as nações
periféricas por um processo globalizante, sem consideração pelas
suas culturas nacionais. Mais, a própria disponibilidade de certos

220
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

tipos de bens de capital reflete a evolução tecnológica e as priori-


dades dos países centrais, não dos seus beneficiários últimos. Lo-
go, o efeito da globalização é passar para segundo plano as
restrições culturais, senão mesmo eliminá-las completamente. À
primeira vista, os produtos resultantes parecem ser culturalmen-
te “neutros”, embora, de facto, continuem a incorporar pressu-
postos culturais que se tornam evidentes no seu uso generalizado
em contextos periféricos.
O computador é um exemplo óbvio. Para nós, ocidentais, o
teclado parece ser tecnicamente neutro. Mas se, em primeiro lu-
gar, os computadores tivessem sido inventados e desenvolvidos
no Japão, ou qualquer outro país com uma linguagem ideográfi-
ca, é pouco provável que, durante muito tempo, os teclados ti-
vessem sido seleccionados como dispositivos de entrada, durante
muito tempo. Pela mesma razão porque as máquinas de fax
prosperaram no Japão, onde facilitavam a comunicação em ca-
racteres chineses, também os computadores teriam sido inicial-
mente projetados com entradas (g) gráficas ou de voz ou de
qualquer outro tipo. A chegada dos computadores ocidentais ao
Japão foi um encontro alienante, um desafio à linguagem nacio-
nal. Foi preciso investir uma inteligência considerável para do-
mesticar o teclado para os usos japoneses (Gottleib 2000).
Estas observações indicam a fraqueza das culturas nacionais
num sistema tecnológico globalizante; no entanto, há um outro
lado da história. Os países distantes do centro, tal como era o Ja-
pão, podem não contribuir tanto como os países centrais, mas
contribuem com alguma coisa. E essas contribuições serão mar-
cadas pelo seu fundo cultural nacional. No caso do Japão, a am-
plitude destas contribuições cresceu até ao ponto em que se
tornaram significantes para os países do centro original. A tecno-
logia global contém uma camada japonesa e apresenta um pa-
drão verdadeiramente global, não simples relações de
dependência entre o centro e a periferia.
É difícil dar exemplos desse efeito de retorno (h) a partir da

221
CAPÍTULO VI

cultura nacional. A realização técnica de um impulso cultural é


semelhante a qualquer outro artefacto técnico. Mesmo assim,
uma abordagem hermenêutica deve ser capaz de encontrar os
traços culturais no domínio técnico.
Talvez se possa citar a miniaturização como uma contribuição
que reflete a cultura japonesa. Pelo menos esse é o argumento de
O-Young Lee, cujo livro Smaller is Better: Japan’s Mastery of the Mi-
niature argumenta que o triunfo da microeletrónica japonesa tem
as suas raízes em impulsos culturais antigos (Lee 1984). A prática
da miniaturização, que é caraterística do bonsai, da poesia haiku e
de outros aspetos da cultura japonesa, também aparece nos arte-
fatos técnicos. Lee cita o caso inicial da ventoinha desdobrável. Os
leques planos, inventadas na China, chegaram ao Japão durante a
idade média. O leque desdobrável, que parece ter sido inventada
no Japão pouco depois, foi exportado de volta para a China, e
inaugurou um padrão familiar. A tecnologia básica do rádio tran-
sistor e do gravador de vídeo veio dos Estados Unidos, em ambos
os casos, mas a miniaturização desses dispositivos, que foi essen-
cial para o seu sucesso comercial, teve lugar no Japão, de onde fo-
ram exportados de volta para os Estados Unidos.
É claro que, uma vez inundados os mercados de bens de ca-
pital com componentes miniaturizados, cada país do mundo po-
de fazer produtos pequenos, sem considerações culturais. Mas se
Lee estiver certo, a origem desta tendência estaria numa cultura
nacional específica. Aspetos dessa cultura são difundidos à volta
do mundo através das especificações técnicas dos seus produtos.

A TEORIA DO MUNDO GLOBAL, DE NISHIDA


Na primeira parte deste capítulo ilustrei uma tese acerca da glo-
balização da tecnologia com histórias do Japão. Na parte restante
tentarei extrair implicações desta tese para o contributo mais im-
portante da filosofia japonesa para a compreensão da globaliza-

222
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

ção: a teoria do mundo global, de Nishida, anterior à segunda


guerra.
O argumento de Nishida foi formulado no contexto da auto-
afirmação crescente do Japão nos inícios do século XX. Para mui-
tos japoneses, essa era, acima de tudo, uma questão de expansão
nacional, mas para intelectuais como Nishida o que estava em
jogo era a liderança cultural no mundo. Esses dois aspectos da as-
censão japonesa estavam relacionados, mas não eram idênticos.
Por um lado, o Japão tinha-se tornado suficientemente forte para
poder conquistar os seus vizinhos. Por outro lado, este facto mos-
trava, por si mesmo, que uma nação asiática como o Japão, podia
participar completamente na modernidade cultural, assimilando
os sucessos ocidentais e orientando-os para os seus próprios inte-
resses. Nesta base, Nishida argumentou que a Ásia podia final-
mente ocupar o seu lugar no mundo moderno como um parceiro
cultural, igual ou mesmo superior ao Ocidente (Nishida, 1991, 20).
A ligação entre a posição de Nishida e o imperialismo japo-
nês é portanto complexa e controversa. Já contribuí para esse de-
bate com diversos artigos e voltarei brevemente a este tópico na
conclusão deste capítulo (Feenberg 1995, cap. 8). No entanto, o
meu interesse principal neste momento está no paralelo que en-
contro entre a estrutura da globalização tecnológica, tal como a
expliquei anteriormente, e o conceito de um “mundo global”
(sekaiteki sekai) em Nishida (Nishida 1965c, 291-292, 249). Mostra-
rei que o contraste entre ramificação e estratificação está subja-
cente a esta conceção, embora Nishida não tenha desenvolvido as
implicações tecnológicas da sua própria abordagem.
Nishida argumentou que, até aos tempos modernos, o mun-
do tinha aquilo que ele chamou uma estrutura “horizontal”, ou
seja, consistia em nações lado a lado num planeta que as separa-
va mais do que as unia. O conceito de “mundo” era necessaria-
mente “abstrato” durante o longo período que precedeu os tem-
pos modernos. Com isto Nishida significava que “mundo” era
apenas um conceito, não uma força ativa nas vidas das nações.

223
CAPÍTULO VI

Esta condição foi anormalmente longa no caso do Japão, que per-


maneceu desligado do mundo crescente do comércio e das comu-
nicações até aos anos sessenta do século XIX.
O comércio internacional transformou este mundo horizon-
tal ao pôr todas as nações em contacto intenso umas com as ou-
tras. O resultado foi a emergência daquilo a que Nishida chamou
um mundo “vertical”, um mundo em que as nações lutam pela
proeminência. Cada nação passa então a participar ativamente na
vida dos seus vizinhos através do comércio e dos movimento de
pessoas e de ideias. Não há uma fusão harmoniosa mas antes um
fortalecimento das identidades, o que em última instância leva à
guerra. Neste contexto, o nacionalismo emerge como uma res-
posta de sobrevivência à ameaça de dominação estrangeira.
Nishida tinha várias terminologias sugestivas para esta mu-
dança. Apresentava uma multiplicidade de quadros conceituais,
cada um deles inadequado por si para descrever a realidade soci-
al, mas capaz de o fazer em conjunto, num sistema mutuamente
corretor de categorias. A complexidade do argumento de Nishita
é suposta corresponder, portanto, à dificuldade atual em pensar a
sociabilidade global.
Nishida desenvolveu o contraste entre os mundos horizontal
e vertical em termos da relação entre “muitos” e “um”, no espaço
e no tempo. As múltiplas nações dispersas no espaço entram em
interação no mundo moderno. Interação, na história, implica
mais do que o contacto mecânico com coisas relacionadas exter-
namente. Cada nação precisa de se “exprimir” no mundo, no
sentido de representar os significados da sua cultura. Isto pode
levar ao conflito, à medida que as nações tentam impor as suas
próprias perspetivas. Mas interação também exige comunalidade.
Duas entidades completamente estranhas não podem interagir.
Em cada etapa, na história moderna, há um referencial comum
dado pela nação dominante, que se define a si própria como um
“mundo” unificador para todos os demais. A unificação envolve
a imposição de um formato geral para as lutas das nações parti-

224
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

culares. Nishida dá o exemplo da imposição da Grã Bretanha no


mercado mundial do século XIX (Nishida 1991, 24). As múltiplas
nações em conflito estão, portanto, ligadas num mundo, a um ní-
vel mais profundo.
A passagem de muitos para um só também se reflete nas re-
lações de espaço e tempo. A dispersão das nações no espaço, a sua
“multiplicidade”, é complementada pela simultaneidade da sua
coexistência numa dimensão temporal unificada. As lutas entre as
nações têm um resultado, que é essa unidade. Logo, nos tempos
modernos, a geografia está subordinada à história. A nação unifi-
cada representa o tempo para esse mundo e, como tal, perde-se a
si própria no processo de unificação que impõe. A Grã Bretanha é
absorvida no mercado mundial que criou e torna-se na cena em
que opera a economia mundial. A particularidade da nação, a
Grã-Bretanha, é transcendida pela ordem universal que instituiu.
O mecânico e o orgânico formam outro par que a terminolo-
gia que Nishida explora. O mundo mecânico é feito de coisas re-
lacionadas externamente, mas dispersas no espaço. As coisas
relacionadas mecanicamente podem ser adequadamente chama-
das “indivíduos” (i). A sua multiplicidade forma “indivíduos múl-
tiplos” (kibutsuteki ta) (Nishida 1991, 29-31). O mundo orgânico
consiste em totalidades orientadas para um telos no tempo. O todo
é, portanto. um sujeito da ação, uma “unidade holística” (zentaikei
ichi) (Nishida 1991, 37-38). A sociedade não é bem descrita como
mecânica porque forma um todo, mas, contudo, também não é
orgânica, porque os seus membros são indivíduos completamente
independentes, não um rebanho. A dificuldade de decidir entre o
mecânico e o orgânico sugere a originalidade do mundo social,
que não pode ser representada por qualquer um desses conceitos,
porque na realidade abrange aspetos de ambos.
Nishida introduziu o conceito de “lugar” (basho) numa ten-
tativa final de conceitualizar este mundo globalizado e “auto-
contraditório”. Lugar, no sentido técnico do termo em Nishita, é
o “terceiro” elemento ou meio “em” que se encontram os agentes

225
CAPÍTULO VI

em interação. Mas uma entidade separada precisaria, ela própria,


de um local para interagir com os atores. O basho não é, portanto,
algo externo à interação, mas uma estrutura da própria interação.
Esta estrutura aparece à medida que cada ator “se nega a si pró-
prio”, para se tornar no “mundo” para o outro, ou seja, o lugar da
interação (Nishida 1991, 30).
Esta formulação obscura não é fácil de interpretar. Parece
significar que, ao agir, o eu se transforma em objeto para o outro.
No entanto, o eu não é só um objeto, mas o ambiente a que o ou-
tro deve reagir ao afirmar-se a si próprio como sujeito. À medida
que o outro reage, redefine-se a si próprio e, portanto, a sua iden-
tidade depende da ação do eu. Mas a determinação do outro pelo
seu próprio eu é apenas metade do ciclo; a ação do outro tem um
impacto equivalente no eu. A interação é a troca desses papéis,
permanente e infinita, uma circulação de realizações autotrans-
formadoras (jikaku ) conseguidas através do contacto com um ou-
tro eu (Tremblay 2000, 99-101).
Nishida tinha duas maneiras de falar acerca do papel do
lugar no mundo moderno. Umas vezes escreve como se a nação
globalizante servisse como o “lugar” de interação para todas as
outras nações, o palco da interação. Este lugar pode ser imposto
por dominação, ou pode ser livremente consentido como supre-
macia cultural, a diferença que Nishida assumiu entre o papel
da Grã Bretanha no passado e do Japão no futuro (Nishida 1991,
99, 77; Nishida 1965c, 373, 349). Outras vezes afirmou que a ida-
de moderna é sobre a emergência de um lugar global, na forma
de uma cultura mundial de encontros nacionais (Nishida 1970,
78-79, 134-135; Ohashi 1997). Nishida não viu qualquer contra-
dição entre estes dois discursos porque assumia que a cultura
japonesa era uma espécie de “vazio” capaz de acolher todas as
outras culturas. Mas, como veremos, esta ambiguidade mos-
trou-se muito importante.
Com base nesta análise, Nishida afirmava a importância de
todas as culturas modernas. O domínio ocidental é apenas uma

226
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

fase passageira, que dará lugar a uma idade de autoafirmação


asiática. O destino da raça humana é combinar frutuosamente as
culturas ocidental e oriental numa “autoidentidade contraditó-
ria”. Este conceito refere-se a uma síntese da individualidade (na-
cional) com a totalidade (global) em que a cultura emergente do
mundo é suposta consistir.
Há um sentido em que este mundo global constitui um ser
único, que se altera através de uma dinâmica interior. Logo, o
mundo “determina-se a si próprio”. Mas as identidades das na-
ções particulares não se perdem nesta unidade. A cultura mundial
resultante não vai substituir as culturas nacionais. Há algo mais
subtil envolvido. Nishida escreveu que “uma verdadeira cultura
mundial só se formará se as várias culturas preservarem os respe-
tivos pontos de vista, mas se simultaneamente se desenvolverem
através da mediação global” (Nishida 1970, 254). A cultura mun-
dial é uma forma pura, um “lugar” ou campo de interação, e não
uma alternativa particular às culturas nacionais existentes. Persis-
tem e são uma fonte contínua de progresso e mudança. O proces-
so de autodeterminação é portanto livre, no sentido de ser
internamente criativo; não é determinado por forças extrínsecas
ou por leis atemporais. Não há nada “fora” do mundo que o possa
influenciar ou controlar. Até mesmo as leis da ciência natural pre-
cisam de ser localizadas dentro do mundo como atos particulares
de pensamento condicionados historicamente (Nishida 1991, 36).
Uma passagem em que Nishida descreve o mundo global, tal
como ele o via:
“Toda a nação / povo estabelece-se com um fundamento his-
tórico e possui uma missão na história no mundo, tendo por
isso uma vida histórica por si mesmo. Para que as nações /
povos formem um mundo global através da sua própria reali-
zação e auto-transcendência, cada um deles precisa primeiro
de formar um mundo particular, de acordo com a sua própria
tradição regional. Estes mundos particulares, cada um deles ba-

227
CAPÍTULO VI

seado num fundamento histórico, unem-se para formar um


mundo global. Cada nação / povo vive a sua vida histórica
única e, ao mesmo tempo, une-se a um mundo global através
da realização de uma missão histórica mundial” (Nishida
1965a, 428; Arisaka 1996, 101-102).
No entanto, este argumento cosmopolita culmina estranha-
mente na afirmação de que o Japão é o centro da tendência unifi-
cadora da cultura global. Tal como a Grã Bretanha tinha uni-
ficado o mundo através do mercado mundial, com o espírito do
utilitarismo individualista, o que conduziu a uma competição e
luta sem fim, também o Japão unificará o mundo à volta da sua
cultura espiritual, única sob o ponto de vista de capacidade de
acomodação, conduzindo assim a uma idade de paz. O Japão se-
rá o “lugar” em que o mundo se moverá para além dos limites
ocidentais e se tornará verdadeiramente global. O Japão pode li-
derar espiritualmente o mundo porque a sua cultura única cor-
responde à estrutura real do mundo global:
“É quando descobrimos os princípios da autoformação do
mundo, contraditório mas idêntico a si mesmo, no coração do
nosso desenvolvimento histórico, que devemos oferecer a nos-
sa contribuição ao mundo. Isto resulta na prática do caminho
imperial e é o verdadeiro sentido de “oito cantos debaixo de
um teto” “ (hakkoo ichiu ) (Nishida 1991, 70).

O caráter vago desta conclusão é perturbador. Nishida con-


denou explicitamente o imperialismo e argumentou que o Japão
não podia ser o lugar da unidade do mundo se atuasse como um
“sujeito” em conflito com as outras nações. Em vez disso, precisa
de “se negar a si próprio” e tornar-se o “mundo” para todas as
outras nações (Nishida 1991, 70, 77). Ainda assim, também reco-
nheceu a fatalidade inevitável do conflito mundial e aceitou o
papel militar do Japão dentro desse contexto, como nesta parte

228
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

do seu discurso ao imperador:


“quando diversos povos entram nessa relação histórica
mundial (sekaishiteki), podem existir conflitos entre eles, tais
como vemos hoje em dia, mas isso é natural. A nação mais
mundialmente histórica (sekaishiteki) deve então servir como o
centro para estabilizar este período turbulento” (Nishida
1965b, 270-271).

Como vimos anteriormente, Nishida empregou slogans ultra-


nacionalistas, aparentemente na esperança de conseguir aí insinuar
novos significados. O mínimo que se pode dizer é que os seus es-
forços eram ingénuos e acabaram por dar apoio a um sistema im-
perialista que estava em conflito com a sua própria filosofia.
Tal como podemos questionar a profundidade da ligação en-
tre o nazismo e o pensamento de Heidegger, o nacionalismo de
Nishida é igualmente ambíguo. Não há uma ligação lógica clara
entre as suas afirmações acerca do Japão e o seu conceito de uni-
dade global. Ao menos os britânicos criaram um mercado mun-
dial para unificar o mundo. O que é que o Japão tinha para
oferecer? Que mediação podia oferecer que o qualificasse como
centro de uma nova era?
Tanto quanto eu possa dizer, Nishida não estava preocupado
com essa questão, embora devesse estar. Afirmava que o Japão
era o arquétipo da unidade global pela sua habilidade para assi-
milar tanto a cultura oriental como a ocidental. Embora isso pos-
sa ser admirável, sem dúvida, não é claro como qualifica o Japão
como o lugar da unidade global. Para isso ser verdade, o Japão
precisaria de fazer algo mais positivo no cenário mundial do que
simplesmente existir como um modelo. Nishida anuncia a signi-
ficância histórica mundial da libertação da Ásia relativamente ao
imperialismo ocidental. Mas isso não é certamente o equivalente
do mercado mundial como uma força unificadora, mas antes uma

229
CAPÍTULO VI

das suas consequências desagregadoras. No fim, a questão conti-


nua sem resposta(3).
Apesar dos seus defeitos e limitações, a teoria da globaliza-
ção de Nishida continua verdadeiramente interessante. Nishida
afirmava que o mundo se tinha alterado de uma estrutura hori-
zontal para uma estrutura vertical, da coexistência indiferente no
espaço para o envolvimento mútuo no tempo, num processo glo-
bal de unificação, conflituoso mas criativo. A unidade emergente
não apaga as diferenças nacionais, mas incorpora-as numa cultu-
ra mundial em evolução, que é melhor definida como um “lugar”
de encontro e de diálogo. Um quadro concetual subjacente torna
possível a comunicação das nações por entre os seus conflitos.
Esta afirmação faz precisamente um paralelo com a análise
da passagem do desenvolvimento por ramificação para o desen-
volvimento por estratificação, apresentados na primeira parte
deste capítulo. Os vários ramos da tecnologia, num mundo dis-
perso espacialmente, encontram-se finalmente no mundo global
dos tempos modernos. Aí afirmam-se por si próprios e entram
em conflito, mas aí também se informam mutuamente com ideias
e invenções extraídas de diversas tradições nacionais. O resulta-
do, a tecnologia global, forma uma espécie de lugar, no sentido
de Nishida, um cenário em que o encontro entre nações prosse-
gue sem eliminar a originalidade e a diferença das culturas naci-
onais constitutivas. O processo de estratificação, em que cada
cultura se exprime e ao mesmo tempo contribui para um fundo
único de invenção, é, assim, congruente com a conceção de cul-
tura mundial de Nishida.

A FILOSOFIA JAPONESA DA TECNOLOGIA


Será que Nishida podia ter concretizado a sua abordagem através
de uma reflexão sobre a tecnologia? Esteve perto de fazer essa li-
gação. Compreendeu que a ação histórica está inextricavelmente

230
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

interligada com a criação técnica. Explicou que a “cultura inclui a


técnica” (Nishida 1991, 61). A técnica é uma expressão do espírito
do povo à medida que interage com o ambiente e, através dessa
interação, forma-se a si próprio (Nishida 1991,57; Nishida 1965 c,
328). “Criamos coisas através da técnica e, ao criá-las, estamos a
criar-nos a nós próprios” (Nishida 1991,33; Nishida 1965c, 297).
Embora Nishida não o tenha feito, podemos construir sobre estas
observações e dar um passo adiante relacionando esta conceção
social de técnica com a noção de interação cultural global no sé-
culo XX (Murata 2003, 232-235).
Foi isto que um dos estudantes mais brilhantes de Nishida
tentou, numa contribuição maior para a filosofia da tecnologia,
mas que é quase desconhecida no Ocidente. Kiyoshi Miki foi um
marxista não ortodoxo que se tornou num nacionalista japonês
durante a segunda guerra mundial(4). Foi influenciado pelos en-
sinamentos de Nishida e pode muito bem ter influenciado os
pontos de vista de Nishida sobre história e tecnologia, anterior-
mente citados. Publicou em 1934 o seu trabalho mais importante,
The Logic of the Imagination , em que explica a sociedade como o
produto do poder conformador da imaginação. A tecnologia tem
um papel central neste processo, como uma expressão da imagi-
nação no mundo.
Deste ponto de vista, a tecnologia não pode ser explicada em
termos puramente científicos. Está na interseção da ciência e da
cultura, causalidade e teleologia. Na sua Philosophy of Technology
(originalmente publicada em 1942), Miki escreveu que:

As invenções verdadeiramente novas não só empregam meios


novos como também criam novos fins. Um inventor não deve
ser pensado como estando meramente a inventar novos meios
... Logo, as máquinas não seguem só o princípio da causalida-
de. É claro que o seguem na medida em que a ciência é um
fundamento da tecnologia. Mas, ao mesmo tempo, também

231
CAPÍTULO VI

são teleológicas. As máquinas, na sua construção e na sua fun-


ção, incorporam uma teleologia... A tecnologia pode, portanto,
ser concebida como uma unidade da causalidade e teleologia.
(Miki 1967, vol. 7, 309-310).

A tecnologia é “subjetiva-objetiva”. É subjetiva no sentido em


que precisa da razão humana, criatividade e “logos” (j), enquanto
que também é objetiva, no sentido que se manifesta numa forma
concreta que nos confronta como uma realidade independente e
tangível. A história não é mais do que este “movimento” através
da criação tecnológica. “Como ação formativa, as nossas ações são
históricas. As ações históricas são tecnológicas. Na realidade, a
história é criada tecnologicamente; a historicidade não pode ser
concebida aparte da tecnologia” (Miki, 1967, vol. 7, 211).
Mas, se isto é verdade, então a tecnologia deve incorporar as
formas da cultura que a criou. E, de facto, Miki argumentou que
a tecnologia que o Japão recebeu do Ocidente era uma expressão
da cultura ocidental e devia ser reconfigurada para se adequar ao
“espírito” japonês. Era preciso criar uma cultura nova que com-
binasse o melhor do Ocidente e do Oriente. Tal como Nishida,
Miki acreditava que a solução para este problema seria de im-
portância mundial e histórica. O Ocidente tinha chegado a um
impasse que o Japão poderia ultrapassar. “A nova cultura”, es-
creveu, “por um lado precisa de ter raízes na tradição oriental,
com os seus soberbos elementos espirituais e, por outro lado,
precisa de respeitar a tecnologia moderna, baseada na ciência
moderna desenvolvida no Ocidente” (Miki 1967, vol. 7, 319).
Qual deveria ser o conteúdo desta nova cultura? Miki ob-
servou que o termo grego techne se aplicava igualmente àquilo a
que chamamos arte e também tecnologia, o que é apropriado
porque ambos envolvem elementos subjetivos e objetivos. A se-
paração entre arte e tecnologia, nos tempos modernos, á artifici-
al. “O princípio da nova cultura deve assentar em [uma com-
binação] das mundivisões tecnológica e estética... A “orga-

232
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

nicização” da tecnologia também é uma “esteticização” ” (Miki


1967, vol. 7, 329)(5).
Podemos imaginar um desenvolvimento desta abordagem
nos termos do conceito de autocriação, de Nishida, através da
mediação de uma cultura tecnológica especificamente nacional.
Mas Miki não seguiu esta linha de argumento para a sua conclu-
são lógica. Em vez disso, mudou o foco da síntese da arte com a
tecnologia para uma dependência das ciências sociais. Um pouco
como Dewey, argumentou que a crise da tecnologia ocidental po-
dia ser ultrapassada mediante uma melhor compreensão da soci-
edade. O resultado desta tentativa para criar uma autêntica
filosofia japonesa da tecnologia é, portanto, bastante desaponta-
dor. Miki acabou com uma mistura peculiar de nacionalismo e
pragmatismo que, na sua estrutura subjacente, podera muito bem
ter sido inventada em Chicago. Tal como os pontos de vista se-
melhantes de Dewey, os argumentos de Miki parecem cada vez
menos persuasivos depois de várias gerações de esforços, sem
sucesso, para criar uma ciência social capaz de completar a mis-
são que lhe atribuíram.
Nishida e Miki testemunharam o processo de modernização
à medida que se foi desenrolando no Japão. Estavam cercados
por rápidas mudanças sociais, culturais e tecnológicas, que aco-
lheram e acreditaram poder ser o meio para a expressão de um
autêntico espírito japonês. Rejeitaram a insistência ultranaciona-
lista de manter a pureza do ramo japonês na era da interação
global e insistiram que o Japão devia entrar na cena mundial e
andar para a frente. Nisto foram os teóricos do seu momento na
história, um momento em que o Japão parecia estar a combinar
com sucesso os estilos ocidental e oriental em todos os domínios
da vida. Nishida e Miki viveram intensamente esses momentos.
Talvez tenham mesmo perdido os seus sapatos no Mitsukoshi.
Certamente cantaram o hino nacional e foram arrastados, junta-
mente com o seu país, pela modernização sincrética do governo,
cidades, escolas e produção cultural japonesas. Conjeturo que is-

233
CAPÍTULO VI

so alicerçou a sua conceção de um mundo global e a sua confian-


ça no futuro.

CONCLUSÃO: TECNOLOGIA E VALORES


Nishida e Miki tentaram reconciliar a especificidade dos seus
modos de vida japoneses com um novo quadro material da vida,
importado do Ocidente. Deram a este problema um significado
filosófico geral através de uma conceção original da imbricação
da tecnologia e da cultura. A sua razão para o fazer era a convic-
ção de que a hegemonia ocidental, e com ela a cultura ocidental,
tinham atingido um limite histórico. Os resultados do Ocidente
seriam agora absorvidos numa nova era histórica organizada à
volta da cultura asiática. À sombra do declínio ocidental, levan-
tava-se um novo sol que iria reinterpretar a natureza da própria
racionalidade. Como é claro, esta expectativa foi um desaponta-
mento. O Japão não encontrou uma nova era de supremacia asiá-
tica. Mas a descoberta da contingência sócio cultural da tec-
nologia ocidental viria a ter ecos significativos, muitos anos
depois, e à volta de questões diferentes.
O caso japonês é um subconjunto de um problema mais ge-
ral, o problema da relação dos valores com a racionalidade técni-
ca, que agora enfrentamos à volta de questões como o ambi-
entalismo e as técnicas de vigilância. As ameaças da tecnologia
precisam de ser equilibradas pelo potencial democrático da
agência dos utilizadores, que se tornou visível no desenvolvi-
mento da internet. Ambos, as ameaças e os potenciais, trouxeram-
nos o mesmo fenómeno perplexante que confrontou os pensado-
res japoneses. Tal como eles, somos confrontados com a
particularidade paradoxal de sucessos técnicos supostamente
universais.
A perplexidade deles, tal como a nossa, é devida a pressu-
postos iluministas acerca da natureza da racionalidade. A noção

234
TECNOLOGIA NUM MUNDO GLOBAL

de uma civilização racional foi inicialmente proposta num con-


texto polémico, em oposição a convicções tradicionais, religiosas
e feudais. A oposição da razão à “superstição”, ou seja, à autori-
dade do passado, é tão fundamental para a auto compreensão
moderna que não há maneira de romper com ela que não traga
consigo um risco de regressão. No entanto, quando aplicada à
tecnologia, esta dicotomia rígida é enganadora. A tecnologia não
é uma pura realização da racionalidade, mas, como vimos, con-
solida aspetos técnicos e sociais. Estes dois aspetos da tecnologia
exigem um estilo de análise e de crítica muito diferente da abor-
dagem iluminista. Pelo menos nas suas realizações técnicas, a ra-
zão não é universal, mas apenas tão particular como outra
expressão qualquer de cultura.
Os japoneses encontraram um enviesamento nacional espe-
cífico quando importaram a tecnologia ocidental. É mais provável
sentir os enviesamentos técnicos em questões como o acesso e
uso, ou então nos perigos e injustiças graves. Este paralelo per-
mite-nos colocar as questões levantadas na parte inicial deste ca-
pítulo num contexto mais amplo.
Os desenvolvimentos por ramificação correspondem a um
mundo em que o rasto dos valores aparece claramente nas cara-
terísticas do projeto dos artefatos técnicos. Não há dúvidas que
nos sistemas técnicos tradicionais não há uma distinção clara en-
tre a compreensão técnica e aquilo a que chamaríamos “valores
éticos e estéticos”. Há uma “maneira correta” de fazer as coisas,
que inclui todos estes fatores num conjunto único de práticas.
Este é o mundo que o racionalismo iluminista criticou e der-
rubou. Ao fazê-lo, libertou o desenvolvimento económico e téc-
nico das restrições estabelecidas na cultura tradicional. A era
moderna inicia-se com a luta pela liberdade nesse sentido peculi-
ar do termo. Durante séculos, o progresso no Ocidente significou
eliminar, o mais possível, as mediações valorativas das institui-
ções racionalizadas, e isto foi confundido com a emergência da
racionalidade pura a partir de uma herança de restrições e limi-

235
CAPÍTULO VI

tações irracionais.
Mas, tal como vimos, os valores entram nas escolhas técnicas
através de outras formas mais subtis, que eram invisíveis para os
ocidentais, mas tornaram-se imediatamente óbvias quando a tec-
nologia ocidental foi transferida para o Japão. A tecnologia oci-
dental foi conformada pelas sistematizações que eram os fun-
damentos de uma forma de vida incorporada no seu próprio
projeto, e este modo de vida era muito diferente do modo de vida
japonês. A suposta pureza da racionalidade técnica não precisava
de uma desmistificação elaborada no Japão, porque era obvia-
mente falsa. A interpretação culturalista da tecnologia, de Nishi-
da e Miki, fazia perfeito sentido nesse contexto e antecipou as
conclusões dos estudos contemporâneos da tecnologia. A síntese
dos valores orientais e da tecnologia ocidental, que eles imagina-
ram, tem o seu paralelo, hoje em dia, na estratificação da tecnolo-
gia com os objetivos ambientais, democráticos e outros, que
foram excluídos do processo original de projeto.
Hoje, quando o Ocidente se confronta com as limitações da
sua própria tecnologia, é como se todo o mundo começasse a pa-
recer-se com a modernização no Japão. Estamos ameaçados pela
nossa tecnologia de formas que não podemos mais ignorar e con-
frontados com a nossa própria responsabilidade e também com
poderes insuspeitos, numa inversão surpreendente de pressu-
postos até então óbvios. A ameaça é sistemática e resiste aos mo-
dos familiares de crítica contra a superstição, que temos usado
desde o iluminismo. Precisamos de novas formas de compreen-
der e criticar a tecnologia que nos permitam separar o centro ra-
cional dos nossos sucessos tecnológicos e dos aspetos
indesejáveis que poderiam ser eliminados sob um diferente ar-
ranjo político. O crescimento de uma esfera técnica pública abre
novas possibilidades para intervenções democráticas no desen-
volvimento tecnológico. A filosofia da tecnologia assume toda a
sua significância nesta situação sem precedentes.

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