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S
eguimos nosso trabalho,nossas vidas. Mas há momentos em que
somos afetados de forma particular e intensa, é importante referi-los.
Mesmo que o que se possa dizer sobre eles não tenha como dar
conta do acontecido. Não podemos simplesmente seguir sem registrar o
abalo, acusar o golpe. O acidente de avião ocorrido recentemente (vôo Porto
Alegre – São Paulo), com todas as suas mortes, nos afeta hoje profunda-
mente. Encontro com algo do horror que saiu do muito familiar, vôo de nossa
cidade, praticamente de nossas casas, todos temos laços que hoje encon-
tram um luto.
Temos falado recentemente também, no duro lugar que é aquele do
testemunho. Somos neste momento, testemunhas.
Testemunhar frente ao horror faz lembrar Primo Levi e seu sonho. Ele
escreve “É isto um homem?”, relato de anos vividos no campo de Auschwitz,
onde sonha: neste sonho ele estava reunido com a família, narrando o coti-
diano do campo de concentração. Do horror. E o que ocorria na medida em
que ele falava, no sonho, era que um a um de seus parentes ia deixando de
prestar atenção, se ocupando com outras coisas, até, por fim, ir embora por
último, até mesmo sua irmã. Resulta uma dor desolada. Ainda no campo de
prisioneiros, ele comenta, com um amigo, desse sonho. O amigo responde
que talvez mais de um sonhasse assim, e que esse poderia ser mesmo o
sonho, o temor de todos ali. A insuportabilidade do lado do ouvinte, de quem
se constituía em testemunha.
Testemunhar implica, no sentido forte, isso que não é nada simples e
que Gagnebin formulou de forma tão direta em seu “Lembrar escrever esque-
cer” : suportar não ir embora. Responsabilizar-se, implicar-se. O que Paul
Celan registrou, com outras palavras – testemunhar como “agüentar a soli-
dão de uma responsabilidade, e a responsabilidade desta solidão”. Um a um
e no laço social.
As tricoteiras, mulheres aposentadas que estavam neste avião, levavam
uma trama inusitada: um cachecol de 200 metros, representando sua insistên-
cia em ocupar um lugar de cidadania. Suas colegas vão substituir o cachecol
perdido por uma faixa de luto e seguir sua reivindicação por justiça. Suportar
não ir embora e ocupar seu lugar de responsabilidade concerne a todos nós.
Inscrições:
JORNADA DE ABERTURA
Data: 29 de março.
Horário: 10h.
Local: Centro de Eventos da AMRIGS - Porto Alegre, RS.
RELENDO FREUD
Datas: 30 e 31 de maio e 01 de junho.
Local: Hotel Laje de Pedra - Canela, RS.
CONGRESSO da APPOA
21, 22 e 23 de novembro.
Local: Centro de Eventos da AMRIGS - Porto Alegre, RS.
A
topologia, que surgiu no final do século XIX, buscava o rigor da “estru-
tura”, sem levar em conta a forma, o tamanho, as cores ou outras
características superficiais dos objetos. Ela influenciou não somente
as matemáticas do século XX, como também as ciências humanas – a filo-
sofia, com o estruturalismo; a lógica moderna e a ciência da computação; a
lingüística e as teorias da comunicação; a psicologia (desde Freud e seu
“Projeto para uma psicologia científica”) e não poderia deixar de influenciar
sua contemporânea – a psicanálise.
Assim, a classificação freudiana das doenças mentais conforme es-
truturas – neuroses, psicoses e perversões – nos leva a trabalhar continua-
mente. Seriam as estruturas estáveis? Haveria passagem possível entre elas?
Será que podemos pensar uma “lógica” das estruturas? Ou, mais ainda,
haveria uma “topológica” para cada uma delas? Movido por estas dúvidas,
este ano o Seminário de Topologia da APPOA está discutindo textos funda-
dores e casos clínicos sobre o tema.
Quando observamos a passagem que Lacan fez pelos diferentes
referenciais teóricos (geometria plana, grafos, geometria projetiva, topologia
das superfícies, teoria dos nós), vemos que, mais que uma questão topológica,
há uma lógica em desenvolvimento, que corresponde à dialética das estrutu-
ras clínicas.
Agradecemos a todos os que participam deste número do Correio –
discutindo, no Seminário de Topologia, escrevendo, traduzindo os artigos de
nossos colegas estrangeiros, ou, como você, lendo nossos trabalhos.
Garrafa de Klein
Almerindo A. Boff1
E
m artigo anterior (Boff, 2006), indaguei a respeito das possíveis rela-
ções entre a topologia lacaniana, a epistemologia e a clínica psica-
nalítica contemporânea. Retomo esta discussão agora. Apresento,
inicialmente, os pontos principais levantados naquele momento. A seguir,
teço considerações a respeito de alguns problemas presentes na clínica
atual, bem como de questões epistemológicas que se apresentam para a
psicanálise como ciência do século XXI. Finalmente, apresento algumas re-
flexões a respeito do papel da topologia na teoria e na prática da psicanálise.
1
Psiquiatra e Psicanalista. Mestre em Psicologia (UFRGS). Membro Pleno e Presidente do
Núcleo de Estudos Sigmund Freud.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOFF, AA. Epistemologia e topologia lacaniana. In Correio da APPOA, Porto Ale-
gre, n 149, agosto 2006. pp 17-24.
LEWIS, MD & GRANIC, I. Emotion, development and self-organization: dynamic
systems approaches to emotional development. Cambridge: Cambridge
University Press; 2000.
MILLER, JH & PAGE, SE Complex adaptive systems : an introduction to
computational models of social life. Princeton and Oxford: Princeton University
Press; 2007.
ODIFREDDI, P. (2000) The mathematical century. Princeton and Oxford: Princeton
University Press; 2004.
D
iálogo da secretária “gatona” com seu chefe:
Ela, com voz melosa – “Chefinho, será que eu posso te pedir uma
coisa?”
Ele, imediatamente: – “Quanto mais difícil melhor!”
Este fragmento foi me relatado por um paciente, intrigado com por que
teria respondido desta forma impulsiva e curiosa. Associou que nunca con-
seguira nada fácil em sua vida, que nada dera certo da primeira vez, “nem
comprar um fogão”.
O que o fragmento de conversa deixa transparecer é uma sutil diferen-
ça entre os modos de organização, por um lado, de uma possível histeria, e
por outro, de uma neurose obsessiva, diferença esta manifesta na maneira
de dispor os significantes em forma de fala. Revela também o que estaria por
trás, impulsionando a fala – a relação com o Outro no que tange ao Seu
desejo na histeria (“será que o Outro me deseja tanto que posso lhe pedir
qualquer coisa?”) ou à Sua demanda, na neurose obsessiva (“o que o Outro
ordenar eu cumpro!”).
No diálogo epigrafado, se ele fosse também um histérico, provavel-
mente responderia assim: – “Bah, gata! Nem sabe. Ia mesmo te pedir um
favor. Adivinha o que me aconteceu?...”.
Falar em topologia das estruturas clínicas pode parecer redundância,
pois a topologia pressupõe a existência de uma estrutura. Sabemos que os
significantes se organizam em forma de rede. Mas, se os radiografarmos um
a um veremos que eles têm estrutura mœbiana. Como na cinta de Mœbius,
localmente, pode-se destacar direito do avesso, mas, no conjunto, é só um
e mesmo tecido. Consciente e inconsciente deslizando sobre os dois apa-
rentes lados de uma só face. Finalmente, podemos encontrar a estrutura
que Lacan, e, antes dele, Frege, De Saussure e Freud buscavam para sen-
tido e significação (sinn e bedeutung) de cada palavra.
1
Lacan, J. Seminário A identificação, lição de 07/03/1962.
2
Idem, lição de 30/05/1962.
3
Ibidem.
4
Mesmo que l’hystérique, pode se referir ao masculino ou ao feminino, na seqüência ele
costumava dizer l’hystérique, elle: “a histérica, ela”.
5
Lacan, J. Seminário Ainda, lição de 13/03/1973.
6
Idem, Seminário Problemas cruciais..., lição de 16/12/1964 e seg.
uma sutura entre duas dimensões, que pressupõe um corte. Abre um bura-
co, ao mesmo tempo que o preenche.
Descrita pela primeira vez em 1882, na Alemanha, pelo matemático
Felix Klein (1849-1925), a chamada “garrafa de Klein” é uma superfície unilátera
fechada, não-orientável. Com característica de Euler = zero, ela não separa
interior e exterior. (Fig.1)
Ela aparentemente possui uma boca, mas esta boca não é como as
outras, porque não perfaz uma borda, ela é “fofa”. Então não é uma garrafa
normal, porque não tem dentro e fora.
Seu esquema topológico seria assim (Fig.2), como uma cinta de
Mœbius que tivesse sua borda única costurada, de forma que virasse um
cilindro autotrespassado.
A garrafa de Klein não pode ser construída no espaço Euclideano,
pois não é possível fazer esta operação de autoatravessamento em superfíci-
es tridimensionais sem descontinuidade. Porém, pode-se tentar construí-la
em um espaço não-Euclideano, esticando o pescoço de uma garrafa e o
introduzindo através do corpo da garrafa. Se fizermos uma tomografia longi-
tudinal dela, veremos que a garrafa de Klein é a união de duas cintas de
Mœbius, uma destra e outra esquerda, postas em continuidade, isto é, cola-
das sem emendas. (Fig 3)
No seminário “Um discurso que não seria semblante”7, Lacan propôs
a garrafa de Klein como estrutura própria da histeria, formalizando, assim, a
histeria, a partir somente de termos da estrutura disposta pela linguagem.
Um ano antes, no seminário “O avesso da Psicanálise” – também
conhecido como o seminário dos quatro discursos – Lacan apresentara uma
nova dimensão da linguagem. Distinguindo “fala” de “discurso”, ele abordou a
histeria como forma discursiva, não só como estrutura neurótica ou conjunto
de sintomas.
Esta lógica dos discursos tem uma estrutura de grupo, que põe em
jogo quatro termos e quatro lugares, para formar quatro discursos: o do Mes-
7
Idem, Seminário Um discurso..., lição de 09/06/1971.
8
Vemos na clínica sempre exemplos de pacientes que, repentinamente, parecem “adquirir”
corpo, às vezes penosamente, pegando todo tipo de doenças às quais antes passavam
imunes.
9
Cf. Melman 2007, notas de curso.
10
Lacan, J. Seminário Um discurso..., lição de 09/06/1971.
11
Melman, Novos estudos...
12
No original: pas-de-guérison – que em espanhol foi traduzido como “passo de cura”.
sobre o corpo (ou, por não ser não-encontrável) – é evidente, é uma figuração
topologicamente totalmente incorreta do gozo em uma mulher.”13
Freud já dissera que o funcionamento do corpo da histérica era pertur-
bado por significantes (ou representantes de representações, como ele di-
zia) recalcados, que o tornavam como que um “corpo estranho”. Qual era o
sentido dos seus sintomas? Qual seu significado? Como curá-los? Como
curar Dora de seu sintoma – “ser mulher”? Esse corpo “sem-cura” da histeria
me fez pensar na dor crônica de que muitas pacientes (só vi isso em mulhe-
res) se queixam. Algumas chegam ao consultório dando o próprio diagnósti-
co, como uma senhora de sessenta anos: – “Descobri que eu tenho
fibromialgia”. Pergunto: – “Onde te dói?” – “Tudo. Não tem um ponto. Se
tocas aqui, dói. Aqui, dói. Aqui, dói...” (vai mostrando no corpo). Parece
mesmo a imagem do corpo revirado, os nervos à flor da pele: tudo dói. “O
mais profundo é a pele”, disse certa vez o poeta Paul Valéry.
Esta topologia de uso familiar, como Lacan se referia à garrafa de
Klein, foi-lhe útil para falar das representações recalcadas, que emergem no
corpo, pois ela é literalmente revirada do avesso.
Haveria um erro na inscrição dos significantes – um que falta, um
desencontro, um escorregão, um encontrão entre eles... E eles pulam para
fora, revestem a pele, inconciliáveis e irreconciliáveis com os ideais do eu. O
que foi mal dito torna-se literalmente maldito.
Assim como trabalhei uma vez a adição ao jogo como uma operação
matemática (de “adição”), pode-se pensar aqui na operação de “subtração”
de significantes. O significante que falta, em um lugar esburacado no Outro
“S (A)” cria um campo de diferença com seus vizinhos. A subtração de
significantes (ao -1) faz a “diferença”, embora permita uma unidade imaginá-
ria ao corpo histérico, porém com aquele “reviramento” que os torna traumá-
ticos, ou melhor, “traumatemáticos”.
13
Lacan, J. Seminário Um discurso..., lição de 09/06/1971. Tradução da autora.
BIBLIOGRAFIA:
FREUD, S. Sobre los tipos de contracción de neurosis (1912). Ed. Em CD Rom
das Obras completas de Sigmund Freud. Vol.12.
LACAN, J.-M. Seminário 1969-70. L’envers de la Psychanalyse. Ed. Association
Freudienne Internationale.
_____. Seminário 1970-71. D’un discours qui ne serait pas du semblant. Idem.
_____. Seminário 1972-73. Encore. Idem.
MELMAN, C. Novos estudos sobre a histeria. Ed. Artes Médicas. Porto Alegre,
1985.
_____. Como alguém se torna paranóico? Notas sobre seminário – São
Leopoldo, maio 2007.
VÍCTORA, Ligia G. O gozo do jogo. In: Revista da APPOA, Tóxicos e manias, no 26.
Porto Alegre: APPOA, 2004.
14
Ibidem.
Bernard Vandermersch2
Tradução: Denise Gick 3
I. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
SOBRE A UTILIZAÇÃO DA TOPOLOGIA NA CLÍNICA:
1 - A constatação de que nossas operações mentais, no esforço de
teorização ou mesmo na nossa prática, recobrem uma topologia implícita,
sem dúvida não nos leva muito longe. Contudo, notemos que, já em Freud,
existe uma freqüente inadequação entre uma prática ingênua da língua, que
em decorrência disso é guiada pela topologia desconhecida que esconde
uma teorização do aparelho psíquico, que se desdobra sem sabê-lo, num
espaço modelado sobre o espaço sensível: plano da folha de papel onde se
projeta uma cartografia de limites, de inclusão e de exclusão, volume do
corpo imaginário engendrando as categorias sensíveis de profundidade, pe-
netração, incorporação, etc... Essas representações parecem operar com
eficácia até o ponto para além do qual os paradoxos da clínica se embaralham
mais do que são explicados. É então seguidamente o fator quantitativo, qual-
quer que seja a forma empregada, que é solicitado a mascarar de alguma
maneira as falhas persistentes.
2 - Mas, qual topologia? O mais pertinente na utilização da topologia
na psicanálise subsume-se sob duas rubricas:
a) explicar os elementos de topologia matemática utilizados por Lacan,
mostrar as linhas mestras, as correspondências, etc...
b) utilizar os objetos topológicos escolhidos por Lacan e continuar a
1
Texto publicado originalmente em Le Trimestre Psychanalytique 2/1992, La topologie en
clinique. Publication de l’Association Freudienne.
2
Psicanalista; Membro da Association Lacanienne Internationale.
3
Psicanalista, fonoaudióloga, participante do Seminário de Topologia da APPOA.
4
N.T. Ponto umbilical – cf. Dicionário Aurélio, Geom. Dif. Numa superfície, ponto em que a
curvatura normal é a mesma em qualquer direção.
mas encontra-se, ao contrário, tão distante para que seja cortado e, guiado
por ele, faz um caminho na parte mœbiana, que é aquela do sujeito.
Reencontramos aqui uma representação que evoca a proposição for-
mulada por Charles Melman, segundo a qual o real na neurose obsessiva
não seria suportado no nó borromeano, em um círculo distinto, e se encon-
traria em referência às extremidades do simbólico apresentado sob a forma
de uma reta infinita.
Do mesmo modo esse tipo de corte explica o funcionamento mental
do obsessivo que parece estruturado pelos números reais e não pelos núme-
ros naturais. Estes últimos, engendrados em um ato fundador pelo qual o 0
(zero), o não idêntico a si, simbolizado pela laçada dupla, sendo contado
como um, a partir disso o dois, o três etc., são possíveis como sucessores.
Da mesma forma que há na observação do homem dos ratos uma incidência
marcante do um e meio, há no nosso paciente um evitamento do dois, que
compreendemos como o eco da recusa desse ato fundador.
Entretanto, por ser infinito, esse corte se inscreve entre dois limites.
– O ponto phi de um lado, indefinidamente aproximado, no sentido da
“gravitação fálica”.
– O outro, no sentido centrífugo, constituiu com uma linha m – m’ que
corta o cross-cap como uma laçada simples, com uma volta (Fig.6). Nas
jornadas de psicossomáticas (“O trimestre psicanalítico”, Nº5), propus que a
laçada simples presentifica o corte na obra da patologia psicossomática,
sempre ameaçando o paciente. Resta-nos salientar que a ameaça ocular
jamais serviu de suporte para sua angústia.
Se for pertinente, isso nos levará a considerar a patologia psicossomá-
tica como podendo, nessa estrutura, resultar de uma tentativa de fechamen-
to que recusaria, entretanto, a castração, o forçamento de um ato sem o
consentimento à perda do objeto.
Enfim, a dissimetria aparente dos dois infinitos desse corte, não o é
sem relembrar a “diplopia” própria no desejo feminino tensionado de um lado
para o phallus e de outra para S ( A )4. Existem alguns paradoxos que espe-
5
Significante do Outro barrado, ou de uma falta no campo do Outro.
Figuras:
Louis Sciara2
Tradução: Patrícia Ramos e Ana Maria Gageiro
H
á muitos anos atrás, analista ainda principiante, recebo no consultó-
rio uma mulher – com sintomas de aparência neurótica – que me
formula um pedido de análise. Após algumas entrevistas prelimina-
res, aceito analisá-la, julgando estarem reunidas as condições de sua de-
manda. Ao final de algumas sessões, desencadeia-se um delírio de vertente
dupla erotomaníaca e persecutória no momento em que alude a uma opera-
ção de apendicite na adolescência.
A ablação, isto é, a subtração do apêndice é evocada como uma
manipulação sexual e uma privação real por parte do cirurgião. O tratamento
no divã, nas mãos do psicanalista, à sua mercê, revela, em sua subjetivação,
uma nova manipulação e uma embromação sexual sobre o corpo real, já
que, desvelando-se pela palavra, ela se desnuda em uma nova operação...
agora analítica.
Em outras palavras, essa paciente não resistiu à transferência: a
mesma constelação significante (estar nas mãos de um operador em uma
situação “terapêutica”) desperta o que foi percebido pela paciente como uma
privação real do falo (apêndice) e desencadeia no plano imaginário uma ativi-
dade delirante, exatamente onde, na simbólica, o referente (falo simbólico)
não pode operar como falta na cadeia significante, não havendo castração.
Essa vinheta clínica introduz meu propósito: o clínico nunca sabe de
início com quem está lidando, ao que está aceitando dar ouvidos, o que pode
desencadear. O porquê da importância das entrevistas preliminares e da
necessidade de ser “conhecedor” daquilo que nos reúne hoje, a clínica das
paranóias e, de modo mais amplo, a das psicoses.
1
Título original: La question du transfert dans les paranoïas.
2
Psicanalista, Psiquiatra, membro da Association Lacanienne Internationale.
3
Em francês, hainamoration. Lê-se “enamoracion” = ódio (haine) + “enamoração”.
liminar” dos “Escritos” (1957-8) constituiu uma abertura inegável para a trans-
ferência psicótica, mas ele não propôs uma escrita dela, como a da transfe-
rência neurótica na “Proposição de 1967”. Em um artigo da revista La
célibataire (no 4), Claude Landman retoma este matema, que deve ser com-
preendido como uma determinação de Lacan quando ele trabalha a lógica.
Ele escrevia então:
é ditado pelo real da clínica das psicoses e porque não se trata de fossilizá-
la enquanto conceito universitário aplicado e determinado por uma leitura
somente neurótica da clínica. O importante é conhecer justamente suas
coordenadas, diferentes daquelas da transferência neurótica quanto aos es-
tatutos do sujeito, do objeto, da relação com o Outro e do pequeno outro.
O psicótico lida não com uma suposição do que o psicanalista sabe-
ria, poderia saber, mas com uma certeza de que ele sabe que o Outro sabe.
O outro seria detentor de um saber absoluto que lhe possibilitaria tomar as
rédeas, até mesmo manipulá-lo, obrigá-lo a produzir com toda transparência
um saber a serviço de seu gozo. E eis nosso psicótico às voltas com um
Outro onisciente que o psicanalista poderia vir encarnar.
Não há recalcamento – barra – portanto, não há saber inconsciente,
isto é, saber vazado. O saber do falasser psicótico é automático, sem bura-
co, constituído de uma disposição de puros significantes que não têm valor
de significantes, já que não remetem a outros significantes, mas se reduzem
a signos que se entrelaçam em um tecido imaginário, que poderia se focali-
zar em torno de uma metáfora delirante.
Tanto nas paranóias quanto em toda psicose, e mesmo que o falo se
erija como componente egóico ostensivo, sob a forma de uma megalomania,
é também uma transferência sob comando direto do objeto a, real. Direto
porque sem a mediação de uma fantasia ($¸a) como na neurose, o que faz
com que o psicótico tenha uma relação de contigüidade mais clara com o
objeto, que permanece sempre velado na neurose.
Enfim, o sujeito paranóico se toma por seu eu, o que é diferente do
sujeito dividido, sempre evanescente. Ele é falado, ainda que clinicamente
haja nuanças, sem equívoco significante, sem jogo entre significante e signi-
ficado (os quais são disjuntos ou colabados em uma concreção significante
(neologismo, holófrase).
Em suma, desde o início, quando um paranóico se dirige a um analis-
ta ou a um clínico em geral, não há endereçamento a um sujeito suposto
saber, mas uma demanda tomada em uma Automaticidade do Outro, isto é,
de um Outro real constituído de puros significantes que desfilam. Mas, como
4
No original em francês normativer (que constitui uma norma).
5
Em francês, analysants “normés” e “psychose normée”, isto é, dentro da norma.
N
o Correio sobre “O ato psicanalítico”, de agosto de 2006, busquei
trabalhar algumas questões concernentes aos paradoxos no sujeito
entre a fala e a linguagem na psicose, tendo como suporte literário,
D.Quixote, criado por Cervantes em 1604, quando publica o que seria sua
obra universal, “O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha”. Cavaleiro
andante, perdido em um mundo particular, seu mundo, cria personagens que
vão se movimentar entre o sonho e a realidade onde se confunde delírio com
verdade.
O herói, também conhecido por Cavaleiro da Triste Figura, em seus
delírios lutava por um mundo mais justo, defendendo os fracos. Buscava
sempre conquistar alguém para sua causa. Assim, se dirige a Dom Lorenzo:
“Sabe Deus quanto quisera levar comigo o senhor Dom Lorenzo, para
ensinar-lhe como se deve perdoar os humilhados e oprimir e rebaixar os
soberbos, virtudes inerentes à profissão que exerço ...” (1991, v.2, p.135)
Tomava a cavalaria como uma “ciência” que acreditava encerrar em si
todas ou quase todas as ciências do mundo, pois um cavaleiro deveria ser
um jurisperito, um teólogo, um médico, um herbolário, um astrólogo enfim,
ser preparado para enfrentar toda e qualquer adversidade para proteger e
defender os desventurados. Havia um sentido no sem-sentido de sua lógica.
Havia uma razão na desrazão. Quem sabe essa é a lógica do avesso do
avesso da loucura? Onde tudo que pode ser, pode não ser. Não por um
sentido antitético, mas por ausência de enlace, tecido num plano fluído.
1
Sueli Souza dos Santos é Psicanalista; Membro do Centro de Estudos Psicanalíticos de
Porto Alegre (CEP de PA); Mestre em Psicologia Social UFRGS; Doutoranda em Educação
UFRGS.
ça, falam cada um com o Outro de alguma coisa que lhes falou desde outra
cena, outro lugar, tomando forma de palavra falada, com todas as ambigüida-
des das palavras, posto que nenhum dos dois desiste das aventuras.
O delírio mostra essa marca discordante com a linguagem comum,
apresentando-se em forma de neologismo ou como no caso de nosso perso-
nagem Dom Quixote, em que as forças anímicas das coisas ou elementos
passam a contracenar com o herói. Há sempre uma repetição na forma de
significação, em uma insistência estereotipada, o que, por outro lado, reme-
te a um vazio de significação.
Lacan (1985; p.44) diz: “Essas duas formas, a mais plena e a mais
vazia, param a significação, é uma espécie de chumbo na malha, na rede do
discurso do sujeito. Característica estrutural a que, já na abordagem clínica,
reconhecemos a assinatura do delírio”.
A palavra no delírio revela a imersão do sujeito em sua própria constru-
ção, ali o sujeito é falado, onde a significação não remete mais a nada,
repetindo de forma insistente num ir e vir, sem deslizamento. Frente a esse
tipo de linguagem, quer nos analisantes, ou nos personagens que nos inspi-
ram nesse trabalho, podemos pensar que falam a mesma língua que nós, ou
pelo menos, não são de todo estranhos a nós, por isso podemos escutá-los.
Mas é através das relações do sentido com a significação, onde não há
espaço para deslizamento de sentidos que podemos perceber a diferença na
economia do discurso, o que remete ao delírio.
Importante ressaltar que a fala não é a linguagem. A fala está dirigida
a um Outro. Falamos para outros, de onde recebemos uma mensagem sob
a forma invertida; ou seja, o que o sujeito me diz está fundamentado desde
outro lugar, tentando me convencer de suas razões. Isso supõe dirigir-se a
um Outro, na tentativa de até mesmo dizer a verdade, o que remete a uma
fala verdadeira e, ao mesmo tempo, que pretende que se creia ao contrário,
uma fala enganadora enquanto tal. Talvez fique mais claro pensar sobre isso
se recordarmos Freud (1905) quando conta a história dos dois amigos em
que um diz: “Eu vou a Cracóvia”. Ao que o outro responde: “Você me diz isso
para me fazer crer que você vai alhures”.
seu saber alguma coisa simbolizada como um buraco, uma ausência, mas
não está foracluída a função paterna. Sancho não abandona seu senhor,
mas percebe suas fraquezas, confusões e tenta com seus argumentos
recolocar os limites que a realidade impõe. Tenta oferecer-se como agente
do princípio de realidade, embora não tenha muito êxito. Mas está sempre
presente, tentando junto ao fidalgo refazer ligações entre os efeitos do real
sobre a realidade.
Como parece faltar ao fidalgo essa amarragem central da função pa-
terna, o sujeito interroga seu saber, pois nada pode responder essa interro-
gação, tendo como única possibilidade que alguma coisa vai falar no real.
Como falar no real? Produzindo significantes paternos que se apre-
sentam sob forma de alucinação auditiva, como função paterna. Nas produ-
ções delirantes, Dom Quixote ouve todo tipo de falas, impropérios, acusa-
ções e ameaças que vem de seus inimigos potenciais, superegóicos. Para
Calligaris (1989; p. 44): “O que não é simbolizado é a função central desses
significantes. É porque esta função central vai ser imposta pela injunção,
que esses significantes vão voltar para o sujeito no Real. É muito importante
pensar que o que está voltando no Real é alguma coisa da história, do saber
do sujeito”.
Quem sabe se possa dizer que as construções de Dom Quixote, por
sua cultura e criatividade, lhe dão uma possibilidade de saída do sofrimento
psíquico, através de seu jeito diferente buscando essa volta no real do pai.
Dizendo de outra forma, na psicose o que volta no real é a função, em sua
forma de lidar com os significantes que estão em seu saber particular, singu-
lar.
Como um jogo entre o real e o imaginário, denegando ou foracluindo a
realidade, o fidalgo de Cervantes, prisioneiro no mundo das novelas de cava-
laria, mas não só, busca um reencontro com o real do pai que pode estar
referindo antigos valores que não têm mais eco num mundo em transforma-
ção.
Pela escuta de Sancho Pança, aos poucos vai se abrindo uma possi-
bilidade de articulação entre o mundo do delírio e a realidade dos dois perso-
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CERVANTES, M. O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha. Belo Horizon-
te. Villa Rica Editoras Reunidas Limitada, 1991.
CALLIGARIS, C. Introdução a uma clínica diferencial das psicoses. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1989.
FREUD, S. (1905) Os Chistes e sua relação com o inconsciente. In. Obras psico-
lógicas completas. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In.
Escritos. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed., 1998.
_____ . O seminário 3 - As Psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
A
figura do sedutor é constitutiva da “urzene”, da cena originária da
qual nasceu a psicanálise. Escutando suas pacientes histéricas, Freud
construiu sua ”neurotica”’ (teoria das neuroses) sobre os pilares da
cena traumática de sedução, cujo protagonista era o pai perverso. Durante
algum tempo, as narrativas de sedução foram tomadas por Freud como uma
realidade que dava conta da etiologia sexual das neuroses. E do mesmo
modo como na trama de Don Juan a estátua do Comendador vem, ao final do
percurso, punir o sedutor por seus pecaminosos abusos eróticos e suas
transgressões, conduzindo-o aos abismos do inferno3, Freud tratava de libe-
rar suas pacientes, através da interpretação, de suas fixações traumáticas
ao pai sedutor, neutralizando então, supostamente, os efeitos nefastos do
trauma. Assim, o pai sedutor era, de certo modo, punido, jogado no poço
dos infernos. Seu posto de sedutor “imobilizador”, engendrador de culpa da
histérica, era reduzido ao lugar do vilão culpado, uma vez que todo seduzido
traz consigo a presumida inocência. Mas não tardou muito para que Freud
1
Psicanalista, membro da Association Psychanalyse et Médecine-Paris, da Association
Lacanienne Internationale-Paris e da equipe do Instituto Jean Bergès-Clínica e Centro de
Estudos em Psicanálise e Medicina-Porto Alegre-RS.
2
Molière, Don Juan, GF Flammarion, Paris, 1998, p.66.
3
Conforme as versões de Tirso de Molina(1630), Molière (1665) e Mozart (1787). Trabalha-
remos aqui com os elementos de dramaturgia das versões da peça teatral de Molière e da
ópera de Mozart Don Giovanni.
4
Masson J.M., “A Correspondência completa de Sigmund Freud para Willhelm Fliess”, Carta
de 21.09.1897, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1985, p. 265/267.
que prodiga cuidados à criança, que vai aparecer como a sedutora e, assim,
como a “geradora” de neurose, mas também como decisiva para a estrutura-
ção do psiquismo. Nessa estruturação, a urzene passa a ser a tessitura
fantasmática do sujeito, tanto no que concerne à sedução quanto no que diz
respeito ao coito parental, ao fantasma das origens. E uma vez formado o
triangulo edípico, a castração também vai concorrer como mola mestra do
fantasma.
Uma possível articulação das aventuras de D. Juan com a pré-história
da psicanálise se dá pela lógica que preside o próprio tema. Pois afinal, era
de sedução, de feminilidade e de desejo, que se tratava no discurso das
histéricas de Freud, do mesmo modo como era disso que se tratava na saga
desse fascinante personagem.
Para refletirmos sobre esta articulação, consideremos alguns aspec-
tos da figura mítica de D. Juan. Trata-se de um jovem nobre que investe toda
sua vitalidade na conquista das mulheres. Em várias versões desta obra
literária, a fantasia, o disfarce, é nele uma segunda natureza. Para se intro-
duzir no quarto de suas belas, na calada da noite, ele se faz passar por um
outro, geralmente pelo noivo ou pretendente. Pego em flagrante pelo
Comendador, pai de Dona Ana, que ele acabara de violar, o mata em duelo.
Pouco antes, não havia hesitado em fazer com que Elvira, uma religiosa que
seduziu, deixasse o convento para casar-se com ele, abandonando-a, logo
em seguida, movido por outra paixão. Com os irmãos de Elvira em seu encal-
ço para lavar a honra da família, sua fuga é uma constante tentativa de sedu-
ções e seqüestros de belas mulheres. Buscando onde se esconder de seus
perseguidores, D. Juan acaba entrando no mausoléu onde está a estátua
fúnebre do Comendador. Cinicamente, ele convida a estátua para jantar. Seu
criado vê a estátua assentir com a cabeça e se aterroriza. D. Juan, cético,
ironiza a crendice nas coisas do além e segue seu caminho. Especialista da
sedução e estrategista do discurso, Don Juan é também, conseqüentemen-
te, um especialista em esquivar-se do constrangimento da palavra dada ao
outro, do reencontro com este outro. Sua última jornada de vida é uma su-
cessão de reencontros com furiosos e furiosas que ele faz de tudo para evitar
e dos quais ele participa apenas com seu silêncio, em completa ausência,
fiel apenas a sua própria insolência. Interrogado por seu criado, D. Juan lhe
explica que a fidelidade não somente lhe parece ridícula, mas também equi-
vale, para ele, a uma morte, morte da qual ele foge em direção à liberdade,
voando de mulher em mulher. Uma vez conquistada, toda a beleza do encon-
tro desaparece e sua sede de mudança exige que ele abandone sua bela por
uma outra a ser conquistada, e para tanto, nenhum escrúpulo pode deter sua
empreitada. Assim, a mulher e a morte, para D. Juan, estão quase em equi-
valência. Além de sedutor, D. Juan é também um descrente e um transgressor,
que desafia as leis do Céu e da terra. Não bastasse isso, ele é também um
mau filho, que ultraja e ridiculariza a autoridade paterna com sua conduta
depravada e suas transgressões aos códigos morais da nobreza. Seu pai lhe
assinala que ele não é digno de sua descendência. E, coisa curiosa, a figura
materna não aparece em nenhuma das versões, senão em uma breve alu-
são, sem jamais constituir um personagem da trama. Acrescentemos a isso
o fato que D. Juan parece ter um gosto não somente por abandonar cada
uma de suas mulheres conquistadas, mas também por invalidar, depois do
abandono, a palavra dessa mulher. Não raramente ele as designa para seu
interlocutor, quando se introduzem na cena e o interpelam em suas furiosas
reivindicações, como “loucas”. Entretanto, Don Juan, este ser de fuga e de
inconstância que jamais suporta permanecer com nenhuma dessas mulhe-
res e que se sustenta em uma incansável evasão do desejo, pervertendo a
linguagem com seus artifícios sedutores, surpreende. Ele, que jamais foi fiel
à palavra dada, vai cumpri-la comparecendo ao “reencontro” marcado justa-
mente com a estátua do Comendador, este pai morto que, com um aperto de
mão, o conduz aos infernos.
Analisando o processo da sedução em Don Juan, Monique Schneider5
propõe um recorte particularmente interessante no que diz respeito à relação
5
Schneider, Monique, Don Juan entre le père et la femme in : Don Juan et le procès de la
séduction, Ed. Aubier, Paris, 1994, p. 215-265.
6
Ibid. Ato V, cena VI.
7
Lacan, Jacques, Séminaire ´´l´ Angoisse´´ , Lições XV e XVI, publicação interna da
Association Lacanienne Internationale.
o que há por detrás dela, por pouco que seja, a impostura masculina estaria
preocupada em jamais deixar ver o que não há. Por isso, deixar ver seu
desejo, pela mulher, resultaria angustiante para o homem. Isso nos faz pen-
sar na constante evasão do desejo, acima evocada, no personagem de D.
Juan. Enquanto “sonho feminino”, D. Juan apareceria, segundo Lacan, como
um homem perfeitamente igual a ele mesmo, um homem ao qual não faltaria
nada. Lacan assinala ainda a relação de D. Juan com esta imagem do pai
absoluto, não castrado, uma pura imagem, uma imagem feminina. A com-
plexidade da relação do homem a seu objeto, nos diz Lacan, resta apagada
em D.Juan, mas para isso é necessária uma aceitação de sua “impostura
radical”, da qual depende todo o seu prestígio. Colocando-se sempre no
lugar de um outro, D. Juan aparece como o objeto absoluto, que está sempre
ali. Em lugar da dimensão do desejo, estaria, em D. Juan, alguma coisa que
faz função, já que o desejo mesmo pouco contaria em seu jogo. Esta alguma
coisa seria o odor di femina, que tem justamente a propriedade de ser volátil,
desaparecendo na própria aventura.
Enquanto para a mulher o desejo teria como ponto de partida, para
constituir seu objeto, aquilo que ela não tem, para o homem, as coisas
começariam por aquilo que ele não é.
É nessa ofuscante problemática do ser e do ter, que Lacan situa o
fantasma de Don Juan como um fantasma feminino. Melhor dizendo, trata-se
dessa busca feminina de uma imagem que teria uma função fantasmática.
Antes de mais nada, a imagem de um homem que “tem”, que sempre o “terá”
e que jamais vai “perdê-lo”. E Lacan acrescenta ainda que justamente é essa
a posição de D. Juan no fantasma, a de que nenhuma mulher vai “tomá-lo”
dele. Nesse sentido é que o fantasma de D. Juan seria um fantasma femini-
no, é isso o que ele teria em comum com a mulher, já que ninguém poderia
tomar dela o que ela não tem. Seguindo este raciocínio, Lacan afirma que “o
que a mulher tem em vista, na homenagem do desejo masculino, é que este
objeto (...) torne-se propriedade sua”.8 Uma vez que ele lhe pertença, não se
8
Op. Cit. P. 220.
perde mais, como havia já avançado Lacan. Enfim, Lacan nos diz com isso
muita coisa da relação de D. Juan com a mulher. Quanto à relação de D.
Juan com o pai, podemos nos permitir aqui uma ousadia de leitura. Em seus
comentários finais sobre D. Juan, Lacan diz que “(...) uma mulher pensa
sempre que o homem se perde com outra mulher. Don Juan a deixa segura
de que há um homem que não se perde em hipótese alguma”9. Nossa ousa-
dia seria a de acrescentar: a não ser com o pai.
Essa incerteza do ser, esse gosto por se fazer passar por outro, esse
apego ao parecer ter, essa busca do pai não castrado, essa curiosa evasão
do desejo, características essenciais de D. Juan, são elementos constitutivos
do sonho feminino que escutamos todos os dias em nossa clínica, desde
Freud. A familiaridade de D. Juan com a constituição fantasmática como tal,
desde os primórdios da psicanálise até nossa atualidade é bastante signifi-
cativa e continua nos servindo de paradigma para nossa necessária perda da
inocência, sem a qual as coisas jamais avançariam.
Nascido da tradição oral medieval, esse mito chegou a 1630 com
mais de trezentas versões e, desde então, já inspirou mais de 400 obras
escritas. Se Don Juan faz falar tanto, é porque, sem sombra de dúvidas, a
literatura imita a vida, e não o contrário.
9
Op. Cit. P. 221.
Francisco Settineri
E
m uma de minhas traduções, caiu-me nas mãos um autor que é
sempre impressionante, capaz de despertar transferências, pela sua
capacidade teórica.
Todavia, uma de suas intervenções, nesse livro, deixou-me impressio-
nado, até pelo menos, certa vez, comentá-la com a Ana Maria da Costa, o
que me fez pensar por anos, até que um dia... Ana me disse: “Não é bem
assim!” E nada mais disse...
Aconteceu em uma comunidade do Orkut, em que se citavam frases
da correspondência amorosa entre Heidegger e Hannah Arendt. Acendeu-se
a centelha, e comecei a pensar um pouco mais, sobre o “mais” feminino.
Nesse trecho, Harari afirmava que o grito de “mais”, durante o orgas-
mo feminino, era característico da histérica. Ela, segundo o erudito argenti-
no, demandaria mais – pênis-, justo na hora em que o homem não podia dar
mais o que ela, supostamente, lhe pediria. Desse modo, o humilharia.
Tenho dois motivos, lingüísticos e psicanalíticos, para me permitir dis-
cordar do renomado psicanalista e escritor, do qual traduzi, com todo esme-
ro que pude, dois livros. E sobre os quais ele próprio comentou, com um
analisante seu, que estavam muito bons, porque tinham sido traduzidos com
transferência.
O primeiro é de ordem lingüística. Um significante nunca é repetido
com o mesmo valor semântico, mesmo na mesma frase. Isso está no Curso
de Lingüística Geral, do Mestre genebrino, e Lacan o cita, nem sempre refe-
rindo a fonte.
Aliás, quem é que nos garante que, para cada mulher, em cada orgas-
mo, ao dirigir-se ao parceiro para pedir mais, está enunciando o mesmo
significante, com seus mesmíssimos efeitos de significado?
Formulando essa interpretação completamente fechada, Harari sim-
plesmente, além de ser injusto com as mulheres, provocando inibições se-
DIÁRIO DE UM SEDUTOR
KIERKEGAARD, Soren. Diário de um sedutor. Os Pensa-
dores, Abril Cultural, 1979, 52p.
E
scrita em 1843, “Diário de um sedutor” é
uma obra do filósofo dinamarquês Soren
Kierkegaard, num período em que procu-
rava demonstrar a necessidade de escolha entre
o modo de vida ético e estético. Kierkegaard,
cristão luterano atormentado, na juventude ex-
perimentou a vida boêmia após a morte do pai.
Passados os primeiros momentos de crise, re-
toma seus estudos univesitários e torna-se en-
tão pastor. Logo, rompe o noivado com uma jovem de 17 anos para viver uma
vida solitária em busca de sua vocação filosófica religiosa.
O autor narra a fictícia descoberta de um diário pertencente a alguém
que ele conheceu – Johannes – cujo conteúdo fala das suas relações com
uma jovem, também sua conhecida, de nome Cordélia. Acompanha o diário,
um conjunto de cartas do sedutor à jovem que as doa ao narrador, que, por
sua vez, as intercala no desenrolar do diário. O conteúdo do diário: a paixão
de Joahnnes por Cordélia, melhor dizendo, por sua imagem e sua paciente
estratégia em seduzi-la, deflorá-la e abandoná-la.
Jean Baudrillard (“Da Sedução”, 1992) bem comenta o clima da obra:
“O Diário de um sedutor é o cenário de um crime perfeito. Nada no cálculo do
sedutor, nenhuma de suas manobras fracassa. Tudo se desenrola com uma
infalibilidade que poderia ser não real ou psicológica mas mítica. Essa perfei-
ção do artifício, essa espécie de predestinação que orienta os gestos do
sedutor só faz refletir, como num espelho, a perfeição da graça infundida na
jovem e a inelutável necessidade de seu sacrifício. O sexo seria assim ape-
nas o soldo ou o desconto de um processo mais fundamental, um resíduo
econômico do processo sacrificial da sedução. Os deuses levam sua parte,
os humanos dividem os restos.”
as e pela moral. Escreve-lhe: “... chamo-te minha porque nenhum sinal exte-
rior recorda a minha posse. Em breve ao chamar-te assim será pura verdade.
E, apertada nos meus braços, quando me enlaçares nos teus, não precisa-
remos de nenhum anel para nos recordar que somos um do outro; pois não
será esse abraço uma aliança mais real que um simples símbolo?”
Depois do último ato, Joanhnnes lamenta por um instante a brevidade
da noite em que possuiu Cordélia, para logo concluir que está tudo acabado,
que uma jovem é fraca quando deu tudo, pois tudo perdeu: “... no homem a
inocência era um elemento negativo, mas na mulher, a essência da sua
natureza.”
Então, formula um desejo a respeito de Cordélia e sua repulsa por
lágrimas e súplicas femininas: “Ameia-a, mas já não posso interessar-me.
Se eu fosse um deus faria aquilo que Netuno fez por uma ninfa, transformá-
la-ia em homem.”
Quanto a Cordélia, sua voz está nas três cartas desesperadas que
abrem o relato da trama. Para Baudrillard, mesmo este desespero é estra-
nho: “Nem exatamente enganada, nem exatamente despojada de seu dese-
jo, mas espiritualmente desviada por um jogo cuja regra não conhecia. En-
volvida como por um sortilégio – a impressão de ter sido sem o saber o
objeto de uma maquinação, mais que aniquiladora, de um rapto espiritual –
é, com efeito, sua própria sedução que lhe foi roubada e voltada contra si
própria. Destino inominável, do qual resulta um estupor bem diferente do
desespero.” Diz o narrador a este respeito: “Estas vítimas eram pois de um
tipo muito especial (...) sua vida era semelhante à que se vê todos os dias, e,
entretanto, haviam se modificado sem que os outros pudessem notar. Sua
vida não se quebrara nem rompera como outras, antes se curvara dentro
delas próprias; perdidas para os outros, em vão procuravam reencontrar-se.”
Silvana Lunardi
AGOSTO – 2007
PRÓXIMO NÚMERO
PERCURSO DE ESCOLA
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ENDEREÇO _________________________________________________
CEP: _____________ CIDADE:______________________ UF: _______
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Data: ______/_____/2007
* O pagamento pode ser feito via depósito bancário no Itaú, Ag. 0604, C/C 32910-
2. O comprovante deve ser enviado por fax, juntamente com o cupom, ou via
correio, com cheque nominal à APPOA.
Capa: Manuscrito de Freud (The Diary of Sigmund Freud 1929-1939. A chronicle of events
in the last decade. London, Hogarth, 1992.)
Criação da capa: Flávio Wild - Macchina
EXPEDIENTE
Órgão informativo da APPOA - Associação Psicanalítica de Porto Alegre
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Fernanda Breda, Marcia Zechin, Maria Cristina Poli,
Marta Pedó, Norton Cezar Dal Follo da Rosa Júnior
e Robson de Freitas Pereira.
S U M Á R I O
EDITORIAL 1
NOTÍCIAS 2
SEÇÃO TEMÁTICA 4
EPISTEMOLOGIA E TOPOLOGIA
LACANIANA: TEMPO DE COMPREENDER
Almerindo A. Boff 6
SOBRE A TOPOLOGIA
DAS ESTRUTURAS CLÍNICAS
Ligia Gomes Víctora 12
ENSAIO SOBRE A TOPOLOGIA
DA NEUROSE OBSESSIVA
Bernard Vandermersch 22
A QUESTÃO DA TRANSFERÊNCIA
NAS PARANÓIAS
Louis Sciara 33
DOM QUIXOTE (O AVESSO
DO AVESSO DA LOUCURA II)
Sueli Souza dos Santos 48
DOM JUAN: UM SONHO FEMININO
Maria Rosane Pereira Pinto 55
SEÇÃO DEBATES 62
SOBRE O “MAIS” FEMININO
Francisco Settineri 62
RESENHA 64
O DIÁRIO DE UM SEDUTOR 64
AGENDA 67
N° 160 – ANO XIV AGOSTO – 2007
A TOPOLOGIA DAS
ESTRUTURAS CLÍNICAS