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ROTEIRO DE ESTUDOS PARA A PROVA DO MESTRADO

CLÁSSICOS E MÉTODO

RODRIGUES, Albertino. A sociologia de Durkheim + DURKHEIM, Emile. O que é fato social.

CONTEXTO: Durkheim deve ser entendido como fruto de um tempo de universalização da escola e
de laicização do Estado, de preocupação com a desunião francesa, da segunda revolução industrial e
de avanço geral da ciência e de seu discurso.

INTERESSES: Estudo da moral e de seus “elementos objetivos” para constituir uma reconstrução
da sociedade francesa (por isso é que se volta com tanto interesse à educação) – tal interesse,
entretanto, não se dava com o simples interesse de constituir uma diferença racial e intelectual entre
os diferentes povos do mundo, mas, sim, de entender as dinâmicas de união social e de constituição
da moral (aqui, o interesse não é na dominação do outro, mas na reorganização da sociedade
francesa).

CIÊNCIA SOCIOLÓGICA: Necessidade de formação da especialização da sociologia (separando-a


das outras disciplinas). Sendo assim, o foco da sociologia estaria no meio moral (“meios
constituídos pelas ideias”1), o mais puramente social de toda a organização de uma sociedade. Desse
modo, propõe uma “ciência positiva”, com o interesse de pesquisar, por um método rigoroso
caracterizado pela experimentação, leis sociais. A ciência, então se distingue da arte: enquanto esta
é “interessada” – focada na prática e na utilidade de suas pesquisas –, aquela é “desinteressada” –
busca o conhecimento dos fatos pelo simples conhecer, sem ter em vista efeitos de utilidade e
praticidade2. Ou seja, Durkheim defende a separação entre teoria e prática como um elemento
fundamental da ciência sociológica3

1 Mas qual meio, em si, não é constituído pelas ideias? A distinção de Durkheim se dá pela exclusividade dos meios
da ideia? Mas, mesmo se assim considerarmos, ainda temos materializações concretas destas tradições que levam a
uma superação da mera “ideia” na ação social: uma religião, por exemplo, desenvolve diversos artefatos e símbolos
que se materializam na e para a realização de seu ritual (p.e., hóstia, cálice, vestimenta do padre, igreja, etc., na
religão católica) – mais sobre esta questão, cf. BOURDIEU, para quem a constituição dos campos leva a mais do
que simplesmente uma mudança da “moral”, mas também na própria interiorização do indivíduo, que se reflete em
seu gosto e corporalidade (constituindo, portanto, um habitus), e na constituição do mundo exterior (a forma
simbólica não basta simplesmente na cabeça do agente, mas também em representações visíveis a eles, que lembre e
reafirme seus valores, princípios, tradições, etc.). O ponto, aqui, é que Durkheim simplesmente pretende estudar
uma esfera “com individualidade distinta dos reinos animal e mineral” (p. 18), num entendimento muito próximo
àquele representado por Santos (xxxx) sobre o paradigma dominante das ciências: deve-se buscar a especialização
das disciplinas e sua separação uma das outras; entretanto, num paradoxo adequado ao seu tempo, marcado pela
transição das ciências sociais como obras de “letras” e “arte” para uma obra científica, Durkheim realiza diversas
analogias entre as “ciências do espírito” e as “ciências naturais”, identificando, nelas, o mesmo objetivo, tendo-se o
estudo de leis e regularidades, mas de forma separada e independente (por mais que o avanço das ciências naturais
auxilie e inspire o desenvolvimento da sociologia, esta não deve se basear naquela para explicar os fenômenos
sociais).
2 É interessante notar como este conceito de ciência é próprio do século XIX, e, no século seguinte, todos estes
pressupostos caem por terra, em especial diante do debate acerca da pesquisa da bomba nuclear. Tal ruptura, aliás,
pode-se especular, também ocorre diante do enorme avanço científico-tecnológico no entreguerras, o que permitiu
tanto que a ciência saísse do monopólio escolástico/universitário e passasse também à aplicação prática da
realização dos interesses do modo de produção capitalista, em especial a partir da confecção de produtos e bens de
consumo para a classe trabalhadora, que passava a ser incorporada de forma mais intensa no mercado de consumo.
Em outras palavras, com o avanço da tecnologia e da ciência, esta se tornou um instrumento da acumulação
capitalista e, principalmente, um meio de distinção do nível de acumulação e de avanço das forças produtivas entre
diversos países, o que permitiu a ascensão do monopolismo, do imperialismo (em especial daquele de feição
“democrática”, caracterizado pelas multinacionais) e do fordismo. Aqui, este conceito de Durkheim cai por terra, ou,
na melhor das hipóteses, insula-se em um estrato minúsculo da população, representado pelos próprios cientistas e
pesquisadores.
3 Aqui esteja, talvez, uma das principais discórdias dele com Marx. Este posicionamento, entretanto, não significa que
Durkheim não realizasse medidas ou não tivesse interesses políticos, mas simplesmente que ele propunha separar a
sua atividade científica de sua militância política, assim como Weber. Não obstante o sociólogo de Heidelberg
discordasse da suposta “neutralidade” da pesquisa sociológica proposta por Durkheim, ambos tiveram, na realidade,
OBJETO DA SOCIOLOGIA: Em primeiro lugar, pode-se ressaltar que Durkheim realiza uma
grande virada na perspectiva positivista porque, em oposição à tradição iluminista, defende que o
elemento central para a ação do homem não está na razão, mas sim na coerção e nos efeitos da
coletiividade sobre o indivíduo. Por isso, a sociologia deve pesquisar o que ele chama de “fatos
sociais”, os quais se marcam pela sua natureza puramente social, e, também, pela sua
coercitividade, generalidade e exterioriedade4; eles, então, se marcam por serem “maneiras de agir,
de pensar e sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se
lhes impõem” (p. 48). É necessário ressaltar que, para Durkheim, o fato social se confunde com o
hábito e com o costume de uma população de viver de forma determinada, reproduzindo-se um
sistema de relações sociais que se marca pela continuidade: as mudanças se dão somente na
diferença de níveis de consolidação5 entre certas tradições, as quais não seriam influenciadas por
mudanças tecnológicas e de outras esferas, uma vez que o moral e o sociológica existem de forma
separada a estas outras esferas. No nível das diferenças entre os estudos sociológicos, Durkheim
distinguia o que ele chamava de “morfologia social” – a qual pode ser entendida como uma
“antropogeografia” (focando-se no estudo da forma da ocupação das sociedades sobre o espaço no
mundo, o que pretendia fornecer um quadro geral de suas sociedades) – e “fisiologia social” – uma
ciência focada no estudo dos elementos sociais específicos de uma sociedade (religião, moral ,
economia, etc.) e suas funções para a sociedade –, as quais comporiam, em conjunto, a sociologia
geral.

DURKHEIM, Emile. As regras do método sociológico.

PRIMEIRA REGRA: “Considerar os fatos sociais como coisas” (p. 15) → ao contrário das
representações ideológicas (que vão da ideia às coisas, utilizando-se dos fatos para justificar as
ideias), com seu sentido prático – isto é, voltado para a realização de um objetivo específico –, a
ciência se propõe a romper com os pré-conceitos, que distorcem os fatos e definem
antecipadamente o objeto de estudo. Os fenômenos sociais, então, são o ponto de partida da
ciência, mais especificamente “os fenômenos sociais em si mesmos, separados dos sujeitos

uma relação entre práticas científicas e políticas muito próxima: defendiam suas posições políticas de forma
separada de sua atuação científica, mas podia-se ver, claramente, elementos que se relacionavam entre uma e outra
(por exemplo, o interesse de Durkheim na moral e na educação se aproximava muito das noções liberais e interesses
de reforma do Estado por Weber, mostrando como suas pesquisas, na própria acepção weberiana, não podia passar
de uma neutralidade axiológica). Por outro lado, estes autores apenas puderam assumir esta posição por conta do
desenvolvimento das ciências humanas em seu período de vida, algo que Marx jamais teve condições de desfrutar:
preso às cátedras de filosofia – das quais foi expulso por suas posições políticas –, o velho Nick teve de se
concentrar na ação política para sobreviver (inclusive, suas maiores fontes de renda foram empréstimos de Engels,
riqueza da família e empregos nas redações de revistas – seja como diretor, caso da Gazeta Renana, ou como redator
de artigo “free lance”, como correspondente europeu, à revista americana The Tribune). Neste sentido, Marx pôde
perceber como o posicionamento político influenciava nas condições de pesquisa científica, uma vez que muitos
adversários seus podiam viver no conforto de uma cátedra, enquanto ele não, o que o levou a negar toda e qualquer
perspectiva de pesquisa neutra, enquanto Weber e Durkheim, por suas posições, acreditavam nesta possibilidade, e,
assim, desenvolviam seus argumentos a partir do campo acadêmico-científico em que atuavam – aliás, é muito
provável que, se tivessem uma perspectiva diferente, pouco teriam condições de desenvolver suas pesquisas (o
sociólogo francês, mesmo com suas posições cientificistas, ainda assim fora preterido pelas cátedras de seu país,
com a acusação de ser “socialista”, pelo simples fato de pesquisar sociologia, cf. ORTIZ).
4 A coercitividade do fato social se expressa a partir de sua capacidade impôr sanções ao indivíduo que não seguir
suas regras e pela sua resistência àqueles que tentam mudá-lo (pense-se, por exemplo, numa igreja, como a tentativa
de mudar os costumes de rezar levará à necessária repreensão dos outros religiosos e como estes dificilmente
aceitarão estas mudanças propostas pelo indivíduo “desviante”); sua generalidade se expressa no fato de que todos
sofrem seu efeito, não constituindo um fato social aquela coerção que se resume apenas ao indivíduo ou a uma
parcela pequena destes (p.e., uma opinião ou visão específica de um indivíduo não é suficiente para mudar a
tradição religiosa); e sua exterioridade se dá pelo fato de que ele se coloca de forma independente aos indivíduos, e,
em alguns casos, até mesmo ao grupo como um todo (não importa se eles gostam ou não da forma religiosa, se
querem mudá-la ou não, ela permanece como é, sendo necessário seguir suas regras)
5 Isto significa, como se verá mais à frente, que, justamente, um dos elementos essenciais para o estudo
conscientes que os concebem” (p. 28). Exemplo: ao invés de se conceber a moral como algo dado
(como, por exemplo, a partir da noção cristã), deve-se investigar todas as formas de moral
estabelecidas na sociedade, suas regras e modo de agir, para assim defini-la. Se assim se proceder,
percerber-se-á a existência de diversas morais e várias funcionalidades destas, incluindo-se a
religião cristã.
COROLÁRIO 1: “É preciso descartar sistematicamente todas as prenoções” (p. 32).
COROLÁRIO 2: “Jamais tomar por objeto de pesquisas senão um grupo de fenômenos previamente
definidos por certos caracteres exteriores que lhe são comuns, e compreender na mesma pesquisa
todos os que correspondem a essa definição” (p. 36) – construção do objeto a partir de fatos
objetivos e progressivo avanço de conceitos e teorias (ou seja, as teorias não devem construir a
análise dos objetos, mas o contrário → indução > dedução). Exemplo: oposição à criminologia
lombrosiana, que considera apenas alguma parte dos crimes, daqueles que persistem historicamente
como atentado à moral (como assassinato, etc.), para construir seus argumentos: deve-se considerar
todos os crimes e entender porque eles perdem este estatuto e, assim, definir, a partir dos dados, as
causas dessa mudança. Em extensão desta crítica, também se nega a aceitar a “falta de moralidade”
dos selvagens, considerando esta afirmação um erro de método (o próprio estudo que Durkheim faz
das formas primitivas religiosas é exatamente a demonstração da presença de moralidade entre
eles).
“Pode-se estabelecer como princípio que os fatos sociais são tanto mais susceptíveis de ser
objetivamente representados quanto mais completamente separados dos fatos individuais que os
manifestam (…) Se os únicos pontos de referência dados forem eles próprios variáveis, se forem
perpetuamente diversos com relação a si mesmos, faltará uma medida comum e não teremos meio
algum de distinguir em nossas impressões o que depende de fora e que lhes vem de nós” (p. 45) →
quanto mais geral um fato social é, mais fácil realizar seu estudo e seguir sua pesquisa sem
contaminá-la com a visão do pesquisador
“Quando, portanto, o sociólogo empreende a exploração uma ordem qualquer de fatos sociais, ele
deve esforçar-se em considerá-los por um lado em que estes se apresentem isolados de suas
manifestações individuais” → deve-se evitar o estudo de objetos que se transformam demais ou se
modificam de acordo com a expressão de diferentes pessoas (por exemplo, prefere-se o estudo
jurídico da família do que as reconstituições pessoais e biográficas6)

REGRAS RELATIVAS À DISTINÇÃO ENTRE NORMAL E PATOLÓGICO

A sociologia deve buscar definir o normal e o patológico, assim como na medicina se define o
saudável e o doente. A diferença entre a noção científica e a ideologia é que a ciência se vale de um
método objetivo, “inerente aos fatos mesmos”, o que a faz ser capaz de definir realmente o que é
normal e o que é patológico (p. 51). É neste sentido que a ciência adquire sua função prática:
negando-se à praticidade, ela contribui para o desvendamento real dos fatos estudados, o que
possibilita a maior possibilidade corretamente agir no mundo7.

6 Aqui, Durkheim cai numa “pegadinha epistemológica”: confunde forma discursiva com o nível de objetividade do
fato pesquisado. Mesmo que, em parte, ele tenha razão: de fato, registros no cartório são mais factíveis do que
histórias de família, por outro lado, os próprios registros também causam omissões e enganos (o que é, afinal, um
filho bastardo senão exatamente isso?). O que Durkheim quer dizer, no fundo, é que o pesquisador deve escolher
com cuidado a sua fonte de pesquisa, considerando-se todos os problemas e fraquezas possíveis que esta poderá
trazer para ele.
7 Perceba-se, aqui, uma certa herança positivista de Durkheim, ainda mais considerando-se uma relativa romantização
da ciência, como se esta, de fato, se separasse da ideologia; entretanto, seu conceito é que a ciência deve partir dos
fatos, de bases objetivas, para poder desvendar a verdade sobre os objetos pesquisados. Por isso, ele supera muitas
teorias e noções que ele define como ideológicas (racialismo, racionalismo burguês, economia política burguesa,
etc.), mas, por outro lado, cai em sua própria armadilha: quando define a existência do patológico e do normal, ele
demonstra as suas próprias pré-noções, por mais que as fantasie de “científicas” e “objetivas” por meio da
comparação com a medicina – como o próprio Boaventura nota, essas ciências também não deixam de ser
influenciadas pelas noções ideológicas de seu tempo, o que leva, também, às suas próprias rupturas e limitações (no
âmbito da medicina, por exemplo, no que há de saudável em entupir um paciente de remédios, sem modificar sua
“Chamaremos normais os fatos que apresentam as formas mais gerais e daremos aos outros o
nome de patológico. Se concordarmos em chamar tipo médio o ser esquemático que constituiríamos
ao reunir o mesmo num todo, numa espécie de individualidade abstrata, os caracteres mais
frequentes na espécie com suas formas mais frquentes, poderíamos dizer que o tipo normal se
confunde com o tipo médio e que todo desvio em relação a esse padrão da saúde é um fenômeno
mórbido” (p. 58, grifos meus) → o normal como a “forma mais geral”, isto é, aquela mais presente
e comum na sociedade (p. ex., não-criminoso, saudável, etc.), cabendo à análise do todo para a
definição desta normalidade8.
Para se estabelecer se um fato é normal ou não, dentro das mudanças históricas, deve-se buscar
remontar ao passado e estabelecer as diferenças entre os fatos sociais de ontem e de hoje
comparados (determinando-se, então, se algo sempre foi o normal, se mudou com o tempo, se se
apaga ou se expande, etc.). Este é o caso da “estrutura social segmentar” – isto é, definida pela
posição territorial –, de acordo com exemplo dado por Durkheim, a qual dá lugar a outras estruturas
sociais de acordo com o desenvolvimento histórico das relações sociais. É desta explicação que
derivam suas próximas três regras:

1) “Um fato social é normal para um tipo social determinado, considerado numa fase
determinada de seu desenvolvimento, quando ele se produz na média das sociedades dessa
espécie, consideradas na fase correspondente de sua evolução”
2) “Os resultados do método precedente podem ser verificados mostrando-se que a
generalidade do fenômeno se deve às condições gerais da vida coletiva no tipo social
considerado”
3) “Essa verificação é necessária quando esse fato se relaciona a uma espécie social que ainda
não consumou sua evolução integral”

Segundo este método, portanto, o crime não pode ser entendido como uma patologia, porque ele
está presente em todas sociedades, tendo-se como função principal reforçar a solidariedade social
(na mesma medida, o aumento do crime também não é necessariamente expressão de patologia,
uma vez que, e isto fica claro na primeira regra, a normalidade é baseada em sociedades específicas,
e não num índice pré-determinado). Os crimes não deixariam de existir porque, mesmo que
vivéssemos em uma “sociedade de santos”, seriam estipulados crimes aos níveis dos santos (tipo,
sei lá, esquecer a torneira aberta) passíveis de punição pelos outros; o crime não deixará de existir
dieta e hábitos de vida? Onde, de fato, o patológico termina e o saudável inicia?).
8 Na argumentação deste fato, Durkheim chega a usar uma justificativa evolucionista: o normal é o mais geral porque
ele é o que garante as melhores condições de sobrevivência, em comparação com o patológico. De fato, esta ideia
pode até mesmo fazer sentido na biologia e medicina, mas, nas ciências sociais, que se marcam por relações sociais
entre diferentes sujeitos constituídas pelas relações de poder, “normalidade” não se confunde puramente com
funcionalidade, uma vez que as relações de poder levam a estas constituições – pense-se, por exemplo, na questão
da construção da criminalidade e do sistema prisional, os quais, ao ampliar cada vez mais a própria população, não
se move pela saúde da sociedade, a qual tem de conviver com índices de criminalidade cada vez maiores, mas com
os seus próprios interesses e com valores e noções tão enraizados que se negam a ser transformados. Mesmo que o
crime seja considerado algo “normal”, com a finalidade de reforçar os laços sociais, ele se entrelaça com diversos
outros elementos da relação de poder, o que faz com que a criminalidade assuma proporções e formas muito
específicas que, sem dúvida, devem ser estudadas em seu nível mais concreto. Por isso, a partir da proposta histórica
e de longo alcance de Durkheim, a sua confusão entre “normalidade” e “funcionalidade” possui um erro fulcral: se
esquece não apenas como se define o normal (em especial através do desenvolvimento histórico de uma sociedade),
como também confunde-o com uma “regra da natureza”, naturalizando-o e legitimando-o, sem ter provas empíricas
de fato para garantir a sua profecia (como se pode garantir, de fato, que numa “sociedade de santos” o crime
persistiria?). Talvez seja justamente a ausência da consideração dos conflitos dentro do todo que leva à insuficiência
teórica de Durkheim neste ponto: ao invés de considerar o avanço histórico das concepções dos indivíduos a partir
de suas próprias concepções, focando-se em objetos empíricos oficiais (direito, por exemplo), ele perde a capacidade
de compreender como o agente se articula ao todo e, na relação com os outros, transforma-o. Se pegarmos o próprio
magnum opus de Durkheim, o avanço da sociedade sempre se dá em termos de “maior funcionalidade”, numa
analogia com os sistemas biológicos, sem ter praticamente nenhuma agência humana neste processo, o que leva a
considerar a ascensão da sociedade burguesa como um simples fato “natural” – e não historicamente construído e
disputado pelos agentes que a constituíram.
por ser necessário à reprodução da sociedade.

REGRAS RELATIVAS À CONSTITUIÇÃO DOS TIPOS SOCIAIS

Sociologia pode realizar a definição de tipos sociais a partir do momento em que se concentra no
estudo das “espécies sociais”, numa intersecção entre o pensamento histórico e o filosófico, uma
vez que não se concentra nem na definição da humanidade como um todo e muito menos nas
especificidades irredutíveis de um povo: seu estudo dos fatos sociais permite-lhe classificar os tipos
sociais, numa “morfologia social”, que correlaciona o todo (sociedade) às suas partes (religião,
moral, direito, etc.). Para compreender esta relação, Durkheim propõe o estudo de esferas e
sociedades mais simples, de tal forma a, partindo delas, compreender o sentido das diversas partes
que constituem as sociedades mais complexas. Por exemplo, o estudo da religião de uma sociedade
mais simples, permite compreender que o sentido deste instituto não é simplesmente a revelação de
uma verdade à população (como alguns religiosos interpretariam), mas na construção da
solidariedade social. Não à toa, a regra relativa a esta constituição dos tipos sociais seria a seguinte:
“Começar-se-á por classificar as sociedades de acordo com o grau de composição que elas
apresentam, tomando por base a sociedade perfeitamente simples ou de segmento único; no interior
destas classes, distinguir-se-ão variedade diferentes conforme se produza ou não uma coalescência
completa dos segmentos iniciais” (p. 87). Com isso, pretende-se perceber as regularidades e
diferenças dentro das sociedades, como se faz com a religião, a qual, por mais que perca seu caráter
de “controle da natureza” inicial, segue possuindo uma função de unificação social, ao submeter o
homem à moral e aos seus ritos e tradições, e de estruturação do pensamento da sociedade.

REGRAS RELATIVAS À EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS

Durkheim explica que a causa de existência de um fato social não equivale à sua utilidade para a
sociedade na qual ele existe, o que o leva a formular a seguinte regra: “quando se procura explicar
um fenômeno social, é preciso pesquisar separadamente a causa eficiente que o produz e a função
que ele cumpre” (p. 97). Isto quer dizer que a sua causa pode se dar separada da sua funcionalidade,
assim como esta não deixa de causar outros efeitos além de sua funcionalidade imediata: por
exemplo, o avanço da divisão social do trabalho causa a complexificação da sociedade e permite a
sua especialização, mas, por mais que este fato incomode algumas pessoas, outros fatos sociais
(como a identidade nacional, por exemplo) impedem que aqueles que se incomodam com este fato
se retirem da sociedade. Isto quer dizer que as suas relações podem incluir, sim, uma correlação,
uma necessidade, mas que elas não necessariamente existirão de toda forma: os fatos sociais não
existem todos conjuntamente ligados numa harmonia perfeita, mas simplesmente se organizam de
tal forma que permite a reprodução desta sociedade, com anomalias e problemas.
Na concepção durkheimiana, o fato social se impõe sobre o indivíduo, supera-o e determina seu
pensamento e seu curso de ação; sendo assim, “é na natureza da própria sociedade que se deve
buscar a explicação da vida social (…) essa pressão, sinal distintivo dos fatos sociais, é aquela que
todos exercem sobre cada um” (p. 104). Ou seja, esta pressão não está nos indivíduos, mas no todo
destes, unidos, na sua associação cotidiana que estabelece regras e expectativas da ação de cada um.
Por isso, não se pode dizer que as formas sociais derivem da consciência dos indivíduos isolados,
mas sim das “condições em que se encontra o corpo social em seu conjunto”, como o nível de
divisão social do trabalho, tipo de religião e moral predominante, etc. Por isso, para Durkheim: “A
causa determinante de um fato social deve ser buscada entre os fatos sociais antecedentes, e não
entre os estados da consciência individual”9 (p. 112), sendo que “a função de um fato social deve ser
sempre buscada na relação que ele mantém com algum fim social” (ibidem), o que significa que há
motivos sociais próprios, exteriores aos indivíduos, que levam à mudança dos fatos sociais; estes se
explicam por si mesmos, sem depender da ação do indivíduo.

9 Conflito com a concepção weberiana.


WEBER, Max. A “objetividade” do conhecimento na ciência social e na ciência política.

Separação da ciência empírica e a técnica: não se deve buscar “normas e ideais obrigatórios” como
receitas para a prática; separação entre os juízos de fato (objetivo) e juízos de valor (subjetivo).
Com isso, entretanto, não se pode dizer que a ciência se separa de qualquer relação entre fins e
meios (ou seja, que ela se afaste de toda e qualquer prática), uma vez que ela possui a sua própria
lógica – o que cabe a ela, ao contrário, é definir antecipadamente esta relação, a qual pode servir de
base, numa correlação entre os fins da ciência e os pessoais, à ação dos sujeitos nela interessados.
Isto quer dizer que ela não se afasta completamente do juízo de valor – ou, ainda mais, dos próprios
valores –, mas simplesmente que pode tomá-lo como objeto de estudo, sem sobre ele aplicar o
mesmo remédio (valoraçãoo sobre valoração); quer dizer, “não é suficiente apenas compreender e
reviver os fins pretendidos e os ideais que estão no seu fundamento, mas também, e acima de tudo,
ensinar a 'avaliá-los' criticamente” (p. 110) 10. Neste sentido, quando se afirma “uma ciência
empírica não pode ensinar a ninguém o que deve fazer; só lhe é dado – em certas circunstâncias – o
que quer fazer” (p. 111), quer-se dizer que se pede uma “secularização” dos valores pessoais na
pesquisa científica: eles não deixam de existir, mas suas expressões devem ser reservadas para o
âmbito privado.
Neste sentido, um dos aspectos principais da própria pesquisa das ciências sociais é que ela não se
marca pela sua capacidade técnica: “o caracteriza o caráter político-social de um problema consiste,
precisamente, no fato de não se poder resolver a questão com base em meras considerações
técnicas, a partir de fins preestabelecidos e de os critérios reguladores de valor poderem e deverem
ser postos em discussão, pois o problema faz oarte de questões gerais de cultura” (p. 112, grifos
meus). Isto quer dizer, basicamente, que toda análise político-social não pode fugir de sua
arbitrariedade, de seu posicionamento sobre a realidade; entretanto, este pode ser reduzido, de
acordo com o objeto pesquisado: “quanto mais 'universal' for o problema em questão, isto é, quanto
mais amplo for o seu significado cultural, quanto menos for possível dar uma resposta extraída do
material do conhecimento empírico, tanto maior será o papel dos axiomas últimos e pessoais da fé e
das ideias éticas” (ibidem). Mesmo em um nível de pesquisa mais rigorosa, com a definição de um
princípio básico, demonstrado como cientificamente válido, para conduzir as pesquisas, num
método dedutivo, esta noção seria ingênua: o que Weber parece propor, aqui, é que as pesquisas
devem se delimitar e se propôr a pesquisar fenômenos culturais específicos delimitados, de tal
forma a se evitar esta contaminação dos valores pessoais e a simples reprodução das opiniões
privadas na matéria de pesquisa11.

10 Note-se, aqui, uma certa proximidade com a própria teoria durkheimiana: o sociólogo francês pretendia realizar algo
parecido, ao determinar cientificamente o funcionamento da moral e utilizar este acúmulo praticamente na
reformulação do sistema escolar francês. A diferença aqui, entretanto, talvez se dê mais no escopo deste
empreendimento: numa palavra, a concepção weberiana se encontra mais fechada na própria noção de “cultura”, nos
estudos específicos sobre uma sociedade e cultura nacional, enquanto o modelo durkheimiano pretende expandir a
sua teoria em níveis muito maiores, tratando-se sobre a forma geral da moral e do desenvolvimento da solidariedade
social. Para compreender melhor como o paradigma weberiano lida com esta transição, cf.
11 Novamente, não há como não se lembrar de Durkheim: na verdade, se não se soubesse que os dois autores jamais
leram a obra um do outro, muito se poderia afirmar ser uma crítica direta. Na verdade, ao que tudo indica, esta
colocação deve ter sido dirigida aos mestres de Durkheim – em especial Comte – e ao materialismo histórico, uma
vez que há, aqui, uma oposição a toda e qualquer forma de pesquisa dedutiva, e, em especial, de qualquer proposta
generalista e determinista da ciência. Entretanto, deve-se notar, ainda, que a própria pesquisa de Durkheim lidava
com estes problemas colocados por Weber: a diferença é que a solução, para o sociólogo francês, estava na mudança
do método, aumentando-se o seu rigor (por isso que ele escreve “As regras do método sociológico”) – ou seja, para
ele, o que importava, principalmente, era a mudança da forma científica, mas não necessariamente seu conteúdo
(positivista); enquanto isso, o sociólogo de Heidelberg se afasta da noção positivista funcionalista, inflingindo sobre
si mesmo um rigor não apenas na condução da pesquisa, mas também na própria escolha do objeto pesquisado e nas
suas ambições (em uma palavra, o que ele faz é reconhecer, quase que num retorno kantiano misturado ao ceticismo
nietzschiano, a incapacidade da pesquisa sócio-política em determinar o processo histórico e o destino dos homens),
o que significa que, para ele, a pesquisa sociológica se marca pela própria cisão com as pesquisas físico-biológicas
(e, aqui, estão cisão não é apenas entre campo e objeto, como propõe Durkheim, mas também de método e
epistemologia).
Sendo assim, o método da produção sociológica deve buscar superar as especificidades de cada
domínio cultural, de tal forma a se garantir um entendimento completo mesmo para aqueles que não
partilham desta cultura: a apresentação, organização e utilização dos conceitos e bases empíricas
deve ser feito de tal modo que se garanta a compreensão desta produção sociológica até mesmo por
outro grupo. Ou seja, a questão da objetividade não se dá simplesmente na garantia, simplesmente,
do fim da subjetividade do pesquisador, mas sim em sua contenção, em seu controle programado,
de tal forma a se explicitar ao leitor o método, a teoria e o caminho seguido em que se levou ao
resultado publicado. Por isso, o cientista social não possui, nesta concepção, a obrigação de conter a
sua subjetividade, mas simplesmente de demonstrar ao seu público onde esta está presente e no que
ela influenciou em seu trabalho.
Na interpretação weberiana, a análise socio-econômica não se dá por meio de “bases objetivas”
puras, mas sim a partir de uma percepção social amparada na cultura daqueles que realizam esta
pesquisa; o que marca a ciência social, então, neste campo, é a relação do nível de alcance dos
efeitos “objetivos” e/ou materiais na vida social com os elementos culturais. Um dos principais
pontos dessa concepção é que, mesmo na necessidade mais material e elementar satisfeita pelo
homem através da economia, estes elementos se correlacionam profundamente, uma vez que
existem fatos “economicamente condicionados” (economia → cultura) e “economicamente
relevantes” (cultura → economia). Isto é, tanto a economia influencia na própria vida cultural,
como a vida cultural resvala na economia; não à toa, o entendimento da revista em questão é que “o
campo característico da nossa revista é da pesquisa científica do significado cultural geral da
estrutura sócio-econômica da vida social humana, e das suas formas históricas de organização” (p.
120)12. Neste sentido, este posicionamento se dá entre o economicismo marxista alemão da época e
o idealismo cultural romântico presente na mesma nação, no mesmo período histórico.
“Não existe nenhuma análise científica totalmente 'objetivada' da vida cultural, ou (…) dos
fenômenos sociais, que seja independente de determinadas perspectivas especiais e parciais, graças
as quais estas manifestações possam ser, explícita ou implicitamente, consciente ou
inconscientemente, selecionadas, analisadas e organizadas na exposição, enquanto objetos de
pesquisa” (p. 124) Esta interpretação, por si só, afasta este grupo da proposta de que as ciências
sociais deveriam buscar estabelecer regras sociológico-cultural-econômicas no mesmo nível que as
ciências físico-naturais: a infinitude dos acontecimentos sociais, associados às limitações do
intelecto humano, levam-nos a querer associar elementos semelhantes às mesmas relações causais,
o que, na verdade, não procede; as semelhanças não determinam o seguimento do mesmo caminho,
assim como a própria atividade humana possui uma característica muito mais arbitrária e
imprevisívivel (livre de determinismos) do que as pesquisas físico-naturais 13, uma vez que
“enquanto que, no campo da Astronomia, os aspectos celestes apenas despertam o nosso interesse
pelas suas relações quantitativas, suscetíveis de medições exatas, no setor das ciências sociais, pelo
contrário, o que nos interessa é o aspecto qualitativo dos fatos. Devemos, ainda, acrescentar que,
nas ciências sociais, se trata da intervenção de fenômenos espirituais, cuja 'compreensão' por
'revivência' constitui uma tarefa especificamente diferente da que poderiam, ou quereriam resolver
as fórmulas do conhecimento exato da natureza”.
Entretanto, isso não significa que as leis sociais organizadas pelos sociólogos sejam, em si mesmas
desnecessárias: elas podem servir, ao final, para guiar a pesquisa do investigador, mas jamais como
determinação prévia do fato. Quer dizer, não se deve pressupor, pela pesquisa desenvolvida de um
tema particular, que sua forma se repita em outros. Sendo assim, três outras operações seriam
necessárias, de acordo com esta proposta: a) análise do objeto 14 individual pesquisado e de sua

12 Em uma palavra, é uma interpretação econômica que se baseia não nos métodos tradicionais da economia, como a
estatística, economia descritiva, etc., mas sim numa perspectiva cultural, na qual se busca entender como, por meio
da organização da cultura e da economia, estas duas dimensões se intercalaram e constituíram a base da forma social
contemporânea de um país.
13 Provavelmente já falei isso em uma outra nota de rodapé, mas este conceito sobre as próprias ciências da natureza
também tem mudado paulatinamente.
14 Nota: estou utilizando a palavra “objeto” numa adaptação; no texto original, utiliza-se o termo “agrupamento”, com
o qual ele se refere à conjunção de “fatores” (hipóteticos) utilizados pelo pesquisador. Preferi utilizar o termo
relação com outros fatos, focando-se em “tornar intelingível a causa e a natureza deste significado”;
b) estudo histórico das características individuais deste objeto, correlacionando-o com suas formas
anteriores; e, por fim, c) na avaliação das formas possíveis no futuro.
Pode-se afirmar, assim, que, para a sociologia weberiana, o estabelecimento de “Leis Gerais”
sociológicas não é um objetivo, sendo elas entendidas, pelo contrário, meramente como guias de
condução do pesquisador em sua tentativa de compreensão teórica do objeto estudado – por isso,
não faz sentido considerá-los, de fato, “leis”, mas, antes, “tipos ideais”, que não devem ser
transplantados magicamente na realidade, mas analisados criticamente diante desta. Esta diferença,
por outro lado, também se marca pela compreensão de que o estudo da cultura precisa tomar
cuidados metodológicos ainda mais claros: “O conceito de cultura é um conceito de valor. A
realidade empírica é 'cultura' para nós porque e na medida em que a relacionamos com ideias de
valor. Ela abrange aqueles e somente aqueles componentes da realidade que através desta relação
tornam-se significativos para nós” (p. 127). Ou seja, a interpretação do fato social passa
necessariamente pelo entendimento do valor dado aos fatos pelo sujeito; a significação não parte de
um fato objetivo e isento ao pesquisador, mas sim de seus próprios valores sociais, e, num estudo
cultural, os valores não podem ser pesquisados por sua correlação com o maior número de
elementos sociais ou por sua importância na ordem social presente, uma vez que a infinitude da
realidade e perspectiva interessada do pesquisador muito provavelmente levarão à falha desta
determinação objetiva e neutra tão defendida. Por isso, a pesquisa cultural não deve ter as leis da
causalidade como fim, mas como meio para compreender os signficados dos fenômenos
pesquisados15.

O ABSTRATO E O CONCRETO NOS CLÁSSICOS DA SOCIOLOGIA

Claramente, a posição de Weber em torno desta questão é a mais cuidadosa dentre os


clássicos da sociologia. A diferença talvez mais interessante talvez seja entre Marx e Weber, porque,
embora Durkheim conceba e proponha um novo método, sua proposta de pesquisa se marca pela
construção de um novo campo científico, no qual as pesquisas ainda não foram suficientemente
desenvolvidas e, assim, precisar-se-ia focar-se numa nova construção teórica e metodológica, um
novo campo, que forneceria a grande base das leis sociológicas. Ou seja, aqui, o problema não está
exatamente dentro do método, na sua fugacidade ao explicar a realidade, mas fora dele, ou melhor,
na sua ausência nas produções sociológicas anteriores.
Esta perspectiva de Durkheim parte, claramente, de sua recusa do pensamento filosófico
anterior ao positivismo, em especial ao hegelianismo e qualquer filosofia da história que
pressupusesse os fatos sociais antes de analisá-los. Por isso, em oposição ao pressuposto da filosofia
histórica hegeliana, o que Durkheim propõe é a inversão deste método: por exemplo, ao invés de se
correlacionar os fatos históricos do passado ao estatuto do presente, como se se pudesse, de fato, ver
nos países “primitivos” uma versão infantil dos europeus, deve-se analisar as formas religiosas
daqueles povos de tal forma a garantir uma compreensão sobre o desenvolvimento geral das formas
religiosas na contemporaneidade e captar, afinal, a sua essência e característica principal – ou
melhor, a sua funcionalidade dentro da sociedade.

“objeto” para ficar mais ampla a concepção, indo além, simplesmente, da compreensão deste método em
comparação com o de estabelecimento de causalidades por leis determinísticas.
15 Talvez toda esta lenga-lenga se esclareça se analisarmos brevemente a Ética Protestante e a sociologia da religião de
Weber: em sua pesquisa destas e das suas formas de rejeição do mundo, o autor não pretende determinar as
causalidades das religiões, mas sim detalhá-las da forma mais complexa possível de tal forma a se compreender uma
“lei causal” – que, na verdade, nada mais é do que um fato histórico – da expansão do capitalismo na Europa.
Assim, na comparação entre as diferentes religiões, compreende-se como o protestantismo era a religião que mais
pendia a estimular a forma capitalista de atuar no mundo, o que contribuiu para o surgimento deste capitalismo
racional. Mesmo com essa correlação, entretanto, evita-se utilizar a ideia de determinação, mas sim de “afinidade
eletiva”, ou seja, de probabilidade de uma correlação entre estes dois fenômenos sociais (protestantismo e
capitalismo), a qual pode não ser vista em outro caso individual pesquisado, o que constituiria, portanto, um
problema que demandaria justamente um esforço sociológico de compreensão – um exemplo do tipo: como
compreender, então, a forma do capitalismo escravista nos EUA?.
Mesmo que ambos possuam, ao fim, a mesma perspectiva sobre o futuro da sociedade
burguesa (que esta conseguiria, com seu desenvolvimento, aplainar os conflitos sociais), eles
diferem completamente no método e caminho para chegar a esta conclusão: enquanto Hegel parte
da dedução, isto é, do geral para o particular, Durkheim ali chega pela indução, do particular para o
geral. Esta perspectiva, entretanto, torna-se simples se compararmos a relação de Marx e Weber
com o sistema hegeliano: ambos, em certa medida, reivindicam-no, mas reividicam partes opostas
para si (enquanto Marx reivindica a perspectiva da determinação histórica e da totalidade, Weber
reivindica seu idealismo, em especial a sua noção de espírito).
Comecemos por Weber: não obstante boa parte de sua obra seja ancorada numa rejeição da
dialética hegeliana, uma vez que sua posição se marca pela negação da possibilidade se depreender
um curso para a história da humanidade – como se a verdade pudesse ser compreendida pelo
pensamento –, ele herda (não exatamente de Hegel, mas mais do idealismo alemão) a noção de
“espírito” – mais especificamente, a noção de que cada povo possui suas características e formas
materializadas nas suas ideias, ou seja, que suas visões de mundo surgem diretamente da cultura, e
não das relações materiais diretamente, em oposição aos conceitos empiristas – e o enfoque cultural
e histórico destas pesquisas; enquanto isso, Marx herda de Hegel a noção da determinação histórica,
mais especificamente a ideia de que apenas se pode conhecer o que se conhece por conta do
desenvolvimento histórico da humanidade – que, em Hegel, se substancializa no Espírito, mas, em
Marx, pelo contrário, está nas forças produtivas, numa “revirada de Hegel de ponta-cabeça”.
Ou seja, para o pensamento marxista, Weber recoloca a cabeça no lugar dos pés, mas, de
fato, o que ele faz é buscar compreender, em especial por sua influência kantiana, elelementos mais
específicos e factíveis da realidade, uma vez que os tipos ideais não representam fatos, mas
hipóteses – as quais só devem ser desenvolvidas depois de anos e anos de pesquisa. Entretanto,
talvez o mais interessante ponto de comparação entre estes métodos esteja, justamente, na relação
entre o particular e o geral, entre o abstrato e o concreto. Se, para o Marx, o abstrato só pode ser
entendido com relação ao concreto (a mercadoria não ser entendida apenas como si mesma, mas
sim como uma parte específica do modo de produção capitalista, em relação com outras de suas
partes e com a sua generalidade), para Weber, pelo contrário, o concreto só pode ser entendido (ou
melhor, reformulado) pelo abstrato (a tendência de racionalização da sociedade moderna não
explica o protestantismo, mas, ao contrário, este a explica).
Tais posições, contudo, não podem ser entendidas simplesmente como “inversões” uma da
outras, mas sim como pensamentos e teorias complexas que se consubstanciam pelas questões que
eles desejam responder. Para Marx, ainda que exista, claramente, a busca de “leis gerais” da
produção capitalista, fica claro que sua construção teórica não se dá representando imediatamente a
realidade, mas sim a sua essência, sua forma mais pura. O que Marx pretende demonstrar n'O
Capital é, justamente, dois pontos: primeiro, como a teoria liberal de que a livre atuação do mercado
levaria apenas ao enriquecimento da sociedade e ao fim de todos os conflitos sociais é falsa, uma
vez que o capitalismo tende a se encontrar numa encruzilhada entre a acumulação sem fim e a crise
econômica; e, segundo, como a base da produção capitalista não está no aumento da eficiência, mas
sim na exploração do trabalho assalariado.
É a partir destes pontos que o autor desenvolve sua teoria, mais especificamente a noção da
forma geral da acumulação capitalista, mas esta não deriva diretamente de suas ideias sozinhas,
isoladas, mas sim da análise de cada componente do modo de produção capitalista e sua relação
com os outros (por exemplo, a relação entre mercadoria e trabalho, acumulação e valor, etc., são
colocadas a todo momento): ou seja, o que interessa, nesta produção teórica, não é deduzir o caráter
geral do modo de produção capitalista, mas entrar numa constante indução e dedução, tentando-se
compreender a dialética entre as diferentes partes do modo de produção capitalista, tanto em suas
formas simples e imediatas (como a mercadoria que é trocada por mercadoria) quanto nas mais
complexas (pense-se, por exemplo, no dinheiro como mercadoria, no crédtio, etc., e, em especial, na
relação destes com o capital e trabalho).
Por isso, para o autor, o que importa, de fato, não é compreender a “tendência histórica” da
humanidade ou quais elementos dela são “anômalos”, mas sim a forma de funcionamento do
capitalismo, mais especificamente suas estratégias, obstáculos, táticas e meios de garantir a
acumulação. Aqui, o modo de produção capitalista não é algo que se apresenta de imediato na
realidade, mas algo próximo ao tipo ideal weberiano, um conceito geral que serve de condução às
pesquisas na realidade dada. Assim sendo, ele deve servir de base para a pesquisa, buscando-se
ampliá-lo e refutá-lo de acordo com as condições estudadas – um exemplo disto é a obra de Rosa
Luxemburgo (“A acumulação de capital”), que insere no esquema teórico a relação entre as
sociedades capitalistas e não-capitalistas como um ponto importante da acumulação capitalista.
Enquanto isso, em Weber, a especificidade de seus estudos não implica, pelo contrário, na
sua irreprodutibilidade em outras realidades: o que lhe interessa não é a determinação dos fatos
sociais como dados, mas sim como fruto de construção culturais e de valores dos indivíduos que ali
estão inseridos. Nada impede, por exemplo, que valores próximos aos protestantes estejam em outra
realidade e se possa utilizar estas ideias como base de análise, mas não se deve taxá-las
imediatamente como o “mesmo tipo”: os tipos ideais se marcam pela facilitação da pesquisa, não
pela categorização dos objetos pesquisados – o que, para Weber, é algo desnecessário, uma vez que
o que importante não é esta taxação, mas, antes, a compreensão das ações sociais e de seus sentidos
ORTIZ, Renato. Durkheim: arquiteto e herói fundador

“George Weiz (1983) sugestivamente descreve o período da Terceira República como da


emergência da moderna universidade francesa. De fato, o sistema universitário republicano
inaugura uma ruptura com o passado. São várias as transformações realizadas: implantação de uma
rede de ensino nacional, descentralizando o monopólio que Paris exercia em relação à província (o
monopólio passa a ser hegemonia); expansão do número de postos de professores; construção de
uma infra-estrutura material (edifícios, laboratórios, bibliotecas); criação de uma carreira
universitária (chargé de cours - mestre de conferências - professor adjunto - professor titular);
incentivo à pesquisa; introdução de um sistema de bolsas de estudo para os estudantes. Essas
mudanças, que expandem quantitativamente o ensino superior e o consolidam qualitativamente,
reforçam o processo de especialização das disciplinas (…) Quando Durkheim afirma que a
Sociologia vive uma "era da especialidade", no fundo ele está refletindo um movimento mais amplo
que se realiza nos diferentes campos intelectuais” Idem, p. 3 → Durkheim somente pôde avançar
sua perspectiva científica a partir dessas mudanças nas estruturas científicas da sociedade francesa;
enquanto isso, Marx não dispunha destas condições e, também por conta de seu ativismo político,
afastou-se da perspectiva especificista e especialista do estudo de uma única ciência isolada, com
um método fechado e determinado. Weber está em outra situação porque, embora se encontre em
um período no qual as ideologias científicas racionalistas já estão mais avançadas, as condições
específicas da Alemanha colocam-no numa situação peculiar: tanto pela própria estrutura
universitária alemã – na qual se herda cátedras de certas matérias 16 –, pelas influências e condições
político-sociais da Alemanha – na qual não se possuía, como na França, uma democracia burguesa
autêntica, mas uma mistura entre esta e a forma tradicional alemã, com a manutenção de Bsimarck
no poder – e pela própria epistemologia predominante neste país – a filosofia alemã, herdando
frutos das perspectivas hegelianas e kantianas (esta mais próxima a Weber), tendia a perceber a
historicidade e especificidade dos fatos sociais, isto é, não os percebia como elementos necessários
da própria ordem social, mas fruto de desenvolvimentos históricos de cada país e formação social
(aqui, talvez, seja um ponto em que Marx e Weber convergem consideravelmente, apesar de
diferenças considerávais nas nuanças de interpretação deste fato, o que será desenvolvido mais à
frente) –, ter-se-á uma forma diferenciada de se realizar a pesquisa científica, graças a estas
condições de construção do campo já explicitadas.

“Mas não se pode perder de vista que o movimento de especialização significa também, para
alguma disciplinas, e este é o caso da Sociologia, a conquista de uma autonomia epistemológica.
Ocorre no campo das ciências sociais o que havia se passado com a literatura em meados do século.
Ao recusar o determinante ideológico, o universo literário passa a ser concebido segundo regras
estéticas estritas. Como analisa Sartre (1973, p. 99), a partir de um determinado momento (ele
considera Flaubert como um marco) "o artista somente aceita ser lido por outros artistas". Dito de
outra forma, o princípio de legitimidade do campo literário deve ser definido pelos pares. A
profissionalização das ciências humanas implica também públicos específicos, isto é, um padrão de
legitimidade interno à ordem de cada disciplina” (p. 3)

Definição do objeto: social como algo separado do natural, mas ainda assim regido por regras e leis
próprias (investigação sociológica deve “destrinchá-las”): “O social é, portanto, passível de uma
leitura que possa dele retirar determinadas regularidades (leis) a serem estudadas por uma ciência
particular” (p. 4)

Fase ideológica da sociolgia: reconstrução de sua história e embate com outras disciplinas de
discussão sobre o social (em especial a filosofia e a psicologia): “Impõe-se um rompimento com as
"antigas" formas de conhecimento, o que significa um distanciamento da filosofia, que até então
detinha um certo monopólio da reflexão sobre a sociedade (…) Ao propor que os fatos sociais se

16 Checar essa informação no “A ciência como vocação”


apresentam como "coisas" para a observação, ele inverte a perspectiva anterior que tomava como
premissa o que eles "deveriam ser". Fundar uma ciência "positiva" implicava partir da realidade,
"afastar as prenoções", o que impunha uma abordagem indutiva que a diferenciava do discurso
filosófico” (p. 5).

Tal rompimento com a filosofia leva Durkheim, inclusive, a assumir uma perspectiva de oposição à
noção do indivíduo como portador da razão e capaz de compreender e definir seu futuro a partir da
racionalidade e interpretação de sua realidade – algo presente fortemente em Marx, por exemplo, e,
em certa medida, em Weber também, mas com outro significado 17: “o indivíduo não mais seria
considerado como a "raiz do homem", princípio que orientou a interpretação enciclopedista,
hegeliana e marxista da história. A insistência de Durkheim em valorizar a coesão e a solidariedade
afasta-o de uma herança intelectual que tomava o indivíduo como fundamento de sua própria
compreensão filosófica do mundo” (p. 5) → crítica ao individualismo e liberalismo dos economistas
clássicos.

“Da mesma forma que na vida individual existem imperfeições, na vida social ocorreriam desvios,
como as leis injustas (é claro, entendidas segundo o padrão de justiça relativo ao nível a que se
referem) ou as instituições defeituosas. Evidentemente esses fatos podem ser compreendidos, mas
eles são determinados por causas fortuitas, acidentais, que Durkheim irá associar à idéia de doença,
de anormalidade. Como a ciência se funda sobre a regra, o estado doentio é vasto como exceção.
Este artifício lhe permite superar a contradição que havia levantado e afirmar que, para
"Montesquieu, em todos os lugares onde as coisas são normais, elas se fazem segundo leis
necessárias, e esta necessidade se interrompe somente quando elas se afastam do estado normal. Por
isso esta contingência não destrói a ciência social, mas limita seu alcance. Pois ela somente possui
como objeto as formas normais da vida em sociedade, enquanto que as doenças, segundo a opinião
de nosso autor, estão quase fora da ciência" (idem, p. 91) . Ora, Durkheim afirma nas Regras
(1973a, p. 74) que, para a sociologia transformar-se "verdadeiramente em uma ciência das coisas, é
preciso que a generalidade dos fenômenos seja tomada como critério de sua normalidade" (17). Por
isso o capítulo que diferencia o normal do patológico adquire um papel de divisor de águas. Na
medida em que a anormalidade é vista como acidental, ela participa, com o indivíduo, do nível da
contingência e se encontra fora do campo recoberto pela sociologia” (p. 6, grifos meus) → aqui
está um dos pontos mais controversos e interessantes da sociologia durkheimiana: a questão da
anomalia. Como explica Ortiz, esta se baseia no princípio de que o indivíduo não equivale à
sociedade, quer dizer, que, entre um e outro, existem contingências das quais não se pode escapar.
Tais irregularidades (“anomalia”) não seriam objetos da sociologia, mas sim de outras disciplinas
(psicologia, por exemplo), uma vez que a sociologia não se debruça sobre o indivíduo, mas sobre o
fato social, sobre as ações gerais da sociedade como um todo – pense-se, aqui, também, sobre o seu
estudo do suicídio: não importa saber o que o indivíduo justifica como seu motivo de suicídio, é
preciso analisar os dados disponíveis sobre a sociedade como um todo para explicar porquê o
suicídio ocorre (ou seja, este, pela ótica social e não individual, não pode ser explicado pela
argumentação dos suicidas, mas por fatos externos a eles, como religião, classe, nacionalidade,
etc.).

17 Weber concebe tal questão, de fato, mas coloca a homem não como um agente que compreende o mundo como um
todo, mas, ao contrário, que compreende a realidade a partir de sua ótica, de sua cultura, e, assim, delimita-se sua
possibilidade de atuação no mundo. Esta noção não se separa profundamente da de Marx, uma vez que ambas
possuem uma perspectiva histórica e focada na compreensão dialética da relação entre indivíduo e realidade social,
mas tem uma diferença profunda com relação a ela: sua crença na impossibilidade de se compreender “o todo” da
realidade leva a uma mudança epistemológica profunda que acaba transformando o indivíduo não no “receptor” do
espírito, como propõem Hegel e, em certa medida, Marx, mas num sujeito historicamente determinado que age de
acordo com as suas condições de pensamento e atuação que, ainda assim, possui uma considerável arbitrariedade
nas suas ações, uma vez que age não a partir de um sentido histórico, mas interno e social que, em última
perspectiva, se resume a uma mera interpretação arbitrária do real (é aqui que a influência de Nietzsche aparece
claramente na perspectiva weberiana) → dar uma olhadas nas obras de Weber para explicar melhor esta questão
Regras da filosofia da moral concebidas pelo jovem Durkheim: “Em primeiro lugar, ela não deve
ser "deduzida" de um a priori, como normalmente fazia o pensamento filosófico, mas "induzida" de
um estudo concreto das regras de conduta. Com este artifício, que é semelhante ao que se aplica ao
discurso sociológico, quando se critica as idéias preconcebidas, Durkheim acredita estar
fundamentando seu projeto dentro dos parâmetros de uma verdadeira filosofia "positiva" (…) ele
pensa ser possível construir uma "moral teórica" a partir do conhecimento das sociedades e do
comportamento dos homens (…) Ciência e progresso não são necessariamente pensados como
elementos de libertação da humanidade. Durkheim duvida da existência de um progresso moral das
sociedades; a rigor, a evolução dos valores é algo sem sentido; cada sociedade possuiria seu código
social, o que tornaria irrelevante a comparação entre povos primitivos e povos civilizados (…) Pelo
contrário, o mundo da religião lhe serve como inspiração para dar conta dos problemas das
sociedades complexas. De alguma maneira, As Formas Elementares da Vida Religiosa reflete sua
insistência em trabalhar o tema da solidariedade; Durkheim interessa-se pelas sociedades primitivas
na medida em que elas podem lhe esclarecer melhor a crise moral por que passam as sociedades
modernas. Neste sentido, a religião é vista como elemento de coesão social, não como alienação ou
falsa consciência”

Separação entre sociologia (ciência) e ideologia (arte): aquela apenas busca compreender a
realidade, sem objetivos práticos, e esta busca orientar a ação. “Se o papel do sociólogo é o de
compreender a realidade, o do moralista (hoje diríamos, ideólogo) é de atuar sobre ela. Amparado
por um sistema teórico, ele é um homem de ação, capaz de olhar para o futuro e orientar as decisões
e os comportamentos. A concepção durkheimiana da práxis aproxima-se do conceito de
organicidade de Gramsci. Os intelectuais são aqueles que se ocupam dos universos teóricos
"intermediários", de concepções de mundo que lhes permitem concretizar uma determinada prática
política. Neste sentido, Durkheim pode ser caracterizado como um "intelectual orgânico" da
Terceira República. Seus cursos e sua produção na área da Pedagogia têm como meta inculcar uma
"filosofia" junto àqueles que serão os agentes sociais (professores das escolas primárias e
secundárias) da nova ordem. É dentro desta perspectiva que se justifica o ensino da História e da
Filosofia na rede de ensino secundário e universitário. São disciplinas que devem ser ministradas
com a finalidade de formar uma ideologia consensual em relação aos grandes temas da sociedades
(…) Em Durkheim vamos encontrar uma dupla estratégia: enquanto cientista ele se volta para a
construção de um conhecimento específico, mas como sociólogo-pedagogo seus interesses possuem
um cunho nitidamente ideológico” (p. 12) → percepção coerente com a ideia de Florestan, de que
“os sociólogos nascem como intelectuais orgânicos da ordem”; esta noção demonstra como, para
Durkheim, seria possível separar o pesquisador de seu objeto e “desvendar” a verdade, numa
posição oposta à de Marx e Weber: para ambos, não há como separar a visão do pesquisador sobre o
objeto. Para Weber, por mais que se defina com clareza e rigorosidade uma disciplina, a própria
subjetividade do pesquisador sempre estará pelo menos implícita na pesquisa – daí que Weber
realiza sua proposição da “neutralidade axiológica” nas ciências sociais: o que importa não é ser
“completamente neutro”, mas o mais neutro possível. Marx, por outro lado, proporia que a
perspectiva de classe das ciências sociais exige que o pesquisador se associe àquelas classes com
melhores condições de desvendar e compreender a realidade, sendo, portanto, a questão da
neutralidade uma falsa questão, porque a descoberta da realidade não se dá numa relação direta
entre indivíduo e objeto, e, sim, dentro de um momento histórico-social de pesquisa no qual
interesses e forças sociais puxam o pesquisador de um lado para o outro – e, neste contexto, assumir
a posição de “neutralidade” não equivale a buscar os fatos reais, mas simplesmente em aceitar as
limitações da própria pesquisa às coerções e produção ideológicas da classe dominante.

“Enquanto conhecimento autônomo, a sociologia deve voltar-se para um público restrito. L'Année
Sociologique é o exemplo típico desta démarche. Afastando-se das demandas da sociedade, ela se
implanta como uma empresa acadêmica” (p. 12) → separação da sociologia e da sociedade (segue a
noção de Boaventura, de que a ciência moderna se baseia na separação entre conhecimento
científico e senso comum, entre o público universitário e o “não-letrado”).
METODOLOGIA E NOVAS EPISTEMOLOGIAS

BECKER, Howard S. Métodos de pesquisa em Sociologia.

SOBRE METODOLOGIA

Becker pretende nesta obra se enveredar no estudo da produção metodológica da social, a


qual se concentre em desbobrir o que pode ser descoberto e o grau de confiabilidade deste
conhecimento. Um dos primeiros levantados por ele é a existência de uma metodologia de
“especialidade proselitizante”, a qual se concentra apenas reduzir os erros das pesquisas
sociológicas e converter os outros estilos de trabalo àquele que ela julga ser mais adequado. Em
contraposição a essa noção, que defende uma rigidez metodológica, Becker defende a definição de
uma “clareza metodológica”, isto é, a apresentação constante do pesquisador sobre como ele
procedeu e porque o fez, o que deveria ser suficiente para evitar a delimitação de pesquisa feita
pelos defensores da rigidez. Um caso claro desta rigidez, por exemplo, é o fato de que os
metodológos raramente escrevem sobre a observação participante, análise histórica, etc., ou seja,
eles não falam de métodos que não sejam quantitativos. Contudo, não são apenas estes autores que
desenvolvem um discurso metodológico.
Um dos primeiros e mais comuns discursos é a “pura descrição técnica” dos manuais de
como fazer pesquisa, focando em processos gerais desta (trabalho de campo, escrita, delimitação do
problema, etc.).Seguindo caminho parecido, tem-se a metodologia “analítica”, a qual procura
investigar como um autor realizou sua pesquisa, para “descobrir a lógica inerente à prática
convencional” (p. 24). Ou seja, o pesquisador, aqui, busca encontrar a lógica por trás do que era,
antes de sua análise, apenas um costume ou prática naturalizada pelos sociólogos. Sendo assim, a
pesquisa analítica se propõe a focar na questão central e prática do método, indo além da simples
“correção” de problemas para o questionamento direto sobre a prática sociológica (para que fazer
assim? O que se quer com isso?), sobre o porquê e como se realizam as pesquisas.
Outro estudo metodológico mais “concreto” – se assim podemos o chamar – é o sociológico,
o qual realiza a análise do processo de interação entre sociólogo, pesquisado e seus instrumentos de
trabalho. Aqui, a tentativa não é simplesmente explicativa, mas principalmente compreensiva:
pretende-se entender o problema metodológico a partir de suas condições de produção e da relação
estabelecida entre o pesquisador e os outros elementos de sua pesquisa. Ou seja, aqui, o pesquisador
não é uma figura isolada, que segue seu próprio método, muito pelo contrário: ele é um ator que
precisa convencer aqueles que lhe interessa para que possa desenvolver o máximo possível para a
sua pesquisa.
Nesta perspectiva, então, a solução do problema do bias do pesquisador não está na
expansão do rigor metodológico, mas sim na ampliação de perspectivas e de métodos de pesquisa; a
solução não está no enfoque da disciplina metodológica, mas sim na sua abertura e criatividade, no
constante fazer e refazer sociológico. Por isso, o que se precisa desenvolver é uma pesquisa mais
ampla sobre a metodologia, abrangendo-se outros tópicos, como: a) inserção (como o sociólogo
consegue permissão para estudar o que quer estudar? Como ele consegue a confiança de seus
“objetos”? Como fazer para estudar um grupo que não garante acesso ao pesquisador – e quais são
os efeitos disto na pesquisa sociológica em geral?); b) prevenção de erros (como evitar as esquivas
dos pesquisados, suas mentiras, etc.? Como podemos, de fato, garantir que o sociólogo vai
conseguir evitar esses erros? Como sair de um paradigma e desenvolver um método mais
adequado?); c) escolha de estruturações (em que medida escolhemos teorias e pressupostos teóricos
que realmente nos ajudam na pesquisa? Em que medida estes pressupostos mais atrapalham do que
ajudam na pesquisa?); d) pressupostos ocultos (a exigência de uma certa forma ou resultado de
pesquisa – como a confirmação da hipótese – não é, em si mesma, uma limitação da pesquisa?
Pressupostos teóricos incorporados na própria lógica científica não podem atrapalhar a pesquisa?); e
e) desenvolvimento de hipóteses (não se deve compartilhar como se construiu a hipótese e
desenvolver com toda a comunidade científica esse processo, auscutando-lhe e disciplinando este
processo para além da sala de aula?).

PROBLEMAS DE INFERÊNCIA E PROVA NA OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE

A observação participante é, em geral, utilizada quando os sociólogos pretendem


compreender o seu objeto de estudo – seja ele uma organização, problema, etc. –, dissociando-se da
metodologia quantitativa, a qual busca associar variáveis. Aqui, pelo contrário, o que interessa é
algo mais complexo. Neste sentido, a metodologia também causa alguns problemas diferentes do
método quantitativo: ao se ter a análise realizada de forma sequencial (isto é, enquanto o
pesquisador delimita o problema, hipóteses, etc., enfim, desenvolve sua pesquisa), ele só pode
realizar sua coleta de dados a partir de “análises condicionais” – as quais, ao mesmo tempo em que
lhe dão pistas para solucionar seus problemas, só são desenvolvidas durante o processo de pesquisa
e que podem ser revertidas rapidamente diante da mudança da forma em que ele realiza seu campo
(se se aproxima mais de um informante, tem um novo tema que o coloca novas questões, etc.).
Sendo assim, Becker propõe a divisão da observação participante nos seguintes estágios:
SELEÇÃO E DEFINIÇÃO DE PROBLEMAS, CONCEITOS E ÍNDICES: É o início da
investigação, quando o pesquisador busca conceitos que lhe ajudem na pesquisa e problemas
interessantes para desenvolver no campo – os quais o faz por meio de índices e informações prévias
disponíveis. Nesta etapa, ele apenas especula sobre possibilidades, sem definir, de fato, qualquer
tipo de conhecimento em torno de seu objeto. Neste caminho, o pesquisador precisa lidar com
questões como quem são seus informantes (e, diante de sua posição na organização ou de seu
problema pesquisado, como eles tendem a ver a situação, qual é sua perspectiva), e, ao desenvolver
sua pesquisa, deverá notar como os informantes se relacionam e como se dirigem ao pesquisador: o
que eles falam direta e abertamente, o que eles defendem subrepticiamente, escondem de seus
pares, etc. Por exemplo, o pesquisador deverá levar em consideração se a informação foi obtida por
ele de forma espontânea pelo informante ou se ela derivou de uma pergunta direta do pesquisador, o
qual o forçou a expressar uma opinião sobre o tema em questão. No mesmo caminho, o pesquisador
precisa aprender a se inserir no grupo, a perceber como estes atores agem neste contexto, mas
também deve ficar atento a perceber como os atores se diferenciam com e sem o grupo – por isso, o
pesquisador deve buscar produzir o maior número possível de dados, com a maior variação
possível, de tal forma que se possa entender melhor como se dá essa relação entre os diferentes
agentes pesquisados. No mesmo caminho, sua informação tem maior valor não apenas quando
possui muitas evidências sobre ela, mas também diferentes tipos de evidência – sejam elas falas dos
informantes, estatutos da organização, descrições de práticas, etc.
CONSTRUÇÃO DE MODELOS DE SISTEMAS SOCIAIS: Pode-se saber que este período
anterior de pesquisa já está próximo ao fim não apenas pela quantidade de material coletado, mas,
principalmente, das qualidades das afirmações e das variáveis coletadas na pesquisa. Em geral, o
pesquisador deve ter respostas para as condições de funcionamento da organização ou reprodução
do problema; a importância dos fenômenos pesquisados para o grupo; e exemplos teóricos da
sociologia que se aplicam ao objeto estudado. Entretanto, o valor desta pesquisa não está apenas na
confirmação de suas hipóteses, mas, justamente, pelo contrário, quando ela as contradiz: o
pesquisador seguirá desenvolvendo sua pesquisa a partir das pistas e questões que contrariam sua
hipótese inicial.
ANÁLISE FINAL E APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS: A apresentação dos
resultados e a análise final dependem, obviamente, do desenvolvimento da pesquisa, o que significa
que, dependendo da forma de pesquisa, seu resultado será diferente. Por exemplo, ao definir uma
pesquisa sem hipóteses, o pesquisador tende a apresentar um trabalho com menos bias, mas, por
outro lado, ao definir sua hipótese e desenvolvê-la no trabalho de campo e na pesquisa, ele tem
maiores condições de procurar exemplos negativos e polir sua teoria e análise da realidade. Sendo
assim, mais importante do que um simples controle da pesquisa, o investigador deve apresentar as
condições dos dados por ele pesquisados, como eles se apresentaram a ele, e como ele reagiu diante
destes fatos e conduziu a sua pesquisa – aqui, novamente, a questão da clareza metodológica se
sobrepõe à rigidez.

EVIDÊNCIAS DE TRABALHO DE CAMPO

As evidências do trabalho de campo trazem, em geral, problemas particulares aos seus


pesquisadores – por exemplo, a repetição de uma pesquisa num mesmo local já pesquisado
dificilmente traz os mesmos resultados. Alguns motivos são elencados para esta dificuldade de
resultados estruturados e previsíveis na pesquisa: primeiro, as organizações estudadas estão em
constante mutação, uma vez que elas se transformam com o tempo – novos membros entram, novos
problemas surgem, novas ideias são desenvolvidas, etc. Segundo, a pertença à mesma catgoria
social não signfica que duas organizações sejam exatamente idênticas, muito pelo contrário: elas
podem ter claras e expressivas diferenças ao mesmo tempo em que possuem as mesmas
características que lhes garantem esta classificação mútua. Terceiro, às vezes os próprios
pesquisadores pesquisam as mesmas organizações com questões, problemas, conceitos e teorias
diferentes: é claro que, dependendo da perspectiva daquele que investiga, diferentes respostas e
evidências serão encontradas. Quarto, devido ao tamanho da organização, pode ser que os
pesquisadores foquem em diferentes unidades desta pesquisa, influenciando-se, então, de quais
informantes eles se aproximarão e quais informação eles coletarão.
Sendo assim, numa comparação das análises de campo, não se deve esperar uma
identicidade entre elas, mas, antes, uma compatibilidade – quer dizer, suas descrições podem (e
devem) ser diferentes, mas não podem ser contraditórias e completamente diferentes umas das
outras. Apesar deste problema metodológica, a pesquisa de campo possui uma vantagem
considerável: nela é mais difícil para os pesquisados realizarem o controle da informação por eles
cedida e, assim, o biases dos pesquisadores também sofrem um choque. Quer dizer, por conta do
tempo de pesquisa e da constante interação com os atores, estes não podem a todo momento
manterem a sua performance para o pesquisador: em um momento ou outro, terão que assumir sua
forma verdadeira, a qual, apresentando-se ao pesquisador, deve afastá-lo de suas pressuposições e
tendências teóricas de análise – as quais, em certa medida, em comparação com os surveys, estão
impregnadas nesta. Por isso, a profundidade do trabalho de campo (tanto pela qualidade quanto pela
quantidade de seu material coletado) tende a romper com a superficialidade que permite o bias do
pesquisador e o controle da informação do informante.
Mesmo que se possa aceitar o fato de que o pesquisador que realiza a observação
participante se encontre claramente diante de um cenário de muito maior liberdade do que os outros,
ele ainda assim passa por diversas restrições na sua pesquisa que, em certa medida, o impedem de
ser completamente seduzido pelo seu bias pessoal. A própria restrição do pesquisado é um caso
clássico: ele não se curvará completamente ao investigador, assim como não fará de tudo para
desvencilhar sua pesquisa porque, para o informante, “as coisas em que está envolvido no momento
da observação são, via de regra, muito mais importants para ele do que para o observador” (p. 75).
Mas, para isso de fato conseguir, o pesquisador precisa rebaixar o seu valor diante dos informantes:
ele não deve buscar aparecer e modificar as relações entre os indivíduos do grupo. Se ele tiver,
necessariamente, qualquer elemento que isso dificulte, sua pesquisa estará em risco. Aqui portanto,
existe uma diferença considerável com o modelo da pesquisa controlada: “Nesta, quanto mais as
pessoas acreditam que não faz diferença o que o observador os vê fazer ou dizer, mais abertos ficam
a serem influenciados por ele; no trabalho de campo, quanto mais as pessoas acreditam que o
pesquisaor é pouco importante, mais libres se sentem para reagir às outras restrições que o cercam e
o pressionam” (p. 77).
Entretanto, o pesquisador, ainda assim, deve buscar manipular a sua posição diante do
informante: dependendo da situação em que ele se encontra, ele pode ser chamado a adotar uma
postura idealista – na qual eles acreditam totalmente nos valores de seu grupo e fazem juras de
lealdade a seus princípios – ou cínica – na qual, pelo contrário, adotam uma postura pragmática e
cética dos valores perante à realidade. O próprio indivíduo pesquisado, dependendo da situação,
tende a gravitar entre um polo ou outro, uma vez que seus sentimentos sobre o grupo ou
organização da qual fazem parte é, em geral, ambígua e mista entre essas duas dimensões. Na
perspectiva do pesquisador, ele deve ver essas duas dimensões conjuntamente, mas, devido às
próprias tendências da pesquisa, na qual o investigador se isola em conjunto com o informante, ele
deve buscar encontrar a maior quantidade possível de atitudes e informações cínicas, uma vez que o
pesquisado tende a adotar, nestes casos, uma postura exageradamente idealista. Da mesma forma,
ao se encontrar diante do grupo, o pesquisador precisa ficar atento às posições idealistas, uma vez
que estas tendem a ser, ritualmente, mais escassas num contexto de interação coletiva. Em uma
palavra, o pesquisador deve balançar as diferentes dimensões e contextos de evidências conferidas
pelos informantes de tal forma que possa colocar todas as possíveis dimensões na balança de sua
pesquisa.

FALANDO SOBRE A SOCIEDADE

A ciência é apenas um modo de representação da realidade, associado com outros destes –


como a fotografia, filmografia, literatura, etc. –, a qual deve ser compreendida não por suas “regras
e normas” naturais, mas pelo seu contexto organizacional, que dizer, como elas são utilizadas
“como maneiras que as pessoas usam para contar o que pensam que sabem, para outras pessoas
que querem sabê-lo” (p. 137, grifos meus). Neste sentido, os artefatos de leitura da sociedade (como
um artigo, filme, mapa, etc.) são “remanescentes congelados” da ação coletiva, os quais se
ressuscitam sempre que alguém os utiliza – uma vez que seus significados e visões são refeitos e
reconstruídos a partir da interpretação de seu receptor. Em outro olhar, contudo, estas não são
apenas recriações da realidade, representações imediatas desta, mas também representações da
própria organização que as produz: “aquilo que um meio pode fazer é sempre uma função da
maneira como as restrições organizacionais afetam o seu uso” (p. 138), quer dizer que um filme
possui suas restrições de representação da realidade e isto não se dá apenas pelo seu instrumento de
representação, mas também por princípios e noções da própria organização na sua representação do
real – por exemplo, um filme se excusa de explicar diretamente a causa e efeito dos elementos
relatados pela sua produção, mas, por outro, busca reproduzir, por meio da experiência estética, o
sentimento e os sentidos do personagem no filme. Quer dizer, cada uma dessas representações
dependem das suas condições de produção, desde suas estruturas burocráticas, orçamentos,
características de seu público, etc. (quer dizer, depende das condições do campo).
Neste sentido, a própria organização modifica as contades das pessoas em torno da
representação e como elas irão julgá-las, uma vez que se padroniza uma forma de representação da
realidade (um mapa não apenas sofre influência daqueles que querem usá-lo, como também exige
de seus consumidores a adoção de conceitos e noções simbólicas – como o sentido de direção, de
frente e trás, esquerda e direita – que lhes permitirão usá-lo). Disto, deve-se ressaltar que toda
representação é parcial da realidade: elas não podem reproduzir a realidade mesma em seus
instrumentos, por mais talentosos que sejam os seus produtores. Em certa medida, o que marca esta
produção é que ela deve “relatar somente aquilo que é necessário para fazermos o que nos
propusemos a fazer” (p. 140). Sendo assim, toda representação da realidade realiza uma seleção do
que ela pretende representar.
Além disso, ocorre uma tradução da realidade: um prédio vira um quadrado em um mapa, o
qual pode ser localizado a partir da relação e comparação de seu posicionamento com outros
elementos (como o sentido da rua, por exemplo). Sendo assim, “usuários de representações nunca
lidam com a realidade em si mesma, mas, em vez disso, com a realidade traduzida em materiais e
na linguagem convencional de um ofício específico” (p. 142). A tradução se dá a partir da
expectativa de uma padronização da interpretação dos usuários (compartilhamento de símbolos e
valores sociais) que permitem a compreensão destes do que se apresenta na realidade. Tal elemento,
entretanto, ao mesmo tempo em que facilita a comunicação, dificulta a representação de elementos
que fogem a esse padrão (nesse sentido, a representação condiciona a realidade, visto que ela limita
a atuação dos homens em torno dela)18.

18 Este posicionamento se apresenta de forma claramente próxima ao desenvolvido por Hall: os sistemas de
Em outra dimensão, estas representações realizam um arranjo dos símbolos mobilizados por
elas, quer dizer, definem um padrão de organização dos símbolos utilizados, de tal forma que se
possa compreender de forma mais clara os elementos desta representação – por exemplo, num
gráfico se organiza ele de acordo com o tempo para se poder comparar as variações dos dados de
acordo com ele. Outro aspecto de extrema importância, por mais que esteja em certa medida fora
das mãos dos produtores, é a interpretação, isto é, a percepção do público sobre a sua
representação. Este público modifica a representação ao exigir dela tanto um conhecimento
adequado dos fatos para seu fim (um mapa deve conduzir corretamente o seu leitor) quanto por
respostas morais aos seus problemas (qual é a culpa de algo, o que deve ser feito, etc.).
É preciso, também, desenvolver, nesta perspectiva, como se dá a relação entre produtores
(profissionais pagos para produzir e avaliar estas representações) e usuários (amadores que utilizam
as representações ocasionalmente, sem avaliação). Em contextos dominados por produtores, as
representações possuem uma função de argumento, isto é, elas buscam tratar sobre um assunto
determinado, sem querer passar além dele. Neste sentido, quando eles possuem maior
preponderância neste contexto ou local social, os próprios produtores dominam as suas condições e
circunstâncias de confecção da representação, o que lhes confere maior liberdade na sua atividade.
Por outro lado, num contexto de predomínio dos usuários, tende-se a focar na maior facilidade de
compreensão para o usuário, separando-se de um discurso específico do campo; estas
representações, então, assumem uma forma de “fichário”, ou melhor, de “arquivos”, uma vez que
são objetos dignos de serem procurados para responder perguntas e questões que interessem ao
público.
Sendo assim, a sociedade – seja ela dominada por produtores ou usuários – tende, como um
todo, a esperar o seguimento de padrões de produção que, pelo menos, sirvam para a localização e
organização da ação dos indivíduos dentro desta sociedade. As representações sociais são
“deturpadas”, então, quando não seguem esses padrões ou, ainda, quando seus interesses são
prejudicados, em especial por conta dos julgamentos morais que as pessoas realizam pela
representação. Em outras palavras, este problema se dá a partir de uma reorganização social, da
transformação dos critérios e expectativas da pessoas com relação aos métodos e objetos de
representação social.

representação não apenas são frutos da estrutura, mas também de elementos práticos da vivência social (experiência)
e, por isso, constituem um importante elemento na definição das práticas sociais, uma vez que eles tendem a existir e
se reproduzir de forma relativamente autônoma à estrutura social.
SANTOS, Boaventura de S. Um discurso sobre as ciências.

INTRODUÇÃO

Santos inicia seu texto percebendo como, cientificamente, ainda não foi realizada uma
revolução no mesmo nível que a do século XIX, mesmo que vivamos num tempo em que a
ambiguidade da tecnologia se coloca de forma clara e definitiva para nós. Sendo assim, o momento
contemporâneo é marcado pela crise do paradigma clássico da ciência moderna, revelando-se, pois,
um período de transição deste paradigma para um diferenciado, pós-moderno. Diante do fim do
ciclo de hegemonia do pensamento científico, precisa-se pensar para além – e, em certa medida, até
mesmo contra – a lógica racionalista e cientificista. Os elementos principais desta nova ciência são:
a) o fim do sentido da distinção entre ciências naturais e humanas; b) a sua síntese será realizada
pelas ciências humanas; c) a crise das alternativas teóricas modernas, sejam elas o positivismo
lógico ou empírico, o mecnicismo materialista ou idealista; d) esse paradigma não poderá forçar
sobre as ciências uma unidade e nem mesmo uma teoria global; e) deve ser abolida a distinção
hierárquica entre senso comum e conhecimento científico.

PARADIGMA DOMINANTE

A ciência moderna surge, no século XVIII, da separação da ciência positivista tanto do senso
comum quanto dos “estudos humanísticos” (obras como as de Hobbes, Locke, Montesquieu e
Rousseau). Ou seja, o discurso científico surge a partir da negação de outras formas de
conhecimento, com a argumentação da falta de racionalidade destes por não seguirem seus métodos
e princípios metodológicos. Não obstante, de fato, este discurso se voltasse em boa parte contra o
dogmatismo e as instituições medievais, ele, ainda assim, ao mesmo tempo em que “libertou” o
pensamento da prisão religiosa, por outro lado, diminui e reduziu outros discursos, isolando-os da
pronunciação da verdade. Um dos primeiros elementos dessa reformulação discursiva foi a
transformação do conceito de natureza: ela passa não a ser mais parte (e dominadora) da
humanidade, mas algo externo a esta, que deve dominar a natureza para satisfazer suas necessidades
e desenvolver o conhecimento do mundo. Neste sentido, esta revolução também dependeu da
ascensão do racionalismo: era preciso compreender, então, que os sentidos não eram a verdade, mas
simulacros desta, dos quais se deve duvidar e investigar (esta noção foi inaugurada por Descartes e
consolidade por Kant – não se pode conhecer, de fato, o transcende pelos sentidos: a razão pura não
se confunde com a empírica e/ou sensorial). Assim, é com base nestas duas transformações
(natureza como algo manipulável, passível de dominação, e ascensão do racionalismo, da lógica
sobre o sentimento) que se tem o caminho construído em definitivo para o “desencantamento do
mundo”, no qual o homem finalmente assume a posição de protagonista de sua história – quase que
num modelo hegeliano.
Sendo assim, esta ciência moderna se baseará em alguns corolários básicos, sendo um dos
principais o de que “conhecer significa quantificar”: só se pode conhecer algo se se segue uma
rígida metodologia de pesquisa focada nos números e equações matemáticas que desemboca em leis
causais eternas que determinam e prevêm os acontecimentos dos quais esta ciência trata. Sendo
assim, a ciência moderna pressupõe que o cientista deve analisar a realidade de forma separada a
ela, de tal modo a se conseguir definir estas leis – ou seja, toda a compreensão da realidade depende
de uma separação entre sujeito e objeto –, as quais definem o como funcionam as coisas – e, jamais,
a sua funcionalidade. Neste sentido, a ciência moderna depende da sua noção de continuidade e
ordem dos fenômenos observados: sua regularidade é o que permite seu estudo; a ciência só faz
sentido se ela conseguir definir conceitos e interpretações rígidas da realidade (esta é o que ela é,
como um dado, que não pode ser transformado ou divergir dos conceitos que compreenderam suas
leis gerais).
Este posicionamento, entretanto, não é arbitrário, mas coerente historicamente: o sentido do
mecnicismo como ideologia e discurso de controle social é que ele serviu à burguesia ascendente,
em especial a partir de sua perspectiva de suposta neutralidade e objetividade. Sendo assim, um dos
principais recursos argumentativos do discurso da dominação burguesa é justamente a defesa da
neutralidade do cientista, de sua separação do objeto, de pura retratação do fenômeno estudado, é
um importante elemento de naturalização desta ordem social capitalista.
Dentro deste paradigma dominante, nas ciências sociais, desenvolveu-se duas perspectivas
opostas, as quais discutiam a associação (ou não) de métodos das ciências sociais com relação às
outras ciências (em particular as naturais e exatas). Enquanto uma reconhecia uma suposta
universalidade dos métodos científicos, bastando-se reduzir os fatos sociais às suas “dimensões
externas, observáveis e mensuráveis” (p. 35) – Durkheim –, outra defendia, pelo contrário, que “o
comportamento humano, ao contrário dos fenômenos naturais, não pode ser descrito e muito menos
explicado com base nas suas características exteriores e observáveis, uma vez que o mesmo ato
externo pode corresponder a sentidos de ação muito diferentes” (p. 38). Nesta, o que interessa é
compreender o sentido das ações cuturais dos homens, utilizando-se métodos qualitativos de
pesquisa, em oposição aos tradicionais métodos quantitativos das ciências naturais e exatas.
Entretanto, esta concepção ainda partilha com o paradigma moderno muitas ideias, como a
separação entre homem e natureza, a racionalidade como elemento marcante do homem, etc.

A CRISE DO PARADIGMA DOMINANTE

Um dos principais motivos para a crise do paradigma dominante foi, justamente, o grande
avanço deste, o que serviu tanto para melhorar as condições de existência da humanidade quanto
para provar e evidenciar suas limitações para as exigências dos novos tempos. Outros elemento
importantes de transformações teóricas foram: o avanço do entendimento das teorias e bases
científicas como algo probabilístico, aproximado à realidade, mas não necessariamente idêntico a
ela; a negação da compreensão da totalidade do real, uma vez que ele “não se reduz à soma das
partes em que a dividimos para observar e medir” (p. 45); e, por fim, a negação da completa
separação entre sujeito e objeto. Aqui, então, já não se visualiza a completa previsão do paradigma
dominante sobre a realidade: esta é muito mais fluída e indeterminada do que as ciências modernas
tradicionais pretendem fazê-la ser.
Esta mudança do paradigma tem dois aspectos sociológicos interessantes, de acordo com
Boaventura: primeiro, ela é realizada pelos próprios cientistas, frustrados com os problemas do
paradigma moderno tradicional, que começam a pesquisar para além de seus campos e incluem
elementos e questões filosóficas às suas pesquisas; segundo, esta reflexão “invade” o terreno da
sociologia, perguntando-se sobre questões que esta disciplina respondia – ou seja, popularizam-se
questões da sociologa da ciência como uma importante base epistemológica. A superação da lei da
causalidae vem, justamente, num contexto em que seus objetivos começam a ser questionados –
como o estudo das bombas atômicas, por exemplo –, o que mostra o aspecto sociológico dessa
mudança paradigmática: quando os avanços da ciência já não representam mais apenas a
reprodução da vida, mas também a sua destruição, é que se gesta esta mudança.
E boa parte da mudança passa, também, pela reformulação sobre o conceito de natureza: é
preciso evitar que, ao se afirmar a figura do cientista, negue-se a natureza como um ponto
importante e fascinante da vida humana, com a qual a humanidade depende e se conecta
indissoluvemente. Por isso, os problemas da ciência moderna não são quantitativos, mas
qualitativos: eles não podem ser resolvidos com sua expansão, mas apenas com uma reformulação
de seus princípios. Mesmo que essa ciência seguisse a se avançar, ela ainda não daria conta dos
problemas da realidade, seja por sua arrogância – de querer compreender e simplificar tudo – ou por
sua disciplinarização exagerada – a qual acaba reproduzindo sempre os mesmos problemas, sem
solucioná-los a partir da interdisciplinariedade e dos estudos mais completos sobre os etemas
pesquisados.
Todos estes problemas da ciência podem ser resumidos na sua industrialização, a qual
reproduziu as limitações da sociedade industrial, mais especificamente produzindo dois efeitos
principais: primeiro, a sociedade científica se separou dos leigos, o que expandiu ainda mais a
diferença entre conhecimento científico e senso comum; segundo, com a proletarização da classe
científica, esta ficou muito mais susceptível às necessidades e vontades dos grupos dominantes
desta sociedade, o que se expandiu para além desta divisão do trabalho nacional para um nível
internacional, uma vez que a utilização de máquinas com alto custo de capital no processo científico
levou a um ainda maior distanciamento das nações periféricas com relação aos países centrais.

NOVO PARADIGMA

1. Todo o conhecimento científico-natural é científico-social


2. Todo o conhecimento é local e total
3. Todo o conhecimento é autoconhecimento
4. Todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum
COSTA, Sérgio. “Desprovincializando” a sociologia.

Costa busca, neste texto, apresentar as ideias da corrente de pensamento social conhecida
como “pós-colonialismo”. O elemento fundante desta discussão é a percepção dos limites do
pensamento científico sociológico e filosófico baseado num eurocentrismo que impõe às outras
culturas nacionais as características da sociedades europeias. Pode-se dizer, aliás, que o problema
do paradigma dominante – para usar o termo de Boaventura de Sousa Santos – é sua concepção da
periferia a partir do centro, isto é, o fato de que ele apenas pensa a periferia como uma formação
social e cultural em constante comparação com o centro.
Esta questão está presente ainda assim em diversos movimentos e correntes filosóficas
críticas aos conceitos fechados da modernidade – como o pós-estruturalismo, o pós-modernismo e
os estudos culturais (sua primeira versão) –, uma vez que o movimento pós-colonial, não obstante
concorde com suas críticas e interpretações dos problemas da modernidade, não partilha com eles o
mesmo projeto político: pelo contrário, para esse movimento, o central é “a transformação social e o
combate à opressão” (p. 118), e não a negação de metanarrativas, como propõe o pós-modernismo.
No âmbito da sociologia, o pós-colonialismo se opõe com mais força e ênfase às diferentes teorias
da modernização desenvolvidas por esse campo.
A grande base do “pensamento modernizante” – seja ele sociológico, filosófico, econômico,
etc. – se baseia na divisão entre “ocidente” e “oriente” – ou seja, no orientalismo, discurso estudado
por Edward Said. Dentro dessa lógica, o ocidente surge como agente da modernidade e o oriente
objeto desta: é o ocidente quem define e estuda o oriente; ou seja, “a produção de conhecimento
atende a um princípio circular e auto-referenciado” (p. 119), uma vez que se limita produção
intelectual a ideias e noções circunscritas à forma discursiva do ocidente. Esta auto-referência,
entretanto, não é suficiente: torna-se necessário, em conjunção a ela, realizar uma cisão entre os
sujeitos, a qual é feita a partir da distinção entre “nós” (ocidente), portadores da razão e
investigadores sociais, e “eles” (oriente), objeto da invesigação. Ou seja, a grande base desta
produção teórica é a criação de um discurso que produz efeitos de verdade sobre o outro,
declarando-o inferior (seja explícita ou implicitamente).
Ao reconhecer esta questão, os pensadores pós-coloniais se propõem a estudar como este
discurso estrutura a realidade, em especial a partir de seus regimes de representação, que possuem
uma certa abertura para a transformação de seus sentidos. Sendo assim, o estudo discursivo percebe,
justamente, como a oposição entre dualidades é um aspecto significativo da cisão entre “ocidente” e
“oriente”: aquele possui ciência, enquanto este é baseado na mitologia; um é desenvolvido, o outro
atrasado; enfim, tudo que é positivo se associa ao ocidente, enquanto ao oriente, nas melhores das
hipóteses, remete-se à falta de algo ou ao início de seu desenvolvimento (como se ainda estivesse na
infância, em contraste com o já maduro ocidente).
Esta contrução discursiva, entretanto, por mais que se popularize e amplie seus efeitos de
verdade, esquece-se de ressaltar a dependência do oriente para existir o ocidente, e vice-versa: a
artificialidade do conceito se apresenta claramente quando se vê que as próprias relações coloniais
precisaram desta distinção para justificar sua dominação dos povos coloniais; de outro lado, o
ocidente só pode manter o oriente sob esta categoria enquanto este não conseguir superar a sua
própria dominação e “subdesenvolvimento”, o que significa que o âmbito do poder discursivo e as
suas relações político-econômicas exploratórias são face da mesma moeda, peças de um quebra-
cabeça que depende da manutenção destas duas dimensões para a reprodução desta ordem social e
deste discurso (esse parágrafo ficou meio biased, cuidado!).
Neste sentido, a decodificação do discurso eurocêntrico e a apresentação de uma nova
alternativa é o caminho proposto pelos teóricos pós-coloniais. Spivak, por exemplo, propõe que
tanto a heterogeneidade dos subalternos (isto é, suas próprias histórias e ausência de identificação
com esta categoria) quanto a tendência da reivindicação da representação dos subalternos por
grupos externos a eles, costuma-se negar a eles o discurso. Por isso, a autora defende que, antes,
deve-se denunciar a transformação da fala do subalterno em algo silencioso, desqualificada: é
preciso realizar a negação da representação dos subalternos pelos intelectuais; sua luta se dá pelo
reconhecimento do discurso destes grupos. Esta é a tarefa proposta pelo pós-colonialismo.
Outro elemento importante dessa corrente é a noção de que a história do ocidente e do
oriente estão entrelaçadas: tanto não existe esta separação colocada pelos teóricos modernizantes
quanto, por outro lado, esta distinção só foi possível de ser sustentada por causa da dominação
colonial. Em contraposição a esse dualismo, a teoria pós-colonial tenta ressaltar a questão do
hibridismo: os agentes sociais não possuem essa forma estática e essencialista proposta pelos
teóricos modernizantes; a sua ação não é baseada numa determinação interna, mas num “fluxo de
representações”, dinâmico, no qual os agentes “performam” diante de uma plateia (quer dizer, o
sujeito não é o que ele é essencialmente, mas apenas o que ele é circunstancialmente, sob um
cenário definido). Nas palavras de Costa: “o sujeito é sempre um sujeito provisório, circunstancial e
cingido entre um sujeito falante e um sujeito 'falado', reflexivo” (p. 123).
Por isso, a subversão, para o pensamento pós-colonial, é possibilitada pelo “deslizamento
dos signos”: “Nenhum contexto discursivo particular esgota plenamente o repertório de
significações atribuíveis a um signo; a ação criativa é aquela que subverte, redefine o signo, a partir
de um lugar enunciatório deslocado dos sistemas de representação fechados” (p. 123). Ou seja, por
mais que as cadeias de signficado produzam efeitos de verdade, estes sentidos podem ser
transformados, ainda mais por conta da própria arbitrariedade e aleatoriedade dos símbolos, que não
encerram, em si, uma verdade, mas apenas um “efeito” desta, a partir da interiorização do indivíduo
deste discurso. Neste sentido, a proposta do hibridismo não é simplesmente um projeto político,
mas um fato: todo discurso, em certa medida, é híbrido, fluído, transformativo, sendo ele jamais
capaz de permanecer sempre fechado em si mesmo. Por isso, este conceito realiza uma tarefa dupla:
ao mesmo tempo em que ele desconstrói (a noção da construção cultural fixa e imutável), ele
também normatiza (isto é, reconhece a condição global cosmopolita). A ascensão da globalização,
então, para a teoria pós-colonial, é o início de um processo de intercâmbios fluídos, descentrados e
transculturais que, por mais que se originem numa ideia de dominação, tendem, por conta do
hibridismo, a se transformarem em subversão discursiva dos povos subalternos que possui o
potencial de se associar (e transformar) ao próprio discurso modernizante.
Neste caminho, a questãoda diferença (differance) surge como um importante ponto do pós-
colonialismo: sendo ela o “excedente de sentido que não foi, nem pode ser significado e
representado nas diferenciações binárias” (p. 125). É justamente neste âmbito que a perspectiva
pós-colonial pretende atuar: antes de querer apresentar a essência e fixação dos conceitos, pretende
pesquisar e investigar a ordem social e seus sujeitos a partir da miríade de significações e
representações realizadas por eles. Por isso, o que se quer pesquisar não é a identidade destes
sujeitos, mas sua “posição circunstancial nas redes de significação” (p. 126), uma vez que o sujeito
em si – pela sua própria existência e complexidade (pela sua própria différance) – já é uma
resistência à dualidade e fixidez signficativa do pensamento eurocêntrico. Sendo assim, a questão,
para o pós-colonialismo, não é a essência ou o fato dado, mas a possibilidade de novos sentidos cuja
própria existência é a negação da lógica moderna. É por meio desta noção que se pode falar de um
“sujeito descentrado”, isto é, que não possui uma identidade fixa, mas fluida, marcada por diversos
e diferentes discursos – entretanto, ainda assim não se pode afirmar existir, mesmo neste caso, total
liberdade do sujeito, uma vez que ele é “um signo na cadeia de significações” (p. 127)19.
Sendo assim, o objetivo (ainda não realizado) dos estudos pós-coloniais é, justamente,
perceber como o sujeito e o discurso se articulam dentro da cadeia de significação, como esta
resistência se constitui e se reproduz. Neste sentido, embora o marxismo tenha buscado, de fato,
procurar responder esta questão a partir de suas noções estruturalistas, a perspectiva pós-colonial (e
pós-estruturalista) se diferencia dele a partir do momento em que entende que esta articulação se dá
pelo discurso – e não pelo trabalho ou economia –, o qual forma tanto o sujeito quanto o mundo
social no qual ele vive. Neste sentido, para o pós-colonialismo, a reorientação do discurso equivale,
em certa medida, à reorientação do social (isto é, da cadeia de significação deste grupo).

19 Este, talvez, seja um ponto de continuidade da interpretação pós-estruturalista: o sujeito, como essência, não é
determinado pela “estrutura” (cadeia de significação), mas seu destino o é.
Estrutura social, símbolo, sujeito e ação social

BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma sociologia da prática

TRÊS MODOS DE CONHECIMENTO TEÓRICO


Bourdieu inicia seu texto distinguindo três modos de conhecimento teórico: a)
fenomenológico (próximo ao funcionalismo antropológico, ao interacionismo e à etnometodologia,
no qual o mundo social aparece como algo natural e evidente, aceitando-se as regras e forma de ser
impostas pelas suas experiências no mundo social, sem se considerar as questões da possibilidade
de alterá-las); b) objetivista (próximo ao estruturalismo, entendendo que os homens agem não
apenas por condicionamento – como sugeriria o pensamento fenomenológico –, mas pela sua
interação com as estruturas sociais, as quais ele pode mudar ao desvelá-las); e, por fim, c)
praxiológico (o qual busca compreender “o duplo processo de interiorização da exterioridade e de
exteriorização da interioridade” [p. 1], isto é, a própria relação dialética entre estrutura e sujeito). A
oposição deste último conhecimento com relação ao objetivista é que ele se opõe à negação deste da
prática e da experiência como elemento fundante da ação social: na concepção objetivista são os
elementos incoscientes alheios ao agente que determinam a interpretação deste do fato, o qual só
pode ser realmente dominado pelo sujeito quando compreende os seus limites de produção do fato.
Em geral, pois, pode-se dizer que esta interpretação leva ao etnocentrismo porque cinde o
sujeito da verdade, associando esta a uma análise “objetiva” de um terceiro (pesquisador) que, na
realidade, não entende o fenômeno social concreto porque exclui a experiência e prática do sujeito
analisado por sua pesquisa. Quanto o modo de conhecimento fenomenológico, acontece um
caminho inverso: ele tende a universalizar e superiorizar a experiência, em certa medida
praticamente naturalizando as diferenças das relações sociais; se, assim, evita-se, mais ou menos,
um etnocentrismo, por outro lado perde-se a conexão dos fatos sociais com suas condições e
possibilidades históricas. Ou seja, toda situação social se cristaliza numa forma dada, cabendo ao
sociológo apenas descrevê-la, sem tentar entender os seus meios de transformação. Disto decorre,
então, que o que se deve estudar não são as relações sociais como um todo, mas apenas realidades
específicas; para o objetivismo acontece o contrário, uma vez que estas relações específicas não são
senão parte de um todo, que deve ser destrinchado. Enfim, enquanto um exagera na especificidade
da ordem social e poder do agente, o outro exagera no oposto, na generalidade e na
condicionalidade, fazendo-os não exatamente serem opostos, mas sim aplicáveis para a análise de
problemas e questões completamente diferentes: se, para o fenomenológico, o que interessa é a
definição das experiências formadoras dos indivíduos, para o objetivismo, o que interessa é a
definição destas condições de garantia da experiência primeira.
O objetivismo, entretanto, por mais que realize esta consideração sobre o conhecimento
fenomenológico, cai em uma armadilha, uma vez que, ao definir que os sujeitos agem de acordo
com as condições que lhes são dadas – e que são, para eles, inconscientes –, os pesquisadores são,
então, aqueles que descobrem a verdade e realidade por meio da definição das estruturas que
determinam a ação dos indivíduos; aqui, entretanto, o problema se evidencia ao se constatar que o
objetivismo “trata os objetos construídos pela ciência (…) como realidades autônomas, dotadas de
eficácia social e capazes de agir enquanto sujeitos responsáveis de ações históricas ou enquanto
poder capaz de pressionar as práticas” (p. 9). Ou seja, o que ocorre é que este paradigma realiza, em
certa medida, a inversão entre o sujeito e o objeto (fetichismo), uma vez que quem age, na
realidade, não são as estruturas, mas os agentes – algo que o conhecimento fenomenológico
percebe, mas não desenvolve suficientemente ao se recusar a desvelar como estes mesmos agentes
rompem com e transformam suas experiências. Além disso, causa-se uma confusão do fim objetivo
das práticas com os fins subjetivos dos agentes, uma vez que se limita estes a uma lógica racional
que nem sempre se expressa na realidade (por causa da negação do estudo do subjetivo).

ESTRUTURA, HABITUS E PRÁTICAS


Na proposta do modo de conhecimento praxiológica, Bourdieu pretende combinar a análise
das estruturas constitutivas de um tipo particular de meio (estrutura social representada pela teoria,
como aquela definida pelo objetivismo, marcada pela garantia das condições de existência) com o
meio socialmente estruturado (como a representação das interações sociais feitas pelo
fenomenologismo, a qual se concentra na definição das tradições, símbolos, etc.) naquilo que ele
pretende chamar de habitus. Sendo assim, ele não é estruturado apenas em normas, mas também
como criação positiva (isto é, como algo que não apenas se limita às condições de existência, mas
que também cria novas formas desta). Da mesma forma, todo habitus possui um fim, mas este não
necessariamente é compartilhada conscientemente pelo agente (por exemplo, um advogado pode
seguir as regras de seu habitus sem saber e reconhecer os elementos de distinção social – em
especial simbólicos – marcados na sua profissão); assim, ele sempre é organizado e reproduzido por
seu grupo, mas não depende de uma consciência intencional destes para ser estruturado e estruturar
a realidade. Em outras palavras, o habitus combina o próprio objetivo do agente com as condições
de sua forma de atuação.
Este fato social, então, marca-se não apenas pela limitação das possibilidades do agente –
como se pode ver, por exemplo, dentro de uma noção econômica de classe social –, mas também
pela sua própria interiorização desta limitação: um camponês não é um camponês simplesmente
porque vive da terra e realiza trabalho braçal, mas também porque incorpora, nas suas relações
sociais, uma série de características, tradições e experiências que o levam a reproduzir o habitus de
camponês. Assim, aqui se expressa claramente a noção de interiorização do exterior, mas, ainda
assim, estamos apenas na metade do caminho: o camponês se torna camponês porque interioriza
isto, mas permanece assim porque exterioriza essa sua internalização, ao se crer que sua posição na
sociedade está dada e definida, que suas possibilidades são estas mesmas – ou seja, ele não
permanece na classe simplesmente pela pressão de fora, mas também pela sua própria identidade.
Isto quer dizer, justamente, que a teoria da prática, aqui, não se dá apenas pelo desvelamento do
sujeito, isto é, de suas condições de atuação – como o faz a teoria objetivista –, ou, ainda, somente
pelo reconhecimento da introjeção do sujeito de sua posição social – como faz a teoria
fenomenológica –, mas numa combinação dialética entre as duas: o indivíduo só reconhece sua
posição porque ali está condicionada a estar; e ali ele permance porque interioriza todas essas
experiências e se forma a partir desta condição20.
Sendo assim, a interiorização da estrutura social precisa ser vista como resultado da
experiência, mesmo que não exista uma “análise racional” e calculada, uma vez que esta
interiorização é determinada por aquilo que o agente foi ensinado na sua prática – ele (agente) não é
apenas negado e marginalizado, mas construído e definido pelo sistema, que o exclui não por meio
de sua atuação na realidade (como se os Aparelhos Ideológicos do Estado atuassem, e não os
indivíduos), mas pelo condicionamento da experiência dos agentes que interiorizam essa estrutura e
reproduzem suas relações sociais. Nesta concepção, então, os conflitos de classe, raça, gênero,
gerações, etc., o que seja, não são frutos da natureza ou das condições sociais, mas de “habitus que
são produtos de diferentes modos de engajamento, isto é, de condições de existência que, impondo
definições diferentes do impossível, do possível, do provável ou do certo, fazem alguns sentirem

20 Logicamente, Bourdieu não pode ser visto como o grande “descobridor” desta relação: na verdade, Marx e Weber
podem ser considerados pais originais desta ideia, assim como Elias. Claro, suas ideias se expressam em noções e
conceitos diferenciados, mas a base desta noção, de que estrutura e sujeito se encontram em completa e total relação
e que eles dependem um do outro é algo presente em ambas as teorias. Marx, por exemplo, mostra como esta
dominação das condições sobre o sujeito não é algo “natural” e próprio das relações sociais, mas fruto de uma
relação social histórica, que, no caso do capitalismo, se reproduz por meio do fetichismo da mercadoria – e que, em
outros modos de produção, associava-se à religião e à tradição. Quer dizer, o ato da interiorização e exteriorização
contínua está presente nesta noção; da mesma forma, num método objetivista, esta situação também se marca por
isso, mas de tal forma que desconsidera a própria experiência individual, o que seria, de fato, o problema de análise
principal deste método. No caso weberiano, por exemplo, esta situação é solucionada com o desenvolvimento das
diversas formas de negação do mundo desenvolvidas pelas religiões, as quais fazem os sujeitos interiorizarem uma
práxis (ação reflexiva) que, ao serem rotinizadas, se institucionalizam em tradições, práticas, morais, éticas, etc., que
formam as bases da relação social. Aqui, portanto, pode-se ver uma unidade entre o elemento histórico, agência
humana e construção das condições sociais de atuação criadas pelas relações sociais.
como naturais ou razoáveis práticas ou aspirações que outros sentem como impensáveis ou
escandolosas” (p. 17).
Entretanto, o sentido do habitus não deve ser visto apenas como o de interiorizar a estrutura,
isto é, de “colocar o sujeito em seu lugar”, de fazê-lo aceitar ser o que é, mas, também, de formular
algo mais do que simplesmente uma “posição de classe”: ele não é algo absoluto por si só, uma vez
que a prática não depende apenas dele, mas de uma relação entre situação e habitus. Sendo assim,
não se pode dizer que este determina por completo a subjetividade do indivíduo, como se ele
assumisse este “papel” na estrutura social mecanicamente: o habitus não é uma imposição direta da
estrutura sobre o sujeito; pelo contrário, ele é como “um sistema de disposições duráveis e
transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma
matriz de percepções, de apreciações e de ações” (p. 18), que permite a solução dos problemas
colocadas ao agente pela sua situação. Por isso, a estrutura (que cria as condições do habitus) não
formulam, magicamente, este, uma vez que eles também dependem da conjuntura, que é um estado
particular da estrutura. As variações dentro da estrutura são essenciais, portanto, para o
desenvolvimento do habitus: uma classe, por exemplo, atua de diferentes formas diante das
mudanças e variações político-econômicas que acontecem no modo de produção em que elas atuam.
Ao negar essas variações históricas, próprias de seus sistemas, os objetivistas caem num erro de
confundir o habitus como uma simples reprodução da estrutura, e não como uma criação ativa dos
próprios agentes para poderem atuar adequadamente na realidade (a própria formação da classe
trabalhadora não é uma simples “questão estrutural”, mas mediatizada pela construção simbólica
desta noção). Neste sentido, para Bourdieu, a “harmonização objetiva” das relações sociais – isto é,
a adequação das práticas com o habitus e a estrutura social – não pode ser naturalizada e tratada
como resultado de uma expressão clara de uma organização social.
Por outro lado, o habitus é este elemento de extrema importância também porque ele faz os
agentes internalizarem as práticas e costumes que permitem a comunicação e interação entre eles:
os acostuma, de fato, a um “papel social” que, fora dele, os agentes não conseguem agir e se
comunicar – o caso do camponês vem à tona: ele é camponês porque apenas sabe utilizar certos
símbolos e se imiscuir e atuar no mundo por um longo processo de socialização pelo qual ele
passou. Sendo assim, a principal diferença do conceito bourdieusiano com o marxismo talvez esteja
justamente aqui: para ele, a representação não se dá pela defesa de uma consciência de classe que se
marca pela racionalidade e busca do favorecimento da classe (isto é, pela existência de uma “classe-
para-si”), mas sim pela lógica simbólica (das tradições e costumes, por exemplo) que acabam
definindo uma classe e permitem a sua comunicação, reconhecimento e atuação conjunta – a classe
é a classe não por uma questão objetiva externa a ela, mas pela sua própria construção na prática,
que se materializa no habitus e se reproduz tanto por sua base estrutural quanto pela experiência dos
indivíduos. Com esta noção, busca-se evitar o erro de fazer a classe tornar-se um significante sem
significado, fetichizado, como se ela pudesse ser algo na realidade sem o saber. Quer dizer, ele é
uma classe – e se reconhece como tal – pela suas experiências de socialização, as quais as faz ser
“produtor e reprodutor de sentido e objetivo”, mas isso não quer dizer que ele reproduza
conscientemente esta cisão e divisão de classes, uma vez que “suas ações e suas obras são produtos
de um modus operandi do qual ele não é produtor e do qual não tem o domínio consciente” (p. 21):
ele apenas atua da forma que atua porque é o como, socialmente, ele aprendeu a atuar.
Sendo assim, a manutenção do habitus se dá de forma externa ao indivíduo, por mais que ele
o agarre e com ele se identifique: ele não reconhece o sentido daquele em reproduzir e se ajustar às
estruturas sociais. Isto quer dizer que sua relação se aproxima ao caso do fetichismo da mercadoria:
não há a consciência do motivo da utilização da forma mercadoria, a qual serve para encobrir a
centralidade do trabalho na produção e sua exploração pelo assalariamento. Neste sentido, o habitus
surge como um ato consciente, mas inconsciente de sua função na ordem social: pense-se, por
exemplo, nos juristas e na sua confecção da legitimidade, na sua defesa da “justiça”; no trabalhador
que se identifica com a noção de que ele é alguém “simples”, “humilde” e “bruto”. O habitus, por
isso, mesmo que seja introjetado, não deixa de ter sua funcionalidade à estrutura, da mesma forma
que, mesmo tendo sua funcionalidade, esta não se dá porque as estruturas “estão vivas”, mas sim
porque o agente reproduz e incorpora os significados e símbolos associados a ele mesmo por meio
de sua experiência. Como afirma Bourdieu, “é porque elas [intenções] são o produto de disposições
objetivamente concertadas, por constituírem a interiorização das mesmas estruturas objetivas, que
as práticas dos membros de um mesmo frupo ou numa sociedade diferenciada, de uma mesma
classe, são dotadas de um sentido objetivo ao mesmo tempo unitário e sistemático, transcendendo às
intenções subjetivas e aos projetos conscientes, individuais e coletivos” (p. 23).
Uma das principais consequências deste fato é que, então, as interações sociais de classe se
dão mediatizadas pelo habitus: este também serve de marca da posição social do agente,
determinando-se como este agente pode agir dentro do mundo social – seja pela sua incapacidade
pessoal de atuação de outra forma quanto pela pressão de seus pares e agentes externos 21. Sendo
assim, o habitus atinge tão profundamente o indivíduo que ele chega a interferir como e com quem
ele se relaciona socialmente, delimitando-se, a partir dele, as suas possibilidades de atuação na
arena social – aqui, a ideia da acumulação de diferentes capitais (sejam eles financeiros, culturais,
simbólicos, etc.) é um ponto importante. Por isso mesmo, a ação coletiva nunca é algo dado e
determinado diretamente pela própria dinâmica da luta de classes (isto é, resultante da conjuntura –
disposições + acontecimento): pelo contrário, apenas um grupo condicionado atua na conjuntura de
acordo com o acontecimento, o qual nunca acontece aleatoriamente, mas a partir das estruturas
objetivas da sociedade. Ou seja, o ponto de Bourdieu é que a reação da classe nunca é determinada
pela sua contade ou análise racional do fato, mas pelo seu habitus, construído cultural e
historicamente.

HALL, Stuart. Da diáspora. Significação, representação, ideologia.

O estruturalismo de Althusser reconhece, para Hall, a diferença, isto é, a existência de


diferentes contradições e características sociais nas estruturas sociais. Ou seja, a perspectiva teórica
de Althusser se dá em conjunto com uma renovação do marxismo, que evita a imposição de uma
teoria sobre a realidade. Esta noção, entretanto, não se dá com o rompimento com o estruturalismo,
muito pelo contrário: o que marca essa “renovação teórica” é a concepção da estrutura social como
algo dentro do alcance da ação, da prática social, que é reproduzida constantemente pelos
indivíduos. Há, aqui, uma oposição clara à teoria do discurso: esta, de acordo com Hall, se mostra
incapaz de “teorizar as irregularidades necessárias de uma unidade complexa ou mesmo a 'unidade
na diferença' de uma estrutura complexa” (p. 1620, isto é, não consegue compreender a totalidade
das relações sociais nas suas interrelações uma com as outras.
Esta incapacidade talvez seja reproduzida pela sua negação do entendimento do Estado
como o principal veículo de poder da sociedade moderna: ao focar apenas no elemento contraditório
desta instituição, perde-se a a compreensão de que ele é “a instância de atuação de uma
condensação que permite a transformação daquele ponto de intersecção das práticas distintas em
uma prática sistemática de regulação, de regra e norma, e de normalização dentro da sociedade” (p.
163). Ou seja, o Estado não determina as práticas sociais, mas as condensa e as articula em torno de
uma direção concreta, de “normalização social”, que acaba por permitir que os discursos, práticas e
símbolos não sejam contraditórios e/ou opostos à reprodução da ordem estabelecida. O Estado, em
uma palavra, não cria a unidade entre os contrários, mas sim a sua articulação – a qual,
nomeadamente, se dá na direção da reprodução capitalista.
Esta articulação não se dá por uma atuação direta e imediata do Estado sobre os sujeitos,
mas sim por meio da linguagem, de uma articulação que só é realizável pela ideologia, cuja tarefa é,
precisamente, “fixar significados através do estabelecimento, por seleção e combinação, de uma
cadeia de equivalências” (p. 164). Assim, o Estado é responsável por regular a ideologia, nesta
21 Esta constatação pode ser claramente vista na análise de Goffman sobre o estigma: o portador de um estigma tem
sua ação delimitada não apenas pela sua “introjeção” do estigma, mas, principalmente, por dois outros elementos
principais, sendo eles a mudança da ação do outro com relação a ele, diante do reconhecimento de seu estigma – o
que o leva a gerir a informação que ele compartilha com o outro (encobrimento) –, e a sua incapacidade de mudar
ou superar seu estigma – por mais que ele deseje apagá-lo, ele ali permanece, o que faz com que ele precisa adaptar
sua prática a este fato, queira ou não, e aceitar sua posição de estigmatizado.
construção teórica, evitando que o discurso ceda à sua natural “aleatoriedade”. Este
posicionamento, entretanto, se forma com a intenção de não perder de vista a inexistência de
garantia nem por parte do rigor formalista da estrutura e nem da aleatoriedade dinâmica do discurso.
Isto é, estas duas dimensões são apenas possibilidades à ideologia, as quais, portanto, nunca deixam
de estar em constante interação e relação. O que marca, justamente, o caráter possibilístico desta
relação é o fato de que ela se dá na prática, isto é, distante da teoria, a qual só pode analisá-la post
festum, sem ter sobre ela qualquer poder imediato de definição de seu futuro. Assim, devido a esta
contingência ideológica, “não se pode 'inferir' a ideologia de uma classe (…) a partir de sua posição
original na estrutura de relações econômicas” (p. 166).
Esta perspectiva, entretanto, não se propõe a entender a prática como algo incompreensível
ao sociólogo, uma vez que o que se tem de observar é a “dupla articulação” entre prática e
estruturas: enquanto estas são “resultado de práticas anteriormente estruturadas”, aquelas são “a
forma como uma estrutura é ativamente reproduzida” (p. 167)22. Uma citação deve ser aqui
colocada, por conta do alto valor teórico do trecho copiado:
As estruturas exibem tendências – linhas de força, aberturas ou fechamentos que constrangem,
modelam, canalizam e, nesse sentido, “determinam”. Mas estas não podem definir, no sentido de fixar
absolutamente ou garantir. As ideias que devem pensar não estão irrevogável ou indelevelmente
inscritas nas pessoas; o senso político que elas devem ter não se encontra como que inscrito em seus
genes sociológicos. A questão não é o desdobramento de alguma lei inevitável, mas os elos que podem
ser estabelecidos, mesmo que não necessariamente (p. 167)

Seguindo este entendimento, Hall prefere pensar a ideologia a partir de uma obra do jovem
Althusser (“A favor de Marx”), e não do tradicional “Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado”
– neste, Hall aponta os seguintes problemas: a desconsideração dos conflitos dentro do próprio
sistema capitalista; a sua interpretação da ideologia como algo que parece ser somente da classe
dominante e sua proximidade a um certo funcionalismo. Um dos elementos principais desta escolha
se dá pelo reconhecimento de diversos sistemas de representação presentes na sociedade, os quais
são os responsáveis por “representar o mundo para nós mesmos e para os outros” (p. 179). Neste
sentido, as ideias se materializam e existam por causa da prática, sendo esta “constituída na
interação entre significado e representação”, podendo “ela mesma ser representada” (p. 179). É na
prática, portanto, que se dá o embate entre ideologias, as quais “se contestam umas às outras
geralmente a partir de um repertório comum e compartilhado de conceitos, rearticulando e
desarticulando esses conceitos dentro de sitemas de diferença ou equivalência” (p. 181). Esta
rearticulação, então, depende da experiência das classes, mais especificamente de sua vida dentro da
cultura, e da multiplicidade dos sistemas de representação, os quais podem ser mobilizados de
diferentes formas e em diversos momentos distintos.
Sendo assim, Hall sintetiza toda esta visão afirmando que “é dentro dos sistemas de
representação da cultura e através deles que nós 'experimentamos o mundo': a experiência é o

22 Esta afirmação – que parece tautológica, mas não o é – talvez seja a mais interessante desta definição de Hall: o que
se vê, aqui, é uma codependência entre as duas dimensões; pode-se atuar, mas dentro de uma estrutura, e esta, por sua
vez, só se reproduz pela prática. Aqui, claramente, se aproxima da noção bourdieusiana da interiozação da estrutura e
da exteriorização do subjetivo, uma vez que as duas dimensões se dão em torno da reprodução da estrutura social. A
diferença principal destas teorias, entretanto, está no fato de que Bourdieu determina que a ideologia se reproduz pelo
habitus, enquanto, para Hall, não existe este conceito que condicione a tendência de uma classe a incorporar tal
ideologia em sua prática: para ele, as contingências dessa relação são muito maiores, e tendem a refletir, justamente, o
problema do significado da ideologia, uma vez que esta não pode ser reproduzida ad infinitum, mas apenas dentro de
uma espaço estruturado que assim o permita – caso das gradações de negritude, por exemplo; assim, o problema da
ausência do habitus é solucionado com a noção da identidade, a qual, por sua vez, se torna muito mais fugidia na
definição da práxis de um agente. Por mais que a identidade e o habitus sejam, os dois, inscrições da posição social dos
sujeitos dentro da estrutura, a identidade só pode ser exercida no contexto que lhe cabe, enquanto que, no caso do
habitus, ela se impregna no agente: a identidade pode e é trocada, como uma roupa, enquanto o habitus depende de anos
de condicionamento para sua aquisição, tendo uma forma mais duradoura e sólida, como uma tatuagem. Aqui, portanto,
existe uma certa discordância sobre o nível da estrutura na definição da prática do sujeito – enquanto, em uma, ela é
mais maleável, na outra ela se torna mais sólida (estas diferenças, entretanto, não se dão em termos absolutos, mas
apenas relativos, uma vez que as duas teorias reconhecem a dinamicidade e variabilidade deste processo).
produto de nossos códigos de inteligibilidade, de nossos esquemas de interpretação.
Consequentemente, não há experiência fora das categorias de representação ou da ideologia” (p.
182). Neste sentido, pode-se dizer que as relações são “imaginárias”: quer dizer, elas não
representam o real; mesmo que estas relações existam separadamente de um cada de nós, de forma
autônoma, elas apenas podem ser percebidas e reproduzidas em nossa mente, isto é, elas se baseiam
nos sistemas de representação, o que quer dizer que estes, em certa medida, definem a realidade
humana, ou melhor, a subjetividade e identidade de cada um de nós.
Esta noção pode ser entendida pelas classificações sociais que atuam sobre os indivíduos:
elas inscrevem esses sujeitos no seu respectivo lugar na cadeia de significação construtora de
identidades. Dependendo-se do sistema de representação, a posição de uma pessoa, objeto,
conceito, etc., modifica-se: os conceitos e sujeitos não possuem uma posição ou identidade fixa,
mas sim mutável, variável, dinâmica, uma vez que o “real” das relações sociais não é o real
absoluto, mas aquele construído no imaginário social (“não existe um 'eu' essencial, unitário –
apenas o sujeito fragmentário e contraditório que me torno” [p. 188]).
GOFFMAN, Erving. Stigma.

ESTIGMA E IDENTIDADE SOCIAL

Goffman desenvolve, inicialmente, como a “identidade social” é formada na sociedade: ao


mesmo tempo em que esta define os “meios de categorizar” a partir de uma noção de normalidade,
o que acaba definindo os ambientes sociais e tipos de pessoas que se tem probabilidade de se
encontrar ali. Aqui, portanto, refere-se a mais do que simplesmente a posição social, uma vez que
também se liga a valores e noções atribuídos ao sujeito a partir de sua ação (exemplo: honestidade é
uma característica definida a partir dos valores de uma sociedade e que muda a forma que esse
indivíduos se apresentam para a sociedade); mas, ainda assim, não obstante essas classificações
sejam “ideais”, elas também se baseiam na corporeidade das características de uma pessoa na
“classificação social”23.
O estigma se marca, então, pela confusão entre a identidade real (aqueles atributos que ele
prova possuir – como, por exemplo, a honestidade – nas relações sociais) e identidade virtual
(presunção do indivíduo algo que ele não é, por conta de seu estigma). Entretanto, os estigmas,
embora se marquem por esta definição, não são iguais e não causam o mesmo efeito imediato: eles
transitam entre diferentes noções e valores sociais – um descacreditado (cujo estigma está aparente
e claro no corpo da pessoa – como o caso de um amputado, de um cego, etc.) não terá certas
características associadas a ele, enquanto um desacreditável (seja ele um ex-paciente de um hospital
psiquiátrico, um ex-detento, etc.) terá outras associadas e outras não. Neste sentido, pode-se definir
três tipos diferentes de estigma: a) abominações do corpo (cuja corporeidade está visível e nítida,
mas que, por causa de sua frequência na sociedade, não se tende a associar ao sujeito qualquer
desvio de caráter, apenas limites físicos e práticos de convivência em sociedade); b) culpas de
caráter individual (aqui, ao contrário, a corporeidade não é tão clara, marcando-se por ser
puramente social24); e c) estigmas tribais da raça, nação, religião (este, pelo contrário, apresenta
uma corporeidade – seja ela intencional, como a utilização de certos símbolos religiosos, ou não,
como a cor da pele – e, além disso, leva à pressuposição do caráter pessoal).
Neste sentido, o estigma não pode ser visto simplesmente como um “valor” e expressão
cultural, mas também como uma forma de controle social25, o qual se dá a partir da expectativa dos
normais de que os estigmatizados sigam uma certa norma de conduta – a qual, entretanto, também é
aplicada inversamente. Quer dizer, ambos os lados assumem uma posição social que lhes dita como
devem agir: o cego espera uma ajuda para atravessar a rua, mas também não pode ser rude com
aqueles que lhe importunarem com perguntas e ajudas desnecessárias; o ex-detento espera olhares
de julgamento quando revela seu passado, mas os próprios normais não podem, a partir deste fato,

23 De fato, pode-se relacionar esta mesma noção da identidade, para Goffman, com o habitus, mas deve-se tomar certo
cuidado, porque, como se verá a frente, o que interessa ao sociólogo canadense é exatamente o controle desta
identidade, sua gestão dentro da sociedade, de tal forma a evitar/controlar/reverter o estigma social, dependendo do
como o indivíduo resolve agir. Quer dizer, para o autor, o estigma (enquanto elemento de identidade) não é
necessariamente um atributo incorporado ao indivíduo, que o faz ser quem é, como a noção de habitus de Bourdieu:
ao invés de existir uma interiorização da estrutura, pelo contrário, existe uma manipulação da relação social
estabelecida por esse agente com aqueles com quem ele interage, uma vez que esta relação não se dá por meio de
estruturas, mas sim de “posições sociais” das quais os agentes tem conhecimento e são educados desde pequenos,
mas a qual não os faz necessariamente interiorizarem sua posição – aqui, o elemento fundamental não é a questão
“existencial”, mas sim a pragmática. É interessante notar, justamente, que a obra de Goffman talvez caísse, pelas
próprias palavras de Bourdieu, no tipo de conhecimento “fenomenológico”, o qual, em si, tende a focar numa forma
definida das relações sociais, e busca destrinchá-las e descrevê-las, sem relacioná-las à estrutura e sem procurar
elementos inconscientes que determinam estas relações: os agentes explicam as suas próprias ações, agem de acordo
com a sua própria lógica, a qual precisa ser compreendida, e não explicada.
24 Em certa medida, pode ser relacionada à noção de Elias sobre a ausência de autocontrole: as pessoas que são estig-
matizadas dentro dessa categoria sofrem por conta da punição da sociedade sobre a sua incapacidade de garantir
segurança a todos os indivíduos em torno de uma cultura definida de controle e repressão dos desejos e sentimento
de raiva e ódio.
25 Questão: em que medida o estigma se expande com o surgimento do discurso da “guerra das raças”, como descrito
por Foucault?
fechar-lhe a porta. Por isso, o estigmatizado tem um leque de opções de atuação, indo desde o seu
isolamento, a introjeção de sua inferioridade e a luta pelo seu reconhecimento como normal. Tais
possibilidades, entretanto, não estam fechadas e determinadas, uma vez que também variam de
acordo com o tipo de estigma, o grupo de estigmatizados e o de normais, etc.
Quando se trata da relação entre um normal e um estigmatizado, sempre existe incerteza e
tensão, uma vez que existe a dúvida sobre como o aquele atuará e julgará este. Por isso, existe uma
certa ausência, na visão do estigmatizado, de uma clareza nas suas relações, uma vez que ele nunca
sabe sob qual égide ele será julgado, qual identidade da sua pessoa prevalecerá para o outro, ou,
ainda, se o seu estigma afetará de alguma forma o reconhecimento do outro de sua identidade real.
Entretanto, este problema e tensão se encontra mais claramente no caso dos desacreditados, uma
vez que os desacreditáveis podem manipular a informação fornecida ao outro. De toda forma, as
relações mistas seguem sendo angustiantes para os estigmatizados, seja por conta da dificuldade de
interação, da possibilidade de descoberta de seu estigma, etc.
Por conta disso, este grupo costuma se organizar e criar instituições de representação nas
quais as relações podem ser feitas sem esta angústia, uma vez que ela reúne pessoas com a mesma
condição ou normais informados sobre esta questão, o que facilita a comunicação e se reduz o
julgamento pela identidade virtual. Os “informados”, já citados, são aqueles normais que, por sua
condição íntima-privada na qual estabeleceram relações com os grupos estigmatizados, se
simpatizam com este grupo e recebem dele certa aceitação e prestígio – são, enfim, aqueles normais
com os quais os estigmatizados sabem que serão tratados como normais. Este processo pode se dar
profissionalmente, pelas relações familiares, amizade, etc.. Tal relação, embora seja melhor do que a
estabelecida com os outros normais, desconhecidos, ainda mantém certas tensões e problemas.
Sendo assim, a carreira moral (isto é, a aprendizagem relativa à sua condição e as mudanças
semelhantes na concepção do eu) do indivíduo estigmatizado é construída a partir de suas
experiências: ele não nasce já sabendo que “falta algo nele” ou que “ele cometeu um erro”, é a
sociedade que lhe ensina isso. Quer dizer, para assim se considerar, ele precisa aprender e
incorporar o ponto de vista dos normais – precisa aceitar que existem estigmas e que eles não são
normais, isto é, aprende que negros são inferiores, etc. – e, depois, junto à sua existência imediata
ou apenas depois de um acontecimento, descobre as consequências de possui-lo – tratamento
infantilizado, observação na rua, elogios à sua identidade real, etc26. Este aprendizado é feito de
forma longa e demorada, o qual fornece a base para a atuação correta do agente nos diferentes
papeis que ele for desempenhar no ambiente social e define a sua própria posição com relação a esta
classificação e aos outros.

CONTROLE DE INFORMAÇÃO E IDENTIDADE PESSOAL

A “informação social” é reflexiva e corporificada (representada e transmitida no corpo da


pessoa portadora). Neste sentido, a visibilidade é importantíssima para o estigmtizado: “a
informação cotidiana disponível sobre ele é a base da qual ele deve partir ao decidir qual o plano de
ação a empreender quanto ao estigma que possui” (p. 44, pt), o que leva ao fato de que o
desacreditado e o desacreditável agirão de formas diferentes com relação ao seu estigma e ao palco
das relações sociais. Quer dizer, os estigmas possuem vários graus de “intrusibilidade, isto é, do
quanto seu “desvio” interfere na vida pessoal daquele que o porta. Além disso, esta intrusibilidade
26 Aqui, a relação com a obra de Fanon (“Pele Negra, Máscara Brancas”) vem à tona, mas também remete aos
exemplos elencados por Hall: o sujeito não é, de fato, estigmatizado, mas antes socializado por um sistema de
representação que assim o coloca e classifica; o elemento essencial na formação do estigma não está no próprio
sujeito, mas sim na estrutura social e nos sistemas de representação que a estruturam. A sobredeterminação entre
diferentes elementos sociais – como a questão racial e do imigrante – levam a uma fusão entre conceitos e noções
completamente distintas por conta de sua aplicabilidade à estrutura social, à articulação entre estes conceitos e as
outras dimensões da vida. Quer dizer, o estabelecimento de um estigma nunca está associado apenas a uma decisão
arbitrária dos normais, mas sim a uma relação histórica estabelecida entre estes grupos e que permite o controle
social e a normatização social por meio de um discurso com características e formas delimitadas pelo sistema de
representação construído a partir e por meio destas relações de poder – as quais seguem preservando-o por sua
funcionalidade.
pode variar: no caso dos desacreditados, eles tendem a sofrer mais na arena pública, uma vez que lá
eles tendem a ser mais julgados do que com relação às pessoas próximas de si; por outro lado, os
desacreditáveis sofrem mais com quem tem intimidade, tanto pela angústia de esconder o estigma
quanto pelo efeito deste na vida das pessoas próximas a elas. Sendo assim, existem “várias
estruturas nas quais os contatos se produzem e se estabilizam” nas quais existem distorções e
reformulações da identidade virtual com relação à sua identidade real.
Contudo, a manipulação da identidade não pode ser feita aleatoriamente, de forma
completamente autônoma pelo ambiente: ela também deve depender de outro aspecto, da própria
“identidade pessoal” do agente, isto é, da própria visão do ator sobre si mesmo (a qual se baseia na
unicidade da pessoa, a qual se exprime nos meios de diferenciação pessoal que, juntos, criam uma
história contínua e única dos fatos sociais pelos quais ele vivenciou – ou seja, que se baseia numa
“biografia” deste agente). Esta biografia, ao contrário da identidade reconhecida pelos outros
atuantes no campo, é, em certa medida, alheia a eles, e só é conhecida de fato pelo agente – ele,
então, conserva, neste elemento, a sua própria subjetividade, a qual não pode ser manipulada e
transformada pelos outros27. Sendo assim, a maior diferença entre a identidade social e a pessoal é
que o indivíduo não controla totalmente a identidade social, e, por isso, realiza a manipulação da
informação sobre o seu passado compartilhado com os outros.
Os outros, nas relações com o indivíduo, também fazem dele uma biografia pessoal, a qual,
por menor que seja, ainda é a base de suas relações – pode ser que, reconhecendo o escasso
conhecimento que possui, ele se recuse a se relacionar profundamente com ele, mas ainda assim
tem uma biografia dessa pessoa em sua cabeça, enquanto o desconhecido não possui nenhuma. Em
outras palavras, os conhecidos tem um “reconhecimento cognitivo” da pessoa em questão, isto é,
realizam uma “ato perceptivo de classificação individual” na qual se traz à tona a identidade social
do agente analisado. Enquanto isso, um “reconhecimento social” não se percebe a biografia
individual, mas somente ao fato de que os dois agentes pertendem à mesma situação social – como
um estigmatizado reconhece ao outro, por exemplo –, sem se necessitar do conhecimento pessoal
(ele é algo mais alheio ao olhar daquele que analisa). Sendo assim, é a partir destas duas dimensões,
por exemplo, que se desenvolve a vergonha e a má-reputação de uma pessoa: todos tem, em certa
medida, um conhecimento determinado de sua biografia pessoal, da qual não se aprova socialmente,
numa forma de controle social28.
Por isso, o “encobrimento” – a ação de esconder dos outros sua biografia – depende,
justamente, do ato de evitar contato e mistura entre aqueles que conhecem sua biografia completa e
aqueles que não à conhecem: a gestão de informação vai além do simples silêncio, precisando-se da
separação, para o estigmatizado, entre dois mundos diferentes. Conseguintemente, o estigmatizado
delimita sua ação de acordo com três tipos de lugares: a) lugares proibidos (nos quais exposição
significa expulsão); b) civis (no qual eles são cuidadosamente tratados como se não fossem
estigmatizados, mas que ainda assim se tem um pouco de preconceito ali presente); e c) “back
places” (lugares onde ele pode se expôr tranquilamente, sem se preocupar com o julgamento de seu
estigma). Em um lugar ou outro, também, ele pode ser conhecido ou anônimo, o que, em si,
modifica sua forma de atuação, encobrindo-se ou não o seu estigma. Contudo, aquele que encobre
seu estigma passará sempre por um processo ambíguo: de um lado, se sentirá culpado por esconder
daqueles com quem se relaciona tal segredo e, de outro, sofrerá com a exposição da posição real
daqueles com quem ele se relaciona, os quais, sem ter conhecimento da presença de um
estigmatizado, agem normalmente, sem filtros, ao tratar sobre o assunto em questão. Este ato de
encobrimento, além disso, também realiza uma mudança na própria percepção e controle do

27 É óbvio que a biografia sofre influência da sociedade, mas apenas por meio do indivíduo, por meio de sua
internalização e aceitação das estruturas da sociedade, as quais, diante de determinadas experiências, podem ser
invertidas e transformadas por ele.
28 Aqui, a noção de coercitividade do fato social, proposta por Durkheim, obviamente se destaca à mente, uma vez que
os indivíduos são socializados no sentido de reconhecerem algo que pode prejudicá-los e, assim, evitam seguir ou
realizar este ato, para não perderem prestígio diante de seus pares. O que Goffman traz de inovador, de fato, neste
trecho é o reconhecimento da possibilidade de gestão da informação e a relação entre biografia e identidades sociais
e pessoais.
estigmatizado sobre si mesmo, para esconder seu estigma, em atos que os normais simplesmente
agem naturalmente: para ele, manter essas relações é algo muito mais duro e angustiante do que o
normal29. Sendo assim, os estigmatizados realizam e desenvolvem, cotidianamente, técnicas de
controle de informação: os desacreditados se encontram diante de um ciclo rotinizado de restrições
com as quais ele se depara para ser aceito socialmente – ou podem realizar um “acobertamento” de
seu estigma, ao esconder a suas marcas e características das outras pessoas; e os desacreditáveis
diante das contingências para a manutenção das informações sobre si mesmo.
Contudo, o estigmatizado não necessariamente encarará seu estigma de forma negativa,
sendo comum, muitas vezes, eles abraçarem esta classificação e a tornarem um elemento fulcral de
sua identidade pessoal (pense-se no caso dos movimentos LGBTT, negro, feminista, etc.). É muitas
vezes nesta mesma relação conflituosa que nasce o “ego”/eu do estigmatizado: sendo ele um
“sentido subjetivo de sua própria situação e de sua própria continuidade e caráter que um indivíduo
chega a obter como resultado de suas várias experiências sociais” (p. 105, eng). Ele se vincula à
identdidade pessoal e social do indivíduo, mas se diferencia destas a partir do momento em que não
se trata, simplesmente, do como ele se vê ou do como a sociedade o vê, mas do como ele manipula
essas duas esferas a partir do seu estigma (se ele o esconde, o aceita, etc.), indo além do
encobrimento (aqui, o sujeito não é apenas alvo do estigma, mas também agente em torno dele –
como no caso citado inicialmente no parágrafo). Esta questão, entretanto, não afeta apenas os
estigmatizados: graças ao estabelecimento de “alianças sociais” entre estigmatizados e normais,
pode-se ter influências sobre a identidade do eu de ambos indivíduos. Neste sentido, é esperado que
exista uma ambivalência quanto o indivíduo associa seu estigma com imagens, noções, valores e/ou
situações ruins, e, assim, tenta se distanciar do grupo, mas, dentro da sociedade, ele não possui
meios efetivos de realmente se transformar num “normal”; por isso, ele sempre se encontra entre a
cruz e a espada, entre a vergonha de seu estigma e a vergonha de ter se envergonhado.
Sendo assim, os estigmatizados tendem a desenvolver suas próprias concepções sobre o
estigma, as quais Goffman denomina de “apresentações profissionais”, construindo-se um novo
discurso. Dentro dessa comunidade, em geral, tende-se a se exigir um meio-termo entre o completo
encobrimento/acobertamento e a aceitação das atitudes negativas dos outros perante o seu estigma:
são formados, assim, certos códigos de conduta da comunidade estigmatizada diante do outro,
exigindo-se a sua identidade com o estigma – por exemplo, uma pessoa de origem negra não deve
negá-la –, uma vez que, para o grupo representante, o estigmatizado deve agir não tendo em vista os
“normais”, mas a sua comunidade. Além disso, estes códigos de conduta servem como receita para
a atitude diante de si mesmo – para evitar a sua própria negatividade e rebaixamento de seu valor –
e são desenvolvidos a partir de uma análise da realidade feita pela própria ótica distinta do
estigmatizado – com uma maior proximidade dos preconceitos e dos meios de controle da
sociedade, ele tende a perceber mais claramente as divisões e restrições sociais. Por isso, os
estigmatizados se organizam a partir do retorno de sua consciência aos momentos de crise e
sofrimento em suas vidas: sua identidade se baseia em eventos privados que são compartilhados por
todos do grupo e organizados por seus líderes (aqui, não existe melhor ilustração do que um famoso
lema do movimento feminista: “o pessoal é político”).
Esta identidade não se forma, entretanto, de forma imediata na cabeça dos integrantes destes
indivíduos: os grupos dos estigmatizados, bebendo da fonte de suas experiências pessoais,
informam-os e ajudam a formar a sua identidade 30. Neste sentido, a tentativa de se diferenciar parte
29 Em certa medida, pode ser dito que esta dificuldade se expressa na sua incapacidade de incorporar o habitus do
grupo pelo qual tenta se passar: enquanto os outros tem essa ação como “natural”, para ele ela não assim o é; isto
pode se dar tanto pela ausência de um disciplinamento em torno de certos princípios e valores – às vezes até mesmo
em um elemento simbólico, como a linguagem – quanto pela incapacidade física de realização destes atos.
30 Aqui, a discussão sobre a ideologia e a consciência de classe retorna novamente: como estes mesmos grupos
estigmatizados se juntam e se organizam? É simplesmente por conta de sua classificação dentro de um sistema de
representação definido? Ou pela sua identidade construída por um longo processo de interiorização da estrutura? Ou,
ainda, pela reversão discursiva realizada por um grupo determinado? Decerto, sem querer esgotar a discussão, pode-
se dizer que todos estes elementos se combinam – o que faz um ou outro prevalecer deve ser próprio, creio, não
apenas da característica de cada grupo, da conjuntura política ou dos meios institucionais de se desenvolver o
discurso, mas de todas estas esferas juntas.
de uma cultura comum na qual ambos os grupos opostos – normais e estigmatizados – buscam se
entender e transformar as suas relações (ou seja, essa diferenciação não apenas depende da – como
também estimula – a unidade entre os estigmatizados e os normais). Por isso, o alinhamento do ego
não se dá apenas em relação com os estigmatizados, mas também com aqueles que estão fora desta
comunidade – os normais. Na visão destes, o estigmatizado deve se aproximar do mundo
estabelecido por meio do entendimento que eles são normais também, exceto em um aspecto ou
outro da vida – há, aqui, uma negação discursiva da diferença. Para eles, o melhor modo de
combater o preconceito não é se opondo ao outro grupo, mas trazendo consigo uma “positividade”
que os faça se render aos estigmatizados e percam o preconceito – em certa medida, fazendo a
tradução a partir dos conceitos de Goffman, o estigmatizado deve buscar romper as barreiras da
ausência de intimidade para criar uma relação suficiente com todos que os transformem em
“informados” sobre a sua condição. Neste sentido, para este grupo, os estigmatizados não devem
proteger apenas a si mesmos, mas também aos normais, buscando-se evitar o máximo possível a
tensão e o atrito nas relações mistas.
Contudo, Goffman aponta como esta interpretação é uma distorção da realidade:
independentemente da boa vontade do estigmatizado, existem limites para a expectativa de
tolerância; para os normais, a tolerância não é algo que o estigmatizado deva exigir ou pressupor,
mas simplesmente receber, quando for o caso. Esta tolerância existe apenas em momentos dados,
com certos limites, dos quais o estigamatizado não pode ultrapassar – ele deve agir com parcimônia
e cuidado, para não chocar os normais. Sendo assim, o autor conclui que os “normais” realizam
uma “falsa aceitação” (phantom acceptance) capaz de produzir apenas uma “falsa normalidade”
(phantom normalcy). Um dos maiores problemas do estigma, então, é que ele não é definido pelo
agente, mas pela sociedade, o que o impede de desenvolver, por livre e espontânea vontade, uma
forma diferenciada de conduta nestes momentos mistos: aqui, a realidade, por mais que seja
“virtual” é concreta e sólida, inescapável ao indivíduo. Entretanto, não obstante a sua solidez, a
virtualidade desta representação se revela se se notar que o defeito não se resume apenas ao
estigmatizado, mas também ao normal: a diferença está na sua capacidade de encobrir e na própria
normatização promovida pela sociedade, além do nível de precariedade de suas relações
(constantemente precários x ocasionalmente precários). Uma prova desta situação mesma é o fato
de que todos os indivíduos tem conhecimento da linguagem e simbologia da relação entre
estigmatizados e normais – os olhares, os silêncios, as perguntas aceitas e interditas, etc. O que se
perde nesta comunicação, então, para os normais, é a forma das relações intragrupais, as quais, por
sua vez, são sempre reforçadas pelo próprio grupo e por alguns informados, os quais são os
responsáveis por comunicar a eles as regras de convívio e de estigmatização determinadas e que
precisam ser transformadas.
AS CONCEPÇÕES DA MODERNIDADE (PARTE I) 27, 28 e 29

A modernidade, dentro da sociologia, é vista tanto como elemento fundante da disciplina


quanto um dos principais objetos de análise. Não à toa, a discussão sobre as sociedades modernas e
pré-modernas é um dos principais temas que fizeram a sociologia gastar tinta no papel 31. Um
problema, entretanto, desta concepção, é que, embora existam concordâncias gerais em torno da
modernidade, diferentes teorias e análises foram feitas em torno deste fenômeno social. Para
muitos, de fato, a modernidade pode ser resumida nos seguintes pontos: complexificação das
relações sociais, isto é, aumento da estratificação social e de grupos distintos em contato; expansão
econômica, em especial da economia de mercado e das relações capitalistas; redução dos limites
entre tempo e espaço, permitindo-se o contato com diferentes grupos antes considerados isolados;
ascensão da racionalização, representada em especial pela lógica científica, e declínio da religião
como meio de explicação do mundo; revolução dos meios de produção da sociedade, representada
em especial pela revolução industrial; aumento do controle do homem sobre a naturez,
incorporando-a como um objeto a ser dominado pelo homem; surgimento do Estado moderno e
expansão da centralização do poder político; garantia de direitos privados e defesa da liberdade
individual; aumento da densidade demográfica, ainda mais diante do exôdo rural e urbanização;
dentro das cidades, expandem-se projetos técnicos de organização da produção e de controle dos
elementos naturais; expansão da liberdade artística e dos métodos estéticos, associando-os ao
ambiente da cidade e ao mercado.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador, vol. 2. Sugestões para uma teoria de processo civilizador,
p. 193-268.

“Planos e ações, impulsos emocionais e racionais de pessoas isoladas constantemente se entrelaçam


de modo ambicioso ou hostil. Esse tecido básico, resultante de muitos planos e ações isoladas,
pode dar origem a mudanças e modelos que nenhuma pessoa isolada planejou ou criou. Dessa
interdependência de pessoas surge uma ordem sui generis, uma ordem mais irresistível e mais forte
do que a vontade e a razão das pessoas isoladas que a compõem. É essa ordem de impulsos e
anseios humanos entrelaçados, essa ordem social, que determina o curso da mudança histórica, e
que subjaz ao processo civilizador” (p. 194).

Mas, ao mesmo tempo em que esse processo se dá de forma conjunta-e-dissociada das


consciências coletivas e individuais – isto é, por meio dela, mas sem ser por ela comandada 32 –, ele
também se dá a partir de uma tentativa de controle dos processos sociais e, assim, se desenvolve em
torno do conhecimento da humanidade sobre as suas próprias relações sociais: o outro não já é mais
aquele que simplesmente deve ser dominado ou exterminado fisicamente, mas sim um agente que
deve ser compreendido de tal forma a se prever suas ações e evitar as ameaças que ele pode trazer
dentro do esquema das relações sociais (pense-se, por exemplo, no nobre da sociedade de corte, que
passa a calcular a lealdade de seus vassalos e a embasar seu poder cada vez mais na sua distinção
social, de tal forma a evitar que outros grupos sociais possam confrontá-lo dentro da própria ordem
social).
Esta necessidade de controle social surge, portanto, de uma necessidade de articulação entre
um número maior de indivíduos e funções sociais (como um depende do outro, eles precisam atuar
de forma semelhante). Nesse sentido, os controles sociais precisam ser reformulados, indo desde o
primeiro deles (o da tradição e do mito, transmitidos pela pressoas interna e pessoal do grupo) até
suas formas mais avançadas (dentre elas, por exemplo, a coerção do Estado, impessoal, que exige
de cada um dos sujeitos o autocontrole na vida pública; ou, ainda, da educação escolar, que inculca
31 Dessa própria distinção, surgiram não apenas teoria concordantes com ela, mas também discordantes, como as pós-
coloniais. Entretanto, neste rascunho, não será desenvolvida esta parte, apenas me focarei nas diferentes teses sobre
a modernidade, de acordo com aqueles teóricos que concordam com a delimitação criada pelos fundadores da
sociologia.
32 Esta noção talvez se aproxime mais da noção psicanálitica do inconsciente.
nos sujeitos esses elementos da própria disciplina).
Por isso, o Estado, centralizado a partir das disputas entre nobres para a aquisição de
monopólio de poder, tende a inculcar uma “segunda natureza” nos indivíduos, uma vez que ele
exige um autocontrole com um nível maior de automatismo (pense-se, por exemplo, no caso do
pagamento de impostos, o qual não poderia ser efetivamente coletado se a cada ano fossem
organizados protestos e lutas contra ele), graças à concentração da força física (o que contém a
revolta e a oposição) e a estabilidade das instituições políticas (o que possibilita a naturalização do
fato). Sendo assim, o monopólio da força leva à possibilidade da pacificação – a qual, por sua vez,
garante que o poder se exerça não apenas pela força, mas também pelo próprio autocontrole dos
indivíduos (disciplina). Esta pacificação leva à mudança da relação do homem moderno com os
seus desejos: enquanto o guerreiro pré-moderno lidava com a liberdade total de fruição de suas
conquistas – sem se preocupar com a acumulação e com o ascetismo –, ele também tinha que
sustentar a ameaça real de completa destruição de seu corpo, uma vez que a ausência do monopólio
da violência leva à imprevisibilidade da punição implicada a ele sobre sua derrota; o homem
moderno, por outro lado, ao controlar os seus desejos e sua satisfação, têm sua condição física
assegurada e protegida33.
Sendo assim, para Elias, o elemento principal desta modernidade não é simplesmente a
noção de “racionalização”, cunhada por Weber, mas também da ascensão da repressão e do
superego moderno sobre os indivíduos: não se trata apenas do controle do mundo e de si em torno
da acumulação, mas do controle de si por meio da pressão de outros 34. Este processo civilizador,
então, por mais que ele tenha sido fruto do desenvolvimento histórico da sociedade mediatizado
pelos interesses individuais de cada um inserido neste fenômeno, tende possuir um caráter ambíguo
na vida das pessoas: de um lado, traz elementos positivos, como a própria segurança e
previsibilidade, mas, de outro, cria e reproduz sérios problemas – o autocontrole pode ser pesado
demais, tanto a tal nível em que não pode ser realizado quanto a tal ponto de expandir o sofrimento
individual.
“O que empresata ao processo civilizador no Ocidente seu caráter especial e excepcional é o
fato de que, aqui, a divisão de funções atingiu um nível, os monopólios de força uma solidez, a
interdependência e a competição uma extensão, tanto em termos de espaço físico quanto de pessoas
envolvidas, que não tiveram iguais na história mundial” (p. 207) → Processo civilizador não é um
simples processo cultural, autônomo, mas resultado dentro das transformações econômicas pelas
quais essas economias passaram. Além disso, a própria relação entre as classes pode ser visto como
um dos principais pontos do avanço deste processo civilizador, uma vez que “pequenos grupos

33 Aqui, novamente, as próprias ideias psicanáliticas ressurgem: o homem moderno, por sublimar seu desejo, não deixa
de o satisfazer, mas o faz de forma diferenciada, controlada. Não obstante, de fato, a repressão aja constantemente
sobre ele – impedindo-o de desenvolver seus sentidos, numa dessensibilização dos órgãos vitais –, ela se baseia
numa promessa de prazer futuro. Ou seja, a dinâmica libidinal se transforma, mas não extingue a própria libido.
Outros elementos podem ser levantados a partir de Freud e de Marcuse, em especial a questão da expansão do
instinto de morte – decorrente do aumento da repressão –, mas Elias não parece se atentar (pelo menos não n'O
Processo Civilizador) a eles – este processo ser simplesmente fruto da expansão da interdependência entre os
homens e a ampliação de suas funções sociais, numa mera adaptação da conduta humana, cujas vítimas não passam
daqueles que não conseguiram se adaptar a esta nova ordem social. O autor, por outro lado, reconhece a ascensão
das psicoses modernas e o caráter social da loucura.
34 Na concepção weberiana, pode-se dizer, em comparação à noção de Elias, existe um foco exagerado na
transformação da ação do indivíduo pela própria transformação das ideias: o protestantismo é quem causa esta
ruptura na racionalidade medieval; para Elias, pelo contrário, não é o protestantismo que o faz, mas a própria
necessidade dos indivíduos de se adaptarem à nova condição de existência deles, na qual existia um controle da
violência e as funções se expandiam, aumentando as relações de interdependência. Com isso, pode-se dizer que o
superego moderno surge não como um princípio decorrente de revoluções culturais marcantes, mas como um longo
processo de controle dos indivíduos entre si, que se desenvolve a partir destas condições faladas anteriormente. A
concepção histórica de Elias será vista mais à frente, mas pode-se adiantar que, para ele, o processo civilizador não é
simplesmente “criado” pelos grupos da nobreza, mas iniciados por alguns destes, intensificado diante de disputas de
classe e consolidado com a assimilação das classes de baixo ao Estado. Ou seja, aqui, o superego não é
simplesmente uma noção cultural isolada, mas, mais exatamente, é o outro, que exige daqueles indivíduos e grupos
uma ação coerente com a sua situação, de tal forma a evitar seu extermínio e fim social.
dirigentes” são afetados por essa transformação e a passam consciente e inconscientemente para as
outras classes. Essas classes, então, pela influência e dependência delas entre si, tendem a
reproduzir o processo civilizador – não num processo inteiramente consciente, como já dito, mas
como fruto de relações entre as classes (táticas e estratégias de poder) associadas às necessidades
econômicas e sociais nas quais elas se envolvem35. Isto não significa, entretanto, que baste o
simples autocontrole pela ameaça de uma classe para existir o “processo civilizador”: por ser um
processo cultural, também, ele depende da própria vontade e consciência do indivíduo que incopora
o esforço de autocontrole em seu cotidiano36.
Outro ponto importante para a consolidação deste processo civilizador na sociedade
ocidental é o fim da própria ordem estamental e a ascensão da sociedade de classes: com isso,
aumenta não apenas a interdependência, pela relação econômica capitalista, mas também a
necessidade de controle das “classes de cima”, uma vez que elas passam a se engajar no trabalho, o
que não faziam anteriormente (apenas os “de baixo” trabalhavam). Por isso, dentro do esquema de
classes, ele se expande por dois motivos: primeiro, pelo afastamento da dominação que estas
exercem a partir da força, a qual se concentra na mão do Estado; e, segundo, para a garantia da
distinção das classes de cima, as quais já não podem mais se distinguir pelo afastamento do trabalho
(este caso se ilustra em especial na sociedade de corte, a qual seria fruto de uma aproximação entre
burguesia e monarquia). Sendo assim, o elemento principal destas relações de classe é a
combinação entre a ameaça dos outros grupos e a expansão do autocontrole para manter a sua
posição social: já que as disputas não se davam mais a partir do meio militar, precisa-se se adequar
às novas condições políticas, as quais exigem dos indivíduos uma cada vez maior introjeção deste
“processo civilizador” em si mesmo37.
Sendo assim, os membros da corte radicalizaram e ajudaram a desenvolver os modelos de
conduta do processo civilizatório ocidental por conta de sua posição nesta sociedade: eles possuíam
uma função social, mas não uma posição profissional/econômica; eles viviam não da produção
econômica, como a burguesia, mas da própria regulação social, mediatizados pelo avanço do Estado
absolutista. Ou seja, no ocidente, há uma origem política neste processo, uma vez que ele surge
primeiro da relação do soberano com seus vassalos, numa relação privada, cujo controle marca a
origem da contenção das emoções. É aqui que se vê, pela primeira vez, a transição da legitimidade
pela força para uma dominação calcada em outros âmbitos (político, cultural e econômico), possível
apenas pelo controle das emoções – o qual, por sua vez, depende da centralização do poder (ainda
mais da contenção da força física e monopólio da força militar): quando os guerreiros passam a
depender da defesa do soberano, eles passam a conter suas pulsões e vontades e se sujeitam às
vontades deste (reconhecimento do outro pela honra e interdependência de suas ações – o que
determina a sua relação não é mais a força, mas a legitimidade das suas relações)38.

35 De fato, aqui, Elias, parece se aproximar de uma noção estruturalista dialética, na qual os sujeitos agem sobre um
terreno dado, mas também construído por eles. A diferença é que, em certa medida, podemos compreender estas
relações não como simplesmente “adaptações à economia”, mas sim como introjeções dos indivíduos e grupos sobre
sua situação social – algo que, talvez, Bourdieu tenha se inspirado parcialmente em sua leitura de Elias.
36 Mais ou menos naquilo que, weberianamente, convenciona-se chamar de “rotinização” de uma prática social. Ou
seja, não basta, no processo civilizador, que se coerça o indivíduo a segui-lo, numa pura relação de força física: ele
precisa se convencer deste fato, internalizar em si mesma uma prática e ética que o leve a seguir estas condições.
Esta noção, é claro, se distancia da perspectiva durkheimiana porque, por mais que considere a tradição e a cultura
(elementos consideráveis do pensamento do sociólogo francês), tende a focar-se no indivíduo e em sua relação com
o grupo social; por isso, a noção de ação social, para Weber, parece ser bastante clara na obra de Elias.
37 Esta questão explicaria, por exemplo, a ascensão do espírito do capitalismo pata além de sua lógica religiosa,
chegando-se a atingir todos os indivíduos da sociedade e repassar a religião para o âmbito privado. As classes baixas
não possuiriam esta vontade inicialmente, mas, diante da disputa do poder, passam a se interesser pela acumulação e
incorporam este autocontrole à sua cultura.
38 Aqui, com certeza, pode-se traçar um paralelo com Giddens e sua proposição de que, para se ter a ascensão da
modernidade, depende-se da confiança entre os agentes da modernidade. De acordo com ele, o borrar dos limites
entre tempo e espaço, assim como a dominação da natureza pela tecnologia, levou, na modernidade, à ascensão de
novas relações e interações dos indivíduos, antes impossíveis nos tempos pré-modernos: passa-se a conviver com
mais pessoas, das quais não se pode adquirir um longo e extenso conhecimento decorrente da convivência e nem se
depreender proximidade pelas relações familiares. Pelo contrário, os sujeitos vivem sempre diante desta tensão de
Mas, se este grupo tendeu a forçar o processo civilizatório, este também se fortaleceu diante
de pressões sociais específicas que impulsionaram a nobreza a transitar de sua esfera guerreira para
a da corte: a desvalorização da moeda, por exemplo, pode ser vita como um ponto importante. O
aumento da dependência da moeda e o aproveitamento da burguesia e do Estado para sua
acumulação fizeram a nobreza ter que se adaptar às novas condições de poder: enquanto a nobreza
guerreira não aproveitou este momento, viu suas riquezas acumuladas perderem valor, e, no mesmo
diapasão, com a popularidade e necessidade da moeda, passou a depender mais desta para
reproduzir sua existência, e, com isso, precisou se subordinar aos costumes e exigências das outras
classes. Pode-se ver este ponto na seguinte citação
“A nobreza, ou pelo menos partes dela, precisava do rei porque, com a monopolização em
andamento, a função de guerreiro livre estava desaparecendo da sociedade; e porque, com a
crescente integração monetária, a produção de suas propriedades – comparada com os padrões da
burguesia em ascensão – não lhes permitia mais do que uma vida medíocre e, muitas, nem mesmo
isso, e certamente não uma existência social que pudesse manter o prestígio da nobreza como classe
superior contra a força sempre maior da burguesia. Sob essa presão, ingressou na corte uma parte da
nobreza – quem quer que pudesse ter a esperança de encontrar um lugar perto do príncipe –, caindo,
portanto, na dependênca direta do rei. Só a vida na corte abria a cada nobre o acesso às
oportunidades econômicas e ao prestígio que poderiam justificar suas reivindicações a uma
existência provadamente de classe superior” (p. 222)
Pode-se dizer, então, que foi a conjunção da busca pela subsistência econômica e a
manutenção de seu prestígio que fez a classe guerreira se associar à corte: não foi fruto de um mero
interesse econômico – se assim o fosse, ela tornar-se-ia parte da burguesia – e nem de pura busca
pela manutenção de seu prestígio e de seu modo de vida – que a faria se extinguir –, mas uma
combinação estratégica entre as duas esferas. Ou seja, uma classe nunca age, para Elias, pensando
apenas em seus princípios morais ou na economia, mas sim de acordo com suas possibilidades e
vontades históricas – a manutenção dos privilégios da aristocracia, por exemplo, foi uma opção para
a burguesia na Alemanha, o que não foi o caso da inglesa e francesa, o que fez com que estes grupos
tivessem diferenças históricas em seus modelos de capitalismo. Este é um posicionamento
claramente oposto ao marxismo vulgar.
Um dos elementos principais da “sociedade de corte” e sua mudança na psicologia
individual é que nela “uma estimativa do 'valor' de cada indivíduo está continuamente sendo feita
(…) na estima que o rei tem por ele, na influência de que goza junto aos poderosos, na sua
importância no jogo das coteries da corte” (p. 226). Sendo assim, em oposição ao sujeito numa
sociedade na qual o processo civilizador não se desenvolveu – o qual confunde qualquer fato ou
acontecimento a uma posição com relação a si próprio (se briga ou se chove, é tudo uma reação à
sua pessoa, não um fato exterior e independente à sua própria existência) –, o sujeito moderno
precisa entender essas dinâmicas relacionais e determinar um modo de garantir seus objetivos.
Numa sociedade de corte, isto se dá por meio da leitura do outro e do seguimento às regras próprias
deste jogo e desta relação, o que faz, portanto, com que, em comparação ao homem pré-moderno, o
sujeito precise a todo momento vigiar suas atitudes e dos outros, de tal forma a garantir a
previsibilidade dos acontecimentos que sobre ele cairão.
Em uma palavra, a ação humana e sua leitura de mundo se tornam “psicologizadas”, isto é,
“a maneira de ver as coisas e as pessoas (…) se torna mais neutra na esfera afetiva (…) a 'imagem
do mundo' vai se tornando menos diretamente determinada pelos desejos e receios humanos, e se
orientando para o que chamamos de 'experiência' ou para o 'empírico', para sequências dotadas de

confiar ou não confiar num estranho; na modernidade, podemos dizer, esta tensão é normalizada e controlada pelo
próprio processo civilizador. Ao regular os tipos de condutas realizadas pelos agentes, pretende-se evitar que estas
tensões se aflorem ainda mais e que os interlocutores entrem em conflito; por isso que se adotam novas tradições e
costumes, como a utilização da moeda (um ponto extremamente importante para Elias), regras gerais de interação
social – como indicações de boas medidas e regras de etiqueta, iniciadas na corte –, etc., as quais acabam servindo
para, justamente, aproximar e distanciar indivíduos desconhecidos que, por conta de sua longa teia de
interdependência, precisam um do outro em seu cotidiano, mas não dispõem de tempo e condições de estabelecer
um vínculo pessoal que garanta a confiança necessária para a prestação de tais serviços.
regularidades imanentes” (p. 228).
Se analisarmos mais apropriadamenete essa transformação, percerber-se-á que o que se
transformou não foi algo externo aos indivíduos, mas a maneira como as pessoas se ligam uma às
outras; por isso, não se pode entender estas mudanças como próprias da estrutura ou dos fatos
sociais, mas sim do relacionamento entre os indivíduos. Por isso, para Elias, cabe apenas falar em
“racionalização” e não em “razão”: as ideias não existem separadas dos indivíduos, mas sim dentro
e por meio de suas relações sociais. Com isso, pode-se notar que as restrições e pulsões são
constantes, mas o formato e intensidade destas se modifica de acordo com o seu tempo histórico e
influências sociais – ou seja, um operário não possui a mesma regulação destes (racionalização) que
um burguês. Esta mesma racionalização se transforma dinte dos meios de aquisição de prestígio e
da necessidade de adaptação das ações sociais para garantir a própria sobrevivência. Por isso, as
mudanças provocadas pelo processo civilizatório são mais profundas do que a simples estrutura e
ideologia, uma vez que ele modifica a própria forma de ser no mundo – quer dizer, vai-se além
simplesmente do conteúdo do conhecimento, para a sua atuação tanto no nível consciente quanto
inconsciente39.
Ou seja, para Elias, “o que importa, o que determina a conduta, são os equilíbrios e conflitos
entre as pulsões maleáveis e os controles construídos sobre as pulsões maleáveis e os controles
construídos sobre as pulsões” (p. 237), uma vez que a divisão entre o consciente e inconsciente
percebida por Freud não é algo natural da própria humanidade, mas, antes, resultado de um
processo histórico de “civilização”. Sendo assim, “são elas, essas estruturas dentro do homem entre
as paixões e sentimentos controlados e as agências controladoras construídas, cuja estrutura muda
no curso de um processo civilizador, de acordo com a estrutura mutável dos relacionamentos entre
seres humanos individuais na socieda em geral, que têm importância” (p. 237). Um dos elementos
que formam esta psique nos tempos modernos – e que se refletem claramente nas relações sociais –,
é a ascensão da vergonha e da repugância. Aquela, por exemplo, surge apenas quanto o indivíduo
passa a introjetar em si mesmo a pressão social e organiza suas atitudes a partir do que ele imagina
que os outros esperam dele, dentro da lógica social de seu tempo; quer dizer, ela tem uma
correlação com a ascensão do superego (e, assim, com a frustração por precisar se disciplinar).
Enquanto isso, o “embaraço é o desagrado ou a ansiedade que surgem quando outra pessoa ameaça
ignorar, ou ignora, proibições da sociedade representadas pelo próprio superego da pessoa” (p. 245).
Estes fenômenos, então, se correlacionam com a redução do medo físico e aumento da pressão
introjetada pelo próprio indivíduo. O processo civilizador não afeta, entretanto, apenas a relação dos
homens entre si: ele também afeta a sua relação com a própria natureza. Esta já não é mais vista
como um ambiente de perigo, mas de produção econômica e de lazer e prazer estético (esta última é
propiciada pela separação do homem da natureza, ao se mudar para a cidade).
Se pudessemos resumir, em linhas gerais, esta proposta de Elias, poderíamos dizer que ela se

39 É interessante este posicionamento porque tenta-se rejeitar o marxismo por meio da interpretação freudiana. Em
certa medida, pode-se dizer que é fruto de um olhar crítico do discurso do iluminismo, que vê o homem como uma
fonte de racionalidade e conhecimento, como se ele não fosse determinado também por elementos externos a essa
razão. Aqui, o que se transforma não é apenas a condição do conhecimento (como na perspectiva hegeliana e
marxista), mas também a própria forma e lógica da vida humana, sua gestão de seus gostos, desejos, controle, etc.
Esta sugestão sobre o marxismo, entretanto, pode ser questionada a partir dos Manuscritos Econômico-Filosóficos,
nos quais Marx deixa bastante claro como o próprio modo de produção capitalista controla o desejo e biologia
humanas de tal forma a reduzir sua capacidade de percepção e entendimento da realidade. Diferentemente da
perspectiva freudiana, para Marx a questão não se encontra no âmbito da civilização – como se esta naturalmente
reprimisse a pulsão e libidos humanas –, mas sim nos efeitos de um modo de produção sobre a ontologia humana.
Por isso, em certa medida, pode-se dizer que, mesmo negando a noção da ideologia, contraditoriamente, a proposta
de Elias se aproxima de uma interpretação mais “antiga” de Marx; entretanto, uma boa análise diria que, na verdade,
o que acontece não é uma mudança do pensamento marxista (que rebaixa o seu nível de análise), mas sim um erro
de interpretação de Elias, que leva em conta a ideologia apenas como uma opinião intelectual – e não como uma
“visão de mundo”, como ele praticamente propõe. Na verdade, se analisarmos mais de perto, a proposta marxiana é
mais completa do que a freudiana: não se trata apenas do controle das pulsões, mas da própria capacidade de
perceber o mundo; aqui, o que marca a existência humana não é a gestão do desejo, mas a superação destes a um
nível superior (algo que Freud também já propunha, por meio da sublimação, mas percebia existir problemas nesse
processo – não deixa de existir, na sublimação, uma certa repressão da libido).
dá numa análise macrossociológica (já que procura entender as variações históricas na longa
duração e suas razões para seguir esse caminho) e psicogenética, na qual se busca compreender as
tensões sociais que foram a psique dos grupos sócio-históricos. Dentro das relações de classe, o que
marca a sua relação, para Elias, não é simplesmente o poder econômico ou político-militar, mas sim
a criação e gestão de distinções que não existiam anteriormente e que passam a tomar um sentido
cada vez mais importante na relação entre esses grupos. É nesse sentido que a nobreza desenvolve
novos costumes sociais, para se distinguir da burguesia: “Tudo o que fere seu patamar de embaraço
cheira a burguesia, é socialmente inferior e, da mesma forma, tudo que é burguês afeta seu patamar
de embaraço. É a necessidade de distinguir-se de tudo que é burguês que aguça essa sensibilidade.
É a estrutura específica da vida na corte (…) que fornece ocasião para o refinamento do gosto” (p.
249). Quer dizer, não seria possível essa transição da nobreza guerreira para a cortesã sem a pressão
de baixo para cima, sem a ameaça da burguesia, além, é claro, da interdependência entre essas
classes – o que fez com que este processo civilizador se expandisse para além da corte. Não
obstante este fato, esse processo não pode ser visto apenas como fruto da nobreza, uma vez que,
com o tempo, ele também foi sendo polido e desenvolvido pela própria burguesia: a cisão da vida
profissional e privada – fruto dos tempos burgueses e do aumento do autocontrole (sociedade de
corte não exigia o mesmo controle na produção, a qual, na sociedade burguesa, exigia muito mais
do sujeito) – é um caso claro deste desenvolvimento. Neste sentido, o processo civilizador se
reproduz e se reformula dentro das próprias classes sociais, passando-se desde uma fase de
“colonização” e assimilação (na qual adota-se os costumes das classes superiores) até outra, de
repulsão, diferenciação ou emancipação (na qual se reconstrói os valores e métodos deste
autocontrole40)

40 Este processo se dá na relação entre burguesia e nobreza, burguesia e proletariado, etc. É justamente esta base de
diferenciação que fornecerá a base da distinção entre classes estudada por Bourdieu. Aqui, o interessante é que a
prática social nunca se dá separada dos próprios símbolos, noções ideológicas das classes sociais, mas esta também
acaba se resvalando a um nível mais profundo, transformando-se o próprio superego dos indivíduos: numa análise
weberiana, por exemplo, podemos associar a “revolução burguesa”, ou melhor, o surgimento da ética protestanto,
como uma mudança no superego, que passa a exigir do ego o trabalho e o ascetismo, em busca da acumulação. Foi
com essa questão em mente, também, que Marcuse pauta toda a sua produção e análise teórica das lutas de classe –
para ele, o stalinismo falha justamente nesse sentido, ao não associar a revolução do modo de produção com a
transformação da gestão dos prazeres na sociedade.
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade.

Modernidade como um “estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na


Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua
influência” (p. 8) Sendo assim, Giddens expressa sua oposição à ideia de pós-modernidade:
“estamos alcançando um período em que as consequências da modernidade stão se tornando mais
radicalizadas e universalizadas do que antes” (p. 9). Esta noção se dá a partir de uma “interpretação
'descontinuísta' do desenvolvimento social moderno”, isto é, de que a modernidade traz elementos
novos e únicos para as relações sociais, opostos às tendências pré-modernas.
Isto não quer dizer, entretanto, que se deva interpretar a modernidade como fruto de um
desenvolvimento mecânico e necessário da humanidade (como fazem as teorias evolucionistas); o
que se quer dizer, apenas, é que existem diferenças entre uma e outra, mas não uma relação de
dominação e/ou superioridade da modernidade em comparação com outros estilos tradicionais.
As principais descontitnuidades da modernidade são: a) o ritmo da mudança (as relações
sociais, tecnologia, etc., se transformam mais rapidamente); b) a extensão desse fenômeno (ela
atinge praticamente todas as áreas do globo); e c) a natureza diferenciada das instituições modernas
(elas são ou específicas a este período – sem precedentes na história – ou são ampliadas em níveis
nunca visto antes – como a urbanização, por exemplo)
Com o avanço das descontinuidades da modernidade – e, com ela, das ameaças à existência
social, como a bomba atômica –, aumentam-se os riscos e ameaças de destruição da sociedade. Ao
mesmo tempo em que, na modernidade, expandem-se vários elementos positivos (aumento da
produção, segurança física no Estado nacional, redução das guerras civis, etc.), outros negativos
surgem à tona (ameaça ambiental, p. e.), o que leva à interpretação de que suas descontinuidades
trazem uma “faca de dois gumes”.
A modernidade não se desenvolve a partir de somente uma instituição, mas de várias destas,
sendo, portanto, multidimensional no âmbito das instituições; ela traz à tona a questão do
distanciamento tempo-espaço, em especial a partir da organização do Estado moderno, que passa a
atuar em um espaço delimitado; e, por fim, a sociologia, numa tentativa de compreender este
processo, não apenas estuda e compreende o seu objeto, como também é compreendida e
reformulada por ele, o que significa que ela não pode ser acumulativa no mesmo sentido que as
ciências naturais. Sendo assim, “o dinamismo da modernidade deriva da separação do tempo e do
espaço e de sua recombinação em formas que permitem o 'zoneamento' tempo-espacial preciso da
vida social; do desencaixe dos sistemas sociais (um fenômeno intimamente vinculado aos fatores
envolvidos na separação tempo-espaço); e da ordenação e reordenação reflexiva das relações
sociais à luz das contínuas entradas (inputs) de conhecimento afetando as ações dos indivíduos e
grupos” (p. 21).
Na dimensão temporal, a modernidade é realmente revolucionária: é ela quem cria o tempo
abstrato, isto é, separado do espaço, graças à popularização do relógio mecânico. Se o tempo se
esvazia, isto também acontece com o espaço: este se dissocia do “lugar” (cenário físico da atividade
social), assumindo formas externas a ele e se associando à realidade não pela sua imagem e forma,
mas função e posição geográfica (pense-se, por exemplo, no endereço de um estabelecimento – este
é o esvaziamento do espaço, transformação dele em um espaço que não é lugar – ou nas
coordenadas geográficas). Sendo assim, a modernidade, ao mesmo tempo, causa e pressupõe o
desencaixe entre tempo e espaço: já não se depende das práticas, conhecimentos e tradições locais
para se dominar esta relação, o que, então, abre portas para a organização racional – seja ela da
produção, de instituições, etc. –, isto é, para a gestão dos fenômenos sociais sem se basear numa
lógica tradicionalista, imiscuída ao sujeito, mas sim a uma objetividade externa a ele (técnicas de
mensuração da realidade).
Ou seja, o desencaixe se trata do “deslocamento das relações sociais de contextos locais de
interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço” (p. 24). Este
processo se dá por meio de diferentes mecanismos, mas pode-se destacar em especial dois exemplos
especiais: a criação de fichas simbólicas (meios de intercâmbio abstratos que unem indivíduos de
diferentes origens, sem se depender da relação individual estabelecida entre os interlocutores,
incluindo-se, aqui, o dinheiro e meios de legitimação política – um distintivo policial pode ser um
exemplo41); e o estabelecimento de sistemas peritos (“sistemas de excelência técnica ou profissional
que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje” [p. 30], nos
quais se deposita confiança de que se seguirá uma normalidade e regularidade dos fenômenos
sociais e naturais). Como se pode ver, a cola que liga esses sistemas de desencaixe, de separação
entre tempo e espaço, é a confiança, reformulada nos tempos modernos.
Ela, diferentemente da fé, “pressupõe a consciência das circunstâncias de risco” (p. 33), e
que aceita estes riscos por conta do cálculo destes – ao invés de simplesmente acreditar no fato
como culpa de algo exterior a ele, o indivíduo associa a falha de um processo (ou o seu próprio
sucesso) como resultado de uma escolha racional feita por ele. Por isso, um dos aspectos marcantes
desta confiança é que ela tem a “compreensão do fato de que a maioria das contingências que
afetam a atividade humana são humanamente criadas, e não meramente dadas por Deus ou pela
natureza” (p. 34). Ela pode ser definida como “crença na credibilidade de uma pessoa ou sistema,
tendo em vista um dado conjunto de resultados ou eventos, em que essa crença expressa uma fé na
probidade ou amor de um outro, ou na correção de princípios abstratos (conhecimento técnico)” (p.
36).
Dentre as características principais dessa confiança, pode-se observar: a) só se confia porque
não se conhece suficientemente sobre o mecanismo utilizado (sempre há alguma dúvida sobre essa
fé); b) confia-se por causa dos atributos daqueles em quem se apoia (não se faz ideia clara dos
riscos, apenas se tem acesso aos sujeitos que estes administram); c) a confiança deriva da fé no
outro ou no sistema; d) a confiança não deriva da moralidade individual/coletiva, mas sim na
confiança do conhecimento em princípios dos quais se desconhece.; e) tem-se consciência de que a
atividade humana é criada pelo próprio homem e de que os efeitos da modernidade levam a estas
ações terem efeitos muito mais intensos e inovadores do que os esperados antigamente – assim, a
ideia da existência de um destino (fortuna) é substituída pela noção de “risco”; f) risco não é o
mesmo que o perigo, mesmo que o pressuponha: ele se entrelaça à confiança e se baseia nesta para
ser levado a cabo mesmo assim; g) mas isto não quer dizer que não exista segurança (“equilíbrio de
confiança e risco aceitável” [p. 37]) nestas relações, mas simplesmente que elas ainda assim se dão
dentro da possibilidade do perigo.
Na modernidade, por romper com a própria tradição, encontra-se um outro método de
legitimar seus mecanismos: ela já não se baseia na manutenção do passado, na honra das gerações e
dos símbolos de um povo; ela depende da sua própria reflexividade, isto é, do exame e análise das
práticas sociais, alterando-se seu caráter de acordo com esta avaliação realizada pelos próprios
indivíduos inseridos na modernidade. Não se deve interpretar disso que em outras sociedades não se
avalie e reveja a própria ação, mas apenas que “somente na era modernidade a revisão da
convenção é radicalizada para se aplicar (em princípio) a todos os aspectos da vida humana,
inclusive à intervenção tecnológica no mundo material” (p. 39). Este fato causa uma constante
reflexão e transformação do sistema social, o que dificulta a própria produção sociológica.
Sendo assim, dentro da modernidade, existem alguns fatores que impedem a efetividade do
conhecimento sociológico na transformação das relações sociais: a) o poder diferencial, isto é, o
fato de que o conhecimento social não é distribuído homogeneamente; b) as mudanças do
conhecimento são afetadas pela mudança de valores; c) a insuficiência do conhecimento sociológico
para prever todas as circunstâncias de sua implementação. Enfim, o grande problema da produção
sociológica e sua intervenção na realidade é que “o conhecimento reivindicado por observadores
peritos (em parte e de maneiras muito variadas) reúne-se a seu objeto, deste modo (…) alterando-
o”, o que não acontece nas ciências naturais.

41 Estas fichas simbólicas cumprem um papel importante na criação da coesão social em uma sociedade tão
diferenciada como a moderna: não apenas criam legitimidade, como também – em especial no caso do dinheiro –
um “meio de vincular tempo-espaço associando instantaneidade e adiamento, presença e ausência” (p. 28). Como se
verá à frente, a base deles se dá na criação de uma confiança do indivíduo moderno (por mais artificial que ela seja)
nestes sistemas e na condução dos indivíduos em torno destas regras e princípios pressupostos por estes dispositivos.
AS DIMENSÕES INSTITUCIONAIS DA MODERNIDADE

A modernidade se confunde com o capitalismo e com o industrialismo, mas, na verdade,


estas classificações não passam de subtipos de sociedades modernas. A economia capitalista é uma
das instituições fundamentais da modernidade, sendo que ela se define por: a) sua competitividade
leva à transformação econômica e tecnológica constante; b) separação entre economia e política,
com aquela obtendo considerável autonomia; c) há uma despossessão da propriedade na maior parte
da sociedade; d) a autonomia do Estado é condicionada pela acumulação de capital. Além das
relações econômicas, o capitalismo precisa de condições administrativas bem definidas, que se
materializam no Estado moderno, que age sobre um território determinado. Contudo, não basta
apenas a existência do Estado: também se precisa de um aparato de vigilância que se constitui
como uma das principais mudanças sociais com o advento da modernidade. E, por fim, o controle
dos meios da violência, por meio do Estado e do aparato de vigilância, é a última condição das
dimensões institucionais da modernidade.
O industrialismo, fortalecido durante a modernidade, se dá pela criação constante de novas
máquinas e forças produtivas, num ambiente completamente humanizado e repleto dos efeitos da
ação humana – aqui, crer numa “ordem natural” torna-se algo cada vez mais difícil, uma vez que
existe uma certa cisão entre homem e natureza. No âmbito político, a dominação política é separada
da econômica, mesmo que elas se relacionem: cada uma delas sendo gerida autonomamente (a
dominação econômica se dá pela separação do trabalhador da propriedade dos meios de produção e
a política pela vigilância e concentração da violência nas mãos do Estado). Neste contexto, a
globalização surge como um fenômeno social marcado pela “intensificação das relações sociais em
escala mundial, que ligam localidades distantes de tal maneira que acontecimentos locais são
modelados por eventos ocorrendo a muitas milhas de distância e vice-versa”, o que quer dizer,
obviamente, que ela é fruto da modernidade.

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