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palavras-fantasmas
Como o sonho e a arte podem nos ajudar a acessar a realidade e a
romper a paralisia
Como as palavras podem voltar a dizer no Brasil? A atual crise é também uma crise de
palavra, como já escrevi aqui. No sentido de que o movimento das palavras está
interditado, como cartas enviadas que não chegam ao seu destinatário. Em parte isso
se deve ao fato de que o absurdo tece o cotidiano, como a realidade brasileira não se
cansa de provar. E o absurdo se alarga um pouco mais a cada dia. O que se chama de
por redes sociais, as palavras são apenas repetições que voltam para si mesmas. Dizer
Penso que em parte isso acontece porque priorizamos uma forma de acesso à
excelência. Damos a ela o status de “verdade” – mesmo quando nos debatemos com a
Suspeito que seja necessário voltar a ampliar as formas de acesso à realidade, para
para que sejamos capazes de romper essa forma de prisão que é a palavra que não diz
– e que volta para cada um depois de um percurso vazio, volta para cada um como um
condenação ao absurdo.
O sonho e a arte são dois caminhos de resgate da palavra. O sonho não só como via de
acesso à realidade e como elaboração do real, mas como realidade também. A arte
não só como via de acesso à realidade e como elaboração e reinvenção do real, mas
Para pensar sobre isso, trago dois exemplos que me parecem bastante extraordinários.
pela Três Estrelas: Sonhos no Terceiro Reich, da jornalista alemã de origem judia
Amplo Direito de Defesa de Rafael Braga, promovida pelo Instituto Tomie Ohtake, de
colaborou para criar essa exposição que busca romper a barreira do absurdo que é a
prisão de Rafael Braga, detido nas manifestações de junho de 2013 por portar dois
Primeiro, o sonho. Como este, que teve um médico de 45 anos depois de ter vivido um
ano sob o regime do Terceiro Reich, na Alemanha. Numa noite de 1934, ele assim
sonhou: “Perto das nove da noite, depois de minhas consultas, quando quero me
esticar calmamente no sofá, com um livro sobre Matthias Grünewald, minha sala e
meu apartamento ficam de repente sem paredes. Olho apavorado ao meu redor e, até
onde meus olhos conseguem alcançar, os apartamentos estão todos sem paredes.
1939. Antes, portanto, do início da Segunda Guerra Mundial. “Sonhos poderiam ajudar
“Meus exemplos mais elucidativos vêm dos primeiros tempos de um regime ainda
disfarçado.”
Como também ela estava sob o regime de opressão, teve que camuflar em suas
anotações os sonhos obtidos por meio de relatos orais. Em vez de partido, por
Hitler, Göring e Goebbels. Prisão era disfarçada como “gripe”. No início, escondeu
esses relatos atrás de livros, numa ampla biblioteca. Depois, passou a enviá-los como
cartas, a endereços diversos de diferentes países. Só foi voltar a acessá-los quando ela
Christian Dunker chama a atenção no prefácio para algo que me parece fundamental
também para pensar sobre o que chamo de crise da palavra: “Os sonhos são parte da
realidade factual. Eles não provêm de outra realidade, que seria então qualificada
como ficcional ou virtual. Sonhos são uma experiência real em si mesma. (...) O real
o que é. Mas estamos acostumados demais a pensar o real apenas como os fatos
positivos, presentes e atuais. Contra isso o sonho nos apresenta uma curiosa
presente”.
O médico que sonha com a vida sem paredes, imposta por um ato burocrático do
Estado totalitário, ao anotar seu sonho noturno encontrou o fato ocorrido na vigília
porque eu não havia içado a bandeira. Tranquilizei-o e lhe servi um aguardente, mas
pensei: ‘Nas minhas quatro paredes, nas minhas quatro paredes...’ (...) Apesar de eu
não ser uma pessoa política, todos os ingredientes do meu sonho e das minhas
médico ainda diria: “Já que os apartamentos se tornaram públicos, vou viver no fundo
território do inconsciente onde os sonhos são produzidos a partir dos vestígios do dia,
consciente. Também por isso em algumas culturas os sonhos carregam algum poder
premonitório. Mas o que aparece é aquilo que o indivíduo intui ou percebe no seu
cotidiano, mas esse saber sobre a realidade ainda não emergiu à consciência.
O horror totalitário irrompe nestes sonhos coletados, como aponta aquela que os
recolheu, muito antes de o horror se instalar por completo. “O que hoje são fatos
políticos, até mesmo do cotidiano, não eram naquela época nem fatos de romance”.
no Terceiro Reich sonhavam com aparatos de controle do Estado que sequer existiam.
experiência individual, mas compartilham traços comuns. Outra mulher tem o seguinte
sonho, em 1933, logo que Adolf Hitler chega ao poder: “Quadros são colocados em
cada esquina para substituir as placas de rua, proibidas. Esses quadros anunciam, em
letras brancas sobre um fundo negro, vinte palavras que o povo está proibido de
pronunciar. A primeira palavra é Lord – por precaução devo ter sonhado em inglês, e
não em alemão. As outras esqueci ou provavelmente nem cheguei a sonhar com elas,
livro que fala sobre sonhos de cidadãos que se sentem impotentes de várias maneiras
redor – tem uma potência enorme para falar da realidade daquele momento histórico
e das realidades que transcendem aquele momento histórico. Mesmo para quem se
debruça sobre o nazismo e sobre tudo o que o produz e é produzido por ele, há algo
Isso me faz pensar: o que sonhamos nós neste momento do Brasil? Neste momento
em que as palavras não estão proibidas, como no sonho da alemã, mas esvaziadas de
substância? Nesta condição, as palavras são como fantasmas que atravessam o corpo
do outro sem produzir nenhum efeito. E então voltam para nós, falantes compulsivos,
gritadores contumazes, que produzem som, mas não movimento. E esta talvez seja
uma versão contemporânea, uma versão dos tempos da Internet, de um outro tipo de
ao Amplo Direito de Defesa de Rafael Braga. Jovem, negro, favelado, Rafael Braga
encarna uma esquina histórica. O catador de latas foi preso durante as manifestações
de junho de 2013, no Rio de Janeiro. Carregava dois produtos de limpeza. E por isso foi
fechado, ele passou para o regime aberto. Trabalhava como auxiliar de serviços gerais
e usava tornozeleira eletrônica quando foi novamente preso. Com base apenas no
relato dos policiais militares, um juiz o condenou a 11 anos e três meses de prisão por
Por que Rafael Braga encarna uma esquina histórica? Porque ele é o único cidadão
pertencer a qualquer grupo político, é o negro, jovem e favelado que passava com
desinfetante e água sanitária que é preso. Para mantê-lo na prisão, basta a versão da
PM que o prendeu uma vez e o prendeu outra vez. Em sua prisão, encontram-se os
Brasis.
Junho de 2013 é insurreição. A prisão de Rafael Braga é a regra. A regra que atravessou
provocar suficiente incômodo naqueles que tinham poder para mudar essa realidade,
nem suficiente incômodo para perturbar o sonho dos cidadãos brasileiros não sujeitos
à ela.
condições torturantes como política de Estado. Apenas nos primeiros 15 dias deste
ano, 133 pessoas presas foram assassinadas sem que nada mudasse depois da
comoção inicial.
A punição vem rápida para os brasileiros pobres. A impunidade é para os brancos, os
empresários no contexto da Lava Jato, a mãe de quatro filhos que furtou 19 ovos de
mais de três anos em regime fechado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Está lá,
junto com o bebê de um mês de vida, trancafiada com outras 18 numa cela onde só
cabem 12.
Contra os mais pobres, como aponta um dos textos de Osso, “a justiça penal é
pelo sistema punitivo. Eles vão relatando o que acontece com eles ao entrarem em
corredores dos quais já não conseguem mais sair, subjugados a uma série infindável de
adiados e processos obstruídos, enquanto a vida não só passa, como se esvai. Para
estes brasileiros pobres, a maioria negros, O Processo de Kafka não é literatura, mas a
própria existência.
É também por isso que Rafael Braga encarna uma esquina histórica: o absurdo, para
brasileiros como ele, dura 500 anos. Junho de 2013 irrompe – e lá está ele. Rafael
O Brasil não vai mudar de forma estrutural porque a Lava Jato responsabiliza e prende
empresários e políticos corruptos, por mais importante que isso seja – e é. O Brasil vai
mudar de forma estrutural quando Rafael Braga não for preso. O Brasil vai mudar
O absurdo da prisão repleta de ilegalidades de Rafael Braga está dito. Mas, como as
O Brasil não vai mudar porque a Lava Jato prende: vai mudar
quando brasileiros como Rafael Braga tiverem direito de defesa
“A arte insiste. A arte pode insistir. (...) Obras de arte podem ser feitas de muito pouco,
que tudo é aceitável em contextos de crise. (...) Em algum ponto é preciso traçar uma
linha demarcando o que não se deve aceitar, o que não pode ser ultrapassado em
linha? Toda tentativa parece vaga demais. Parcial demais. O esboço de um limite: não
Essa exposição “no osso”, quase que só “lâmina”, traça o limite que aponta para o que
deve ser inegociável em qualquer construção de um futuro para o Brasil: todas as vidas
importam.
Na semana passada, Vanessa Vitória dos Santos, uma criança de 10 anos, foi morta
com uma bala na cabeça quando policiais militares invadiram a casa dela atirando,
A menina tinha acabado de voltar da escola quando foi convertida em mais um corpo
Vanessa é negra.
diz: “Alguma coisa tem que acontecer pra acabar com isso! Alguém tem que fazer
alguma coisa!”. E ela diz: “A Polícia Militar entrou na casa dela sem ser convidada e
sem ter permissão pra entrar. Não pode entrar na casa de ninguém atirando!”.
Ela diz o óbvio: “Não pode entrar na casa de ninguém atirando”. Ela nomeia o absurdo.
Mas crianças como Vanessa seguem morrendo sem sequer ganhar as manchetes da
nomeado, é dito e é repetido e nada muda, o que fazer para que as palavras voltem a
dizer? Para que as palavras deixem de ser espectros desencarnados que apenas
Nos sonhos dos alemães sob o Terceiro Reich, há um tema recorrente: aquele que
Ora isso aparece como “rostos inexpressivos”, ora como olhos e expressões “vazias”.
Não é assim o nosso olhar que desvia e desvia de Rafael Braga, da menina Vanessa e
de tantos? Mesmo hoje, quando vídeos com esse horror viralizam na Internet, o olhar
fixado na cena – vídeo após vídeo – não é uma outra forma de desviar ou mesmo de
atravessar os corpos que morrem? Esse olhar que desvia não é o que conecta o
degrau a mais neste momento do Brasil. Há isso. Há as palavras que podem ser ditas.
Há este tudo que pode ser dito, como se constata nas redes sociais. Tudo pode ser dito
nos arrancar do grito espasmódico e da paralisia convulsiva. Nos puxar pelos cabelos
do encarceramento da linguagem.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção
Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina