Revista TOXICODEPENDÊNCIAS • Edição IDT • Volume 9 • Número 1 • 2003 • pp.
29-45
A QUÍMICA DA DEPENDÊNCIA E AS DEPENDÊNCIAS-TÓXICAS.
PARA UM MODELO BIO-PSICO-SOCIAL
NUNO M. TORRES
RESUMO: Propõe-se um modelo biopsicossocial das toxicodependências, a
partir do conceito de Pressuposto Básico de Dependência de Bion e de
pesquisas neurobiológicas sobre o papel do sistema opióide endógeno na
modulação tanto das ligações sociais como do efeito de drogas.
É revista a evidência disponível de que: a) o sistema opióide endógeno inter-
vém na modulação dos subsistemas socio-emocionais de dependência
(aleitamento, attachment, afiliação social e crença religiosa); b) défices
graves nestes subsistemas são factores de risco para as toxicodependên-
cias; c) várias substâncias psicoactivas (opiáceos, cocaína, etanol, cannabis,
nicotina) exercem efeito no sistema opióide endógeno.
Os comportamentos aditivos são considerados como decorrentes de um
impasse biopsicológico, resultante: a) da pressão do sistema opióide
endógeno para aumentar a dependência emocional (via ansiedade de sepa-
ração e sentimento de desamparo), e b) da pressão motivacional para a
independência, devido ao contacto social stressante (attachment inseguro,
défices na afiliação social). O abuso de substâncias substitui quimicamente
os efeitos da dependência emocional.
Palavras-Chave: Dependência; Opióides endógenos; Aleitamento;
Attachment; Afiliação social; Religião; Ansiedade de separação.
RÉSUMÉ: Proposition d’un modèle biopsychosocial des drogue-dépen-
dances à fondé sur le concept de l’Hypothèse de Base de la Dépendance de
Bion, et intégrant les dernières recherches en neurobiologie portant sur le
rôle du système opioïde endogène dans la modulation des rapports sociaux
et dans l’abus des drogues. Il ressort des données scientifiques disponibles
que: a) le système opioïde module les sous-systèmes socioémotionnels de
dépendance, b) les déficiences aiguës de ces sous-systèmes sont des fac-
teurs de risque préalables pour les toxicodépendances, c) les drogues (opia-
ces, cocaïne, alcool, nicotine, cannabis) tiennent des effets dans le système
opioide endogène.
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Le comportement de dépendance dérive d’une impasse biopsychologique
découlant: a) de la pression exercée par le système opioïde endogène en
vue d’accroître le contact social (qui se traduit par une angoisse de sépara-
tion et un sentiment d’abandon) et b) de la motivation d’indépendance et
d’autonomie suscitée par le contact social stressant (attachement qui
manque de sécurité, déficience au niveau de l’affiliation sociale). Cette
impasse trouve sa solution dans la consommation des substances qui
activent le système opioïde et qui suppriment la dépendance émotionnelle.
Mots-Clé: Dependence; Opioides endogènes; Allaitement; Attachment;
Affiliation sociale; Religion; Angoisse de séparation.
ABSTRACT: Describes a biopsychosocial model of substance abuse, using
Bion’s concept of Dependence Basic Assumption and integrating recent
neurobiological research on the modulatory functions of the endogenous
opioid system in social bonding and in drug addiction.
Evidence is presented to support that: a) the opioid system modulates the
socio-emotional subsystems of dependence (suckling, attachment, affilia-
tion, religious belief); b) severe deficits in these subsystems represent well-
known risk factors for substance abuse; c) psychoactive substances (opia-
tes, cocaine, cannabis, alcohol, nicotine) exert effect in the endogenous
opioid system.
The addictive behaviours are considered to be derived from a biopsychologi-
cal impasse between: a) the pressures of the opioid system to increase
social contact (through separation anxiety and helplessness) and b) the
motivational pressures for independence and autonomy due to stressful
social contact (insecure attachment, affiliation deficits). Substance abuse
chemically replaces the effects of emotional dependence.
Key Words: Dependence; Endogenous opioids; Suckling; Attachment;
Affiliation; Religion; Separation anxiety.
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“O recém nascido tem os ossos frágeis e os tendões débeis,
mas o seu agarrar é firme”
Lao Tse
1. Introdução
As toxicodependências têm sido definidas como fenómenos
multifactoriais, com componentes genéticos, biológicos,
comportamentais, psicológicos, familiares, socio-culturais e
políticos. Também o seu tratamento e redução de riscos/
/danos tem revelado os melhores resultados quando as
intervenções combinam vários dos referidos factores. Esta
posição multifactorial representa a falência de modelos
reducionistas, sejam eles biológicos, psicológicos ou socio-
lógicos, para compreender as adições e conter socialmente os
problemas derivados. Por outro lado, representa a adopção de
uma abordagem transdisciplinar de seu próprio direito, a que
se convencionou chamar de modelo biopsicossocial (Engel,
1977; Poiares, 1998; 2001; Ribeiro, 2001; Friedman, 2002), o
qual representa uma posição epistemológica bem funda-
mentada na filosofia da ciência (Popper, 1977; Edelman, 1992).
Devido à clivagem das ciências que estudam o homem não
é fácil construir modelos biopsicossociais explicativos e
parcimoniosos (Kushner, 1991). Alguns autores identificaram
perto de vinte factores de risco, aos vários níveis, para abuso
de substâncias (Hawkins et al., 1992; Negreiros, 2001), o que
causa problemas de integração teórica e estabelecimento de
causalidade (Hawkins et al., 1992). É possível obter econo-
mia explicativa, sem cair no reducionismo, se o Humano for
entendido como biologicamente gregário (e.g. Trotter, 1916;
Bion, 1961, 1970; Wilson, 1975; Rothbart, 1999; Brown et al.,
1999; Torres, 2002). Isto é, através de um modelo teórico em
que os três níveis (bio, psico e social) (1) sejam abordados
como partes interdependentes de um processo contínuo de
evolução, emergência, causalidade ascendente e descen-
dente, com objectivos adaptativos comuns (Lorenz, 1973;
Popper, 1977; Campbell e Bickhard, 2001).
De facto, tem-se verificado que os processos sociais humanos
são, em parte, biologicamente determinados, e que as dinâmi-
cas sociais/interpessoais têm uma influência directa na modu-
lação morfológica e funcional dos sistema nervosos, imuni-
tário, e endócrino (Wilson, 1975; Kraemer, 1992; Chisolm,
1993, Siegel, 1999; Carter e Keverne, 2002).
O modelo que articulamos neste texto é adaptado do
conceito de Group Diseases, de Wilfred Bion (1961), o qual
representa uma síntese biopsicossocial do homem que
antecipa algumas abordagens posteriores como a socio-
biologia, psiconeuroimunologia, psiconeuroendocrinologia,
e psicologia social da saúde. Este conceito foi formulado a
partir da integração teórica de: a) estudos epidemiológicos
de doenças psicossomáticas (Halliday, 1948; Witkower,
1949); b) experiências paradigmáticas de dinâmica de gru-
pos como o “Projecto Grupo sem Líder”, “Experiência
Northfield” e os “Grupos Tavistock” (Bion, 1946; 1961; Bion e
Rickman, 1943; Sutherland, 1985); e c) alguns conceitos da
psicanálise Kleiniana (Bion, 1952). Ele baseia-se no
postulado de que existe uma matriz emocional básica, de raiz
protomental (biopsicológica), de onde emergem três
Pressupostos Básicos da interacção social: Dependência,
Luta-fuga, e Acasalamento. Esta tríade de sistemas socio-
-emocionais parece ser uma “assinatura” filogenética das
motivações básicas do Homem na sua condição de mamífero
de grupo (2): Dependência – cuidar das crias e altruísmo
reciproco; Luta/Fuga – ciclo predador/presa, territorialidade e
competição; Acasalamento – sexualidade e estratégias
reprodutivas (Schermer, 1985; Dias, 1992; Zimerman, 1995;
Miller, 1998).
Bion (1961) propõe que a prevalência de distúrbios
psicossomáticos pode ser investigada como uma função do
conflito entre as pressões impostas pelas afiliação/pertença
social (família, parentesco, grupo de pares, comunidades,
estados, ideologias, etc.) e as pressões impostas pelo nível
protomental (biopsicológico) do indivíduo, que por vezes são
contraditórias. A supressão emocional de um dos Pressu-
postos Básicos devido ao predomínio dos outros (ex.:
supressão de dependência pelo predomínio de Luta-fuga)
estaria associada à manifestação de desordens psicossomá-
ticas específicas do sistema suprimido.
Alguns autores, baseados na evidência da associação entre
alexitimia e abuso de substâncias, têm proposto que as
adições são desordens do nível psicossomático e da regula-
ção emocional/afectiva, associadas a défices na interacção
social (McDougal 1989; Taylor et al., 1997; Grotstein 1999;
Fabião, 2002). Nesta linha de pensamento, temos vindo a
sugerir que a dependência química de substâncias advém
da supressão do Pressuposto Básico de Dependência, e que
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os sintomas aditivos podem ser vistos como equivalentes
somáticos da dependência interpessoal suprimida (Torres,
1995,1999; Torres e Antunes, 1996; Barbosa, 1999; Torres e
Ribeiro, 2001).
Por seu lado, a pesquisa em neurobiologia tem vindo a
acumular evidência de que: a) o sistema opióide endógeno
tem um papel modulador central nas relações sociais de
dependência emocional, nomeadamente, no que respeita à
regulação do comportamento maternal, da vinculação
emocional (attachment), da ansiedade de separação e da
afiliação social (D’Amato e Pavone, 1993; Gillbert, 1995;
Nelson e Panksepp 1998; Miranda-Paiva, 2001; Carter e
Keverne, 2002); e b) várias substâncias psicoactivas (opiá-
ceos, cocaína, etanol, cannabis, nicotina) exercem efeito no
sistema opióide endógeno (DuQuesne e Reeves, 1982;
Pomerlau, 1998; Gianolakis, 2001; Clavin, 2002; Kirkham e
Williams, 2001; Kotlyar et al., 2001; David, 2001). Os défices
relacionais ao nível da dependência emocional (inconsis-
tência, separação, isolamento), geram respostas regulatórias
do sistema opióide endógeno, cujo correlato emocional é a
ansiedade de separação/desamparo e o impulso para au-
mentar o contacto social. O abuso de drogas exógenas, ao
activar o sistema endógeno de receptores opióides, suprime
a ansiedade de separação e a necessidade emocional de
vinculação e afiliação.
2. Pressuposto Básico de Dependência e o
sistema opióide endógeno
O conceito de Pressuposto Básico de Dependência designa
um tipo específico de campo socio-emocional (3), gerado pela
motivação biopsicológica dos sujeitos para procurarem junto
de figuras parentais, líderes, ou objectos idealizados (avalia-
dos como superiores em competência e responsabilidade) a
obtenção de nutrição, protecção, segurança, referências
sociais [social referencing], orientação da acção [guidance] e
diminuição da ansiedade. Neste campo socio-emocional,
predominam expectativas de generosidade entre os
membros, de bondade e competência dos líderes e figuras
parentais (abrindo caminho para crenças em ideais e
deuses), e uma percepção individual de imaturidade e
necessidade de apoio (Bion, 1961; Meltzer e Harris,1976;
Gould, 1997; Rosen et al., 2001). Em resumo, trata-se do
31
conjunto das relações sociais motivadas pela necessidade
de dependência emocional. Este fenómeno é particular-
mente claro e evidente nas primeiras sessões de experiências
de dinâmica de grupos e de grupos psicoterapêuticos, onde se
pode observar uma grande dependência para com os líderes
e entre os membros, e até uma regressão colectiva em termos
cognitivos e emocionais à fase oral do desenvolvimento
infantil (Bion, 1961; Bennis e Shepard, 1956; Saravay, 1975).
A raiz filogenética do Pressuposto Básico de Dependência
pode ser vista como o aumento do investimento parental na
sobrevivência e desenvolvimento das crias, verificado nas
aves e nos mamíferos. Isto fez com que se gerassem poucas
crias cada vez mais dependentes dos pais para sobreviver
(Torres, 1999), e levou ao desenvolvimento de mecanismos
que promovem uma ligação forte entre a cria e os pais tais
como o imprinting e o attachment (Polan e Hofer, 1999). Nos
mamíferos, ao estado placentário-umbilical de dependência
física da mãe (Savitt, 1963; Blomfield, 1987) segue-se um
estado de dependência psicossomática representado pelo
aleitamento e pela regulação psicofisiológica (Bion, 1962;
Lichtenberg, 1989), ao qual se segue a dependência psicoló-
gica representada pelo attachment (vinculação), que por sua
vez abre caminho à interdependência social no grupo (Carter e
Keverne, 2002). Os substratos neurológicos e endócrino
inerentes a tais processos evolutivos, que incluem os opióides
endógenos, a oxitocina, vasopressina e o eixo hipotálamo-
-pituitária-adrenal, participam na regulação e modulação de
todas estas ligações psicossociais de grande interdependência
socio-emocional (Damásio, 2000; Carter e Keverne, 2002).
Assim, no ser humano, este hipotético campo social de
dependência proposto por Bion pode ser visto hoje em dia
como integrando vários subsistemas socio-emocionais tais
como o aleitamento, attachment (vinculação emocional às
figuras parentais e a parceiros de intimidade), submissão a
normas e valores sociais, altruísmo reciproco, obediência
voluntária a líderes, e ainda a crença (de cariz religioso e
espiritual) na protecção por uma entidade ideal .
Embora seja um constructo hipotético, a ligação e correlação
entre estes subsistemas do Pressuposto Básico de Depen-
dência tem sido verificada empiricamente a vários níveis,
tais como: a) na sobreposição parcial dos sistemas neuroló-
gicos de nutrição e attachment (Hadley, 1989); b) na asso-
ciação comportamental e neurológica entre o attachment,
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afiliação social e conformismo a normas (Lichtenberg, 1989;
Nelson e Panksepp, 1998; Carter e Keverne, 2002); c) na
associação comportamental entre altruísmo recíproco e
adesão a normas sociais (Fehr et al., 2002); d) na correlação
entre attachment aos pais, religiosidade, e adesão a valores
convencionais (Walsh, 1995). Além disso, ao nível
neuroquímico, todos estes subsistemas parecem ter em
comum a modulação, reforço e recompensa através do
sistema opióide endógeno.
2.1 Opióides endógenos
Uma exposição detalhada dos conhecimentos actuais sobre
o sistema opióide endógeno e todas as suas interacções
bioquímicas com os outros sistemas neurológicos e
endócrino está para além do âmbito deste artigo; vamos
cingir-nos a um resumo do que for essencial para a
exposição do nosso argumento. O sistema opióide endógeno
foi inicialmente descoberto entre 1973 e 1975, por vários
laboratórios envolvidos na procura de um hipotético
“opiáceo natural” que explicasse a supressão da dor, sem
recurso a drogas analgésicas, ocorrida em situações tais
como a acupunctura e ferimentos no campo de batalha.
Foram identificadas uma série de cadeias de aminoácidos
produzidas pelo sistema nervoso (neuropeptídeos) que
ficaram popularizadas como endorfinas, e que actuam nos
mesmos receptores que as drogas opiáceas. (DuQuesne e
Reeves, 1982; Parker, 1983).
Actualmente sabe-se que o sistema opióide endógeno é
constituído por: 1) três classes de neuropeptídeos (β-
-endorfina, encefalinas, dinorfinas), sintetizados pelo soma
dos neurónios em várias partes do sistema nervoso tais
como os gânglios basais, córtex, amígdala, hipotálamo e
pituitária, e 2) os receptores opióides (µ [mu], δ [delta] e κ
[kappa]) que são activados pela ligação com os neuro-
peptídeos opióides. A activação dos receptores opióides
conduz a alterações neuroquímicas que provocam um senti-
mento psicofisiológico de bem-estar com várias componen-
tes (euforia, analgesia, sedação, redução do trânsito intes-
tinal, redução da tosse), e que geram recompensa e reforço
neurológicos, parcialmente por interacção com o sistema
dopaminérgico (Yu, 1997; Carlson, 2001; David, 2001). Os
receptores opióides estão também associados aos sintomas
de privação e carência (Carlson, 2001) tais como aumento da
sensibilidade à dor, desconforto físico, irritação, depressão,
ansiedade, e alterações intestinais. Inicialmente, identificou-
-se sobretudo a função analgésica do sistema opióide endó-
geno enquanto resposta a situações de stress e ferimentos,
como forma de permitir que o animal possa lutar, fugir ou
copular, ainda que ferido ou cansado (DuQuesne e Reeves,
1982; Carlson, 2001). Mais tarde, veio-se a descobrir que a
produção de opióides endógenos era activada de forma
aguda em contactos sociais positivos, tais como o compor-
tamento maternal e a afiliação fraterna (o que não podia ser
explicado por stress ou ferimentos), e que a privação de
opióides endógenos produzia sinais de ansiedade de separa-
ção na cria e na mãe (e.g. Bridges e Grimm, 1982; D’Amato
e Pavone, 1993; Nelson e Panksepp, 1998).
2.2 Opióides endógenos e Pressuposto Básico de
Dependência
Existe hoje evidência considerável de que o sistema opióde
endógeno está associado à modulação psicofisiológica da
maior parte das actividades socio-emocionais características
do Pressuposto Básico de Dependência, ou seja: aleitamento
e alimentação, vinculação emocional, afiliação grupal,
adesão a normas sociais, altruísmo recíproco e actividades
religioso-espirituais.
No que se refere ao aleitamento e alimentação, está bem
estabelecido o papel dos opióides endógenos na função
hedónica e de recompensa neurológica associada à ingestão
de alimentos deleitosos, e na regulação do apetite (Parker,
1983; Hamosh, 1996; Kirkham e Williams, 2001). As reacções
comportamentais da cria ao leite envolvem a libertação de
opióides endógenos, e a decomposição digestiva da caseína do
leite de todos os mamíferos produz agonistas opióides (β-
-casomorfinas), tendo efeitos como a analgesia e elevação do
humor (Harmosh, 1996; Nelson e Panksepp, 1998). O leite
materno parece ser também responsável pelo desenvolvi-
mento dos receptores δ-opióides na cria, e o processo de
desmame tem um papel regulador importante na activação
dos receptores opióides durante o desenvolvimento do cérebro
(Kitchen et al., 1995; Kelly et al., 1998 ; Goody e Kitchen, 2001).
Está igualmente bem estabelecido que a vinculação
emocional (attachment) entre a cria e a mãe é modulado
pelo sistema opióide endógeno. O contacto físico e odorífico
entre a cria e a mãe estimula a libertação de opióides,
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enquanto que a separação gera ansiedade na cria e na mãe
associada à privação de opióides endógenos (Hadley, 1989;
Carden e Hofer, 1990; Nelson e Panksepp, 1998; Carter e
Keverne, 2002). Verificou-se que os agonistas opiáceos,
como a morfina, inibem os sinais de angústia de separação
(tais como vocalizações de ansiedade), a procura de contacto
com a mãe pela cria, e também os comportamentos mater-
nais tais como lamber, procurar a cria e levá-la para o ninho
(Herman e Panksepp, 1978; Bridges e Grimm, 1982; Miranda-
Paiva et al., 2001; Nelson e Panksepp, 1998; Carter e
Keverne, 2002). Verificou-se também que os antagonistas
opióides, naloxona e naltrexone, ao bloquear o efeito dos
opióides endógenos, fazem aumentar os sinais de angústia
de separação na cria e inibem o comportamento maternal
(Bridges e Grimm, 1982; Carter e Keverne, 2002).
Também tem sido demonstrado que o sistema opióide
endógeno reforça a ligação e a afiliação social. Assim, a
proximidade e intimidade social (através de comportamentos
de grooming, brincadeira social, ou reunião com os irmãos
após separação) aumentam a concentração de opióides
endógenos no fluido cerebrospinal, nomeadamente β-
-endorfinas (D’Amato e Pavone, 1993, Nelson e Panksepp,
1998; Carter e Keverne; 2002). O antagonista opioide nalo-
xona impede o efeito analgésico da reunião com os irmãos,
e inibe a procura de contactos sociais e brincadeira com os
pares (D’Amato e Pavone, 1993). A reduzida produção opiói-
de está associada a uma maior necessidade de contacto
social; e a falta de conforto social (decorrente da não
aprendizagem de regras sociais, em especial a modulação da
agressividade) está associada à sub-regulação do sistema de
receptores opióides, podendo levar o indivíduo a abandonar
o grupo (Nelson e Panksepp, 1998; D’Amato e Pavone, 1993;
Keverne et al., 1989; Carter e Keverne, 2002).
Apesar da investigação experimental nesta área ser feita em
modelos animais, existem fortes razões para crer que este
circuito motivacional de attachment e afiliação social é
comum a todos os mamíferos (Nelson e Panksepp, 1998;
Stansbury, 1999; Polan e Hofer, 1999). Estes dados levaram
Carter e Keverne a propor que os opióides endógenos
servem de “cola para a coesão social” (idem, pp. 312).
Finalmente, também alguns componentes do sentimento
religioso/espiritual parecem estar associados à produção de
opióides endógenos (Vaillant, 2000; Glucklich, 2002), apesar
33
da investigação nesta área (denominada “neuroteologia”) ser
ainda bastante escassa. Existe também uma alta correlação
entre actividades religiosas e a vinculação emocional
(attachment) aos pais (Walsh, 1995), e a prática religiosa está
também fortemente associada à afiliação comunitária e social.
Em resumo, o sistema opióde endógeno pode ser proposto
como o correlato psicofisiológico das experiências de
dependência emocional, desde a relação com o objecto
materno, à relação com os pares, com a comunidade, e
talvez até a alguns aspectos da relação com um ideal
religioso-espiritual. A intimidade emocional produz bem-estar
aos níveis somático e psicológico, através da libertação de
opióides endógenos. Pelo contrário, a separação e
isolamento social geram ansiedade de separação e
sentimentos de desamparo, pelo menos parcialmente devido
à privação ou sub-regulação do sistema opióide endógeno. O
sistema de vinculação emocional (attachment) pode ter
evoluído de sistemas mais primitivos de resposta à dor
(Nelson e Panksepp, 1998), sendo a ansiedade de sepa-
ração/desamparo uma forma de dor social que assinala o
isolamento do indivíduo, com todos os perigos para a sobre-
vivência que advêm dessa situação. Baseando-se na seme-
lhança entre a adição a narcóticos e as ligações socio-emo-
cionais, Panksepp e seus colaboradores têm vindo a propor
que as ligações socio-emocionais são quimicamente seme-
lhantes à adição a nacóticos (ibidem.)
3. Sistema opióide endógeno e drogas exógenas:
dependência “emocional” e dependência “química”
Os opiáceos, como a morfina, heroina, metadona e LAAM e
outras substâncias, são agonistas dos receptores opióides,
ligando-se a eles (sobretudo ao receptor µ) e activando-os.
Assim, o efeito do consumo das referidas substâncias é
equivalente ao efeito dos opióides endógenos (DuQuesne e
Reeves, 1982; David, 2001; Clavin, 2002). Todavia, existe
crescente evidência de que outras substâncias psicoactivas
exógenas como a cocaína, a nicotina, os cannabinoides e o
etanol, têm igualmente um efeito no sistema opióide endó-
geno. Estas substâncias, em vez de se ligarem directamente
aos receptores, estimulam a produção de opióides endógenos
e alteram a regulação e funcionamento dos receptores.
O consumo agudo ou ligeiro de álcool etílico (etanol) esti-
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mula a libertação de opióides, enquanto que o seu consumo
crónico pesado induz uma deficiência opióide central
(Gianolakis, 2001; Cowen e Lawrence, 1999). Assim, os
antagonistas opióides são eficazes a prevenir a recaída alcoó-
lica (Volpicelli et al., 1992). Existe evidência da influência da
cocaína no sistema opióide endógeno, nomeadamente de que
o abuso de cocaína provoca alterações da expressão e função
do receptor µ, e também o aumento dos níveis de dinorfinas
(Zubieta et al., 1996; Rowlett et al., 1997; Unterwald, 2001;
Clavin, 2002). Existe um corpo crescente de evidência de uma
sobreposição de mecanismos cannabinoides e opióides
endógenos (Kirkham e Williams, 2001). Finalmente, estudos
com animais e humanos mostram que a dose de nicotina faz
aumentar proporcionalmente a concentração de β-endorfinas
no plasma (Pomerlau, 1998; Kotlyar et al., 2001), e que a
actividade de fumar aumenta com o consumo de agonistas
opiáceos (Mello et al., 1980; Chait e Griffiths, 1984).
Assim, tanto os opiáceos, como a cocaína, etanol, nicotina, e
cannabinoides parecem estimular o sistema opióide endó-
geno, podendo servir assim como substituto químico dos
efeitos endógenos da dependência emocional. Estas subs-
tâncias exógenas podem portanto reduzir a ansiedade de
separação e o desamparo, e assim promover a indepen-
dência emocional e o isolamento social do sujeito.
4. As adições como supressão da dependência
emocional. (Distúrbios psicossomáticos da depen-
dência)
Num dos estudos nascidos da colaboração entre o Seminário
de Investigação da Área de Psicologia Clínica do I.S.P.A. e a
U.I.C.E. do CAT-Restelo, verificámos, com recurso a uma grelha
de observação aplicada a sessões terapêuticas videogravadas,
que famílias de heroinodependentes apresentavam significa-
tivamente menos comportamentos de dependência emocio-
nal do que de Luta/Fuga (Torres, 1995, 1999; Torres e Antunes,
1996). Estes resultados sugeriram-nos a hipótese de que a
dependência química de heroína poderia representar de
algum modo um equivalente somático da falta de depen-
dência emocional entre o Paciente Indicado e a sua Família.
Outros estudos de inquérito posteriores indicaram que o
consumo frequente de algumas substâncias psicotrópicas
legais e ilegais em amostras não-clínicas estava relacionado
com a supressão da valência para o Pressuposto Básico de
Dependência (Barbosa, 1999; Torres, 1999).
Estes dados, pelas suas características transversais e
correlacionais, não permitem identificar a direcção causal
destas associações. Uma revisão de estudos longitudinais e
retrospectivos permite, no entanto, apoiar o argumento de
que na etiologia das toxicodependências se observam
disfunções e supressão da dependência emocional em
várias áreas do Pressuposto Básico de Dependência: aleita-
mento, vinculação (attachment), afiliação social, altruísmo
reciproco e religiosidade.
4.1 Experiências primárias de alimentação
Tendo em conta que o aleitamento do recém-nascido tem
efeitos no desenvolvimento do seu sistema opióide endó-
geno, perturbações a este nível podem causar vulnerabili-
dades biológicas e predisposição para comportamentos adi-
tivos. Em modelos animais, o desmame precoce (supressão
do aleitamento) mostrou ser preditor do aumento das pro-
priedades de reforço neurológico da cocaína em indivíduos
adultos (Laviola e Dell’omo, 1997), sugerindo que perturba-
ções do aleitamento e desmame podem representar condi-
ções precoces de sensibilização ao efeito de drogas
(Robinson e Berridge, 2001).
Vários autores propuseram que o aleitamento materno é o
protótipo mais precoce da dependência de substâncias, e
que esta última resulta de uma fixação e regressão aos está-
dios orais (Radó, 1928; Savitt, 1963; Browne, 1965; Hart-
mann, 1969; Wieder and Kaplan, 1969). Os dados recentes
sobre a ligação entre o aleitamento, o sistema opióide endó-
geno, e a adição a drogas, anteriormente descritos, vêm dar
um novo sentido a estas propostas.
Existe alguma evidência de que uma parte significativa dos
adictos a álcool e drogas poderão ter tido problemas em
estabelecer um ciclo de aleitamento seguro, regular e
tranquilo (Savitt, 1963; Browne, 1965), enquanto que a co-
morbilidade entre adições químicas e perturbações alimen-
tares é referida por vários autores (Rosenfeld, 1960;
Voukassovitch, 1986; Hers et al., 1988). Savitt descreve o
estado de “depressão tensa”, que precede o impulso para
consumir narcóticos, como sendo equivalente à tensão
organísmica do bebé esfomeado, e a sua descrição da psico-
terapia de quatro heroinodependentes revelou frequentes
TOXICODEPENDÊNCIAS • Volume 9 • Número 1 • 2003
 A QUÍMICA DA DEPENDÊNCIA E AS DEPENDÊNCIAS-TÓXICAS. PARA UM MODELO BIO-PSICO-SOCIAL • pp. 29-45
problemas alimentares na primeira infância (Savitt, 1963).
No estudo retrospectivo de Browne, com vinte alcoólicos
adultos e suas mães, é referida uma alta frequência de
problemas em torno do aleitamento e do desmame: a) o
processo de aleitamento era desagradável e muito difícil
para o bebé e a mãe; b) muitas mães eram incapazes de
avaliar as necessidades de alimentação dos bebés ou
entender as tentativas de comunicação não-verbal deste; c)
o peito ou o biberão eram usados com regularidade como
pacificador da tensão do bebé [ex.: “o bebé dormia comigo
para mamar sempre que quisesse; “dar-lhe o seio era uma
forma de o manter quieto”]; d) a uma indulgência excessiva
no aleitamento seguia-se muitas vezes um desmame
abrupto, não gradual, e negligente das indicações da
criança; e) tal processo de desmame criava grande pertur-
bação na criança; f) perturbações gastrointestinais, e
alimentares, iniciaram-se neste período em muitos pacien-
tes. Para Browne, o alcoolismo representa uma “passagem
ao acto dos problemas infantis de aleitamento e desmame,
e elementos específicos deste período reaparecem com
modificações mínimas no padrão de bebida de pacientes”
(Browne, 1965, pp. 425-426).
Através de mais estudos longitudinais e retrospectivos
poderá ser avaliada a prevalência e natureza de problemas
de aleitamento e desmame na infância de jovens e adultos
que abusam de substâncias.
4.2 Vinculação emocional (Attachment)
O conceito de attachment (vinculação emocional) traduz o
sistema biopsicológico que se manifesta na criança pela
procura activa de laços emocionais com a mãe e o pai
através da manutenção do contacto físico, visual, verbal e
representacional. (Bowlby, 1969; Lichtenberg, 1989). Entre
os cinco e os sete anos de idade, a maioria das crianças
desenvolveu já modelos mentais [working models] das
relações socio-emocionais em geral, baseados na qualidade
das suas vinculações com os cuidadores primários. Estes
modelos mentais representam expectativas explicitas ou
implícitas sobre relações sociais, e em particular relações de
intimidade, que são transpostas para as relações adultas,
resistentes à mudança, e com efeitos no funcionamento
neurológico e endócrino (Kraemer, 1992; Chisolm, 1993;
Simpson e Rholes, 1998).
35
Caso as necessidades de contacto emocional, protecção e
segurança sejam satisfeitas de forma consistente, os
modelos de vinculação tornam-se seguros, ao passo que a
sua frustração ou inconsistência conduz a modelos de
vinculação inseguros (evitador e ambivalente) e/ou
desorganizados, com consequências psicopatológicas e
psicossomáticas na infância e na idade adulta (Lichtenberg,
1989; Kraemer, 1992; Mikulincer e Florian, 1998; Hesse e
Main, 1999).
Vários autores referiram que os antecedentes de abuso de
substâncias estão directamente associados a défices no
sistema de attachment aos pais e outras pessoas próximas,
e que as ligações do jovem aos pais e a parceiros de
intimidade são factores protectores fortes contra as adições
(Hatfield, 1988; Shedler and Block, 1990; Hawkins et al.,
1992). Geada (1990) verificou que toxicodependentes tinham
estilos de vinculação com a mãe, o pai e amigos, marcados
por falta de confiança, falta de comunicação e alienação,
comparativamente a estudantes da mesma idade. Numa
pesquisa com estudantes universitários, Walsh (1995)
verificou que uma fraca vinculação com os pais era um
preditor muito forte do uso de drogas. Num estudo
exploratório com um grupo psicoterapêutico ambulatório
(Torres et al., 2001), verificámos que os pacientes com
história de dependência química tinham valores mais eleva-
dos no evitamento de attachment a parceiros de intimidade
do que os outros pacientes, e Frank (2001) verificou igual-
mente que dependentes de substâncias tendiam a ter um
padrão de attachment inseguro-evitador. Outros estudos não
verificaram uma associação significativa entre padrões de
attachment e abuso de substâncias (Yan, 1999; Elk, 2000),
embora sejam de referir dificuldades aos níveis da amostra-
gem e dos instrumentos de medida utilizados. Esta área
necessita também de mais pesquisa, tendo a vantagem de
permitir um diálogo fértil entre as abordagens psicodinâ-
micas e sócio e psico-biológicas.
Na história prévia de toxicodependentes e alcoólicos
verifica-se uma prevalência significativa da ocorrência de
perdas, separações e abandono de um ou ambos os pais,
inconsistência educativa, bem como negligência, abuso
físico e/ou sexual, e défices parentais vários como adição,
doença mental ou física grave de um ou ambos os pais
(Wieder and Kaplan, 1969; Dias, 1980; Cohen et al., 1982;
36 A QUÍMICA DA DEPENDÊNCIA E AS DEPENDÊNCIAS-TÓXICAS. PARA UM MODELO BIO-PSICO-SOCIAL • pp. 29-45
Power, 1984; Bernstein, 2000; Dembo et al., 2000), com maior
frequência do que na população normal (Gillie, 1969;
Emmelkamp and Heeres, 1988), acontecimentos esses que
estão na raiz da insegurança e desorganização do sistema de
attachment (Hesse e Main, 1999).
A insegurança e inconsistência do sistema de attachment
pode levar a dois estilos de resposta por parte da criança:
a) aumento da dependência e proximidade do objecto ou b)
tentativa de “autonomia compulsiva” e independência emo-
cional (Lichtenberg, 1989; Chisolm, 1993; Simpson e Rholes,
1998; Hesse e Main, 1999). Sinais de ambos os estilos
relacionais têm sido consistentemente observados na
infância de futuros adictos e em adictos adultos: a) depen-
dência excessiva e b) atitudes anti-sociais e desafiantes;
bem como um conflito intenso entre estas duas tendência
opostas, também presente em pacientes psicossomáticos
(Hartmann, 1969; Lidz et al., 1976; Khantzian, 1978; Dodes,
1990; Totman, 1990; Hawkins et al., 1992; Taylor et al., 1997).
A dependência excessiva do objecto de attachment leva a
défices na autonomia e na ligação a outras pessoas, tor-
nando o sujeito extremamente vulnerável à eventual perda
ou inadequação do objecto. Por seu lado, a procura de inde-
pendência e a negação de necessidades emocionais tornam
o sujeito insensível às necessidades de afecto, e conduzem-
-no à procura de actividades que substituam o conforto e bem
estar das relação de dependência emocional. Tanto a morte,
ou perda afectiva, de figuras importantes de vinculação,
como a tentativa de independência da família, são factores
desencadeantes do abuso de substâncias (Huberty, 1975;
Lidz et al., 1976; Glynn, 1983; Voukassovitch, 1986; Van-Schoor
and Beach, 1993; Prata et al., 1996; Stanton, 1997).
Tem sido proposto que as drogas substituem o prazer e o
sentido retirados normalmente das relações interpessoais,
devido à pobreza relacional do sujeito, ou que substituem
quimicamente por via exógena os efeitos endógenos da
dependência e vinculação emocional (Dias, 1980, 1991;
Shaver et al., 1988; Walsh, 1995; Neto, 1996; Torres, 1999,
Neto e Torres, 2001; Torres e Ribeiro, 2001). Entretanto, a
investigação neurobiológica, como já referimos, permitiu
estabelecer que os agonistas opiáceos, como a morfina e a
heroína, e outras substâncias, reduzem a ansiedade de sepa-
ração, e coarctam a motivação para o contacto emocional
interpessoal por activação dos receptores opióides. Tendo
em conta que a motivação para o abuso de substâncias está
frequentemente associada a situações de separação/
/autonomia da família e a experiências frustradas de depen-
dência emocional, é licito concluir que o uso de drogas
oferece uma auto-suficiência ou autonomia emocional psico-
fisiológica, através da estimulação química do sistema
opióide endógeno por via exógena.
4.3 Afiliação social
O desenvolvimento da afiliação ao grupo de pares e à
comunidade baseia-se no sistema de attachment
(Lichtenberg, 1989; Nelson e Panksepp, 1998; Carter and
Keverne, 2002), e é consensual que os adictos apresentam
graves défices afiliativos. É bastante notório o seu compor-
tamento anti-social na comunidade, bem como a sua incapa-
cidade para procurar e receber ajuda dos outros e estabelecer
relacionamentos de dependência tais como família, amigos,
colegas de escola ou de trabalho (Radó, 1933; Limentani,
1968; Kolb et al., 1974; Khantzian, 1978). A única descoberta
consistente dos estudos sobre a personalidade e abuso de
substancias é a grande prevalência de comportamento anti-
-social iniciado na infância e adolescência (Taylor et al., 1997).
As características de antagonismo e não cooperação na
infância, bem como a rejeição pelos pares, são factores de
risco muito significativos para o futuro abuso de substâncias
(Hawkins, 1992; Newcomb e Earleywine, 1996). Num estudo
longitudinal de referência, Shedler e Block (1990) verificaram
que os abusadores de substâncias aos 18 anos tinham
demonstrado, na idade de 7 e 11 anos, ser visivelmente
desviantes dos seus pares, facilmente vitimizados e servindo
de bode expiatório de outras crianças, não-cooperantes e
antagónicos, não desejosos de agradar, não dando impor-
tância a assuntos morais (reciprocidade, equidade), e inca-
pazes de se identificar com os adultos que apreciam. Pelo
contrário, os jovens abstinentes aos 18 anos, foram descritos
com as mesmas idades como tendo características de
valência para o Pressuposto Básico de Dependência: tendem
a dar, partilhar e emprestar coisas, pensamento conven-
cional, procurando os adultos para obter ajuda e orientação,
obedientes e complacentes (ibidem).
O estilo interpessoal anti-social, pelo isolamento emocional
que lhe está associado, pode provocar uma privação e/ou
sub-regulação do sistema opióide endógeno, representando
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assim um factor de predisposição biopsicológica para o
consumo de drogas. Neste sentido, verificou-se em modelos
animais que indivíduos criados em isolamento depois do
desmame tinham uma menor densidade de receptores
opióides no cérebro do que indivíduos criados em grupo
(Schenk et al., 1982).
4.4 Crença e actividade Religiosa-espiritual
Alguns autores propuseram que as drogas ocupam o lugar
de deuses no Ideal do Eu, (Glover, 1932; Chimera, 1989),
representando uma “mitologia química” (Wurmser, 1974) ou
substituindo uma experiência mística (Dias,1991). A favor
destas sugestões, tem-se verificado que a) níveis baixos de
religiosidade aumentam o risco de abuso de substâncias;
b) altas taxas de apostasia e falta de afiliação religiosa estão
presentes em adictos; e que c) a religiosidade tem uma
associação negativa significativa com uso de drogas (Aron,
1975; Hawkins, 1992; Newcomb and Earleywine, 1996;
Walsh, 1995).
5. Abstinência, redução de riscos e prevenção do
abuso de substâncias através de afiliação social e
da estabilização do sistema opióide endógeno
Vários autores notaram a substituição do abuso de
substâncias por ligações de grande dependência emocional
(Rosenfeld, 1960; Limentani, 1968; Browne, 1965; Miguel,
1997). No entanto, as abordagens psicoterapêuticas e
médicas tradicionais, exclusivamente centradas no paciente
individual, foram referidas frequentemente como pouco
adequadas (4) no tratamento das adições químicas
(Limentani, 1968; Rosenfled, 1960; Casriel, 1963; Dodes,
1990; Taylor et al., 1997; David, 2001), talvez por não se
prestarem a satisfazer a enorme necessidade de idealização
e fusão emocional que o adicto demonstra ao deixar de
abusar de substâncias (Dodes, 1990).
Os primeiros tratamentos com algum sucesso foram grupos
de pares de auto-ajuda, carregados de intensidade afiliativa,
que depois foram adaptados e transformados por profi-
ssionais da saúde (Casriel,1963; Wurmser, 1974; Yalisove,
1997; Sanches, 2001). Desde então, está bem estabelecido
que os dispositivos terapêuticos que recorrem a grupos de
pares e de parentesco (comunidades terapêuticas, terapias
37
familiares, psicodrama, grupos de auto-ajuda, etc.) permitem
esperar alguns resultados na reversão da adição (Simmel,
1948; Aron, 1975; Malan et al., 1976; Carr, 2000) e que o
tratamento das adições requer a aprendizagem de compe-
tências sociais, estabelecimento de novas relações,
envolvimento com um meio social recompensador, e um
sentimento de aceitação e comunidade (Roberts, 1955;
Gillie, 1969; Lennard and Allen, 1973; Aron, 1975). Investi-
gação experimental recente sugeriu que as estratégias de
prevenção que demonstram mais sucesso são exactamente
as baseadas no treino de competências sociais, influência
social, e através de métodos interactivos (Hawkins, 1992;
Negreiros, 2001).
Numerosas referências têm sido feitas também ao bom
resultado dos grupos de auto-ajuda com componentes
espirituais (Alcoólicos e Narcóticos Anónimos), inclusive
combinados com tratamento médico e psicossocial, na
manutenção da abstinência (Simmel, 1948; Lovell and
Tintera, 1952; Wall, 1957; Aron, 1975; Dodes, 1990; Vaillant,
2000, Neto e Torres, 2001; Frank, 2001, Henriques, 2001).
Entretanto, o recurso à combinação dos dispositivos de
grupo atrás mencionados, com a medicação por antago-
nistas opióides tem verificado melhores resultados na
manutenção da abstinência de opiáceos e álcool por compa-
ração com dispositivos tradicionais (Volpicelli et al., 1992;
Shufman et al.,1994; Neto 1996; Swift, 1999; David, 2001).
Também o recurso à combinação de agonistas opiáceos
(como a metadona) com apoio psicossocial, tem apresentado
resultados mais positivos na redução de riscos e danos do
que programas apenas com agonistas ou apenas com apoio
psicossocial (McLellan et al., 1993; Azar, 1998; David, 2001).
Estes resultados vêm comprovar assim a característica bio-
psicossocial do problema, na interacção entre o sistema
opióide endógeno e a dinâmica interpessoal afiliativa. Os
dispositivos mais adequados parecem ser os que se promo-
vem as competências sociais e o (re)estabelecimento de uma
rede de relacões (estimulando a afiliação e dependência
emocional), simultaneamente com a prescrição química
directa ao nível do sistema opioide endógeno.
6. Conclusão
Após revisão da literatura, resumimos o essencial do que foi
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Gráfico 1 – Modelo Biopsicossocial da Motivação para Abuso de Substâncias

Nível Psicossocial Nível Biológico Nível Psicossomático

Pressuposto Básico
de Dependência Vulnerabilidade
genética do
Aleitamento sistema opióide
Défices na regulação endógeno
interactiva bebé-mãe

Défices no
desenvolvimento
Attachment (1) e regulação do
Défices na vinculação Modelos inseguros sistema opióide
primária à mãe e pai de Attachment endógeno

Ansiedade de Sensibilidade à dor

Attachment (2) separação/desamparo Perturbações intestinais
Défices na Oscilações do humor
vinculação a
parceiros de
intimidade Isolamento social.
Falta de relações
de intimidade Sub-regulação Ansiedade e Depressão
ou privação
de opióides
Afiliação social endógenos
Défices na afiliação social Sentimento de
desprotecção/ Indiferenciação entre
desconforto social sentimentos/emoções
de desamparo, tristeza,
culpa e sensações
somáticas (característica
Ausência de crença Comportamento de Alexitimia)
religioso-espiritual e anti-social
de altruísmo recíproco

Sensação de bem-estar
e conforto
Contacto com psicossomático:
substâncias Analgesia, sedação,
psicotrópicas que euforia +
activam o Independência de
sistema opióide relações socio-emocionais
endogéno stressantes.
Aumento auto-estima

Desmotivação Reforço e Motivação para

para contactos recompensa
emocionais de neurológicos. Abuso de substâncias
attachment e Interacção com que activam o sistema
afiliação sistema opióide endogéno
dopaminérgico

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 A QUÍMICA DA DEPENDÊNCIA E AS DEPENDÊNCIAS-TÓXICAS. PARA UM MODELO BIO-PSICO-SOCIAL • pp. 29-45
proposto sob a forma de diagrama (Gráfico 1), articulando
um modelo teórico biopsicossocial da motivação para abuso
de substâncias, composto por uma série de hipóteses
testáveis (flechas ligando as caixas). Este modelo toma o
sujeito humano, enquanto biologicamente gregário, como
dotado de uma necessidade biopsicossocial de dependência
emocional em vários patamares de desenvolvimento,
estruturados segundo o conceito de Pressuposto Básico de
Dependência (Bion, 1961). Os défices relacionais nos vários
subsistemas do Pressuposto básico de Dependência geram
ansiedade de separação, desamparo e isolamento social,
que ao nível biológico conduzem à privação ou sub-regulação
do sistema opióide endógeno, e a sintomas psicossomáticos
característicos. O contacto com substâncias psicotrópicas
que activam os receptores endógenos, substitui a produção
de opioides endógenos que seria normalmente obtida pelo
contacto emocional.
Num futuro artigo, contamos abordar o modo como o campo
socio-emocional dominado pelo Pressupostos Básicos de
Luta-fuga (Fight-flight) e de Acasalamento (Pairing), contribui
para disrupções no desenvolvimento do campo social de
dependência, e assim para provocar aumentos da
prevalência de dependência de substâncias aos níveis micro,
meso e macro-social.
CONTACTO
Nuno Torres
Psicólogo
C.P.S.
University of Essex
Wivenhoe Park
Colchester CO4 3SQ
United Kingdom
Telefone: 00 441 206 868 143
Email: nmtorr@essex.ac.uk
39
NOTAS
* Este trabalho foi realizado com o apoio de uma bolsa de doutora-
mento financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
(1) Ou, segundo Karl Popper, Mundo 1 (biológico), Mundo 2
(psicológico) e Mundo 3 (socio-cultural), (Popper e Eccles, 1977)
(2) A adequação conceptual desta tríade de sistemas bio-psico-socio-
-emocionais tem sido desde então evidenciada em disciplinas como a
etologia, psicologia da evolução, socio-biologia, e biologia molecular
do comportamento. (Wilson, 1975; Eibl- Eibesfeld, 1970; Pancheri,
1982; Chisholm, 1993; Cartwright, 2000; Shouborg, 2000; Carter e
Keverne, 2002).
(3) A noção de “Campo Social” [social field] foi desenvolvida
inicialmente por Kurt Lewin (1948; 1959), a partir da aplicação da ideia
de Campo Electromagnético e da psicologia da Gestalt ao estudo das
Dinâmicas de grupo. Lewin verificou experimentalmente que o com-
portamento do indivíduo é influenciado por variáveis do ambiente
exterior, nomeadamente outros indivíduos e o grupo como um todo,
formando um equilíbrio dinâmico segundo as duas famosas equações
a) B= f (PE), isto é, o comportamento (B) é uma função da pessoa (P)
e do ambiente (E), e b) Lgr - Lp=N, isto é, a diferença entre o padrão do
grupo e o padrão do indivíduo é igual a uma constante N. Para Wilson
(1975, p. 253), o facto dos primatas superiores, incluindo o Homem,
viverem num campo social, significa que avaliam e respondem ao
comportamento de muitos indivíduos simultaneamente. Bion (1961)
sublinhou a característica emocional primitiva (biopsicológica ou
protomental) e os efeitos psicossomáticos dos fenómenos de campo
social.
(4) De facto, nunca foi possível determinar inequivocamente a relação
das adições com as categorias nosográficas e psicodinâmicas tradicio-
nais do modelo médico-psicológico, acabando por se optar por níveis
de explicação mais básicos tais como défices do Eu, défices na
regulação afectiva e nas relações sociais, (Taylor et al., 1997; Fabião,
2002). O próprio Freud considerou como factores etiológicos os acon-
tecimentos de vida e problemas com objectos externos, indepen-
dentes de doença psiquiátrica (Yalisove, 1997). A este respeito, numa
revisão especificamente sobre os factores intra-pessoais de risco para
a toxicodependência, Newcomb e Earleywine (1996) chegaram à
conclusão de que a maioria dos factores intra-pessoais reflecte traços
que apenas se manifestam na interacção com outras pessoas.
Também Shedler e Block (1990) verificaram que os items que discri-
minavam entre abusadores de droga, experimentadores, e absté-
mios se organizavam em três dimensões: relações interpessoais,
tensão emocional e regulação dos impulsos.
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