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REVISTA DA

ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA

Ano 4 - Número 1 - Janeiro/Junho - 2003


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DESEMBARGADOR HÉLIO QUAGLIA BARBOSA

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DESEMBARGADOR CARLOS AUGUSTO GUIMARÃES E SOUZA JÚNIOR

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RICHARD VAINBERG
REVISTA DA
ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 1-208, janeiro/junho - 2003


Revista da Escola Paulista da Magistratura / Escola Paulista da Magistratura.
Ano I, (1993). São Paulo, SP: Escola Paulista da Magistratura: Imprensa Oficial do Estado

Semestral
2001, v. 2 (1-2)
2002, v. 3 (1- 2)
2003, v. 4 (1-

1. Direito. I. Escola Paulista da Magistratura. II. Imprensa Oficial do Estado

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Sumário

Apresentação
......................................................................................................... 7

Pronúncia in dubio pro societate


Sérgio Marcos de Moraes Pitombo ........................................................ 9

Tributo a Sérgio Marcos de Moraes Pitombo


Maria Thereza Rocha de Assis Moura ................................................ 25

O direito de propriedade e o novo Código Civil


Venicio Antonio de Paula Salles ......................................................... 37

Os reflexos do tempo no Direito Processual Civil


Fernando da Fonseca Gajardoni ........................................................ 59

Entraves jurídicos à realização da Justiça


Nilson Naves .................................................................................... 81

O nome civil das pessoas naturais


como direito de personalidade
Wanderley José Federighi .................................................................... 93

Sociedade, mass media e Direito Penal: uma reflexão


Vinicius de Toledo Piza Peluso ......................................................... 107

Responsabilidade civil do advogado


Ênio Santarelli Zuliani .................................................................. 123

Enunciados aprovados na Jornada de Direito Civil


Ruy Rosado .................................................................................... 177
6
7

Apresentação

A
bre-se esta edição com um magnífico trabalho,
de autoria do desembargador Sérgio Marcos de
Moraes Pitombo, originariamente publicado na
revista Direito Criminal, volume 4 da Coleção Jus Ae-
ternum. Republicando-o, por sua atualidade e certeza de
que bem retrata o espírito inovador do seu notável autor,
a Revista da Escola Paulista da Magistratura, fugindo,
embora, de sua orientação, no sentido de publicar ape-
nas trabalhos inéditos, ao mesmo tempo em que leva a
seus leitores mais uma evidência da inteligência, da cul-
tura e da sabedoria dele, está prestando, também, como-
vida homenagem àquele grande magistrado e jurista de
escol, recentemente falecido, e que, para orgulho de seus
colegas, integrantes da Comissão Editorial e Executiva,
foi, com incomum eficiência, insuperável dedicação e ex-
traordinário propósito de bem servir, seu admirável
coordenador-geral.
Pronúncia
in dubio pro societate

Sérgio Marcos de Moraes Pitombo

SUMÁRIO: 1. Objetivação do tema - 2. In dubio pro reo


- 3. Suposta dúvida - 4. Falta de prova - 5. In dubio pro
societate - 6. Descabimento de o adágio in dubio pro
societate servir de base à decisão de pronúncia - 7. Con-
fusão desnecessária entre suspeita e indício - 8. Tendência
dos julgados - 9. Necessidade de repensar o tema.

1- Objetivação do tema

O
tema é mero aforismo — não um princípio de direito1 — in dubio pro
societate, como eventual fundamento da decisão interlocutória de pronún-
cia, emergente no procedimento especial de Júri (art. 408, caput, do CPP).
Interessa, contudo, examinar o adágio in dubio pro reo, de início e por

1
A maioria dos autores considera que se trata de princípio o seu oposto: in dubio pro reo. Jorge de Figueiredo
Dias, por exemplo, entende que seja “um princípio geral do processo penal, pelo que a sua violação conforma
autêntica questão-de-direito que cabe, como tal, na cognição do Supremo Tribunal de Justiça” (Direito
Processual Penal, Coimbra: Coimbra Editora, 1974, v. 1, § 6º, princípio da prova, pp. 217-218). Ainda exempli-
ficando, Luigi Ferrajoli diz: “E a atividade jurisdicional, na medida em que não é garantista, no sentido que se
vem indicando, resulta, politicamente, ilegítima e se configura como resíduo de absolutismo. Para a carência
deste tipo de legitimação, não cabem formas de integração, podendo se conceber, em suma, alguns corretivos,
como a referência aos valores constitucionais, dos princípios de liberdade a de tutela dos sujeitos mais débeis;
o princípio do favor rei e seu corolário in dubio pro reo; a exposição de todas as atividades jurisdicionais ao
controle público, por meio da máxima publicidade e o constante exercício, em sede científica e política, da crítica
aos desvios judiciais” (Derecho y Razón: Teoría del Garantismo Penal, Madri: Editorial Trotta, 1995, p. 547).

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10 SÉRGIO MARCOS DE MORAES PITOMBO

duplo motivo. Primeiro, deu ele origem a diversos ditos semelhantes, por
exemplo: in dubio contra fiscum — ou in dubio pro fiscum —, in dubio pro
disciplina, in dubio pro minoris, in dubio pro operario, in dubio pro matrimonio,
in dubio pro debitores e outros. Segundo, os julgadores costumam contrapô-lo
ao rifão in dubio pro societate.

2 - In dubio pro reo

In dubio pro reo significa, “na dúvida, a favor do réu”, ou “na dúvida,
soluciona-se em favor do acusado”. Menciona-se, ainda, o “benefício da dúvi-
da”, ao tratar-se de questão de fato. Benefício é favor, mercê, ou graça. O juiz
não distribui favores, mas justiça. Emerge dição pouco feliz.
No Direito Romano, encontram-se expressões análogas: in dubio quod
minimum est sequimur (D., XXVII, IV, 3), “na dúvida seguimos aquilo que é
mínimo”, e semper in dubiis benigniora proeferenda sunt (D., L, XVII, 56), “em
caso de dúvida sempre se deve preferir o mais benigno”. Não se acha, porém,
a frase em comento nas fontes romanas clássicas.
Assegura-se que aparece no Baixo Império Romano e por influência do
cristianismo, mediante tardia interpolação em sentença de Paulo.2 Note-se que
a cláusula se lançou em matéria referente à manumissão do escravo comum. A
passagem para o processo penal, possivelmente, sucedeu no século XIX.3

2
Ver M. Antonio de Dominicis, “Brev. Pauli Sententiarum IV, 12, § 5 e L’origine Romano-Cristiana del Principio In
Dubiis pro Reo; in Tema di Reforma della Formula Dubitativa”, em Archivio Penale 18, fasc. XI e XII, pp. 3-9,
Roma, novembro-dezembro de 1962.
3
Assegurou Jorge de Figueiredo Dias: “O princípio, na formulação latina utilizada, foi cunhado por Stübel; mas ele
constitui um produto generalizado dos ‘processos reformados’ do séc. XIX...”. Anota que referido autor publicou
“Das Criminalverfahren in den Deutschen Gerichten III”, em 1811 (Direito Processual..., cit., p. 213 e nota 72).
Ao cuidar da prova, no processo criminal, Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, aludindo à certeza moral,
certificava: “é fundada na evidência moral. Tal é a que temos de um fato, que muitas testemunhas fidedignas
atestam terem presenciado. Os tribunais criminais contentam-se com a certeza moral para imporem a pena
ordinária. Ela pode definir-se o estado do nosso ânimo seguro da verdade de uma proposição, que respeita à
existência de um fato, que não vimos. Essa certeza moral só pode provir da prova perfeita; isto é, aquela que
exclui a possibilidade da inocência do réu (Brissot, ‘Theorie des Lois Criminelles’, tom. 2, p. 91). Sem certeza
moral (diz Filangieri, ‘Scienza della Legislazione’, 1.3, p. 2, c. 12), a condenação será sempre uma injustiça, a
execução, uma violência” (Primeiras Linhas sobre o Processo Criminal, 4ª ed., Lisboa: Impr. Régia, 1831, nº 301,
p. 120). José Antonio Pimenta Bueno, seguindo a mesma linha, afirma: “A prova é o ato ou atos, ou antes o
meio jurídico ou moral pelo qual se certificam ou convencem os juízes da veracidade dos fatos: é uma parte muito
essencial do processo, e especialmente do crime, porque a presunção natural é a da inocência (Per. e Sz. nºs
301 a 303); e tanto que na colisão de provas ou na dúvida a absolvição deve por certo prevalecer: ‘in’ Ambiguis
Humaniorem Sentatiam, Non Minus Justius est Quam Tutius” (Apontamentos sobre o Processo Criminal Brasilei-
ro, 2ª ed., Rio de Janeiro: Empr. Nac. do Diário, 1857, § 239, p. 147).

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PRONÚNCIA IN DUBIO PRO SOCIETADE 11

O aforismo in dubio pro reo guarda por destinatário o juiz e situa-se na


teoria processual da prova.4
Recorde-se: objeto da prova judicial — em regra — são os fatos e suas
circunstâncias, e que tocam à imputação objetiva e subjetiva. Assim, só os
pertinentes e os relevantes importam evidenciar, na instrução criminal.
Anote-se, julgados conflitantes jamais mostram dúvida, tão-só entendi-
mentos diversos. Vacilação, quanto à interpretação, ou à aplicação da lei, não
se resolve com a parêmia in dubio pro reo.5

3 - Suposta dúvida

A dúvida que se analisa não surge como método de procura da verdade


processual atingível ou possível. Menos, também, como ponto de partida
para a pesquisa processual espontânea, ou atividade do juiz, supletiva da inér-
cia, da acusação ou da defesa, quanto à iniciativa da prova. É — o suposto —
estado de irresolução transitório, em que se encontra o magistrado, quanto
aos fatos: thema probandi.
A dúvida há de emergir insuperável e respeitante ao fato ou circunstân-
cias relevantes, bem como a autoria, co-autoria e participação. A incerteza —
ou pretensa hesitação — desponta qual resultado das provas, que se contradi-
zem, em qualidade e quantidade.
O que se soluciona mediante o senso comum não produz dúvida ponde-
rável.6

4
Assertou Julio B. J. Meir que é máxima principal de valoração da prova (Derecho Procesal Penal Argentino,
Buenos Aires: E. Hammurabi, 1989, t. 1, v. a, § 2, p. 118).
5
Observou Manuel Gonçalves Cavaleiro Ferreira: “O princípio — in dubio pro reo — respeita ao direito probatório.
A presunção de inocência do argüido implica que, sendo incerta a prova, se não use de um critério formal como
o resultante do ônus legal da prova para decidir da condenação do réu, a qual terá sempre de assentar na certeza
dos fatos probandos. Mas não há que interpretar as leis em sentido favorável ao réu. Trata-se de mero equívoco
estender um princípio relativo à prova, à matéria de interpretação. O Código Penal bavário de 1813 continha uma
disposição que permitia a punição pelo crime menos grave, quando se não provava qualquer dos crimes que em
alternativa se pudesse assegurar que o réu cometera, embora não se obtivesse a prova de todos os elementos
constitutivos essenciais de qualquer dos crimes em alternativa. Tal disposição veio a ser renovada pela legislação
alemã de 1946 e o problema, sob a influência da doutrina alemã, veio a ser discutido noutros países. A questão
não respeita também à matéria de interpretação, mas somente ao direito probatório. Na Alemanha, a disposição
legal que fomentou a discussão encontra-se revogada. Entre nós, e quanto ao Código bávaro, pronunciara-se
já Silva Ferrão, condenando a disposição desse Código e considerando-o contrário à doutrina do Direito português.
A opinião de Silva Ferrão é de manter. Só a prova de todos os elementos constitutivos essenciais de uma infração
permite a sua punição. Mas é esse um problema de direito probatório em processo penal, e não uma regra de
interpretação da lei penal” (Direito Penal Português: Parte Geral, 2ª ed., Lisboa: E. Verbo, 1982, v. I, § 48, p. 111).
6
Daí a assertiva: “§ 220. O homem sensato não tem certas dúvidas” (WITTGENSTEIN, Ludwig. Da Certeza, ed.
bilíngüe, Lisboa: Ed. 70, 1998, p. 69).

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12 SÉRGIO MARCOS DE MORAES PITOMBO

4 - Falta de prova

A persuasão racional, na apreciação da prova — o juiz deve decidir con-


forme o alegado e provado: secundum allegata et probata partinum —, mostra
o engano do aforismo.
Se irrompem provas equivalentes, em sentido contrário; se, por isso, não
convencem, inexiste dúvida, mas certeza da falta de prova. Vale assentar: se os
elementos de convicção falham, ao surgirem antitéticos, a acusação, assim,
não suportou o ônus respectivo. Cabe, então, absolver o acusado.
Repita-se: ele termina absolvido não por motivo de dúvida, porém, em
razão da falta de provas para condenar.7 A indeterminação do fato e/ou da
autoria exibe o fracasso da pesquisa da verdade possível, ou atingível.
Em resumo: in dubio pro reo consiste em falsa parêmia,8 ou deve acabar
entendida como simples fenômeno, nascente no racional convencimento, de
apuração, ou verificação, de falta de prova. Admissão judicial, pois, de que não
restou demonstrado o fato, em que se fundou a acusação formal, ou sua autoria,
gerando a absolvição. Não se ostenta como princípio, tirante a idéia — a ser
melhor debatida — de que se cuide de princípio político. Daí porque se assente,
no Código Tipo de Processo Penal, para a América Latina: “A dúvida favorece o
imputado” (Livro I, Disposições Gerais, Título I, Princípios básicos, nº 3, in fine).

7
Santiago Sentís Melendo afirmou: “Mas não se trata de dúvida, senão de outro fenômeno: falta de provas.
Quando se diz in dubio pro reo, se está dizendo que, à falta de provas, há que se absolver o réu; e isso parece
não necessitar justificação. O juiz não duvida, quando absolve. Está, firmemente, seguro; tem a plena certeza.
De quê? De que lhe faltam provas para condenar. Se é no sumário, tão pouco duvida: acha-se seguro de que
lhe faltam os elementos probatórios exigidos, para processar, ou para encarcerar. Não se trata de favor,
somente, de justiça” (In Dubio Pro Reo, Buenos Aires: EJEA, 1971, pp. 158-159).
8
Ponderou Roberto de Ruggiero: “1) Na escolástica antiga e na prática do povo, foi-se formando um pouco no
ar uma série de brocardos ou aforismos jurídicos, que são repetidos pelos práticos a todo momento e retidos
como expressões de regras fixas e princípios absolutos. Toda a teoria da interpretação se resume assim, para
alguns, no uso dessas máximas, arrancadas freqüentemente à lógica e a maior parte das vezes adotadas
absolutamente fora de propósito. Soam como outros tantos provérbios da sapiência jurídica (por exemplo: ‘ubi
eadem legis ratio, ibi eadem dispositio’, ‘cessante ratione legis cessat et ipsa lex’, ‘ubi lex non distinguit, nec
nos distinguere debemus’, ‘inclusio unius exclusio alterius’, ‘in eo quod plus est semper inest et minus’ etc.), e
são por vezes o mais perigoso instrumento nas mãos do juiz, desde que seja pouco experimentado na difícil arte
de interpretar. Têm, na verdade, a aparência de princípios gerais e absolutos e, pelo contrário, não há um único
que não seja falso como máxima geral: parecem as mais das vezes contraditórios e antitéticos, visto que em face
de um, que afirma dada regra, é sempre possível encontrar um segundo que contenha regra oposta; têm cada
um deles um campo de aplicação com limites próprios, fora dos quais vigora a regra oposta, mas não exprimem
quais sejam esses limites. Ora, um grande número de erros cometidos na aplicação dos textos da lei tem a sua
causa direta e imediata no abuso que todos os dias os juízes e advogados fazem destes aforismos que, como
foi dito, são todos eles falsos na sua generalidade” (Instituições de Direito Civil: Introdução e Parte Geral, trad.
Ary dos Santos, 3ª ed. revista e adaptada por Antonio Chaves e Fábio Maria de Mattia, São Paulo: Saraiva,
1971, v. I, § 17, pp. 119-120).

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PRONÚNCIA IN DUBIO PRO SOCIETADE 13

5 - In dubio pro societate

É fácil, na seqüência, perceber que a expressão in dubio pro societate não


exibe o menor sentido técnico. Em tema de direito probatório, afirmar-se “na
dúvida, em favor da sociedade” consiste em absurdo lógico-jurídico. Veja-se:
em face da contingente dúvida, sem remédio, no tocante à prova — ou me-
lhor, imaginada incerteza — decide-se em prol da sociedade. Dizendo de
outro modo: se o acusador não conseguiu comprovar o fato, constitutivo do
direito afirmado, posto que conflitante despontou a prova, então se soluciona
a seu favor, por absurdo. Ainda porque não provou ele o alegado, em face do
acusado, deve decidir-se contra o último. Ao talante, por mercê judicial o
vencido vence, a pretexto de que se favorece a sociedade: in dubio contra reum.9
Só o exagerado positivismo jurídico — quase desaparecido — pode tole-
rar o sério mal-entendido. O fenômeno processual mantém-se: a acusação
não suportou o onus probandi.
Subjacente à assertiva in dubio pro societate acha-se o vedado procedimen-
to de ofício e a quebra da denominada presunção de inocência (arts. 5 º, inc.
LVII, e 129, inc I, da Constituição da República).

6 - Descabimento de o adágio in dubio pro societate


6 - servir de base à decisão de pronúncia

Sem prova suficiente, não se há de decretar prisão cautelar, em princípio


(arts. 311 e 312, do CPP). Sem prova bastante, não se pode acusar, de modo
formal (arts. 43 e 648, inc. I, do CPP). Sem prova da existência material, de
crime doloso contra a vida — praticado ou tentado (art. 5º, inc. XXXVIII) da
Constituição da república e art. 83 da Constituição do Estado de São Paulo c/
c art. 78, § 1º, do CPP) —, mais indícios de que o imputado seja o seu autor
e algum elemento, dizente com a culpabilidade, não se profere ato decisório
de pronúncia (art. 408, caput, do CPP).

9
Cristina Líbano Monteiro, analisando a expressão in dubio pro societate, observou: “Outra solução valorativa,
teoricamente possível, traduz-se em resolver a dúvida insanável sobre os fatos num sentido contra reum ou pro
societate: na incerteza sobre a culpa real do argüido, dever-se-iam privilegiar os interesses de defesa social,
sacrificando ao bem coletivo a eventual inocência de singular. O in dubio pro reo enfermaria de individualismo
à outrance, com o qual não pactuaram doutrina como a nacional-socialista, sistemas de corte soviético ou, antes
de qualquer deles, escolas como a positivista italiana” (Perigosidade de Inimputáveis e “in Dubio pro Reo”,
Coimbra: Universidade de Coimbra, Studia Juridica, Coimbra Editora, 1997, p. 47).

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14 SÉRGIO MARCOS DE MORAES PITOMBO

No procedimento especial do Júri, a fase do sumário de culpa, também


denominada juízo de acusação, finda com a decisão interlocutória de pronún-
cia (art. 408 do CPP), sentença terminativa de impronúncia (art. 409 do
CPP) e sentença definitiva de absolvição sumária (art. 411 do CPP). Sem
esquecer a divisão interlocutória de desclassificação, com declinação da com-
petência (art. 410 do CPP).
No ato decisório de pronúncia, admite-se a acusação formal. Assim,
permitindo a abertura da segunda fase do procedimento: juízo da causa.
Ele acaba em sentença de mérito, após o julgamento em plenário (arts. 492
e 493 do CPP).10
O juiz, para pronunciar, necessita “se convencer — por via dos meios de
prova — da existência do crime e de indícios de que o réu seja seu autor”, e apon-
tando “os motivos de seu convencimento” (art. 408, caput, do CPP).
Se os meios de prova, ao término da formação da culpa, despontam con-
flitantes, a acusação mal suportou o ônus de demonstrar que: (a) o fato con-
creto exibe-se ilícito e típico; (b) estão presentes, ao menos, indícios veemen-
tes11 de autoria — indícios, pois, acrescidos no juízo de acusação —; e (c)

10
Ao se aceitar que a ação penal de conhecimento, de natureza condenatória, se ostenta como o escudo, o
anteparo, a proteção do acusado, contra eventual arbítrio estatal, na imposição da pena, ou da medida de
segurança, melhor o entendimento de Vicente Greco Filho. Ponderou: “É comum dizer-se que a função da
pronúncia é a de remeter o réu a Júri. Mas rejeitamos, terminantemente, essa impostação. A função da fase de
pronúncia é, exatamente, a contrária. Em outras palavras, a função do juiz togado, na fase de pronúncia, é a
de evitar que alguém que não mereça ser condenado possa sê-lo em virtude do julgamento soberano, em
decisão, quiçá, de vingança pessoal ou social. Ou seja, cabe ao juiz na fase de pronúncia excluir do julgamento
popular aquele que não deva sofrer a repressão penal. Usando expressões populares, pode-se dizer que
compete ao juiz evitar que um inocente seja jogado ‘às feras’, correndo o risco de ser condenado, ou que o Júri
pode fazer uma injustiça absolvendo, não podendo fazer uma injustiça ao condenar. A pronúncia, portanto, atua
como uma garantia da liberdade, evitando que alguém seja condenado e não o mereça” (“Questões polêmicas
sobre a pronúncia”, Tribunal do Júri: Estudos sobre a mais Democrática Instituição Jurídica Brasileira, In: TUCCI,
Rogério Lauria (coord.), São Paulo: RT, 1999, pp. 118-119).
11
Lemos Brito, anotando o artigo 14, caput, do Decreto-lei nº 167, de 5 de janeiro de 1938, advertiu: “Para que
autorizem a pronúncia de um cidadão, os indícios devem ser, para aproveitar a lição do Código francês, graves,
preciosos e concordantes. A lei brasileira exigia que esses indícios fossem veementes, isto é, que fizessem
induzir de modo claro a que alguém foi o autor de um ato incriminado. Conferir ao juiz o poder de pronunciar
alguém por leves indícios, com os vexames de ordem material e moral que a pronúncia acarreta, lançando-lhe
o nome no rol dos culpados e expondo-o a execração pública, seria conferir-lhe um poder ditatorial, e a pior das
ditaduras, escreveu Rui Barbosa, seria a Judiciária, porque é proibido discutir os arestos dos juízes e tribunais
e porque os atos mais arbitrários teriam a presunção de legalidade. (...) Indícios veementes, pois, e não simples
indícios, porque isto constituiria a entrega de uma arma perigosíssima ao juiz e faria continuadamente pericli-
tantes a liberdade e a honra do cidadão. Se conjecturas arriscadas, a dúvida, a suspeita, a possibilidade, não
bastam para a pronúncia, ensina Bento de Faria, atual presidente do Supremo Tribunal Federal, pronúncia que
só é decretada, embora, por indícios veementes, porém quando a existência do crime e o conhecimento do
delito estejam plenamente provados, com a maior razão tais presunções ou indícios não bastam para a
condenação, que somente em provas, irrefragáveis, deve assentar” (“Arbítrio judicial e pronúncia”, Revista
Forense, Rio de Janeiro, v. LXXVI, fasc. 424, pp. 156-157, out. 1938, grifo nosso). No mesmo sentido, opinou

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PRONÚNCIA IN DUBIO PRO SOCIETADE 15

irrompe alguma prova — conforme a razão — da culpabilidade do imputa-


do. Ficou-se, portanto, no que, tão-só, bastava para acusar, incoando o proce-
dimento especial.
Ora, a única solução técnico-jurídica cabente acha-se na impronúncia,
que abriga os casos de não-convencimento, por motivo das provas obtidas ou
produzidas (art. 409 do CPP). Vale renitir: aflorando provas em sentido con-
trário – uma não desmentindo, ou infirmando a outra, inobstante opostas - ,
tal sucesso implica falta de prova, causando hipótese de impronúncia. Jamais
seria, pois, de pronunciar-se o acusado, em base do adágio in dubio pro socie-
tate, mais fictício de que seu inverso, ou adverso, porque fora de toda razão e
proporção.

7 - Confusão desnecessária entre suspeita e indício

Desnecessária confusão tem-se feito, ainda, entre os conceitos de suspei-


ta e indício, nos julgados.
O Supremo Tribunal Federal, por sua Primeira Turma, julgando o Habeas
Corpus nº 686.061/130, de São Paulo, a 18 de junho de 1991, relator min.
Celso de Melo, decidiu: “Ementa – Habeas corpus – Júri – Pronúncia – Limites
a que juízes e tribunais estão sujeitos – Excesso configurado – Ordem deferida. Os
juízes e tribunais devem submeter-se, quando praticam o ato culminante do ‘judicium
accusationis’ (pronúncia), à dupla exigência de sobriedade e de comedimento no uso
da linguagem, sob pena de ilegítima influência sobre o ânimo e a vontade dos
membros integrantes do Conselho de Sentença. Age ‘ultra vires’, e excede os limites
de sua competência legal, o órgão judiciário que, caracterizando a natureza da
sentença de pronúncia, converte-a, de um mero juízo fundado de suspeita, em um
inadmissível juízo de certeza.” No correr do acórdão, assertou-se: “A leitura do
acórdão ora questionado evidencia o tribunal apontado como coator descaracterizou
a pronúncia, convertendo-a, de um mero juízo fundado de suspeita, em um inad-
missível juízo de certeza. Daí, o correto pronunciamento desta Corte (RT 523/486,
rel. min. Leitão de Abreu), no sentido de que à sentença de pronúncia, como decisão

Margatinos Torres (Processo Penal do Júri no Brasil, Rio de Janeiro: Jacintho, 1939, pp. 187-197). Hoje ensina
Rogério Lauria Tucci: “É de ser observado, a respeito, que, diferentemente da legislação nacional precedente,
mencionado dispositivo — art. 408, caput — refere-se, tão-só, a indícios, sem qualquer adjetivação. Todavia,
eles não podem deixar de ser veementes, como anota Ary Azevedo Franco, reportando-se à ensinança de
Lemos Brito...” (“Tribunal do Júri: origem, evolução, características e perspectivas”, Tribunal do Júri, cit., p. 40).

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 9-23, janeiro/junho - 2003


16 SÉRGIO MARCOS DE MORAES PITOMBO

sobre admissibilidade da acusação, constitui juízo fundado de suspeita, não o juízo


de certeza que se exige para a condenação.”
Tal compreensão levou a que se afirmasse vigorar, na fase da pronúncia, o
refrão in dubio pro societate, porque irrompe mero juízo de suspeita e jamais de
certeza.
Suspeita desponta na investigação e na instrução preliminar, ou prepara-
tória, seja inquérito policial, seja outra qualquer forma aceita no direito brasi-
leiro. É raro emergir suspeita, na fase judicial, da persecutio criminis. Exsurgin-
do, porém, não a escora, ou ampara, em nada.
O suspeito, sobre o qual se reuniu prova da autoria da infração, tem que
ser indiciado. Já aquele que, contra si, possui frágeis indícios, ou outro meio
de provas esgarçado, não pode ser indiciado. Mantém-se ele como é: suspeito.
A mera suspeita não vai além da conjetura, fundada em entendimento
desfavorável a respeito de alguém. As suspeitas, por si sós, não são mais que
sombras, não possuem estrutura para dar corpo à prova da autoria. Nada
aproveitam para a instrução criminal, apenas importam à simples investiga-
ção policial.
Suspeita-se de pessoas, de coisas, de fatos. Suspeita-se com vistas às cir-
cunstâncias. O suspeitador olha do alto, conjetura, desconfia, possui leve
opinião subjetiva a respeito do objeto. Suspeitar é, supondo, tachar de duvi-
dosa a pessoa, a coisa, ou o fato.
Diferem as figuras do suspeito e do indiciado. Existem dois juízos, quan-
to à autoria, na fase procedimental da persecutio criminis, a saber: do possível e
do provável.
Juízo possível consiste naquele que, logicamente, não é contraditório —
entenda-se, não auto-contraditório. Inexistem motivos fortes pró ou contra.
Emerge neutral, assim: é possível que o homem seja homicida, mas é possível
que não seja. Aflora como suspeito.
Juízo provável é o verossímil. Aproxima-se da verdade, sem, necessaria-
mente, ser verdadeiro. Parte de razões robustas, porém ainda não decisivas.
Não bastante suficientes, senão para imputar. Surge aneutral, assim: é prová-
vel que o homem seja homicida, por causa dos meios de prova colhidos ou
produzidos, mas talvez não seja. Deve, portanto, ser indiciado.
Indiciado, assim, é aquele sobre quem recaiam, no correr do inquérito
policial, os indícios, ou outros meios de prova, bastantes para acusá-lo em

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 9-23, janeiro/junho - 2003


PRONÚNCIA IN DUBIO PRO SOCIETADE 17

Juízo, de haver perpetrado infração penal, cuja existência se acha, suficien-


temente, evidenciada.
Há graus diferentes de incriminação: suspeito, indiciado, acusado, pro-
nunciado e condenado. Ostentam estágios evolutivos de aproximação — que
se compreendem teoréticos — da verdade processual, ou atingível.12
Os indícios, que se mostraram suficientes para basear a denúncia e a
queixa subsidiária, precisam crescer, no juízo de acusação — salvo se aflora-
ram veementes, de logo —, para ensejar ato decisório de pronúncia.
A ninguém deve levar-se a julgamento em base de simples suspeita de
autoria, co-autoria ou participação. A decisão de pronúncia nunca poderia
arrimar-se em suspeita (art. 408, caput, do CPP). Não tem pertinência com
essa categoria jurídica.

8 - Tendência dos julgados

A tendência dos julgados merece surgir apontada. Em muito contraria


ao que se vem asserindo.
A Primeira Turma, do Supremo Tribunal Federal, em 23 de abril de
1996, ao julgar o Habeas Corpus nº 73.512-6, do Rio de Janeiro, sendo
relator min. Ilmar Galvão, assentou: “Ementa: Habeas corpus. Pronúncia. Mo-
tivação. Alegada falta de justa causa para submissão do paciente ao Tribunal do
Júri. O acórdão atacado, ao submeter o paciente ao seu juiz natural, descreveu
conduta típica. Mas não seria de exigir-se, notadamente em face do que dispõe o
art. 408 do Código de Processo Penal, o primado do in dubio pro societate e a
própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a pronún-
cia deve evitar converter um mero juízo fundado de suspeita, que a caracteriza,
num inadmissível juízo de certeza, onde haveria inquestionável prejuízo à compe-
tência constitucional do Tribunal do Júri para apreciar a questão de mérito (HC
68.606, rel. min. Celso de Mello).” Notável o passo do venerando aresto: “É
sabido que qualquer dúvida que paire quanto à autoria do crime deve ser resolvida
pelo Tribunal do Júri.”

12
Ver, sobre a regra da verdade material, nosso: “O juiz penal e a pesquisa da verdade material”, Processo Penal
e Constituição Federal, in: PORTO, Hermínio Alberto Marques; SILVA, Marco Antônio Marques da (coords.), São
Paulo: Acadêmica, 1993, pp. 72-77.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 9-23, janeiro/junho - 2003


18 SÉRGIO MARCOS DE MORAES PITOMBO

No Habeas Corpus nº 8.292, de Goiás (REG 98.94051-0), relator min.


Vicente Leal, julgado em 15 de abril de 1999, decidiu-se: “Processual Penal.
Habeas corpus. Pronúncia. Juízo de Admissibilidade. Qualificadoras. CPP, art.
408. Exclusão. Hipótese. Excesso de prazo. Conclusão do Sumário. Súmula nº 52/
STJ. Segundo a moldura legal do art. 408, do Código de Processo Penal, a
sentença de pronúncia consubstancia mero juízo de admissibilidade da acusação,
em que se exige apenas o convencimento da prova material do crime e da presença
de indícios de autoria. Se a denúncia imputa ao réu crime de homicídio qualifi-
cado, na sentença de pronúncia o juiz monocrático somente pode excluir circuns-
tância qualificante se esta, a luz da prova condensada no sumário, for manifes-
tamente improcedente, pois havendo incerteza sobre a situação de fato, deve o tema
ser reservado ao Tribunal do Júri, que é o juiz natural competente para o julga-
mento dos crimes dolosos contra a vida, ex vi do art. 5º, XXXVIII, da Constitui-
ção. Encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação e constrangimento
por excesso de prazo (Súmula 52/STJ). Habeas corpus denegado.” No veneran-
do acórdão, pode-se ler: “Havendo, no entanto, dúvida sobre a situação de fato
que consubstancia a qualificante, deve prevalecer o princípio do in dubio pro
societate. O enfrentamento da questão deve ser realizado pelo Tribunal do Júri,
que é o Juiz natural competente para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida,
ex vi do art. 5º, XXXVIII, da Constituição.” Assim, substituindo o convenci-
mento racional pelo julgamento de consciência, o jurado decide segundo sua
íntima convicção, como sabem todos (art. 464 do CPP).
No Recurso Especial nº 192.049, do Distrito Federal (98.0076411-9),
julgado em 16 de março de 1999, a Quinta Turma, relator min. Félix Fischer,
dentre outras questões, solucionou: “Penal e Processual Penal. Recurso Espe-
cial. Tempestividade. Prequestionamento. Súmula nº 400/STF. Júri. Homicídio
qualificado e lesão corporal seguida de morte. Pronúncia. Desclassificação. Reva-
lorização e Reexame do Material cognitivo. IV – A decisão, na fase da pronúncia,
aprecia a admissibilidade, ou não, da acusação, não se confundindo com o
denominado iudicium causae.VI – Na fase da pronúncia (iudicium
accusationis), reconhecida a materialidade do delito, qualquer questionamento
ou ambigüidade faz incidir a regra do brocardo in dubio pro societate.”
Ainda no Recurso Especial nº 152. 988, de Goiás (REG 97/0076218-
1), julgado em 24 de novembro de 1998, a Sexta Turma, relator min. An-
selmo Santiago, decidiu: “Resp. Pronúncia que admite o homicídio qualificado,
tal como disposto na denúncia. Tribunal que excluiu uma delas, quebra do prin-
cípio do in dubio pro societate, aplicável nessa fase. 1. Na fase da pronúncia

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 9-23, janeiro/junho - 2003


PRONÚNCIA IN DUBIO PRO SOCIETADE 19

segundo a doutrina e jurisprudência, havendo dúvida, resolve-se a mesma pelo


princípio in dubio pro societate. 2. Só mesmo em casos especialíssimos, quando
a qualificadora ficar claramente afastada, posto que sem qualquer apoio nos
autos, é que se deve subtraí-la do seu juízo natural, o Tribunal Popular, circuns-
tância inobservada no caso em tela. 3. Recurso conhecido e provido.” Nota-se no
julgado: “Ora, nas circunstâncias em que os fatos ocorreram, onde a vítima foi
encontrada carbonizada dentro de seu veículo, não se pode subtrair ao Tribunal
Popular a decisão sobre se o óbito decorreu de emprego de fogo, ou não. A questão deve
ser solvida pelo velho aforismo latino — in dubio pro societate — consoante a
doutrina e jurisprudência...”.
No Recurso Especial nº 115.601, do Rio Grande do Sul (96.0076756-
4), julgado em 10 de março de 1998, a Sexta Turma, sendo relator min.
Anselmo Santiago, ementou: “Recurso Especial. Réu pronunciado por homicí-
dio qualificado. Tribunal local que o despronuncia, baseado na dúvida de que o
óbito da vítima teria ou não resultado de um crime. Basta, contudo, mero juízo
de probabilidade. Aplicação, nessa fase, do provérbio in dubio pro societate. I
– Para a pronúncia, basta o mero juízo de probabilidade de que tenha havido
um crime, à vista dos indícios de autoria e materialidade. Desnecessária a certe-
za de sua ocorrência, o que se reserva para a decisão definitiva do Júri. II –
Nessa fase, há de se aplicar o provérbio in dubio pro societate e não in dubio
pro reo, para que não se abstraia o acusado de seu juízo natural: o Tribunal
Popular. Precedentes do STF e STJ. III – Recurso conhecido, restabelecida a
decisão de primeiro grau.”
No Recurso Especial nº 115.324, do Paraná (REG 96.0076299-6),
julgado em 9 de junho de 1997, a Sexta Turma, relator min. Vicente Leal,
exsurgiu a seguinte ementa: “Processual Penal. Pronúncia. Juízo de admissibi-
lidade de acusação: existência material do fato criminoso e indícios de autoria.
Inexigência de certeza quanto à autoria. In dubio pro societate. Segundo a
moldura legal do art. 408, do Código de Processo Penal, a sentença de pronúncia
consubstancia mero juízo de admissibilidade da acusação, em que se exige apenas
o convencimento da prova material do crime e da presença de indícios de autoria,
sendo descabido que se demonstre, nesse édito judicial, de modo incontroverso,
quem seja o autor do delito. Nos crimes dolosos contra a vida, o juízo de certeza
sobre a autoria, imprescindível apenas para a condenação, é da competência
exclusiva do Tribunal do Júri, seu juízo natural, sendo vedado ao juízo singular,
ao proferir a sentença de pronúncia, fazer longas incursões sobre a prova de
autoria, susceptíveis de influenciar o corpo de jurados, sendo certo que, nessa fase

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 9-23, janeiro/junho - 2003


20 SÉRGIO MARCOS DE MORAES PITOMBO

do processo, despreza-se a clássica idéia do in dubio pro reo, sobrelevando o


princípio do in dubio pro societate. Recurso especial conhecido e provido.” E diz
o venerando acórdão: “Ora, em tema de pronúncia, despreza-se a clássica idéia
do in dubio pro reo, sobrelevando o princípio do in dubio pro societate.”
Nos Tribunais de Justiça das unidades federativas, conserva-se a mesma
orientação:13

1 – “A decisão de pronúncia é de mera admissibilidade do Juízo, em que


impera o princípio do in dubio pro societate, ou seja, que, em caso de
dúvida, esta deve ser dirimida pelo Conselho de Sentença, juiz natural
da causa” (TJSP, Rec., rel. Linneu Carvalho, RT 729/545).

2 – “Homicídio. O despacho de pronúncia, sendo meramente declarató-


rio, faz ocorrer inversão da regra procedimental do in dubio pro reo
para in dubio pro societate, em razão de que somente diante de prova
inequívoca é que deve o réu ser subtraído de seu juiz natural: o Júri”
(TJSP, Rec., rel. Reynaldo Alves, RT 619/340).

3 – “Na pronúncia, há inversão da regra procedimental in dubio pro


reo para a in dubio pro societate, de sorte que somente diante de prova
inequívoca pode o réu ser subtraído do julgamento de seu juiz natural,
que é o Júri” (TJSP, rel. Nélson Schiavi, RT 605/304).

4 – “Não há como sustentar uma impronúncia fundamentada no bro-


cardo in dubio pro reo. É que nessa fase processual há inversão daquela
regra procedimental para a do in dubio pro societate em razão de que
somente diante de prova inequívoca é que deve o réu ser subtraído ao
julgamento pelo Júri, seu juízo natural” (TJSP, Rec., rel. Diwaldo
Sampaio, RT 587/296).

5 – “A dubiedade de prova não beneficia a réu na fase de pronúncia”


(TJRJ, Rec., rel. Décio Itabaiana, RT 583/422).

13
Todos os arestos, em seguida referidos, extraíram-se de FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui (coords.), Código
de Processo Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, São Paulo: RT, 1999, v.2, p. 2.466. Outros arestos
encontram-se colecionados por PEREIRA, José Ruy Borges, Tribunal do Júri: Crimes Dolosos Contra a Vida, São
Paulo: Saraiva, 1993, na seqüência ao artigo 408, nºs 050/20, 30, 80, 87, 95, 117, 126 e 052/101, pp. 203-215
e 233.

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PRONÚNCIA IN DUBIO PRO SOCIETADE 21

6 – “A sentença de pronúncia, como decisão sobre a admissibilidade da


acusação, constitui Juízo fundado de suspeita,, não o juízo de certeza que
se exige para a condenação. Daí a incompatibilidade do provérbio in
dubio pro reo com ela. É a favor da sociedade que nela se resolvem as
eventuais incertezas propiciadas pela prova” (TJSP, Rec., rel. Dirceu
de Mello, RT 583/352).

7 – “O brocardo in dubio pro reo é incompatível com o juízo de pro-


núncia. Se dúvida existe, cabe a Júri dirimi-la, pois é ele o juízo consti-
tucional dos processos por crimes contra a vida, competindo-lhe reconhe-
cer ou não a culpabilidade do acusado” (TJSP, Rec., rel. Goulart So-
brinho, RT 575/367).

8 – “O in dubio pro reo é incompatível com o Juízo de pronúncia. Se


dúvida existe, cabe ao Júri dirimi-la. É ele o juízo constitucional dos
processos por crimes contra a vida, competindo-lhe reconhecer ou não a cul-
pabilidade do acusado” (TJSP, Rec., rel. Hoeppner Dutra, RT 522/36).

9 – “No despacho de pronúncia, sendo meramente declaratório, há in-


versão da regra procedimental do in dubio pro reo para in dubio pro
societate, em razão do que somente diante de prova inequívoca é que
deve o réu ser subtraído de seu juiz natural” (TJPR, Rec., rel. Ministro
Lemos Filho, RT 465/339).

Desponta, também, outro fundamento para ensejar a invocação do


aforismo criticado. Cuida-se da falácia — no sentido de silogismo sofista
— de, achando-se débeis os meios de prova produzidos, enviar-se o acusa-
do a julgamento, pelo Tribunal do Júri, a pretexto de não se dever violar a
soberania dos veredictos (art. 5º, inc. XXXVIII, letra c, da Constituição
da República). Ora, o procedimento especial de júri, antes de ser forma
procedimental inserta no CPP, viu-se reconhecer como garantia de direito
individual (art. 5º, inc. XXXVIII, da Constituição da República). Assim,
não se há de fazer operar a instituição, em prejuízo dos acusados.14

14
Eis as observações lançadas por Guilherme de Souza Nucci: “Não se pode olvidar que o legislador, no art. 408
do CPP, estipulou ir somente a júri o réu que responde por um delito cuja existência está cristalinamente provada
e que, em matéria de autoria, as provas dos autos acusem indícios suficientes de autoria. Por que essa cautela?
Trata-se de medida salutar e faz parte do controle judiciário sobre os processos que devem ser julgados pelo Júri.

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22 SÉRGIO MARCOS DE MORAES PITOMBO

9 - Necessidade de repensar o tema

O tema precisa reexaminar-se. A máxima in dubio pro reo é enganosa. A


prova imprescindível, tanto que inexistente, conduz o juiz a estado de certeza
e, por tal motivo, absolve. Até os que aceitam a idéia de dúvida15 não supor-
tariam o rifão in dubio pro societate, patente a sua absurdidade, posto que
contrário a qualquer sistema probatório.
Além disso, no procedimento especial de Júri, se conflitantes as provas
de autoria, descabido substituir, na apreciação ou valoração da prova obtida
ou produzida, no juízo de acusação, a persuasão racional — que provocaria a
impronúncia — por íntima convicção dos jurados (art. 464 do CPP) — em
razão da pronúncia desfuncionalizada.
E mais que isso: a aplicação de determinado preceito jurídico — art. 408,
caput, do CPP — é constitutiva da própria norma. A aplicação, que se protrai
viciosa ou equivocada sobre a realidade — diga-se probatória, na análise aqui

Não há qualquer afetação à soberania dos veredictos, pois já se disse anteriormente que soberania, de fato,
não é sinônimo de onipotência, nem de puro arbítrio. Soberania quer dizer que o júri, quando for o caso, assim
apontado por decisão judiciária de órgão togado, terá a última palavra sobre um crime doloso contra a vida. De
que vale mandar a julgamento pelo tribunal popular alguém que não seja culpado ou contra quem não haja indícios
razoáveis de autoria? Seria um passo certo para provocar uma eventual decisão condenatória do tribunal popular
e, depois, em sede de apelação, mandar a novo júri, porque o veredicto foi manifestamente contrário à prova
dos autos. Ou pior: seria o arremesso da eventual decisão condenatória do júri à sede da revisão criminal, quando
o tribunal togado iria absolver o réu porque o veredicto afrontou a evidência dos autos. Enfim, se o magistrado,
por ocasião da pronúncia, percebe que não há provas suficientes para envolver o réu na prática do homicídio
ou de outro delito contra a vida, deve impronunciá-lo e nessa postura não existe qualquer arranhão à soberania
do júri. Entretanto, observa-se, na prática, que a magistratura togada é contraditória nas suas análises, no contexto
do processo do júri. São em flagrante menor número as decisões dos Tribunais Superiores mantendo as decisões
de impronúncia do que aquelas que as reformam, mandando os réus a julgamento pelo colegiado popular. O
argumento é quase sempre o mesmo; havendo indícios de autoria, mesmo que mínimos, deve-se enviar o caso
a julgamento pelo Tribunal do Júri, sob pena de ofensa à competência constitucional do tribunal popular para
julgar os crimes dolosos contra a vida. Sendo a decisão de pronúncia de mera admissibilidade da acusação, para
não ferir a soberania dos veredictos, deve-se pronunciar o réu. Ora, o controle judiciário deveria ser exercido com
firmeza nessa fase. Se existem provas suficientes para condenar, o juiz envia o caso ao júri. Não havendo provas
mínimas para sustentar uma condenação, por que mandar o réu a julgamento pelo tribunal popular? Somente
para, em caráter formal cumprir os pretensos ‘mandamentos constitucionais’ (soberania dos veredictos e
competência para apreciar crimes dolosos contra a vida)? Verifica-se que, ao remeter um caso à apreciação do
júri, está o tribunal togado acatando a possibilidade de haver condenação, ou seja, de ficar comprovada, de algum
modo, a autoria. O que não pode acontecer é, a pretexto de garantir a supremacia do veredicto popular, o juiz
togado pronunciar qualquer caso, mesmo com indícios mínimos de autoria para, depois, o tribunal togado (em
apelação ou em revisão) contrariar eventual condenação dos jurados” (Júri: Princípios Constitucionais, São Paulo:
Juarez de Oliveira, 1999, § 20.4.3, pp. 94-95).
15
Certificou Luigi Ferrajoli: “A incerteza do fato depende da igual plausibilidade probabilística das várias hipóteses
explicativas possíveis do material probatório recolhido (...). Quando não resultam rebatidas, desmentidas, nem
a hipótese acusatória, nem as hipóteses opostas a ela, a dúvida resolve-se conforme o princípio in dubio pro reo,
contra a primeira (...). q) a absolvição livre não só ‘quando falta’ a prova da culpabilidade, mas também uma
vez suprimida a fórmula da dúvida, quando é ‘insuficiente ou contraditória’ (art. 530)”, (Derecho y Razón..., cit.,
pp. 109, 151 e 737 resp.).

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 9-23, janeiro/junho - 2003


PRONÚNCIA IN DUBIO PRO SOCIETADE 23

ultimada —, leva, em conseqüência, à desconstituição da regra jurídica. É o


resultado da vindicação ou reafirmação defectiva da norma processual.
Sem esquecer de que suspeita importa mais à Polícia judiciária — ou a
outro órgão encarregado da investigação e instrução preliminar —, não ao
juiz, ao ensejo de decidir sobre a admissibilidade da acusação, ou sobre o
mérito de ação penal condenatória.
A repetição de julgados, como os apontados, mostra a imprescindibilida-
de de renovada reflexão sobre o tema.16

16
Palestra proferida no “III Encontro dos Juízes do Júri, de São Paulo”. Notem-se os resultados das votações sobre
o tema, após o debate: “1. O adágio in dubio pro societate não pode servir de base à pronúncia. A - Juízes de
Varas do Júri: aprovado por maioria; B - Outros juízes: rejeitado por maioria. 2. Em matéria de pronúncia não tem
pertinência a mera suspeita. A - Juízes de Varas do Júri: aprovado por unanimidade; B - Outros juízes: aprovado
por maioria. 3. Prova de inquérito sem ressonância na instrução criminal autoriza a pronúncia. A - Juízes de Varas
do Júri: rejeitado por unanimidade; B - Outros juízes: rejeitado por maioria”. Publicado no DOE, Poder Judiciário,
12 de março de 2001, cad. 1, p. 4, parte 1.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 9-23, janeiro/junho - 2003


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25

Tributo a Sérgio Marcos


de Moraes Pitombo

Maria Thereza Rocha de Assis Moura


PROFESSORA DOUTORA DE DIREITO PROCESSUAL PENAL
DA FACULDADE DE DIREITO DA USP E ADVOGADA.

SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. O professor e suas


lições - 3. O jurista e suas idéias. 4 - O magistrado - 5.
O homem e sua lembrança - 6. Bibliografia

“Quem contempla um amigo verdadeiro contempla como que uma ima-


gem de si mesmo. Eis por que os ausentes se fazem presentes, os pobres se
tornam ricos, os fracos ganham robustez e, o que é mais difícil de dizer,
os mortos recobram a vida: de tanto inspirarem estima, recordação e
saudade a seus amigos.”
(Cícero)

1. Introdução

C
onheci o professor Sérgio Marcos de Moraes Pitombo nos idos de
1978, como aluna do quarto ano de Direito, no Largo de São Francis-
co. Impressionou-me aquele professor, que fumava sem parar e era, a
um só tempo, rigoroso e preocupado em despertar no aluno o raciocínio crítico.
Suas provas eram difíceis e trabalhosas, mas, em contrapartida, ele estava
sempre disponível para aulas extras antes do horário da primeira aula, com o
intuito de reforçar o aprendizado da matéria. Foi assim que comecei a me
interessar pelo Direito Processual Penal, sem, contudo, imaginar a importância
que, mais tarde, o professor Pitombo exerceria em minha vida acadêmica.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 25-35, janeiro/junho - 2003


26 MARIA THEREZA ROCHA DE ASSIS MOURA

Mais do que homenagear o mestre e suas lições, vinte e cinco anos após
ter sido sua aluna, e ser hoje professora de Direito Processual Penal na velha e
sempre nova Academia, coube-me a honra de trazer à memória, no instante
em que deixa o convívio dos amigos, a figura do homem e do jurista e as idéias
por ele transmitidas aos que tiveram o privilégio de conhecê-lo.

2. O professor e suas lições

Como professor, Sérgio Marcos de Moraes Pitombo deixa vários legados:


o amor à faculdade, o respeito ao aluno, a preocupação com a justiça e a arte
de educar.
Lecionar dava-lhe alegria. Aliás, orgulhava-se da Escola, que para ele era
a Faculdade do Largo de São Francisco.1 Não era preciso dar-lhe qualquer outro
qualificativo. Jamais deixou os alunos sem aula, ou sem satisfação, até o último
dia em que se fez presente à Academia. Assim que me tornei professora de
Direito Processual Penal na Faculdade aconselhou-me: “nunca falte às aulas; se
não puder comparecer, avise antes os alunos, pois eles merecem respeito”. Conselho
que ele praticou até o fim, com muita persistência. Aliás, não concebia a idéia
de deixar de ministrar aulas, tendo se tornado célebre sua tentativa de abrir a
porta de uma das salas, que se achava fechada por ocasião de uma greve na
faculdade, no ano 2001. Não conseguiu, mas permaneceu no interior da escola
até o término do horário letivo, esperançoso de que conseguiria seu intento.
Conhecia como poucos a história de cada canto das Arcadas e pode-se
dizer que, após trinta e cinco anos de magistério, passou a constituir ele mes-
mo parte dessa história, com seu jeito peculiar de ser.
A figura austera, que incutia muitas vezes temor reverencial nos alunos,
tinha por trás uma pessoa crítica e exigente, acima de tudo consigo mesma.
Nunca escreveu sua tese de livre-docência, nem publicou uma segunda edição
de sua tese de doutorado,2 porque sempre achava que o trabalho poderia ficar
melhor. Seu perfeccionismo podia ser notado, ainda, no cuidado e no zelo com
que preparava as aulas; no rigor técnico em usar as palavras; na preocupação de
mandar encadernar o Código que utilizava, e no cuidado com que manuseava

1
V., a propósito, o Prefácio à obra de Rogério Lauria Tucci, Teoria do Direito Processual Penal, São Paulo: RT,
2002.
2
Do Seqüestro no Processo Penal Brasileiro. São Paulo: José Bushatsky, 1973.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 25-35, janeiro/junho - 2003


TRIBUTO A SÉRGIO MARCOS DE MORAES PITOMBO 27

os livros antigos — uma de suas paixões — em sua biblioteca particular.


A exigência que tinha consigo mesmo era praticamente igual à que recla-
mava dos alunos, principalmente os da pós-graduação. Conseguia perceber o
limite de seus orientandos, ou daqueles que simplesmente lhe pediam um
conselho, de modo que o grau de exigência para com o aluno era na exata
medida do nível que este poderia alcançar. Não exigia mais, mas também não
admitia empenho menor. Era rigoroso na orientação, mas também participa-
tivo, franqueando sua biblioteca particular e provocando no aluno novas idéias
a serem desenvolvidas. Não raro presenteava seus alunos, na véspera da defesa
oral da dissertação ou tese, com um livro recém-publicado, para que pudes-
sem se preparar melhor. Lembro-me, quando aluna do curso de mestrado, no
final da década de 80, de ter passado, por insistência do professor Pitombo,
mais de um mês vasculhando a biblioteca da faculdade, à procura do inteiro
teor da Lex Carolina, obra de Hans von Schartzenberg e fonte do Direito
germânico, promulgada em 1532 por Carlos V. Tida como a legislação mais
importante acerca de indícios no século XVI, ela era fundamental para a
melhor compreensão histórica do tema que então eu desenvolvia. Encontrei-
a, finalmente, em uma das enciclopédias italianas antigas, em linguagem ar-
caica, e foi de grande utilidade para meu trabalho.
Sua aparência séria e o modo de tratar, formal e solene, porém nunca
constituíram empecilho para seu relacionamento com alunos e ex-alunos,
dentro e fora da sala de aula, tanto que foi inúmeras vezes paraninfo, a última
delas em 2002. Professor em tempo integral, ninguém deixava sua companhia
sem levar nova lição. Não impunha suas idéias, mas argumentava de forma
que seu interlocutor refletisse melhor antes de voltar ao diálogo.
Suas aulas nunca foram mera repetição dos textos legais e passavam longe
do que dizem os manuais. Procurava sempre trazer um enfoque inédito aos
temas tratados, instigando os alunos a pensarem e a não aceitarem fórmulas
prontas, dogmas jurídicos e verdades aparentes. A propósito, criticava, de
forma ardente, o entendimento, em geral não questionado, de que, na primeira
fase do procedimento do júri, o juiz deve, na dúvida, decidir pro societate.3 O
magistrado, dizia ele, deve estar convencido de que há prova da existência
material do crime e indícios suficientes de autoria, para proferir decisão de

3
V., a propósito, “Pronúncia e o in dubio pro societate”, Direito Criminal, coord. José Henrique Pierangeli. Belo
Horizonte: Del Rey, 2002, v. 4, pp. 53-81 (Coleção Jus Aeternum).

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 25-35, janeiro/junho - 2003


28 MARIA THEREZA ROCHA DE ASSIS MOURA

pronúncia. Não há qualquer possibilidade de, na dúvida, decidir em favor da


sociedade. Ocorrendo a hipótese, o juiz deve impronunciar o acusado.
Transmitiu aos alunos a idéia de que é preciso buscar a Justiça, acima do
que é legal; que é necessário ter raciocínio crítico, e que cada um tem sua
parcela de responsabilidade em tentar tornar o Brasil um país melhor. Era
costume rebelar-se contra injustiças de modo contundente e o fazia de forma
irônica, por vezes sarcástica, quase sempre acompanhada do gesto de torcer o
bigode, uma de suas características marcantes. As frases de efeito, que regis-
travam seu inconformismo, eram divertidas e sutis, fazendo com isso desapa-
recer aquela aparência austera.

3. O jurista e suas idéias

Sérgio Marcos de Moraes Pitombo distinguiu-se no meio acadêmico por


suas idéias, quase sempre contrárias à doutrina dominante, mas em relação às
quais era intransigente. Sofreu profunda influência do professor Joaquim Ca-
nuto Mendes de Almeida, com quem trabalhou e de quem recebeu inúmeras
lições, tornando-se um de seus discípulos. Sustentou os ensinamentos de seu
mestre e lançou outros, em companhia do também discípulo de Canuto, o
professor Rogério Lauria Tucci, por mais de três décadas, nas aulas do curso
de Pós-Graduação da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.
Dentre seus principais ensinamentos, trazidos de Joaquim Canuto Men-
des de Almeida,4 destaca-se a idéia de que o processo penal consiste em ins-
trumento de preservação da liberdade jurídica do acusado, não de mera libe-
ração da coação estatal: “Tutela, pois, a liberdade jurídica dos inculpados todos;
sem esquecer dos condenados. Aqui, se cuida de liberdade protegida; não de simples
permissão. Ao titular de direito fundamental dá-se, por isso, tutela jurídico-proces-
sual positiva, ou negativa em face do Estado (R. Alexy)”.5
Preocupado com o processo justo, destacava que o processo penal não se
presta, porém, apenas para a tutela da liberdade jurídica do acusado, não
podendo ser olvidada a “proteção do direito à reparação do dano, nascente na

4
V., dentre outras obras deste autor, A Liberdade Jurídica no Direito e no Processo: Estudos Jurídicos em
Homenagem a Vicente Rao. São Paulo: RT, 1975; Princípios Fundamentais do Processo Penal. São Paulo: RT,
1973 e Processo Penal, Ação e Jurisdição. São Paulo: RT, 1975.
5
Prefácio à obra de Rogério Lauria Tucci, Teoria..., cit., p. 8.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 25-35, janeiro/junho - 2003


TRIBUTO A SÉRGIO MARCOS DE MORAES PITOMBO 29

infração penal; e o amparo coadjuvante à manutenção ou recuperação da paz


pública. É por isso que a todos importa a decisão justa; não só a derradeira, ou
final”.6 Essa a tríade de valores que emerge no processo.
Era ardoroso defensor do inquérito policial, cuja história e prática conhe-
cia profundamente, dando sempre destaque à importância da persecução penal
extrajudicial. Publicou, a propósito do tema, importantes escritos, como “In-
quérito policial: novas tendências”;7 “Mais de cento e vinte e seis anos de inquérito
policial — perspectivas para o futuro”;8 “Breves notas sobre o anteprojeto de lei, que
objetiva modificar o Código de Processo Penal, no atinente à investigação policial”;9
“Inquérito policial: exercício do direito de defesa”;10 “Supressão parcial do inquérito
policial — breves notas ao art. 69 e parágrafo único, da Lei 9.099/95”;11 “A polícia
judiciária e as regras orientadoras do processo”;12 “O indiciamento como ato de
Polícia Judiciária”;13 “Arquivamento do inquérito policial, sua força e efeito”.14
Sempre lembrava que o inquérito policial não deve ser visto como peça
meramente informativa, destinada a fornecer elementos para a formação da
chamada opinio delicti. O inquérito, ensinava, tanto serve para que o Ministé-
rio Público formule a denúncia como para pedir o arquivamento. E concei-
tuava: o “inquérito policial é o procedimento administrativo, cautelar, tendente à
apuração preliminar de fato que se desenha (parece) infração penal e ao menos
indícios de autoria, co-autoria e participação, em tutela a direitos individuais”.15

6
Cf. Processo Penal Justo. Prefácio ao livro Justa Causa para a Ação Penal – Doutrina e Jurisprudência, São Paulo:
RT, 2001, da autora deste escrito.
7
Belém: CEJUP, 1986.
8
Revista ADPESP, ano 19, nº 25, março 1998, pp. 9-19.
9
“Estudos criminais em homenagem a Evandro Lins e Silva”, organizador: Sérgio Salomão Shecaria, São Paulo:
Método, 2001, pl. 337-351. O artigo foi também publicado no Jornal do Advogado, São Paulo, no nº 239, jul.
2000, pp. 24-7.
10
Boletim IBCCRIM – edição especial, ano 7, nº 83, out. 1999, p. 14.
11
Em Juizados Especiais Criminais: Interpretação e Crítica. São Paulo: Malheiros, 1997, pp. 71-96.
12
Em A Polícia à Luz do Direito. São Paulo Revista dos Tribunais, 1990, pp. 39-40.
13
Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, 577-313-6, nov. 1983.
14
Revista do Advogado, São Paulo, Associação dos Advogados de São Paulo- AASP, 11:9-15, 1983.
15
Cf. Benedito Roberto Garcia Pozzer, “Uma, dentre muitas, lição do Professor Pitombo”, Boletim IBCCRIM, ano 11,
nº 125, abril de 2003, p. 3. A explicação do conceito, transmitido em sala de aula da Faculdade do Largo de São
Francisco, aos alunos do 3º ano de graduação, período matutino, no ano 2000, e transcrita na nota 1 do
mencionado artigo, é: “Procedimento, pela inexistência do contraditório em toda completude do processo
judicial, embora preservado o direito de defesa; administrativo, na forma e órgão responsável pela feitura,
apesar da finalidade judiciária; por ser obra da polícia civil (judiciária), instituição da administração pública;cautelar,
por preservar provas que não poderiam ser repetidas durante o processo criminal; tendente à apuração
preliminar de fato que se desenha (parece) infração penal e ao menos indícios de autoria, co-autoria e
participação, porque não tem por finalidade última (absoluta) provar a existência desse fato e autoria, pois, ao
contrário, poderá revelar a inexistência ou impossibilidade de atribuição da autoria; e, em tutela a direitos
fundamentais, porque no inquérito policial se divisam interesses do acusado, vítima e sociedade”.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 25-35, janeiro/junho - 2003


30 MARIA THEREZA ROCHA DE ASSIS MOURA

Portanto, no inquérito policial, encontra-se conjunto de atos de instrução:


transitórios uns, de relativo efeito probatório, e definitivos outros, de efeito
judiciário absoluto.16
Preocupava-se, de modo especial, com a execução da pena, sendo um dos
maiores estudiosos do assunto. Integrou a Comissão Ministerial de elabora-
ção do Anteprojeto de Lei de Execução Penal, posteriormente transformado
na Lei nº 7.210/84, e a Comissão Especial, designada no ano 2000, pelo
Ministro da Justiça para propor Anteprojeto de lei, modificativo da Lei de
Execução Penal,17 tendo, ainda, presidido grupo de trabalho que, na Secreta-
ria de Estado da Administração Penitenciária de São Paulo, elaborou, no ano
1997, Anteprojeto de Lei que dispôs sobre a disciplina na execução das penas
privativas de liberdade e restritivas de direitos. Atuou como conselheiro no
Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, em diversos manda-
tos, o que lhe permitiu ter visão humanística da execução, sem perder o rigor
que sempre entendeu deva existir na disciplina, porém continuamente sob a
égide da legalidade.
Em sede de execução penal, interessou-se, em particular, por temas como
disciplina, individualização da pena, mérito na progressão de regime e unifi-
cação, tendo publicado vários trabalhos na área, como: “Conceito de mérito, no
andamento dos regimes prisionais”;18 “O regime disciplinar especial dos condena-
dos”;19 “Execução penal”;20 “Da nomenclatura na dinâmica de execução das pe-
nas privativas de liberdade”;21 “Ainda o exame criminológico”;22 “A disciplina na
execução penal”;23 “Das penas e das medidas de segurança”;24 “Breves notas sobre
a novíssima execução penal”;25 “Os regimes de cumprimento de pena e o exame
criminológico”.26
Entendia a unificação de penas como forma de desconstituição da coisa

16
Cf. Inquérito Policial: Novas Tendências,..., cit., p. 22.
17
A Comissão, designada pela Portaria de 7 de junho de 2000, apresentou Anteprojeto, que se transformou no
Projeto 5.075/01, em tramitação na Câmara dos Deputados.
18
Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, 27: 149-58, jul./set. 1999.
19
MP – órgão oficial do Ministério Público do Paraná, 11:123-8, 1987 e Jornal do Advogado, São Paulo, nº 130,
abr. 1986, p. 14.
20
Revista dos Tribunais, São Paulo, 623:257-63, set. 1987.
21
Jornal do Advogado, São Paulo, nº 128, fev. 1986, p. 7.
22
Jornal do Advogado, São Paulo, jul. 1985.
23
Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, Procuradoria Geral do Estado – Centro de Estudos,
23:101-109, 1985.
24
Em Reforma Penal. São Paulo: Saraiva, 1985, pp. 133-40.
25
Em Reforma Penal. São Paulo: Saraiva, 1985, pp. 125-32.
26
Revista dos Tribunais, São Paulo, 583: 312-315, maio 1984.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 25-35, janeiro/junho - 2003


TRIBUTO A SÉRGIO MARCOS DE MORAES PITOMBO 31

julgada penal, criticando aqueles que vêem no habeas corpus e na revisão cri-
minal os únicos modos de a desconstituir. Como observou, “na revisão, o
condenado propõe a ruptura da coisa julgada, mas em razão de erro pretérito, sem
divisar fatos futuros”.27 Esta maneira de ver a unificação o impelia a considerar
que, em sede de execução penal, o recurso cabível da decisão que defere ou
indefere pedido de unificação é a apelação e não o agravo, sugestão esta aco-
lhida pela Comissão que elaborou o Anteprojeto de reforma da Lei de Execu-
ção Penal, em 2001.
Em companhia do professor Rogério Lauria Tucci divulgou idéias, tais
como a inexistência de uma teoria geral do processo, a irrelevância de lide no
processo penal e a coisa julgada sui generis. O pensamento, desenvolvido a
partir da convicção acerca da impossibilidade de se transferir para o processo
penal o conceito de lide enunciado por Carnelutti, conduz à conclusão de
que: i) não há como se cogitar, no processo penal, de partes em sentido mate-
rial, mas tão-somente em sentido processual; ii) o contraditório, no processo
penal, deve ser real e indisponível; iii) na realidade do processo penal tem-se
a verificação de duas situações distintas, em relação à coisa julgada: “quando
se tratar de sentença absolutória, ou de extinção da punibilidade, por jamais
poder ser modificado o seu conteúdo, com a preclusão dos prazos para recur-
sos, forma-se a coisa julgada de autoridade absoluta; porém, se a sentença for
condenatória — mutável, como visto, por natureza e destinação, em qualquer
tempo e em diversas circunstâncias —, ver-se-á tutelada, apenas, pela coisa
julgada de natureza relativa”.28

4. O magistrado

A preocupação de Sérgio Marcos de Moraes Pitombo com o pensamento


científico fez-se também presente em sua atividade profissional no Poder Ju-
diciário Paulista, que integrou representando, de forma impecável, o Quinto
Constitucional dos Advogados, primeiro como juiz do Tribunal de Alçada
Criminal e, depois, como desembargador.
No Tribunal de Justiça, coordenou o curso de Pós-Graduação lato sensu –

27
V., a propósito, prefácio à obra de Sérgio de Oliveira Médici, Revisão Criminal, 2ª ed., São Paulo: RT, 2000.
28
Cf. Rogério Lauria Tucci, Teoria do Direito Processual Penal..., cit., p. 37 e segs. Sobre o fenômeno da coisa
julgada penal, v., também, prefácio à obra de Sérgio de Oliveira Médici, Revisão Criminal, já citada.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 25-35, janeiro/junho - 2003


32 MARIA THEREZA ROCHA DE ASSIS MOURA

Especialização em Direito Processual Penal – da Escola Paulista da Magistra-


tura e integrou a comissão editorial e executiva da Revista Jurídica desta escola,
tendo como preocupação maior manter a excelência e a qualidade das aulas e
dos trabalhos publicados.
No Tribunal de Alçada Criminal, integrou a Comissão de Jurisprudên-
cia, responsável pela publicação da Revista de Julgados e Doutrina do Tribunal
de Alçada Criminal do Estado de São Paulo (RJDTACRIM); as comissões en-
carregadas de preparar e rever o Projeto de Reforma da Parte Especial do
Código Penal; e a Comissão de elaboração do Anteprojeto de Lei sobre a
criminalização do porte e uso de arma.
Como membro da Décima Câmara do Tribunal de Alçada Criminal e,
mais tarde, da Sétima Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça,
esmerou-se na elaboração dos votos, costumeiramente longos e que
consubstanciavam verdadeiras aulas. Vários de seus acórdãos proferidos no
TACRIM, pelo viés constitucional de seu conteúdo, acham-se publicados.29
No Tribunal de Justiça, atuando em Câmara Cível, defendeu, com firmeza,
dentre outras teses jurídicas, a impossibilidade da prisão do depositário infi-
el, em face do que dispõe a Convenção Americana de Direitos Humanos, por
entender que este instrumento internacional integra o ordenamento jurídico
brasileiro em nível constitucional; a necessidade de reparação, pelo Estado,
do dano decorrente de prisão cautelar injusta; a condenação da Fazenda do
Estado como litigante de má-fé no caso de interposição de recurso protelató-
rio; a responsabilidade civil do Estado pelo assassinato de pessoas presas no
sistema carcerário.

5. O homem e sua lembrança

Sérgio Marcos de Moraes Pitombo engrandeceu todas as classes a que


pertenceu: delegado de Polícia, juiz auditor, advogado e, finalmente, magis-
trado. Marcou pela independência e franqueza, ainda que pudesse desagra-
dar a quem quer que fosse. Marcou pela busca incessante por justiça; pela
visão crítica da realidade da vida e do Direito. Transmitiu valores que são
imprescindíveis ao homem de bem: Justiça, Ética, Dignidade, Honradez,

29
V., a propósito, FRANCO, Alberto Silva et al. Código de Processo Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. São
Paulo: RT, 1999, em especial , v. 1, livro 1, “Princípios e garantias constitucionais”.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 25-35, janeiro/junho - 2003


TRIBUTO A SÉRGIO MARCOS DE MORAES PITOMBO 33

Honestidade, Solidariedade, Coragem e Sabedoria, esta última que “sabe e


compreende todas as coisas”.
Na vida privada, não foi diferente. Aqueles que tiveram o privilégio de
conviver com ele são testemunhas de sua doação incondicional ao próximo, da
caridade feita no anonimato, da solidariedade, de sua fé em Deus. Aliás, é difícil
separar a figura do professor, que ensinava tempo integral, do homem, que
viveu e praticou os valores que transmitiu. Foi um homem de razão e de fé.
Santo Tomás de Aquino, em sua doutrina, bem soube traçar a harmonia
que existe entre a razão e a fé. A fé não teme a razão, mas a solicita e confia nela.
Assim como a graça supõe a natureza e a leva à perfeição, assim também a fé
supõe e aperfeiçoa a razão.30 Aliás, como ressaltado pelo papa João Paulo II, na
encíclica Fé e Razão, a perfeição buscada pelo homem não se reduz apenas à
aquisição do conhecimento abstrato da verdade, mas consiste, também, numa
relação viva de doação e fidelidade ao outro. Nesta fidelidade que leva à doação, o
homem encontra plena certeza e segurança. Presente a necessidade de jamais aban-
donar a caridade, que se ostenta no entendimento fraterno dos erros humanos.
Sérgio Marcos de Moraes Pitombo será sempre lembrado por seus fami-
liares, amigos e admiradores, não só pelo que pensou, mas principalmente
pelo que viveu e praticou.
Para além de professor, foi um verdadeiro educador. Ser professor é pro-
fissão; ser educador é vocação. Educou milhares de alunos, hoje bacharéis em
Direito. Mas sua herança maior são as lições de vida que transmitiu, não só
aos alunos, mas a todos que mais perto privaram de sua amizade.
Para além de jurista, foi o pensador, o humanista. Profundo conhecedor
de História, Arte e Filosofia, soube transformar o conhecimento abstrato em
concretude.
Acima de tudo, o homem que sempre teve esperança em um mundo
melhor e que soube compreender o próximo e doar-se, sem buscar reconheci-
mento. Como dizia Cícero, “se alguém ama a si mesmo não é para tirar de si a
recompensa dessa afeição, mas porque cada qual é caro a si próprio”.31
O amor à vida, o respeito ao próximo, a dedicação ao direito, o inconfor-
mismo diante da injustiça são lições que permanecerão sempre presentes,

30
Cf. Summa Contra Gentiles, I, VII, mencionada na Encíclica Fé e Razão. São Paulo: Paulus, 1998, p. 47.
31
Marco Tulio Cícero, Da Amizade, trad. Gilson Cesar Cardoso de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 94.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 25-35, janeiro/junho - 2003


34 MARIA THEREZA ROCHA DE ASSIS MOURA

principalmente em seus familiares mais próximos — esposa, filho, nora e


neta. Aos amigos e a seus eternos alunos, Sérgio Marcos de Moraes Pitombo
deixa muita estima, recordação, saudade, e a lembrança dos bons momentos
vividos em sua companhia.

6. Bibliografia

- CÍCERO, Marco Tulio. Da Amizade, trad. Gilson Cesar Cardoso de Souza.


São Paulo: Martins Fontes, 2001.
- FRANCO, Alberto Silva et al. Código de Processo Penal e sua Interpretação
Jurisprudencial, São Paulo: RT, 1999, 2 v.
- JOÃO PAULO II. Encíclica Fé e Razão, São Paulo: Paulus, 1998.
- MÉDICI, Sérgio de Oliveira. Revisão Criminal, 2ª ed., São Paulo: RT, 2000.
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Processo Penal, São Paulo: RT, 1973.
- ————. Processo Penal, Ação e Jurisdição, São Paulo: RT, 1975.
- ————. A Liberdade Jurídica no Direito e no Processo: Estudos Jurídicos em
Homenagem a Vicente Ráo, São Paulo: Resenha Universitária, 1976.
- MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Justa Causa para a Ação Penal:
Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: RT, 2001.
- PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Do Seqüestro no Processo Penal Bra-
sileiro, São Paulo: José Bushatsky, 1973.
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Advogado, São Paulo, Associação dos Advogados de São Paulo – AASP, nº 11,
1983, pp. 9-15.
- PITOMBO, Sérgio Marcos. “O indiciamento como ato de Polícia Judiciária”,
Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, v. 577, nov. 1983, pp. 313-316.
- ————. “Os regimes de cumprimento de pena e o exame criminológico”,
Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 583: 312-315, maio 1984.
- ————. “Das penas e das medidas de segurança”, em Reforma penal. São
Paulo: Saraiva, 1985, pp. 133-40.
- ————. “A disciplina na execução penal”, Revista da Procuradoria Geral do
Estado de São Paulo, Procuradoria Geral do Estado – Centro de Estudos,
23:101-109, 1985.
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1985.
- ————. “Breves notas sobre a novíssima execução penal”, em Reforma penal.
São Paulo: Saraiva, 1985, pp. 125-32.

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TRIBUTO A SÉRGIO MARCOS DE MORAES PITOMBO 35

- ————. “O regime disciplinar especial dos condenados”, Jornal do Advogado,


São Paulo, nº 130, abr. 1986, pp. 8-9.
- ————. “Da nomenclatura na dinâmica de execução das penas privativas de
liberdade”, Jornal do Advogado, São Paulo, nº 128, fev. 1986, p. 7.
- ————. Inquérito Policial: Novas Tendências. Belém: CEJUP, 1986.
- ————. “O regime disciplinar especial dos condenado”, MP – órgão oficial
do Ministério Público do Paraná, 11:123-8, 1987.
- PITOMBO, Sérgio Marcos. “Execução Penal”, Revista dos Tribunais, São
Paulo, v. 623, set. 1987, pp. 257-63.
- ————. “A polícia judiciária e as regras orientadoras do processo penal”, em A
Polícia à Luz do Direito, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, pp. 39-40.
- ————. “Supressão parcial do inquérito policial – breves notas ao art. 69 e
parágrafo único, da Lei 9.099/95”, em Juizados Especiais Criminais: Interpreta-
ção e Crítica, São Paulo: Malheiros, 1997, pp. 71-96.
- ————. “Mais de cento e vinte e seis anos de inquérito policial – perspectivas
para o futuro”, Revista ADPESP, ano 19, nº 25, março 1998, pp. 9-19.
- ————. “Inquérito policial: exercício do direito de defesa”, Boletim IBCCRIM
– edição especial, ano 7, nº 83, out. 1999, p. 14.
- ————. “Conceito de mérito, no andamento dos regimes prisionais”, Revista
Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, 27: 149-58, jul./set. 1999.
- ————. “Breves notas sobre o anteprojeto de lei, que objetiva modificar o
Código de Processo Penal, no atinente à investigação policial”, em SHECAIRA,
Sérgio Salomão, org. Estudos Criminais em Homenagem a Evandro Lins e
Silva. São Paulo: Método, 2001, pp. 337-351.
- ————. “Pronúncia e o in dubio pro societate”, em PIERANGELI, José
Henrique, coord. Direito Criminal, Belo Horizonte: Del Rey, 2002, v. 4, pp.
53-81.
- POZZER, Benedito Roberto Garcia. “Uma, dentre muitas, lição do Professor
Pitombo”, Boletim IBCCRIM, ano 11, nº 125, abr. 2003, p. 3.
- TUCCI, Rogério Lauria. Teoria do Direito Processual Penal, São Paulo: RT,
2002.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 25-35, janeiro/junho - 2003


36
37

O direito de propriedade
e o novo Código Civil

Venicio Antonio de Paula Salles


JUIZ DE DIREITO NO ESTADO DE SÃO PAULO E SUBCOORDENADOR DO
CURSO DE PÓS GRADUAÇÃO “LATO SENSU”, EM DIREITO PÚBLICO, JUNTO À EPM.

SUMÁRIO: 1. Direito de propriedade, análise histó-


rica; a propriedade privada como fator influente na
definição de sistemas políticos; intervencionismo do
Estado como forma de limitação às liberdades relati-
vas ao exercício da propriedade privada - 2. Direito de
propriedade na Constituição brasileira; função social
da propriedade; competência conferida à legislação
federal e municipal na fixação do conteúdo da função
social da propriedade - 3. Direito de propriedade frente
ao novo Código Civil; finalidades sociais e prevalência
do interesse coletivo - 4. Novas previsões sobre a pro-
priedade privada empregadas pelo novo Código Civil
- 4.1. Uso indevido da propriedade - 4.2. Desapro-
priação judicial - posse/trabalho - 4.3. Desapropria-
ção - momento da perda da propriedade - 4.4. Arreca-
ção de bens abandonados - 5. Propriedade desdobra-
da - direito de superfície; direito à superfície no N.C.C.;
direito de superfície frente ao Estatuto da Cidade;
diferenças - 6. Bibliografia

1. Direito de propriedade, análise histórica;


a propriedade privada como fator influente
na definição de sistemas políticos;
intervencionismo do Estado como forma
de limitação às liberdades relativas
ao exercício da propriedade privada

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 37-57, janeiro/junho - 2003


38 VENICIO ANTONIO DE PAULA SALLES

O
direito de propriedade, ou, mais precisamente, a extensão como
este é e foi reconhecido ou consagrado, se reveste de extrema im-
portância e de capital interesse, não só para as Ciências Jurídicas,
como também para as Ciências Sociais e Políticas, na medida em que tal
definição sempre atuou e representou verdadeiro “pano de fundo” ou base
estrutural na formação e definição dos regimes políticos/sociais das nações
que compõem o mundo civilizado.
Não se constitui exagero dizer que a grande disputa pela “propriedade”
foi travada não só nos campos, como também junto às Cortes, às Casas do
Parlamento, bem como frente aos tribunais, tendo a contenda orbitado em
redor da definição, o conteúdo e o alcance deste direito. Essas discussões
alavancaram insurreições, revoluções e mesmo guerras. Foram suficientes para
determinar dominações e submissões.
O direito de propriedade cumpriu importante papel tanto frente aos
regimes que ostentavam convicções liberais puras, como nos regimes que pro-
clamavam convicções diametralmente opostas, comungando a crença de que a
propriedade deveria se submeter unicamente aos anseios e ao domínio público.
Portanto, o conceito e a extensão do “direito de propriedade” variou de
tamanho, de forma ou de padrão, mas nunca deixou de ser o ponto de relevo
em todos os sistemas políticos das sociedades organizadas.
A experiência histórica transmitiu muitas lições sobre este importante
tema; no entanto, ainda não sinalizou, como creio que não irá sinalizar, no
sentido de indicar a forma ideal, correta e adequada para o exato dimensiona-
mento do direito de propriedade.
Entretanto, se as experiências passadas não nos forneceram um resposta
única ou algumas possíveis sobre a correta ou adequada extensão da proclama-
ção do “direito de propriedade”, é certo, ao menos, que tais experiências nos
indicam as fórmulas que não podem ou não devem ser repetidas ou reeditadas.
Trata-se de informação ou de conclusão de conteúdo “negativo”, que
corresponde à idéia, cognominada pelo professor Celso Antônio Bandeira
de Mello, de campo de “certezas negativas”, que indicam, não o modelo a
ser observado, mas os exemplos e experiências que devem ser descartados e
desprezados.
Os regimes liberais fracassaram, pois se apoiaram na errônea, ou falha
crença, de que os mecanismos de concorrência e de competição, sem qualquer

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 37-57, janeiro/junho - 2003


O DIREITO DE PROPRIEDADE E O NOVO CÓDIGO CIVIL 39

nível de interferência ou participação estatal, não são suficientes e aptos a


gerar sociedades equilibradas e justas, quanto a oportunidades e condições.
A experiência liberal, portanto, demonstrou que os objetivos de uma
sociedade sadia e mais próspera resultaram frustrados, na medida em que se
verificou que tais sociedades “livres” de intervencionismo se mostraram, ao
reverso das expectativas, injustas e desiguais.
Estudos e análises mostraram que uma certa reserva ou uma certa parti-
cipação estatal, até mesmo nas relações negociais, se mostram necessárias para
que os extremos de desigualdade sejam evitados. A experiência histórica, des-
tarte, revelou a necessidade insuperável de um certo nível de “intervencionis-
mo” estatal sobre a órbita de “liberdades individuais”, como condição de
manutenção dessas mesmas “liberdades”.
Assim, como decorrência do estrondoso colapso das convicções liberais,
também resultaram contaminadas todas as bases e estruturas em que tal regime
se apoiava, entre elas a proclamação de um direito de propriedade absoluto e
irrestrito, longe de qualquer controle, intervenção e participação do Estado.
De outro lado, também os regimes de feição “socialista”, que levaram ao
extremo o chamado Estado social, não revelaram maior eficiência em termos
da construção de uma sociedade justa, equilibrada e próspera.
A falência ou inoperância das convicções sociais puras, que negaram im-
portância e reconhecimento à propriedade privada, determinaram, como um
“campo de certeza negativo”, que a propriedade não cumpre sequer sua fun-
ção social, quando entregue à exclusiva administração do Estado.
O marco histórico que ostenta ou representa o fracasso das convicções
socialistas, pois impregnado de simbolismo, foi a queda do muro de Berlim,
que fez desabar a Cortina de Ferro erguida ao redor do império da chamada
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Estes dois sistemas políticos opostos, o “liberalismo” e o “socialismo”, de
positivo revelaram apenas a ineficiência, a inoperância, a inviabilidade das
fórmulas empregadas. Aos observadores, restou a certeza — identificada como
campo de “certezas negativas” — de que o direito de propriedade, utilizando
tais experiências, deve receber tratamento equilibrado, submetido a fórmula
que mescle os interesses envolvidos, em respeito ao direito individual, ligado
às “liberdades”, e acatamento, concomitante, aos interesses coletivos, opera-
cionalizados como uma forma conferida e reservada ao Poder Estatal.

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A funcionalidade desta mescla entre o interesse individual e o coletivo,


motivou o professor Orlando Gomes a visualizar, no direito de propriedade
duas estruturas diversas, uma revelando um “conteúdo positivo” e outra o seu
“conteúdo negativo”. O ilustre civilista se referia, no primeiro caso (conteúdo
positivo), ao direito individual privado, apresentado como expressão das “li-
berdades”. Por “conteúdo negativo” do direito de propriedade, localizava e
visualizava as restrições e limitações coletivas ao exercício pleno deste direito
(Direitos Reais, Orlando Gomes, Forense, 7ª ed., p. 87).
Relevante, neste passo, apresentar o aviso ou a observação do professor
Celso Antônio Bandeira de Mello, que anota que “a este propósito, convém
desde logo observar que não se deve confundir liberdade e propriedade com ‘direito
de liberdade’ e ‘direito de propriedade’. Estes últimos são as expressões daquelas,
porém tal como admitidas em um dado sistema normativo. Por isso, rigorosamente
falando, não há limitações administrativas ao direito de liberdade e ao direito de
propriedade — é a brilhante observação de Alessi —, uma vez que estas simples-
mente integram o desenho do próprio perfil do direito. São elas, na verdade, a
fisionomia normativa dele. Há, isto sim, limitações à liberdade e à propriedade”
(Curso de Direito Administrativo, Celso Antônio Bandeira de Mello, p. 684).
Feitas essas observações, é de frisar que o grande desafio lançado às
Casas Legislativas, no que afeta à descrição e composição do direito de pro-
priedade, consiste na necessidade de se cumprir, de forma absolutamente
equilibrada, sensata e justa, essa mescla entre os interesses privados e os
interesses coletivos, sem permitir a exacerbação ou prevalência de qualquer
das forças envolvidas.

2. Direito de propriedade na Constituição Brasileira;


função social da propriedade; competência conferida
à legislação federal e municipal na fixação do
conteúdo da função social da propriedade

No Brasil, a legislação acusa grande amadurecimento neste sentido, pois


nosso ordenamento vem, paulatinamente, melhor definindo o campo de in-
terferência e de participação do Estado nos rumos e no sentido do direito de
propriedade individual.
Estamos, nesta parte, alinhados às grandes nações, ao adotarmos modelo
que prestigia o patrimônio privado, como uma das formas mais importantes

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O DIREITO DE PROPRIEDADE E O NOVO CÓDIGO CIVIL 41

de respeito às liberdades individuais, mas que, concomitantemente, vincula


parte do exercício deste direito, a padrões e conceitos coletivos, submetendo e
limitando, em certa medida, o interesse individual privado, ao interesse pú-
blico ou coletivo.
Em termos de construção constitucional, nossa Carta Maior estampou
toda uma série de mudanças, apresentando padrões precisos para o melhor
direcionamento do “equilíbrio” entre o direito individual e o coletivo. Exigiu,
em certa parte, a submissão do interesse privado aos desígnios coletivos, ten-
do sido extremamente prudente o legislador constituinte, ao conferir conteú-
do certo e determinado à vontade coletiva, visando, com isso, prevenir abu-
sos, descaminhos ou exageros por parte das autoridades constituídas.
Nossos textos constitucionais, de há muito, vêm exigindo que a proprie-
dade, pública ou privada, cumpra sua função social. De forma mais nítida,
tal preocupação passou a constar do texto da Constituição de 1946, ocupan-
do espaços nas Cartas de 1967, e Emenda Constitucional nº 01/69. Contu-
do, foi na Constituição cidadã, promulgada em 1988, que tal orientação foi
firmemente traçada e apresentada.
Em dispositivos distintos, a Carta Política de 1988, consagra junto ao
Capítulo dos “Direitos e Garantias Individuais e Coletivas”, o direito à pro-
priedade privada (art. 5º, inciso XXII), e exige que a propriedade individual
cumpra sua função social (art. 5º, inciso XXIII).
Destaque-se que não foi aleatória a forma escolhida pelo legislador cons-
tituinte, ao tratar destes dois vetores da propriedade privada em incisos dis-
tintos e separados. Essa técnica legislativa e a ordem que foi observada (pri-
meiro o direito de propriedade individual e depois a limitação ao exercício
desse direito) conferem bem a idéia da extensão do direito à liberdade que é
assegurado no exercício da propriedade privada, em confronto ao “direito
coletivo”, materializado pelo respeito e submissão aos padrões e ao conteúdo
da função social.
A propriedade privada, portanto, desde que reconhecida, exige respeito
ilimitado, salvo quando o seu exercício ou “uso” venha a se revelar inconveni-
ente ou contrário aos interesses coletivos e sociais.
A expressão função social, que foi utilizada pelo constituinte em cinco
passagens distintas do texto maior, não possui um conteúdo aberto ao sabor
das ideologias e vontades políticas. Pelo contrário, o seu sentido jurídico é

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objetivamente apresentado nos Capítulos da Política “Urbana” e Política “Ru-


ral”, sendo que, no primeiro caso, o conceito tem pertinência à melhor
“ordenação” das cidades, voltado para o coletivo interesse de propiciar e
assegurar o bem-estar de seus habitantes, e, no segundo, tem pertinência à
produtividade rural.
Portanto, a função social prestigia o caráter “social”, ou seja, aquilo que é
relativo às “sociedades” ou, mais estritamente, às “cidades”. Neste diapasão, o
art. 182 da Carta Maior, revela a preocupação do legislador constituinte em
atrelar a função social, a políticas e mecanismos voltados para o melhor equa-
cionamento dos problemas urbanos, exigindo o emprego dos melhores cami-
nhos para o crescimento organizado das urbes, considerando a infra-estrutura
instalada ou projetada, e, nesse sentido, prevendo as formas para que os “equi-
pamentos públicos” melhor atendam às populações de cada região. Em síntese,
função social, a nível urbano, diz respeito às soluções de ajuste entre a infra-
estrutura pública e o adensamento populacional das várias regiões da cidade.
Neste sentido, são extremamente elucidativas as sanções previstas no texto
supremo, previstas para as hipóteses de descumprimento da função social da
propriedade. A Constituição permite que o Poder Público puna o proprietário
privado que venha a descumprir a orientação sinalizada pelo “função social da
propriedade”, em primeiro lugar, com a compulsória obrigação de parcelar ou
fracionando sua gleba, ou, ao reverso, com a determinação para a edificação
compulsória (nos casos em que se mostra inconveniente a manutenção de
grandes áreas e glebas brutas e locais dotados de boa infra-estrutura pública sub
utilizada). Patenteia o Texto Supremo que a função social diz respeito precipua-
mente ao melhor e mais perfeito desenvolvimento das cidades, em atenção ao
melhor e mais eficiente uso de seus equipamentos públicos e infra-estrutura
(vias, transportes, escolas, hospitais, creches, água, luz etc.).
Também o art. 184 possui este conteúdo, na medida em que permite a
“desapropriação” para fins de reforma agrária de glebas que não acusem ade-
quada produtividade.
Portanto, o exato conteúdo da função social, que somente pode ser dire-
cionado para a melhor ordenação das cidades, foi reservado pela Constituição,
em uma plano genérico, como normas gerais, à legislação federal, desiderato
que foi cumprido com a edição do Estatuto da Cidade.
Especificamente foi outorgado ao Plano Diretor Municipal, ou à legisla-
ção ordinária local, a tarefa e criar e conceber o plexo de normas capazes e

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O DIREITO DE PROPRIEDADE E O NOVO CÓDIGO CIVIL 43

necessárias para melhor direcionar o crescimento, desenvolvimento e funcio-


namento das cidades.
Esse foi o padrão constitucional, que, salutarmente, em respeito às dife-
renças regionais e locais, incumbiu, em última análise, ao legislador munici-
pal, a importante tarefa de buscar estabelecer o melhor equilíbrio entre a
liberdade no exercício do Direito de Propriedade e o direito Coletivo, voltado
à melhor e mais saudável ordenação das cidades.

3. Direito de propriedade frente ao novo Código Civil;


finalidades sociais e prevalência do interesse coletivo

Este longo percurso constitucional se mostrou necessário para podermos


aquilatar e avaliar os termos e o conteúdo, neste particular, do novo Código
Civil, lembrando que seu texto, no que invade o campo do Direito Público,
deve se submeter de forma integral e cabal aos padrões constitucionais.
Destaque-se que a propriedade privada nasce sob a forma de Direito
Público, na medida em que é garantida e assegurada constitucionalmente,
contudo se desenvolve ou se exercita como Direito Privado, pois submetida
ao império da vontade de seu titular.
De outra parte, todas as restrições, limitações e interferências determina-
das pelo Poder Público, ou decorrentes da chamada “vontade coletiva”, que
invade e limita “o uso” da propriedade privada, possuem sabor e conteúdo de
normas de Direito Público, pois calcadas em comandos de sentido cogente,
ou seja, regras impositivas e imperativas, que se lançam fora do alcance da
vontade das partes.
Assim, a concomitante participação de normas de direito privado e nor-
mas de direito público, na estruturação do direito de propriedade, exige rígi-
da harmonização, entrosamento e adequação entre a Lei Fundamental e todas
as normas que venham a disciplinar este segmento do Direito, quer estejam
inseridas no Código Civil, quer sejam normas que versem sobre o conteúdo
da “função social”, ou relativas às restrições urbanísticas ou ambientais.
No que afeta ao novo Código Civil, este se mostrou sensível à dicção
constitucional, consagrando o direito à propriedade privada, como uma fa-
culdade, e submetendo-o às “suas finalidades econômicas e sociais”.
Neste sentido, dispõe o parágrafo único do art. 1.229:

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“§ 1º - O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com


suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados,
de conformidade com o estabelecimento em lei especial, a flora, a fauna,
as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e ar-
tístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.”

O Código não repetiu, com seria útil e aproveitável, a consagrada expres-


são constitucional — função social —, optando por utilizar o termo “finalida-
de econômica e social” e “questões de preservação ambiental e cultural”.
Não se deve antagonizar o texto do novo Código Civil com os ditames
da Constituição Federal apenas em razão de um pequeno desajuste ou em
face da ausência de sintonia terminológica, até porque não poderia o Códi-
go Civil inovar neste particular, estando preso umbilicalmente ao texto
maior. Desta forma, a melhor ou a única leitura do § 1º do art. 1229 do
novo Código, deve revelar que a expressão finalidades econômicas e sociais
encerra o mesmo conteúdo e o mesmo alcance do termo função social em-
pregado no texto maior.
Este texto do Código Civil, de outro lado, elucida que função social, ou
finalidades econômicas e sociais, não se encontram direta e imediatamente
ligadas a questões de preservação ambiental. São questões estruturalmente
interligadas, mas não coincidentes, tendo a função social esteio no art. 5º,
inciso XXIII, ao passo que as questões ambientais se encontram especifica-
mente tratadas pelo art. 225 da Carta Maior.
Portanto, é certo que as questões pertinentes ao ecossistema e sua preser-
vação podem interferir indiretamente na elaboração das normas de ordenação
das cidades, mas não se constituem ou materializam a preocupação primeira
deste vetor normativo. Neste sentido, o § primeiro do art. 1229, expressa-
mente dispõe que a propriedade privada deve observar as “finalidades econô-
micas e sociais” “e” de “preservação ambiental”. Tratando como situações dis-
tintas, regradas em normas separadas, ordenadas por prioridades não necessa-
riamente coincidentes, procedeu corretamente o novo Código, ao apartar as
restrições decorrentes da função social daquelas provenientes de “restrições
ambientais” ou ligadas à preservação cultural.
Procedeu corretamente, porque as restrições ao direito de propriedade
representam comandos imperativos de ordem pública, de forma que somente
valem, conquistam eficácia, ou impõem obrigações, quando “expressos” nesse

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O DIREITO DE PROPRIEDADE E O NOVO CÓDIGO CIVIL 45

sentido. Assim, como comandos normativos, as restrições ou limitações ao


direito de propriedade devem ser claras, precisas e objetivas, e, para que tal
propósito seja alcançado, necessário se apartar, quando possível, os comandos
relativos à preservação ambiental ou de manutenção do ecossistema das restri-
ções decorrentes da solução ligada ao melhor aproveitamento da infra-estru-
tura urbana (função social ou finalidades econômicas e sociais).
Isso significa que deve o Plano Diretor apresentar padrões objetivos sobre
a “função social”, assim como a eventual legislação que versar sobre a “preser-
vação ambiental”. Por integrarem o campo do Direito Público, estas restri-
ções não comportam, sob pena de grave subversão da ordem constitucional,
interpretações extensivas ou ampliativas. Não há como, sob a órbita do “inte-
resse coletivo”, se restringir o uso e fruição da propriedade privada, sem que
exista previsão normativa expressa e de consistência objetiva.
O direito à liberdade, ou o direito de propriedade, sempre prevalece,
salvo previsão expressa e objetiva em sentido contrário. As restrições somente
excepcionam o direito de propriedade, quando enunciadas em normas pró-
prias e específicas, relativas à melhor ordenação das cidades, bem como volta-
das à preservação ambiental ou da cultura histórica ou artística.
Assim, retornando aos termos utilizados pelo professor Orlando Gomes,
certo é que o “conteúdo positivo” do direito de propriedade, que confere ao
titular a “faculdade” de usar, gozar e dispor livremente do bem corpóreo, por
ter consistência de comando de Direito Privado, não experimenta qualquer
tipo de contenção de conteúdo (onde tudo é permitido, se não for expressa-
mente proibido). Em sentido contrário, as “restrições e limitações” de uso,
que compõe o chamado “conteúdo negativo” do direito de propriedade, de-
vem ser enunciadas de forma objetiva e precisa, não comportando extensões
ou ampliação de seus termos, por integrarem ramo do Direito Público (onde
tudo é proibido, se não for expressamente permitido).
Trata-se de orientação segura ao aplicador do Direito que deve analisar
com o cuidado indispensável o conteúdo do direito de propriedade, no que
diz respeito às liberdades, e como devem ser interpretadas e analisadas as
restrições a esse direito. Esse alerta se presta também para a análise e o estudo
das demais “restrições” que atingem o direito de propriedade, como aquelas
de cunho urbanístico, invariavelmente ligadas ao parcelamento do solo urba-
no, ou às limitações de sentido meramente convencional, pactuadas e ajusta-
das entre particulares.

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De alguma forma, o Código Civil veio a facilitar essa análise, apresen-


tando texto que, de certa forma, reafirma as determinações constitucionais,
permitindo um maior equilíbrio de forças, para que as “paixões” impulsio-
nadas por ideologias simplistas não aniquilem o direito de propriedade,
bem como não impeçam, de outro lado, que os reais interesses coletivos
prevaleçam.
Deve estar sempre presente a idéia de que as normas de cunho social
representam uma forma de “exceção” ao padrão constitucionalmente adota-
do, que impõe tratamento equânime entre os direitos e entre os titulares dos
direitos, como decorrência do princípio da isonomia. Os comandos de senti-
do social, como, por exemplo, as alíquotas progressivas o IR e do IPTU, des-
nivelam os titulares de direitos (contribuintes) acima do desnível que osten-
tam, ou seja, não se inspiram no princípio da igualdade.
Portanto, as preocupações “sociais” se voltam à erradicação das diferenças
sociais e financeiras, não se atendo, por óbvio, aos padrões igualitários, na
medida em que representam uma forma excepcional ou anômala no enuncia-
do do direito.
Assim, não há “função social”, não há “restrição social”, ou “restrição
patrimonial” que não seja, expressa, objetiva e diretamente, prevista em nor-
ma com status e aptidão para inovar o mundo jurídico.
Portanto, diversos são os argumentos que indicam, sinalizam e exigem
que as restrições ao direito de propriedade sejam enunciadas de forma clara,
objetiva e direta, assim como diversos são os argumentos que indicam que tais
“restrições” não comportam interpretações extensivas ou ampliativas ou qual-
quer outra forma de leitura que venha alargar o conteúdo de tais normas.
O Código Civil facilitou essa visão do direito de propriedade, mormente
quando se consegue harmonizar o seu conteúdo com o conteúdo que lhe
confere fundamento de validade, que é a Constituição Federal.

4.Novas previsões sobre a propriedade privada


empregadas pelo novo Código Civil

4.1 Uso indevido da propriedade

“Art. 1.229, §2º:

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O DIREITO DE PROPRIEDADE E O NOVO CÓDIGO CIVIL 47

§ 2º - São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer como-


didade ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.”

Uma das inovações do novo Código, a qual exige análise e estudo, diz
respeito ao parágrafo transcrito, que estampa proibição, dirigida ao proprietá-
rio, para que este não desenvolva atos motivados e voltados a provocar prejuízo
a outrem, sem qualquer efeito positivo para o uso de sua propriedade.
Esta hipótese não tem qualquer liame ou vinculação com as restrições
determinadas pelo interesse coletivo, bem como foi lançada fora do capí-
tulo relativo ao direito de vizinhança, refletindo uma forma peculiar de
“restrição de uso”, impulsionada por “interesse privado”, ou, mais precisa-
mente, daquele(s) que venha(m) a ser prejudicado(s) pela conduta indevi-
da ou perniciosa.
A propriedade privada, em atenção a este dispositivo, não pode ser utili-
zada com o propósito único de espezinhar, aborrecer ou prejudicar vizinho ou
proprietários ou possuidores de imóveis do entorno. A prática de tais atos
deve viabilizar ações indenizatórias ou ações cominatórias, ou, ainda, deman-
das demolitórias.
A dificuldade reside na indefinição do que sejam atos prejudiciais, pois,
em tese, não poderiam abarcar atos comportamentais, mas apenas atos de uso
ou fruição da propriedade. No entanto, tal questão, como tantas outras maté-
rias duvidosas, deverão ser esmiuçadas por nossos tribunais.

4.2 Desapropriação judicial - Posse/Trabalho

“Art. 1.229, §§ 3º, 4º e 5º:


§ 3º - O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapro-
priação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem
como no de requisição, em caso de perigo público iminente.
§ 4º - O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel
reinvindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-
fé, por mais de 5 (cinco) anos, de considerável número de pessoas, e estas
nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços
considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
§ 5º - No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização

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devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para


o registro do imóvel em nome dos possuidores.”

O Código Civil apresentou, no § 3º transcrito acima, todas as formas


expropriatórias concebidas pela Constituição, declarando que “o proprietário
pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação por necessidade ou
utilidade pública ou interesse social, tudo em perfeito compasso com os arti-
gos 5º, XXIV, 182 e 184 da Carta Maior.
Portanto, a lei civil, neste particular, nada acrescentou àquilo que, de
forma imperativa, constava da Constituição. É certo que os dispositivos cons-
titucionais anotados não são dotados de auto-eficácia, dependendo de norma
integradora, contudo, não foi o Código Civil que conferiu tais efeitos, mas
sim a legislação pretérita recepcionada pela Carta Política, bem como as leis
específicas que regulamentaram as demais formas expropriatórias, como o
Estatuto da Cidade.
A grande inovação, nesta parte, foi insculpida nos §§ 4º e 5º, que admi-
tiram uma forma peculiar de desapropriação, que pode ser denominada de
“desapropriação judicial”, pois deflagrada no curso de ação reinvindicatória,
declarada, não pelo Poder Executivo, mas sim pelo Poder Judiciário.
O Código admitiu que, nas ações petitórias, especificamente as reinvin-
dicatórias em que o objeto seja “extensa área”, ocupada de boa-fé, por um
grande número de pessoas que tenham erguido equipamentos urbanos ou
edificações para moradia (obras e serviços), poderá o juiz reconhecer e decla-
rar o interesse social, fixando o valor de indenização justa.
O parágrafo subseqüente estabelece que, pago o preço, o título se presta-
rá para registro.
A primeira grande questão deste instituto é desvendar quem deve res-
ponder pelo pagamento da indenização ou do justo preço da área, se a popu-
lação que ocupou a área e lá reside há mais de cinco anos, ou se o Poder
Público local.
O dispositivo não apresenta qualquer resposta direta nesse sentido, suge-
rindo, em uma primeira leitura, que o pagamento deve ser feito pelos próprios
ocupantes. Neste sentido, se pronunciaram o professor Walter Ceneviva e o
professor Ricardo Pereira Lira, em palestras proferidas na Escola Paulista da
Magistratura.

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O DIREITO DE PROPRIEDADE E O NOVO CÓDIGO CIVIL 49

Entretanto, não nos parece ser esta a melhor dicção do dispositivo


sub examine, até porque se torna imperativo que sua leitura seja feita de
forma sistemática, em confronto com os demais parágrafos que compõem
o mesmo artigo.
Como visto, o § 3º alude às formas de desapropriação, reportando-se até
à motivada pela declaração e reconhecimento do interesse social. Em seguida,
no próprio § 4º, o Código confere a prerrogativa, atribuída ao juiz de Direito,
de proclamar e declarar o interesse social. Por fim, o § 5º alude a justa inde-
nização, empregando termos consagrados pelas disposições constitucionais
relativas ao instituto da desapropriação.
Portanto, a estruturação do artigo 1.228, que apresenta peculiar constru-
ção legislativa, revela a existência de recíprocas interferências entre seus coman-
dos, denunciadas também, pelo emprego de “termos” e “expressões” próprios
do instituto da desapropriação (“interesse social” e “justa indenização”). Des-
tarte, indicam e sinalizam no sentido de que a hipótese revela uma forma de
desapropriação judicial, exigindo que a indenização fixada deva ser saldada pelo
Poder Público Municipal, em atenção à sistemática de precatórios.
Ademais, seria de todo incongruente que, proclamado o “interesse so-
cial” relativo aos ocupantes da grande gleba, reconhecendo por essa via que se
trata de pessoas hipossuficiententes financeira e economicamente, ou pobres
na acepção jurídica do termo, a esses fosse imposta a obrigação de pagamento
da área. Seria uma insuperável contradição.
Relevante é destacar que ao juiz não é conferido poder para fixar um valor
módico para a área expropriada, pautado em padrões “sociais”, pois deve se
ater ao justo preço, o que reafirma a necessidade do valor ser assumido pelo
Poder Municipal local.
Neste ponto, vale o alerta de que não se pode admitir a existência de um
dispositivo ou um comando legal sem utilidade prática ou com diminuta
aplicabilidade, de forma que toda interpretação que venha atingir um con-
teúdo que aniquile a “utilidade” da imposição, certamente, não estará reve-
lando o seu melhor e mais correto sentido e alcance.
Este é exatamente o caso em exame, pois não se pode exigir pagamento
de quem reconhecidamente não possui condições para pagar.
O professor Miguel Reale, que empresta o seu inegável prestígio pessoal
ao novo Código, realça que a norma cria efetivamente uma “desapropriação

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judicial”. Considera-a uma inovação “do mais alto alcance, inspirada no sentido
social do direito de propriedade, implicando não só novo conceito desta, mas tam-
bém novo conceito de posse, que se poderia qualificar com sendo de possse-trabalho”
(Novo Código Civil e Legislação Extravagante Anotados, Nelson Nery Junior e
Rosa Maria de Andrade Nery, atualizado até 15.03.02, p. 419).
Os caminhos para a implementação da desapropriação judicial poderão
ser apresentadas e enunciados em novas normas, sendo que, na ausência dessas,
competirá ao Judiciário indicar o percurso processual que deve ser observado.
Quanto ao título de domínio que decorre desta forma anômala de
desapropriação, esse poderá se guiar pelos modelos admitidos nas legisla-
ções urbanísticas, como o Estatuto da Cidade, contemplando “frações in-
dividualizadas”, acessos e vias, como também poderá contemplar o todo da
gleba, fracionando-a em partes ideais iguais ou proporcionais à ocupação de
cada segmento familiar.
Evidente que o direito de cidadania que a legislação contemporânea visa
resgatar não pode se contentar em conferir um título em “partes ideais” iguais
ou proporcionais aos ocupantes, pelas dificuldades de utilização desse direito,
na medida que seu exercício depende de uma organização condominial. É de
se entender, portanto, que, somente em último caso, a formação dos condo-
mínios pro indiviso deve ser concebida e aceita.
A falta de definição do Código obrigará o Judiciário a formular as melho-
res e mais sensatas soluções em cada caso.

4.3 Desapropriação - Momento da perda da propriedade

“Art. 1.275 - Além das causas consideradas neste Código, perde-se a proprie-
dade:
I. - por alienação;
II. - por renúncia;
III. - por abandono;
IV. - por perecimento da coisa;
V. - por desapropriação;
Parágrafo único: - Nos casos dos incisos I e II, os efeitos da perda da
propriedade imóvel será subordinados ao registro do título transmissivo
ou do ato renunciativo no Registro de Imóveis.”

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O DIREITO DE PROPRIEDADE E O NOVO CÓDIGO CIVIL 51

O art. 1.275 estabelece as causas da perda da propriedade, a exemplo do


que fazia o art. 589 do Código de 1916, tendo ampliando o elenco, com a
inserção da desapropriação.
Repetindo o dispositivo do Código superado, o novo estatuto afirma que
a propriedade se transfere em caso de alienação ou renúncia, no momento do
registro imobiliário, deixando de lado as demais hipóteses.
Permite o novo texto que se conclua, com segurança, que, nos casos de
desapropriação, não será o registro imobiliário que marcará, temporalmente,
perda da propriedade. Portanto, o Novo Código se mostrou sensível à corrente
jurisprudencial que se estruturou a partir das Varas das fazendas Públicas de
São Paulo, por ocasião da edição da Carta Constitucional de 1988, entendi-
mento este que passou a considerar o apossamento ou a imissão como o termo
de passagem da propriedade privada para o domínio público.
O Código sedimenta esse entendimento de nossos Tribunais Estaduais e
do E. Superior Tribunal de Justiça (ainda não referendado pela mais Alta
Corte de Justiça do País), acarretando, como conseqüência, a necessidade de o
Poder Público ter que efetivar o depósito do valor do imóvel, antes da expedi-
ção da imissão na posse, ou seja, antes da perda da posse, que, no caso, signi-
fica perda da propriedade.
Trata-se da posição que melhor se ajusta aos padrões constitucionais que
sempre exigiram indenização prévia e justa, sendo que o termo “prévia” é
ligado à perda da propriedade, que, agora, em termos de “moralização” admi-
nistrativa, recebe um aliado de peso, que é o novo Estatuto Civil.

4.4 Arrecadação de bens abandonados

“Art. 1276 - O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a


intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não en-
contrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e
passar, 3 (três) anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito
Federal, se se achar nas respectivas circunscrições:
§ 1º - O imóvel situado na zona rural, abandonado nas mesma cir-
cunstâncias, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, 3 (três)
anos depois, à propriedade da União, onde quer que ele se localize;
§ 2º - Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este
artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfa-
zer os ônus fiscais.”

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 37-57, janeiro/junho - 2003


52 VENICIO ANTONIO DE PAULA SALLES

O novo Código permite a arrecadação de bens imóveis urbanos e rurais,


abandonados por seus titulares, desde que não estejam submetidos a posse de
outra pessoa.
O dispositivo presume, de forma absoluta, ou seja, de forma irrefutável,
que a ausência de recolhimento dos tributos incidentes sobre o imóveis deter-
mina e configura este estado de abandono.
O Código não mais declina prazos para a arrecadação imobiliária, de
forma que, em existindo executivos fiscais relativos ao IPTU de exercícios
sucessivos, tal situação pode autorizar o Poder Municipal a estancar e suspen-
der a cobrança nos executivos fiscais, para reclamar a arrecadação do bem
imóvel. Contudo, a efetiva passagem para o domínio público somente poderá
se materializar após o transcurso de 3 (três) anos da arrecadação.
O legislador foi conciso e objetivo nessa previsão, não tendo declinado
qualquer prazo para a postulação da arrecadação. Portanto, transcorrido mais
de um ano de inadimplemento fiscal, poderá o Poder Público iniciar o proce-
dimento de arrecadação se o imóvel não estiver em uso ou posse de terceiros.
Surge uma dúvida acerca dos imóveis envolvidos em procedimentos fali-
mentares ou em inventários. A posse indireta dos responsáveis afastaria a arre-
cadação?
A resposta parece ser negativa, pois é incumbência do síndico, do inven-
tariante ou dos herdeiros, promover os atos de administração, atuando para
que os tributos sejam recolhidos. A omissão de tal incumbência legal propi-
ciará a presunção de abandono, e autorizará a arrecadação pública do bem.
Esse parece o entendimento que melhor se coaduna com o sentido do
novo dispositivo.

5. Propriedade desdobrada - Direito de superfície;


direito à superfície no N.C.C.;
direito de superfície frente ao Estatuto da Cidade;
diferenças

Direito à superfície
Art. 1.369 e seguintes:

“Art. 1.369 - O proprietário pode conceder a outrem o direito de

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 37-57, janeiro/junho - 2003


O DIREITO DE PROPRIEDADE E O NOVO CÓDIGO CIVIL 53

construir ou de plantar em seu terreno, por tempo determinado, me-


diante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Re-
gistro de Imóveis.
Art. 1.370 - A concessão da superfície será gratuita ou onerosa; se one-
rosa, estipularão as partes se o pagamento será feito de uma só vez ou
parceladamente.
Art. 1.371 - O superficiário responderá pelos encargos e tributos que
incidirem sobre o imóvel.
Art. 1.372 - O direito de superfície pode transferir-se a terceiros e, por
morte do superficiário, aos seus herdeiros;
§ único - Não poderá ser estipulado pelo concedente, a nenhum título,
qualquer pagamento pela transferência.
Art. 1.373 - Em caso de alienação do imóvel ou do direito de superfície,
o superfeciário ou o proprietário tem direito de preferência em igualdade
de condições;
Art. 1.374 - Antes do termo final, resolver-se-á a concessão se o superfi-
ciário der ao terreno destinação diversa daquela para que foi concedida;
Art. 1.375 - Extinta a concessão, o proprietário passará a ter a proprie-
dade plena sobre o terreno, construção ou plantação, independentemen-
te de indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário.
Art. 1.376 - No caso de extinção do direito de superfície em conseqüên-
cia de desapropriação, a indenização cabe ao proprietário e ao superfi-
ciário, no valor correspondente ao direito real de cada um.
Art. 1.377 - O direito de superfície, constituído por pessoa jurídica de
direito público interno, rege-se por este Código, no que não for diversa-
mente disciplinado em lei especial.”

O novo diploma restaurou e modernizou o instituto relativo ao direito de


superfície (que, previsto nas Ordenações Filipinas, sempre compôs a tradição
da legislação portuguesa), possibilitando a cessão, gratuita ou onerosa, da
superfície imobiliária. Trata-se de um direito que se materializa como uma forma
de divisão ou segregação de realidades que compõe a propriedade imobiliária.
Concebeu, por esta via, uma bipartição no direito de propriedade, fra-
cionando-o em direito inerente ao solo e direito à superfície. Com tal inova-
ção, o novo Código veio a possibilitar um melhor regramento deste direito,
“propiciando ao proprietário a possibilidade de fazer acordos com grandes empre-
sas para que a sua propriedade seja usada; ele cede o uso da superfície para que seja

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 37-57, janeiro/junho - 2003


54 VENICIO ANTONIO DE PAULA SALLES

construído, por exemplo, um conjunto que, passados anos, reverterá ao seu patri-
mônio (professor Miguel Reale, O Estado de S.Paulo, 26.11.1983).
O direito de superfície, quando destacado do solo, deve ser formalizado e
instrumentalizado por escritura pública, merecendo o devido registro imobi-
liário. A Lei nº 6.015/73 já mereceu adequada alteração, determinada pelo
“Estatuto da Cidade”, prevendo o registro da escritura formalizadora do di-
reito de superfície.
Destaque-se que o direito de superfície denuncia, por sua estrutura e
consistência, o seu caráter temporário, podendo ser ajustado de forma gratui-
ta ou onerosa. Em todos os casos, o direito de superfície transfere ao superfi-
ciário os encargos fiscais que oneram e incidem sobre o imóvel (art. 1371),
contudo, a nível tributário-fiscal, é de se admitir a responsabilidade solidária
entre o proprietário do solo e o superficiário, conquanto, nestes casos, será o
imóvel como um todo (solo e superfície) que responderá pelas dívidas.
Alerta o professor Ricardo Pereira Lira, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, que instituição do “direito de superfície”, por se fazer através de
concessão, e não por cisão, afasta a idéia de instituição desse direito sobre
prédios já construídos ou plantações já implantadas e desenvolvidas.
Em sentido contrário, manifestou-se o prof. Silvio Venosa, em seu curso
sobre Direito Civil, volume V - Direitos Reais, no qual anota que “o Código de
2002 se refere apenas ao direito de o superficiário construir ou plantar, não men-
cionando o direito correlato, mencionado pelo Código português, qual seja, o de
manter no local as plantações ou construções já existentes”. Conclui ser “inafastá-
vel também essa possibilidade em nosso direito, por ser da natureza do instituto,
não havendo razão para a restrição” (obra citada, ed. Atlas, 2ª ed., pag. 383).
Ao que parece, razão assiste ao professor Silvio Venosa, pois a palavra
concessão não tem conteúdo restritivo, propiciando a concessão para nova
obra ou para obra já edificada, até porque, a esta pode ser incorporado a
obrigação de manter, reformar ou ampliar. Ademais, tratando-se de direito
privado por excelência, as restrições ou vedações devem vir estruturadas em
normas precisas, com conteúdos certos, e não por meras ilações e conclusões
interpretativas.
Outra questão que deverá ocupar espaço nos estudos dos operadores do
Direito diz respeito à possibilidade de incidência dos demais direitos reais
sobre o “direito de superfície”, tais como o usufruto, o uso ou a hipoteca.
Certamente existirão posições discordantes; no entanto, em se tratando

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 37-57, janeiro/junho - 2003


O DIREITO DE PROPRIEDADE E O NOVO CÓDIGO CIVIL 55

de um direito real por excelência, factível, em princípio, a sua oneração, desde


que o gravame se guie pelas regras de tempo e de forma previstas e pactuadas
na escritura instituidora do direito de superfície.
É intuitivo que o direito de superfície seja mais empregado para efeitos
econômicos do que para qualquer outro propósito, e teme-se que possa ser
utilizado com propósitos não muito saudáveis do ponto de vista jurídico,
como, por exemplo, para o esgotamento patrimonial de empresa ou pessoa
física com dificuldades financeiras, efetivado com a transferência patrimonial,
através da concessão de direito de superfície com prazo dilatado e com o
pagamento representado pela própria construção futura. É uma mera hipóte-
se, mas que vai aguçar muito aqueles que vasculham fórmulas novas para
velhos golpes.

Direito de superfície frente ao Estatuto da Cidade; diferenças

Precedentemente ao Código Civil, o Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/


01), em seus artigos 21 a 24, já havia previsto e instituído o direito de super-
fície, em padrões muito próximos, mas não coincidentes.
A primeira questão que se coloca é saber se a norma subseqüente superou,
por revogação tácita, a norma antecedente, que no caso é a Lei nº 10.257/01.
A resposta a essa indagação não se apresenta simples e direita, mas é certo
que tal revogação não se materializou, pois as duas leis cumprem propósitos
distintos e programas diversos.
O Código Civil se presta a disciplinar e regrar todas as relações entre
particulares, estabelecendo os padrões, as formas e prazos da vida civil.
De forma diversa, o Estatuto da Cidade se prende a propósitos e deside-
ratos ligados aos objetivos fundamentais da república, anotados e elencados
no art. 3º, da Carta Federal, voltada para “construir uma sociedade livre, justa
e solidária”, “garantindo o desenvolvimento nacional”, “erradicando a pobre-
za a marginalidade e os desníveis sociais”, visando sempre ao “bem-estar de
todos, sem preconceitos de raça, sexo, cor, idade ou qualquer outras formas de
discriminação”.
Esses padrões, que podem ser sintetizados como a busca a uma “melhor
qualidade de vida coletiva”, materializam-se através de normas voltadas às
questões urbanísticas (melhor funcionamento das cidades); questões sociais

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 37-57, janeiro/junho - 2003


56 VENICIO ANTONIO DE PAULA SALLES

(redução das desigualdades); e questões ambientais (preservação e manuten-


ção da vida). Esse tripé de propósitos programáticos do estado é que inspi-
raram e motivaram a confecção e edição do Estatuto da Cidade.
Assim, cumprem, o Código Civil e o Estatuto da Cidade, missões distin-
tas, de forma que seus comandos não se antagonizam, mas se completam,
prevalecendo, para as relações civis, o estatuído no novo Código e, para as
relações de cunho urbanístico, social ou ambiental, o Estatuto da Cidade.
Aliás, os textos não possuem grande distância ou discrepâncias. O Es-
tatuto da Cidade admite, o que é negado pelo Código Civil, que o direito
de superfície possa ser exercido também no subsolo e no espaço aéreo. Tra-
ta-se de uma ampliação no direito, que pode dar maior fluidez e largueza ao
instituto, permitindo a sua utilização para uma gama maior de casos e
hipóteses.
Também o Estatuto da Cidade admite que o prazo da concessão do
direito possa ser indeterminado, ao passo que o Código Civil apenas admite
prazo certo. Também neste particular, o Estatuto, para os seus propósitos,
confere uma maior abrangência ao instituto.
Assim, em que pese as diferenças, os direitos previstos em normas distin-
tas, coexistem por terem metas não necessariamente coincidentes, contudo
na “dúvida” sobre qual diploma legal deve ser empregado, o direito de super-
fície deve ser admitido em sua maior extensão.
Por fim, é de se admitir que muitas questões sobre a forma de registro
serão certamente suscitadas, posto que o direito de superfície poderá ser
exercitado de muitas maneiras, envolvendo situações simples de cessão para
um novo plantio ou para uma construção única, bem como, envolvendo
situações complexas, em que a edificação envolva grande plano de incorpo-
ração condominial.
Estas questões registrais deverão se melhor adequadas e convenientemen-
te regulamentadas, para que o devido controle escritural seja feito a contento.

6. Bibliografia:

- GOMES, Orlando. Direitos Reais, 7ª ed., Forense, p. 86).


- BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo,
14ª ed., Malheiros Editores, p. 684 ).

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 37-57, janeiro/junho - 2003


O DIREITO DE PROPRIEDADE E O NOVO CÓDIGO CIVIL 57

- CENEVIVA, Walter. Extraído de palestras proferidas na Escola Paulista da


Magistratura, no curso sobre o Novo Código Civil.
- LIMA, Ricardo Pereira. Extraído de palestras proferidas na Escola Paulista
da Magistratura, no curso sobre o Novo Código Civil.
- REALE, Miguel. Citado no Novo Código Civil e Legislação Extravagante Ano-
tados, Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, atualizado até
15.03.02, p. 419).
- REALE, Miguel. O Estado de S.Paulo, 26.11.1983.
- VENOSA, Silvio. Curso sobre Direito Civil - Direitos Reais , v. V, 2ª ed., Atlas,
p. 383).

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 37-57, janeiro/junho - 2003


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Os reflexos do tempo
no Direito Processual Civil
(uma breve análise da qualidade temporal
do processo civil brasileiro e do europeu)

Fernando da Fonseca Gajardoni


JUIZ DE DIREITO NO ESTADO DE SÃO PAULO E MESTRE EM DIREITO
PROCESSUAL CIVIL PELA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO.

SUMÁRIO: 1. O tempo no Direito Processual Civil -


2. O dilema entre celeridade e segurança - 3. A celeridade
como pressuposto de um processo justo - 4. A garantia
da tutela jurisdicional tempestiva - 5.O conceito de
tutela jurisdicional tempestiva - 6. Bibliografia

1. O tempo no Direito Processual Civil

A
par de assuntos eminentemente processuais, como prazos, preclusão,
prescrição, e, sob o fundamento de não se tratar de um tema propriamen-
te jurídico, grande parcela da doutrina brasileira sempre encarou a ques-
tão do tempo no processo — a sua duração — como algo de menor importância.
Contudo, o estudioso que imagina que a questão da duração do processo
é irrelevante e não tem importância científica não é só alheio ao mundo em que
vive, como também não tem a capacidade de perceber que o tempo do processo
é fundamento dogmático de vários importantes temas do processo contempo-
râneo (tutela antecipada, ação monitória, Juizados Especiais, entre outros).1

1
Luiz Guilherme Marinoni, Tutela Antecipatória, Julgamento Antecipado e Execução Imediata da Sentença, 4ª
ed., São Paulo: RT, 2000, p. 19.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 59-79, janeiro/junho - 2003


60 FERNANDO DA FONSECA GAJARDONI

A necessidade de aprofundamento dos estudos sobre o tempo do proces-


so diz respeito, sobretudo, ao processo civil e trabalhista, vítimas principais
desse fator. Infelizmente, o que se tem registrado até agora é a “mais desoladora
indiferença por parte da doutrina, que, ainda, inacreditavelmente, encara os pro-
blemas relacionados ao custo e à duração dos processos como algo — se não pro-
priamente irrelevante e incidente — de pelo menos importância marcadamente
secundária, por não serem propriamente ‘científicos’”.2
É chegado o momento do tempo do processo “tomar o seu efetivo lugar
dentro da ciência processual, pois este não pode deixar de influir sobre a elaboração
dogmática preocupada com a construção do processo justo ou com aquele destinado
a realizar concretamente os valores e os princípios contidos na Constituição da
República”.3
Por isso, o fator tempo no processo — ao lado do seu custo — deve
condicionar não somente a condução do processo, mas também a própria
atividade legislativa4. O legislador infraconstitucional está obrigado a cons-
truir procedimentos que tutelem, de forma efetiva, adequada e tempestiva, os
direitos, e a prever tutelas que, atuando internamente no procedimento, per-
mitam uma racional distribuição do tempo do processo5. Nesse sentido, bas-
ta ver as reformas do Código de Processo Civil brasileiro do final do século
passado (tutela antecipada, ação monitória), bem como a edição da Lei dos
Juizados Especiais Federais (Lei nº 10.259/2001), todas inspiradas pelo pro-
pósito acelerador.

2. O dilema entre celeridade e segurança

O processo é um instituto essencialmente dinâmico e, até mesmo por


uma exigência lógica, não exaure o seu ciclo vital em um único momento,
sendo destinado a desenvolver-se no tempo. O tempo constitui elemento
não só necessário, mas imprescindível, em todo processo. Embora os atos

2
Nesse sentido, Vincenzo Vigoriti, para quem “a razão principal deste posicionamento é de natureza cultural.
Uma análise profunda do custo e da duração dos processos impõe o estudo e o emprego de metodologia de
pesquisa de natureza econômica e estatística bastante complexas e, portanto, estranha à cultura jurídica”
(“Notas sobre o curso e a duração do processo civil na Itália”, tradução de Teresa Celina de Arruda Alvim, Revista
de Processo, São Paulo, v. 11, nº 43, jul./set. 1986, p. 142).
3
Luiz Guilherme Marinoni, Tutela Antecipatória..., cit., p. 16.
4
Vincenzo Vigoriti, “Costo e durata de processo civile: spunti per uma riflessione”, Rivista di Diritto Civile, Padova,
Cedam, 1996, pp. 320-325.
5
Luiz Guilherme Marinoni, Tutela Antecipatória..., cit., p. 18.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 59-79, janeiro/junho - 2003


OS REFLEXOS DO TEMPO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL 61

processuais tenham uma certa ocasião para ser realizados, normalmente


não se perfazem de modo instantâneo, mas sim desenrolam-se em várias
etapas ou fases.6
O processo, como instrumento destinado à atuação do direito material,
não prescinde da aferição das reais circunstâncias da lesão ocorrida para o
restabelecimento das coisas em seu status quo ante, até em homenagem a um
elementar postulado de segurança jurídica. Em razão disso, impossível que
propicie prontamente tutela definitiva. O processo dura; não se pode fazer
tudo de uma única vez. “É indispensável se ter paciência. Semeia-se, como faz o
camponês; e é preciso esperar para se colher (...). O slogan da justiça rápida e segura,
que anda na boca dos políticos inexperientes, contém, lamentavelmente, uma con-
tradição in adjecto: se a justiça é segura não é rápida, se é rápida, não é segura”.7
Por outro lado, a excessiva demora do processo, mesmo que se tenha, ao
final, uma decisão segura8 — com a entrega do bem da vida perseguido a
quem de direito — gera nas partes litigantes, principalmente no vencedor da
demanda, independentemente de fatores de compensação (juros e correção
monetária), inconteste dano marginal.9 Trata-se de um fator depreciativo, de
faceta emocional e material,10 do objeto que deveria ser prontamente tutelado
pelo processo.
Certamente, o grande desafio do processo civil contemporâneo reside no
equacionamento desses dois valores: tempo e segurança.11 A decisão judicial
tem que compor o litígio no menor tempo possível. Mas deve respeitar tam-
bém as garantias da defesa (due process of law), sem as quais não haverá decisão

6
Cf. Adolfo Gelsi Bidart, “El tiempo y el proceso”, Revista de Processo, São Paulo, v. 6, nº 23, jul./set. 1981, p.
110 e “Conciliación e proceso”, in Cândido Rangel Dinamarco; Ada Pellegrini Grinover; Kazuo Watanabe,
Participação e Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, pp. 253-254.
7
Francesco Carnelutti, Diritto Processo, Napoles: Morano, 1958 (tradução nossa), p. 154.
8
Não é possível esquecer-se de que a demora pode afetar a qualidade do serviço do juiz, já que as possibilidades
de erro se multiplicam consideravelmente, na medida em que transcorre o tempo entre a ocorrência do fato a
ser investigado em juízo e a sua declaração através da sentença. Nesse sentido, ver José Roberto dos Santos
Bedaque, em seu discurso de posse como desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (“O
desabafo de um juiz paulista”, DOE, Poder Judiciário, Parte I, Cad. 1, 23 out. 2001, p. 2).
9
Na conhecida expressão talhada por Ítalo Andolina (Cognizione ed Ezecuzione Forzata nel Sistema della Tutela
Giurisdizionale, Milano: Giufrrè, 1982, p. 20).
10
Observa Luiz Guilherme Marinoni que “se o tempo é a dimensão fundamental da vida humana e se o bem
perseguido no processo interfere na felicidade do litigante que o reivindica, é certo que a demora no processo
gera, no mínimo, infelicidade pessoal e angústia e reduz as expectativas de uma vida mais feliz (ou menos
infeliz)” (Tutela Antecipatória..., cit., p. 17.)
11
Para Egas Dirceu Moniz de Aragão, “entre dois ideais, o de rapidez e o de certeza, oscila o processo”
(Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1976, v. 2, p. 100). Cf., também,
Cândido Rangel Dinamarco, A Instrumentalidade do Processo, 5ª ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 232.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 59-79, janeiro/junho - 2003


62 FERNANDO DA FONSECA GAJARDONI

segura.12 Celeridade não pode ser confundida com precipitação.13 Segurança não
pode ser confundida com eternização.
Já se colocou que o valor do tempo no processo é imenso e, em grande
parte, desconhecido. “Não seria arriscado comparar o tempo a um inimigo,
contra o qual o juiz luta sem descanso”.14 Contudo, não podemos olvidar que a
única arma que possui o juiz nessa guerra é o processo, e que sua bandeira é a
aplicação correta da vontade concreta da lei, impossível de ser defendida, sem
a competente elucidação dos fatos.
Brevidade e segurança são forças antagônicas que têm de conviver. Como
operadores do direito, o nosso papel é mediar esse constante conflito, fazer
com que essas forças se conciliem, da melhor maneira possível.
Mas a humanidade está perdendo essa batalha. Não há relatos, até a
presente data, de um só sistema15 que tenha conciliado tão bem essas forças
(celeridade x segurança), a ponto de satisfazer plenamente os jurisdiciona-
dos.16 Segundo dados constantes do relatório sobre administração da Justiça,
no ano de 1998, na Itália, entre 1991 a 1997, girava em torno de 4 anos a
duração média dos processos em primeiro grau de jurisdição (órgãos de com-
petência comum). No Japão, antes da entrada em vigor do novo código, em
1998, não era raro que um feito civil se arrastasse por alguns anos, e levasse

12
Celso Agrícola Barbi aponta que “o aumento da intensidade nas medidas para alcançar um desses objetivos
implica, quase sempre, o distanciamento do outro; a um processo muito rápido corresponde geralmente a
restrição na defesa do direito por parte do réu; e a uma garantia muito desenvolvida dessa defesa corresponde
um processo moroso. As sucessivas reformas processuais têm sempre o objetivo de encontrar o ponto de
equilíbrio, em que a celeridade desejável não provoque o enfraquecimento de defesa do direito de cada um”
(Comentários ao Código de Processo Civil, 9ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1994, v. 1, p. 515). “Nem o valor
celeridade deve primar, pura e simplesmente, sobre o valor verdade, nem este sobrepor-se, em quaisquer
circunstâncias, àquele” (José Carlos Barbosa Moreira, “Efetividade do processo e técnica processual”, in Temas
de Direito Processual, 6ª série, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 22).
13
Ensina-nos Hélio Tornaghi que o órgão judicial é responsável pela celeridade do processo, “mas sempre
cuidando que não se mutilem as garantias, quer de observância do direito objetivo, quer de respeito aos direitos
subjetivos das partes ou de terceiros. O acerto da decisão prima sobre a sua presteza. É preciso que a ligeireza
não se converta em leviandade, que a pressa não acarrete a irreflexão. O juiz deve buscar a rápida solução do
litígio, mas tem de evitar o açodamento, o afogadilho, a sofreguidão. Deve ser destro, sem ser pior que o
vagaroso. A observância rigorosa das formas e prazos legais é a melhor receita para conciliar rapidez e
segurança” (Comentários ao Código de Processo Civil, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974, v. 1, p. 382).
14
Francesco Carnelutti, Diritto Processo, Nápoles: Morano, 1958, p. 354.
15
Cf. Norberto Bobbio, Diário de um Século, São Paulo: Campos, 1998, p. 243.
16
Donaldo Armelin ensina-nos que “o direito processual europeu, apesar de portentosa produção científica que
apresenta, não produziu, ainda, um sistema jurídico processual plenamente eficaz em termos do equacionamento
da almejada harmonização entre segurança, rapidez e eficácia. Talvez o vezo cartesiano de partir de princípios
para se chegar às soluções adequadas à praxis seja um dos responsáveis por essa situação. O certo, porém, é
que o sistema processual anglo-americano, muito mais marcado pelo empirismo, apresenta melhores soluções
nesse sentido, a despeito de não contar com a produção científica do direito europeu” (“Tutela jurisdicional
cautelar”, Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, nº 23, jun. 1985, p. 126).

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 59-79, janeiro/junho - 2003


OS REFLEXOS DO TEMPO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL 63

mais de dez anos, até decisão da Corte Suprema. Na Inglaterra, o desconten-


tamento com a morosidade da Justiça civil é tamanha que, em abril de 1999,
rompeu-se a multissecular tradição da common law, adotando-se um Código
de Processo Civil, em vários traços assemelhados ao modelo continental euro-
peu, com prazos bem fixados (e bem descumpridos). Nos Estados Unidos, há
relatos de que, em muitos lugares, um feito de itinerário completo (até o
trial) chega a durar, em média, na primeira instância, de três a cinco anos.
Talvez por isso é que nesse país o fenômeno da alternative dispute resolution
(ADR) tenha encontrado “máxima florescência”.17 E, na França, para os casos
cíveis, o procedimento médio, perante um tribunal de primeira instância,
chega a 9 meses, ultrapassando os 15 meses, em grau de apelação. No mesmo
país, há, ainda, tribunais mais lentos, que levam, em média, 21 meses para
julgar em primeira instância (Pointe-à-Pitre), e outros, 20 meses para a apela-
ção (Aix-en-Provence).18
No Brasil, não haveria de ser diferente.
Na justiça federal, seguramente a mais lenta do país, a lentidão dos
processos é algo manifesto. No Tribunal Regional Federal da 2ª Região,
mesmo excluindo-se o tempo do processo em 1º grau, uma causa simples
(previdenciária, por exemplo) leva de 2 a 4 anos para ser julgada. Causas
mais complexas chegam a levar 10 anos, só em 2º grau.19 Na 3ª Região,
apesar da inexistência de dados oficiais, identificamos um verdadeiro caos,
quando se fala em tempo do processo, na segunda instância. Da análise de
7 processos recebidos desse Tribunal na Comarca de Patrocínio Paulista/SP
(art. 109, § 3º, da Constituição Federal), no período compreendido entre
1998 e 2002, notamos que cada um deles, apesar de tratarem do mesmo
assunto (previdenciário), tem duração absolutamente díspar. Há feitos que
demoram cerca de 3 anos e 8 meses para receber julgamento em segundo
grau, enquanto outros, em menos de ano, são julgados. Tomando-se em
consideração 10 processos, constatou-se que o tempo médio de trâmite do
feito, em segunda instância, na 3ª Região — da remessa até o recebimento

17
Cf. José Carlos Barbosa Moreira, “O futuro da justiça: alguns mitos”, Revista da Escola Paulista da Magistratura,
v. 2, ano 1, São Paulo, p. 73.
18
Cf. Jehanne Collard, “Victimes: les oubliés de la justice”, Paris: 1997, p. 141 e segs., apud José Rogério Cruz
e Tucci, Tempo e Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 91. Nessa obra, o autor faz um
interessante relato de casos ocorridos perante os tribunais franceses, onde os jurisdicionados sentiram na pele
o amargor da lentidão judicial.
19
Fonte: Tribunal Regional Federal da 2ª Região.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 59-79, janeiro/junho - 2003


64 FERNANDO DA FONSECA GAJARDONI

em primeiro grau — é de aproximadamente 601 dias, mais ou menos 1 ano


e 8 meses. A experiência prática está a demonstrar, ainda, que feitos de
natureza tributária têm levado mais de 4 anos, para serem apreciados.
O quadro não é distinto na Justiça estadual. Em trabalho desbravador,
posto inexistir, na época, registros obrigatórios no Tribunal de Justiça do Es-
tado de São Paulo, os professores Kazuo Watanabe e Ada Pellegrini Grinover20
levantaram os dados referentes à duração média do processo civil em São
Paulo, no período compreendido entre junho de 1986 e maio de 1989 (antes
da Constituição Federal de 1988, portanto). Os dados da capital revelaram
que, em 1986, a duração média do processo civil (excluída infância e juventu-
de) era de 1 ano e 3 meses; em 1987, 2 anos e 20 dias; em 1988, 1 ano, 9
meses e 20 dias; e em 1989, 2 anos e 1 mês. No Interior, o processo era um
pouco mais rápido: em 1986, sua duração média era de 1 ano, 2 meses e 20
dias; em 1987, 1 ano, 5 meses e 23 dias; em 1988, 1 ano, 6 meses e 7 dias;
e, finalmente, em 1989, 1 ano, 8 meses e 29 dias.21
A impressão inicial de justiça célere à época não passa aos olhos mais
atentos. Quando se fala em duração média, deve se lembrar que há processos
extintos inicialmente ou irrecorridos (de duração menor), bem como outros
que chegam até as instâncias extraordinárias (de duração maior). Todos esses
processos foram considerados, de modo que qualquer valor médio superior a
um ano já é demasiado.
Atualmente, o quadro de lentidão na Justiça Estadual paulista é mais grave
ainda. Salvo as exceções legais e regimentais, uma apelação cível no Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo aguarda de 2 a 3 anos só para ser distribuída.22
Supondo-se que não haja recursos excepcionais (extraordinário e especial) e
acrescentando-se o tempo em primeiro grau, numa análise otimista, parece-
nos seguro que uma causa com recurso para o Tribunal de Justiça não se resolve,
em São Paulo, em menos de 3 anos, isso sem sequer imaginarmos, nas ações
condenatórias, que depois se dará início, ainda, a um processo de execução.

20
Ada Pellegrini Grinover; Kazuo Watanabe, Durata Media dei Processi di Giurisdizione Ordinaria nello Stato di San
Paolo del Brasile, Separata Legalità e Giustizia, Edizioni Scientifiche Italiane, nº 2-3, 1992, pp. 329-338.
21
Projeto semelhante foi desenvolvido em 1988, pelos então desembargadores fluminenses José Carlos Barbosa
Moreira e Felipe Augusto Miranda Rosa, que investigaram a duração dos processos na Comarca do Rio de
Janeiro-RJ. Revelou-se que, em 2º grau, um feito levava, do recebimento no Tribunal, até publicação do acórdão,
em média, 184 dias, se sumaríssimo (atual sumário), e 247, se ordinário. Numa análise do tempo total do
processo — ajuizamento até julgamento em 2º grau — levantou-se que um feito de rito ordinário durava 757
dias, enquanto um de rito sumário, em média, 705 dias (DOE do Rio de Janeiro, 20 nov. 1990).
22
Fonte: DEPRO – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

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OS REFLEXOS DO TEMPO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL 65

Somente na Justiça do Trabalho brasileira é que podemos encontrar al-


guns exemplos de processos que são solucionados rapidamente. No Tribunal
Regional do Trabalho da 7ª Região (Ceará), em 2001, a duração média do
processo em segunda instância — da entrada até o julgamento — ficava em
torno de 60 dias. Na 9ª Região (Paraná), 115 dias. Na 12ª Região (Santa
Catarina), 163 dias, 56 dias para os procedimentos sumaríssimos. Na 13ª
Região (Paraíba), 46 dias. Na 14ª Região (Rondônia), 121 dias e, na 20ª
(Sergipe), 39 dias. Na 10ª Região (Distrito Federal), do ajuizamento em
primeira instância até o julgamento em segunda, o prazo médio, em 2001,
era de 150 dias (rito ordinário e sumaríssimo). Na 18ª Região (Goiás), o
tempo total do processo, em 2001, sem contar o trânsito, era de 116 dias. Na
19ª (Alagoas), 367 dias, no total.
Essa falsa impressão de celeridade na Justiça laboral, contudo, não passa
por uma análise mais atenta. A fase executiva do processo do trabalho, talvez
por tomar emprestado o regime executivo do Código de Processo Civil, é
extremamente lenta. E os Tribunais Regionais do Trabalho supracitados, em
sua maioria, são de Estados com baixa população e de pequeno desenvolvi-
mento industrial, motivo pelo qual baixa a incidência, também, de reclama-
ções. Se analisarmos os Estados com maior conflituosidade laboral, e até ou-
tros nem tão populosos assim, veremos que a morosidade também assola a
Justiça do Trabalho. O Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (São
Paulo) informa que uma reclamação trabalhista, do ajuizamento ao julga-
mento em segunda instância, leva, em média, 3,5 anos (2001). Na 4ª Região
(Rio Grande do Sul), da autuação até julgamento, um recurso ordinário dura,
em média, 468 dias (2001). Na 15ª Região (interior de SP), o prazo médio
em segundo grau, da entrada até a lavratura do acórdão, em 2000, era de 335
dias, 279 em 2001. Na 17ª Região (Espírito Santo), 286 (ago. 2001). Na
21ª Região (Rio Grande do Norte), só em segundo grau, um feito trabalhista
levava, em média, 476 dias para ser julgado.23
A lentidão dos processo judiciais, portanto, é uma característica inelimi-
nável da Justiça estatal contemporânea. Em alguns lugares, talvez porque falte
uma vontade política de atenuar essa excessiva demora. Em outros, talvez,
porque o Estado vem perdendo ou já perdeu essa batalha.

23
Fonte: Os próprios tribunais declinados. Há relatos de que, excepcionando este quadro, apenas o TRT da 3ª
Região (Minas Gerais), que, apesar de atender a uma grande população, oferece tutela de boa qualidade
temporal.

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66 FERNANDO DA FONSECA GAJARDONI

Pesquisa realizada recentemente pela CNT, em conjunto com a Vox Po-


puli, revela que 89% das pessoas entrevistadas no Brasil consideram a justiça
lenta.24 No mesmo sentido, pesquisa realizada pelo jornal O Estado de S.Paulo,
para que 92% dos brasileiros consideram a lentidão o principal problema da
justiça nacional.25
Em pesquisas setorizadas, índices maiores ainda são encontrados. Entre
os empresários do País, 90,8% deles qualificam como ruim o Judiciário nacio-
nal, no concernente à agilidade.26 E 99,12% dos juízes federais brasileiros,
em pesquisa realizada pelo Conselho de Justiça Federal, vêem no atributo
lentidão o principal problema do Judiciário brasileiro.
Tudo está a evidenciar, portanto, que o dilema de ontem, entre seguran-
ça e a celeridade, hoje, deve ser repensado. Segurança, sem dúvida, é indispen-
sável. Mas, em benefício da rapidez das decisões, da prioridade que deve ser dada à
celeridade dos processos, nada impede que algumas garantias sejam arranhadas.27

3. A celeridade como pressuposto de um processo justo

O escopo primordial do processo, analisado como instrumento de paci-


ficação social, é a satisfação dos interesses das partes, a qual não é obtida se ele,
como instituição, se prolonga demasiadamente no tempo. Para que o proces-
so cumpra com eficácia o fim social para que concebido, propiciando não só
satisfação jurídica, mas também efetiva, é preciso que se desenvolva em um
período razoável.28
Com efeito, ao lado da efetividade do resultado, imperioso é também
que a decisão do processo seja tempestiva. É inegável “que, quanto mais distan-
te da ocasião tecnicamente propícia for proferida a sentença, a respectiva eficácia
será proporcionalmente mais fraca e ilusória”, pois “um julgamento tardio irá
perdendo progressivamente seu sentido reparador, na medida em que se postergue o
momento do reconhecimento judicial dos direito; e, transcorrido o tempo razoável

24
Fonte: O Globo, Rio de Janeiro, de 7 abr. 1999. A pesquisa ainda revelou que 67% da população acredita que
a Justiça só favorece os ricos, e 58% nela não confiam.
25
Fonte: O Estado de S.Paulo, 24 mar. 1999.
26
Fonte: IDESP.
27
Cf. Paulo César Pinheiro Carneiro, Acesso à justiça - Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública, 2ª ed., Rio
de Janeiro: Forense, 2000, p. 81.
28
Cf. Cristina Riba Trepat, La Eficacia Temporal del Proceso: El Juicio sin Dilaciones Indebidas, Barcelona: Bosch,
1997, pp. 16-17.

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OS REFLEXOS DO TEMPO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL 67

para resolver a causa, qualquer solução será, de modo inexorável, injusta, por
maior que seja o mérito científico do conteúdo da decisão”.29 Conforme se assinala
diuturnamente, para que a justiça seja injusta, não é necessário que atue equi-
vocadamente. Basta que não julgue quando deva.
No que se refere às partes, a intempestividade da tutela jurisdicional
propicia indiscutível desigualdade social, pois a lentidão beneficia, no mais
das vezes, a parte mais forte (rica), que pode esperar longos anos pela decisão.
Um processo lento pode se tornar uma perigosa arma na mão dos mais ricos,
os quais, em posse de bens e rendas alheias, podem oferecer, em troca da
pronta cessão, apenas parcela do indevidamente apropriado.
Como se isso já não fosse o bastante, a demora na obtenção da tutela
sempre beneficia o réu que não tem razão. A manutenção do direito deman-
dado, no longo decorrer do processo, em poder daquele que está errado (em
detrimento do verdadeiro tutelado pelo direito), representa, seguramente, o
maior contra-senso do sistema. O réu que não tem razão lucra com a demora
pois, além de permanecer indevidamente em poder da coisa, lhe colhe os
frutos. Por isso, não poucos jurisdicionados buscam outros meios para a solu-
ção de seus litígios (heterocomposição extrajudicial), quando não renunciam
aos seus próprios direitos, tudo a fim de evitar o dano maior que terão (mate-
rial e emocional) com os longos anos de espera por uma decisão.30
Já no aspecto econômico, quanto mais lento o processo, maiores as incer-
tezas. E quanto maiores as dúvidas, menores os investimentos no país. Sabido
que organismos internacionais (Banco Mundicial, BID) mensalmente divul-
gam índices de risco dos mais diversos países do mundo, principalmente os
da América Latina. No cálculo desses índices, primordial é o “fator Judiciá-
rio”, analisado tanto sob o prisma da coerência das decisões, quanto sob o da
tempestividade da tutela.31
Até no aspecto antagônico à celeridade, a segurança da decisão, o fator
tempo é preponderante. Quanto mais tempo se passa entre o fato a ser
apurado e a data do julgamento, menos condições tem o órgão julgador de

29
José Rogério Cruz e Tucci, “Garantia do processo sem dilações indevidas”, in José Rogério Cruz e Tucci (org.),
Garantias Constitucionais do Processo Civil, homenagem aos 10 anos da Constituição Federal de 1988, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, pp. 235-236.
30
Cf. Italo Andolina; Giuseppe Vignera, Il Modelo Constituzionale del Processo Civile Italiano, Turim: Giappichelli,
1990, p. 88.
31
Cf. “A babel da justiça”, Diálogos & Debates da Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, v. 3, nº 1, set.
2002, p. 29.

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68 FERNANDO DA FONSECA GAJARDONI

solucionar com segurança e justiça o litígio. As circunstâncias do caso que se


consomem, as modificações fáticas e jurídicas (conflito de leis no tempo) da
controvérsia, tudo contribui para um menor grau de qualidade da tutela
prestada intempestivamente.
Além disso, aquele que não vê reconhecido o seu direito em decorrência
de um provimento injusto — e injusto considera-se, também, o provimento
oferecido a destempo — passa a não crer mais na justiça. E, “na medida em
que essas frustrações se repetem, aumenta a tensão social, o que, evidentemente, não
interessa ao Estado”.32

4. A garantia da tutela jurisdicional tempestiva

Além de compreendida, para boa parte da doutrina internacional, entre


os denominados direitos humanos, a garantia da tutela jurisdicional tempes-
tiva encontra suporte, explícita ou implicitamente, dentro de um amplo con-
ceito constitucional de acesso à justiça.33
De fato, tutela jurisdicional a destempo, ineficaz, portanto, implica de-
negação da própria jurisdição, a qual constitui direito fundamental do ho-
mem, corolário do próprio Estado Democrático de Direito.34
Parece-nos pertinente afirmar que a garantia constitucional de tutela ju-
risdicional é portadora, também, do direito à celeridade do processo,35 de
modo que, ofertando-se tutela intempestiva, se estará atentando contra o pró-
prio conceito de jurisdição.
Seja como for, o fato é que diversos países, seja em seus ordenamentos
internos, seja através de tratados internacionais, vêm assimilando que a
própria proteção jurídica do direito é direito inalienável do ser humano.
E, sendo direito humano, não pode ser mitigado através de uma proteção

32
José Roberto dos Santos Bedaque, Poderes Instrutórios do Juiz, 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001,
p. 72.
33
Lúcida é a observação de Luiz Guilherme Marinoni, para quem “o direito à defesa, assim como o direito à
tempestividade da tutela jurisdicional, são direitos constitucionalmente tutelados. Todos sabem, de fato, que o
direito de acesso à justiça, garantido pelo artigo 5º, XXXV, da Constituição da República, não quer dizer apenas
que todos têm direito de ir a juízo, mas também quer significar que todos têm direito à adequada tutela
jurisdicional ou à tutela jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva” (Tutela Antecipada..., cit., p. 18).
34
Cf. Clarissa Sampaio Silva, “A efetividade do processo como um direito fundamental: o papel das tutelas
cautelar e antecipatória”, in Dos Direitos Humanos aos Direitos Fundamentais, São Paulo: Livraria dos Advoga-
dos, 1997, pp. 185-188.
35
Italo Andolina; Giuseppe Vignera, Il Modelo Constituzionale del Processo Civile Italiano, cit., p. 90.

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OS REFLEXOS DO TEMPO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL 69

jurídica (prestação jurisdicional) imperfeita (ineficaz e/ou intempestiva).36


De acordo com o artigo 6º, 1, da Convenção Européia para Salvaguar-
da dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, subscrita em
Roma, em 4.11.1950, e, posteriormente, ratificada por quase todos os
países da Europa,37 “toda pessoa tem direito a que sua causa seja examinada
equitativa e publicamente num prazo razoável, por um tribunal independen-
te e imparcial instituído por lei, que decidirá sobre seus direitos e obrigações civis
ou sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal contra ela
dirigida (...)” (grifo nosso).
Referido dispositivo, a par de mera disposição programática, pressupõe o
compromisso de todos os Estados contratantes de adotar posturas políticas no
sentido de que seus processos se desenvolvam dentro de uma margem temporal
adequada.38 Por isso, até os tempos atuais, se nota uma incisiva ação legislativa
desses Estados, orientada a fixar os limites temporais das diversas atividades
judiciais, ora tornando peremptórios os prazos processuais, ora estabelecendo
critérios que devem presidir as decisões relativas ao tempo da demanda.39
A fim de garantir eficácia temporal ao processo — entre outras garantias
contempladas na Convenção de Roma — foi criada uma jurisdição especial, o
Tribunal Europeu dos Direitos Humanos,40 órgão competente para o ofereci-
mento de tutela jurisdicional supranacional aos direitos humanos.41
Tal Corte, na análise dos casos a ela submetidos, pode perfeitamente
declarar violada a Convenção Européia dos Direitos Humanos, fixando, in-
clusive, reparação pecuniária ao ofendido, sob responsabilidade do Estado
ofensor. Nesse sentido, basta mencionar que o artigo 41 da Convenção prevê
que “se o tribunal declara que houve violação da Convenção ou dos seus protocolos
e se o direito interno da Alta Parte Contratante não permitir senão imperfeitamen-
te obviar as conseqüências de tal violação, o tribunal atribuirá à parte lesada uma
reparação razoável, se necessário”.

36
Em relação ao processo penal, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de Nova Iorque, aprovado pela
Assembléia Geral da ONU em 19.12.1966, estabelece, em seu artigo 9.3, que “toda pessoa detida ou presa em
razão de uma infração penal será levada sem demora a um juiz ou funcionário autorizado pela lei a exercer
funções judiciais, e terá que ser julgada dentro de um prazo razoável ou que ser posta em liberdade”.
37
Não ratificaram a referida convenção somente o Azerbaijão e a Armênia.
38
Cf. J. V. Gimeno Sendra, El Derecho a un Proceso Sin Dilaciones Indebidas, Madrid: Justicia, 1986, p. 395.
39
Cf. Cristina Riba Trepat, La Eficacia Temporal del Proceso: El Juicio sin Dilaciones Indebidas, cit., p. 53.
40
“Artigo 19 - A fim de assegurar o respeito dos compromisso que resultam para as Altas Partes Contratantes da
presente convenção e dos seus protocolos é criado um Tribunal Europeu de Direitos Humanos (...).”
41
Para um levantamento completo da jurisprudências desta Corte: Cristina Riba Trepat, op. cit., pp. 60-75.

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70 FERNANDO DA FONSECA GAJARDONI

Dados da própria Corte Européia revelam que o direito humano mais


violado, conseqüentemente o mais tutelado, é o constante do artigo 6.1 da
Convenção de Roma, ou seja, o direito a uma tempestiva tutela jurisdicional.
Só para termos uma idéia, em 1999, dos 177 casos apreciados pela Corte,
137 reclamavam de violação à referida garantia (77%). Desses 137, foi cons-
tatada violação em 83 deles (61%), sendo que, em outros 32 processos (23%),
o Estado ofensor e o jurisdicionado se compuseram amigavelmente, sem opor-
tunidade para que o Tribunal supranacional declarasse, ou não, violado o
direito. Em apenas 7 casos apreciados (5%), decidiu a Corte não ter havido
violação ao artigo 6.1 da Convenção, tendo-se, nos demais 15 processos ana-
lisados no período (11%), declarado sem jurisdição, ou admitido ter sido
apresentada a reclamação intempestivamente.42
Aliás, esses mesmos dados são capazes de revelar, ainda, como anda o
sistema judiciário — e, conseqüentemente, o processo — nos diversos orde-
namentos jurídicos europeus.
O campeão em reclamações por violação à garantia humana de tempes-
tividade da tutela jurisdicional é o Estado italiano.43 Dos 137 processos
apreciados em 1999, 70 (51%) tinham no pólo passivo a Itália. Desses 70,
em 46 deles (66%), foi constatada a violação, enquanto que, em outros 23
(33%), foi celebrado acordo com o jurisdicionado. Em nenhum caso apre-
ciado foi constatada, pela Corte, a ausência de violação ao artigo 6.1 da
Convenção.
Em segundo lugar, como violador da garantia de tempestividade da tute-
la jurisdicional, encontra-se a França, com 14 reclamações (10%), 11 acolhi-
das, uma encerrada através de acordo, uma desacolhida, e uma não apreciada.
Em terceiro lugar, a Turquia, com 8 reclamações julgadas (6%), em to-
das constatada a violação, seguida de Portugal, com 12 reclamações (9%),
embora apenas 7 acolhidas, tendo as outras 5 sido solucionadas através de
acordo. Na seqüência, ainda, se encontram reclamações contra o Reino Unido
(7 reclamações, 5 acolhidas), Áustria (3 violações), Bélgica (2 reclamações,
uma acolhida), Eslováquia (2 reclamações, uma acolhida), Romênia (uma
violação), Alemanha (com 3 reclamações, 2 desacolhidas e uma arquivada),

42
Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
43
Lamentando a lentidão do processo civil italiano, cf. Mauro Cappelletti, Proceso, Ideologias, Sociedad, tradução
de Santiago Sentis Mellendo y Tomás e A. Banzhaf, Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, s. d., pp.
549-550.

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OS REFLEXOS DO TEMPO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL 71

Espanha (com 2 reclamações, uma desacolhida e outra resolvida amigavel-


mente), entre outros.44
O que sobreleva notar desses dados é que o número de reclamações pe-
rante a Corte Européia de Direitos Humanos, por violação ao disposto no
artigo 6.1 da Convenção, é diretamente proporcional à importância que o
Estado dá ao seu sistema judicial e à tutela do tempo do processo.
Veja-se, por exemplo, no topo da lista, a Itália. Detentora de um siste-
ma legal (constitucional) que não tutela adequadamente o tempo no proces-
so — prazos abertos, admissão de retorno a fases já superadas, regime de
preclusões bastante tênue, rico sistema recursal — esse país, há mais de 10
anos, sofre seguidas condenações na Corte Européia, por violação ao direito à
tutela jurisdicional em prazo razoável.45 Só para se ter uma idéia, em julga-
mento ocorrido em 25.6.1987, foi aberto importante precedente no âmbito
europeu, condenando-se exatamente o Estado italiano, a indenizar um ju-
risdicionado seu (8.000 liras), em razão do dano moral sofrido pela indevi-
da duração de seu processo.46
Por outro lado, na rabeira da lista, tem-se a Espanha, país cuja legislação
interna e os tribunais locais tutelam adequadamente o tempo do processo.
De acordo com o artigo 24.2 da Constituição espanhola, de 1978, “todos
têm direito ao juiz ordinário previamente determinado por lei, à defesa e à assis-
tência de advogado, a serem informados da acusação contra si deduzida, a um
processo público sem dilação indevida e com todas as garantias” (grifo nosso).47
Interpretando referido dispositivo, o Tribunal Constitucional da Espanha,

44
Fonte: Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
45
Seguramente, em resposta a essas seguidas condenações por ofensa ao disposto no artigo 6º, 1, da Convenção
de Roma, a última reforma do Código de Processo Civil italiano introduziu um sistema rígido de preclusões, tudo
com vistas a abreviar o tempo do processo (José Rogério Cruz e Tucci, “Atuais reformas do processo civil italiano
e brasileiro: contrastes e confrontos”, in Sálvio de Figueiredo Teixeira (coord.), Reforma do Código de Processo
Civil, São Paulo: Saraiva, 1996, pp. 841-868). Até a Constituição italiana, inspirada pelo propósito acelerador,
a partir de 1999 passou a ter o seu art. 111 com a seguinte redação: “A jurisdição atua mediante um processo
justo e regulado pela lei. Cada processo se desenvolve através do contraditório entre as partes, em condição de
igualdade, perante um juízo estranho e imparcial. A lei lhe assegurará uma duração razoável“ (tradução e grifos
nossos). Além disso, o governo italiano tem buscado, cada vez mais, informatizar a prática processual no país,
fazendo com que o processo se torne cada vez mais célere (Decreto do Ministério de Justiça, nº 123, de 13.2.2001).
46
Para acompanhar a tradução na íntegra do referido acórdão, ver José Rogério Cruz e Tucci, “Dano moral
decorrente da excessiva duração do processo”, in Temas Polêmicos de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1990,
pp. 96-103.
47
O artigo 96.1 da Constituição Espanhola, de 27.12.1978, incorpora ao ordenamento jurídico interno a Conven-
ção Européia dos Direitos Humanos, de modo que a tutela do tempo do processo não necessitava merecer
previsão expressa na Carta Constitucional.

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72 FERNANDO DA FONSECA GAJARDONI

por diversas vezes, deixou assentado que a norma reconhece todo um elenco de
direitos fundamentais que configuram as garantias básicas do processo judicial
e administrativo, razão pela qual a violação desses preceitos implica inconteste
violação da própria Constituição.
Talvez por isso a referida Corte seja sensível aos reclamos por tempestivi-
dade na tutela jurisdicional. De 1981 a 1995, oito sentenças foram anuladas
pelo Tribunal Constitucional, por contrárias ao artigo 24.2 da Constituição
Espanhola, em que pese em nenhum deles ter sido fixada indenização para
reparar economicamente o jurisdicionado lesado,48 que, pelo entendimento
da Corte, deve buscar autonomamente compensação.49
De qualquer forma, o impacto moral do reconhecimento, pela mais alta
Corte espanhola, de uma tutela constitucional do tempo no processo, gera
indiscutíveis reflexos práticos na ordem jurídica, pois a iniciação de um pro-
cesso de amparo (semelhante a um mandado de segurança) por atraso judicial
tem, no mínimo, o condão de alertar o órgão jurisdicional letárgico e, em
conseqüência, conseguir a tutela esperada.
Outros ordenamentos europeus tutelam, ainda que em nível infraconsti-
tucional, o tempo no processo. O Código de Processo Civil português, por
exemplo, prevê, expressamente (art. 2-1) que “a protecção jurídica através dos
tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que
aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo,
bem como a possibilidade de a fazer executar” (grifo nosso).
No nosso sistema não há, outrossim, um dispositivo expresso a proteger
o direito à tutela jurisdicional dentro de um prazo razoável. Apesar da Cons-
tituição Federal brasileira elencar como garantia fundamental o devido proces-
so legal e a inafastabilidade do controle judicial dos atos em geral, inexiste no
ordenamento jurídico interno garantia de um processo sem dilações indevidas.50
Entretanto, apesar de silenciar nesse sentido, o artigo 5º, § 2º, da

48
Cf. Cristina Riba Trepat, op. cit., p. 158, que lamenta, ainda, ser pacífico na jurisprudência espanhola incumbir
ao prejudicado a prova do dano sofrido pela intempestiva tutela jurisdicional (Idem, pp. 178-179).
49
Nesse sentido, basta a invocação do artigo 121 da Constituição espanhola, a prever que “os danos causados
por erros judiciais, assim como aqueles que sejam conseqüência do funcionamento anormal da Administração
da Justiça, darão direito a uma indenização, a cargo do Estado, conforme a lei”.
50
O que pode durar pouco. Projeto de emenda constitucional já aprovado pela comissão de Constituição e Justiça
do Senado Federal (PEC 29/2000) pretende acrescentar ao art. 5o da Constituição Federal um inciso de número
LXXVIII com a seguinte redação: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração
do processo, como direito público subjetivo, e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação, sendo
assegurado à Fazenda Pública, ao Ministério Público e à Defensoria Pública prazos especiais, na forma da lei”.

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OS REFLEXOS DO TEMPO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL 73

Constituição Federal é claro ao prever que “os direitos e garantias expressos


nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e princípios por ela
adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte” (grifo nosso).
O Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana dos Direito
Humanos, de 22.11.1969), por sua vez, integrado à ordem jurídica brasileira
desde a edição do Decreto nº 678, de 06.11.1992, inclui entre as garantias
judiciais a de um julgamento em prazo razoável. O artigo 8º, 1, preceitua que
“toda pessoa tem direito a ser ouvida com as devidas garantias e dentro de um
prazo razoável por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial,
instituído por lei anterior, na defesa de qualquer acusação penal contra ele formu-
lada, ou para a determinação de seu direitos e obrigações de ordem civil, trabalhis-
ta fiscal ou de qualquer outra natureza (...)”.51
Logo, não há mais dúvida de que, desde 6.11.1992, a garantia da tem-
pestividade da tutela jurisdicional incorporou-se ao ordenamento jurídico
brasileiro, razão pela qual a duração excessiva de um processo configura ofensa à
própria Constituição Federal (art. 5o, § 1º e 2º).
Em vista disso, não nos custa lembrar mais uma vez, principalmente
aos legisladores e operadores jurídicos de um modo geral, que a garantia
constitucional do processo sem dilações indevidas não é uma mera declara-
ção de intenções dirigida ao Judiciário, mas sim uma autêntica norma pro-
gramática, cujo mandamento deve ser cumprido por todos os Poderes do
Estado. Ao Poder Legislativo, é exigida uma especial atenção ao elemento
temporal, no momento de elaborar a legislação processual aplicável. Ao
Poder Executivo, a tarefa de articular a estrutura orgânica e material neces-
sária para a função jurisdicional e de dar apoio completo na execução dos
julgados. E, finalmente, ao Poder Judiciário incumbe utilizar, de forma
eficiente, os meios postos à sua disposição, bem como cumprir rigorosa-
mente os prazos processuais.52
O Brasil, até o presente momento, não formalizou reconhecimento à
jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de modo que a

51
No sentido da incorporação do Pacto de São José da Costa Rica ao ordenamento jurídico brasileiro, vejam-se os
seguintes julgados: TJ/SP, Agravo de Instrumento nº 88.736-5/São Paulo, 7ª Câmara de Direito Público, rel.
Sérgio Pitombo, 8.2.1999, v.u.; e STF, RT 748/152.
52
Cf. Francisco Ramos Mendez, Derecho Procesal Civil, 5º ed., Barcelona: Bosch, 1992, v. 1, pp. 344 e segs.; Luiz
Guilherme Marinoni, Tutela Antecipatória..., cit., p. 18.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 59-79, janeiro/junho - 2003


74 FERNANDO DA FONSECA GAJARDONI

proteção à garantia de tutela jurisdicional em prazo razoável deve ser buscada


na ordem interna.
Diversamente da Espanha, contudo, a jurisprudência é omissa a respeito
do tema. Não encontramos registros nas Cortes brasileiras de sequer uma
demanda em que abordada a violação ao artigo 8º, I, da Convenção America-
na de Direito Humanos, quanto mais de casos em que concedida reparação ao
jurisdicionado lesado pela lentidão no julgamento da causa. Como se a prer-
rogativa da independência da magistratura fosse escudo para eventual baixa
produção, e sob o seu imaginário pretexto, recusam-se as Cortes brasileiras
em reconhecer tanto a possibilidade de avocação, pelo Tribunal, dos autos
indevidamente retidos (art. 198, CPC), quanto a responsabilidade civil do
Estado pela tutela jurisdicional intempestiva (art. 37, § 6º, CF).53
Seja como for, o direito à tempestividade da tutela jurisdicional é garantia
constitucional (art. 5º, § 1º e 2º, CF). Por conseguinte, a violação de tal
garantia, por ofender direito líquido e certo do jurisdicionado, dá ensejo à
impetração de mandado de segurança contra a omissão judicial (art. 5º, LXIX, CF).
Infelizmente, a experiência prática nos mostra que tal tese nunca foi leva-
da adiante.

5. O conceito de tutela jurisdicional tempestiva

Não parece ser estranho a ninguém que a crise do Judiciário e do proces-


so tem como um de seus fundamentos a já demonstrada lentidão dos proces-
sos. Como parece ser presente a todos, também, que, tanto no Brasil, quanto
em vários outros sistemas, há previsão, explícita ou implícita, constitucional
ou não, do direito a uma tutela jurisdicional tempestiva (célere).
Contudo, até o presente momento não foi fixado, em nenhum dos orde-
namentos jurídicos mencionados, um prazo razoável para a duração do pro-
cesso, um lapso temporal que possa ser considerado ideal para que o procedi-
mento transite, do começo ao fim, sem dilações indevidas.

53
Cf. Francisco Fernandes de Araújo, Responsabilidade Objetiva do Estado Pela Morosidade da Justiça, Campinas:
Copola, 1999; Joel Dias Figueira Júnior, Responsabilidade Civil do Estado-Juiz: Estado e Juízes Constitucionalmente
Responsáveis, Curitiba: Juruá. 1995; Luis Soares Antonio Hentz, Indenização do Erro Judiciário e Danos em Geral
Decorrentes do Serviço Judiciário, São Paulo: Leud, 1995; Nicòlo Trocker, “La responsabilitá del giudice”, Rivista
Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, v. 34, nº 4, p. 1.283, 1982; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “Responsabilidade
do Estado por atos jurisdicionais”, Revista de Direito Administrativo, nº 198, 1994, p. 85.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 59-79, janeiro/junho - 2003


OS REFLEXOS DO TEMPO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL 75

A American Bar Association publicou, em época relativamente recente, e


embasada em critérios aleatórios, o tempo tolerável de duração dos processos
nos tribunais ordinários da justiça norte-americana. De acordo com a tabela
de referida associação:
a) casos cíveis em geral: 90% devem ser iniciados, processados e concluí-
dos dentro de 12 meses, sendo que os 10% restantes, decorrência de circuns-
tâncias excepcionais, dentro de 24 meses;
b) casos cíveis sumários: processados perante juizados de pequenas cau-
sas (small claims), devendo ser finalizados em 30 dias;
c) relações domésticas: 90% das pendências devem ser iniciadas e julga-
das, ou encerradas de outro modo, no prazo de 30 dias; 98%, dentro de 6
meses e 100%, em um ano. 54
Já o conceito de prazo razoável para a Corte Européia dos Direitos Hu-
manos foi criado pela jurisprudência internacional, à margem das regulações
processuais de cada país. Trata-se de critério autônomo, abstrato, não prefixa-
do, de modo que a violação deve ser analisada segundo as circunstâncias do
caso em concreto. Quatro critérios devem nortear tal análise:
a) a complexidade do assunto (complex litigation);
b) o comportamento dos litigantes e de seu procuradores;
c) o comportamento do órgão jurisdicional;
d) a importância do objeto do processo para o recorrente (este, mais
como critério de fixação do quantum indenizatório).55
No mesmo sentido caminha a doutrina constitucional espanhola56 que,
de maneira constante e uniforme, vem assinalando que não existe um direito
constitucional a prazo certo (concepto juridico indeterminado), devendo, para a
apreciação de eventual violação à garantia constitucional de um processo em
tempo razoável (art. 24.2), ser analisadas, também, questões exógenas à pró-
pria demanda.57
Seja como for, parece-nos que fixar o lapso temporal aceitável do processo

54
José Rogério Cruz e Tucci, Garantia do Processo sem Dilações Indevidas, cit., p. 249.
55
Cf. Cristina Riba Trepat, op. cit., pp. 76-90.
56
A Corte Constitucional espanhola se utiliza dos critérios do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos para aferição
da violação do direito à tutela jurisdicional tempestiva.
57
O artigo 10.2 da Constituição espanhola converte as decisões do Tribunal Europeu de Direitos Humanos em
vetor interpretativo principal nas decisões nacionais sobre o mesmo assunto.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 59-79, janeiro/junho - 2003


76 FERNANDO DA FONSECA GAJARDONI

civil brasileiro, ou de qualquer outro país, exige, antes de tudo, a consciência


de que, tanto quanto uma árvore para dar frutos, cada demanda tem seu
tempo. Exatamente por isso que, nessa análise, fatores internos e externos a
cada processo devem ser apreciados.
Em primeiro lugar, é necessário que a série de atos concatenados entre si
que compõem o procedimento venha ordenada temporalmente, isto é, que
haja prazos preestabelecidos, adequados para que cada um dos atos possa se
realizar em consonância com os princípios constitucionais do contraditório e
da ampla defesa. Quando se fala em prefixação de prazos, deve-se lembrar que
talvez a maior garantia de que um processo seja solucionado em tempo razoá-
vel é exatamente o cumprimento desses prazos, os quais, por óbvio, não devem
ser fixados em tempo maior nem menor do que o necessário.58
Em segundo lugar, indispensável que o procedimento transite de uma
fase para outra, seja através de impulso oficial, seja por impulso das partes. De
acordo com o artigo 262 do Código de Processo Civil brasileiro, “o processo
civil começa por iniciativa da parte, mas se desenvolve por impulso oficial”. Infe-
lizmente, nosso sistema é extremamente rigoroso em relação aos prazos refe-
rentes às partes e soberbamente permissivo em relação aos prazos que se refe-
rem ao órgão judicial (prazos impróprios), como se o culpado pelas delongas
do processo, no mais das vezes, fossem as partes — sujeitas a rigoroso regime
de preclusões —, e não o órgão judicial.59
Finalmente, necessário que a estrutura temporal do processo determine
uma duração razoável, em função da tutela que em cada caso se pretende, ou
seja, que os atos a serem praticados e os seus prazos sejam fixados em vista das
circunstâncias do direito a ser protegido. Há classes de litígios que, em razão
de sua especialidade, ou da prova pré-constituída de uma das partes, exigem
uma tutela mais célere, enquanto outras classes, por ausentes esses atributos,
admitem uma resposta em lapso temporal mais prolongado.
Apesar de este não ser um conceito absolutamente seguro, a nosso ver, em

58
Em importante passagem de sua obra, Cristina Riba Trepat assevera que “não se pode permitir a obsolescência
dos prazos fixados nas leis processuais, nem tampouco sua utilização meramente formalista, mas sim se deve
exigir uma constante atenção à evolução jurídico-social, de modo que não resulte escandalosa a margem de
diferença entre o tempo processual e o tempo real” (La Eficacia Temporal del Proceso: El Juicio sin Dilaciones
Indebidas, cit., p. 168 - tradução nossa).
59
Apesar disso, acreditamos que a estrutura judiciária brasileira ainda não permite a fixação de prazos peremp-
tórios para o órgão judicial, cujo descumprimento levaria a sanções de ordem civil e/ou administrativa. As razões
são inúmeras: falta de estrutura material do Judiciário, diminuição do número de interessados nos cargos de
juízes, entre outras.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 59-79, janeiro/junho - 2003


OS REFLEXOS DO TEMPO NO DIREITO PROCESSUAL CIVIL 77

sistemas processuais preclusivos e de prazos majoritariamente peremptórios


como o nosso, o tempo ideal do processo é aquele resultante da somatória dos
prazos fixados no Código de Processo Civil para o cumprimento de todos os atos
que compõem o procedimento, mais o tempo de trânsito dos autos.60 Eventu-
ais razões que levem a uma duração que exceda o prazo fixado previamente pelo
legislador, com base no direito a ser protegido, deve se fundar em um interesse
jurídico superior, que permita justificar o quebramento da previsão contida na
norma processual,61 no qual não se inclui a alegação de excesso de demandas.
Enfim, é tempestiva a tutela jurisdicional quando os prazos legalmente prefi-
xados para o trâmite e instrução do processo, concebidos em vista das circunstâncias
de fato da demanda, do direito a ser protegido, do contraditório e da ampla defesa,
são cumpridos pelas partes e pelo órgão jurisdicional.

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60
Francisco Ramos Mendez, El Sistema Judicial Español, 2ª ed., Barcelona: Bosch, 1995, p. 109.
61
Cristina Riba Trepat, op. cit., pp. 171 e 175.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 59-79, janeiro/junho - 2003


78 FERNANDO DA FONSECA GAJARDONI

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Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 59-79, janeiro/junho - 2003


80
81

Entraves jurídicos
à realização da justiça*

Nilson Naves
MINISTRO PRESIDENTE DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Q uando me foi feito o convite pelo presidente da Academia, eu me


dispus, em conversa com o professor Arnoldo Wald, a falar, hoje,
sobre as minhas inquietudes a propósito do papel do Superior na
organização do Judiciário, mas creio que exprimo, neste momento, os senti-
mentos de todo o Tribunal — de um Tribunal que, infelizmente, ainda não
teve bem definidas as suas competências (isto é, posto que o devesse, até o
presente não se converteu no Tribunal de todo o direito ordinário, e de modo
que as suas decisões, nesse campo, façam-se irrecorríveis).
O meu sentimento é antigo, amplamente conhecido, pois data do início
das atividades do Superior, e foi por mim lembrado, apresentando sugestões,
quando do processo de revisão constitucional, sob a relatoria do então depu-
tado e hoje ministro do Supremo Nelson Jobim. Aliás, a própria criação do
Superior, por ocasião dos trabalhos constituintes de 1987 e 1988, deveu-se
muito à atuação de S. Exª.
Vou me valer aqui um pouco mais da história; afinal, todos dependemos
do que já foi criado antes. Já se disse: “Se quereis ver o futuro, vede as histórias e
olhai para o passado.” Pois bem: (I) pontuarei o curso das minhas palavras
mostrando que hoje o quadro do nosso Judiciário não é especificamente aquele

* Conferência proferida durante o Congresso “O Direito Brasileiro e os Desafios da Economia Globalizada”, São
Paulo – SP, 25.6.2002.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 81-91, janeiro/junho - 2003


82 NILSON NAVES

proveniente do modelo norte-americano, por nós, em boa dimensão, adotado


em 1891, ou seja, o quadro de uma corte superior e tantos outros tribunais de
inferior categoria, ou, consoante aquele nosso texto constitucional (art. 55), de
“um Supremo Tribunal Federal... e tantos juízes e tribunais federais, distribuídos
pelo país, quantos o Congresso criar”; (II) falarei de duas ou três preocupações do
Superior (concernentes à distribuição das competências constitucionais); (III)
ao falar dessas preocupações, estar-lhes-ei falando da inquietação de todos nós:
a necessidade de se tornar a Justiça mais eficiente e mais válida, a prestação
jurisdicional mais rápida, pronta e acabada, enfim, estarei falando dos entraves
jurídicos — tema deste quinto painel.
Na última década do século dezenove, quando entre nós se fez a primeira
Constituição republicana, promulgada em 24.2.1891, é sabido e ressabido
que os seus autores (destaque para a Comissão presidida por Saldanha Marinho
e composta por Almeida Melo, Santos Werneck, Rangel Pestana e Magalhães
Castro e para o trabalho de revisão de Rui Barbosa), na organização das nossas
instituições, filiaram-se ao modelo norte-americano. Confiram-se, entre ou-
tros, Carlos Maximiliano, neste tópico: “Este (Rui) e a Comissão foram profun-
damente influenciados pelo exemplo norte-americano” (Comentários..., 1923, p.
80); e Nelson Saldanha, nesta passagem: “Deste modo, a marca norte-americana
na elaboração da Constituição de 1891, apesar de freqüentemente exagerada,
correspondeu a uma tendência antiga” (Formação..., 1ª ed., Forense, p. 194). De
igual modo, Afonso Arinos, Algumas Instituições..., 1ª ed., Forense.
Vejam que, semelhantemente ao texto que nos serviria de norma padrão,
o nosso Judiciário também seria exercido por uma Suprema Corte e tantos
juízes e tribunais federais quantos o Congresso criasse e vejam ainda que
entre nós se adotaria, na mesma oportunidade, a dualidade da Justiça: federal
e estadual. (“O sistema republicano-federal é, de sua essência, dualista. Há a
competência federal e a competência estadual...”, conforme o tão festejado Bar-
balho, Constituição..., ed. fac-similar, Senado, p. 223.)
Aliás, não era mesmo de se estranhar nada, porquanto as idéias ali aco-
lhidas saíram, em boa medida, da incansável pena revisora/criadora ou cria-
dora/revisora de Rui, de quem admirava como ninguém as instituições
estadunidenses (embora não fosse, precedentemente, invejável e histórico
presidencialista, Rui era, no entanto, declarado federalista, conforme Paulo
Brossard, conferência de 1985, Fundação, in “Rui...”). Confiram-se, entre
outros, Américo Lacombe: “Forçoso é concluir, portanto, que a influência de Rui
Barbosa foi decisiva e incontrastável” (“Rui...”, Fundação..., 1985); Alfredo

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 81-91, janeiro/junho - 2003


ENTRAVES JURÍDICOS À REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA 83

Buzaid: “Os autores do projeto de Constituição, como observou Felisbelo Freire,


procuraram organizar o Poder Judiciário, sob os moldes americanos, deixando de
lado todos os elementos da nossa antiga organização judiciária” (Estudos..., 1972,
Saraiva, p. 138); e Lenine Nequete: “para a configuração do Poder Judiciário da
República – com a criação do Supremo Tribunal Federal nos moldes da Suprema
Corte americana...” (O Poder Judiciário no Brasil..., Supremo, 2000, p. 16).
Na ordem de precedência, haveria até de vir antes a pêlo a histórica exposição
de motivos do Decreto nº 848, de 1890, de autoria de Campos Salles, na
qual, ao ver de Afonso Arinos, o ministro da Justiça e futuro presidente da
República relatava, ali, como moldara o Judiciário, “tendo em vista as institui-
ções norte-americanas” (Algumas..., p. 152).
Adotado, assim, esse modelo de organização, sucedeu, porém, que não se
conferiu, nesses atos, ao nosso Supremo a denominada jurisdição discricioná-
ria, cujo exercício ainda lá nos Estados Unidos se faz by certiorari. De mais a
mais, entre nós, à denominada jurisdição obrigatória também se cometeria a
incumbência de “julgar, em grau de recurso, as questões resolvidas pelos juízes e
tribunais federais...” (ou “... as questões excedentes da alçada legal resolvidas pelos
juízes e tribunais federais”, segundo a Emenda de 1926). Isto é, o nosso Supre-
mo, a teor de tal cláusula, exercia, também, competência de segundo grau em
relação a uma série de causas, sobretudo aquelas em que havia interesse do
governo da União (em seu Regimento, ao emendá-lo em 1920, o Supremo se
proclamava “o único Tribunal de recurso, na justiça federal, compatível com a
Constituição”, o que haveria de provocar críticas veiculadas pela imprensa; a
propósito do assunto, ver Lenine Nequete, O Poder..., p. 33).
Ora, no início do século passado (cerca dos anos vinte), já falava Carlos
Maximiliano da necessidade de aliviar o Supremo “do excesso de trabalho, de
que não dá conta”, e acrescentava, em seus Comentários...: “O que se faz neces-
sário é a divisão do trabalho total entre a Corte Suprema e outras de inferior
categoria. Assim se procedeu na América do Norte...; assim se deve fazer no Brasil”
(2ª ed., 1923, p. 536).
Como a proposta de Maximiliano e de outros conceituados juristas
daquela época (Beviláqua, Lacerda de Almeida, Levi Carneiro, entre outros)
era a de se criarem tribunais inferiores, reparem aí, por conseguinte, que a
intenção de todos era a de não se afastarem do modelo norte-americano, no
qual o Judiciário achava-se, e se acha até hoje, investido “em uma Suprema
Corte e nos tribunais inferiores que” seriam “oportunamente estabelecidos por
determinação do Congresso...” (... “shall be vested in one Supreme Court, and

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 81-91, janeiro/junho - 2003


84 NILSON NAVES

in such inferior courts as the Congress may from time to time ordain and esta-
blish...”. (Entende-se que a expressão “tribunais inferiores” referia-se igual-
mente a tribunais regionais, a saber, o sentido era o de que a expressão dizia
respeito tanto à primeira quanto à segunda instância, consoante Maximilia-
no, pp. 538/545.) Outra não fora a iniciativa oriunda do Decreto Legisla-
tivo nº 4.381, de 5.12.1921, autorizando o Executivo “a criar três tribunais
regionais no território nacional”, sediados no Recife (desde o Acre até a Ba-
hia), na capital da República (Espírito Santo, Rio de Janeiro e Distrito
Federal) e em São Paulo (demais Estados da União); entretanto não foram
criados, porque o Executivo não se utilizou de tal autorização. Aliás, quan-
do da Emenda de 1926, a mensagem que encaminhara a proposta ao Con-
gresso vaticinava, em relação à competência atribuída ao Supremo, que,
“sem essa criação (dos regionais), é impossível aliviar o pesado encargo desse
Tribunal (do Supremo), isto é, permitir o mais rápido andamento e a mais
pronta decisão dos feitos” (ver João Barbalho, Constituição..., 2ª ed., p. XIII).
Foi esse o modelo que esteve em vigor por quase um século; veja-se que
vigeu entre 1890 e 1988 (o Superior Tribunal de Justiça e os Tribunais
Regionais Federais foram instalados no ano de 1989), não obstante o que se
denominou de crise do Supremo Tribunal, ou de crise do recurso extraordi-
nário. Em 1918, como se viu, do excesso de trabalho comentava Maximilia-
no (ocupou uma das cadeiras no Supremo entre 1936 e 1941), e o mesmo
iria acontecer com Pires e Albuquerque, em 1930, e com Philadelpho de
Azevedo, em 1943, que também ocuparam cadeiras do Supremo entre 1917
e 1931 e 1942 e 1946.
Em palestra de 1964, em Belo Horizonte, dizia Victor Nunes (esteve no
Supremo de 1960 a 1969), comparando dados dos anos de 1950 e 1962
(3.511 e 7.437 processos): “Quando um Tribunal se vê a braços com esse fardo
asfixiante, há de meditar, corajosamente, sobre o seu próprio destino” (Proble-
mas..., Ministério da Justiça, 1998, p. 37). Já naquele momento, Victor de-
fendia a adoção no Supremo da jurisdição discricionária, aquela que, no mo-
delo norte-americano, é exercida by certiorari, a saber, via writ of certiorari.
Todas as vezes em que se mexia na organização do Judiciário — mais no
plano constitucional que no infraconstitucional, tentava-se alterar, ou até
alteraram mesmo, as coisas da denominada instância de superposição —, a
preocupação maior dizia respeito, como bem se disse por ocasião da refor-
ma constitucional de 1926, à “morosidade na distribuição da justiça”: “Urge,
em tal sentido, uma providência, a fim de que a grande morosidade na decisão

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 81-91, janeiro/junho - 2003


ENTRAVES JURÍDICOS À REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA 85

dos processos judiciais não assuma entre nós uma feição de denegação de justiça”
(Mensagem..., in Barbalho, p. XIII).
Comparem-se medidas então aconselhadas (umas sem maior resultado
quanto ao fim a que se propunham, outras com um resultado melhor — o
critério da relevância, por exemplo), entre as quais: (I) em 1946, criou-se o
Tribunal Federal de Recursos com a precípua incumbência de órgão de se-
gundo grau das causas de interesse da União, mas a ele foram cometidas, ao
longo do tempo, duas ou três das competências originárias do Supremo Tri-
bunal (reparem que, não obstante o recebimento de tais competências origi-
nárias, o Federal de Recursos sempre foi tribunal inferior, porque as suas
decisões sempre foram recorríveis; sabe-se que, à época, competia ao Supremo
zelar tanto pela guarda da Constituição quanto pela dos tratados ou leis fede-
rais); (II) em 1958, exigiu-se que fosse fundamentado na origem o despacho
de admissão ou de denegação do recurso extraordinário (nunca se pretendeu
uma terceira instância; era necessário se marcasse melhor a distinção entre
recursos ordinários e recurso extraordinário); (III) em 1963, o Supremo apro-
vava os primeiros enunciados da sua Súmula; (IV) em 1965, era instituída a
figura do controle concentrado de constitucionalidade (já se observou que se
acreditava possível, com esse controle, diminuir a carga de processos no Su-
premo; “a atenção dos reformadores tem-se detido enfaticamente na sobrecarga
imposta ao Supremo Tribunal e ao Tribunal de Recursos”, conforme a exposição
de motivos); (V) em 1970, o Supremo restringiu o cabimento do extraordi-
nário em decorrência do que dispusera a Emenda Constitucional nº 1, de
1969, no § 1º do art. 119 (“... atenderá à sua natureza, espécie e valor pecuniá-
rio”); e (VI) em 1975, o Supremo adotaria o critério da relevância da questão
federal, ao qual veio aludir a Emenda Constitucional nº 7, de 1977 (era a
jurisdição discricionária, do modelo norte-americano, exercida by certiorari).
O que se constata é que, em todo o tempo, procurou-se, ao ver das apon-
tadas medidas, aliviar o Supremo do excesso de trabalho — daqueles proces-
sos que lhe chegavam às braçadas — sem, contudo, alterar-se o velho modelo
(caso se tenha pensado em adotar outro modelo, tal não teria ocorrido entre
aqueles que tomavam decisões), oriundo da Constituição de 1891, a saber, o
de uma corte suprema e tantas outras necessárias — na expressão de Maximi-
liano, cortes de inferior categoria —, qual era e continua sendo o sistema
norte-americano.
Ora, nos idos de 1986 e 1987, quando a Assembléia Constituinte avizi-
nhava-se dos dias de sua instalação, duas ordens de idéias encontravam-se,

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 81-91, janeiro/junho - 2003


86 NILSON NAVES

nos nossos meios acadêmicos e forenses, em debate: uma, datada dos anos
sessenta (é até possível dar-lhe data anterior, mas os meus guardados regis-
tram ter sido em 1960 que se falou pela primeira vez dessa idéia), consistente
na criação de um tribunal de cassação ou de revisão, ou de revisão e cassação
(“... com função exclusiva de cassação...”, dizia Buzaid); a outra idéia, de data
mais recente — mas que evidentemente não deixava de remontar àquela de
tribunais inferiores —, relativa à criação de um tribunal federal, denominado
Tribunal Superior Federal, com competência para julgar recursos especiais
contra acórdão de tribunais regionais federais (que também seriam criados),
“em temas envolventes da Constituição Federal, de tratado ou lei federal, ou
em caso de divergência de julgados, sempre nos limites da Justiça Federal e
sem prejuízo da competência do Supremo Tribunal Federal”.
A segunda daquelas idéias — a de um tribunal federal — foi a que fez
parte das sugestões apresentadas pelo Supremo à Comissão Provisória de Es-
tudos Constitucionais, sob a presidência de Afonso Arinos, e era também a
sugestão do Tribunal Federal de Recursos, consoante, aliás, o ofício que o
extinto Tribunal remetera ao presidente da Subcomissão do Poder Judiciário
em 14.4.1987: “Em linhas gerais, o que o Tribunal Federal de Recursos propõe é
a instituição de Tribunais Regionais Federais de 2º grau, com a simultânea trans-
formação do Tribunal Federal de Recursos em instância de recurso especial, não
ordinário, segundo o modelo das jurisdições eleitoral e trabalhista (TREs e TSE;
TRTs e TST)”. Foi a idéia acolhida pela Subcomissão; dessa forma, tornar-se-
iam, se vingasse a proposta, órgãos da Justiça Federal o Tribunal Superior
Federal, os Tribunais Regionais Federais e os Juízes Federais. Porque a criação
do Tribunal Superior Federal, como foi visto linhas atrás, far-se-ia sem prejuí-
zo da competência do Supremo Tribunal, verifica-se, assim, seriam admitidos
quatro graus quanto aos feitos federais.
Em suas sugestões à Comissão Afonso Arinos, datadas de 1986, o Supre-
mo desaprovava, de modo expresso, a idéia da criação de um Tribunal Supe-
rior de Justiça, bem como não aceitava a de ser transformado em Corte Cons-
titucional. Confiram-se: (a) “II. 11 – Desaprova, por outro lado, a Corte a idéia
de se criar um Tribunal Superior de Justiça (abaixo do Supremo Tribunal Federal),
com competência para julgar recursos extraordinários oriundos de todos os Tribu-
nais Estaduais do País...”; (b) “II. 12 – Considerou, ainda, o Supremo Tribunal
Federal injustificável sua transformação em Corte Constitucional, de competência
limitada, estritamente, a temas dessa ordem, sem o tratamento das relevantes ques-
tões de direito federal. É importante que um Tribunal, de caráter nacional, com

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 81-91, janeiro/junho - 2003


ENTRAVES JURÍDICOS À REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA 87

jurisdição em todo o País, continue exercendo competência sobre as questões federais


de maior repercussão na ordem jurídica...”.
Das idéias em discussão quando instalada a Constituinte, prevaleceu, ali,
a primeira delas — aquela a que em 1960 se referira Buzaid, advogando a
criação de novo Tribunal, com competência para “julgar os casos de recursos,
com fundamento no art. 101, III, da Constuituição Federal” (de 1946) —, e o
Superior Tribunal de Justiça foi criado, bem mais com função de revisão que
de cassação, competindo-lhe, a teor do art. 105, III, da Constituição de 1988,
julgar as causas em que a decisão recorrida contraria tratado ou lei federal, ou
nega-lhes vigência. Comparando-se, logo, os atuais arts. 102, III, e 105, III,
verifica-se que os constituintes de 1987 e 1988 dividiram o velho recurso
extraordinário, de forma que, por intermédio do novo recurso extraordinário,
o Supremo falasse apenas sobre o direito constitucional, e o Superior, por
meio do recurso especial, falasse por último (a saber, definitivamente) sobre o
direito infraconstitucional. Decerto foram ainda cometidas ao Superior duas
outras competências — originária, prevista no inciso I, e ordinária, prevista
no inciso II, ambos do mesmo art. 105. Nessas duas, o Superior desfruta de
ambos os contenciosos — constitucional e infraconstitucional —, porém, na
competência do inciso III, de regra, desfruta tão-só do contencioso infracons-
titucional e, excepcionalmente, do constitucional. Com o Superior, nascia,
assim, observem bem, no cenário jurídico-constitucional brasileiro o Tribu-
nal do direito infraconstitucional.
Porque, evidentemente, não se estava criando tribunal inferior — tanto é
verdade verdadeira que se dispôs competir ao Supremo, precipuamente, a
guarda da Constituição; ao revés, a guarda da lei federal competiria ao Supe-
rior, de modo exclusivo e definitivo (por certo o Supremo, em alguns casos,
como quando processa e julga, originariamente, o Presidente da República,
há de também lidar com lei federal) —; tal criação implicava, pois, adoção de
modelo diferente do que, desde 1891, vinha disciplinando o nosso Judiciário;
então, a partir daí, deixaria de nos servir de padrão apenas o modelo norte-
americano e, em conseqüência, estaríamos nos aproximando do modelo euro-
peu — o de corte constitucional.
Isso não se realizou plenamente: era de implicar a adoção de modelo
diferente, mas, no contexto geral, não implicou. Talvez tenham faltado aos
constituintes melhores definições do papel orgânico-constitucional do Supe-
rior, porquanto, na concepção da filosofia que se adotou na Constituição de
1988, ou que abertamente se pretendeu adotar, decerto o Superior é ou há de

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 81-91, janeiro/junho - 2003


88 NILSON NAVES

ser mais que um tribunal superior (se nos ativermos ao significado corrente de
tal cláusula constitucional). Na verdade, para o Superior só há um destino —
sob pena de se tornar, em importantes casos, inoperante, de pouca importân-
cia, simples via de passagem: o de ser, devendo sem dúvida sê-lo, o Tribunal da
derradeira palavra acerca da interpretação do direito infraconstitucional. Por
essa razão, parece a todos que o modo de sentir e perceber as coisas que ontem
e hoje vêm acontecendo no Judiciário tem trazido inquietações ao Superior.
Na denominada instância de superposição, no que tange ao Supremo e ao
Superior, os entraves atuais encontram-se na distribuição das competências
constitucionais a eles cometidas, que hão, por conseguinte, de melhor ser
definidas. O complicador é de tal monta, que o atual quadro, pasmem todos,
anda propiciando que tenhamos, em determinados casos, quatro graus de
jurisdição (vimos que aos juristas do início da República não agradava o terceiro
grau — “a Constituinte não poderia querer terceira instância...”). O habeas corpus
é o exemplo mais emblemático e, por igual, a relação recurso especial/recurso
extraordinário. Se não houver mudança de textos (penso seja possível dar-lhes
interpretação diferente, porém isso se me afigura não-realizável), imprescindí-
vel e urgente, de modo que o Superior assuma o seu real papel, seria preferível,
ao que cuido eu, voltarmos ao precedente modelo, deixando, destarte, sob a
responsabilidade de um único e mesmo tribunal, os dois contenciosos, tal qual
o modelo que nos veio da Constituição de 1891 — aquele de uma corte
suprema e tribunais inferiores, cabendo ao Supremo zelar tanto pela guarda da
Constituição quanto pela dos tratados e leis federais.
A propósito desses complicadores — verdadeiros entraves à realização de
uma justiça mais expedita, correta e sã —, confiram-se os exemplos que se
seguem. Antes, porém, urge se leiam advertências contidas em Maximiliano,
quando escrevia, em 1918, seus Comentários..., sobre a criação de outros tri-
bunais (como se sabe, as cláusulas “tribunais inferiores”, norte-americana, e
“tantos juízes e tribunais federais”, brasileira, deram muito pano para mangas,
pois acarretaram infindáveis discussões quanto a saber se se impunha ou não
a criação de tribunais de segundo grau). Eis as advertências: (I) “Maneira
curiosa de argumentar: a Constituinte não poderia querer terceira instância, por-
que esta é condenada”; (II) “Pode-se evitar a terceira instância.”
De fato, não se poderia mesmo querê-la, como sempre a melhor das
filosofias não a quis; por isso haveria mesmo de ser evitada. A instância
extraordinária se distingue substancialmente da instância ordinária, já que
lhe cabem apenas questões jurídicas, a fim de assegurar a superioridade da

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 81-91, janeiro/junho - 2003


ENTRAVES JURÍDICOS À REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA 89

Constituição e do direito federal. Distinguem-se, em conseqüência, os re-


cursos de feição extraordinária e os de índole ordinária. Há, todavia, quanto
aos graus, uma exceção, de há muito cultivada, respeitante ao processo do
habeas corpus: a de lhe serem garantidos três graus de jurisdição, quando
denegatória a decisão. Na ordem constitucional anterior, o terceiro grau era
exercido pelo Supremo; hoje, pelo Superior, competindo-lhe, a teor do art.
105, II, a, julgar, em recurso ordinário, “os habeas corpus decididos em única
ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos
Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão for denegatória”.
Note-se que aqui se conservou a simetria: já que o Superior era o Tribunal
das questões infraconstitucionais, tornar-se-ia o órgão competente para jul-
gar, em recurso ordinário, esses habeas corpus. Cumpria-se, assim, revelha
tradição do direito brasileiro – a de se assegurar mais um grau de jurisdição.
Ora, em tal caso, se quem fala por último é o Superior, haveria então de
falar definitivamente.
Sucede, entretanto, que, de acordo com o art. 102, I, i da Constituição,
compete ao Supremo processar e julgar, originariamente, habeas corpus. Do
ponto de vista da redação primitiva, “quando o coator ou o paciente for tribu-
nal...”, mas, consoante a redação da Emenda nº 22, de 1999, “quando o
coator for Tribunal Superior...” . No primeiro caso, ao contrário do entendi-
mento defendido pelo Superior (HC-17, DJ de 26.6.1989, por exemplo),
deduziu o Supremo que era de sua competência o habeas corpus quando re-
querido contra tribunal, ou seja, contra ato colegiado (ainda quando pendes-
se de julgamento no Superior recurso especial interposto na mesma ação pe-
nal, caso em que o especial poderia ficar prejudicado, como se pode constatar
no HC-67.263, DJ de 5.5.1989). Em suma, o recurso especial estaria sendo
julgado fora das salas do Superior, ao qual incumbiria o habeas corpus no
mesmo processo, se o ato fosse de membro do tribunal, isto é, ato monocráti-
co. Enorme já foi aqui o imbróglio, ocasionando interpretações diferentes
sobre assuntos idênticos ou assemelhados. E o pior: oriundos de um mesmo
processo. Com a redação dada pela Emenda nº 22, a complicação não aca-
bou; ao contrário, agravou-se. Se, antes, a freqüência era a dos três graus
(malgrado o apontado imbróglio) — juiz, tribunal estadual ou federal e Su-
premo ou Superior (verificar-se-iam também hipóteses de quatro graus) —,
nos dias correntes, decerto são quatro os graus — juiz, tribunal estadual ou
federal, Superior e Supremo (no quarto grau, o habeas corpus previsto na alu-
dida letra i). À míngua de interpretação que evite o quarto grau (concebo-a

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 81-91, janeiro/junho - 2003


90 NILSON NAVES

possível, à vista da competência constitucional do Supremo — essencialmen-


te, a guarda da Constituição), o Superior propõe se dê à letra i esta redação: “o
habeas corpus, quando impetrado com fundamento constitucional, contra ato de
Tribunal Superior...”.
Justifica-se a proposta a teor das pretensões dos constituintes de deixa-
rem a cargo do Supremo exclusivamente a matéria constitucional. A respeito,
leia-se o que dispõe o tão mencionado art.102, caput. O Superior foi criado
para ter nas suas mãos a matéria infraconstitucional, tornando-se, nesse pon-
to, irrecorríveis as suas decisões. Por conseguinte, não se justifica que o Supre-
mo Tribunal venha a conhecer, pelo habeas corpus, da matéria ordinária. So-
mente é lícito que o Supremo conheça de matérias por meio de recurso extra-
ordinário, podendo, no entanto, delas conhecer mediante habeas corpus, des-
de que também se trate de matérias de cunho constitucional. Virá em bom
momento a alteração que se propõe, evitando ainda a criação de uma quarta
instância para a matéria infraconstitucional, assim: juiz, tribunal de segundo
grau, Superior e Supremo. Com isso, evitar-se-ia e se corrigiria grave engano –
o do rejulgamento do recurso especial fora das salas do Superior, pois o habeas
corpus vem sendo utilizado para essa finalidade: a de levar ao Supremo as
questões comuns — de direito ordinário (HCs 70.707 e 73.124, DJ de
6.10.1995 e de 19.4.1996, entre vários outros).
Pelo que disse linhas atrás, iria eu além, visto que se me afigura
interpretativamente admissível, mesmo em tais casos, apenas o recurso extra-
ordinário, à vista do disposto no inciso III do art. 102 (quem sabe se não seria
mais recomendável se suprimisse toda a letra i, ou ao menos se suprimisse a
cláusula “quando o coator for Tribunal Superior” ?).
É por essa boa razão que o Superior também sugere seja suprimido o
inciso II do art. 102 ou, não sendo isso recomendável, que se lhe dê a seguinte
redação: “julgar, em recurso ordinário fundado em matéria constitucional...”.
No primeiro caso, a sensação que se tem é idêntica à da citada letra i: também
se propõe seja simplesmente abolido o inciso II. Com essa operação, reafir-
mar-se-iam, de um lado, a natureza e o caráter de corte infraconstitucional
do Superior (o que se requer sem mais delongas, sob pena de...); de outro
lado, destacar-se-ia o papel do recurso extraordinário previsto no inciso III,
com o que a parte não ficaria a descoberto, no caso de contrariedade a
dispositivo da Constituição. No segundo caso, não sendo possível acolher o
anterior, explicita-se que o recurso ordinário deve ter por fundamento ma-
téria constitucional. Ora, uma vez que incumbe ao Supremo, precipuamen-

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 81-91, janeiro/junho - 2003


ENTRAVES JURÍDICOS À REALIZAÇÃO DA JUSTIÇA 91

te, a guarda da Constituição, há de caber ao Superior, essencialmente, a


guarda das leis federais. Há dois contenciosos: um da Constituição e outro
das leis federais; aquele, pertencente ao Supremo e este, aos Tribunais Supe-
riores (mormente ao Superior Tribunal de Justiça — a corte do direito co-
mum, ordinário, das causas infraconstitucionais). Não é razoável que o Su-
premo, a par de velar pelo primado da Constituição, também possa fazê-lo
a respeito das leis federais. Em conseqüência, o crime político (previsto na
letra b do aludido inciso II), numa e noutra hipótese, entraria na competên-
cia do Superior Tribunal de Justiça.
Por derradeiro, a relação entre recursos extraordinário e especial há de ser
revista e meditada com maior profundidade, levando-se em conta que o Su-
perior, ao julgar, em recurso especial, as causas decididas em única ou última
instância, não desfruta do contencioso constitucional, salvo em raríssimas
hipóteses (a declaração de inconstitucionalidade, por exemplo, mesmo assim
sempre em desfavor do recorrente); em princípio, faltaria cabimento ao recur-
so extraordinário. Com isso, o que se quer sustentar é que se nos apresenta
inadmissível o conhecimento do extraordinário, a pretexto de contrariedade a
dispositivo da Constituição, verificando-se, no entanto, o julgamento da cau-
sa com base no direito infraconstitucional (REsp. nº 159.979, DJ de
19.12.1994 e 202.668, DJ de 18.5.2001, entre vários outros). É de se re-
conhecer que, em casos que tais, sempre ocorrerá o rejulgamento do recurso
especial, pura e simplesmente, daí o tão falado quarto grau de jurisdição. A
fim de evitá-lo, exige-se que o recurso extraordinário só tenha cabimento nas
causas em que as partes hajam fundado a ação e a defesa em disposições da
Constituição, caso em que o feito não transitaria pelo Superior.
Senhoras e senhores, são esses alguns dos entraves à realização da justiça,
dos quais desejava eu falar em momento tão auspicioso, quando a Academia
se dispõe a discutir, neste significativo evento, tema de alta relevância para o
direito em tempos de economia globalizada.
Ao que cuidamos, a missão foi, é e será sempre a de ultrapassar os entra-
ves e as dificuldades, os riscos e os preconceitos de uma Justiça, se tarda e
ainda frágil, ampliada, constante e que vem tendendo dia a dia a se robuste-
cer, graças ao trabalho seminal de abnegadas pessoas, dentre as quais, permi-
tam-me, incluo as que compõem o Superior Tribunal de Justiça.
Obrigado a todos!

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 81-91, janeiro/junho - 2003


92
93

O nome civil das pessoas


naturais como direito
da personalidade

Wanderley José Federighi


JUIZ DE DIREITO SUBSTITUTO EM SEGUNDO GRAU NO ESTADO DE SÃO PAULO E MESTRE
EM DIREITO CIVIL PELA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO.

SUMÁRIO: 1. Conceito de nome - 2. Histórico do


direito ao nome - a) As sociedades rudimentares - b)
Os povos antigos; hebreus e gregos; c) Os romanos; d)
Os bárbaros; e) A Idade Média e os tempos modernos.
A comunidade luso-brasileiro - 3. A natureza jurídica
do direito ao nome - 4. Conclusões - 5. Bibliografia

1. Conceito de nome

V
ulgarmente, “nome” é a “palavra que designa pessoa, coisa ou ani-
mal; qualificação; reputação; apelido; ou alcunha” (Aurélio Buar-
que de Hollanda Ferreira, Pequeno Dicionário da Língua Portu-
guesa, p. 850).
Para a ciência do Direito, nome é a “designação patronímica da pessoa; a
referência à família” (Academia Brasileira de Letras Jurídicas, Dicionário Jurí-
dico, p. 377).
Trata-se, portanto, de designação das pessoas; da forma como elas são
designadas, chamadas, identificadas, entre seus pares e mesmo entre os seus
familiares.
O pranteado Antonio Chaves lembra que “entre os meios através dos quais
o homem pode afirmar-se não somente como pessoa, mas também como uma certa
pessoa evitando por essa forma a confusão com outras — assinala Adriano de

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 93-105, janeiro/junho - 2003


94 WANDERLEY JOSÉ FEDERICHI

Cupis — ocupa lugar proeminente o nome, sinal verbal, que lembra imediata-
mente e com perfeita clareza o sujeito ao qual se refere.
Certamente o nome é um meio geral que serve para designar qualquer entida-
de ou objeto que se possa imaginar. Mas adquire particular importância jurídica e
social no que diz respeito à indicação das pessoas, a ponto de se constituir, muitas
vezes, em símbolo das mais elevadas qualificações ou virtudes de uma pessoa, de
anseios, de sentimentos os mais variados, desde os mais elevados, aos menos dignos”
(Lições de Direito Civil, Parte Geral, vol. III, pp. 177/178).
A propósito de sua lição, lembra o autor a respeito de nomes que, de
imediato, expressam um conjunto de defeitos ou de qualidades: Jesus Cristo,
Átila, Churchill, De Gaulle, Hitler, Tiradentes, Judas e outros que tais.
Washington de Barros Monteiro aduz que o nome pode ser definido
“como o sinal exterior pelo qual se designa, se identifica e se reconhece a pessoa no
seio da família e da comunidade. É a expressão mais característica da personalida-
de, o elemento inalienável e imprescritível da individualidade da pessoa. Não se
concebe, na vida social, ser humano que não traga um nome” (Curso de Direito
Civil, Parte Geral, p. 86).
Silvio de Salvo Venosa afirma que o nome é, “portanto, uma forma de
individualização do homem na sociedade, mesmo após sua morte” (...) “O nome,
afinal, é o substantivo que distingue as coisas que nos cercam, e o nome da pessoa a
distingue das demais; juntamente com outros atributos da personalidade, dentro
da sociedade” (Direito Civil - Teoria Geral, vol. 1, p. 152).
Carlos Roberto Gonçalves afirma que é o “sinal exterior (ou a designação)
pelo qual a pessoa se identifica no seio da família e da sociedade” (Direito Civil -
Parte Geral, p. 51).
Serpa Lopes lembra que o nome “surge como um dos elementos de identifi-
cação de pessoa. Constitui, por isso, um dos direitos mais essenciais da personalida-
de” (Curso de Direito Civil, Introdução e Parte Geral, vol. I, p. 235).
Por fim, R. Limongi França preleciona que “nome, no sentido o mais geral,
é a expressão pela qual se identifica e distingue uma pessoa, animal ou coisa. É o
gênero, do qual o nome de pessoa, conceituado por Cícero, é uma espécie” (“O
Nome Civil das Pessoas Naturais, p. 21).
Vê-se, portanto, que os elementos comuns desses nomes são a identifica-
ção, a designação das pessoas, como individualizador das mesmas entre os
seus pares.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 93-195, janeiro/junho - 2003


O NOME CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS COMO DIREITO DA PERSONALIDADE 95

2. Histórico do direito ao nome

Ainda que, nos tempos atuais, haja relativa sofisticação no que toca ao
nome civil das pessoas, é por demais evidente que nem sempre foi assim, e
que, em tempos mais antigos, inexistia tal refinamento.
Assim, é fácil imaginar-se, por exemplo, nas sociedades primitivas, as
pessoas dirigiam-se, umas às outras, com grunhidos ou interjeições.
Com o passar do tempo e a sofisticação da linguagem, também passa a
haver maior aprimoramento no que diz respeito à atribuição de nomes às
pessoas.
R. Limonge França lembra, aliás, reportando-se às lições de Spencer Vam-
pré, que “povos de cultura a mais rudimentar como os hotentotes, os iroqueses, os
nossos bakairis, os habitantes das Austrália do Norte, os da Ilha de Kingsmill, a
despeito da diversidade do sistema utilizado para a imposição da designação perso-
nativa, possuem a instituição do nome, aliás com um significado por vezes mais
importante que o encontrado em povos mais desenvolvidos” (O Nome..., p. 25). E
lembra, ainda, de um único povo da África, do qual dão notícia Heródoto e
Plínio; ou seja, os atlantes, que não usavam nome próprio individual.
Na Antiguidade, para efeito de nosso estudo, outrossim, merecem desta-
que três povos: os hebreus, os gregos e os romanos.
a) Entre os hebreus, inicialmente, usava-se um único nome: Esther, Ra-
chel, Jacob, David e outros. Era dado aos meninos no oitavo dia, após a cir-
cuncisão.
Havia, contudo, costume de acrescentar-se um segundo nome a esse pri-
meiro, como, no Velho Testamento, se vê “Ruth Moabita”, apelido alusivo à sua
origem.
No Novo Testamento, “em meio à enumeração dos apóstolos, a um dos Tiagos
chama-se ‘Jacobus Zebedaei’, Tiago de Zebedeu, filho de Zebedeu, e a outro ‘Jacobus
Alphaei’, Tiago de Alfeu. A Mateus se chama Matheus Publicannus, numa alusão
à sua antiga profissão” (R. Limongi França, O Nome..., p. 28).
Na própria inscrição da Cruz, vê-se Jesus identificado como “Jesus Nazare-
nus”, ou Jesus de Nazaré.
Washington de Barros Monteiro acrescenta que, entre os hebreus, o nome
era único, “mas, com o tempo, quando as tribos se multiplicaram, os indivíduos

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 93-105, janeiro/junho - 2003


96 WANDERLEY JOSÉ FEDERICHI

passaram a ser individualizados pelo seu nome, ligado ao do genitor (José Bar-Jacó
- José, filho de Jacó). Como observa Cunha Gonçalves, o nome do apóstolo Barto-
lomeu e do bandido Barrarás indicavam apenas a filiação (Bartolomeu, filho de
Tolomeu - Barrabás, filho de Abás), mas não o da própria personagem, que se
perdeu naturalmente na noite dos tempos.
“Acrescenta o mesmo civilista que tal sistema predomina ainda entre os árabes
(Ali Ben Mustafá - Ali, filho de Mustafá). Aliás, desde a denominação maometa-
na, alguns judeus passaram a adotar, igualmente, a desinência Ben (Bensabat,
Belonei)” (Curso..., p. 87).
Também havia, ao que parece, a possibilidade de aquisição de nome por
meio de adoção, como lembra R. Limongi França (O nome..., p. 28).
b) Quanto aos gregos, tinha tal povo da Antiguidade, inicialmente, um
único nome. Lembra Washington de Barros Monteiro que, entre os gregos, o
nome “era único e individual (Sócrates, Platão, Aristóteles). Cada pessoa tinha o
próprio nome e não transmitia aos descendentes” (Curso..., p. 87).
Silvio de Salvo Venosa lembra que, posteriormente, “com a maior com-
plexidade das sociedades, passaram a deter três nomes, desde que pertencessem a
família antiga e regularmente constituída: um era o nome particular, outro o
nome do pai e o terceiro o nome de toga a gens. Como lembra Limongi França,
o primeiro nome equivalia ao nosso prenome, o segundo era o nome de família e
o terceiro era o gentílico, a exemplo de Roma, que não possuímos atualmente”
(Direito Civil, pp. 153/154).
Assim, R. Limongi França lembra a obra de Fustel de Coulanges, A
Cidade Antiga, onde esclarece que “todo grego tinha três nomes, desde que
pertencesse a uma família antiga e regularmente constituída. Um deles era-lhe
particular; um outro era de seu pai e, como estes dois nomes se revezavam ordina-
riamente entre si, o conjunto dos dois nomes equivalia ao ‘cognomen’ hereditário,
que, em Roma, designava um ramo da gens, ou genós. Assim, dizia-se:
Milcíades, filho de Cimon, Sakiadas, e, na geração seguinte, Cimon, filho de
Milcíades, Sakiadas” (O Nome..., p. 29).
c) No que toca aos romanos, R. Limongi França, citando o padre João
Ravizza, aduz que tinham eles três nomes próprios para distingui-los: o pre-
nome, o nome e o cognome. Às vezes, acrescentavam um quarto: o agnome.
O primeiro precedia a todos e servia para distinguir entre si os diversos
membros da mesma família (corresponde ao nosso nome de batismo).

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O NOME CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS COMO DIREITO DA PERSONALIDADE 97

Exemplos: Aulus, Sextus, Appius etc. Já o nome (nomen) servia para desig-
nar a gens a que pertencia o indivíduo, cuidando-se de nomes propriamen-
te adjetivos (por exemplo: Cornelius, pertencente à gens Cornelia; Fabius,
pertencente à gens Fabia etc.).
Já o cognome (cognomen quia nomini conjugitur) “distinguia as diversas fa-
mílias de uma mesma gens. Punha-se em terceiro lugar, por exemplo: ‘Publius
Cornelius Scipio’ designava um indivíduo da gente Cornelia, da família dos Cipiões,
chamado Públio...” (R. Limongi França, O Nome..., pp. 30/31).
Por fim, o agnome (quasi accidens nomen) “exprimia apelido tomado de
algum sucesso ou circunstância especial, por exemplo: ‘Publius Cornelius Scipio
Africanus’, porque se celebrizou por seus feitos na África...” (R. Limongi França,
O Nome..., p. 31).
Washington de Barros Monteiro afirma que, em Roma, “o nome era bas-
tante complexo. Os elementos que entravam em sua composição eram: a) o gentí-
lico, usado por todos os membros da mesma gens; b) o prenome, ou nome próprio
de cada pessoa.
Posteriormente, terceiro elemento apareceu, o cognome, devido ao grande de-
senvolvimento das gens e às complicações provenientes das alianças. Inicialmente,
o cognome era individual, depois se tornou hereditário. Mas, era próprio dos ho-
mens, as mulheres não o usavam” (Curso..., pp. 87/88).
Também lembra Washington que os nomes com três elementos eram
peculiares ao patriciado; nomes “de um só, no máximo de dois elementos, eram
próprios da plebe (Espártaco)” (Curso..., p. 88).
No mesmo sentido, afirma Silvio de Salvo Venosa: “Os nomes únicos ou
com dois elementos no máximo eram próprios da plebe. Os escravos tinham um
nome, com o acréscimo, geralmente, do prenome do dono” (Direito Civil, p. 154).
d) O tempo foi passando; conquistadas as Gálias e a Lusitânia, passaram
estas a adotar o sistema romano. Contudo, lembra Washington, com a inva-
são dos bárbaros, na Idade Média, retornou-se ao sistema “do nome único,
entre eles vigorante. Paulatinamente, no entanto, os nomes bárbaros foram substi-
tuídos pelos do calendário cristão. Tornando-se cada vez mais densa a população,
começou a surgir confusão entre pessoas com o mesmo nome e pertencentes a famí-
lias diversas.
Para distingui-las, recorreu-se ao emprego de um sobrenome, ora tirado de
qualidade ou sinal pessoal (Bravo, Valente, Branco), ora da profissão (Monteiro),

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 93-105, janeiro/junho - 2003


98 WANDERLEY JOSÉ FEDERICHI

ora do lugar do nascimento (Portugal), ora de algum animal, planta ou objeto


(Coelho, Carvalho, Leite). Mas, com maior freqüência, recorria-se ao nome pater-
no, em genitivo (Afonso Henriques - Afonso, filho de Henrique; Lourenço Marques
- Lourenço, filho de Marco).
Esse sobrenome, a princípio, era individual e não se transmitia hereditaria-
mente. Depois, todavia, começou a passar de pai para filho. Esse o seu caráter na
atualidade” (Curso..., p. 88).
No mesmo sentido é a lição de Silvio de Salvo Venosa (Direito Civil, p.
154). Tal autor acrescenta, outrossim, que, na Idade Média, “o nome duplo
surge entre pessoas de alta condição, nos séculos VIII e IV, mas só se torna geral no
século XIII” (ob. e loc. cits.).
R. Limongi França, por seu turno, lembra que foi na Idade Média que
lançou as suas raízes mais profundas o moderno nome de família, de cunho
hereditário, “em grande parte ligado à imposição primitiva de uma simples alcu-
nha. Com efeito, a grande maioria dos atuais patronímicos tanto em Portugal,
como na França, na Itália etc., tem origem em apelidos e epítetos da mais variada
significação, relacionados, por exemplo, com a profissão: ‘Ferreiro’, ‘Carreiro’ etc.;
com as funções e a condição social: ‘Abade’, ‘Conde’ etc.; com uma qualidade física
ou moral: ‘Gordo’, ‘Feio’, ‘Fortes’ etc.; com o país de origem: ‘Bretão’, ‘Normando’
etc. etc.; com o lugar de habitação: ‘da Ponte’, ‘do Monte’, ‘do Lago’, ‘do Vale’ etc.; e
assim por diante” (O Nome..., p. 34).
e) Entre os povos modernos (francês, alemão, italiano, espanhol etc.), de
modo geral, “predomina um traço que consiste em adotarem fundamentalmente
uma dupla denominação, composta do nome individual, seguido do nome de
família. Entretanto, outros elementos secundários do nome, ou mesmo substitutivos
deste, podem surgir, tais como: as alcunhas, os pseudônimos, os títulos, a partícula
etc.” (R. Limongi França, O Nome..., p. 35). Tais elementos persistem na
comunidade luso-brasileira, ainda que não exista uniformidade no modo de
encarar e denominar esses elementos.

3. A natureza jurídica do direito ao nome

Muito se discute a respeito da natureza jurídica do direito ao nome.


Arnoldo Wald lembra, a propósito, que, “para alguns, é um instituto de
Direito Público, um dever do indivíduo em relação ao Estado, enquanto, para

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O NOME CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS COMO DIREITO DA PERSONALIDADE 99

outros, representa um verdadeiro direito subjetivo do indivíduo. Houve até quem


visse no nome uma forma de propriedade sui generis” (Curso..., p. 124).
Muitas são as teorias a respeito da matéria.
Assim, na Alemanha, verifica-se a chamada teoria negativista, com Savig-
ny e Ihering, que negam o direito ao nome.
Nos países de língua francesa, desenvolveram-se diversas teorias. Encon-
tra-se a teoria da propriedade ao nome, que se divide em teoria radical da proprie-
dade, teoria da propriedade “sui generis” e teoria da propriedade imaterial, de
Bonnecase. Também houve a teoria da polícia civil ou teoria negativista, de
Planiol, Colin e Capitant, bem como Roguin, desenvolveram a teoria pluralista.
Na Itália, Venzi desenvolveu, quanto ao nome, a teoria do direito sobre
coisa imaterial. Vivante e Sraffa estudaram a teoria sobre a defesa da “função” do
nome. Pacchioni e Stolfi desenvolveram a teoria do direito privado “sui generis”.
Nos países de língua espanhola, Spota e Semon criaram a teoria do
direito subjetivo extrapatrimonial. Por fim, nos países de língua portuguesa,
verifica-se a teoria negativista, de Bevilácqua; a teoria do direito de proprieda-
de, de Fábio Leal e Cunha Gonçalves; e a teoria do direito privado “sui gene-
ris”, de Serpa Lopes.
Contudo, muitos juristas, em vários países, entenderam que o direito ao
nome tem a natureza jurídica de direito da personalidade.
Esta é a posição, na França e noutros países de língua francesa, de Hum-
blet, Sudre, Perreau, Rossel e Mentha, Maccario, Planiol, Ripert e Savatier,
Josserand, De Page, Laborde-Lacoste, Henri, Léon e Jean Mazeaud.
Quanto aos autores de língua alemã, assim pensavam Gareis e Kohler.
No que toca aos de língua italiana, Fadda e Bensa; Chironi; Ferrara; Barassi,
Dusi, Stolfi e Venzi; Nicola e Francesco Stolfi, Bonini, Trabucchi e Casati e
Russo; Gangi, Messineo e De Cupis.
Também nos países de língua castelhana, entendem ser o nome um di-
reito da personalidade Salvat, Cejas e Bliss; Borrell y Soler e o acatado José
Castán Tobeñas.
Nos países de língua portuguesa, defendem ser o nome um direito da
personalidade Spencer Vampré, Tedesco Júnior, Orlando Gomes e Souza Netto,
entre outros.
Aliás, a respeito dessa celeuma, é interessante verificar-se a posição de

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 93-105, janeiro/junho - 2003


100 WANDERLEY JOSÉ FEDERICHI

Serpa Lopes. Após analisar a concepção absoluta, o direito ao nome como direito
de propriedade e a teoria da polícia civil, o referido autor fixa-se na teoria do direito
privado “sui generis”, de Pacchioni e N. Stolfi, aduzindo que, inquestionavel-
mente, “o aspecto jurídico do nome não pode ter mais pronunciadamente o caráter
de obrigação do que o de direito, como pretende Planiol. É um misto de direito e de
obrigação. Como um direito, representa um dos atributos da própria personalidade,
razão pela qual não pode ser superado pelo interesse social, pelo elemento passivo da
idéia de obrigação. Mas, por outro lado, não se desconhece que, com o ser um elemento
identificador do indivíduo na sociedade, há um interesse social na sua existência e
nos seus elementos integrantes, insusceptíveis de alterações arbitrárias ou de compo-
sições fora da realidade das bases que o devem compor. O novo Código Civil italiano
(art. 6º) atribui ao nome o caráter de um direito pessoal, e, embora reconhecendo-
lhe um espectro absoluto, contudo não deixa de o revestir de um cunho publicístico,
tutelando-o como tal” (Curso..., pp. 237/238).
Contudo, atualmente, o que efetivamente prevalece é o reconhecimento,
por parte da doutrina, de que o direito ao nome é mesmo um dos direitos da
personalidade, catalogado como um dos direitos à integridade moral, como afir-
ma Orlando Gomes (“Direitos da “personalidade”, artigo in Revista Forense,
vol. 216, pp. 8/9).
Bem sintetiza a matéria Antonio Chaves, a respeito da natureza jurídica
do nome, enumerando as teorias prevalentes, da seguinte forma:

“Existe muita controvérsia a respeito. Entre as teorias que procuram


explicá-la podem ser lembradas, como mais importantes, as seguintes:
1ª. É uma instituição de polícia: seria de boa política que cada indiví-
duo tivesse um nome, o que o impediria de furtar-se às suas obrigações
militares, fiscais, políticas etc. O nome não passaria de um número de
matrícula, dado por ocasião do nascimento. A teoria não corresponde à
realidade.
2ª. É um D de propriedade, cujo titular seria a família, ou o próprio
interessado. Também não corresponde à verdadeira natureza do D, mes-
mo porque pode pertencer a várias famílias.
3ª. É um atributo da personalidade, teoria sustentada por Pacchioni e
por N. Stolfi.
4ª. É um D que visa proteger o bem inerente à identidade — sustenta
Adriano de Cupis, p. 25 — considerado na sua mais importante
forma de atuação; constitui, portanto, pelo próprio caráter do seu objeto,

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 93-195, janeiro/junho - 2003


O NOME CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS COMO DIREITO DA PERSONALIDADE 101

um D da personalidade, ao qual cabe o atributo da não-patrimo-


nialidade” (Lições..., pp. 180/181).

Arnoldo Wald, sobre o tema, afirma: “Entendemos que não há por que
falar em propriedade, conceito de direito real inaplicável no campo dos direitos da
personalidade. O próprio Planiol, na sua obra revista por Ripert, considera que a
jurisprudência francesa tem definido o nome como uma instituição das pessoas, ao
mesmo tempo que constitui um direito da personalidade, em virtude do qual o
interessado usa o seu nome e impede a utilização do mesmo por outrem sem sua
autorização prévia, ressalvada a situação dos homônimos, que não pode, todavia,
ensejar abusos de direito” (...) “A melhor doutrina na matéria é, pois, a eclética que
realiza a fusão do dever social como direito subjetivo, estabelecendo a obrigação de
usar, conservar e manter o nome como dever em relação à sociedade e reconhecendo
o direito subjetivo do titular, protegido pelo Direito Civil, de impedir o uso indevido
do nome por terceiros” (Curso..., pp. 124/125).
Observa-se, assim, que tal autor preconiza uma solução mista, em que
reconhece as vantagens de cá e de lá.
Mas não se pode deixar de anotar que o referido autor também destaca a
importância do caráter de direito subjetivo do direito ao nome, e da sua proteção.
Mais ainda: o mencionado jurista afirma, também, que o direito ao nome
individual “é extrapatrimonial, distinguindo-se dos direitos de propriedade imate-
rial, exteriores à personalidade do titular, como, por exemplo, o nome comercial e a
marca de fábrica ou de comércio, que têm conteúdo econômico e são transferíveis,
sendo elementos integrantes do fundo de comércio,.
O direito ao nome civil é inalienável e imutável” (Curso..., p. 125).
Dessa maneira, o que se vê é que o acatado jurista efetivamente apresenta
caracteres do direito ao nome que são típicos dos direitos da personalidade.
Sílvio de Salvo Venosa também entende que o nome “é um atributo da
personalidade, é um direito que visa proteger a própria identidade da pessoa,
com o atributo da não-patrimonialidade. Note-se que estamos tratando do nome
civil; o nome artístico tem conteúdo mercantil e, portanto, patrimonial” (Direi-
to Civil, p. 155).
Também Washington de Barros Monteiro, citando a lição de Josse-
rand, afirma ser o direito ao nome um “sinal distintivo revelador da persona-
lidade” (Curso..., p. 87).

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 93-105, janeiro/junho - 2003


102 WANDERLEY JOSÉ FEDERICHI

Carlos Alberto Bittar dividia os direitos da personalidade em direitos físi-


cos (referentes a componentes materiais da estrutura humana), direitos psíqui-
cos (relativos a elementos intrínsecos à personalidade) e direitos morais (respei-
tantes a atributivos valorativos, ou virtudes, da pessoa na sociedade), enume-
rando, entre outros, nestes últimos, o direito à identidade, que por certo com-
preende o direito ao nome.
No Direito estrangeiro contemporâneo, vê-se, exemplificativamente,
que dois países de língua latina, de orientação jurídica próxima à nossa,
albergam o direito ao nome como sendo direito de personalidade; ou seja, a
Itália e Portugal.
Na Itália, o Código Civile traz, logo de início, disposições a respeito do
diritto al nome, em seus artigos 6 e seguintes.
Alberto Trabucchi disserta sobre esse direito, incluído no ponto referente
aos Diritti della Personalità: “L’individuo è l’unità fondamentale, cellulare, della
vita giuridica; si comprende quindi l’importanza di distinguere gli uomini fra loro
con un segno, cioè con il nome.
La tutela del nome è diretta alla cura di un interesse individuale, ma è stabilita
anche nell’interesse dela società; avere un nome è un diritto essenziale della persona
(art. 6 c. civ.), cui è commesso un dovere. Ci sono infatti norme penali (art. 494
ss. E 651 c. pe.) e di polizia che impongono come obbligatoria la dicchiarazione
delle proprie generalità” (Instituzioni de Diritto Civile, pp. 92/93).
Em Portugal, o Código Civil trata, nos arts. 70º e 81º, especificamente,
dos direitos da personalidade.
Entre eles, encontra-se enumerado o direito ao nome, conferindo-se-lhes
o status de direito da personalidade.
A Constituição da República Portuguesa traz, nos artigos 25º e 26º,
disposições a respeito de diversos direitos, entre eles o direito à identidade
pessoal, que, como observado alhures, é um dos direitos da personalidade, e
abrange o direito ao nome; aliás, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira colo-
cam tais direitos como sendo típicos direitos da personalidade (vide Consti-
tuição da República Portuguesa Anotada, pp. 176 a 179).
Tais direitos são, ainda pelo que se vê no Direito português, ligados à
capacidade, eis que a personalidade jurídica se entende iniciada com o nasci-
mento completo e com vida e encerrada com a morte (vide, a propósito, Pires
de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pp. 101/103).

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 93-195, janeiro/junho - 2003


O NOME CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS COMO DIREITO DA PERSONALIDADE 103

As características mais comuns dos direitos da personalidade são as se-


guintes:
I. São inatos — ou originários; são direitos que pertencem ao Homem
desde o seu nascimento.
II. São extrapatrimoniais — ou pessoais; não têm cunho patrimonial
algum.
III. São irrenunciáveis — não se pode renunciar aos mesmos. Pertencem
à própria vida.
IV. São imprescritíveis — duram enquanto durar a personalidade humana.
V. São intransmissíveis — não se pode, por exemplo, transmitir o direito
à honra, à integridade física, à intimidade etc.
O direito ao nome, à parte a última característica, preenche todas as outras.
É ele transmissível; aos filhos, por exemplo. Contudo, não é o próprio
nome, ou prenome, mas o de família.
Assim, vê-se que o direito ao nome é mesmo típico direito da personalidade.
No Código Civil brasileiro de 1916, existem poucas referências ao direi-
to ao nome, estando mais concentradas nos arts. 12, inciso I, e 240.
A matéria, na verdade, é mais esmiuçada na Lei dos Registros Públicos
(Lei nº 6.015/73), em seus arts. 54 a 66; na Lei do Divórcio (Lei nº 6.515/
77), nos arts. 17 e 25, parágrafo único; no Estatuto dos Estrangeiros (Lei nº
6.815/80), em seus arts. 31 a 43; e, finalmente, na recente Lei de Proteção a
Vítimas e Testemunhas (Lei nº 9.807/99), em seu artigo 1º.
Tudo isto, contudo, sem que se chegue a considerações maiores sobre a
natureza desse direito.
Entretanto, agora, com a entrada em vigor do novo Código Civil, a ques-
tão parece superada, pois esse inclui um capítulo — o Capítulo II do Livro I,
Título I, de sua Parte Geral, consagrado aos direitos da personalidade.
Contendo aspectos extremamente polêmicos, com um sistema um tanto
confuso, o novo Código, contudo, tem a virtude de reconhecer a existência
desses direitos, ao menos, sem esgotar, contudo, a sua enumeração, tal qual a
legislação civil que o precede.
E, nos artigos 16 a 18, cuida-se especificamente do direito ao nome, ou, ao
menos, de algumas de suas facetas.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 93-105, janeiro/junho - 2003


104 WANDERLEY JOSÉ FEDERICHI

O art. 19, por seu turno, cuida do direito ao pseudônimo, reconhecido


também como um dos direitos da personalidade, tratando-se de desdobra-
mento do direito ao nome.
Ou seja; reconhece-se a existência dos direitos da personalidade, em nos-
sa lei civil maior, e, entre eles, o direito ao nome, pondo-se fim à polêmica
quanto à sua natureza jurídica.]

4. Conclusões

Em face do que até aqui foi exposto, pode-se concluir que: a) o nome
civil das pessoas naturais é o sinal ou a expressão que identifica, designa e
distingue uma pessoa das outras; b) os elementos comuns das várias definições
são a identificação, a distinção, a designação das pessoas, como individualiza-
dor das mesmas entre os seus pares; c) a evolução histórica da utilização de
nomes como distinção, designação e identificação das pessoas é lenta, desde
os tempos antigos, em que se utilizava um único nome, até o século XIII,
quando se torna comum a utilização do nome duplo, nas suas feições mais
atuais; d) apesar das diversas teorias a respeito da matéria, a que prevalece é a
que entende ser o direito ao nome um típico direito da personalidade, ligado
à proteção da identidade pessoal, tendo, efetivamente, todas as características
desse tipo de direitos, dentro do que expõe a doutrina mais autorizada a
respeito da matéria.

5. Bibliografia

- ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS JURÍDICAS. Dicionário Jurídico,


idealizado e organizado por J. M. Othon Sidou, Rio de Janeiro/São Paulo:
Editora Forense Universitária, 1990.
- BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade, 4ª ed., (revista e
atualizada por Eduardo Carlos Bianca Bittar), Rio de Janeiro/São Paulo:
Editora Forense Universitária, 2000.
- CANOTILHO, J.J. Gomes; e MOREIRA, Vital. Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra Editora, 1992.
- CHAVES, Antonio. Lições de Direito Civil, Parte Geral, vol. III, SP: José
Bushatsky Editor e Editora da Universidade de São Paulo, 1972.
- FRANÇA, Rubens Limongi; O Nome Civil das Pessoas Naturais, São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 1958.
- GOGLIANO, Daisy. Direitos Privados da Personalidade, dissertação de

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 93-195, janeiro/junho - 2003


O NOME CIVIL DAS PESSOAS NATURAIS COMO DIREITO DA PERSONALIDADE 105

mestrado apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de São


Paulo, São Paulo, 1982.
- GOMES, Orlando. “Direitos da personalidade”, in Revista Forense, vol. 216,
dezembro de 1996, Rio de Janeiro, pp. 5/10.
- LIMA, Pires de; e VARELA, Antunes. Código Civil Anotado, 4ª ed., vol. I,
Coimbra, Portugal: Coimbra Editora, 1987.
- LOPES, Serpa. Curso de Direito Civil - Introdução e Parte Geral, Rio de
Janeiro/São Paulo: Editora Freitas Bastos, 1953.
- MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, Parte Geral, 19ª
ed., São Paulo: Edição Saraiva, 1979.
- OLIVEIRA, Juarez de; e MACHADO, Antonio Cláudio da Costa, Novo
Código Civil, São Paulo: Editora Oliveira Mendes, 1998.
- SILVA, Edson Ferreira da. Direito à Intimidade, São Paulo: Editora Oliveira
Mendes, 1998.
- TRABUCCHI, Alberto. Instituzioni di Diritto Civile, trentesima terza edizione,
aggiornata con le riforme e con la giurisprudenza, Padova: Casa Editrice
Dott, Antonio Milani, 1992.
- VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil - Teoria Geral, São Paulo: Editora
Atlas, 1987.
- WALD, Arnoldo. Curso de Direito Civil Brasileiro - Introdução e Parte Geral, 8ª
ed. (com a colaboração de Álvaro Villaça Azevedo), São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1995.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 93-105, janeiro/junho - 2003


106
107

Sociedade, mass media e


Direito Penal: uma reflexão*

Vinicius de Toledo Piza Peluso


JUIZ DE DIREITO NO ESTADO DE SÃO PAULO E MEMBRO
DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE DIREITO PENAL.

SUMÁRIO: I - Introdução. II - A Sociedade. III - Os


Meios de Comunicação de Massa (Mass Media). IV -
O Direito Penal. V - Bibliografia

“...só sei voar dentro de mim,


neste sonho de abraçar,
o céu sem fim, o mar a terra inteira !
E trago o mar dentro de mim,
Com o céu vivo a sonhar e vou sonhar até o fim,
até não mais acordar...”
(Trecho da música “Garça Perdida”, com letra de Leonardo Amuedo)

I – Introdução

O
presente texto não tem a intenção de ser um estudo completo e
definitivo sobre a problemática que envolve as complexas relações
existentes entre esses três elementos, por se tratar de uma proble-
mática poliédrica, extremamente complexa, que exige uma abordagem inves-
tigatória inter e multidisciplinar. Muito mais do que um trabalho científico

*
O presente artigo foi publicado originalmente na revista argentina: ZETTEL – Artes y Ciencias Sociales,
publicação da Universidad de Buenos Aires, ano III, nº 3, p. 25.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 107-121, janeiro/junho - 2003


108 VINICIUS DE TOLEDO PIZA PELUSO

— no exato sentido do termo —, este artigo deve ser visto, e compreendido,


como uma pequena reflexão sobre o tema, entre as inúmeras outras aborda-
gens e possibilidades que o assunto permite enfocar, sendo colocados em
relevo, ainda, apenas pequenos e específicos aspectos de cada elemento estu-
dado, ou, se preferem alguns, trata-se de uma divagação em voz alta ou
mesmo de um litlle brain storm.
Tal trabalho tem, como finalidade, fazer brotar uma semente plantada
pela professora Ana Maria Messuti de Zabala em seu curso “Hermenêutica
Filosófica Aplicada ao Direito Penal”, ministrado no mês de setembro/2001,
na Escola Paulista da Magistratura, concretizando, dessa forma, o esforço na
demolição das pirâmides hermenêuticas que enclausuram o conhecimento
jurídico-penal, possibilitando, assim, uma abertura de janelas e, conseqüen-
temente, a criação de novos caminhos com uma nova visão e compreensão dos
problemas penais atuais, já que “hay en todas las disciplinas ciertas esferas de
franca contigüidad com otras disciplinas. Esferas en las que si procede ignorando
esa contigüidad corre uno el riesgo de asfixiar la propria disciplina, de cerrarle una
válvula de comunicación que no sólo la enriquecería, sino que le aportaría la
perspectiva necesaria para comprenderse a sí mesma” 1. Ademais, “La pregunta
sobre el derecho y la pregunta sobre el hombre se alimentan recíprocamente; ninguna
de las dos se formula sin la outra. El derecho implica al hombre y el hombre
implica al derecho. La pregunta sobre el derecho y la pregunta sobre el hombre son
una parte fundamental de la pregunta filosófica.” 2.

II - A Sociedade

A visão da sociedade moderna, também chamada pós-industrial, aqui


apresentada de maneira muito simples, partiu essencialmente das constru-
ções de Ortega Y Gasset, Moscovici, Ulrich Beck, Giddens, Luhmann, Berger
e Luckmann, entre outros, sendo que algumas características por eles apre-
sentadas são as que mais importam para o desenvolvimento da tese ora desen-
volvida.
A primeira delas é que a sociedade do século XX deve ser considerada
como uma “Sociedade de Massa”. Gasset considera a massa como um grupo

1
MESSUTI, Ana. El Tiempo Como Pena, Buenos Aires: Compomanes Libros, 2001, p. 13.
2
Op. cit., p. 97.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 107-121, janeiro/junho - 2003


SOCIEDADE, MASS MEDIA E DIREITO PENAL: UMA REFLEXÃO 109

de pessoas não especialmente qualificadas, formada por homens médios (ho-


mem-massa) que não se valoram individualmente, pois se sentem como “todo
mundo”, sendo que ela impõe as suas aspirações e gostos por meio de pres-
sões, desrespeitando as minorias, engolindo o individual, onde o fato de ser
diferente é considerado indecente e quem não pensa como a massa é social-
mente eliminado. O homem-massa ter-se-ia desenvolvido isento de impedi-
mentos, eis que as revoluções ocorridas no século XIX colocaram a massa
social em condições de vida radicalmente opostas às que anteriormente existi-
am, possibilitando uma livre expansão de seus desejos vitais, não existindo,
assim, qualquer limite para a sua existência. Tudo estava permitido e nin-
guém estava obrigado a nada. O homem moderno instalou-se em um mundo
de possibilidades superabundantes, conquistadas por seus antepassados, mas
sem as angústias que aqueles sofreram. Nesse período e contexto, floresceram
a democracia liberal, o desenvolvimento científico e a industrialização. Gasset
descreve o homem-massa, ainda, como a “criança mimada da história”,3 al-
guém que se preocupa apenas com o seu bem-estar, não sendo solidário e
exigindo somente os seus direitos.4 Ele vive à deriva dos acontecimentos, care-
cendo de projetos construtivos. Por outro lado, ele é intelectualmente hermé-
tico já que tem as suas próprias idéias, achando-as completas, contentando-se
com as mesmas, achando-se pleno, e, em conseqüência, encontra uma sensa-
ção de domínio e triunfo, gostando, assim, de exercer o predomínio, atuando
como se apenas ele e seus comuns existissem no mundo.
A essa visão soma-se a construção do sociólogo alemão Ulrich Beck, para
quem a sociedade moderna é a “Sociedade do Risco”.5 Tal sociedade designa
um estado da modernidade em que, com o desenvolvimento tecnológico da
sociedade industrial até nossos dias (alta tecnologia atômica, química, genéti-
ca, médica, armamentista etc.), as ameaças provocadas pelos avanços ocupam
um lugar predominante, o seu surgimento é, portanto, o reverso da deteriora-
ção do processo autônomo de inovação da modernidade, designando uma
fase de desenvolvimento que, através de mudanças na produção de riscos po-
líticos, ecológicos, econômicos e individuais, escapa, cada vez mais, às insti-
tuições de controle e proteção da sociedade industrial. Constata-se que as

3
In ORTEGA Y GASSET, José. La Rebelión de las Massas, Madrid: Clásicos Castalia, 1999.
4
Ressalte-se que aqui se fala em direitos passivos, ou seja, aqueles que as pessoas adquirem independentemen-
te de qualquer esforço ou obrigação decorrente; eles são inerentes à própria natureza humana. São os direitos
da personalidade que se adquirem com o só fato de nascer.
5
In BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo, Barcelona: Paidós, 1998.

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110 VINICIUS DE TOLEDO PIZA PELUSO

instituições, públicas e privadas, se transformam em focos de produção e


legitimação de perigos incontroláveis sobre a base de rígidas relações de pro-
priedade e poder. Beck observa que tal sociedade não é uma escolha, uma
opção eleita ou afastada politicamente, mas surge automaticamente dos pro-
cessos de modernização que são alheios às conseqüências perigosas que desen-
cadeiam. Nessa sociedade, os conflitos de distribuição dos bens sociais (em-
pregos, saúde, educação, segurança pública etc.) são superpostos pelos confli-
tos de distribuição dos danos coletivamente produzidos. Ademais, os indiví-
duos, ante a elevada complexidade dessa modernidade, não podem encontrar
razão na inevitabilidade das decisões, nem considerar-se responsáveis por suas
possíveis conseqüências. Os homens devem entender a sua vida, desde agora,
como estando submetida aos mais variados tipos de riscos, os quais têm um
alcance pessoal e global. A temática social passa a ser a incerteza e a incontro-
labilidade dos acontecimentos, tema que é politicamente explosivo, porque
aqueles que detêm a responsabilidade da proteção social se convertem em
autênticas ameaças para o sistema jurídico, a prosperidade e a liberdade. As-
sim, o reconhecimento da incalculabilidade dos perigos desencadeados pela
evolução técnico-industrial obriga a sociedade a efetuar uma auto-reflexão
sobre os fundamentos do contexto social e uma revisão das convenções vigen-
tes e das estruturas básicas de racionalidade. Ela se converte em tema e pro-
blema para si mesma. Ressalte-se, ainda, que, com os riscos, o horizonte escu-
rece, já que os mesmos proclamam o que não se deve fazer, mas não o que há
que se fazer. Com isso, dominam os imperativos da evitação e quem projeta o
mundo como risco se mostra, em último caso, incapacitado para a ação. Por
fim, a complexidade própria desse modelo causa uma profunda inter-relação
das esferas de organização social, aumentando a iteração por necessidades de
cooperação e divisão funcional, sendo que tais contatos podem redundar em
mais conseqüências lesivas.
Outra característica importante da sociedade pós-industrial é a crise do
paradigma do “Estado do Bem Estar Social” (Welfare State). O modelo do
Welfare State gerou uma sociedade de sujeitos passivos, destinatários de pres-
tações públicas, que são pensionistas, consumidores, desempregados, pessoas
e entidades subvencionadas pelo dinheiro público, que, por sua vez, são elei-
tores. Assim o homem-massa moderno não só vive no Estado, como também
dele, o que faz com que a sociedade já não seja mais criadora, empreendedora,
dinâmica, mas, ao contrário, a liberdade de ação cedeu à passividade, à neces-
sidade de segurança. Por outro lado, a crise deste modelo se manifesta na

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SOCIEDADE, MASS MEDIA E DIREITO PENAL: UMA REFLEXÃO 111

diminuição, ou mesmo extinção, da intervenção estatal nas esferas sociais como


a saúde, educação, economia, entre outras, resultando uma sociedade de de-
semprego, geralmente juvenil, de migrações e emigrações, com os conseqüen-
tes choques de cultura decorrentes, além de outros efeitos sociais patológicos
que geram episódios violentos, em que a própria convivência aparece como
fonte de conflitos interindividuais, ocorrendo que o “outro” mostra-se, mui-
tas vezes, como acima mencionado, um risco.
Não se deve esquecer, por outro lado, a maneira como a sociedade moderna
conhece a realidade. Aqui adota-se a “teoria da construção social da realidade” 6
dos sociólogos Berger e Luckmann, em que o ser humano é o único ser que
carece de um ambiente específico de sua espécie, já que vive imerso em um
ambiente social, em uma realidade criada intersubjetivamente. Dessa forma,
todo conhecimento que ele tem do mundo real está mediado pela forma que
o conhece e, na atual sociedade de massa, a principal forma de conhecer o
mundo exterior é através dos meios de comunicação, que, assim, cumprem a
função mediadora e conformadora de sua realidade. Portanto, a realidade que
o indivíduo percebe depende da informação que os meios lhe passam.
A somatória de todas essa características gera o que os sociólogos chamam
de “sensação social de insegurança”. Tal sensação é uma dimensão subjetiva do
modelo de sociedade pós-industrial, podendo-se dizer que caracteriza, mes-
mo, uma marca significativa deste modelo. Como nesse modelo a sociedade é
passiva, as pessoas não se vêem atuando e a liberdade de ação cedeu à necessi-
dade de segurança, a sociedade é dependente do Estado, transferindo a ele a
sua necessidade de segurança e a própria garantia de sua existência, as pessoas
acabam se identificando com as vítimas — já que são passivas —, e não com
o autor dos fatos arriscados — dinâmico, empreendedor —, ante a imagina-
ção de serem vítimas em potencial. Entretanto, na realidade, a vivência subje-
tiva dos riscos é claramente superior à própria existência concreta e objetiva
dos mesmos (sensibilidade do risco), inclusive porque os novos riscos gerados
pela modernidade são compensados pela radical diminuição dos riscos natu-
rais, tais como doenças, catástrofes etc. Essa problemática foi identificada
pelo sociólogo Xaver Kaufmann:7 “Se é certo que os homens nunca haviam vivi-
do tanto, tão bem e seguros como agora, o certo é que o medo e a insegurança se hão
convertido no tema central do séc. XX”.

6
In LUCKMANN, Thomas / BERGER, Peter L. A Construção Social da Realidade, Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
7
Citado por SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La Expansión del Derecho Penal, Madrid: Cuadernos Civitas, 1999.

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112 VINICIUS DE TOLEDO PIZA PELUSO

Finalmente, a mencionada sensação social de insegurança é reforçada,


ainda, pela revolução das comunicações que deu lugar a uma vertigem deriva-
da da falta de domínio do curso dos acontecimentos, que gera uma falsa
sensação de impotência e, conseqüentemente, mais insegurança, e, ainda,
como acima visto, pela própria forma como essa sociedade conhece a sua
realidade, mediante os meios de comunicação.
Essa sensação coletiva se converte em pretensão social, a que se supõe que
o Direito Penal deva dar uma resposta.

III – Os Meios de Comunicação de Massa (Mass Media)

A atual época se caracteriza como a era da informação global, em que


ocorrem os monopólios das empresas de comunicação (CNN, Ag. Reuters,
Rede Globo), concretizando, assim, as profecias de G. Orwell (1984) e Al-
dous Huxley (Admirável Mundo Novo) de um mundo de falso progresso, ad-
ministrado por uma polícia do pensamento. Essa era da informação tem como
pano de fundo a sociedade acima descrita. Entretanto, neste contexto, a in-
formação é tratada como uma mercadoria que, como as demais coisas, é regi-
da pelas leis do mercado.
Informar, portanto, passa a ser um verdadeiro negócio empresarial, em
que, em um mercado extremamente competitivo, a mercadoria mais preciosa
é o “furo jornalístico”, já que o índice de audiência ou o aumento das tiragens
se tornaram o juízo final do jornalismo.
Na sociedade obcecada pelo medo e pela segurança cresce a motivação
para o aumento das notícias sobre delitos e/ou eventos violentos. Entretanto,
como observou Francesc Barata,8 o interesse pela narração do delito se perde
na história da humanidade, sendo que as primeiras manifestações dessa cul-
tura, chamada popular ou vulgar, aconteceram nas cidades européias durante
o séc. XVII, que foram reforçadas, ainda, pela curiosidade e a atração social
pelo castigo público — resposta ao delito — que, então, era praticado, con-
forme analisado na obra de Michel Foucault (Vigiar e Punir).
Na atualidade, a curiosidade pela narração do crime e seu castigo continua

8
BARATA, Francesc. “De Ripper al pederasta: un recorrido por las noticias, sus rotinas y los pánicos morales”, in
Revista Catalana de Seguretat Pública, Barcelona, junio/1999, nº 4, pp. 45-57.

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SOCIEDADE, MASS MEDIA E DIREITO PENAL: UMA REFLEXÃO 113

presente na sociedade; entretanto, emergiu com uma força enorme no seio dos
meios de comunicação de massa, também porque nos encontramos ante uma
crise de credibilidade da política, que se transfere para os meios de comunica-
ção, pois quanto mais decresce o interesse pelas notícias políticas, mais a
imprensa procura outras categorias informativas para traduzir o interesse da
sociedade — geralmente notícias violentas —, o que, por outro lado, amplia
a fronteira entre informação séria e informação trivial, que adquire um maior
grau de aceitabilidade. Essa trivialização das notícias causa uma nova cultura
de violência, em que essa aparece como um fato normal, corriqueiro, que faz
parte do cotidiano, na verdade um objeto de consumo, gerando uma insensi-
bilização à violência real e alterando as representações em torno da segurança
e, ainda, uma funcionalização dos atos violentos, que passam a ser tidos como
meios legítimos para alcançar determinados fins.
Ainda que não haja possibilidade de se reconhecerem com a certeza neces-
sária a relação e influência dos meios de comunicação na opinião pública, ante
a falta de estudos sérios que as confirmem, como anotado pela maioria dos
estudiosos, o fato é que existe uma influência mútua entre o discurso sobre o
crime — atos violentos — e o imaginário que a sociedade tem dele, e, como
anota Barata,9 apesar das dificuldades para se estabelecer uma relação absoluta
de causa/efeito entre as notícias e o medo do delito, pode-se sustentar que existe
uma relação sólida entre as ondas de informação e a sensação de insegurança.
Na relação entre meios de comunicação e delito ocorre, no momento da
criação da notícia, o que Barata denominou “pequeñas dictaduras del sistema
informativo”.10 Isso acontece, pois os meios têm a necessidade e a obrigação
de preencher todos os dias o mesmo espaço informativo, ainda que a reali-
dade esteja pobre em acontecimentos noticiosos; afinal, “los telenoticias siem-
pre tendrán la misma duración y los periódicos el mismo número de páginas...”.
Por outro lado, em relação aos fatos criminais, existe uma grande escassez de
fontes de informação, o que obriga o jornalista a procurar as fontes institu-
cionais, geralmente a Polícia ou o Ministério Público, que, por sua vez, não
são fontes neutras e, portanto, transmitem a sua maneira de ver o crime, não
sendo questionadas por aquele que necessita da informação para preencher
os espaços. Finalmente, o jornalista deve adequar o seu trabalho ao tempo
mediático que, geralmente, não coincide com o tempo dos acontecimentos

9
BARATA, Francesc. Op. cit.
10
BARATA, Francesc. Op. cit.

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114 VINICIUS DE TOLEDO PIZA PELUSO

— o processo é lento —, o que impede o aprofundamento da notícia. Outra


pequena ditadura é a chamada “corrida pela notícia”: o ambiente de com-
petitividade gera a imediatez da informação que se sobrepõe ao necessário
rigor profissional, causando, também, prejuízos à profundidade da notícia.
O autor deixa anotado, ainda, que estas pequenas ditaduras do sistema
informativo não possuem intencionalidade ideológica, afastando, portanto,
as apocalípticas teorias da conspiração, mas deixa assentado que essas dita-
duras efetivamente acabam marcando a visão diária que os meios oferecem
sobre os desvios sociais, e, nesse sistema, as visões que penetram através das
fontes institucionais do controle penal se acoplam facilmente às necessida-
des informativas, privilegiando a sua maneira de ver o cenário delitivo, que
os meios aceitam sem questionar.
Dentro dessa realidade é inegável que a televisão é o meio de comunicação
mais importante, comparando-se com as rádios, jornais e revistas, e, por esta
razão, a presente análise se centrará mais em seus elementos, e, dentre os
programas televisivos, serão enfocados, com mais demora, os telejornais.
No presente século, a televisão se tornou um eletrodoméstico indispen-
sável em qualquer lar, ocupando e presidindo os espaços comunitários —
sala de visitas ou de jantar —, e a existência de um aparelho em pleno
funcionamento é sintoma de normalidade, conforme afirmado por
Montserrat Quesada.
Antigamente, informar era proporcionar não só a descrição precisa dos
fatos, mas também apontar o conjunto de parâmetros contextuais que permi-
tiam ao leitor compreender o seu significado global; entretanto, na moderni-
dade, essa situação não mais ocorre, sendo que informar é fazer “assistir” —
especialmente ao vivo — o acontecimento e a imagem passa a ser suficiente
para dar o significado do fato. Assim, preferimos ver o que acontece ao invés
de ler, mesmo que essa preferência implique deixar de lado informações fun-
damentais que nos aclarariam os antecedentes e as conseqüências do fato no-
ticiado. A televisão, portanto, na sociedade moderna, se torna o meio de in-
formação preferido, ante a fascinação pela imagem, pois, afinal de contas,
“uma imagem vale mais do que mil palavras” e não necessita o esforço de aten-
ção e concentração exigidos pela leitura.
Dessa forma, ver é compreender, mas esquecem-se que o Iluminismo
demonstrou que isso não é verdadeiro, pois se compreende pela razão, com
a inteligência e não com os olhos e os sentimentos. As pessoas, na socieda-
de moderna, inclusive porque são passivas, acham que, confortavelmente

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SOCIEDADE, MASS MEDIA E DIREITO PENAL: UMA REFLEXÃO 115

sentados em seus sofás, olhando para a TV, com imagens fortes, estão se
informando com seriedade, mas informar-se sem esforço é uma ilusão.
A fascinação pelas imagens, especialmente pelas ao vivo, cria a ilusão de
que todo acontecimento deve ter uma imagem e que fatos sem imagens não
são importantes. Assim, o que não for filmado não é importante. Sem ima-
gem, não há notícia. Entretanto, mais grave do que a falta de notícias é o fato
de que, na maioria das vezes, nos mostram imagens que não representam
nenhum fato jornalístico noticiável, apenas imagens espetaculares, ricas em
visual, atrativas e tecnicamente impecáveis. A informação torna-se um espetá-
culo, um divertimento.
As notícias, diga-se imagens, se produzem quase que simultaneamente
com o fato, mudando o conceito de atualidade e, ainda, descontextualizando-o.
A televisão cria, por outro lado, a hiperemoção do espectador, pois a
emoção que você sente assistindo às imagens é verdadeira, o que automatica-
mente faz a informação também ser verdadeira. Cria-se uma confusão entre
emoção e realidade, pois a fascinação emocional impede a análise racional e
realista do fato, até porque o telespectador/receptor, que não possui pleno
controle de seu próprio campo de visão, que está estruturado pelos meios —
escolha das cenas, reportagem, edição etc. — , não pode olhar em uma ou
outra direção e enfocar diferentes indivíduos ou objetos. Ante a hipersensibi-
lização, a sociedade, que é uma sociedade insegura e por isso mais suscetível
emocionalmente, não necessita mais sofrer o mal, pois ela o vê. O problema
da violência passa a ser comunicacional e não mais experimental.
Ressalte-se, ainda, que, como informar é um negócio, a concorrência
entre os meios gera o efeito patológico da “informação circular” (ou bola de
neve), homogeneizando a informação jornalística, pois, para saber o que se vai
noticiar, é preciso saber o que os outros estão noticiando, para não ficar atrás.
Assim, um mesmo assunto passa a ser veiculado por quase todos os meios, que
não querem perder seus clientes. Os meios, portanto, autoestimulam-se, ex-
citam-se uns aos outros. Veja-se, como exemplo, o Caso Monica Lewinsky,
que foi noticiado por um longo período por todos os meios de comunicação
do globo terrestre.
Portanto, se a televisão hoje emite uma informação e a imprensa escrita e
o rádio a retomam, o que acontece por causa da informação circular, já se tem
o suficiente para tê-la como verdadeira. O fato é verdadeiro simplesmente
porque os outros meios o repetem, confirmando-o. Ademais, que outras formas

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116 VINICIUS DE TOLEDO PIZA PELUSO

possui a sociedade para averiguar a veracidade, ou não, se não se pode comparar


uns meios de comunicação com os outros, pois, se todos dizem a mesma coisa,
não há possibilidades de se descobrir o que realmente se passa, ante uma total
ausência de critérios de apreciação? A realidade, assim, é facilmente reconstruí-
da, ou mesmo construída, de acordo com a vontade dos meios, que impõem
a sua visão do mundo, a sua problemática, o seu ponto de vista, enfim, o que
consideram importante. Tal fato pode causar falsas idéias e representações da
realidade nos receptores, inclusive podendo estar carregada de implicações
políticas, que, somadas à hipersensibilidade, podem causar medos, fobias e
fantasias na sociedade receptora.
Quanto aos programas televisivos, sem a menor dúvida, os mais impor-
tantes e que mais fazem sucesso são os telejornais,11 que podem ser conside-
rados os “reis” da programação, já que milhões de pessoas os assistem todas
as noites, tendo-os como fonte única de informação, o que os transforma
em um monopólio da formação de cabeças. Tal situação é de sabença por
parte dos políticos que fazem de tudo para ocupar parte desse espaço, por
ser pólo de atração de eleitores, tanto que vulgarmente esse espaço é conhe-
cido como “palanque eletrônico”. Eles são, como já mencionado, verdadei-
ros shows hollywoodianos. Os telejornais têm como características básicas
serem feitos para distrair e não informar, são curtos, eis que o telespectador
deve assisti-los por inteiro, sendo que as notícias são fragmentadas, para
distrair o receptor, e descontextualizadas, dando-se prioridade, como se
sabe, às imagens violentas. Os fatos noticiados são impostos ao telespecta-
dor, eis que são impostos aos produtores, que, por sua vez, são impostos
pela lei de mercado, ante a existência da concorrência dos demais canais e
meios de informação (rádio, jornais, revistas). Dentro de sua estrutura, exis-
tem os chamados “âncoras”12 (bustos parlantes), que são as estrelas do show,
já que o público confia neles: o que eles dizem é verdade, pois ele é meu
amigo — está dentro do meu lar —, além do que, eles dizem exatamente o
que eu quero ouvir, fazendo com que as imagens ganhem dimensão huma-
na. Eles, de vez em quando, emitem algumas curtas opiniões. Não pode-
mos nos esquecer, ainda, de uma figura ainda mais pitoresca, os Fast Thin-
kers13, ou comentaristas, que são pseudo-pensadores que, supostamente,

11
Veja-se, como exemplo, o Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão, que se encontra no ar há 20 (vinte) anos.
12
Outro exemplo é o “belo” e “harmonioso” casal que apresenta o Jornal Nacional, bem como o incisivo Bóris
Casoy no Jornal da Rede Record.
13
Como exemplo, também no Jornal Nacional, o intelectual Arnaldo Jabor.

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SOCIEDADE, MASS MEDIA E DIREITO PENAL: UMA REFLEXÃO 117

pensam em velocidade acelerada — o programa é curto —, apresentando


idéias feitas, banais, comuns, convencionais, que são facilmente aceitas e
interiorizadas por todos os receptores, fazendo com que a comunicação seja
instantânea, mas sem conteúdo, e que, por sua banalidade, são comuns aos
receptores e ao emissor. Afinal, a própria televisão lhes dá “autoridade” —
se está no ar, ele deve ser importante, um “figurão” — e não a vida real. Por
fim, é inegável que suas opiniões criam e influenciam a opinião pública.
Dessa forma, tendo em vista todos os fatos até agora já mencionados, na
sociedade atual, insegura e passiva, os meios de comunicação de massa, espe-
cialmente a televisão, manipulam as informações por razões de mercado ou
mesmo ideológicas e, portanto, a própria realidade, já que o homem moderno
a conhece por intermédio desses meios, especialmente através de notícias e
imagens violentas — que são as que mais vendem —, causando e aumentan-
do o medo nas pessoas/espectadores, que, por sua vez, não têm condições de
analisar criticamente os fatos que lhes são impostos pela ótica mediática, ocor-
rendo que os políticos têm plena consciência de tal sistemática e a utilizam
para imposições de ideologias que, magicamente, iriam resolver as ansiedades
e medos da população — eleitores em potencial. Por outro lado, os próprios
meios de comunicação, sabendo disso, de sua força motora, influenciam os
políticos a tomarem medidas para resolverem os problemas que são aponta-
dos pela sua programação, que, por fim, concretizaria a teoria da profecia que
se auto-realiza, ou seja, eu mostro algo como um problema e o Estado reage a
ele; portanto, o problema é verdadeiro. A profecia se realizou.

IV – O Direito Penal

Como visto, os fatos violentos — que geralmente significam condutas


criminosas — são as melhores mercadorias colocadas à venda pelos meios de
comunicação de massa, especialmente a televisão, por intermédio dos telejor-
nais, pois, em uma sociedade insegura por natureza, os delitos violentos são as
formas delitivas que mais fascinam as pessoas e as que valem a pena veicular e
informar. A mídia, portanto, apresenta o “problema” e a sociedade, por sua
vez, quer a resolução.
Tal fato, inegavelmente, muda a realidade da criminalidade, influindo
na criação ou vigência fática de uma norma penal, pois, quando se pensa em
segurança, imediatamente vem à cabeça das pessoas comuns a imagem do

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 107-121, janeiro/junho - 2003


118 VINICIUS DE TOLEDO PIZA PELUSO

Direito Penal, que é o direito por excelência. É ele que vai resolver todos os
problemas sociais envolvidos com a insegurança coletiva, criando-se, assim,
uma falsa ilusão de eficácia do sistema penal. Sem qualquer dúvida, ante esses
fatos, ocorre a expansão desse sistema como forma de solução dos conflitos
sociais geradores de risco e insegurança — sociedade do risco — e tal expan-
são causa efeitos patológicos no Direito Penal.
Dentre os vários efeitos patológicos, encontra-se a funcionalização do
sistema penal. O Direito Penal e todo o seu instrumental repressor passam
a ser utilizados para a consecução de fins políticos, que acabam se tornando
um dos fins centrais do mesmo, justificando-se na opinião pública e na sua
demanda por segurança, provocada pelos meios de comunicação. Essa fun-
cionalização geralmente opera mediante a eliminação e redução das tradicio-
nais garantias materiais e processuais do acusado, já que elas podem pertur-
bar os fins políticos almejados, bem como, entre outras, no abuso da cons-
trução de tipos penais como crimes de perigo abstrato, aumento no sistema
de interesses preventivos, utilização de legislação simbólica, antecipação de
momentos consumativos clássicos, penalização de condutas irrelevantes,
alargamento e agravamento das penas, maior punibilidade para o desvalor
da conduta em detrimento do desvalor do resultado etc. Todas essas atitu-
des levam a que o Direito Penal passe a ser utilizado pelo Estado não como
última ratio, mas, sim, como prima ratio, desvirtuando a sua real finalidade
e aplicabilidade.
Por sua vez, além das questões acima mencionadas, a funcionalização
ocorre por meio da utilização da função simbólica e da função promocional.14
A função simbólica é utilizada pelo legislador como um efeito mera-
mente psicológico sobre a sociedade, não tendo lugar na realidade exterior,
pois a opinião pública tem a falsa impressão tranqüilizadora de um legisla-
dor atento aos problemas e decidido, satisfazendo a todos, e de que o pro-
blema está sob controle. Da mesma forma, o legislador tem a impressão de
ter, realmente, feito algo útil. Assim, ele cria novos tipos penais e incremen-
ta desnecessariamente as penalidades existentes, derrogando, ainda, garan-
tias materiais e processuais dos acusados. Utiliza o Direito Penal para produ-
zir impacto psicossocial, e não para proteger os bens jurídicos fundamentais

14
V. GARCIA-PABLOS, Antonio. Derecho Penal – Introduccion, Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 1995;
FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos, São Paulo: Ed. RT, 2000.

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SOCIEDADE, MASS MEDIA E DIREITO PENAL: UMA REFLEXÃO 119

para a convivência social, pervertendo o sistema punitivo, que passa a ter


uma conotação educativa ou ético-social. Geralmente esse subterfúgio le-
gislativo é utilizado em momentos de crise econômica, social e política, já
que estes geram maiores sentimentos de insegurança, que podem ser mani-
pulados politicamente por uma política criminal hipócrita, inútil e despro-
porcional. Como essas medidas foram criadas para satisfazer meras expecta-
tivas por parte da sociedade insegura, é claro que não funcionarão e não
resolverão os problemas que as geraram, tornando-se inúteis, o que, a mé-
dio prazo, desacredita o próprio sistema penal.
Já a função promocional do Direito Penal é utilizada para que este atue
como um poderoso instrumento de mudança e transformação social, não
bastando que, apenas, se limite a consolidar o status quo, passando a ser um
motor em pleno funcionamento que dinamize a ordem social, promovendo
as mudanças estruturais necessárias. Assim, ocorre a neocriminalização de
vários setores sociais que, antes, estavam ausente do núcleo de proteção das
normas penais (exemplo: crimes contra a ecologia, contra minorias e mu-
lheres, crimes econômicos etc.), que demonstram a precavida atitude de
um legislador atento, ante as necessidades do momento sociocultural. Essa
função, como se sabe, também perverte o princípio da intervenção mínima,
já que não cabe ao Direito Penal resolver as tensões experimentadas por
toda a sociedade entre as forças do status quo e as que promovem a mudança,
pois o mesmo deve apenas proteger bens jurídicos fundamentais indispen-
sáveis à convivência social e que são, portanto, objetos de um amplo con-
senso ocorrido nas relações dessa sociedade. Não pode o Direito Penal im-
por esse consenso, mas, apenas, protegê-lo. Desnecessário, por fim, men-
cionar que essa função também é ineficaz, desacreditando todo o sistema
repressivo.
Assim colocadas as coisas, verifica-se que, como essas funções são inefica-
zes, não funcionam, já que exigem do sistema penal fins que este não pode
realizar, o próprio sistema fica desacreditado perante a sociedade, causando
uma maior sensação de insegurança em uma sociedade já insegura por natu-
reza, acarretando um verdadeiro círculo vicioso, já que toda a problemática
aqui desenvolvida irá se repetir, ou seja, a sociedade amedrontada será mani-
pulada pelos meios de comunicação de massa, com a conseqüente utilização
errônea do Direito Penal por meio dos legisladores, que, por sua vez, não
funcionará, acarretando uma maior insegurança que irá influenciar uma so-
ciedade já insegura que...ad infinitum...

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 107-121, janeiro/junho - 2003


120 VINICIUS DE TOLEDO PIZA PELUSO

V - Bibliografia
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122
123

Responsabilidade civil
do advogado

Ênio Santarelli Zuliani


JUIZ DE DIREITO SUBSTITUTO EM SEGUNDO GRAU NO ESTADO DE SÃO PAULO
E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE PAULISTA (UNIP) – CAMPUS RIBEIRÃO PRETO

“O direito que se denega, a lei que se vilipendia, a justiça


que se ultraja, têm no advogado o instrumento de sua restauração”
(Carvalho Neto – Advogados)

SUMÁRIO: 1. Assume dever de diligência, e não de


resultado - 2. Razões de questionamento sobre suas
atividades e nenhuma influência da inversão do ônus
da prova prevista no artigo 6º, VIII, da Lei 8.078/90
- 3. Abuso do direito de o cliente denunciar advoga-
dos e jurisprudência censória - Perda de uma chance e
a sistemática do agravo de instrumento - 4. Dano
moral - 5. Responsabilidade objetiva da sociedade de
advogados - 6. Execução impossível - 7. Risco da exe-
cução de títulos de créditos emitidos para retribuição
dos serviços - 8. Imunidade judiciária - 9. Atuação na
Justiça Criminal e em situações de prisão civil por
inadimplência de dívida alimentícia pretérita - 10.
Prescrição - 11. Sugestão de dispensa da atuação em
causa própria - 12. Bibliografia

1. Assume dever de diligência, e não de resultado

C
onsta que o primeiro advogado a obter licença para atuar na vila de
São Paulo foi Antônio Camacho, empossado por provisão assinada
por d. Francisco de Souza, de 22 de fevereiro de 1651, pela qual

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124 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

foram outorgados amplos poderes de defesa, no cível e no crime, “guardando


em tudo o serviço de Deus e de Sua Majestade e às partes seu direito”.1 Os advoga-
dos, que estavam presente na fundação de nossa organização judiciária, assu-
miram o dever de resguardar o direito das partes. A responsabilidade profis-
sional, portanto, é fato congênito.
O novo Código Civil estabelece, em seu artigo 951, o dever de reparar
danos provocados por ilícito da atividade profissional, uma nova versão do
substituído artigo 1545, selecionando como destinatários os médicos, cirur-
giões, farmacêuticos e dentistas. Embora não referidos em artigo específico,
os advogados recepcionam o conteúdo dessa mensagem normativa, porque,
da mesma maneira com o que ocorre com esses profissionais da área de saúde,
ficam vinculados ao cliente, em face dos serviços que prestam. Carvalho de
Mendonça incluiu, quando analisou a hipótese de responsabilidade de médi-
cos e outros, por danos decorrentes de negligência ou imperícia profissional,
“o advogado que por maus conselhos ou incapacidade comprometa direitos de seu
constituinte”. 2
Esse paralelo que se faz da atividade do médico e do advogado proporcio-
nou o seguinte comentário de Herotides da Silva Lima:3 “se a imperícia, a
imprudência e a negligência do médico podem ocasionar ao indivíduo a perda
parcial ou total da personalidade física, no advogado geram danos ainda maiores,
que se traduzem no despejo do patrimônio, da liberdade e da honra, sem as quais
a vida física é socialmente insustentável; é até insustentável”.
O advogado não assume, salvo em particulares tarefas, obrigação de re-
sultado,4 mas, sim, de diligência; “un obbligo di diligenza e non di resultato”,
afirmou Eduardo Bonasi Benucci.5 Cumpre ao advogado defender as partes e
dar conselhos profissionais, obedecendo aos deveres do mandato, como esta-
belece o art. 692, do Código Civil de 2002: “o mandato judicial fica subordi-
nado às normas que lhe dizem respeito, constantes da legislação processual, e,
supletivamente, às estabelecidas neste Código”.
Portanto, quando o advogado, sem mandato judicial, for encarregado,

1
MARTINS FERREIRA, Waldemar. História do Direito Brasileiro, p. 307.
2
MENDONÇA, Carvalho de (M.I.). Doutrina e Prática das Obrigações, p. 486.
3
LIMA, Herotides da Silva. O Ministério da Advocacia, p. 108.
4
Jorge Mosset ITURRASPE cita, como exemplo de obrigação de resultado que o advogado assume, a situação em
que “se obliga a redactar un contrato de sociedade anônima” (Responsabilidad por Daños, p. 157).
5
BENUCCI, Eduardo Bonasi. La Responsabilità Civile, p. 218

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 123-176, janeiro/junho - 2003


RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 125

por exemplo, de preparar os documentos necessários para obter um visto de


saída do país, serviço encomendado por um cliente que se prepara para uma
viagem ao exterior, o profissional que aceita tal incumbência deverá resolver os
entraves burocráticos e conseguir a licença da embaixada respectiva até a data
do embarque, sob pena de responder por perdas e danos do inadimplemento
dessa relação contratual, na forma do art. 389, do CC. Em obtendo mandato
para atuação judicial ou para assessoramento jurídico, o advogado deve, se-
gundo o ilustre desembargador da Terceira Câmara de Direito Privado do
Tribunal de Justiça de São Paulo, Carlos Roberto Gonçalves:6 “ser diligente e
atento, não deixando perecer o direito do cliente por falta de medidas ou omissão de
providências acauteladoras, como o protesto de títulos, a notificação judicial, a
habilitação em falência, o atendimento de privilégios e a preferência de créditos.
Deve, inclusive, ser responsabilizado quando dá causa à responsabilidade do clien-
te e provoca a imposição de sanção contra este, na hipótese dos artigos 16 a 18, do
Código de Processo Civil”.
Os velhos processualistas reservam capítulos, em seus livros, para comen-
tários sobre a atividade dos advogados e, de forma unânime, reconhecem o
cabimento da indenização por prejuízos da atividade (dolo e culpa) e, apro-
veitando-se da doutrina incipiente, como verdadeiros formadores de concei-
tos, exigiam deles certos predicamentos, como a probidade, não requererem
contra lei expressa ou reterem os autos além do prazo permitido,7 abstendo-se
de ações que possam “prostituir sua honrosa profissão”.8 Nessa última obra,
explica-se o porquê da expressão “patrono”, ainda em moda para designar os
advogados; “porque tomavam debaixo de sua proteção a seus clientes, e se consa-
gravam à defesa de seus interesses e da sua honra, vida e liberdade”.9
Joaquim Ignácio Ramalho, o Barão de Ramalho, que atuou na defesa
de Mauá, até 1875, em ação relacionada com a Estrada Santos a Jundiaí,10
escreveu, primeiro, o livro Practica Civil e Commercial (1861), anotando
que “a advocacia é uma indústria”.11 Na Praxe Brasileira, editada oito anos
depois, corrigiu o texto para “a advocacia é uma profissão”.12 Contudo, nas

6
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil, p. 383.
7
MONTEIRO, João. Programa do Curso de Processo Civil, I/289, § 60.
8
PINTO, José Maria Frederico de Souza. Primeiras Linhas sobre o Processo Civil Brasileiro, I/54, § 115.
9
PINTO, José Maria Frederico de Souza. Op. cit., p. 50, § 50.
10
MAUÁ, Visconde. Autobiografia – Exposição aos Credores, p. 264, nota 252.
11
RAMALHO, Joaquim Ignácio. Practica Civil e Commercial, p. 16.
12
RAMALHO, Joaquim Ignácio. Praxe Brasileira, p. 75.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 123-176, janeiro/junho - 2003


126 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

duas oportunidades, repetiu que o advogado deve indenizar o prejuízo que


causar à parte, por dolo, culpa ou ignorância, advertindo que é obrigado a
requerer conforme as leis, “abstendo-se de interpretações frívolas e sofísticas”.
Em se admitindo, como argumenta Frederico Marques, que o citado pro-
fessor da Faculdade de Direito de São Paulo foi responsável pela ruptura da
subserviência jurídica às Ordenações do Reino de Portugal, que ditavam o
caminho dos nossos processos,13 não se tem dúvida de que a advocacia sur-
giu no Brasil independente com regras deontológicas claras e expressamen-
te definidas.14
Um notável advogado que, por sua reconhecida autoridade, faz insuspei-
to o seu texto, escreveu o seguinte:15 “Não se pode contar nem entender a histó-
ria de um país sem destacar o papel desempenhado pelos advogados. Se não eles
que, necessariamente, criam todas as técnicas de controle social, cabe-lhes sempre
fazer com que tais técnicas funcionem no interesse social. Assim, as idéias gerais
lançadas pelos filósofos ou pelos políticos só se transformam em realidades concretas
em virtude do trabalho do advogado em prol dos interesses individuais ou coletivos”.
Realmente. O advogado detém a capacidade postulatória (art. 36, do
CPC e 133, da CF). No Juizado Especial (Lei nº 9.099/95), as partes pode-
rão dispensar advogados em ações até vinte salários mínimos (art. 9º), de
modo que, acima desse teto e para interpor recursos, a presença do advogado
é obrigatória (art. 41, § 2º). Quando o Tribunal de Justiça de São Paulo, em
acórdão que relatei, concedeu mandado de segurança para que advogado não
sofresse restrições de acesso aos autos (ainda que com os serventuários alegan-
do que necessitavam manusear o processo para preparar a audiência designa-
da para data próxima), assinalei (MS nº 173.075-4, in JTJ-Lex 232/276 e
Boletim AASP 2226, p. 1.941):

13
MARQUES, José Frederico. O Direito Processual em São Paulo, p. 57.
14
Os advogados brasileiros não se deixaram influenciar por um começo de vida profissional nada gratificante e,
cientes de que o primeiro advogado a “pisar em nossa terra” viera cumprir pena de degredo (conforme informa
Herotides da Silva Lima, op. cit., p. 79), conseguiram reverter a péssima primeira formação, constituindo, com
trabalho digno, uma classe profissional que conquistou respeito nacional. O que constava das Ordenações — e
que reproduzo por curiosidade — permaneceu em um passado que não nos desonra: “E se algum advogado ou
Procurador tiver recebido de alguma parte dinheiro, ou outra coisa para advogar ou procurar sem feito e
demanda, ou depois que for feito Procurador, e o aceitou, posto que ainda tenha dinheiro recebido, tendo já
sabido os segredos da causa, depois advogar, procurar ou aconselhar, público ou secreto de outra parte; e bem
assim o que receber cousa alguma da parte, contra quem procurar, além de ter havido por falso, será degredado
para sempre para o Brasil, e nunca mais usará do ofício – Fontes: Ordenações Manuelinas, do Livro 5º, título 55,
e Extravagante n. 9, titulo 22, 4ª parte” (Ordenações Filipinas – texto preparado por Fernando H. Mendes de
Almeida, p. 230).
15
WALD, Arnoldo. “A advocacia de empresa”, in: Estudos e pareceres de Direito Comercial, p. 390

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 127

“Consta do ensaio de João Mendes Júnior 16 que ‘Cícero denomina militia


urbana a classe dos advogados, tabeliães ou notários, escrivães e mais auxiliares da
justiça; e, quanto aos advogados, essa denominação ficou consagrada pelos impera-
dores Leão e Anthemius na L. 14 do Cód., livr. II, ti. VII, de advocatis diversor
judic.’, os quais, demonstrando que os advogados não são menos úteis à sociedade
do que os que combatem em defesa da pátria, lhes deram privilégios de militares
que até hoje não foram revogados.
É o advogado, afirma Manuel Alceu Affonso Ferreira (‘advocacia, essa esque-
cida’, in: Revista do Advogado, AASP 56/84) ‘quem atende ao cliente, quem o
acompanha no processo, quem com ele vive as delícias da vitória e sofre as agruras
da derrota. É o advogado quem, impotentemente, o ouve reclamar do valor das
custas, ou da demora no julgamento. É o advogado quem se vê constrangido a
tentar explicar-lhe que, à fase processual do conhecimento, seguir-se-á a da execu-
ção, com os incidentes e as delongas que tornarão saudoso o período anterior’”.
Com absoluta razão, o preclaro dr. Ruy Celso Reali Fragoso,17 defensor das
prerrogativas legítimas dos advogados, quando afirma que a consciência desse
profissional é o código que regula sua responsabilidade: “nós nunca nos compro-
metemos ao vencimento de causa, damos aos nossos clientes o nosso juízo, com nosso
conselho, a nossa convicção. Os limites e contornos da atuação do advogado encon-
tram-se, assim, sob a égide da honra e do ônus: advogar é viver sob tais ditames”.
Dentro desse contexto, serão examinadas algumas situações em que o
trabalho do advogado enseja questionamentos. Cumpre registrar que a res-
ponsabilidade civil do advogado é de natureza contratual, como enfatiza An-
tônio Chaves,18 com uma distinção interessante: os erros de fato, ainda que
não graves, vinculam o advogado; enquanto os erros de direito com semelhan-
te efeito seriam unicamente os graves, “pois evidenciam ser desidioso, relapso,
descuidado, desatento, desinteressado no estudo da causa ou do direito a ser aplica-
do, ou mesmo ignorante da lei aplicável, ou dando-lhe interpretação absurda, fato
inadmissível, porque, como qualquer profissional, o advogado deve conhecer as
regras elementares de seu ofício”.
A maioria maciça da advocacia é composta de bacharéis competentes,

16
MENDES JÚNIOR, João. “As formas da Praxe Forense”, in: Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, XII/53.
17
FRAGOSO, Ruy Celso Reali. A Advocacia à Luz da Constituição Federal de 1988, apud Constituição Federal de
1988, p. 507.
18
CHAVES, Antonio. Tratado de Direito Civil, vol. III, p. 325.

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128 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

habilidosos, estudiosos e, principalmente, honestos. Este texto não é redigido


para os juristas e, muito menos, para a minoria que desgasta a classe, mas,
sim, para investigar, a partir de fenômenos jurídicos isolados, aspectos legais
dessa profissão cada vez mais emergente e sobre a qual a intensa publicidade
dos julgados repercute na avaliação do desempenho. Cada site de jurispru-
dência que se inaugura na rede de computadores (internet) compromete a
credibilidade da versão que os profissionais despreparados usam como descul-
pa do mau desempenho (ignorância da evolução jurisprudencial), frente à
inadequação da escusa diante do amplo acesso aos julgados recentes e antigos.
O computador facilitou a vida do advogado e aumentou o peso de sua res-
ponsabilidade para o bom termo da diligência assumida. Afinal, é obrigação
do advogado “agir com o maior zelo na defesa das causas confiadas ao seu patro-
cínio. Cumpre-lhe utilizar todos os recursos da experiência, saber e atividade, para
conseguir que ao cliente se faça inteira justiça”.19
A ordem jurídica é manipulável através do método cognitivo. O melhor
uso das leis se faz pelo conhecimento articulado. O advogado é habilitado a
atuar em defesa de direitos porque obtém apuro técnico (bacharelato) para
esse mister. Existe o lado “teórico” e o aspecto “prático”. Os cientistas do
direito são os responsáveis pela constante transformação da norma jurídica,
fazendo-a acompanhar os anseios das exigências sociais, enquanto que os ope-
radores do direito se encarregam da sua aplicação, observando a lógica dos
julgados.20 Antigamente, quando saia do prelo um repertório de jurisprudên-
cia, festejava-se o acontecimento como uma obra inédita. Hoje as revistas são
mensais, semanais e existem boletins diários, abastecendo o profissional de
todas as novidades possíveis e imagináveis declaradas pelos tribunais. Em
determinados pontos da prática forense, a intensidade dos julgados cria mo-
delos de atuação prática e, mesmo que os enunciados que deles decorrem não
mereçam súmula, a incidência reiterada lhes elevam o sentido a algo próximo
de imperativo categórico.21 O advogado manipula a jurisprudência de acordo
com os interesses do seu cliente; é, portanto, um mecanismo de apuro técnico
e de domínio indispensável ao profissional responsável.

19
LIMA, Herotides da Silva. O Ministério da Advocacia, op. cit., p. 115.
20
Pietro COGLIOLO afirmou que o “trabalho da jurisprudência se torna em máxima parte lógico“ (Philosophia do
Direito Privado, p. 166).
21
PIERO CALAMANDREI afirmou que “las máximas de jurisprudencia adquirien de hecho autoridad similar a las de
las leyes“ e, finalizou: “máximas consolidadas; nadie, ni abogados ni jueces, se atreven ya a apartase de ellas“
(Estudios Sobre el Proceso Civil, p. 232).

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 129

Depois de admitir que a jurisprudência cria um modelo social com fun-


ção de estrutura jurídica, integrando o esquema de interpretação construtiva
da norma legal, Miguel Reale lembrou que a sua influência repercute nos
domínios da pesquisa científica a cargo do advogado, encarregado de equacio-
nar, na petição inicial, “a solução normativa correspondente ao campo de interesse
que ele representa na ação”.22
Poder-se-ia objetar que a jurisprudência não possui o poder da obrigato-
riedade, o que não deixa de ser verdadeiro. Contudo, a própria norma jurídica
não ostenta esse título, embora de ordem pública. Os julgados não são nor-
mas cogentes na acepção pura desse vocábulo, mas, nem mesmo por isso,
deixam de cumprir a missão que deles se espera, qual seja, a de unificação da
ordem jurídica. Os juízes observam a jurisprudência e, com base nela, elabo-
ram o direito vigente; para os advogados tornou-se questão de prudência
observá-la. O insuperável Alvino Lima23 encerrou uma polêmica que assumiu
em defesa da jurisprudência, anotando: “Perscrutar, pois, a vida; sondar os dita-
mes da consciência coletiva; conhecer as necessidades sociais e econômicas; sentir a
efluência destas normas fatais impostas pela própria organização social num dado
momento é dever do juiz para poder aplicar a norma jurídica, dando-lhe vigor,
restringindo-a, ampliando-a, adaptando-a, modificando-a”.
Se a jurisprudência alumia e inspira o jurista, afastando-o da incerteza
para guiá-lo “à trilha certa da verdade”,24 perde crédito o advogado que igno-
ra a evolução dos julgados. No discurso que proferiu no dia 11 de agosto de
1940, Antão de Moraes afirmou que “jurista que não lê jurisprudência é como
médico que cura pelos livros sem freqüentar hospitais”.25 Manteve-se atual a ad-
vertência de Eduardo Couture: “O Direito está em constante transformação. Se
não o acompanhas, serás cada menos advogado”.26
Seguindo a técnica de ilustrar o pensamento com exemplo, aproveita-se a
controvérsia da legalidade de cláusula, de seguro ou plano de saúde (Lei nº
9.656/98 e artigo 757, do Código Civil de 2002), que limita tempo de inter-
nação na UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Apesar de Cláudia Lima Marques
informar divergência jurisprudencial a esse respeito,27 é inquestionável, no

22
REALE, Miguel. “Jurisprudência e doutrina”, in: Questões de Direito, p. 21.
23
LIMA, Alvino. “A jurisprudência – fonte do direito”, in: Estudos de Direito Civil, p. 63.
24
MONTEIRO, W. de Barros. “Da jurisprudência”, in: Revista Forense, 202, p. 374.
25
MORAIS, Antão de. “A má redação de nossas leis – juristas e jurisprudência“, RT 762/781.
26
COUTURE, Eduardo. Os Mandamentos do Advogado, p. 21.
27
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor, p. 470.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 123-176, janeiro/junho - 2003


130 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

entanto, que os tribunais não aprovam essa limitação (o TJ-SP, por acórdãos
publicados na RT 723/346 e 726/248 e, em edição especial, “Seleções Jurídicas
ADV”, da COAD, setembro-outubro de 2000, p. 29 e o STJ, por intermédio
de acórdãos publicados na Revista do Superior Tribunal de Justiça 121/289, 148/
443), no Boletim da AASP, nº 2257, p. 2.183 e na Revista Síntese de Direito Civil
e Processual Civil nº 16, p. 79, verbete nº 1670. Portanto, a cláusula em
referência é tida como abusiva, na forma do art. 51, IV, da Lei nº 8.078/90,
conforme anotou o ministro Ruy Rosado de Aguiar, referindo-se a julgado do
TJ-SP, de 1994, no excelente ensaio que reproduz palestra realizada em Buenos
Aires, no IV Congresso Internacional sobre Danos.28
Vamos supor que os parentes do doente internado na UTI (sem recursos
próprios para suportar as despesas da internação), necessitando de estímulo
para agirem em juízo diante da recusa da seguradora em cobrir as despesas
depois de vencido o prazo estabelecido contratualmente, procuram um advo-
gado para as providências legais que a urgência do caso reclama. Pensem na
hipótese de o advogado, por não conhecer a proteção legal outorgada pela
jurisprudência, garantir aos parentes que o contrato é lei entre as partes (pacta
sunt servanda) e que a regra escrita (de quinze dias) deve ser respeitada, inclu-
sive pelo Poder Judiciário, arrematando que nenhuma providência é cabível
em favor da recuperação do doente. Os parentes saem, desolados, do consul-
tório do advogado e, por falta de recursos, autorizam a interrupção do trata-
mento intensivo. O doente morre e, no enterro dele, uma pessoa bem infor-
mada afirma que o morto teria direito de cobertura na UTI, por intermédio
de medidas cautelar e ou provimentos emergenciais. Os parentes, indigna-
dos, cogitam de exigir do advogado a indenização, associando a falha do asses-
soramento jurídico ao evento morte.
Essa é uma causa de prognóstico difícil. A questão do nexo causal é com-
plexa e controvertida, envolvendo uma complicada prova da causa adequada
ou idônea do dano. Porém, como, em termos de responsabilidade civil, a
causalidade adequada também se forma devido a “una omisión de la acción que
el obrigado a indemnizar estaba juridicamente obligado a realizar”,29 é forçoso
admitir que o dever jurídico do advogado se vincula ao patrimônio da vítima
de forma mais ostensiva e, com isso, o rigor da análise do elemento “culpa”
tende a se arrefecer, para que a justiça da reparação de danos encontre um

28
AGUIAR JR, Ruy Rosado de. “Responsabilidade civil do médico”, in: Direito & Medicina, p. 167.
29
KARL LARENZ. Derecho de Obrigaciones, I/203.

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 131

culpado, sem o que não se materializa. Os juristas conservadores certamente


não admitem esse vínculo e, por certo, vão argumentar que, em se admitindo
a responsabilidade do advogado em casos semelhantes, o exercício da profis-
são passaria a conter um risco exagerado.30
O assunto é árido e angustiante. O advogado se tornou refém da pesqui-
sa jurídica e do mecanismo da teoria do risco criado, apropriada para vencer o
dano. O insuperável Alvino Lima afirmou que é preciso avançar “sem desman-
telar e desencorajar as atividades úteis” e, para “tal conseguir não devemos nos
encastelar dentro de princípios abstratos, ou de preceitos envelhecidos para a nossa
época, só por amor à lógica dos homens, à vaidade das concepções, ou à intransi-
gência de moralistas de gabinetes”.31 O erro do advogado, nesse setor de meto-
dologia de informação jurisprudencial, poderá ser conceituado como de di-
reito e grave,32 sugerindo o dever de indenizar. Sem dúvida de que o trabalho
do advogado do futuro, já estressante, constitui um desafio diante da instabi-
lidade dos julgados, de modo que a obrigação de se atualizar deixou de ser
motivo de captação de clientela; virou seguro de responsabilidade civil.

2. Razões de questionameto sobre suas atividades


e nenhuma influência da inversão do ônus da prova
prevista no artigo 6º, VIII, da Lei nº 8.078/90

Os advogados, tal como os médicos e demais profissionais liberais, estão


no epicentro da reação comportamental dos clientes insatisfeitos com a pres-
tação dos serviços. As reclamações são, na maioria, frutos da ignorância dos
leigos com as dificuldades da tramitação dos processos. O advogado não é o
responsável pela defasagem do bem de vida objeto do litígio, e que, durante a
longa trajetória até o final do processo, vê esvair a sua vantagem econômica
primitiva ou arrefecer o sentimento de estimação. Essa causa não é considerada

30
CUNHA GONÇALVES afirma que o conselho que o advogado emite, de boa-fé, exprimindo sua convicção, não
gera responsabilidade do advogado pelo mau resultado e argumenta: “O conselho não é necessariamente
determinante da resolução do cliente, que, em casos melindrosos, deve ter a cautela de ouvir mais algumas
opiniões, e, em todo o caso, tem a liberdade de seguir, ou não, o conselho que lhe foi dado” (Tratado de Direito
Civil, São Paulo: Max Limonad, vol. XII, tomo II, p. 977). Forçoso convir que a situação que simulei não configura
“simples conselho”; ademais, pela urgência, não era possível exigir que os parentes consultassem outro advogado.
31
ALVINO LIMA. “Da culpa ao risco”, RT, 1938, p. 227.
32
Para que a culpa contratual proporcione dever de indenizar necessita de ser grave (ou lata), definida como
“quella che deriva dall´omissione di quela diligenza che neppur l´uomo ordinariamente trascurato dimenticherebbe
di osservare” (CHIRONI, Elementi di Diritto Civile, p. 100).

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132 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

no momento de lamentar o resultado, que não foi alcançado em sua plenitu-


de. Contudo, há, como em todas as dimensões econômicas, erros gravíssimos
que comprometem a função dos serviços de advocacia, de forma a transformar
o profissional, encarregado de proteger ou recuperar direitos do cliente, em
agente responsável pela concretização do dano.
Em determinadas situações,33 o cliente tem razão em reclamar. Pontes
de Miranda34 admitiu a responsabilidade do advogado pelo dano que cau-
sar à parte por mau desempenho profissional, afirmando que perder prazo é
dolo (omissão); requerer contra o interesse da parte é dolo (ação) e, como
exemplo de ignorância, cita o “deixar de agravar, porque não sabe que do
despacho pode agravar”.
Na monografia que se tornou clássica (O Advogado), Mário Guimarãesa e
Souza afirmava que “o advogado tem muitos deveres e poucos direitos” (p. 249). Esse
enunciado ganha relevo na atualidade, conforme asseverou o Tribunal de Al-
çada de Minas Gerais (Ap. nº 327.025-7, in: Informativo Semanal ADV, da
COAD, nº 51/2001, p. 833), servindo de fundamento para a condenação de
advogado que, atuando em defesa do credor de título extrajudicial, não impug-
nou um recibo de quitação falso que o devedor apresentou, o que motivou o
acolhimento dos embargos à execução. Para o egrégio tribunal mineiro, deveria
o advogado avistar-se com o cliente e indagar dele a veracidade da assinatura,
pois, se cumprisse esse ritual simples, teria a resposta adequada para invalidar
o documento. Não encontrei argumentos para contradizer o julgado.
E as ações de responsabilidade civil em face dos advogados estão se mul-
tiplicando. Essa onda de questionamentos não chegou por acaso; decorre da
própria mercantilização da atividade e da péssima qualidade do ensino jurídi-
co, que, obviamente, termina refletindo no exercício forense. Os advogados
atuam como empresas prestadoras de serviço, e o cliente, sentindo o trata-
mento impessoal, anima-se a exigir resultados favoráveis (e não os prováveis)
e, mais politizado pelo complexo de direitos sociais propagados e disponíveis,
não titubeia em exigir, no Judiciário, a reparação civil quando sente ou ouve
conselhos (não faltam críticas) de falha ou prestação defeituosa do serviço

33
Para se ter certeza, cumpre conferir ementa de acórdão do TJ-DF (Ap. 53.162/99), des. JOÃO MARIOSA, in:
Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, nº 5, p. 113, verbete 506): “Age com negligência o profissional
que, em sede de reclamação trabalhista, apresenta defesa trocada, não se exime do erro e nem comparece à
audiência de conciliação, ensejando a revelia e a conseqüente condenação da parte que o contratou“.
34
MIRANDA, Pontes de. Manual do Código Civil Brasileiro, vol. XVI, 3ª parte, tomo I, p. 100.

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 133

contratado. O dr. Carlos Miguel Aidar, presidente da Seccional Paulista da


OAB, escreveu para o jornal Folha de S.Paulo, edição de 4 de julho de 2002,
A-3, o artigo “O ensino jurídico brasileiro”, cuja parte final convém transcrever:
“Grande parte das instituições de ensino jurídico, hoje, não forma, não pesquisa,
não tem compromissos sociais e profissionais. E, desde já, podemos detectar os pre-
juízos que os maus profissionais do direito causam em sua atuação, a despeito de
todos os “filtros”. Tornam-se advogados sem a devida qualificação, podendo impor
significativos danos a seus clientes”.
O resultado do Provão, critério de classificação das faculdades que se faz
anualmente por avaliação dos alunos, lastimavelmente, confirma a verdade do
discurso, pois “os números do Provão/99 atestam que os 229 cursos jurídicos e os
41.963 graduandos obtiveram, numa escala de 0 a 10, uma nota 4,24 como
média, isto é, bem distante de um patamar desejável. Por oportuno, cabe registrar
que, em 1996, a média foi de 5,62, em 1997, de 4,10 e, em 1998, de 3,59”.35
O pior é quando o advogado recém-formado encara uma missão para a
qual não foi corretamente preparado, qual seja, a de integrar elemento da
empresa. A sociedade empresária moderna amplia seus meios de produção e
inclui, entre os novos departamentos, o jurídico, contratando profissionais
que são encarregados de dirigir o contencioso, com atuação em diversas
áreas do direito. Rubens Requião36 advertiu para a necessidade de urgente
revisão de currículos acadêmicos, sem o que não se atende essa demanda.
Contudo, a política educacional não está preocupada com esse tipo de pro-
blema, mas, sim, com a redução da carga de ensino,37 o que ensombra a
perspectiva de melhoria.
A tendência, portanto, é a de que o despreparo comprometa a eficiência
da prestação do serviço, engrossando o coro dos descontentes, com uma agra-
vante: o empresário (no caso, novo cliente), quando insatisfeito, possui voca-
ção natural para exigir a reparação civil, exatamente em virtude da análise
esquematizada das perdas e danos, o que o obriga a encontrar saídas para a
recuperação do prejuízo da sociedade comercial que controla. Essa postura

35
MELO FILHO, Álvaro. Juspedagogia: Ensinar direito o direito - OAB Ensino Jurídico, p. 38.
36
REQUIÃO, Rubens. “A advocacia e o mercado de trabalho”, apud Aspectos modernos de Direito Comercial,
Saraiva, 2º volume, p. 151.
37
No jornal da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB-Informa, de 6-10-2002, nº 26, p. 9), constou que o
STJ, por liminar deferida pelo digno ministro Franciulli Netto, no mandado de segurança impetrado pelo
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, suspendeu os efeitos do parecer 146/2002, do Ministério
da Educação, que possibilitava a redução do currículo do curso de Direito, de cinco para três anos.

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134 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

de questionamento empresarial vai contribuir para agitar a jurisprudência e


novas figuras de erro de fato e de direito dos advogados serão contextua-
lizadas. Não se põe dúvida de que se trata de efetivo controle ao desempenho
profissional do advogado.
O advogado, profissional liberal que é, integra a classe dos operadores
que se submetem a uma obrigação de meios.38 Não é possível exigir ou espe-
rar do advogado garantia de êxito de uma ação judicial. Sucede isso com o
médico,39 impossibilitado de garantir a sobrevida do enfermo aos seus cuida-
dos. Contudo, no exercício de suas funções, torna-se responsável pelos atos
que praticar com dolo ou culpa (art. 32, da Lei nº 8.906/1994).
Há quem sustente o cabimento da inversão do ônus da prova (expressa-
mente previsto no art. 6, VIII, da Lei nº 8.078/90), porque o advogado não
goza de privilégio diante de um resultado. O consumidor, sim, é que não
merece ser prejudicado na investigação do possível erro profissional40. Consi-
dero esse assunto, nessa área, irrelevante, dada a especialidade natural do juiz
que será o encarregado de decidir o litígio (art. 5º, XXXV, da CF).
A inversão do ônus da prova é assunto de direito processual;41 o juiz,
sentindo a vulnerabilidade da parte e intuindo que essa sua inferioridade
terminará prejudicando suas expectativas processuais (como a de conseguir
a prova do fato constitutivo de seu direito, tal como disciplinado no art.
333, do CPC), altera as regras do embate probatório, transferindo para o
réu a iniciativa, os encargos e a obrigação de demonstrar um fato jurídico
do seu interesse e da própria causa. A inversão é um expediente de inegável
vantagem para favorecer o consumidor nas ações em que se discute, por
exemplo, o valor das prestações em financiamentos bancários e hipotecários
(casa própria), dada a complexidade de se provar a exatidão dos cálculos de
reajustamento das parcelas. Nessa situação e até em algumas hipóteses de
erro médico, a inversão constitui a única alternativa para que o processo

38
ANDRADE, Fábio Siebeneichler de. Responsabilidade Civil do Advogado, RT 697/31.
39
No caso de médico que presta serviço de cirurgia plástica estética ou embelezadora, a obrigação, ao contrário,
passa a ter a natureza jurídica de resultado, dada a sua finalidade, conforme afirmam SILVIO RODRIGUES (Direito
Civil, p. 252), ORLANDO GOMES (Questões de Direito Civil, p. 452) , ANTÔNIO CHAVES (apud Uma Vida Dedicada
ao Direito, p. 157) e ROMANO CRISTIANO (RT 554/35). O STJ afirma que o médico que realiza cirurgia plástica
embelezadora assume obrigação de resultado (REsp. 81.101 PR, min. Waldemar Zveiter, DJU de 31.05.1999, in:
RSTJ 119/290 e REsp. 326.014 RJ, DJU de 29-10.2001, min. Ruy Rosado de Aguiar, in: Informativo de jurispru-
dência ADV, da COAD, nº 03/2002, p. 43, verbete nº 100222).
40
LÔBO, Paulo Luiz Netto. “Responsabilidade civil do advogado”, in: Revista do Direito do Consumidor, nº 34, p. 133.
41
A digna advogada, dra. Sandra Aparecida Sá dos SANTOS, afirma que “a finalidade da inversão é de facilitar
a defesa dos direitos do consumidor em juízo” (A Inversão do Ônus da Prova, p. 69).

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 135

civil consiga atingir a sua função de revelar ao juiz a realidade fática (prova
justa) que permitirá a expedição de sentença qualitativa.
O juiz, no entanto, por ser um técnico em assunto jurídico, para julgar
uma ação em que se discute a responsabilidade civil dos advogados, dispensa
o serviço de auxiliares (peritos), para que possa compreender, analisar e julgar
os imbróglios forenses que caracterizam esses processos. Um juiz prudente não
se impressiona com o velho costume que culpa os advogados pelas injustiças do
processo e, para bem formar sua convicção, deverá mentalizar a sábia advertên-
cia que Corrêa Telles fez ao § 7º da famosa Lei da Boa Razão (de 18 de agosto
de 1769), pela qual se buscou censurar as defesas deduzidas contra as Orde-
nações do Reino, quando frívolas e sofisticas: “para o advogado desempenhar bem
o seu dever, deve considerar-se no lugar do cliente, e possuir-se da mesma aflição que
o atribula, em modo que pareça advogar a sua própria causa”.42
O sistema da inversão do ônus da prova não é, pois, o maior aliado do
juiz encarregado de julgar a ação em que se pede ressarcimento de danos por
erro do advogado.

3. Abuso do direito de o cliente denunciar


advogados e jurisprudência censória
— Perda de uma chance e
a sistemática do agravo de instrumento

O novo Código Civil (art. 187) situa o abuso de direito como ato ilícito.
Suportando o advogado uma denúncia leviana, precipitada, temerária, do
cliente insatisfeito e, desde que esse expediente provoque uma mudança de
estado (para pior) no patrimônio do profissional, poderá ele reagir e exigir repa-
ração desses danos. E isso tanto se verifica em ações judiciais, como em
denúncias que são apresentadas aos Conselhos de Ética da OAB, porque, tanto
uma como a outra situação são potencialmente aptas a prejudicar a reputação e
a personalidade íntima do advogado que se prejudica com esse tipo de ilicitude.
Importante analisar que o abuso de direito não se exaure nos procedi-
mentos judiciais (lides temerárias). A doutrina refere-se ao abuso malicioso
do processo como sugestão de um tipo,43 sem exclusão do procedimento

42
CORRÊA TELLES, José Homem. “Comentário Crítico à Lei da Boa Razão”, in: Revista de Direito Civil, 3/355.
43
LIMA, Alvino. “Abuso de Direito”, in: Revista Forense, 166/47.

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administrativo que, às vezes, poderá gerar um impacto destrutivo seme-


lhante ou mais grave para a honra da pessoa injustamente acusada. Caberá
ao juiz analisar, afirmou Pontes de Miranda:44 “a opinião do que exerce o
direito ou do que se diz prejudicado nenhuma significação tem. A extensão dos
direitos é apreciada pelo juiz. Cabe ação de perdas e danos, ou a ação para
impedir que se causem danos”.
Determinado advogado foi demandado para reparar os prejuízos da su-
cumbência que uma pessoa experimentou na condição de empregadora (re-
clamada), por considerar que o resultado decorreu da deficiência dos serviços
advocatícios; provou-se, no entanto, que a reclamação foi acolhida pela con-
fissão, exatamente pela ausência da parte (autora da ação de ressarcimento de
dano promovida ao advogado) na audiência designada pela Junta Trabalhista.
A infundada ação foi rejeitada no TJ-RS (Ap. nº 70.002.877.728, in: Infor-
mativo Semanal ADV, nº 10/2002, da COAD, p. 171).
Não se tem notícia de ter o advogado, do caso examinado, promovido
ação para exigir do cliente a reparação dos danos pela lide temerária intenta-
da. Porém, não foi essa a conduta de um advogado da capital paulista, que,
prontamente, ajuizou ação de reparação de danos em face do cliente que lhe
dirigiu uma representação no Conselho de Ética da Ordem dos Advogados,
sem razão e com ofensas de ordem moral; obteve indenização igual a 70 salá-
rios mínimos (TJ-SP, Ap. nº 118.710.4/0, des. J. Roberto Bedran, j.
15.05.2001, in: Revista Nacional de Direito e Jurisprudência, vol. 19, p. 183).
Nessas hipóteses, o advogado poderá, para defesa de sua honra ou repu-
tação, romper o dever de sigilo que o une ao cliente, como se estivesse agindo em
legítima defesa.45 O advogado une-se ao cliente por vínculo de confiança, o que era
uma identidade jurídica confirmada pelos limites do mandato, de modo que, em
situações normais, não poderá o advogado, mesmo depois de findo o contrato
de trabalho, prestar depoimento revelando situações que possam comprometer
seu cliente.46 A exceção, na hipótese de exercer um direito legítimo diante do
dolo ou má-fé do ex-cliente, rompe a barreira da fidelidade aos segredos pro-
fissionais, de sorte que, desde que as informações inéditas sejam conexas com
o objeto litigioso, poderá o advogado utilizá-las para fundamento da reparação
de danos, sem receio de ofensa ao art. 5º. LVI, da CF.

44
MIRANDA, Pontes de. Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro, p. 163.
45
CENEVIVA, Walter. Segredos Profissionais, p. 60.
46
LESSONA, Carlos. Teoria General de la Prueba en Derecho Civil, IV/43.

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 137

O advogado zeloso e prudente não sonega informações de seu cliente;


recomenda-se mantê-lo atualizado sobre as fases processuais, emitindo-se se-
guidas comunicações. Suponha-se, por exemplo, que os autos se extraviem e o
advogado não providencie a restauração e muito menos informe ao seu cliente
o sucedido. Muito tempo depois, o cliente descobre e, com o direito prescri-
to, nenhuma utilidade terá a restauração dos autos desaparecidos. Esse clien-
te poderá imputar culpa ao advogado por perda da chance de ver sua preten-
são examinada pelo tribunal. O exemplo é real, e o TJ-RS, pelo hoje ministro
Ruy Rosado de Aguiar, do colendo STJ, condenou o advogado (apud, Fábio
Siebneichler, “Responsabilidade civil do advogado”, RT 697/26).
Perda de uma chance é uma expressão feliz que simboliza o critério de
liquidação do dano provocado pela conduta culposa do advogado. Quando o
advogado perde prazo, não promove a ação, celebra acordos pífios, o cliente,
na verdade, perdeu a oportunidade de obter, no Judiciário, o reconhecimento
e a satisfação integral ou completa de seus direitos (art. 5º, XXXV, da CF).
Não perdeu uma causa certa; perdeu um jogo sem que se lhe permitisse
disputá-lo, e essa incerteza cria um fato danoso. Portanto, na ação de respon-
sabilidade ajuizada por esse prejuízo provocado pelo profissional do direito, o
juiz deverá, em caso de reconhecer que realmente ocorreu a perda dessa chan-
ce, criar um segundo raciocínio dentro da sentença condenatória, ou seja,
auscultar a probabilidade ou o grau de perspectiva favorável dessa chance.
Resulta que, em se confirmando que a ação não examinada (por erro do
advogado) era fadada ao insucesso, se fosse conhecida e julgada, o advogado,
mesmo errando no antecedente, não responde pela conseqüência. Isso porque
equivale a afirmar que a obrigação, mesmo mal desempenhada, terminou
produzindo, por vias oblíquas, o único resultado que dela se esperava, ou seja,
absolutamente nada. No entanto, concorrendo um mínimo de probabilidade
de êxito (jurisprudência favorável ao direito do cliente, embora não uniformi-
zada), o juiz deverá considerar essa possibilidade, dentro de critério jurídico
razoável, e, com isso, fixar o quantum (art. 944, do CC).47

47
Foi exatamente esse o princípio que conduziu o egrégio Primeiro Tribunal de Alçada Civil, quando do julgamento
da Ap. Cível 680.655-1, relator o eminente magistrado José Araldo da Costa Telles (ementa publicada no
Boletim AASP 2285, mês outubro de 2002, p. 613), a arbitrar, por perda da chance de julgamento de reclamação
trabalhista devido ao fato de a advogada não ingressar com o pedido no prazo de dois anos (prescrição), a
indenização em 50 (cinqüenta) salários mínimos. Consta do voto do relator que o fato de não existir sentença
favorável da Justiça Trabalhista, prefixando o quantum devido ao trabalhador, não poderia obstaculizar a
definição do quantum debeatur, concluindo que tal dimensão financeira “revela-se suficiente para reparar o mal
experimentado pelo autor e concitar a ré a atuar com mais diligência em sua atividade profissional“.

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138 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

Esse princípio jurídico estrutura a lógica da responsabilidade civil do


advogado, pois, se a falha do advogado não produzir o dano (perda de uma
chance), é impróprio impor o dever de indenizar. A não-apresentação das
contra-razões, peça importante para que o advogado defenda a sentença
emitida no interesse de seu cliente, não implica a certeza, em caso de pro-
vimento do recurso não contra-arrazoado, que a inversão do resultado deu-
se por falta dessa manifestação do advogado. Isso porque a contrariedade é
parte do projeto de devolutividade ampla e, por isso, não vincula o julga-
mento que será realizado em segundo grau de jurisdição. Não contra-arra-
zoar um recurso poderá ser um descuido; nunca a causa do desfecho da
ação. Da mesma forma, a não-apresentação de um parecer de assistente
técnico, para criticar um laudo com conclusão desfavorável às pretensões
do cliente; portanto, nessas duas situações e em outras relacionadas com os
mistérios da cognição, a decisão será sempre expressão de convencimento
do juiz diante das provas produzidas, e não das conseqüências da omissão
do advogado.
O único parâmetro confiável para o arbitramento da indenização, por
perda de uma chance, continua sendo a prudência do juiz.48 Não se pode
exigir rigor demasiado na aferição do prognóstico da ação perdida (dano zero),
porque isso representaria a frustração do direito do cliente de ser reparado
com eqüidade e, tampouco, se permitirá larga expectativa favorável, porque a
graduação excessiva da possibilidade da chance poderá conduzir à criação de
um dano não comprovado, hipotético ou inexistente.
A hipótese de culpa do advogado que, por omissão, não ingressa com
ação rescisória no prazo decadencial (art. 495, do CPC) não produz, de
imediato ou de forma automática, o fato “perda de uma chance”, porquanto
a probabilidade de sucesso de uma ação rescisória é sempre menor, por
envolver o requisito “vício” de julgamento ou “erro de fato ou de direito”,
pressupostos difíceis de serem reunidos para apresentação. Nessa hipótese,

48
Peço vênia para transcrever uma parte do comunicado que o jurista português, João de Matos Antunes VARELA,
fez à Assembléia Nacional de seu país, da prudência dos juízes na aplicação do novo Código Civil, por ser de
inteira pertinência para o cenário jurídico brasileiro (Do projecto ao Código Civil, Imprensa Nacional de Lisboa,
1967, p. 36): “Por outro lado, com todas as virtudes e defeitos inerentes às instituições humanas, a magistratura
portuguesa foi sempre justamente apontada como um corpo de homens prudentes, criteriosos, dotados de bom
senso, ressalvadas as raras exceções que pouco representam no quadro geral da profissão. Se algum reparo
merece pelo uso dos poderes que a lei já agora lhe confere, pode asseverar-se que peca mais por defeito que
por excesso, no desempenho do papel que a ordem jurídica pretende confiar à jurisprudência. Por essa razão,
se os meus colegas do foro me não levassem a mal, eu diria que os critérios flexíveis do novo direito civil fazem
recear mais os excessos da má advocacia que temer os abusos da má-judicatura”.

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 139

a simples divergência jurisprudencial49 atua contra os interesses do autor


(Súmula 343, do STF, aplicada no STJ, in: RT 733/154), situação jurídica
notória que, nessa área, faz decrescer o grau da probabilidade “da chance
perdida” e, conseqüentemente, da verificação do dano ressarcível.
O art. 267, § 1º, do CPC, autoriza o juiz a extinguir o processo diante
do abandono ou desídia do autor, desde que esse, intimado pessoalmente,
não promova o regular desenvolvimento no prazo de 48 horas. O STJ acres-
centou, para que isso ocorra, mais uma condição: o requerimento do réu
(Súmula 240 – “A extinção do processo, por abandono da causa pelo autor,
depende de requerimento do réu” – DJU de 6.9.2000, p. 215). Poderá, no
entanto, ser iniciativa do advogado (incumbência processual) a providência
(impulso) que não foi tomada e que está emperrando a marcha do processo,
como substituir um perito que recusa a nomeação ou indicar testemunhas
no lugar das que não foram localizadas para intimação. Suponhamos que o
réu, nessas situações, peça a extinção, e o autor, mesmo intimado, nada
promova, porque não lhe cabe a tarefa. Resultado: o processo é extinto por
culpa do advogado.
Em casos assim e não sendo permitido renovar a ação extinta (prescrição,
por exemplo, ou dilapidação do patrimônio do réu no período), parece eviden-
te que o advogado poderá ser responsabilizado civilmente por perda de uma
chance (não conduzir o processo de forma natural ao julgamento de mérito).
Propor ação inadequada,50 no entanto, não foi caracterizado como causa

49
A professora Ada Pellegrini GRINOVER escreveu um ensaio específico sobre essa temática (“Ação rescisória e
divergência de interpretação jurisprudencial em matéria constitucional”, in: Estudos de Direito Processual Civil
em memória de Luiz Machado Guimarães, Forense, 1997) quando, depois de reafirmar a excepcionalidade da
desconstituição da coisa julgada prevista no art. 5º, XXXVI, da CF, em benefício da própria coisa julgada, concluiu
que, mesmo na hipótese de reviravolta da jurisprudência, não será permitido rescindir a sentença motivada em
interpretação vencida, salvo se o “Supremo declarar a inconstitucionalidade da lei, com efeito erga omnes e ex
tunc” (p. 16). Fica bem definida a posição da ilustre professora, que, aliás, é coincidente com a idéia dominante
sobre as dificuldades legais para rescindir sentença em que se adotou fundamentação ultrapassada; esse
estado de quase absoluta inadmissibilidade da rescisória funciona como uma espécie de cláusula de exoneração
de responsabilidade do advogado que deixa o direito de seu cliente decair.
50
O volver da jurisprudência, nessa hipótese, não possui o mesmo grau informativo da culpa que se caracteriza
pela inobservância de uma regra processual ou de imperativo prático, de observância obrigatória porque os
julgados não se cansam de orientar para que seja praticada de uma determinada maneira, sob pena de prejuízo
do litigante. A escolha da ação pelo advogado envolve uma atividade soberana e que se deve respeitar como
estímulo da inteligência que alimenta a constante valorização da ordem jurídica. O advogado deve ser livre para
agir, porque é dessa liberdade que nascem as idéias revolucionárias que aperfeiçoam a justiça. O insuperável
Jorge GIORGI examinou esse aspecto do erro profissional e afirmou: “el cual, no solamente no responde de la
pérdida de la causa, porque litis habent sua sidera, sino que por constantísima jurisprudencia no responde
tampoco de su consejo, aun cuando la perspicácia más sabia de nuevos consultores haya demonstrado que
seguiendo otros derroteros, habria podido conseguirse la victoria” (Teoria de las Obrigaciones, V;240).

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140 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

de responsabilidade civil do advogado, declarou o des. Luiz de Azevedo, do


TJ-SP (Ap. nº 113.443-1, in: RJTJESP-Lex 125/177). Pelo que se infere do
texto desse memorável acórdão, o advogado ingressou com ação de liquidação
de sociedade, de forma absolutamente equivocada, tanto que o autor foi de-
clarado carecedor da ação, diante da inépcia da inicial. Destacam-se, pela
pertinência, os seguintes trechos do voto condutor: “Desde longa data têm as
leis responsabilizado o advogado quando este, em razão de dolo, culpa ou ignorân-
cia, acaba causando prejuízo ao seu patrocinado (Código de Justiniano, 4, 35,
13; Ordenações Afonsinas, 1, 13, §§ 3º e 7º; Ordenações Manoelinas, 1, 318,
§§ 29 e 35; Ordenações Filipinas, 1, 48, §§ 10 e 7º)”
...
Nesse caso concreto, a ação que foi então ajuizada pelo réu, na condição de
advogado dos autores da presente ação, mostrava-se inteiramente inadequada, tanto
que sequer passou do juízo de admissibilidade: os autores foram julgados carecedo-
res da ação e o processo foi julgado extinto, sem exame do mérito.
Mas, tão-só esta circunstância não proporcionaria, automaticamente, o direi-
to a eventual ressarcimento pelos danos sofridos. Na verdade, adotar critério de tal
modo draconiano, seria coartar o próprio exercício da profissão e atingir a caracte-
rística mais marcante do advogado, qual seja a sua independência. Só para que se
tenha uma idéia das conseqüências que traria uma interpretação de tal monta,
basta atentar para o último índice da Revista dos Tribunais, na palavra ‘processo’:
há, ali, pelo menos uma centena de casos em que outros autores também foram
julgados carecedores da ação, por impossibilidade jurídica do pedido, por inexis-
tência de outras condições da ação, ou por ausência de determinados pressupostos
processuais. Todos os advogados que subscritaram as correspondentes petições inici-
ais desses processos estariam sujeitos a responder a ações de indenização propostas
pelos seus clientes? Certamente que não.” 51
E, da mesma forma com que a obrigação dos médicos é analisada no
direito material, não se admite a inversão do ônus da prova para penalizar,
civilmente, os advogados que cometem erros durante o exercício do mandato,

51
O acerto desse julgado é indiscutível. O insigne Arruda ALVIM escreveu “A argüição de relevância no recurso
extraordinário” (RT, 1988, p. 15), obra em que analisou a “flexibilidade” do Direito, uma necessidade para
preenchimento dos conceitos vagos, quando considera que o interessado em justiça, diante da discricionarieda-
de delegada aos juízes na interpretação da norma, vê-se obrigado a “confiar”, em larga medida, no aplicador
da lei. Devo dizer, em função dessa certeza jurídica, não ser o advogado culpado quando o processo que
patrocina é julgado por um tribunal avesso à versão jurídica que escolheu por parecer como a mais ajustada à
hipótese do seu cliente.

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 141

conforme expõe, com a clareza de sempre, o ilustre Rui Stoco:52 “Conseqüen-


temente, não há falar-se em presunção de culpa do advogado nem, portanto, em
inversão do ônus da prova, de modo que este somente poderá ser responsabilizado se
comprovado que atuou, na defesa da causa para a qual foi contratado, com dolo ou
culpa, e que de sua ação ou omissão decorreu efetivo dano para seu cliente”.
O erro que não se perdoa do advogado é aquele decorrente da inobservân-
cia de prazos processuais e materiais, porque a omissão representa preclusão e
prescrição (prejuízo certo para a causa e, conseqüentemente, para o cliente);
não realizar o preparo de recursos ou cumprir as diligências importantes.
Faculta-se opção pela disponibilidade recursal, porque não se poderá obrigar
o advogado a recorrer contra sua consciência; não deve, no entanto, deixar de
recorrer quando a matéria é controvertida ou contra a vontade do cliente.53
Em Ribeirão Preto, comarca em que tive a honra de ser juiz e vivenciar a
honradez de seus advogados, ocorreu o seguinte: uma advogada, representando
o credor, celebrou um acordo na execução da sentença (nas vésperas do leilão
do bem penhorado), que importou em renúncia de 60% de seu crédito. O TJ-
SP considerou que, nesse caso e porque não existia o pressuposto de urgência
a sugerir precipitação ou combinações extravagantes, a mandatária agiu em
desconformidade com a vontade do mandante, atuando de forma prejudicial
aos direitos dele e, em conseqüência, condenou-a ao pagamento da parte
excluída na transação (Ap. nº 260.895-2, des. Ruiter Oliva, in: JTJ-Lex 172/9).
Aguiar Dias54 afirmava que a “desobediência às instruções do constituinte,
seja variando das que foram traçadas, seja excedendo os poderes ou utilizando os
concedidos em sentido prejudicial ao cliente, é outra fonte da responsabilidade do
advogado”. Aproveito para transmitir o “lembrete para advogados” redigido
por Ernesto Lippmann:55

“Repito o que recomendei anteriormente, por ser muito importante. Antes


de fechar um acordo, solicite autorização prévia e por escrito do cliente,
com menção ao valor do acordo. Se ainda estiver negociando, a autori-
zação assinada pelo cliente deve mencionar o valor mínimo a ser aceito.
Essa cautela deve ser redobrada nos maus acordos feitos por insistência de

52
STOCO, Rui. “Responsabilidade civil do advogado à luz das recentes alterações legislativas”, RT 797/66.
53
CAVALIERI, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil, p. 287.
54
DIAS, Aguiar. Da Responsabilidade Civil , I/333.
55
LIPPMANN, Ernesto. Defenda Direito seus Direitos – Como Escolher um Bom Advogado, p. 179.

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142 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

clientes que têm pressa em receber dinheiro (em geral, por estarem em
péssima situação financeira). Já houve casos em que pedi ao cliente que
escrevesse: ‘Eu, fulano de tal, autorizo meu advogado a fazer acordo na
ação que movo contra sicrano, pelo valor de R$ (número e por extenso)
mesmo tendo sido desaconselhado por meu advogado’”.

O advogado, no juízo civil, deve redobrar a atenção no ato de interpor


recurso de agravo de instrumento (art. 522, do CPC), porque, pelo novo
modelo ou petição direta no tribunal, passou a ser sua a função de preparar o
instrumental adequado que permite o reexame da decisão interlocutória (art.
5º, LV, da CF).56 Segundo o ministro Sydney Sanches, do STF, “é pacífico o
entendimento desta Corte no sentido de que a parte tem o dever de vigilância na
formação do instrumento de agravo” (AG-AI nº 215.866-2/RJ, DJU de 10-8-
2001, in: Informativo ADV, da COAD, nº 45/2001, p. 718, verbete nº
99.314). Do mesmo teor (Ag.In. nº 265.905/PR, ministro Celso de Mello,
in: R.T.J. 176/1.401): “Incumbe à parte agravante o dever processual de provi-
denciar, entre outras peças reputadas indispensáveis à adequada formação do tras-
lado, a cópia da procuração outorgada ao advogado da parte agravada. Na hipó-
tese de inexistência dessa procuração, cumpre ao agravante comprovar, mediante
certidão fornecida pela Secretaria do Tribunal a quo, que tal peça não consta dos
autos principais, sob pena de, em não o fazendo, expor-se ao não-conhecimento do
agravo por ele interposto (CPC, art. 544, § 1º). Precedentes”.
Convém registrar que o agravo, por ser recurso com sistemática excepcio-
nal e de julgamento célere, não admite conversão em diligência ou prazo
complementar para que o advogado emende os erros, conforme admitiu, por
maioria, o colendo STJ (AgReg nº 253.684/RJ, DJU de 27.8.2001, in: RSTJ
148/17): “Uma vez se encontrando o recurso de agravo de instrumento (art. 544,
§ 1º, do CPC) na superior instância, não produz efeito a juntada de peças faltan-
tes no traslado, hipótese equivalente à complementação de peças.
É que às partes compete o dever de vigilância na formação do instrumento,
sendo de sua exclusiva responsabilidade a composição daqueles autos. O eventual

56
Na sistemática dos recursos vigora o princípio da exigência da praticabilidade (grifei pela importância da
expressão), indispensável para o bom funcionamento ou para o dinamismo do processo, pelo que “é mister que
o público saiba como se desenvolve, precisamente, o processo, ao que também se têm de adstringir nos
diferentes graus de jurisdição, os juízes; donde outro princípio, que o da tendência à conservação da técnica
processual, intimamente ligado ao formalismo do processo” (MIRANDA, Pontes de. Embargos, Prejulgado e
Revista no Direito Processual Civil, p. 74).

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 143

impedimento de acesso aos autos não interfere, principalmente diante da Lei nº


8.906 – art. 7º, XV, que corrobora a letra do art. 40, inc. I, do CPC.” 57
A lista dos documentos xerocopiados (as peças obrigatórias do art. 525,
I, do CPC e as essenciais, como cópia da petição inicial, por exemplo) deve-
rá passar por meticulosa revisão, porque a falha nesse quesito é fatal, acarre-
tando, por deficiência na formação do recurso, o seu não-conhecimento. E
não é somente na indicação das peças a serem trasladadas que se requer
cautela. O advogado precisa atuar com rigor no exame da legibilidade das
xerocópias (não é preciso autenticá-las), porque, em ocorrendo má impres-
são da cópia, se prejudica, por impedimento da leitura da data do carimbo
da protocolização, a aferição do fator “tempestividade” do agravo, enca-
minhando-o ao não-conhecimento.
Nesse sentido, a posição do STF (AgReg. no AgIn. nº 278.291-2/SP,
ministro Celso de Mello, DJU de 09.02.2001, in: RT 789/169): “Não se
presume a tempestividade dos recursos em geral, pois incumbe a quem recorre o
ônus processual de produzir, com bases em dados oficiais inequívocos, elementos
que demonstrem que a petição recursal foi efetivamente protocolada em tempo
oportuno. O conteúdo absolutamente ilegível dos elementos de ordem temporal
constantes da autenticação mecânica lançada na petição recursal, especialmente
daquele que concerne à data de interposição do recurso extraordinário, impede a
aferição da tempestividade do apelo extremo, equivalendo, por isso mesmo, para
os fins a que alude a Súmula 288/STF, à própria ausência, no traslado, de dado
objetivo relevante, imprescindível ao controle jurisdicional desse específico pres-
suposto recursal.”
Nesse contexto, não poderá ser esquecido o art. 526, do CPC, obrigando
a parte que interpôs agravo a juntar, no processo, cópia do recurso, para que o
juízo a quo tenha conhecimento da situação processual. Essa providência é
um ônus e sua inobservância poderá “acarretar o não-conhecimento do agra-
vo”.58 Seria, pois, um erro de diligência não comunicar a interposição, pois, se
o agravado provar a omissão, o agravo prejudica-se pelo não-conhecimento
(parágrafo único, do art. 526, do CPC).

57
Não se admite, inclusive, a juntada posterior do documento que faltou para regularizar o instrumental, conforme
anotado pela ministra Nancy Andrighi (Agrav. 436.345-SP, DJU de 01.07.2001, in: Revista Nacional de Direito
e Jurisprudência, vol. 33/124): “A tardia juntada de peça de traslado obrigatório não supre a sua exigência,
porque operada a preclusão consumativa com o ato da interposição do recurso”.
58
RODRIGUES, Luiz, e WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Breves Comentários à 2ª Fase da Reforma do Código de
Processo Civil, p. 114.

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144 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

Ora, perdendo o cliente a expectativa de ter um agravo conhecido (de


tutela antecipada, por exemplo, prevista no art. 273, do CPC), por erro do
advogado (que não providenciou as xerocópias corretas), abre-se caminho para
o pedido de indenização por perda de uma chance. Isso porque obter a tutela
antecipada representa, na prática, conseguir “o mesmo conteúdo do dispositivo
da sentença que concede a definitiva e a sua concessão, equivale, mutatis mutan-
dis, à procedência da demanda inicial — com a diferença fundamental represen-
tada pela provisoriedade”.59
É bem verdade que não há, com o rigor da acepção do vocábulo, preclu-
são consumativa do “indeferimento” da tutela antecipatória, porque ocorrem
outras situações de perigo que não aquela já examinada e indeferida, sem
reexame por erro do advogado. Portanto, em não ocorrendo algo novo que
justifique pedido de tutela antecipada, com fundamentação diferente, fechou-
se a porta da imediata execução, o que acarreta, sem dúvida alguma, perda de
uma chance de desfrute imediato do bem de vida. O episódio poderá
sugestionar questionamentos sobre a atuação do advogado.60
Importante registrar que a tutela antecipada também poderá ser pleitea-
da diante do abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório
do réu (art. 273, II, do CPC), de modo que, nessa situação, o advogado
deverá pleitear a antecipação na primeira oportunidade; retardando a postu-
lação, ocorre a preclusão.61 Não se está pretendendo afirmar que o advogado,
diante do modelo processual instaurado para abreviar resultados óbvios, age
com culpa quando não obtém a tutela antecipada, até porque a antecipação é
uma sentença e, como tal, não escapa do campo da imprevisibilidade. É for-
çoso convir que a omissão em postular uma tutela antecipada constitui, sob o
ponto de vista da moderna concepção de efetividade do processo civil, um
erro de diligência que poderá ser inexplicável diante do princípio “perda de
uma chance” como pressuposto do dever de indenizar.
Sujeita-se a esse tipo de especulação o advogado que interpõe recurso
inadequado (cujo erro, inescusável, sequer permite o aproveitamento diante

59
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reforma do Código de Processo Civil, p. 140.
60
A preclusão está prevista no art. 473, do CPC: “É defeso à parte discutir, no curso do processo, as questões já
decididas a cujo respeito se operou a preclusão”. Para CHIOVENDA, a preclusão “no curso do processo, tem por
fim tornar possível o ordenado desenvolvimento do processo com a progressiva e definitiva eliminação dos
obstáculos“ (Instituições de Direito Processual Civil, tradução de J. Guimarães Menegale, Livraria Acadêmica/
Saraiva, 1942, I/525).
61
LOPES, João Batista. Tutela Antecipada, p. 80.

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 145

do princípio da fungibilidade).62 Um exemplo: o art. 17 da Lei nº 1.060/50


prevê recurso de apelação para reexame de decisões sobre assistência judiciá-
ria, quando processadas em apenso. No caso de o advogado ingressar com
agravo (art. 522, do CPC), em vez de apelação, corre o risco de cometer erro
grosseiro (porque o tipo de recurso está previsto na legislação e, como é prin-
cípio comezinho, não se pode ignorar a lei alegando-se desconhecimento).
Ora, o não-conhecimento poderá prejudicar a chance de a parte obter a gra-
tuidade judiciária, sugerindo-se a responsabilidade do advogado.
Nessa área específica, convém alertar para a preclusão que o pedido de
“reconsideração” do despacho agravado acarreta. Essa manifestação do advo-
gado (pedido de reconsideração), diante de uma decisão interlocutória desfa-
vorável aos interesses processuais do cliente, por não possuir forma ou figura
legal (não está prevista no CPC), é considerado ato inexistente e, como ato
inexistente que é, não suspende ou interrompe o prazo para interposição de
agravo de instrumento (art. 522, do CPC). A doutrina é incisiva a esse respei-
to63 e a jurisprudência não perdoa (TJ-SP, AgIn. nº 216.577-5, in: JTJ-Lex
243/269). Convém que o advogado não formule reconsideração para não
incidir em preclusão, optando, em caso conveniente, por dirigir-se ao juiz
sem prejuízo do agravo de instrumento cujo prazo não se interrompe ou
suspende, para que o cliente, depois, não o culpe pelo insucesso da demanda,
como que supervalorizando o não conhecimento de agravo.
Não seria possível omitir a questão do protocolo integrado. Nos Tribu-
nais Estaduais, o sistema de protocolo racionaliza o serviço do advogado,
facilitando o “dia-a-dia do advogado, evitando a locomoção desnecessária até
determinado juízo ou tribunal simplesmente para cumprir seus prazos”.64 O
protocolo é uno, de modo que o advogado do interior não precisa se dirigir
à capital para entregar peças do processo de que lá participa e vice-versa.
Contudo e apesar da nova redação do art. 547, parágrafo único, do CPC,
legalizando esse mecanismo, há uma súmula do STJ (nº 256) do seguinte

62
O ilustre jurista mineiro, Humberto THEODORO JÚNIOR, explica que o princípio da fungibilidade (previsto no
artigo 810 do CPC de 1939) permite, ainda no atual sistema, que o tribunal aproveite o recurso inadequado
interposto e conheça da matéria posta, desde que exista uma dúvida objetiva e fundada sobre o tipo de recurso
a ser manejado; que não tenha a parte incorrido em erro grosseiro e, por fim, que o recurso errado atenda, pelo
menos, o pressuposto “tempestividade”, isto é, tenha sido protocolizado no prazo do recurso correto (“Teoria
geral dos recursos civis”, in: O Processo Civil Brasileiro no Limiar do Novo Século, Forense, 1999, p. 168).
63
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios Fundamentais – Teoria Geral dos Recursos, p. 273 e SALLES, José Carlos de
Moraes. Recurso de Agravo, p. 202.
64
Cruz e TUCCI, José Rogério. Lineamentos da Nova Reforma do CPC, p. 131.

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146 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

teor: “O sistema de protocolo integrado não se aplica aos recursos dirigidos ao


Superior Tribunal de Justiça”.
Perder prazo do recurso (não aqueles que são processados no tribunal a
quo) por não o protocolizar em Brasília (encaminhar pelo protocolo integrado
contra os dizeres de uma súmula) pode caracterizar erro inescusável e, conse-
qüentemente, permitir questionamento de indenizabilidade por perda de uma
chance ou da chance de exame do recurso de embargos no Superior Tribunal
de Justiça. No AgReg. do AgIn. nº 408.094/RJ, DJU de 02.09.2002, p.
264, o ministro Paulo Galotti, do STJ, anotou o seguinte (in: Revista Nacio-
nal de Direito e Jurisprudência, nº 35, p. 127): “A tempestividade de recurso
interposto neste Tribunal é aferida pelo registro no protocolo da secretaria, e não
pela data da postagem em agência dos Correios”.
Outra situação embaraçosa e inexplicável para o advogado é o não-conhe-
cimento de recurso por falta de preparo financeiro (art. 511, do CPC). Salvo
a hipótese em que o cliente não fornece o numerário indispensável para o
recolhimento da guia (porque, nesse caso, não é jurídico obrigar o advogado a
custear as despesas do processo e preparar, com seu dinheiro, recursos do
interesse das partes), a omissão, no cumprimento do dever processual, confi-
gura culpa. Isso abre ensejo para que o cliente especule acerca da indenização
por perda da chance (provável julgamento favorável, se o tribunal conhecesse
o recurso que não teve seguimento, por deserção). Convém que o advogado
documente todos os incidentes (contatos, avisos) mantidos com o cliente, na
fase recursal, para acautelar-se dos riscos de má-fé do que é desinteressado
com a sorte de seu processo.
Imaginem, por exemplo, o caso de uma pessoa contratar um advogado
para ingressar com ação de despejo, diante da mora financeira do locatário.
Apesar do adiantamento de valores que o locador fez ao advogado, o ajuiza-
mento não acontece e, posteriormente, descobre-se que o referido profissional
está com a licença suspensa pela OAB (falta de recolhimento das contribui-
ções). Nesse caso, incide o art. 667, do CC (prejuízo pela omissão no exercí-
cio do mandato), e a reparação deverá abranger a restituição das quantias
adiantadas e mais os honorários do advogado encarregado da propositura da
ação. Em se constatando a inadimplência do inquilino, o advogado omisso
poderá ser obrigado a recompor esse déficit do proprietário (probabilidade de
fruição de aluguel no período pós-despejo).
O egrégio Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 147

referendou sentença que condenou advogado a reparar os danos suportados


por empregado, pela prescrição de seus direitos trabalhistas, pela demora no
ajuizamento da reclamação (Ap. nº 972.773.3, julgado em 18.12.2000, juiz
Antonio Marson, in: Revista Nacional de Direito e Jurisprudência, vol. 17/209).
Em outra situação, quando a prescrição deveria ser argüida pelo empregador
(e não o foi), a empresa ganhou do advogado contratado e do substabelecido
(que recebeu o substabelecimento sem autorização do mandante) os valores
que foram pagos, apesar da prescrição (REsp. nº 259.832/SP, ministro Ari
Pargendler, DJU de 15.10.2001, in: RSTJ 153/261): “O advogado que, sem
autorização, substalece os poderes que lhe foram conferidos, responde, perante o
outorgante, pela atuação do procurador substabelecido”.
Alterações ocorreram nesse quadro com o novo Código Civil. De acordo
com o § 2º, do art. 667, o procurador substabelecente somente será respon-
sável pelos atos do substabelecido (quando autorizado o substabelecimento),
“se tiver agido com culpa na escolha deste ou nas instruções dada a ele”.
Existindo proibição de substabelecimento, nada muda na relação entre os
advogados, mas, sim, para o mandante (que não se obriga pelos atos do advo-
gado substabelecido - § 3º, do art. 667). Contudo, sendo omisso o mandato
quanto ao substabelecimento, o substabelecente será responsável junto com o
substabelecido, quando este proceder de forma culposa (§ 4º, do art. 667, do
CC). A nova redação não muda a responsabilidade dos dois advogados cita-
dos no caso analisado pelo STJ e que, curiosamente, envolve advogados de
Ribeirão Preto, porquanto o erro do substabelecido (inescusável, diga-se, apesar
de sua notória especialização, com livros publicados sobre Direito de Traba-
lho) contamina a conduta do substabelecente (culpa in eligendo).
O notável juiz Laudo de Camargo emitiu sentença pela qual fixou o
entendimento de que o advogado substabelecido é, com ou sem reservas,
mandatário e, por isso, obrigou o mandante a pagar os honorários ao advoga-
do substabelecido, embora o representado alegasse, na defesa, quitação dos
honorários feita ao advogado substabelecente.65
É oportuno fechar esse capítulo com as palavras do professor e advogado
criminalista emérito, Paulo José da Costa Júnior, pelo caráter pitoresco do
estímulo ao estudo do processo:

65
LAUDO DE CAMARGO. “Mandato – advogado substabelecido cobrando honorários do mandante. Notas de um
Juiz”, p. 185.

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148 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

“Nunca se estuda suficientemente uma causa. Processo, alguém já dis-


se, é como mulher bonita: quanto mais se observa, quanto mais se exa-
mina, tanto novas perspectivas surgem aos olhos extasiados do admira-
dor. É preciso lê-lo e relê-lo. Numerosas vezes. De início, com penetração
e argúcia. Depois, com frieza, com lógica, com equilíbrio. Por derradei-
ro, com denodo, arrebatamento e ardor. Somente após conhecer os me-
andros do processo, a alma de seus protagonistas, as intrincadas questões
de direito, após dominados os pontos fundamentais, dissipadas as dúvi-
das, iluminados os ângulos obscuros é que o advogado, como senhor ab-
soluto da verdade conquistada, estará em condições de poder sustentá-la
diante dos julgadores”.66

O texto foi escolhido pela sua originalidade e, principalmente, pelo seu


conteúdo finalístico. Não é, todavia, um discurso machista. As mulheres ad-
vogadas são formadoras de opiniões e ninguém desconhece que, dia a dia, as
vantagens da influência afetiva da personalidade feminina na área jurídica são
valorizadas, como se poderá verificar da obra de Lídia Reis de Almeida Pra-
do.67 Não obstante a psicologia considere existir uma justiça masculina e uma
justiça feminina (o que de certa forma colocaria a metáfora empregada na
berlinda), inegável que, independentemente disso, a mensagem do ilustre
professor continua valendo como um bom conselho.

4. Dano moral

O advogado responderá por danos morais que o cliente afirma ter supor-
tado pelo não-cumprimento de deveres de diligência? A indenização por dano
moral, como se sabe, é uma realidade (artigos 5º, V e X, da CF e 186 do novo
Código Civil) digna de intensa reflexão no âmbito da prestação de serviços em
advocacia.
Antes de responder a essa indagação, é preciso escrever que a inexecu-
ção de uma obrigação ou falha contratual poderá resultar em prejuízos
materiais e morais. O que particulariza o prejuízo não é a relação de direito
subjetivo que se rompeu, mas, sim, o efeito da lesão. O próprio STJ, pela

66
COSTA JR, Paulo José. A Missão do Advogado, p.19.
67
O Juiz e a Emoção, p. 127.

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 149

Súmula 37, admite a cumulação dos danos materiais e os morais, oriundos


do mesmo fato.68
A responsabilidade civil constitui um microssistema jurídico que preten-
de ganhar autonomia para se impor como ícone de uma política de controle
de condutas e, na medida em que a sociedade reclama maior segurança e
proteção diante dos perigos da vida agitada e atribulada do mundo globaliza-
do, esse microssistema adapta-se, aperfeiçoa-se e engrandece-se, criando mo-
delos e figuras para eliminar a impunidade civil. Foi esse movimento que fez
surgir a teoria do risco (e, agora, da responsabilidade objetiva) em substitui-
ção ao velho e tradicional pressuposto da culpa (teoria subjetiva) como funda-
mento do dever de indenizar.
Dentro desse contexto receptivo da política de dano zero, quer patrimo-
nial, quer simplesmente moral, a indenização por dano moral floresceu e
desenvolveu-se com uma vitalidade assustadora. As indenizações pecuniárias
prometem resgate da auto-estima do lesado, pela pressuposição de que a con-
cretude das expectativas de consumo previstas pelo poder monetário minimizam
os efeitos nocivos da lesão de personalidade que a ilicitude alheia provocou. Os
repertórios de jurisprudência indicam a incidência do dano moral em todas as
variantes do cotidiano das pessoas, como já consignei:69 “O progresso é ótimo
para a ciência e muito bom para o direito, e a força do tempo modificou, para melhor,
muitos princípios processuais, como a eficácia da sentença, que deixou de ser proprie-
dade particular dos litigantes, para se transformar em um tipo de coisa pública ou
farol luminoso que sai dos gabinetes dos juízes, vagueando em busca de consciências
vazias, com o propósito de preenchê-las com lições de cidadania”.
A execução de contrato de advogado não é uma exceção.
Consta da Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil (Porto Alegre,
nº 12 – julho-agosto de 2001, p. 122, verbete nº 1.269) ementa de Acórdão
do TJ-DF (Ap. nº 1999.01.1.033288-6) do seguinte teor: “Responsabilidade
civil. Ausência do patrono em audiência. Não tendo o advogado comparecido à

68
Portanto, dependendo da repercussão da falha contratual, poderá ocorrer dano psicológico a ser composto,
independentemente de se obrigar, também, ao cumprimento compulsório da obrigação. A Terceira Câmara do
Tribunal de Justiça de São Paulo aplicou esses enunciados em dois julgamentos que relatei: o primeiro (Ap.
085.852-4/4, in RT 770/239) visou compensar a lesão de personalidade do comprador que sofreu com irrespon-
sabilidade contratual de uma construtora de apartamentos, e o outro, de aspecto social mais significativo,
censurou abominável comportamento preconceituoso de uma seguradora, discriminando uma senhora de cor
negra, no momento de liberar a indenização do seguro (Ap. 72.692-4, in JTJ-Lex 218/105).
69
ZULIANI, Ênio Santarelli. “A era da jurisprudência“, apud, “Grandes temas da atualidade – Dano moral“, p. 205.

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150 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

audiência, causando desamparo e insegurança ao cliente, configurado, restaram os


danos morais a serem ressarcidos”.
Faltar a uma audiência configura um erro de conduta praticamente
indesculpável. É certo que o art. 183, § 1º, do CPC, permite que se justifique
a falta a uma audiência na qual a parte deveria contestar a ação, o que encami-
nhou o TJ-SP, com indiscutível prudência, a relevar a ausência de uma advo-
gada que, por invencível congestionamento de trânsito na região central da
capital paulista, em dia de inundação, não chegou ao fórum no horário agen-
dado (AgIn. nº 114.481-4, des. Cezar Peluso, in: JTJ-Lex 229/220).
Abstraindo do fato as conseqüências do processo civil (que o advogado
faltoso poderá reverter, praticando, depois, o ato judicial que não realizou), o
seu não-comparecimento poderá potencializar um efeito no fator confiança,
nutriente personalíssimo do vínculo contratual. Nessa situação e não existin-
do um motivo que explique a falha ao sentido de assiduidade, poderá o clien-
te sentir-se traído e órfão da assistência que buscava obter com a presença
física do advogado, sem dúvida, fonte de uma perturbação.
É preciso avançar com rigor na aferição do dano moral. O simples des-
conforto, incômodo, desassossego, que a ausência do advogado provoca, im-
plica, na maioria das vezes, amargor que se absorve pela má escolha do profis-
sional (culpa exclusiva da vítima). Paga-se um preço por selecionar advogado
pelo valor dos honorários. Portanto, é preciso que o juiz, quando examina a
falta do advogado, estude as razões da definição do advogado, sem o que não
se apura a previsibilidade da ocorrência. Trata-se de pressuposto valoroso nes-
se segmento (art. 945, do Código Civil).
Em se tratando de uma contratação cautelosa, definida pelos critérios
razoáveis do mercado, a ausência do advogado poderá materializar um quadro
fático diferente, com cenário sem espaço reservado para ser preenchido pela
culpa do cliente. Nessa hipótese, continua o juiz subordinado a um segundo
raciocínio, qual seja, a conferência da efetiva situação de constrangimento
social, em virtude das aptidões pessoais da vítima.
Quando o advogado deixa na mão, pela falta, um cliente do tipo empre-
sário bem articulado e que, mesmo indefeso, consegue, de alguma maneira,
manter-se com frieza na audiência, procedendo de forma a não comprometer
a estratégia da defesa no ato a que comparece sozinho (uma tentativa de con-
ciliação, por exemplo, quando o empresário recusa, categoricamente, a possi-
bilidade de acordo), não se caracteriza a situação de dano ressarcível. Isso

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 151

porque o processo e a parte sobrevivem ao fim do ato, sem traumas, apesar da


ausência do advogado. Evidente que, nessa hipótese, não se poderá cogitar de
lesão de um direito íntimo (sentimento de humilhação, desamparo, vergonha
etc), por absoluta falta de confirmação do dano indenizável.
Diferente será, contudo, no caso de o advogado desamparar, com sua
ausência, uma mulher na audiência final de uma ação de separação judicial
litigiosa. O juiz, como se sabe, deverá iniciar a audiência, se não se provar o
impedimento do advogado em comparecer até a abertura (§ 1º do art. 453,
do CPC). Em se verificando que a parte sofreu um desgaste emocional pro-
fundo, por presenciar testemunhas falseando a verdade de fatos da vida con-
jugal (que não poderia contraditar por falta de advogado), essa etapa do pro-
cesso poderá se transformar em um episódio insuportável, capaz de gerar um
colapso nervoso (incontinência urinária, crise de choro, desmaio etc), um
golpe para atributo de personalidade da pessoa (honra, reputação, saúde psí-
quica). É possível estabelecer a causa do dano a desassistência jurídica imoti-
vada, justificando a indenização para ressarcir a dor da vergonha e da humi-
lhação desnecessárias.70
Portanto, a indenização por danos morais, fundada na ausência do advo-
gado à audiência, embora possível, não é, assim, uma conseqüência automáti-
ca ou de ordem objetiva; para que se produza uma sentença justa desse teor,
ou adequada à obrigação do contrato, o juiz deverá filtrar aspectos subjetivos
(perfil da vítima diante do processo e seu comportamento pré-contratual),
para, a partir desse quadro, avaliar a lesão diante da natureza do processo e da
importância da audiência.
Outra variante do serviço profissional do advogado, diretamente relacio-
nada com o dano moral, poderá ser extraída da experiência do processamento
das ações que buscam estabelecer a verdade biológica das pessoas (investigação
de paternidade prevista no art. 1.606, do Código Civil). A prova da filiação,
como é indiscutivelmente reconhecido, foi facilitada pelo exame DNA, a sigla
que designa o ácido desoxirribonucléico, portador de nucleotídeos ou substân-
cias que provam a transferência hereditária pelos cromossomos, responsáveis
pelo mapeamento genético da pessoa, os quais provam o vínculo da filiação.71

70
Nunca é demasiado recordar a lição do insuperável AGUIAR DIAS sobre o conceito de dano moral (Responsabi-
lidade Civil em Debate, p. 161): “Dano moral é a reação psíquica, é a dor que o homem experimenta em face
da lesão, é o desdobramento imaterial da lesão, a sua repercussão sobre a honra, sobre o sentimento”.
71
AMARAL, Francisco. “A prova genética e os direitos humanos”, in: Grandes Temas da Atualidade, p. 106.

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152 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

Passou a ser obrigatório o exame pericial nessas ações, tanto que, em


julgamento da Terceira Câmara de Direito Privado, por mim relatado, foi
anulada sentença emitida em ação de investigação de paternidade, sem perí-
cia, para que se produzisse a prova, por constituir a omissão ofensa ao art. 5º,
LV, da Constituição Federal, que obriga formar o processo justo (Ap. nº
189.691.4/7, in: Revista Brasileira de Direito de Família, Síntese & Ibdfam,
vol. 10, p. 130, verbete nº 1.094). O novo Código Civil inovou na regula-
mentação da prova e, pelo art. 231, estimula uma presunção de confissão da
paternidade diante da recusa do investigando em comparecer ao exame.
Ora, se a prova pericial (DNA) identifica a paternidade, não mais se
justifica utilizar com veemência da exceptio plurium concubentium (má condu-
ta notória da mãe do investigante – Arnoldo Medeiros da Fonseca72). É de se
aguardar, com prudência, o resultado da perícia, que, pela sua força probató-
ria, no caso de exclusão da paternidade, atesta, oficialmente, a multiplicidade
de parceiros ou vida desregrada da mulher, na época da concepção que funda-
mentou o pedido. Se não fosse assim, como se justificaria o ataque à honra de
uma mulher honesta, a pretexto de defender o cliente (inegavelmente pai da
criança), diante do resultado positivo do DNA?
O resultado do DNA, nesse caso, chega com função dúplice: confirma a
filiação que foi indevidamente rejeitada e, por outro lado, desestrutura a lógi-
ca da imputação de conduta desonrosa da mulher. Poderá resultar, daí, res-
ponsabilidade civil do advogado?
Quanto ao direito de o autor da ação investigar a paternidade, sendo ele
vítima da rejeição paterna, o ilustre advogado gaúcho, Rolf Madaleno,73 afir-
ma que o pai deverá ser condenado a compor danos morais: “É altamente
reprovável e moralmente danosa a recusa voluntária ao reconhecimento da filiação
extra-matrimonial e certamente, a intensidade desse agravo cresce na medida em
que o pai posterga o registro de filho que sabidamente é seu, criando, em juízo e fora
dele, todos os obstáculos possíveis ao protelamento do registro de paternidade, que,
ao final, termina por ser judicialmente declarada”. 74
O acerto dessa doutrina é indiscutível. A rejeição é, por si só, causa de

72
FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Investigação de Paternidade, p. 345.
73
MADALENO, Rolf. “O dano moral na investigação de paternidade”, in: Direito de Família, p. 149.
74
O cabimento do pedido de indenização pelo “não reconhecimento voluntário da paternidade” foi, igualmente,
sustentando pelo saudoso Carlos Alberto BITTAR (Responsabilidade Civil – Teoria & Prática, Forense Universitá-
ria, Rio de Janeiro, 2001, p. 24).

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 153

dano psíquico ao rejeitado. Contudo, embora se deva assimilá-la por consti-


tuir coisa do destino (ter a filiação que nos foi outorgada), quando a rejeição é
imposta por um sentimento ruim, com um egoísmo que extrapola a razoabi-
lidade, o propósito de se recusar a paternidade, sem a prudência da sensibili-
dade que se admite até mesmo em casos em que se deve ou pode negar a
filiação não desejada, passa a ser ilícito, porque produz o dano íntimo capaz
de informar crise de identidade e de personalidade. A indenização teria o
dom de resgatar a auto-estima do lesado.
E os direitos da mãe do investigando, diante do libelo redigido com
animus diffamandi?75 Cunha Gonçalves76 escreveu, ao versar o tema respon-
sabilidade civil do advogado, que “difamação será, porém, a alegação de fatos
ofensivos do bom nome ou reputação da parte adversa, que sejam estranhos à causa
e inteiramente desnecessários (grifei) para a boa decisão dela, e, por tal fato, será
devida indenização, nos termos do Código Civil”.
Com o exame de DNA confirmando a paternidade, sem que se faça
prova da má conduta argüida, não ocorreu ofensa à honra e reputação da
mulher? Não se hesita em declarar que, na forma dos artigos 186 e 953, do
Código Civil, é possível responsabilizar o cliente e o próprio advogado pela
defesa ofensiva à reputação e dignidade da mulher.77 A responsabilidade do
cliente decorre da imprudência em denunciar, publicamente, fatos deson-
rosos à mãe de seu filho, enquanto o advogado responderá por culpa profis-
sional, por deduzir defesa incompatível com a natureza da cognição, uma
vez que, como operador do direito, está com a consciência repleta de conhe-
cimento da desnecessidade de defesa ofensiva à honra da mulher, dada a
auto-suficiência da prova pericial. Poderá o advogado negar o coito
conceptivo e suscitar dúvida da identidade do fertilizador, porque essa defe-
sa é tecnicamente possível e consentânea com a fundamentação do pedido
da prova pericial. Não é preciso, contudo, denominar a mãe do investigan-
do de prostituta, mulher de vida promíscua e coisas do gênero, sem ter

75
Difamação, pelo conceito do direito penal e que serve a boa doutrina, “consiste na imputação a alguém de fato
não criminoso, mas lesivo à sua reputação (bom nome), mesmo que tal fato seja verdadeiro” (AMARANTE,
Aparecida. Responsabilidade Civil por Dano à Honra, p. 107). Importante consignar que o art. 953, do novo
Código Civil, incluiu a difamação (o revogado 1547 era reservado à indenização por injúria e calúnia), permitindo
arbitramento por equidade (parágrafo único).
76
GONÇALVES, Cunha. Tratado de Direito Civil, XII, tomo II, p. 976.
77
Nunca é demasiado repetir que os casos de indenização à mulher agravada em sua honra não são limitados
às hipóteses de defloramento ou rompimento de noivado. Em casos de calúnia, injúria etc., é cabível,
também, a indenização por dano moral à mulher (AGOSTINHO ALVIM, Da Inexecução das Obrigações e suas
Conseqüências, p. 203).

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munição para confirmar, na fase probatória, a vulgaridade feminina. O erro,


aqui, por ser imperdoável, passa a ser de ordem voluntária, o que atrai a
responsabilidade direta do advogado. É mister atuar com atenção para as
conseqüências do DNA.
Poder-se-ia argumentar que o que se passa em ação de investigação de
paternidade, por ter trâmite velado ou em segredo de justiça (art. 155, II,
do CPC), não produz efeito social, o que excluiria a idéia de ilicitude. Essa
é uma verdade processual relativa, porque, na prática, os fatos compromete-
dores da intimidade dos personagens dos processos, mesmo sob guarda do
sigilo, ultrapassam, de forma inexplicável, os umbrais dos cartórios e espa-
lham-se pela comunidade, para desespero dos interessados.78 Mas, ainda
que fosse o processo engavetado com a vigilância de um diligente escreven-
te, a honra subjetiva (conceito de si próprio ou auto-estima)79 termina ul-
trajada, sugerindo a indenização que promete curar o sofrimento de um
processo carregado de inverdades. Recorde-se que o dinheiro que se manda
pagar não cura a dor, embora apresente “função meramente satisfatória, pro-
curando, tão-somente, suavizar certos males, não por sua natureza, mas pelas
vantagens que o dinheiro poderá proporcionar, compensando até certo ponto o
dano que foi injustamente causado”.80
É importante observar que também não exclui a responsabilidade do
advogado que introduz um libelo ofensivo à honra da mulher a alegação de
que agiu no exercício regular de um direito, qual seja, o de defesa do réu
(art. 188, I, do Código Civil de 2002). Não importa as informações ou
instruções transmitidas pelo cliente sobre a conduta da mãe do investigan-
do, que, repita-se, não é parte no processo. Eduardo Espínola já afirmava
que o “advogado não obedece à orientação do cliente, mas empreende um serviço
autônomo, exerce sua profissão de acordo com os seus conhecimentos técnicos”.81

78
O arguto advogado fluminense, dr. Sérgio PORTO, não deixou de observar, ao redigir artigo doutrinário “Afronta
à família“ (publicado em “Novo Código Civil”, edição COAD, p. 26; Revista Síntese de Direito Civil e Processual
Civil, nº 16, p. 135 e Revista Nacional de Direito e Jurisprudência, 33, p. 63) que “não venha com o argumento
de correrem os feitos em “segredo de justiça”, pois isso não é verdade. As vísceras do amor perdido são lançadas
aos olhares dos curiosos, e, quando as partes em litígio têm notoriedade, cresce ainda mais o estrépito judicial“.
79
O jurista Miguel REALE distingue bem as duas espécies de dano moral, ao afirmar que o “o dano moral objetivo
(aquele que atinge a dimensão moral da pessoa no meio social em que vive, envolvendo o de sua imagem) e
o dano moral subjetivo que se correlaciona com o mal sofrido pela pessoa em sua subjetividade, em sua
intimidade psíquica, sujeita a dor ou sofrimentos intransferíveis porque ligados a valores de seu ser subjetivo,
que o ato ilícito veio penosamente subverter, exigindo inequívoca reparação” (“O dano moral no direito
brasileiro”, in: Temas de Direito Positivo, RT, 1992, p. 23).
80
DINIZ, Maria Helena. “A responsabilidade civil por dano moral“, in: Revista Literária de Direito, nº 9, p. 8.
81
ESPÍNOLA, Eduardo. Questões Jurídicas e Pareceres, p. 250.

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 155

Ora, se é desnecessário desafiar a reputação da mulher (principalmente a


honesta), pela auto-suficiência do exame DNA, cumpre ao advogado aban-
donar essa estratégia de defesa, mesmo que a gosto do cliente, porque po-
tencialmente comprometedora no aspecto profissional e, eventualmente,
suscetível de gerar o dever de reparar o dano moral.
Como o direito de família está intimamente relacionado com o fator
dignidade humana (artigo 1º, III, da CF), o processo que o serve procura
meios para reconstruir planos de vida. Portanto, na medida em que o uso do
processo de ações de família ganha em dignidade, maior importância alcança
no seu papel de representante da cultura da sociedade. Sem dúvida que esse
caminho, aberto para ser trilhado, elimina de seu campo de atuação a agres-
são inútil que em nada contribui para que os personagens, que quase criaram
uma família, se aproximem para uma convivência saudável. Golpes de papel
serão severamente censurados por intermédio da responsabilidade civil.

5. Responsabilidade objetiva da sociedade de advogados

O preceito do artigo 14, § 4º, da Lei nº 8.078/90 (responsabilidade


subjetiva do profissional liberal), aplica-se ao advogado que trabalha indivi-
dualmente. Quando o serviço jurídico é prestado por sociedades de advoga-
dos, a responsabilidade deixa de ser subjetiva (dependente de culpa) e regula-
se pela objetiva, ou seja, independente da prova da culpa.82 Evidente que não
se outorga procuração a uma sociedade de advogados; contudo, mesmo emi-
tindo-se mandato para determinados sócios, a sociedade de advogados res-
ponderá de forma objetiva e, depois, poderá exercer o direito de regresso em
face do profissional culpado. No caso de o dano ser provocado por advogado
empregado de uma empresa, a sociedade empregadora responderá e, da mes-
ma forma, poderá exercer o direito de regresso ao culpado.83
Os advogados unem-se para trabalho conjunto (sociedade de advogados)
por vários motivos. O hoje juiz, Américo Izidoro Angélico,84 anotou pelo
menos três razões: agrupar para intercâmbio de idéias jurídicas; economizar
custos da instalação do escritório e impulso empresarial, uma necessidade no

82
GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. cit., p. 385.
83
VASCONCELOS, Fernando Antonio de. “A responsabilidade do advogado à luz do Código de Defesa do
Consumidor”, in: Revista de Direito do Consumidor, RT 30/96.
84
ANGÉLICO, Américo Izidoro. Sociedade de Advogados. RT 585/166.

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156 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

mundo competitivo contemporâneo. Orlando Gomes85 considera as socieda-


des de advogados como sociedades civis que, por isso, se subordinam ao regi-
me jurídico das sociedades mercantis. A solidariedade, subsidiária e ilimita-
da, como prevista na Lei nº 8.906/94, não ofende ao sentido do novo Código
Civil (art. 1.016, que inscreve a responsabilidade solidária dos administrado-
res da sociedade simples perante terceiros).
Em seu mais recente trabalho doutrinário, o professor Luiz Antônio Soa-
res Hentz,86 da Unesp-Franca, reafirma que o novo Código Civil não inclui a
sociedade de advogados (ou outros profissionais liberais) entre as pessoas jurí-
dicas de direito privado, exatamente porque não assume tal entidade respon-
sabilidade obrigacional distinta da pessoa de seus membros (que é condição
sine qua non da pessoa jurídica regular), de modo que “não há, na sociedade de
advogados, separação patrimonial para efeitos de proteção patrimonial dos sócios
contra execuções por dívidas da sociedade”.
O art. 17, da Lei nº 8.906/94, estabelece que o sócio de uma socieda-
de de advogados, responde, “subsidiária e ilimitadamente”, pelos danos
causados aos clientes. Protestos existem em torno desse preceito, o que é
inadequado, pois “a regra, no direito societário brasileiro, é da subsidiariedade
da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais. Apenas na sociedade em
comum o sócio que atuar como representante legal responde diretamente”.87
Nada obsta que, entre os advogados sócios se estabeleça, paralelamente,
um segundo liame de responsabilidade solidária (interna), o que legaliza
limitação “de responsabilidade de algum dos sócios perante os demais nas suas
relações internas”.88 Essa opção de um segundo vértice contratual entre os
advogados associados está prevista e autorizada no art. 2º, X, do Provimen-
to nº 92, da OAB.
A sociedade de advogados constitui-se sob o estímulo da affectio societatis,
como as demais sociedades. Contudo, é fundada com o objetivo de
intercambiar a cooperação profissional, uma aliança que recrudesce a recipro-
cidade na prestação de serviços. Essa fusão de propósitos encaminhou o dr.
Ruy de Azevedo Sodré a garantir que, quando a sociedade atua com o uso da

85
GOMES, Orlando. Questões de Direito Civil, p. 395.
86
HENTZ, Luiz Antônio Soares. Direito de Empresa no Código Civil de 2002, p. 167.
87
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, vol. 2, p. 27.
88
SILVA, Walter Guerra. “Sociedade de advogados: conceito, característica e livre exercício no Mercosul”, in:
Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil,vol. 18, p. 48.

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 157

razão social, “não são os sócios individualmente que praticam o ato incriminado,
e, sim, a totalidade deles, integrante da sociedade”.89 Daí o acerto do reconheci-
mento da solidariedade que a Lei nº 8.906/94, art. 17, estabeleceu e que se
confirma no novo Código Civil (art. 265).

6. Execução impossível

O direito das obrigações estrutura-se na dicotomia “prestação” (manifes-


tação de vontade) e “responsabilidade”, essa última autorizando a intervenção
judicial para, por intermédio da execução forçada, expropriar bens do deve-
dor visando satisfazer, com a venda deles em leilão, o direito do credor. Esse é
o sentido da obrigação perfeita do devedor e que corresponde a “pretensão e
ação do credor”.90 A execução é dirigida ao patrimônio do devedor, quando a
inadimplência dá o seu sinal marcante (art. 580, do CPC), tanto em se tra-
tando de créditos materializados em títulos extrajudiciais, quanto para os
judiciais. Transcreve-se, para ilustrar, trecho da obra de Trabucchi:91 “En todo
caso, tanto en el cumplimiento en forma específica como en el resarcimiento de
daño, existe un princípio general en cuya virtude el debedor responde del
cumplimiento de sus obrigaciones con todos sus bienes presentes y futuros. Ello por-
que, como se dice, el patrimonio representa, en cierto modo, la proyección de la
responsabilidad del deudor, y porque el valor de las obrigaciones puede merdirse en
relación a la situación patrimonial del obligado; o sea, el numero y calidad de sus
bienes. Por tanto, el buen nombre y crédito del deudor no vendrá dado únicamente
por sua conducta correcta en el cumplimiento de sus obrigaciones (correttezza),
sino también en atención al valor económico de sua propiedad.”
Um dos maiores desafios da efetividade da justiça (art. 5º, XXXV, da CF)
reside justamente na vulnerabilidade da execução forçada, tanto que o próximo
passo do movimento reformista do estatuto processual reserva novidades para
que o resultado satisfatório possa ser obtido. Todavia, não se poderá ignorar que
o maior entrave para a pronta eficácia da execução decorre “da dificuldade de
localização dos bens do devedor”.92 Quando não se localizam bens para que se
realize a penhora (art. 659, do CPC), ou são os existentes insuficientes para a

89
SODRÉ, Ruy de Azevedo. Sociedade de Advogados, RT, 1975, p. 34.
90
SILVA, Clóvis V. do Couto e. A Obrigação Como Processo, p. 101.
91
TRABUCCHI, Alberto. Instituciones de Derecho Civil. II/40.
92
GRECO, Leonardo. “A crise no processo de execução”, in: Temas Atuais de Direito Processual Civil, p. 216.

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158 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

sua finalidade, torna-se “impossível” conseguir a execução, “denunciando situa-


ção de absoluta impotência da organização jurídica da sociedade”.93
Alberto dos Reis anotou que aquele que contrai uma obrigação assume a
responsabilidade civil de satisfazer a dívida, sujeitando-se à responsabilidade
executiva; porém, “se não tiver bens alguns, ou se todos os seus forem impenhoráveis,
ou se os seus bens penhoráveis forem insuficientes para assegurar o pagamento ao
credor, a responsabilidade executiva não funciona” (grifei).94
Não há, evidentemente, responsabilidade do advogado do credor, diante
da execução impossível ou que não funciona. A conseqüência do insucesso
executório é, na maioria das vezes, resposta da falta de critério do credor quando
da constituição do vínculo obrigacional (falta de diligência em apurar a poten-
cialidade econômica do devedor) ou até de imposição legal, como a Lei nº
8.009/90 (que tratou da impenhorabilidade do bem de família). Porém, em
uma situação especial, poderá o advogado sentir o peso da imputação de culpa
pela execução impossível, qual seja, quando, na execução de uma sentença
condenatória, evidenciar-se que o devedor alienou, no curso da lide, todo o seu
patrimônio para terceiros (provavelmente de boa-fé), esvaziando, sem censura,
a garantia da execução, porque não se tomou uma providência legal.
Deriva isso de uma política jurisprudencial vitoriosa, aberta para priorizar
o direito do terceiro comprador (desde que de boa-fé) diante do credor que não
consegue penhorar bens do devedor, depois de percorrida uma longa e exaus-
tiva trajetória para criar o título que lhe garantiu a execução de seu direito. Essa
posição firme do STJ, no trato da matéria de fraude de execução (art. 593, II,
do CPC), surgiu da interpretação do art. 659, §§ 4º e 5º, do CPC, que
disciplina a inscrição, no registro imobiliário, tanto de penhoras (artigo 167,
I, e 5º, da Lei nº 6.015/73) quanto das citações de ações reais ou pessoais
reipersecutórias relativas a imóveis (artigo 167, I, 21, da Lei nº 6.015/73).
Não resta dúvida de que a inscrição da penhora passou a ser fundamental
como mecanismo de controle de fraude de execução. O credor que a registra
garante a sua eficácia contra terceiros, porque o registro confere publicidade
geral, excluindo-se a possibilidade de o terceiro que adquire o imóvel penhorado
alegar boa-fé. Embora o renomado Cândido Rangel Dinamarco95 observe que

93
LIEBMAN, Enrico Tullio. Processo de Execução, p. 33.
94
REIS, José Alberto dos. Processo de Execução, I/313.
95
DINAMARCO, Candido Rangel. Op. cit., p. 148.

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 159

o registro devesse ser complemento da penhora (recaindo ao exeqüente o dever


de satisfazer os custos do registro) para que a norma cumpra a sua finalidade,
o fato é que, na prática, isso não se verifica. É comum esquecer-se do registro
depois da penhora.96
Conclusão: na disputa pelo bem penhorado, a tendência é admitir a
eficácia da compra e venda de imóvel cuja matrícula não acusava penhora,
salvo em se confirmando que o comprador possuía conhecimento da penhora
não registrada (prova difícil de ser produzida): “sem o registro da penhora não se
caracteriza a fraude à execução, salvo prova de que o adquirente tinha conheci-
mento da ação” (Resp. nº 245.064/MG, min. Ari Pargendler, DJU 4.9.2000,
in: Informativo ADV, da COAD nº 04/2001, p. 62, verbete nº 95.696).97
Efetivar o registro da penhora passou a ser diligência obrigatória, porque
de sua efetividade depende o êxito ou satisfação completa da execução (pre-
sunção absoluta de conhecimento de terceiros, impedindo a sustentação de
alienações em fraude de execução). Pergunto: se o advogado não providencia o
registro da penhora de imóvel que é, depois, alienado pelo devedor e, por
conta disso, se reconhece a predominância da boa-fé do terceiro adquirente, é
possível responsabilizar o advogado por ter o cliente perdido a chance de levar
o imóvel do devedor à arrematação?
Parece evidente a afirmativa. O sistema processual foi remodelado para
proteger o instituto da penhora e, por isso, facilitou-se o registro do ato para
que terceiros não disputem o domínio do bem do devedor que será alienado
em juízo para pagar os credores. É erro de conduta, de técnica, não providen-
ciar o registro da penhora. Portanto, falhando o advogado com esse dever
primário, ciente da jurisprudência que reprime tal omissão, com conseqüên-
cias gravíssimas para o credor, confirma-se o nexo de causalidade, ou seja, a
certeza de que o prejuízo do cliente (com a execução impossível) decorreu da
desídia de seu advogado. Não encontrei causa que exonere o profissional da

96
Não obstante abalizados comentários de que o registro seria a última etapa do aperfeiçoamento da penhora
(devendo ser providenciado de ofício pelo escrivão do feito), essa doutrina não encontrou receptividade. Agora,
na forma da nova redação do art. 659, § 4º, do CPC (alterado por força da Lei 10.044, de 7.5.2002), o credor
poderá obter o registro da penhora exibindo, no serviço predial, “certidão de inteiro teor” do auto ou termo de
penhora, o que dispensa o mandado judicial que antes se exigia para inscrever a penhora.
97
No mesmo sentido: Resp. 131.587-RJ, DJU de 07.08.2000, min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, in RT 783/249;
Resp. 243.497 MS, DJU de 26.06.2001, min. Aldir Passarinho Júnior, in RT 795/172; Resp. 234.148 SP, DJU de
27.05.2002, min. Aldir Passarinho Júnior, in Revista Nacional de Direito e Jurisprudência, vol. 31, p. 106; REsp.
131.871 MG, DJU de 17.04.2000, min. Nilson Naves, in RSTJ 138/292 e REsp. 112.024 SP, DJU de 01.07.2002,
min. Aldir Passarinho Júnior, in Revista Nacional de Direito e Jurisprudência, vol. 33, p. 101.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 123-176, janeiro/junho - 2003


160 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

responsabilidade civil, salvo se houver culpa exclusiva do cliente (não recolher


as custas do registro da penhora).
Muda-se o enfoque em caso de ocorrer a descapitalização imobiliária do
devedor, no curso da ação de conhecimento. Elaboro outro quesito em con-
seqüência disso: “deve o advogado providenciar, sempre que ajuizar ação de res-
sarcimento de danos, o registro da citação para garantir a execução futura, sob
pena de responder, se não o fizer, pela ‘execução impossível’ que se verifica quando
não se consegue penhorar os bens do devedor, porque adquiridos por terceiros de
boa-fé no curso do processo?”.
Essa situação não é típica de responsabilidade objetiva que a falha do
registro da penhora cria, porque, aqui, não existe obrigação legal da providên-
cia (registro da citação/distribuição da ação) e, na forma do art. 5º, II, da CF,
poderá o advogado recorrer ao elemento dúvida jurídica legítima, para exone-
rar-se da obrigação de reembolsar o cliente que, depois de obter a condenação
do réu, não consegue penhorar bens do devedor.
É importante assinalar que o advogado Ernesto Antunes de Carvalho98
apontou três razões para dispensar o registro da citação ou distribuição da
ação: não-obrigatoriedade do ato, ao contrário do que ocorre com a penhora;
alto custo financeiro do registro (onerando, ainda mais, o autor) e falta de
especificidade do bem a ser penhorado no futuro. Acrescento mais uma a esse
excelente estudo: o risco de ter o autor que providencia um registro dessa
ordem e que, naturalmente, restringe a expectativa do réu, como proprietá-
rio, de dispor de seus bens, de responder, em caso de improcedência da ação,
por prejuízos que essa restrição provocou, inclusive não patrimoniais. Todo
esse debate mostra que a matéria é polêmica, sem unanimidade jurispruden-
cial, o que, em termos de obrigação de diligência, não vincula o advogado.

7. Risco de execução de títulos de créditos


emitidos para retribuição dos serviços

O exercício da advocacia impõe ao advogado certos deveres de conduta


pessoal que vão desde a forma de se trajar (com sobriedade), passando pela

98
CARVALHO, Ernesto Antunes de. “Reflexões sobre a configuração da fraude de execução segundo a atual
jurisprudência do STJ”, in: Processo de Execução, p. 335.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 123-176, janeiro/junho - 2003


RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 161

maneira como organiza sua carteira de clientes (proibição de anúncios publi-


citários espalhafatosos e do conhecido garimpo — infiltração de agentes em
ambientes de fábricas e outros setores, com o propósito de incentivar a aber-
tura de litígios e arregimentar clientes), culminando com os limites para a
exigibilidade de seus honorários.
A Lei nº 8.906/94, em seu artigo 22, assegura o direito aos honorários e
o artigo 23, para complementar, assegura que a verba honorária decorrente da
sucumbência pertence ao advogado, que, inclusive, está legitimado a, em
nome próprio, executar a sentença, conforme admitiu decisão do STJ (REsp.
nº 191.378/MG, DJU de 20.11.2000, ministro Barros Monteiro, in: RSTJ
151/414). Apesar desses mecanismos de proteção ao sagrado direito de retri-
buição profissional, continua o advogado sendo alvo da ingratidão dos clien-
tes (que depois do êxito da ação se esquecem de valorizar o serviço prestado) e
sofrem com a inadimplência. Carvalho Neto chegou a afirmar as desculpas
para isso não várias e pitorescas, até o de provar a inteligência “dando calote no
próprio advogado”.99
O artigo 42 do Código de Ética e Disciplina da OAB veda a emissão de
títulos de créditos para cobrança de honorários (exceto a fatura de serviços
prestados, por conveniência do cliente), “vedada a tiragem de protesto”. O
objetivo da proibição é manter o advogado afastado das disputas econômicas,
como que buscando preservá-lo desses julgamentos. Maurice Garçon100 es-
creveu o seguinte a esse respeito: “Advogados houve que se mostraram credores
implacáveis e se sujeitaram, no decurso dos debates, a ver contestada a importância
dos serviços prestados. Discutia-se não só o princípio do direito aos honorários, mas
a quantia pedida, e os tribunais viam-se na necessidade de avaliar e taxar o preço
das consultas e das defesas orais. Sórdidos debates que deslustravam a profissão,
mesmo quando o advogado vencia a demanda.
Em tais circunstâncias, a Ordem dos Advogados, árbitro das regras do exercí-
cio da profissão, tomou, nos fins do século XVII, a deliberação de proibir tais ações.
Se a lei facultava ao advogado o meio de pedir por via judicial o pagamento dos
honorários, os advogados não o utilizavam; para dele se servirem tinham de re-
nunciar à profissão.
Esta situação manteve-se até aos tempos de hoje”.

99
CARVALHO Neto. Advogados, p. 94.
100
GARÇON, Maurice. O Advogado e a Moral, p.149.

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Ao advogado cabe exercer o seu sagrado direito de cobrança na forma


prevista em lei, com execução do contrato de trabalho, evitando-se as ativida-
des que são apropriadas para o comércio em geral. Portanto, e na eventualida-
de de o advogado protestar um título de crédito para forçar o pagamento de
honorários que estão sendo questionados pelo cliente, poderá esse seu proce-
der configurar não só um desrespeito das normas deontológicas, como um
ilícito suscetível de fundamentar pedido de indenização por danos morais
(abalo de crédito), tal como se sucede com inscrição indevida do sujeito na
lista de devedores inadimplentes.

8. Imunidade judiciária

O advogado conta com imunidade no exercício de sua função (art. 7º, §


2º, da Lei nº 8.906/94). Fábio Konder Comparato101 considera que o advo-
gado se equipara ao parlamentar no que concerne à imunidade prevista no
art. 142, I, do CP, porque “assim como o parlamentar deve atuar com total
liberdade de palavra, iniciativa e opinião na fiscalização dos demais Poderes, com
a mesma liberdade e independência deve o advogado agir em juízo, sem receio de
ver sua atuação coartada pelo temor de ofensa à honra alheia”. Como a atividade
depende de materialização de arrazoados forenses, pode ocorrer que, no auge
da fundamentação, o profissional exceda os limites da recatada prudência que
imprime sobriedade na linguagem dos processos. O TJ-SP não admitiu a
condenação de advogado, por danos morais, pelo emprego de expressões “can-
dentes” e que feriram a suscetibilidade da parte adversa (Ap. nº 085.813-4/7,
des. Paulo Menezes, in: RT 774/240).
O processo é um amontoado de papéis que conta uma história de vida.
Exatamente por sua finalidade, poderá não só ser instrumento da realização do
direito material, como se transformar em veículo de ofensas à dignidade huma-
na dos seus personagens (artigos 1º, III e 5º, V e X, da Constituição Federal).
Contudo, porque os juízes são acostumados a interpretar os ânimos dos con-
tendores, sabem que o processo se forma com mensagens duras, verdadeira-
mente contundentes. Esse conhecimento dos magistrados é uma garantia
contra a censura das manifestações pesadas que são necessárias para revelar a
verdade de um fato ou de uma ação tendenciosa e o exemplo do que se diz está

101
COMPARATO, Fábio Konder. “A função do advogado na administração da justiça”, RT 694/47.

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 163

no julgamento da Ap. Cível nº 57.605-4, do TJ-SP (JTJ-Lex 217/79), pelo


qual um advogado estava sob acusação de ter ofendido a parte adversa, com
expressões pessoais como “frívolo, não quer trabalhar e que o dinheiro da desejada
indenização não lhe servirá para nada, salvo de pretender permanecer na vadia-
gem”. O digno desembargador Laerte Nordi, declarando voto vencedor, con-
siderou que as frases empregadas pelo advogado são apropriadas para a contro-
vérsia sobre pedido de dano moral e livrou o profissional da indenização que
o Juízo de Primeiro Grau havia declarado (vinte salários mínimos).
A imunidade não é um privilégio corporativista; é uma bandeira erguida
para defesa da soberania da função, sem o que o profissional não se encoraja na
luta pela preservação da liberdade e dos demais direitos alheios. Tal como os
políticos que são escalados para “combater os abusos” e que contam com a
inviolabilidade em suas opiniões para que não fiquem “sujeitos a incômodos,
perseguições e reações”,102 deverá o advogado merecer, igualmente, essa proteção.
Nesse sentido a mensagem do ministro Sydney Sanches, do STF, emitida
quando do IV Seminário de valorização profissional do Advogado: “E exercido
(advocacia) com a segurança necessária, para que o advogado não se atemorize
diante dos poderosos, dos truculentos e dos arbitrários, pois esse temor enfraquece a
defesa do direito de seu constituinte e repercute na obtenção da verdadeira Justiça”.103
Porém, o excesso foi censurado com indenização por danos morais pelo
STJ (REsp. nº 151.840/MG, DJU de 23.09.1999, ministro Sálvio de Fi-
gueiredo Teixeira, in: RSTJ 124/361). O processo em epígrafe revela que
realmente o advogado ultrapassou os limites ao analisar a atuação do advoga-
do da parte adversa, imputando-lhe, sem provas, uma série de atividades
ilícitas, o que, sem dúvida, caracterizou ofensa à honra. Constou da ementa:
“A imunidade profissional, garantida ao advogado pelo novo Estatuto da Advoca-
cia e da OAB não alberga os excessos cometidos pelo profissional em afronta à
honra de qualquer das pessoas envolvidas no processo, seja o magistrado, a parte, o
membro do Ministério Público, o serventuário ou o advogado da parte contrária.
Segundo firme jurisprudência da Corte, a imunidade conferida ao advogado no
exercício da sua bela e árdua profissão não constitui um bill of indemnity”.
O excesso verbal não se compraz com a importância do trabalho do advo-
gado. Miguel Reale104 escreveu que a “linguagem é o solo da cultura” e daí

102
PIMENTA BUENO. Direito Público Brasileiro, p. 118.
103
SIDNEY SANCHES. “O Advogado e o Poder Judiciário”, RT 648/249.
104
REALE, Miguel. “Cultura e linguagem“. Jornal o Estado de S.Paulo, 14.09.2002, A-2.

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164 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

“poder-se dizer que o ser do homem é o seu dever-ser consubstanciado na linguagem


que o tornou capaz de realizar-se como pode e deve fazê-lo. Parece-me essencial essa
dupla compreensão do ser humano em seu dever-ser através da linguagem”. Con-
vém registrar que o STJ não admite a exclusão da ilicitude (estrito cumprimen-
to do dever legal – art. 23, III, do CP) no crime de calúnia, mas tão-somente
a injúria e a difamação (RO em HC nº 11.324 SP, DJU de 12.11.2001,
ministro José Arnaldo da Fonseca, in: RT 798/559): “Não está acobertado pelas
causas de exclusão da ilicitude do estrito cumprimento do dever legal ou exercício
regular do direito, nos termos do art. 23, III, do CP, o advogado que, através de
petição, assaca ofensas caluniosas contra o magistrado da causa, pois os poderes do
causídico na sua esfera de atuação profissional não são absolutos e incontestáveis,
devendo ser puníveis os eventuais excessos e abusos cometidos pelo profissional”.
Portanto, é por meio da linguagem lançada nas peças do processo que o
advogado revela o seu dever-ser na organização jurídica, que, por certo, não
será desrespeitoso, ofensivo, ultrajante. O processo, não obstante um meca-
nismo (meio) de fazer o direito material, na verdade se transforma em corpo e
alma da justiça no caso concreto, com sentido público, de modo que passa a
ser inconveniente a falta de recato na linguagem a ser empregada nos atos
formadores do processo justo (art. 5º, LV, da CF), ainda que o ressentimento
que mova o impulso ou a reação violenta possa ser explicado, quer pela teme-
ridade da lide, quer pelo abuso de direito de defesa da parte adversa e, inclu-
sive, pela morosidade da justiça. Os expedientes próprios para debelar esses
incidentes de percurso existem e, entre eles, não está situada, como legítima,
a ofensa verbal aos demais protagonistas do processo. O desabafo com ofensas
implica a responsabilidade do advogado por lesões de ordem moral aos desti-
natários de suas mensagens, porque a atuação descomedida, no uso das pala-
vras e gestos, consubstancia ato personalíssimo ou de culpa profissional.
Em recente sessão de conferência de votos, o desembargador Alfredo
Miglione, da Terceira Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de
São Paulo (Ap. nº 172.666-4/4), apresentou proposta (que foi recepcionada
sem dissenso dos demais membros da Turma Julgadora) de representar à OAB,
na forma do art. 7º, § 2º, da Lei nº 8.906/94, para que a Comissão de Ética
e Disciplina examine (e, eventualmente, censure) a postura do advogado da
apelante, por ter qualificado a sentença apelada como “desprezível e execrável”,
além de “abjudicável e desprezável”, termos absolutamente impróprios, des-
necessários e incompatíveis com o dever de recorrer e comprovar o acerto da
tese de inconformismo.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 123-176, janeiro/junho - 2003


RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 165

O advogado não é censurado somente quando dirige impropérios aos


juízes. Em processo de concordata, o advogado de um dos credores assinou
petição, com as seguintes expressões em face do ex adverso: “engendrar uma
chicana”; “expedientes obscuros e escusos”; “safadeza” e “desonestidade”, “pa-
trocinado uma das maiores desonestidades que a Justiça capixaba tinha noti-
cias”. O advogado destinatário dessas ofensas ingressou com ação de ressarci-
mento de danos e obteve sentença favorável (o TJ-ES, no entanto, determi-
nou que se fixasse o quantum em liquidação). O advogado réu, em causa
própria, foi ao STJ, que não conheceu do recurso especial (REsp. nº 163.221
ES, DJU de 05.08.2002, in: Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil,
nº 19, p. 97, ementa nº 1.925), com a seguinte observação do relator, minis-
tro Sálvio de Figueiredo Teixeira: “O advogado, assim como qualquer outro pro-
fissional, é responsável pelos danos que causar no exercício de sua profissão. Caso
contrário, jamais seria ele punido por seus excessos, ficando a responsabilidade
sempre para a parte que representa, o que não tem respaldo em nosso ordenamento
jurídico, inclusive no próprio Estatuto da Ordem”.

9. Atuação na Justiça Criminal


- Prisão pelo não-pagamento de dívida alimentícia pretérita

Importante consignar, tal como enfatizado por Ernesto Lippmann105,


que a culpa do advogado, no juízo criminal, é bem mais grave em termos de
reparação de danos, por eventual sacrifício da liberdade do cliente (o que
notabiliza o dano indenizável), além da repercussão destrutiva da condena-
ção injusta (imposta por uma falha do advogado, por exemplo), justifican-
do a indenização por dano moral (artigos 5º, V e X, da CF e 186, do
Código Civil de 2002).
O exame DNA é valioso para a apuração da autoria de crimes que dei-
xam vestígios e permite a identificação positiva em favor da segurança da
justiça.106 Na hipótese de o DNA confirmar que uma condenação foi emiti-
da em virtude de erro judiciário (o exame que se realizou no pedido de
revisão criminal excluiu a autoria imputada ao réu), a atuação do advogado,
na defesa desse processo que permitiu uma sentença injusta, será investigada,

105
LIPPMAN, Ernesto. “A responsabilidade civil do advogado vista pelos tribunais”, in Informações Jurídicas e
Empresariais ADCOAS, nº 6, p. 172.
106
AMAR, Ayush Morad, e AMAR, Marcelo J. Ayush. Aplicações Médico-Legais do DNA, p. 19.

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166 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

para aferição da culpa. É permitido afirmar, contudo, que não só ao Estado


(Poder Público) recai o peso da prisão indevida; o advogado, a quem cabia
requerer a perícia que faltou para livrar o réu da culpa, poderá suportar a
responsabilidade civil pela negligente atuação.
A prisão indevida do cliente poderá estar conectada com a falta de dili-
gência do advogado e, uma vez estabelecido esse nexo de causalidade, respon-
derá pelos prejuízos patrimoniais e morais, seguindo a liquidação do dano a
mesma diretriz utilizada para compor o prejuízo que se atribui ao Estado
(Poder Público) por erro judiciário, ou seja, restituindo o que a vítima perdeu
em termos salariais no período de custódia e de dano moral, por ser inegável
o constrangimento social que daí deflui. No caso, ainda, de se confirmar que
a custódia indevida comprometeu a carreira da vítima do erro profissional
(normalmente isso ocorre, porque, mesmo depois de alforriado, o encarcera-
do não consegue recuperar o antigo status empregatício, uma conseqüência do
estigma da prisão, justa ou injusta), é devido um pensionamento que com-
pense a diferença salarial prejudicada pela submissão a sub-empregos com
renda depreciada.107
Convém abrir um parágrafo para analisar os efeitos da atuação de ad-
vogado diante de uma outra verdade inscrita na ordem jurídica por meio
da jurisprudência: prisão por dívidas alimentícias consideradas pretéritas.
Não custa relembrar: “nascido da jurisprudência, o direito vive pela jurispru-
dência, e é pela jurisprudência que vemos muitas vezes o direito evoluir sob uma
legislação imóvel”.108
A Constituição Federal permite a prisão civil pelo não-pagamento de
dívidas alimentícias (art. 5º, LXVII), desde que se observe o processo justo
para esse fim (art. 733, parágrafo único, do CPC). Não obstante conside-
rada como obrigação sagrada a merecer cumprimento à custa dos mais
dolorosos sacrifícios109, o fato é que ocorre, lastimavelmente, uma incrível
resistência e, não raro, os juízes priorizam, com o decreto de prisão, o
direito de subsistência digna dos alimentandos (art. 1º, III, da CF). So-
mente sentindo ameaçada a liberdade, certos devedores concordam em

107
Em sua mais recente obra jurídica, o des. Carlos Roberto GONÇALVES anota que o art. 950, do CC de 2002,
admite a pensão para compensar prejuízo decorrente da inabilitação para o trabalho, quer igual à “importância
do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu, sem prejuízo da reparação de eventual
dano moral” (Principais inovações no Código Civil de 2002, p. 55).
108
CRUET, Jean. A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis, p. 22.
109
RIPERT, Georges. A Regra Moral nas Obrigações Civis, p. 365.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 123-176, janeiro/junho - 2003


RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 167

depositar as prestações que são essenciais para o sustento dos filhos meno-
res. O próprio STF declarou que a prisão civil “funciona, na verdade, como
meio de forçar o cumprimento da obrigação de garantir a sobrevivência dos
alimentandos” (HC nº 68.724/RJ, ministro Carlos Velloso, in: R.T.J. 175/
950). Essa realidade sofreu uma profunda alteração, no que se refere a
execução de dívidas acumuladas, e advogado que se preze não pode ignorar
a interpretação contemporânea que livra os devedores da prisão pelo não-
pagamento de dívidas pretéritas (assim consideradas as que não se referi-
rem às três últimas).
As prestações que não são exigidas e que se acumulam, por desídia do
credor, perdem, segundo o novo entendimento, o caráter alimentar e se trans-
formam em dívidas de dinheiro. Como os valores não são essenciais para a
subsistência do alimentando, não se justifica prender o devedor que não os
paga, competindo ao credor perseguir a satisfação do crédito na forma con-
vencional, isto é, por intermédio da execução com penhora de bens (art. 732,
do CPC). O acórdão que inspirou essa forma de interpretar é do STF (HC nº
75.180/MG, julgado em 10.06.1997, relator o ministro Moreira Alves), sem-
pre citado na obra que é indispensável aos operadores do direito e da autoria
de advogado exemplar (dr. Theotonio Negrão)110. Logo o STJ aderiu (REsp.
nº 175.003/MG, DJU de 1.8.2000, ministro Waldemar Zveiter, in: RSTJ
138/301): “Nos termos da jurisprudência que veio a firmar-se nesta Corte, em
princípio apenas na execução de dívida alimentar atual, quando necessária à
preservação da sobrevivência do alimentando, se mostra recomendável a comina-
ção de pena de prisão ao devedor. Em outras palavras, a dívida pretérita, sem
capacidade de assegurar no presente a subsistência do alimentando, é insusceptível
de embasar decreto de prisão”.
O TJ-SP não agiu de forma diferente. Em julgado de 05.08.1999, o
desembargador Mohamed Amaro (HC nº 118473.4/8, in: Revista Nacional
de Direito e Jurisprudência, nº 0, p. 219) afirmou que “a prisão civil por dívida,
máxime de natureza alimentar, constitui medida excepcional de coerção do ali-
mentante a fim de que honre a obrigação. Logo, não se trata de pena e, tampouco,
destina-se a punir o alimentante. Custódia que deve restringir ao não-pagamento
das três últimas mensalidades vencidas”. Nesse mesmo sentido, assinei acórdão
(HC nº 082.282-4/0, julgado em 12.05.1998, in: RT 756/227) e o STJ

110
NEGRÃO, Theotonio. Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor, p. 796.

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168 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

reafirma (RO em HC nº 9.228/RJ, DJU de 13.11.2000, ministro Aldir Pas-


sarinho Júnior, in: RT 787/184).111
É importante anotar que somente as dívidas vencidas no trimestre an-
tecedente ao pedido é que são havidas como pretéritas; as que se vencem no
decorrer do processamento da execução são atuais, ainda que demore a so-
lução, pois, se assim não se entendesse, valeria o ditado de “não pago dívidas
velhas, porque pretéritas; quanto às novas, espero que envelheçam, para que
também não as pague”. Há oposição radical112e flexível,113 sem força de arre-
fecer o enunciado da jurisprudência que, a cada sessão de julgamento, se
engrandece (HC nº 19.195/RJ, DJU de 27.05.2002, p. 174, ministro
Barros Monteiro, in: Revista Nacional de Direito e Jurisprudência, 31/98 e
RO-HC nº 11.717 SP, j. 19.11.2001, ministro Cesar Asfor Rocha, in: In-
formativo ADV, da COAD, nº 13/2002, p. 205, verbete nº 101.046). Ano-
tei no julgamento de 26.03.2002 (HC nº 226.990.4/0, in: Revista Nacio-
nal de Direito e Jurisprudência, 32/178): “Habeas corpus. Prisão civil por
dívida de alimentos (arts. 733 do CPC e 5º, LXVII, da CF). Diante da juris-
prudência vitoriosa que não admite prisão pelo não-pagamento de dívidas preté-
ritas, fica caracterizado o constrangimento ilegal da prisão por dívidas acumu-
ladas desde julho de 1997. Ordem concedida”.114
Resulta que, se o advogado contratado para atuar na defesa do devedor
de alimentos, convocado para quitar dívidas acumuladas, sob pena de pri-
são civil (art. 733, do CPC), não usar do benefício da jurisprudência que
desautoriza prisão civil por dívidas pretéritas, estará, com essa omissão, per-
mitindo que o Estado-juiz comprometa a liberdade de seu cliente contra

111
Hoje é indiscutível o não-cabimento da prisão civil do alimentante que não paga dívidas pretéritas. Os tribunais
estão emitindo julgados em série nesse sentido, ora acolhendo pedidos de habeas corpus (consideram
constrangimento ilegal submeter o alimentante a uma prisão por dívidas que perderam o caráter alimentar), ou
reafirmando legalidade da prisão civil pelo não pagamento de dívidas atuais. Desse teor, recente pronuncia-
mento do STF (HC 81.391-7 SP, min. Sydney Sanches, DJU de 01.03.2002, in RT 801/141) e do STJ (HC 18.885
RJ, DJU de 04.03.2002, ministra Nancy Andrighi, in Revista Brasileira de Direito de Família (Síntese), nº 13, p.
124, verbete n. 1350). Vivemos, pois, o clímax da consagração dessa jurisprudência, a ponto de o STJ, por v.
Acórdão relatado pelo ministro Ruy Rosado de Aguiar, admitir que o juiz, de ofício, proceda a cisão da
execução, permitindo a reserva do art. 733, do CPC, apenas à cobrança das três últimas prestações vencidas
antes da propositura da ação (REsp. 291.367 SP, DJU de 02.04.2001, in RT 791/200).
112
ASSIS, Araken de. Da Execução de Alimentos e Prisão do Devedor, p. 114.
113
GUERRA, Marcelo Lima. Execução Indireta, p. 233.
114
Outra acórdão que relatei foi sintetizado no verbete nº 103467, p. 686 do Informativo ADV, da COAD, nº 43/
2002, AgIn. 236.186-4/9, julgado em 4-6-2002): “Considerando que não existem prestações atuais na execu-
ção de alimentos que o filho maior promove em face do pai — parte do ano de 1999 e do primeiro trimestre
de 2000 —, com um saldo acumulado de quase vinte mil reais, não se justifica proceder ns gotms fo styiho 733,
do CPC — com prisão civil, mas, sim, pelo sistema do art. 732, do CPC”.

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 169

um direito garantido por uma jurisprudência consolidada. Volta-se a afirmar


que a jurisprudência constitui “um bom guia” para os aplicadores do Direi-
to, notadamente para os que “contam poucos anos de prática” e que não
conquistaram, pela experiência, o tirocínio profissional.115
Ora, limitando-se o advogado ao argumento inglório da justa recusa do
pagamento, o juiz certamente, sem se convencer, baixará decisão decretando a
prisão civil do alimentante (de 30 a 60 dias). Supondo que o advogado, mes-
mo com o cliente preso, continue a não usar da jurisprudência para impetrar
habeas corpus, não resta dúvida de que incidiu em erro grosseiro. Poderá, por
conseguinte, ser responsabilizado por danos decorrentes dessa prisão civil,
graças ao desempenho profissional abaixo da crítica.
Poder-se-ia argumentar que a prisão do devedor, em situações do gêne-
ro, não é ilegal ou inconstitucional, o que excluiria a responsabilidade do
advogado que, mesmo contratado para obter salvo-conduto o devedor, não
consegue o intento. Concorda-se com essa objeção, desde que o advogado,
na defesa, explorasse o ponto de vista jurídico favorável ao cliente, ou a
inadequação da custódia por se cuidar de dívida pretérita. A prisão, nesse
caso, não seria ilegal, por representar vontade do Estado-juiz. Porém, para a
relação que se forma entre o advogado e o cliente, a omissão da versão libe-
ratória funciona como culpa profissional, até porque não está o juiz obriga-
do a liberar o devedor da prisão se ele próprio não invoca a versão da juris-
prudência que não se aplica de ofício. Excluir do devedor a chance de se
livrar da prisão que poderia ser evitada, significa, por via oblíqua, ofensa
direta ao direito de permanecer em liberdade, sugerindo o dever de indeni-
zar (artigo 620, do CPC; 1º, III, da CF e 954, parágrafo único, III, do
Código Civil de 2002).
Cabe registrar que o artigo 1552 do CC de 1916 (que restringia a
titularidade passiva da obrigação de indenizar, no caso de prisão ilegal, da
autoridade que ordenou a prisão) não foi transferido para o novo estatuto,
de modo que se abriu espaço para que se conclua pela inexistência de óbice
legal sobre a interligação da atividade negligente ou imprudente do advo-
gado à responsabilidade que se busca instituir para reparar prejuízos de
uma prisão que poderia ser evitada (e que, portanto, não deixa de ser inde-
vida ou ilegal, para a vítima).

115
BORGES DA ROSA, Inocêncio. Questões Essenciais do Direito e Nulidades Processuais, p. 275.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 123-176, janeiro/junho - 2003


170 ÊNIO SANTARELLI ZULIANI

Embora típica a culpa no ato de ignorar a jurisprudência, esse enuncian-


do não é, ainda, vitorioso como fundamento da responsabilidade civil do
advogado pelo serviço jurídico que, com tal falha, é concluído com prejuízo
ao cliente, justamente por ressentir-se do abono da interpretação judicial.
Contudo, quando essa tese for explorada no confronto entre o direito da víti-
ma e a prerrogativa do advogado desatualizado, não se tem dúvida de que o
intérprete vai priorizar o primeiro, para que não se perpetue a injustiça da
não-reparação de dano injusto.
João Batista Lopes escreveu, quando juiz de Direito da Capital, um exce-
lente ensaio sobre as perspectivas da responsabilidade civil e testemunhou o
seguinte: “em nossa experiência profissional, já nos deparamos com o seguinte
caso: em razão do rompimento da barra de direção, o veículo, desgovernado, ga-
nhou o passeio público e atropelou o pedestre”. Em seguida, o depois desembar-
gador e processualista respeitável afirmou que o caso não poderia ser resolvido
somente em função da teoria da culpa (exoneração de responsabilidade pelo
caso fortuito ou de força maior), exatamente pela força das palavras simples da
vítima em depoimento pessoal: “eu sei que o motorista não teve culpa. Mas, se ele
não teve, eu tive menos ainda”.116
Em se aplicando o mesmo raciocínio para analisar a culpa de maior peso
na situação do devedor de alimentos que é preso porque seu advogado não
aproveita a jurisprudência contemporânea que versa a ilegalidade da prisão
por dívidas pretéritas, a posição do advogado se inferioriza. Se o advogado não
acompanha a evolução dos julgados, que culpa tem o cliente? A censura que
daí decorre é inexorável.

10. Prescrição

O novo Código Civil estabeleceu que prescreve, em três anos, a pretensão


de reparação civil (art. 206, § 3º, V). Contudo, continua a prevalecer, em ações
de responsabilidade civil em face do advogado, o prazo prescricional previsto no
art. 27, da Lei nº 8.078/90 (CODECOM). É que a interpretação, no conflito
de normas, deve ser pró-consumidor (artigos 47, 7º e 1º, da lei consumerista),
porque, mais dilatado, é o que predomina em benefício dos consumidores.

116
LOPES, João Batista. “Perspectivas atuais da responsabilidade civil no Direito brasileiro”, RJTJESP 57/20.

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RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO 171

11. Sugestão de dispensa da atuação em causa própria

O advogado defende os direitos alheios e os próprios. Não há proibição


alguma de que funcione em causa própria, mesmo quando necessite cobrar
do cliente os seus honorários.117
No entanto, mesmo diante da necessidade de responder a uma ação de
reparação de danos, totalmente infundada, que um ex-cliente promove de
forma temerária, recomenda-se a dispensa da prerrogativa da defesa em causa
própria. É melhor que um colega, livre da emoção do profissional traído pela
ingratidão e deslealdade do representado, possa, com a técnica que somente
um espírito livre permite alcançar, elaborar a estratégia apropriada para rejei-
ção da afronta pessoal e profissional sem comprometimento do juramento
vocacional. Além da garantia de uma defesa concentrada somente no aspecto
jurídico, a sugestão de renúncia da defesa em causa própria, em se realizando,
notabiliza o profissional nesse ato final do contrato de trabalho, como que
traduzindo uma espécie de penitência anônima que se está cumprindo, com
estilo, para que toda a classe se valorize.
Afinal, como afirmou Louis Josserand em conferência pronunciada em
Coimbra, “a história da responsabilidade civil é a história do triunfo da jurispru-
dência e, também, de alguma forma, da doutrina; é, mais geralmente, o triunfo do
espírito do senso jurídico”.118

12. Bibliografia

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117
SOUZA, Mário Guimarães. O Advogado, p. 237.
118
JOSSERAND, Louis. “Evolução da responsabilidade civil”, in: Revista Forense, 86/559.

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177

Enunciados aprovados
na Jornada de Direito Civil

Promovida pelo Centro de Estudos


Judiciários do Conselho da Justiça
Federal no período de
11 a 13 de setembro de 2002,
sob a coordenação científica do
ministro Ruy Rosado, do STJ

Parte Geral

1 - Art. 2º: a proteção que o Código defere ao nascituro alcança o natimorto


no que concerne aos direitos da personalidade, tais como nome, imagem e
sepultura.
2 - Art. 2º: sem prejuízo dos direitos da personalidade nele assegurados, o
art. 2º do Código Civil não é sede adequada para questões emergentes da
reprogenética humana, que deve ser objeto de um estatuto próprio.
3 - Art. 5º: A redução do limite etário para a definição da capacidade civil aos
18 anos não altera o disposto no art. 16, I, da Lei nº 8.213/91, que regula
específica situação de dependência econômica para fins previdenciários e
outras situações similares de proteção, previstas em legislação especial,
4 - Art. 11: O exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação
voluntária, desde que não seja permanente nem geral.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 177-203, janeiro/junho - 2003


178 RUY ROSADO

5 - Arts. 12 e 20: 1) as disposições do art. 12 têm caráter geral e aplicam-


se inclusive às situações previstas no art. 20, excepcionados os casos
expressos de legitimidade para requerer as medidas nele estabeleci-
das; 2) as disposições do art. 20 do novo Código Civil têm a finali-
dade específica de regrar a projeção dos bens personalíssimos nas
situações nele enumeradas. Com exceção dos casos expressos de legi-
timação que se conformem com a tipificação preconizada nessa nor-
ma, a ela podem ser aplicadas subsidiariamente as regras instituídas
no art. 12.
6 - Art. 13: a expressão “exigência médica”, contida no art. 13, refere-se tanto
ao bem-estar físico quanto ao bem-estar psíquico do disponente.
7 - Art. 50: só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando
houver a prática de ato irregular, e limitadamente, aos administradores ou
sócios que nela hajam incorrido.
8 - Art. 62, parágrafo único: a constituição de fundação para fins científicos,
educacionais ou de promoção do meio ambiente está compreendida no
CC, art. 62, parágrafo único.
9 - Art. 62, parágrafo único: o art. 62, parágrafo único, deve ser interpretado
de modo a excluir apenas as fundações de fins lucrativos.
10 - Art. 66, § 1º: em face do princípio da especialidade, o art. 66, § 1º,
deve ser interpretado em sintonia com os arts. 70 e 178 da LC nº
75/83.
11 - Art. 79: não persiste no novo sistema legislativo a categoria dos bens
imóveis por acessão intelectual, não obstante a expressão “tudo quanto se
lhe incorporar natural ou artificialmente”, constante da parte final do art.
79 do CC.
12 - Art. 138: Na sistemática do art. 138, é irrelevante ser ou não escusável o
erro, porque o dispositivo adota o princípio da confiança.
13 - Art. 170: o aspecto objetivo da convenção requer a existência do suporte
fático no negócio a converter-se.
14 - Art. 189: 1) o início do prazo prescricional ocorre com o surgimento da
pretensão, que decorre da exigibilidade do direito subjetivo; 2) o art.
189 diz respeito a casos em que a pretensão nasce imediatamente após a
violação do direito absoluto ou da obrigação de não fazer.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 177-203, janeiro/junho - 2003


ENUNCIADOS APROVADOS NA JORNADA DE DIREITO CIVIL... 179

Comissão - Parte Geral


Em 12/09/2002: Presidente: Humberto Theodoro Jr.
Relator: Nelson Nery Jr.
Em 13/09/2002: Presidente: João Baptista Villela
Relator: Renan Lotufo
Membros: Carlos Ghersi
Carlos Augusto Pires Brandão
Celso Jerônimo de Souza
Érika Schmitz
Humberto Theodoro Jr.
Ivori da Silva Scheffer
João Baptista Villela
João Baptista Lazzari
Jorge Américo Pereira de Lima
Kennedy Josué Greca de Mattos
Luiz César Medeiros
Luiz Paulo Vieira de Carvalho
Mairan Maia
Maria Paula Gouvêa Galhardo
Márcia Maria Nunes de Barros
Maria Alice Paim Lyard
Nelson Nery Júnior
Nilza Maria Costa dos Reis
Otávio de Souza Gomes
Paulo Eduardo Razuk
Paulo Roberto Moglia Thompson Flores
Raymundo Amorim Cantuária
Regina Helena Afonso de Oliveira Portes
Regis Fichtner Pereira
Renan Lotufo
Roberto Schaan Ferreira
Rogério de Meneses Fialho Moreira

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 177-203, janeiro/junho - 2003


180 RUY ROSADO

Direito das Obrigações

15 - Art. 240: as disposições do art. 236 do novo Código Civil também são
aplicáveis à hipótese do art. 240, in fine.
16 - Art. 299: o art. 299 do Código Civil não exclui a possibilidade da assun-
ção cumulativa da dívida quando dois ou mais devedores se tornam res-
ponsáveis pelo débito com a concordância do credor.
17 - Art. 317: a interpretação da expressão “motivos imprevisíveis”, constante
do art. 317 do novo Código Civil, deve abarcar tanto causas de despro-
porção não previsíveis como também causas previsíveis, mas de resulta-
dos imprevisíveis.
18 - Art. 319: a “quitação regular”, referida no art. 319 do novo Código Ci-
vil, engloba a quitação dada por meios eletrônicos ou por quaisquer for-
mas de “comunicação à distância, assim entendida aquela que permite
ajustar negócios jurídicos e praticar atos jurídicos sem a presença corpó-
rea simultânea das partes ou de seus representantes.
19 - Art. 374: a matéria da compensação, no que concerne às dívidas fiscais e
parafiscais de Estados, do Distrito Federal e de Municípios, não é regida
pelo art. 374 do Código Civil.
20 - Art. 406: a taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a do art.
161, § 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, 1% (um por cento)
ao mês.
A utilização da SELIC como índice de apuração dos juros legais não é
juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros;
não é operacional, porque seu uso será inviável sempre que se calcularem
somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a
regra do art. 591 do novo Código Civil, que permite apenas a capitaliza-
ção anual dos juros, e pode ser incompatível com o art. 192, § 3º, da
Constituição Federal, se resultarem juros reais superiores a 12% (doze
por cento) ao ano.
21 - Art. 421: a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Códi-
go Civil, constitui cláusula geral, a impor a revisão do princípio da rela-
tividade dos efeitos do contrato em relação a terceiros, implicando a
tutela externa do crédito.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 177-203, janeiro/junho - 2003


ENUNCIADOS APROVADOS NA JORNADA DE DIREITO CIVIL... 181

22 - Art. 421: a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Códi-
go Civil, constitui cláusula geral, que reforça o princípio da conservação
do contrato, assegurando trocas úteis e justas.
23 - Art. 421: a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Códi-
go civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua
ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metain-
dividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana.
24 - Art. 422: em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do
novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de
inadimplemento, independentemente de culpa.
25 - Art. 422: o art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação, pelo
julgador, do princípio da boa-fé nas fases pré e pós-contratual.
26 - Art. 422: a cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil
impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contra-
to segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comporta-
mento leal dos contratantes.
27 - Art. 422: na interpretação da cláusula geral da boa-fé, deve-se levar em
conta o sistema do Código Civil e as conexões sistemáticas com outros
estatutos normativos e fatores metajurídicos.
28 - Art. 455 (§§ 1º e 2º): o disposto no art. 445, §§ 1º e 2º, do Código
Civil reflete a consagração da doutrina e da jurisprudência quanto à na-
tureza decadencial das ações edilícias.
29 - Art. 456: a interpretação do art. 456 do novo Código Civil permite ao
evicto a denunciação direta de qualquer dos responsáveis pelo vício.
30 - Art. 463: a disposição do parágrafo único do art. 463 do novo Código
Civil deve ser interpretada como fator de eficácia perante terceiros.
31 - Art. 475: as perdas e danos mencionados no art. 475 do novo Código
Civil dependem da imputabilidade da causa da possível resolução.
32 - Art. 534: no contrato estimatório (art. 534), o consignante transfere ao
consignatário, temporariamente, o poder de alienação da coisa consigna-
da com opção de pagamento do preço de estima ou sua restituição ao
final do prazo ajustado.
33 - Art. 557: o novo Código Civil estabeleceu um novo sistema para a revo-
gação da doação por ingratidão, pois o rol legal previsto no art. 557

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 177-203, janeiro/junho - 2003


182 RUY ROSADO

deixou de ser taxativo, admitindo, excepcionalmente, outras hipóteses.


34 - Art. 591: no novo Código Civil, quaisquer contratos de mútuo destina-
dos a fins econômicos presumem-se onerosos (art. 591), ficando a taxa
de juros compensatórios limitada ao disposto no art. 406, com capitali-
zação anual.
35 - Art. 884: a expressão “se enriquecer à custa de outrem” do art. 884 do novo
Código Civil não significa, necessariamente, que deverá haver empobre-
cimento.
36 - Art. 886: o art. 886 do novo Código Civil não exclui o direito à restitui-
ção do que foi objeto de enriquecimento sem causa nos casos em que os
meios alternativos conferidos ao lesado encontram obstáculos de fato.

Comissão - Direito das Obrigações


Em 12/09/2002: Presidente: Paulo Távora (manhã) / Antônio Junqueira Aze-
vedo (tarde)
Relatores: Claudia Lima Marques / Antônio Junqueira Aze-
vedo (relator no auditório do STJ)
Em 13/09/2002: Presidente: Paulo Távora
Relatores: Claudia Lima Marques / Wanderlei de Paula
Barreto
Membros: Ana Rita Vieira de Albuquerque
Antônio Junqueira de Azevedo
Artur César de Souza
Benedito Gonçalves
Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz
Claudia Lima Marques
Claudio Fortunato Michelon Júnior
Fabrício Fontoura Bezerra
Francisco José Moesch
Jorge Cesar Ferreira da Silva
José Francisco da Silva Neto

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 177-203, janeiro/junho - 2003


ENUNCIADOS APROVADOS NA JORNADA DE DIREITO CIVIL... 183

José Trindade dos Santos


Leda de Oliveira Pinho
Luís Renato Ferreira da Silva
Marcelo De Nardi
Marcos Mairton da Silva
Nelson Nery da Costa
Paulo Cezar Alves Sodré
Paulo Eduardo Razuk
Paulo Távora
Véra Maria Jacob de Fradera
Wanderlei de Paula Barreto

Responsabilidade Civil

37 - Art. 187: a responsabilidade civil decorrente do abuso do direito inde-


pende de culpa, e fundamenta-se no critério objetivo-finalístico.
38 - Art. 927: a responsabilidade fundada no risco da atividade, como previs-
ta na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do novo Código
Civil, configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo
autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos
demais membros da coletividade.
39 - Art. 928: a impossibilidade de privação do necessário à pessoa, prevista
no art. 928, traduz um dever de indenização eqüitativa, informado pelo
princípio constitucional da proteção à dignidade da pessoa humana. Como
conseqüência, também os pais, tutores e curadores serão beneficiados
pelo limite humanitário do dever de indenizar, de modo que a passagem
ao patrimônio do incapaz se dará não quando esgotados todos os recur-
sos do responsável, mas se reduzidos estes ao montante necessário à ma-
nutenção de sua dignidade.
40 - Art. 928: o incapaz responde pelos prejuízos que causar de maneira sub-
sidiária ou excepcionalmente, como devedor principal, na hipótese do
ressarcimento devido pelos adolescentes que praticarem atos infracionais,

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 177-203, janeiro/junho - 2003


184 RUY ROSADO

nos termos do art. 116 do Estatuto da Criança e do Adolescente, no


âmbito das medidas socioeducativas ali previstas.
41 - Art. 928: a única hipótese em que poderá haver responsabilidade solidá-
ria do menor de 18 anos com seus pais é ter ele sido emancipado nos
termos do art. 5º, parágrafo único, inc. I, do novo Código Civil.
42 - Art. 931: o art. 931 amplia o conceito de fato do produto existente no
art. 12 do Código de Defesa do Consumidor, imputando responsabili-
dade civil à empresa e aos empresários individuais vinculados à circula-
ção dos produtos.
43 - Art. 931: a responsabilidade civil pelo fato do produto, prevista no art.
931 do novo Código Civil, também inclui os riscos do desenvolvimento.
44 - Art. 934: na hipótese do art. 934, o empregador e o comitente somente
poderão agir regressivamente contra o empregado ou preposto se esses
tiverem causado dano com dolo ou culpa.
45 - Art. 935: no caso do art. 935, não mais se poderá questionar sobre a
existência do fato ou sobre quem seja o seu autor se essas questões se
acharem categoricamente decididas no juízo criminal.
46 - Art. 944: a possibilidade de redução do montante da indenização em
face do grau de culpa do agente, estabelecida no parágrafo único do art.
944 do novo Código Civil, deve ser interpretada restritivamente, por
representar uma exceção ao princípio da reparação integral do dano, não
se aplicando às hipóteses de responsabilidade objetiva.
47 - Art. 945: o art. 945 do Código Civil, que não encontra correspondente
no Código Civil de 1916, não exclui a aplicação da teoria da causalidade
adequada.
48 - Art. 950, parágrafo único: o parágrafo único do art. 950 do novo Códi-
go Civil institui direito potestativo do lesado de exigir pagamento da
indenização de uma só vez, mediante arbitramento do valor pelo juiz,
atendidos os arts. 944 e 945 e a possibilidade econômica do ofensor.
49 - Art. 1.228, § 2º: a regra do art. 1.228, § 2º, do novo Código Civil
interpreta-se restritivamente, em harmonia com o princípio da função
social da propriedade e com o disposto no art. 187.
50 - Art. 2.028: a partir da vigência do novo Código Civil, o prazo prescricio-
nal das ações de reparação de danos que não houver atingido a metade

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 177-203, janeiro/junho - 2003


ENUNCIADOS APROVADOS NA JORNADA DE DIREITO CIVIL... 185

do tempo previsto no Código Civil de 1916 fluirá por inteiro, nos ter-
mos da nova lei (art. 206).

MOÇÃO:
No que tange à responsabilidade civil, o novo Código representa, em
geral, notável avanço, com progressos indiscutíveis, entendendo a Comissão
que não há necessidade de prorrogação da vacatio legis.

Comissão - Responsabilidade Civil


Em 12/09/2002: Presidente: Roberto Rosas / Irineu Antonio Pedrotti
Relator: Adalberto Pasqualotto
Em 13/09/2002: Presidente: Iran Velasco Nascimento
Relator: Adalberto Pasqualoto
Membros: Adalberto Pasqualotto
Antônio Ernesto Amoras Collares
Antonio José Silveira Paulilo
Antonio Marson
Claudio Antonio Soares Levada
Eugênio Facchini Neto
Fernando Boani Paulucci Júnior
Iran Velasco Nascimento
Irineu Antonio Pedrotti
João Maria Lós
Jorge Mosset Iturraspe
Juliana dos Santos Pinheiro
Lindoval Marques de Brito
Lyssandro Norton Siqueira
Maria Lúcia Lencastre Ursaia
Mário Sérgio de Albuquerque Schirmer

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 177-203, janeiro/junho - 2003


186 RUY ROSADO

Paulo de Tarso Vieira Mandarino


Ricardo César Mandarino
Roberto Rosas
Zilan da Costa e Silva

Direito da Empresa

51 - Art. 50: a teoria da desconsideração da personalidade jurídica — disregard


doctrine — fica positivada no novo Código Civil, mantidos os parâmetros
existentes nos microsistemas legais e na construção jurídica sobre o tema.
52 - Art. 903: por força da regra do art. 903 do Código Civil, as disposições
relativas aos títulos de crédito não se aplicam aos já existentes.
53 - Art. 966: deve-se levar em consideração o princípio da função social na
interpretação das normas relativas à empresa, a despeito da falta de refe-
rência expressa.
54 - Art. 966: é caracterizador do elemento empresa a declaração da ativida-
de-fim, assim como a prática de atos empresariais.
55 - Arts. 968, 969 e 1.150: o domicílio da pessoa jurídica empresarial regu-
lar é o estatutário ou o contratual, em que indicada a sede da empresa,
na forma dos arts. 968, IV, e 969, combinado com o art. 1.150, todos
do Código Civil.
56 - Art. 970: o Código Civil não definiu o conceito de pequeno empresário;
a lei que o definir deverá exigir a adoção do livro-diário.
57 - Art. 983: a opção pelo tipo empresarial não afasta a natureza simples da
sociedade.
58 - Art. 986 e seguintes: a sociedade em comum compreende as figuras
doutrinárias da sociedade de fato e da irregular.
59 - Arts. 990, 1.009, 1.016, 1.017 e 1.091: os sócios-gestores e os admi-
nistradores das empresas são responsáveis subsidiária e ilimitadamente
pelos atos ilícitos praticados, de má gestão ou contrários ao previsto no
contrato social ou estatuto, consoante estabelecem os arts. 990, 1.009,
1.016, 1.017 e 1.091, todos do Código Civil.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 177-203, janeiro/junho - 2003


ENUNCIADOS APROVADOS NA JORNADA DE DIREITO CIVIL... 187

60 - Art. 1.011, § 1º: as expressões de peita ou suborno do § 1º do art.


1.011 do novo Código Civil devem ser entendidas como corrupção, ati-
va ou passiva.
61 - Art. 1.023: o termo “subsidiariamente”, constante do inc. 8º do art.
997 do Código Civil, deverá ser substituído por “solidariamente” a fim
de compatibilizar esse dispositivo com o art. 1.023 do mesmo Código.
62 - Art. 1.031: com a exclusão do sócio remisso, a forma de reembolso das
suas quotas, em regra, deve-se dar com base em balanço especial, realiza-
do na data da exclusão.
63 - Art. 1.043: suprimir o art. 1.043 ou interpretá-lo no sentido de que só
será aplicado às sociedades ajustadas por prazo determinado.
64 - Art. 1.0148: a alienação do estabelecimento empresarial importa, como
regra, na manutenção do contrato de locação em que o alienante figurava
como locatário.
65 - Art. 1.052: a expressão “sociedade limitada”, tratada no art. 1.052 e
seguintes do novo Código Civil, deve ser interpretada stricto sensu, como
“sociedade por quotas de responsabilidade limitada”.
66 - Art. 1.062: a teor do § 2º do art. 1.062 do Código Civil, o administra-
dor só pode ser pessoa natural.
67 - Arts. 1.085, 1.030 e 1.033, III: a quebra do “affectio societatis” não é
causa para a exclusão do sócio minoritário, mas apenas para dissolução
(parcial) da sociedade.
68 - Arts. 1.088 e 1.089: suprimir os arts. 1.088 e 1.089 do novo Código
Civil em razão de estar a matéria regulamentada em lei especial.
69 - Art. 1.093: as sociedades cooperativas são sociedades simples sujeitas a
inscrição nas juntas comerciais.
70 - Art. 1.116: as disposições sobre incorporação, fusão e cisão previstas no
Código Civil não se aplicam às sociedades anônimas. As disposições da
Lei nº 6.404/76 sobre essa matéria aplicam-se por analogia às demais
sociedades naquilo em que o Código Civil for omisso.
71 - Arts. 1.158 e 1.160: suprimir o artigo 1.160 do Código Civil por estar
a matéria regulada mais adequadamente no art. 3º da Lei nº 6.404/76
(disciplinadora das S.A.) e dar nova redação ao § 2º do art. 1.158, de
modo a retirar a exigência da designação do objeto da sociedade.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 177-203, janeiro/junho - 2003


188 RUY ROSADO

72 - Art. 1.164: suprimir o art. 1.164 do novo Código Civil.


73 - Art. 2.031: não havendo a revogação do art. 1.160 do Código Civil,
nem a modificação do § 2º do art. 1.158 do mesmo diploma, é de
interpretar-se este dispositivo no sentido de não aplicá-lo à denomina-
ção das sociedades anônimas e sociedades Ltdas., já existentes, em razão
de se tratar de direito inerente à sua personalidade.
74 - Art. 2.045: apesar da falta de menção expressa, como exigido pelas LCs
95/98 e 107/2001, estão revogadas as disposições de leis especiais que
contiverem matéria regulada inteiramente no novo Código Civil, como,
v.g., as disposições da Lei nº 6.404/76, referente à sociedade comandita
por ações, e do Decreto nº 3.708/1919, sobre sociedade de responsabi-
lidade limitada.
75 - Art. 2.045: a disciplina de matéria mercantil no novo Código Civil não
afeta a autonomia do Direito Comercial.

Comissão - Direito da Empresa


Em 12/09/2002: Presidente: Alfredo de Assis Gonçalves Neto
Relator: Newton De Lucca
Em 13/09/2002: Presidente: Alfredo de Assis Gonçalves Neto
Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto
Membros: Alfredo de Assis Gonçalves Neto
Ana Beatriz do Amaral Cid Ornelas
André José Kozlowski
André Ricardo Cruz Fontes
André Vicente Pires Rosa
Carison Venicius Manfio
César Pontes Clark
Douglas Alencar Rodrigues
Francisco Willo Borges Cabral
Jorge Luiz Lopes do Canto
Luiz Henrique Marques da Rocha

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 177-203, janeiro/junho - 2003


ENUNCIADOS APROVADOS NA JORNADA DE DIREITO CIVIL... 189

Marcelo Andrade Féres


Márcio Souza Guimarães
Newton De Lucca
Paulo Henrique Blair de Oliveira
Paulo Roberto Stöberl
Rodolfo Pinheiro de Morais
Rubens Curado Silveira

Direito das Coisas

76 - Art. 1.197: O possuidor direto tem direito de defender a sua posse contra
o indireto, e este contra aquele (art. 1.197, in fine, do novo Código Civil).
77 - Art. 1.205: A posse das coisas móveis e imóveis também pode ser trans-
mitida pelo constituto possessório.
78 - Art. 1.210: Tendo em vista a não-recepção, pelo novo Código Civil, da
exceptio proprietatis (art. 1.210, § 2º), em caso de ausência de prova sufi-
ciente para embasar decisão liminar ou sentença final ancorada exclusiva-
mente no ius possessionis, deverá o pedido ser deferido e julgado improce-
dente, não obstante eventual alegação e demonstração de direito real sobre
o bem litigioso.
79 - Art. 1.210: A exceptio proprietatis, como defesa oponível às ações posses-
sórias típicas, foi abolida pelo Código Civil de 2002, que estabeleceu a
absoluta separação entre os juízos possessório e petitório.
80 - Art. 1.212: É inadmissível o direcionamento de demanda possessória ou
ressarcitória contra terceiro possuidor de boa-fé, por ser parte passiva
ilegítima, diante do disposto no art. 1.212 do novo Código Civil. Contra
o terceiro de boa-fé cabe tão-somente a propositura de demanda de na-
tureza real.
81 - Art. 1.219: O direito de retenção previsto no art. 1.219 do CC, decor-
rente da realização de benfeitorias necessárias e úteis, também se aplica às
acessões (construções e plantações) nas mesmas circunstâncias.
82 - Art. 1.228: É constitucional a modalidade aquisitiva de propriedade

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 177-203, janeiro/junho - 2003


190 RUY ROSADO

imóvel previstas nos §§ 4º e 5º do art. 1.228 do novo Código Civil.


83 - Art. 1.228: Nas ações reivindicatórias propostas pelo Poder Público, não
são aplicáveis as disposições constantes dos §§ 4º e 5º do art. 1.228 do
novo Código Civil.
84 - Art. 1.228: A defesa fundada no direito de aquisição com base no interesse
social (art. 1.228, §§ 4º e 5º, do novo Código Civil) deve ser argüida pelos
réus da ação reivindicatória, eles próprios responsáveis pelo pagamento da
indenização.
85 - Art. 1.240: Para efeitos do art. 1.240, caput, do novo Código Civil, en-
tende-se por “área urbana” o imóvel edificado ou não, inclusive unidades
autônomas vinculadas a condomínios edilícios.
86 - Art. 1.242: A expressão “justo título”, contida nos arts. 1.242 e 1.260 do
CC, abrange todo e qualquer ato jurídico hábil, em tese, a transferir a
propriedade, independentemente de registro.
87 - Art. 1.245: Considera-se também título translativo, para fins do art.
1.245 do novo Código Civil, a promessa de compra e venda devidamente
quitada (arts. 1.417 e 1.418 do CC e § 6º do art. 26 da Lei nº 6.766/79).
88 - Art. 1.285: O direito de passagem forçada, previsto no art. 1.285 do CC,
também é garantido nos casos em que o acesso à via pública for insuficiente
ou inadequado, consideradas inclusive as necessidades de exploração eco-
nômica.
89 - Art. 1.331: O disposto nos arts. 1.331 a 1.358 do novo Código Civil
aplica-se, no que couber, aos condomínios assemelhados, tais como lotea-
mentos fechados, multipropriedade imobiliária e clubes de campo.
90 - Art. 1.331: Deve ser reconhecida personalidade jurídica ao condomínio
edilício nas relações jurídicas inerentes às atividades de seu peculiar inte-
resse.
91 - Art. 1.331: A convenção de condomínio, ou a assembléia geral, podem
vedar a locação de área de garagem ou abrigo para veículos a estranhos ao
condomínio.
92 - Art. 1.337: As sanções do art. 1.337 do novo Código Civil não podem ser
aplicadas sem que se garanta direito de defesa ao condômino nocivo.
93 - Art. 1.369: As normas previstas no Código Civil sobre direito de super-
fície não revogam as relativas a direito de superfície constantes do Estatuto

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 177-203, janeiro/junho - 2003


ENUNCIADOS APROVADOS NA JORNADA DE DIREITO CIVIL... 191

da Cidade (Lei nº 10.257/2001) por ser instrumento de política de


desenvolvimento urbano.
94 - Art. 1.371: As partes têm plena liberdade para deliberar, no contrato
respectivo, sobre o rateio dos encargos e tributos que incidirão sobre a área
objeto da concessão do direito de superfície.
95 - Art. 1.418: O direito à adjudicação compulsória (art. 1.418 do novo
Código Civil), quando exercido em face do promitente vendedor, não se
condiciona ao registro da promessa de compra e venda no cartório de
registro imobiliário (Súmula nº 239 do STJ).

ENUNCIADOS PROPOSITIVOS DE ALTERAÇÃO LEGISLATIVA:

96 - Alteração do § 1º do art. 1.336 do CC, relativo a multas por inadimple-


mento no pagamento da contribuição condominial, para o qual se sugere
a seguinte redação:

“Art. 1.336 - ...


§ 1º - O condômino que não pagar sua contribuição ficará sujeito aos
juros moratórios convencionados ou, não sendo previstos, de um por cento
ao mês, e multa de até 10% sobre o eventual risco de emendas sucessivas
que venham a desnaturá-lo ou mesmo inibir a sua entrada em vigor.”

Não obstante, entendeu a Comissão da importância de aprimoramento


do texto legislativo, que poderá, perfeitamente, ser efetuado durante a
vigência do próprio Código, o que ocorreu, por exemplo, com o diploma
de 1916, com a grande reforma verificada em 1919.

Comissão - Direito das Coisas


Presidente: Munir Karam
Relator: Joel Dias Figueira Jr.
Membros: Adroaldo Furtado Frabrício
Alvaro Manoel Rosindo Bourguignon

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 177-203, janeiro/junho - 2003


192 RUY ROSADO

Denise Henriques Sant’Anna


Edilson Pereira Nobre Júnior
Eduardo Kraemer
Erik Gramstrup
Heriberto Roos Maciel
Joel Dias Figueira Júnior
José Osório de Azevedo Júnior
Luiz Fernando Tomasi Keppen
Marcelo Ferro
Marco Aurélio Bezerra de Melo
Munir Karam
Paulo Cerqueira Campos
Ricardo César Pereira Lira
Sérgio José Porto
Sílvio de Salvo Venosa
Sônia Regina Maul Moreira Alves Mury

Direito de Família e Sucessões

97 - Art. 25: no que tange à tutela especial da família, as regras do Código Civil
que se referem apenas ao cônjuge devem ser estendidas à situação jurídica
que envolve o companheirismo, como, por exemplo, na hipótese de no-
meação de curador de bens do ausente (art. 25 do Código Civil).
98 - Art. 1.521, IV: o inc. IV do art. 1.521 do novo Código Civil deve ser
interpretado à luz do Decreto-lei nº 3.200/41 no que se refere à possibi-
lidade de casamento entre colaterais de 3º grau.
99 - Art. 1.565, § 2º: o art. 1.565, § 2º, do Código Civil não é norma desti-
nada apenas às pessoas casadas, mas também aos casais que vivem em
companheirismo, nos termos do art. 226, caput, §§ 3º e 7º, da Consti-
tuição Federal de 1988, e não revogou o disposto na Lei nº 9.263/96.

Revista da Escola Paulista da Magistratura, ano 4, nº 1, p. 177-203, janeiro/junho - 2003


ENUNCIADOS APROVADOS NA JORNADA DE DIREITO CIVIL... 193

100 - Art. 1.572: na separação, recomenda-se apreciação objetiva de fatos


que tornem evidente a impossibilidade da vida em comum.
100 - Art. 1.583: sem prejuízo dos deveres que compõem a esfera do poder
familiar, a expressão “guarda de filhos”, à luz do art. 1.583, pode com-
preender tanto a guarda unilateral quanto a compartilhada, em atendi-
mento ao princípio do melhor interesse da criança.
101 - Art. 1.584: a expressão “melhores condições” no exercício da guarda, na
hipótese do art. 1.584, significa atender ao melhor interesse da criança.
102 - Art. 1.593: o Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de
parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim,
a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental prove-
niente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamen-
te ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer
da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho.
104 - Art. 1.597: no âmbito das técnicas de reprodução assistida envolvendo
o emprego de material fecundante de terceiros, o pressuposto fático da
relação sexual é substituído pela vontade (ou eventualmente pelo risco
da situação jurídica matrimonial) juridicamente qualificada, gerando
presunção absoluta ou relativa de paternidade no que tange ao marido
da mãe da criança concebida, dependendo da manifestação expressa
(ou implícita) da vontade no curso do casamento.
105 - Art. 1.597: as expressões “fecundação artificial”, “concepção artificial”
e “inseminação artificial” constantes, respectivamente, dos incs. III, IV
e V do art. 1.597, deverão ser interpretadas como “técnica de reprodu-
ção assistida”.
106 - Art. 1.597, inc. III: para que seja presumida a paternidade do marido
falecido, será obrigatório que a mulher, ao se submeter a uma das técnicas
de reprodução assistida com o material genético do falecido, esteja na con-
dição de viúva, sendo obrigatório, ainda, que haja autorização escrita do
marido para que se utilize seu material genético após sua morte.
107 - Art. 1.597, inc. IV: finda a sociedade conjugal, na forma do art. 1.571,
a regra do inc. IV somente poderá ser aplicada se houver autorização
prévia, por escrito, dos ex-cônjuges, para a utilização dos embriões ex-
cedentários, só podendo ser revogada até o início do procedimento de
implantação desses embriões.

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194 RUY ROSADO

108 - Art. 1.603: no fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603,


compreende-se, à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consangüí-
nea e também a socioafetiva.
109 - Art. 1.605: a restrição da coisa julgada oriunda de demandas reputa-
das improcedentes por insuficiência de prova não deve prevalecer para
inibir a busca da identidade genética pelo investigado.
110 - Art. 1.626: a adoção e a reprodução assistida heteróloga atribuem a
condição de filho ao adotado e à criança resultante de técnica concep-
tiva heretóloga; porém, enquanto, na adoção, haverá o desligamento
dos vínculos entre o adotado e seus parentes consangüíneos, na repro-
dução assistida heretóloga, sequer será estabelecido o vínculo de paren-
tesco entre a criança e o doador do material fecundante.
111 - Art. 1.626: a adoção e a reprodução assistida heteróloga atribuem a
condição de filho ao adotado e à criança resultante de técnica concep-
tiva heretóloga; porém, enquanto, na adoção, haverá o desligamento
dos vínculos entre o adotado e seus parentes consagüíneos, na reprodu-
ção assistida heretóloga, sequer será estabelecido o vínculo de parentes-
co entre a criança e o doador do material fecundante.
112 - Art. 1.630: em acordos celebrados antes do advento do novo Código,
ainda que expressamente convencionado que os alimentos cessarão com
a maioridade, o juiz deve ouvir os interessados, apreciar as circunstân-
cias do caso concreto e obedecer ao princípio rebus sic stantibus.
113 - Art. 1.639: é admissível a alteração do regime de bens entre os cônjuges,
quando então o pedido, devidamente motivado e assinado por ambos os
cônjuges, será objeto de autorização judicial, com ressalva dos direitos
de terceiros, inclusive dos entes públicos, após perquirição de inexistên-
cia de dívida de qualquer natureza, exigida ampla publicidade.
114 - Art. 1.647: o aval não pode ser anulado por falta de vênia conjugal, de
modo que o inc. III do art. 1.647 apenas caracteriza a inoponibilidade
do título ao cônjuge que não assentiu.
115 - Art. 1.725: há presunção de comunhão de aqüestos na constância da
união extramatrimonial mantida entre os companheiros, sendo desne-
cessária a prova do esforço comum para se verificar a comunhão dos bens.
116 - Art. 1.815: o Ministério Público, por força do art. 1.815 do novo
Código Civil, desde que presente o interesse público, tem legitimidade

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ENUNCIADOS APROVADOS NA JORNADA DE DIREITO CIVIL... 195

para promover ação visando à declaração da indignidade de herdeiro


ou legatário.
117 - Art. 1.831: o direito real de habitação deve ser estendido ao compa-
nheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei nº 9.278/96,
seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831, informado pelo
art. 6º, caput, da CF/88.
118 - Art. 1.967, caput, e § 1º: o testamento anterior à vigência do novo
Código Civil se submeterá à redução prevista no § 1º do art. 1.967
naquilo que atingir a porção reservada ao cônjuge sobrevivente, elevado
que foi à condição de herdeiro necessário.
119 - Art. 2.004: para evitar o enriquecimento sem causa, a colação será efe-
tuada com base no valor da época da doação, nos termos do caput do
art. 2.004, exclusivamente na hipótese em que o bem doado não mais
pertença ao patrimônio do donatário. Se, ao contrário, o bem ainda
integrar seu patrimônio, a colação se fará com base no valor do bem na
época da abertura da sucessão, nos termos do art. 1.014 do CPC, de
modo a preservar a quantia que efetivamente integrará a legítima quan-
do esta se constituiu, ou seja, na data do óbito (resultado da interpre-
tação sistemática do art. 2.004 e seus parágrafos, juntamente com os
arts. 1.832 e 884 do Código Civil.).

PROPOSTAS DE MODIFICAÇÃO DO NOVO CÓDIGO CIVIL:

120 - Proposição sobre o art. 1.526:


Proposta: deverá ser suprimida a expressão “será homologada pelo juiz”
no art. 1.526, o qual passará a dispor: “Art. 1.526. A habilitação de
casamento será feita perante o oficial do Registro Civil e ouvido o Ministério
Público.”
Justificativa: Desde há muito que as habilitações de casamento são fis-
calizadas e homologadas pelos órgãos de execução do Ministério Públi-
co, sem que se tenha quaisquer notícias de problemas como, por exem-
plo, fraudes em relação à matéria.
A judicialização da habilitação de casamento não trará ao cidadão nenhu-
ma vantagem ou garantia adicional, não havendo razão para mudar o
procedimento que extrajudicialmente funciona de forma segura e ágil.

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196 RUY ROSADO

121 - Proposição sobre o art. 1.571, § 2º:


Proposta: dissolvido o casamento pelo divórcio direto ou por conver-
são, no que diz respeito ao sobrenome dos cônjuges, aplica-se o dispos-
to no art. 1.578.
122 - Proposição sobre o art. 1.572, caput:
Proposta: dar ao art. 1.572, caput, a seguinte redação: “Qualquer dos
cônjuges poderá propor a ação de separação judicial, com fundamento na
impossibilidade da vida em comum.”
123 - Proposição sobre o art. 1.573:
Proposta: revogar o art. 1.573.
124 - Proposição sobre o art. 1.578:
Proposta: alterar o dispositivo para: “Dissolvida a sociedade conjugal, o
cônjuge perde o direito à utilização do sobrenome do outro, salvo se a altera-
ção acarretar:
I - evidente prejuízo para a sua identificação;
II - manifesta distinção entre o seu nome de família e o dos filhos havidos da
união dissolvida;
III - dano grave reconhecido na decisão judicial.”
E, por via de conseqüência, estariam revogados os § 1º e 2º do mesmo
artigo.
125 - Proposição sobre o art. 1.641, inc. II:
Redação atual: “da pessoa maior de sessenta anos”.
Proposta: revogar o dispositivo.
Justificativa: “A norma que torna obrigatório o regime da separação abso-
luta de bens em razão da idade dos nubentes não leva em consideração a
alteração da expectativa de vida, com qualidade, que se tem alterado dras-
ticamente nos últimos anos. Também mantém um preconceito quanto às
pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado pata-
mar etário, passam a gozar da presunção absoluta de incapacidade para
alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime de bens que melhor
consultar seus interesses”.
126 - Proposição sobre o art. 1.597, incs. III, IV e V:

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ENUNCIADOS APROVADOS NA JORNADA DE DIREITO CIVIL... 197

Proposta: alterar as expressões “fecundação artificial”, “concepção arti-


ficial” e “inseminação artificial” constantes, respectivamente, dos incs.
III, IV e V do art. 1.597 para “técnica de reprodução assistida”.
Justificativa: as técnicas de reprodução assistida são basicamente de
duas ordens: aquelas pelas quais a fecundação ocorre in vivo, ou seja, no
próprio organismo feminino, e aquelas pelas quais a fecundação ocorre
in vitro, ou seja, fora do organismo feminino, mais precisamente em
laboratório, após o recolhimento dos gametas masculino e feminino.
As expressões “fecundação artificial” e “concepção artificial” utilizadas
nos incs. III e IV são impróprias, até porque a fecundação ou a concep-
ção obtida por meio das técnicas de reprodução assistida é natural,
com o auxílio técnico, é verdade, mas jamais artificial.
Além disso, houve ainda imprecisão terminológica no inc. V quando
trata da inseminação artificial heteróloga, uma vez que a inseminação
artificial é apenas uma das técnicas de reprodução in vivo; para fins do
inciso em comento, melhor seria a utilização da expressão “técnica de
reprodução assistida”, incluídas aí todas as variantes das técnicas de
reprodução in vivo e in vitro.
127 - Proposição sobre o art. 1.597, inc. III:
Proposta: alterar o inc. III para constar “havidos por fecundação artifi-
cial homóloga”.
Justificativa: para observar os princípios da paternidade responsável e
dignidade da pessoa humana, porque não é aceitável o nascimento de
uma criança já sem pai.
128 - Proposição sobre o art. 1.597, inc. IV:
Proposta: revogar o dispositivo.
Justificativa: o fim de uma sociedade conjugal, em especial quando
ocorre pela anulação ou nulidade do casamento, pela separação judicial
ou pelo divórcio, é, em regra, processo de tal ordem traumático para os
envolvidos que a autorização de utilização de embriões excedentários
será fonte de desnecessários litígios.
Além do mais, a questão necessita de análise sob o enfoque constitucio-
nal.
Da forma posta e, não havendo qualquer dispositivo no novo Código

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198 RUY ROSADO

Civil que autorize o reconhecimento da maternidade em tais casos,


somente a mulher poderá se valer dos embriões excedentários, ferindo
de morte o princípio da igualdade esculpido no caput e no inciso I do
artigo 5º da Constituição da República.
A título de exemplo, se a mulher ficar viúva, poderá, “a qualquer tem-
po”, gestar o embrião excedentário, assegurado o reconhecimento da
paternidade, com as conseqüências legais pertinentes; porém, o mari-
do não poderá valer-se dos mesmos embriões, para cuja formação con-
tribuiu com o seu material genético, e gestá-lo em útero sub-rogado.
Como o dispositivo é vago e diz respeito apenas ao estabelecimento da
paternidade, sendo o novo Código Civil omisso quanto à maternidade,
poder-se-ia indagar: se esse embrião vier a germinar em um ser huma-
no, após a morte da mãe, ele terá a paternidade estabelecida e não a
maternidade? Caso se pretenda afirmar que a maternidade será estabe-
lecida pelo nascimento, como ocorre atualmente, a mãe será aquela que
dará à luz, porém, neste caso, tampouco a paternidade poderá ser esta-
belecida, uma vez que a reprodução não seria homóloga.
Caso a justificativa para a manutenção do inciso seja evitar a destruição
dos embriões crioconservados, destaca-se que legislação posterior po-
derá autorizar que venham a ser adotados por casais inférteis.
Assim, prudente seria que o inciso em análise fosse suprimido.
Porém, se a supressão não for possível, solução alternativa seria deter-
minar que os embriões excedentários somente poderão ser utilizados se
houver prévia autorização escrita de ambos os cônjuges, evitando-se,
com isso, mais uma lide nas varas de família.
129 - Proposição para inclusão de um art. no final do Cap. II, Subtítulo II,.
Cap. XI, Título I, do Livro IV, com a seguinte redação:

“Art. 1.597, A. A maternidade será presumida pela gestação.


Parágrafo único: Nos casos de utilização das técnicas de reprodução as-
sistida, a maternidade será estabelecida em favor daquela que forneceu o
material genético, ou que, tendo planejado a gestação, valeu-se da técni-
ca de reprodução assistida heteróloga.”

Justificativa: no momento em que o artigo 1.597 autoriza que o

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ENUNCIADOS APROVADOS NA JORNADA DE DIREITO CIVIL... 199

homem infértil ou estéril se valha das técnicas de reprodução assisti-


da para suplantar sua deficiência reprodutiva, não poderá o Código
Civil deixar de prever idêntico tratamento às mulheres.
O dispositivo dará guarida às mulheres que podem gestar, abrangendo
quase todas as situações imagináveis, como as técnicas de reprodução
assistida homólogas e heterólogas, nas quais a gestação será levada a
efeito pela mulher, que será a mãe socioevolutiva da criança que vier a
nascer.
Pretende-se, também, assegurar à mulher que reproduz seus óvulos
regularmente, mas não pode levar a termo uma gestação, o direito à
maternidade, uma vez que apenas a gestação caberá à mãe sub-rogada.
Contempla-se, igualmente, a mulher estéril e que não pode levar a
termo uma gestação. Essa mulher terá declarada sua maternidade em
relação à criança nascida de gestação sub-rogada na qual o material
genético feminino não provém de seu corpo.
Importante destacar que, em hipótese alguma, poderá ser permitido o
fim lucrativo por parte da mãe sub-rogada.
130 - Proposição sobre o art. 1.601:
Redação atual: “Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos
filhos nascidos de uma mulher, sendo tal ação imprescritível.
Parágrafo único. Contestada a filiação, os herdeiros do impugnante têm
direito de prosseguir na ação.”
Redação proposta: “Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade
dos filhos nascidos de uma mulher, sendo tal ação imprescritível.
§ 1º. Não se constituirá a paternidade caso fique caracterizada a posse do
estado de filho.
§ 2º. Contestada a filiação, os herdeiros do impugnante têm direito de
prosseguir na ação.”
131 - Proposição sobre o art. 1.639, § 2º:
Proposta: a seguinte redação ao § 2º do mencionado art. 1.639: “É
inadmissível a alteração do regime de bens entre os cônjuges, salvo nas hipó-
teses específicas definidas no artigo 1.641, quando então o pedido, devida-
mente motivado e assinado por ambos os cônjuges, será objeto de autorização
judicial, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos

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200 RUY ROSADO

de terceiros, inclusive dos entes públicos, após perquirição de inexistência de


dívida de qualquer natureza, exigida ampla publicidade.”
132 - Proposição sobre o art. 1.647, inc. II, do novo Código Civil:
Ourtoga conjugal em aval. Suprimir as expressões “ou aval” do inc. III
do art. 1.647 do novo Código Civil.
Justificativa: Exigir anuência do cônjuge para a outorga de aval é afron-
tar a Lei Uniforme de Genebra e descaracterizar o instituto. Ademais, a
celeridade indispensável para a circulação dos títulos de crédito é in-
compatível com essa exigência, pois não se pode esperar que, na cele-
bração de um negócio corriqueiro, lastreado em cambial ou duplicata,
seja necessário, para a obtenção de um aval, ir à busca do cônjuge e da
certidão de seu casamento, determinadora do respectivo regime de bens.
133 - Proposição sobre o art. 1.702:
Proposta: Alterar o dispositivo para: “Na separação judicial, sendo um
dos cônjuges desprovido de recursos, prestar-lhe-á o outro pensão alimentícia
nos termos do que houverem acordado ou que vier a ser fixado judicialmen-
te, obedecidos os critérios do art. 1.694.”
134 - Proposição sobre o art. 1.704, caput:
Proposta: Altera o dispositivo para: “Se um dos cônjuges separados judici-
almente vier a necessitar de alimentos e não tiver parentes em condições de
prestá-los, nem aptidão para o trabalho, o ex-cônjuge será obrigado a prestá-
los, mediante pensão a ser fixada pelo juiz, em valor indispensável à sobre-
vivência.”
Revoga-se, por conseqüência, o parágrafo único do art. 1.704.
§ 2º. “Contestada a filiação, os herdeiros do impugnante têm direito de
prosseguir na ação.”
135 - Proposição sobre o art. 1.726:
Proposta: a união estável poderá converter-se em casamento mediante
pedido dos companheiros perante o oficial do Registro Civil, ouvido o
Ministério Público.
136 - Proposição sobre o art. 1.736, inc. I:
Proposta: revogar o dispositivo.
Justificativa: não há qualquer justificativa de ordem legal a legitimar

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ENUNCIADOS APROVADOS NA JORNADA DE DIREITO CIVIL... 201

que mulheres casadas, apenas por essa condição, possam se escusar da


tutelar.
137 - Proposição sobre o art. 2.044:
Proposta: alteração do art. 2.044 para que o prazo da vacatio legis seja
alterado de 1 (um) para 2 (dois) anos.
Justificativa: Impende apreender e aperfeiçoar o Código Civil brasilei-
ro instituído por meio da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002,
tanto porque apresenta significativas alterações estruturais nas relações
jurídicas interprivadas, quanto porque ainda revela necessidade de
melhoria em numerosos dispositivos.
Propõe-se, por conseguinte, a ampliação do prazo contido no art. 2.044,
a fim de que tais intentos sejam adequadamente levados a efeito. Far-
se-á, com o lapso temporal bienal proposto, hermenêutica construtiva
que, por certo, não apenas aprimorará o texto sancionado, como tam-
bém propiciará à comunidade jurídica brasileira e aos destinatários da
norma em geral o razoável conhecimento do novo Código, imprescin-
dível para sua plena eficácia jurídica e social.
Atesta o imperativo de refinamento a existência do projeto de lei de
autoria do sr. relator geral do Código Civil na Câmara dos Deputados,
reconhecendo a necessidade de alterar numerosos dispositivos.
Demais disso, é cabível remarcar que diplomas legais de relevo apre-
sentam lapso temporal alargado de vacatio legis.
Sob o tempo útil proposto, restará ainda mais valorizado o papel deci-
sivo da jurisprudência, evidenciando-se que, a rigor, um Código não
nasce pronto, a norma se faz Código em processo de construção.

TEMAS OBJETO DE CONSIDERAÇÃO PELA COMISSÃO:

A Comissão conheceu do tema suscitado quanto à indicada violação do


princípio da bicameralidade, durante a tramitação do projeto do Códi-
go Civil em sua etapa final na Câmara dos Deputados, em face do art.
65 da Constituição Federal de 1988, tendo assentado que a matéria
desborda, nesse momento, do exame específico levado a efeito.
Pronunciamento: a Comissão subscreve o entendimento segundo o

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202 RUY ROSADO

qual impende apreender e aperfeiçoar o Código Civil brasileiro insti-


tuído por meio da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, tanto
porque apresenta alterações estruturais nas relações jurídicas inter-
privadas, quanto porque ainda revela necessidade de melhoria em
numerosos dispositivos.
Manifesta preocupação com o prazo contido no art. 2.044, a fim de que
tais intentos sejam adequadamente levados a efeito. Deve-se proceder a
uma hermenêutica construtiva que, por certo, não apenas aprimorará o
texto sancionado, como também propiciará à comunidade jurídica bra-
sileira e aos destinatários da norma geral um razoável conhecimento do
novo Código, imprescindível para sua plena eficácia jurídica e social.
Demais disso, é cabível remarcar que diplomas legais de relevo apre-
sentam lapso temporal alargado de vacatio legis.
A preocupação com a exigüidade da vacatio valoriza o papel decisivo da
jurisprudência, evidenciando-se, a rigor, que um Código não nasce pron-
to, a norma se faz Código em contínuo processo de construção.

Comissão - Direito de Família e Sucessões


Em 12/09/2002: Presidente: Gustavo Tepedino
Relator: Luiz Edson Fachin
Em 13/09/2002: Presidente: Regina Helena Afonso Pontes
Relator: Adriana da Silva Ribeiro
Membros: Ana Luiza Nevares
Adriana da Silva Ribeiro
Acáccio Cambi
Alfredo Abinagem
Anderson Schreiber
Bruno Lewicki
Claudia Regina Bastos Fernandes
Cláudio José Coelho Costa
Danilo Doneda

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Erika Moura Freire


Flávio Roberto de Souza
Francisco Auricélio Pontes
Francisco Roberto Machado
Giovanna Teixeira de Souza
Guilherme Calmon Nogueira da Gama
Guilherme Couto de Castro
Gustavo Tepedino
Luiz Edson Facchin
Marcia Helena Abinagem
Maria Cristina Barongeno Cukierkorn
Marianne Júdice de Mattos Farina
Regina Helena Afonso Portes
Rosana Amara Girardi Fachin
Rose Vencelau
Teresa Negreiros
Tycho Brahe Fernandes
Vivaldo Otávio Pinheiro

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Escola Paulista da Magistratura


Normas para publicação de artigos na “Revista”
1. Os trabalhos devem estar acompanhados de disquete e respectiva impres-
são, com indicação de unitermos, ou palavras-chave.
1.1 É recomendável o uso do processador Microsoft Word. Se, no entan-
to, for empregado outro processador, os arquivos deverão estar grava-
dos no formato RTF (Rich Text Format), de leitura comum a todos os
processadores de texto.
1.2 Recomenda-se o uso, como fonte, do Time New Roman, corpo 12,
com espaço de 1.5.
1.3 Os trabalhos hão de ser precedidos de folha onde constem o título do
trabalho, o nome do autor (ou autores), endereço, telefone, fax e e-
mail, bem como situação acadêmica, títulos, instituições a que per-
tença e principal atividade exercida.
1.4 A bibliografia final deve obedecer às normas técnicas em vigor.
2. Não serão publicados trabalhos:
2.1 com menos de quinze, ou com mais de quarenta páginas impressas;
2.2 em língua estrangeira, exclusivamente; salvo a língua espanhola;
2.3 já publicados em periódicos de grande circulação no meio jurídico;
2.4 relativos a sentenças, acórdãos ou votos, desacompanhados de comen-
tários;
2.5 que sejam meras reproduções de pareceres ou discursos;
2.6 em que o autor se sirva de pseudômino.
3. Não se publicará também mais de um trabalho do mesmo autor, no mes-
mo número.
4. Ao destinar o trabalho a publicação, o autor cede e transfere todo direito
patrimonial ou de utilização econômica à Escola Paulista da Magistratura.
5. Não é devida nenhuma remuneração pela cessão e publicação de traba-
lhos.
5.1 O autor receberá, de modo gratuito, dois exemplares da “Revista” em
cujo número seu trabalho tiver sido publicado.
6. O trabalho, recebido para seleção, não será devolvido.
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207

Coordenação Geral
Des. Antonio Carlos Malheiros

Capa
Escola Paulista da Magistratura

Diagramação
Ameruso Artes Gráficas

Revisão
Onélia Salum Andrade

Formato Fechado
150 x 210 mm

Tipologia
AGaramond, Frutiger

Papel
Capa: Cartão Revestido 250g/m2
Miolo: Offset Branco 90g/m2

Acabamento
Cadernos de 16pp.
costurados e colados - brochura

Tiragem
3.500 exemplares

Impressão
Imprensa Oficial do Estado

Junho de 2003
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