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As raízes do imaginário: o Diabo na sociedade católica europeia no século XV1.

Crislayne Fátima dos Anjos2

O vocábulo “medieval” e “moderno”, além de expressarem dois distintos


momentos da História, simbolizava uma significativa dicotomia: a definição de
medieval apresentava-se como um longo período de estagnação e obscuridade; o
“moderno” visualizava-se o progresso, o renascer do conhecimento, a luz depois das
trevas. Essa oposta visão de mundo, preceituada pelos humanistas no século XVI e
reafirmada no século XVIII, apresentava uma ideia de que, ao vivenciarem a Idade
Média, deixando seus princípios e suas convicções, as sociedades ascendiam ao
amanhã de um modo mais democrático, adentrando a um novo momento histórico
que seria intitulado de Idade Moderna. A necessidade dessa explicação se refere à
proposta do recorte cronológico desta pesquisa. A História não conhece barreiras,
portanto as mentalidades e o imaginário não se modificam instantaneamente com o
“fim” da Idade Média e o “inicio” da Idade Moderna.

Esta discussão tem como objetivo principal analisar a construção do imaginário


acerca da figura do Diabo na sociedade europeia do século XV. A obra escolhida
para o desenvolvimento desta pesquisa foi o Malleus Maleficarum- Martelo das
Feiticeiras, escrito, originalmente em latim, e publicado em 1487, pelos dominicanos
Heinrinch Kramer (1430-1505), reitor da Universidade de Colônia, e Jacob Sprenger
(1436/8-1495), inquisidor-geral da Alemanha, que haviam conduzido
“incansavelmente” a caça as bruxas nas regiões da Alemanha e Áustria. O Malleus
Maleficarum trata-se de um compêndio que tinha por objetivo edificar-se como um
suporte normativo para todas as ordens religiosas e para os oficiais seculares nos
tratamentos das heresias. Argumentando que, qualquer indivíduo que não

1
Pesquisa vinculada ao Trabalho de Conclusão de Curso da Graduação em História pela Universidade Estadual
de Londrina (UEL) defendida em março de 2016, sob orientação do Prof. Dr. Marco Antônio Neves Soares.
2
Pós – graduanda de Especialização em Religiões e Religiosidades pela Universidade Estadual de Londrina
(UEL), sob orientação do Prof. Dr. Marco Antônio Neves Soares. E-mail: cris_laine1805@hotmail.com
2

acreditasse em de bruxos adoradores do Diabo e na solidificada existência de


ambos e afirmassem que tal era fruto da imaginação, deveria ser culpado por
heresia. O documento especificava e caracterizava os males religiosos que afligia o
reino da cristandade naquele período. Discorrer sobre o quebra-cabeça teológico
que circunda o mal, esmiuçando todas as particularidades no âmbito cultural é
fundamental para a compreensão da história do pensamento.

I. Um outono ensolarado3: o imaginário de uma época.

As sociedades que presenciaram a formação e publicação do Malleus


Maleficarum eram sociedades que acreditava no sobrenatural, nas ações e no poder
do Diabo e de seus agentes. Não que essa característica seja apenas das
sociedades do “fim” do período medieval, entretanto, em 1500, a Europa cristã já
estava dividida entre católicos e ortodoxos, e não tardaria a se dividir mais com o
surgimento do protestantismo. O fato é que, a sociedade que recepcionou a obra de
Kramer e Sprenger vivenciou transformações profundas que atingiram precisamente
seu imaginário social e, sem uma cultura voltada para a construção dos poderes de
Satã, as incidências do medo não tomariam proporções consideráveis como ocorreu
na Europa. Dentre as grandes teses do Malleus Maleficarum, em primeiro lugar
consta a propriedade do Diabo em, com a permissão de Deus, provocar o mal aos
homens a fim de apropriar-se de suas almas. O imaginário deixa de ser abstrato e se
materializa; o Diabo é real e consistente a partir de seus agentes, não sendo fruto
meramente do ilusório.

3
Em entrevista para Hilário Franco Junior, ao jornal Estadão, o historiador francês Jacques Le Goff se refere ao
período abordado no livro do historiador holandês Johan Huizinga como um outono ensolarado, pois “[...] é
preciso dizer que o período ao qual o livro se dedica, digamos um longo século XV, talvez também seja um dos
mais mal estudados na Europa, e por isso ainda há novas descobertas e novas interpretações. [...]. Eu creio que
este seja o caso de uma virada histórica que não se parece com nenhum outro, porque se trata de um belo
outono. A tradução francesa antiga era uma tradução estúpida ao se referir ao declínio da Idade Média”
(Estadão. São Paulo, 30 abr. 2010).
3

Enganem-se portanto os que afirmam não existirem coisas como bruxaria ou


feitiçaria, ou os que professam tais coisas serem imaginárias ou existirem demônios
só na imaginação de ignorantes e de populares, e também os que declaram ser
equivoco atribuir a demônios certos fenômenos naturais que acontecem aos
homens. (KRAMER & SPRENGER, 1993, p.51).

A partir desta perspectiva, as feiticeiras e o Diabo tornam-se um mecanismo


de interpretação do mundo, identificando o principio do mal, ou seja, o Diabo, e as
causas de todas as disfunções da ordem natural e social.

[...] a feitiçaria oferece toda uma explicação dos acontecimentos e dos meios de
agir sobre eles configuram como inteiramente “simbólicos”, isto é, relacionam-se a
influência dos poderes sobrenaturais e ao poder oculto que “feiticeiros” ou
“feiticeiras” possuiriam e usariam contra seu próximo [...]. (SCHMITT, 2002, p.423).

Os escritos de Kramer e Sprenger remetem a sua posição estabelecida


enquanto representantes da Igreja Católica e, portanto, indicadora da formação
ideológica predominante, transformando-se no apogeu ideológico e pragmático da
Inquisição contra a bruxaria, atingindo principalmente as mulheres.

Ademais, é inútil argumentar que todo o efeito das bruxarias é fantástico ou irreal,
pois não poderia ser realizado sem que se recorresse aos poderes do diabo: é
necessário, para tal, que se faça um pacto com ele, pelo qual a bruxa de fato e
verdadeiramente se torna sua serva e a ele se devota – o que não é feito em
estado onírico ou ilusório, mas sim concretamente: a bruxa passa a cooperar com o
diabo e a ele se une. Pois que aí reside toda a finalidade da bruxaria; se os
malefícios são infligidos por mau-olhado, por fórmulas mágicas ou por algum outro
4

encantamento, tudo se faz através do diabo, [...] (KRAMER & SPRENGER, 1993,
p.57).

O Diabo tem poderes extraordinários sobre as consciências, pois é capaz de


produzir um imaginário que lhes aconteça concretamente. É interessante notar-se
que, ao longo de toda a obra, os autores reforçam a argumentação da presença real
de feiticeiros e bruxas, entretanto, ao longo das linhas, Kramer e Sprenger dão maior
notoriedade aos perigos da bruxaria, pois identificam a bruxaria frontalmente aos
impulsos carnais, alegando que “toda bruxaria tem origem na cobiça carnal,
insaciável nas mulheres” (KRAMER & SPRENGER, 1993, p.121). O fato primordial é
que este pensamento não é incomum para a época, tratando-se da visão “oficial” do
gênero feminino e a ideia de inferioridade perpetuada consequentemente pelo
Pecado Original e de Eva, a proposta dos autores concerne em vincular essa
inerente fraqueza feminina com os males que permeiam o seu cotidiano, “é um fato
que o maior número de praticantes de bruxaria é encontrado no sexo feminino”
(KRAMER & SPRENGER, 1993, p.112).

É preciso observar especialmente que essa heresia – a da bruxaria – difere de


todas as demais porque nela não se faz apenas um pacto tácito com diabo, e sim
um pacto perfeitamente definido e explicito que ultraja o Criador e que tem por meta
profana-lo ao extremo e atingir suas criaturas. (KRAMER & SPRENGER, 1993,
p.77).

Este consentimento por parte do indivíduo para o usufruir do Diabo, reflete a


desconfiança frente às mulheres como parte integrante da cultura. Os exercícios das
bruxas que, pelo intermédio do diabo, provocam malefícios para com o próximo,
exercem a violência física, como a castração, por exemplo, “são consequências
5

daquilo que na origem nada mais é do que na realidade imaginário” (SCHMITT,


2002, p.424).

Sob suas diversas denominações, o Diabo é sem duvida um das figuras mais
intrigantes do cristianismo. Os homens dos séculos XIV – XVI são dominados por
sua existência e vivem subjugados por sua presença constante no cotidiano.
Enquanto espirito, não possui aspecto corpóreo, submergido nas culturas e
mentalidades especificas de cada momento, que o delineiam com estas ou aquelas
cores.

Não se deve considerar o Diabo de modo isolado; é preciso, ao contrário, levar em


conta seu lugar no sistema religioso global e, portanto, descrever as redes de
relações às quais está integrado. Além disso, é preciso explorar o âmago da
consciência, onde a angústia do Diabo e suas múltiplas manifestações mergulham
suas raízes e, por outro lado, relacionar a figura do Diabo com o conjunto das
realidades sociais e politicas, em particular com os conflitos que agitam as
sociedades medievais e nos quais o Diabo desempenha seu papel. (BASCHET,
2002, p.320).

De um lado as instituições, primeiramente a Igreja e depois o Estado, do outro


os personagens do Diabo e da feiticeira constituem o encontro primordial do
fenômeno de caça as bruxas que se desencadeou na Europa entre os séculos XV
até meados do século XVIII.

A propaganda contínua sobre o perigo, enraizada como estava em imagens e


ideias que podiam ser reconhecidas, penetrou na consciência popular até gerar
frutos pavorosos nas caças as bruxas dos séculos XVI e XVII, quando grande
massa das comunidades aceitava e incentivava as caças aos servos de Satã.
(RICHARDS, 1993, p.94).
6

Alguns elementos daquilo que se tornara o estereótipo da bruxaria, somam-se


quatro importantes requisitos para a realização desta prática; renunciar a fé cristã,
dedicar-se de corpo e alma as práticas do mal, oferecer ao Diabo uma criança não
batizada (fig.02) e se prostrar a todos os atos carnais e todos os prazeres obscenos.
Nota-se o aspecto central ocupado pelo sexo, onde as orgias sexuais eram partes
indispensáveis dos rituais.

Numa de suas modalidades é feito em cerimonia solene. Na outra é feito ao diabo


em qualquer hora em sigilo. A cerimonia solene é realizada em conclave, com data
marcada. Nela o diabo aparece às bruxas em forma de homem, reclamando-lhes a
fidelidade que será firmada em voto solene. Em troca, promete-lhes a prosperidade
mundana e longevidade. Depois, as feiticeiras recomendam-lhes uma iniciante –
uma noviça – para seu acolhimento e aprovação, a quem o diabo então pergunta:
- Juras repudiar a Fé e renunciar a santa religião Cristã e a adoração da Mulher
Anômala? – porque assim chama a Santíssima Virgem Maria. – Juras nunca mais
venerar os Sacramentos?
Se então parece-lhes que a nova discípula está disposta a assentir com o que lhe é
pedido, estende-lhe a mão, ao que ela responde fazendo o mesmo e, de braço
estendido, firma o juramento e sela o próprio destino. Feito isso o diabo prossegue:
- Ainda não basta.
- E o que mais há para ser feito? – indaga a discípula.
- É preciso que te entregues a mim de corpo e alma, para todo o sempre, e que te
esforces ao extremo para trazer-me outros discípulos, homens e mulheres. – E
assim prossegue na preleção, explicando – lhes como fazer pomada especial dos
ossos e dos membros de crianças, sobretudo de crianças batizadas; [...].
Nos inquisidores sabemos de um caso verossímil dessa cerimonia na cidade de
Breisach, da dioecese da Basiléia. A história nos foi contada por uma jovem bruxa
que acabou de converter-se, e cuja tia fora queimada na diocese de Strasburg.
Confessou-nos que se tornara bruxa atraída pela tia. (KRAMER & SPRENGER,
1993, p.215-216).
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De acordo com este “verossímil” relato, a bruxaria satânica apresenta-se


como fé alternativa, como uma imagem refletida, inversa do cristianismo, onde se
venera a carne acima do espirito. Nas primeiras décadas do século XV, teólogos e
inquisidores assumiram perante as confissões dos seguidores da seita de feitiçaria
uma atitude autoritária: o sabá era um evento real, portanto, um crime passível de
punição na fogueira4. Esta angustia frente ao mal, não produziria uma extraordinária
efervescência no imaginário coletivo sem a vigorosa ação dos pregadores.

É assim que, no final do século XV, no momento do triunfo humanismo, [...], graças
a todo um esforço pedagógico da Igreja, produz-se na Europa um reforço e uma
maior difusão da crença no final dos tempos. Nesse clima de pessimismo
generalizado com relação ao futuro – físico e moral - da humanidade é que se
explica o “Salve-se quem puder” lançado pelo pregador Geiler em 1508, na
Catedral de Estrasburgo: [...]. (NOGUEIRA, 2000, p.90).

A crença nas bruxas pode ser considerada um exemplo extraordinário de


interação entre a tradição erudita e a popular. Como cita Peter Burke (1989),
pesquisas recentes sugerem que a imagem da bruxa que se estabeleceu nos
séculos XVI e XVII envolvia elementos populares, como a crença de que pessoas
tinham o poder de voar ou de imputar o mal para o próximo através de poderes
sobrenaturais, e os elementos eruditos se fundiam a esta construção, agregando a
ideia de um pacto com o diabo. Tais crenças de voos noturnos foram muito bem

4
A investida das realizações de processos judiciais deu impulso à ideia de um culto organizado realizado por
bruxas. Entretanto, poucos julgamentos por feitiçaria foram realizados antes de 1300, em parte, devido a
natureza do sistema legal. Tratava-se de um processo acusatório, onde uma pessoa acusava a outra,
fornecendo provas e buscando mecanismos para convencer o juiz. Se isso fracassasse, métodos como fogo e
agua poderiam ser requisitados, todavia, se o acusador não conseguisse, por fim, encontrar sustentabilidade
para suas alegações, poderia ser submetido a pena que tentara imputar ao acusado. Isso se modificou
consideravelmente após a revitalização do Direito Romano no século XII, introduzindo um sistema de inquirição
no processo judicial.
8

explanadas por Carlo Ginzburg em Histórias Noturnas, documentando que as raízes


desse imaginário são antigas e profundas, anteriores a cristianização.

O cristianismo há muito tempo vinha convertendo a cultura5 europeia num


conjunto unitário. Identificavam todas às práticas mágicas com o paganismo e as
condenavam. Neste caldeirão cultural, as expressões folclóricas foram inseridas na
satanização progressiva, transformadas num processo de distorções intrínsecas e
má compreensão. O processo foi lento, mas a partir de quatro pilares distintos;
folclore, bruxaria, magia ritual e adoração ao Diabo, ergueu-se o estereótipo
sustentáculo da caça as bruxas.

Desde os tempos romanos, já existiam histórias de mulheres que eram capazes de


voar, bruxas noturnas (strigae), que eram capazes de se transformar em pássaros e
se dedicavam ao sexo, canibalismo e assassinatos. Havia uma crença popular há
muito estabelecida nas “damas da noite”, espíritos femininos protetores e benéficos,
para quem os camponeses deixavam comida e bebida. Formavam um grupo
organizado, uma hoste com uma líder sobrenatural, conhecidas sob nomes
variados de Diana, Herodias e Holda. Até o século XIII, a elite educada considerava
esses fenômenos como ilusões. Mas, no final da Idade Média, os intelectuais
passaram a acreditar que as histórias eram literalmente verdadeiras, e Kramer e
Sprenger atacaram a ideia de que elas poderiam ser ilusões. Estas histórias, então,
foram misturadas à bruxaria, magia ritual e ao ingrediente inteiramente mítico da
adoração do Diabo para criar o novo estereótipo familiar da bruxa. (RICHARDS,
1993, p. 97).

5
Para definição de cultura, utiliza- se os conceitos de Peter Burke, onde o mesmo diz que “[...] cultura com
ênfase na mentalidade como “um sistema de significados, atitudes e valores compartilhados, e as formas
simbólicas (apresentações, artefatos) nas quais eles se expressam ou se incorporam.” (BURKE, Peter. Cultura
Popular na Idade Moderna. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.21.
9

A presença real e continua em todos os instantes da existência humana,


articulam de maneira eficaz o imaginado e a realidade6, estabelecendo o Diabo em
um personagem concreto e familiar em um mundo de desiquilíbrio, onde o homem é
o personagem principal da trágica dicotomia entre o representado e o vivido.

Porém, quis a Divina Providencia que pelo exemplo de Jó os poderes do diabo se


manifestassem, mesmo sobre os bons homens, de sorte a aprendermos a nos
guardar contra Satã, e que, pelo exemplo desse santo patriarca, a glória de Deus
se manifestasse em seu esplendor, porquanto nada acontece sem a permissão do
Todo-Poderoso. (KRAMER & SPRENGER 1993, p.68).

Necessita-se reconhecer e identificar o inimigo na luta entre a matéria e o


espírito na imaginação popular. “E assim, neste crepúsculo sombrio da civilização,
quando se vê o pecado florescer por todos os lado e por todos os cantos, e a
caridade desaparecer, é que se percebe o prosperar da perversidade das bruxas e
suas iniquidades” (KRAMER & SPRENGER, 1993, p.69).

Nesta aguçada sensibilidade psicológica, a mentalidade tende a enxergar de


maneira globalizante as “realidades” que criam e adotam. Segundo Hilário Franco
Junior:

As manifestações imaginárias que se constroem com material da mentalidade, da


psicologia coletiva mais profunda, não são meros reflexos da realidade material. As
duas instâncias interagem. [...]. Os homens são produto de seu tempo, e só se
“inventa” ou se “acredita” no que é possível para a época inventar ou acreditar.
(FRANCO JUNIOR, 2010, p.92).

6
Nesta perspectiva, cabe ressaltar o conceito de realidade discutido pelo historiador Hilário Franco Junior,
onde o mesmo articula que “aquilo que cada época considera “realidade” nada mais é do que produto de sua
percepção cultural.” FRANCO JUNIOR, Hilário. A Eva Barbada: Ensaios de Mitologia Medieval. 2ªedição. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010, p.23.
10

Distorções intrínsecas a parte, a historia da cultura inclui agora a história das


ações ou noções subjacente à vida cotidiana, uma cultura construída socialmente. “A
segunda grande objeção à cultura popular tradicional era moral. As festas eram
denunciadas como ocasiões de pecado, mais particularmente de embriaguez,
glutoneria e luxúria, estimulando a submissão ao mundo, à carne e ao demônio –
especialmente a carne.” (BURKE, 1989, p.236). Mais um capítulo da separação
entre o sagrado e o profano, entretanto, um questionamento se faz presente: a
cultura popular tem o mesmo significado para as elites que participavam e para as
classes populares? Primeiramente, como já foi elencada, a cultura popular,
predominantemente oral, chega-nos através de intermediadores, tornando-se uma
documentação quase sempre indireta.

Outras atividades populares estão documentadas simplesmente porque as


autoridades da Igreja ou do Estado estavam tentando elimina-las. A maior parte do
que sabemos sobre as rebeliões, heresias e feitiçaria do período foi registrada
porque rebeldes, hereges e bruxas foram levados a julgamentos e interrogados.
(BURKE, 1989, p.92).

Pode-se dizer que os valores das classes populares só eram documentados


quando as classes altas letradas se interessavam por eles? Torna-se possível, a
partir de um ponto - chave, o desenvolvimento desses questionamentos: a
alfabetização.

É de conhecimento que existia uma estratificação cultural e social na maioria


dos lugares, onde havia uma minoria letrada, e dentro desta minoria, havia quem
tinha conhecimento sobre o latim, e uma maioria analfabeta. Engana-se pensar que
a elite e o clero eram alfabetizados em um todo: “[...] é preciso lembrar que muitos
nobres e clérigos não sabiam ler nem escrever, ou só conseguiam com dificuldade,
da mesma forma que os camponeses; na área da Cracóvia, por volta de 1565, mais
de 80% dos nobres sem fortuna eram analfabetos.” (BURKE, 1989, p.54).
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É de conhecimento também que, as cidades abrigavam em seus seios


minorias étnicas, que ao partilharem de uma cultura os excluía para as margens
socioculturais, no âmago do funcionamento das tênues relações sociais em uma
micro sociedade. A apropriação do sabá judaico para designar as reuniões dos
servos do Diabo é um exemplo dos mecanismos utilizados em relação à cultura do
outro, “a emergência do sabá pressupõe a crise da sociedade europeia no século
XIV e as carestias, a peste, a segregação ou expulsão dos grupos marginais que
acompanharam.” (GINZBURG, 2012, p.103). As sobrevivências dos estrados
profundos das crenças populares deram molde a interpretações religiosas
desenfreadas.

De posse da pomada voadora, que, como dissemos, tem fórmula definida pelas
instruções do diabo e é feita dos membros das crianças, sobretudo daquelas
mortas antes do batismo, ungem com ela uma cadeira ou um cabo de vassoura;
depois do que são imediatamente elevadas aos ares, de dia ou de noite, na
visibilidade ou, se desejarem, na invisibilidade; pois o diabo é capaz de ocultar um
corpo pela interposição de alguma outra substância, [...]. E não obstante o diabo
realize tal prodígio em grande parte através da pomada – para que as crianças se
vejam privadas da graça do batismo e da salvação -, [...]. Já que, vez ou outra,
transporta as bruxas em animais, que não são de fato animais, mas demônios
naquela forma; e noutras ocasiões, mesmo sem qualquer auxílio exterior, elas são
visivelmente transportadas exclusivamente para força dos demônios. (KRAMER &
SPRENGER, 1993, p.228).

Além disso;

A mulher da cidade de Breisach, a quem perguntamos se só eram transportadas na


imaginação ou só em corpo físico, ajudou a esclarecer a questão. Disse-nos que
são das duas maneiras. Contou-nos, ademais, que, quando não querem ser
transportadas corporeamente, mas desejam saber o que está se passando num
12

encontro de bruxas, observam o seguinte procedimento. Em nome de todos os


demônios, deitam-se sobre o lado esquerdo e põem-se a dormir. Começa a sair por
sua boca, então, uma espécie de vapor azulado através do qual conseguem ver
exatamente o que está acontecendo. Quando, porém, querem ser até lá
transportadas, precisam observar o método a que já nos referimos. (KRAMER &
SPRENGER, 1993, p.230).

É passível de interpretação que, tais fenômenos aéreos podem remeter ao


milenar folclore camponês de crenças populares e sobrevivências míticas de
espíritos benéficos que sobrevoavam as colheitas para a proteção das mesmas, que
se transformou em um discurso fantasioso desenfreado por parte dos teólogos.

[...], o nome Diana é, às vezes, substituído pelos nomes de algumas divindades


populares germânicas, como Holda, dotadas de atributos que, por um contraste
aliás muito frequente, dizem respeito tanto à vida quanto à morte. Holda, com
efeito, analogamente à sua coirmã da Alemanha meridional, Perchta, é ao mesmo
tempo deusa da vegetação, e portanto da fertilidade, e guia do “exército furioso” ou
da “caça selvagem” (Wütischend Heer, Wilde Fagd, Mesnie Sauvage) – isto é, do
bando dos que morreram prematuramente, que percorre à noite, implacável e
terrível, as ruas da aldeias, enquanto os habitantes trancam as portas em busca
das mulheres adeptas de Diana são uma variante da “caça selvagem”; e explica-se
assim a espantosa presença de Diana, “deusa dos pagãos”, entre esses mitos
populares – identificação erudita, na realidade, de inquisidores, teólogos,
pregadores, facilitada por algumas analogias objetivas. Diana – Hécate, com efeito,
também é seguida nas suas peregrinações noturnas por um grupo de mortos que
não encontram paz: os mortos prematuros, as crianças roubadas cedo demais à
vida, às vítimas de morte violenta. (GINZBURG, 2010, p.65-66).

Este testemunho elencado pelos inquisidores dominicanos “é apenas um


dentre inúmeros testemunhos da lenta demonização, levada adiante durante
13

séculos, de um estrato de crenças que chegou até nós de maneira fragmentária, por
intermédio de textos produzidos por canonistas, inquisidores e juízes” (GINZBURG,
2012, p.119). Todos os esforços em reduzir, por parte do cristianismo, tais
divindades à condição de crenças deformadas, consequentemente resultaram na
sobrevivência das tradições e crenças do mundo antigo.

As incrustações diabólicas que envolvem esses substratos culturais foram


difundidas com a contribuição da circulação dos tratados de demonologia pela
Europa. A invenção da imprensa consolidou a difusão de publicações de novos
tratados, ampliando as áreas de debates em torno dos processos de feitiçaria dos
tormentos de consciência provocados pelo Diabo. As obras demonológicas
carregam a atmosfera mental com inesgotáveis descrições dos inumeráveis
mecanismos que o Diabo oferece a fim de levar-nos a perdição. Esta, no entanto, é
a verdadeira identidade do maligno nas premissas religiosas. Segundo Nogueira:

Contudo, duas imagens de Satã coexistem: uma popular e outra erudita, esta, de
longe, a representação mais trágica, pois o Demônio, nas condições populares, é
uma entre outras tantas sobrevivências míticas que uma conversão imposta não
conseguiu exterminar. O Diabo popular é um personagem familiar, às vezes
benfazeja, muito menos terrível do que afirma a Igreja, e pode ser inclusive,
facilmente enganado. A mentalidade popular defendia-se, desse modo, da teologia
aterrorizante – e muitas vezes incompreensível – da cultura erudita. (NOGUEIRA,
2000, p.99).

Edward Thompson (apud BURKE, 1989) aponta um questionamento ao


considerar que os camponeses cristãos só aceitam os dogmas doutrinários da
Igreja, a partir do ponto em que possam assimila-la com suas experiências. O
folclore funcionava como um mecanismo de resistência cultural aos valores
eclesiásticos. A presença do Diabo era extremamente necessária, a partir do
momento em que sua existência servia de substrato ideológico para justificar os
intensos esforços missionários e suas medidas repressivas e violentas
14

administradas na luta contra o mal e suas articulações. O verdadeiro medo está no


que não se vê ou no que pensa em ter se visto.

E notar que, se confessar sob tortura, deverá ser então levada para outro local e
interrogada novamente, para que não confesse tão somente sob pressão da tortura.
Se após a devida sessão de tortura a acusada se recusar a confessar a verdade,
caberá ao Juiz colocar diante dela outros aparelhos de tortura e dizer-lhe que terá
de suporta-los se não confessar. Se então não for induzida pelo terror a confessor,
a tortura deverá prosseguir no segundo ou no terceiro dia, mas não naquele mesmo
momento, salvo boas indicações de seu provável êxito. (KRAMER & SPRENGER,
1993, p.433).

Figura 01: A imersão de Mary Sutton suspeita de ser bruxa, em 1612. Aqueles que sobreviviam
ao julgamento eram reconhecidos como bruxos. Folha de rosto de um folheto de título Witches
apprehended, examined and executed, Londres, 1613. RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvio e
Danação: As minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed; 1993, p.89.

A Inquisição medieval não permitia a repetição da tortura (fig.01), contudo,


havia tribunais, como por exemplo, Espanha e Portugal, que se aplicava o numero
de torturas necessárias para a obtenção das confissões. Os julgamentos por heresia
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e feitiçaria eram caracterizados por um conjunto padronizado de perguntas, em que


a ideia do vinculo entre a heresia, bruxaria e obscenidades tornaram-se quase que
indistinguíveis entre si. Estas particularidades do discurso cristão eram pautadas
substancialmente nas mesmas alegações que os escritores pagãos proferiam contra
os cristãos dos primórdios. Essa prática de censurar as religiões dissidentes com os
crimes mais repugnantes, como infanticídio, era frequente. As parteiras também
foram alvo da perspectiva clerical, segundo Kramer & Sprenger;

[...] contou-nos ainda que os piores males eram infligidos pelas bruxas parteiras,
porque eram obrigadas a matar ou a oferecer aos demônios o maior número
possível de recém-nascidos; e que certa vez fora espancada pela tia porque abrira
um pote secreto onde estavam guardadas as cabeças de muitas crianças. E muito
mais nos contou, tendo o primeiro, como de praxe, feito o juramento de só dizer a
verdade. (KRAMER & SPRENGER, 1993, p.216).

Observa-se que a medicina popular, praticada pela mulher local, conhecedora


das ervas e das habilidades do parto era estimulo para indicações de bruxaria 7 e era
um fenômeno comunitário, partilhado entre as classes mais baixas. Apropriar-se do
cotidiano também forneceu embasamento para as concepções de práticas de
feitiçaria.

Convencidos de que a sociedade cristã é alvo de uma ofensiva sem precedentes


lançada por Satã, os poderes eclesiásticos e estatais desencadeiam, a partir do
século XV, uma vasta perseguição, em escala inédita, contra os que considera seus
inimigos mortais. Satã aparece como Adversário contra o qual se funda o poder das

7
O historiador inglês Jeffrey Richards argumenta que, a bruxaria era essencialmente a magia inferior, ou seja, a
medicina popular, em contraponto a magia superior, praticada por instruídos. A distinção entre as duas era
que, a magia inferior era realizada pela mulher sábia, aquele que detinha o conhecimento com ervas (venenos
e abortíferos também) e que era versada na arte do parto. Essas mulheres eram presentes nas comunidades de
classes sociais mais baixas e tais praticas eram realizada pelos indivíduos, não em cultos. No extremo oposto,
encontrava- se a magia superior, a ciência praticada pelo intelectualizado, rituais formais e livros de sabedoria.
Ver: RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média; tradução Marco Antônio Esteves
da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed; 1993, p. 87.
16

instituições, antes de todas o da Igreja, principalmente na luta contra as heresias, e


também o dos Estados, engajados na caça às feiticeiras. (BASCHET, 2002, p.329).

Espalhando na atmosfera do período, a diversidade e as peculiaridades


aterrorizantes dos tormentos que prenunciam sobre os indivíduos, o teatro religioso
e os sermões difundiram e implantaram o discurso teológico 8 que, acarretou em uma
condição dicotômica fomentando uma comoção na sensibilidade e na imaginação
coletiva, não podendo se pensar o Bem sem pensar no Mal, “[...], o diabo prefere
operar por intermédio de bruxas e realizar tais prodígios em seu próprio proveito, ou
seja, visando a perda das almas” (KRAMER & SPRENGER, 1993, p.54).

Em Ratisbon, um homem vinha sendo tentado pelo demônio em forma de mulher a


copular, e começou a ficar desesperado quando viu que o demônio não desistia.
Veio-lhe, porém, a ideia de comer Sal Consagrado para se defender, conforme já
ouvira num sermão. E assim fez: ao entrar no banheiro, comeu do Sal, e a mulher,
olhando-o ameaçadoramente, amaldiçoou-o com todas as imprecações que o diabo
lhe ensinara e, subitamente, desapareceu. (KRAMER & SPRENGER, 1993, p.201-
202).

A caça as bruxas foi um dos episódios mais impressionante da história do


Diabo, e o sermão era o difusor substancial para aproximar a elite com a cultura
popular, em uma sociedade onde “os camponeses compunham de 80% a 90% da
população da Europa” (BURKE, 1989, p.56). Portanto, podemos explorar, partindo
destes pressupostos, o conceito de “circularidade cultural”, abarcado por Carlo
Ginzburg.

No prefácio à edição inglesa de O queijo e os vermes, Ginzburg rememora a


Mikhail Bakhtin, e partindo dele, empreende uma discussão crítica sobre o termo

8
O teatro religioso mobilizava um numero importante de espectadores, enquanto os sermões difundiam o
medo desmesurado do Diabo, causando grande comoção na mentalidade popular, que atingindo proporções
significativas, foi proibido em um concilio em 1516.
17

“circularidade”, para delinear a comunicabilidade que havia entre a cultura das


classes dominantes e a das classes subalternas na Europa pré-industrial. Essa
comunicação se dava de forma dialógica, “entre a cultura das classes dominantes e
das classes subalternas existiu, na Europa pré – industrial, um relacionamento
circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como
de cima para baixo” (GINZURG, 2012, p. 10).

Assim, partindo da história de Domenico Scandella (conhecido por


Menocchio) tendo como fonte os autos dos processos inquisitoriais ao que o
protagonista foi submetido na região do Friul durante o século XVI, Ginzburg formula
um quadro mais amplo dos valores da cultura popular da Europa pré-industrial. Mais
do que um procedimento jurídico, os discursos entre Menocchio e o inquisidor
transparecem duas tradições culturais que dialogam entre si, uma com raízes
profundas na cultura popular, predominantemente oral, e outra herdeira da cultura
da elite. As percepções de Menocchio evidenciam a descontinuidade em relação ao
discurso elitizado do inquisidor, em contrapartida, trazem claras referências a essa
mesma cultura. Ginzburg revaloriza o conceito de cultura popular neste trabalho.

[...] as imagens, estórias ou ideias, [...] são modificadas ou transformadas, num


processo que, de cima, parece ser distorção ou má compressão, e, de baixo,
parece adaptação a necessidades especificas. As mentes das pessoas comuns não
são como folha de papel branco, mas estão abastecidas de ideias e imagens; [...].
(BURKE, 1989, p.86).

Um fator decisivo é a ignorância. Kramer & Sprenger argumentam que


existem três tipos de heresias: os indivíduos que pregam abertamente doutrinas
heréticas, os que são comprovados por testemunhas e por fim, os que se confessam
por sua livre e espontânea confissão. Existem também certas especificidades, como
os que não possuem conhecimento das leis canônicas ou são mal – informados por
insuficientes leituras, entretanto:
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Para uma pessoa ser acusada de heresia não basta vê-la defender simplesmente
uma ideia: é preciso que a leve adiante, que a defenda obstinada e abertamente.
[...]. Mas que nenhum homem pense poder escapar alegando ignorância. [...].
Porque, embora existam vários graus de ignorância, os responsáveis pela cura das
almas não podem pleitear ignorância absoluta, [...]. O que há de ser censurado
nessas pessoas é a ignorância Universal, ou seja, a ignorância da lei divina, a qual,
conforme determinou o Papa Nicolau V, devem e deveriam conhecer. (KRAMER &
SPRENGER, 1993, p.60).

A ignorância religiosa no século XV era uma grande heresia, no sentido que,


os acusados de cometê-la, não compreendiam com clareza as regras da Igreja,
portanto, é tangível considerar que a minoria era efetivamente capaz de ler na
aurora da Europa moderna; os homens mais que as mulheres, os artesãos mais que
os camponeses.

Essas crenças constituíam-se, de resto, somente a versão “negra” de uma


concepção global do mundo: na sociedade cristã tradicional, dominada pela Igreja e
por seu clero, pode-se observar que o culto dos santos e a crença no milagre, os
exorcismos, a perspectiva da Presença real na hóstia, não se embasam em uma
lógica diferente daquela feitiçaria, elas participam do mesmo pensamento simbólico,
do qual são a versão considerada legitima. (SCHMITT, 2002, p.423).

No decorrer desta discussão, levantamos um questionamento sobre as


consequências que decorreram do crescente fluxo de alfabetização no transcorrer
da Idade Moderna. O resultado do aumento da alfabetização e das facilidades
educacionais associados à difusão do livro impresso atenuou a relação entre a
cultura erudita e a cultura popular. Um exemplo dessa crescente divisão é o caso
das bruxas. Os séculos XVI e XVII foram marcados como o apogeu da caça as
bruxas, com um aumento no numero de processos e de execuções de pessoas
19

acusadas, contudo, a partir de meados do século XVII inicia-se o declínio desses


processos, no que tange a Europa Ocidental. Isso não significa que a população
deixara de aceitar a existência de historias de bruxas e espíritos femininos,
entretanto a elite deixara de acreditar nela, deixara no sentido de, se não abjuraram
totalmente da ideia, ao menos se tornaram mais céticos frente a ela. “No final do
século XVII, os cultos estavam começando a julgar a crença em bruxas como uma
característica de “gente que tem discernimento e a razão mais fraca, como
mulheres, crianças e pessoas ignorantes e supersticiosas.” (BURKE, 1989, p.298)”.

O mal domina consciências. O homem moderno sente-se inseguro, insegurança


baseada na crença de um Satã todo-poderoso, identificando a todas as desgraças
e azares que ocorriam o mundo. Crença que serve de suporte a toda série de
violências que ensanguentam a Europa moderna, transformadas em lutas contra o
Diabo, seus agentes e seus estrategemas. [...]. Em outras palavras, as Reformas
conferiram ao Inimigo o direito de existir em toda sua potencia, em toda a sua
nobreza. (NOGUERIA, 2000, p.101).

Fora, portanto, na aurora dos tempos modernos que concepções do Inferno,


do Diabo e dos seus agentes povoaram de modo substancial a imaginação do
Ocidente. A caça as bruxas não foi um evento medieval, do período das “trevas”,
desencadeou-se paralelamente a difusão do livro impresso, do Renascimento
cultural, das grandes navegações. Obra após obra, as experiências dos eclesiásticos
e inquisidores foi se estendendo por diferentes países, acrescentando a cada
publicação explicações minuciosas de particularidades que um imaginário sem
barreiras fomentou sobre a personificação, a personalidade e os poderes do inimigo
cristão.
20

Considerações Finais.

Fruto de uma tradição secular, elaborado a partir do substrato cultural


herdado do mundo judaico, e consequentemente, influenciado por outras culturas, o
imaginário do Diabo não é alheio às transformações efetuadas com o advento do
cristianismo, que o insere em uma posição central da reflexão teológica
empreendida sobre a existência do mal e sobre o pecado. Diferentemente do que se
é encontrado na maioria dos trabalhos acadêmicos que se utilizam do Malleus
Maleficarum como fonte, está pesquisa centrou-se no caráter cultural da obra, uma
vez que seu caráter religioso já foi amplamente debatido anteriormente.
Como já elencado, este trabalho preocupou-se em discutir as consequências do
convívio entre a cultura erudita e popular, e como este vínculo foi sumariamente
importante para a fomentação do imaginário durante o recorte cronológico
explicitado. Os mecanismos empregados pelo cristianismo param se solidificar em
um espaço onde as antigas crenças estavam arraigadas no seio da população,
resultaram na redução do poder das divindades pagãs à condição de crenças
deformadas, em contrapartida, tais esforços colaboraram para sua sobrevivência em
meio às tradições da “verdadeira fé”. É preciso enxergar que a cultura erudita e a
cultura popular não podem ser compreendidas como elementos opostos e
impermeáveis. O folclore funcionava na Idade Média como uma forma de resistência
cultural aos valores eclesiásticos. Cada cultura deve ser analisada como parte de um
conjunto articulado, que funciona como um sistema de interpretação do mundo e da
comunicação afetiva com ele, isto é, a cultura necessita ser enxergada com parte,
não de um, mas de vários conjuntos.

Referências

Fonte:

KRAMER, Heinrich, SPRENGER, James. Malleus Maleficarum: o martelo das


feiticeiras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993.
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Bibliografia:

BASCHET, J. “Diabo”. In: LE GOFF, J. & SCHMITT, J. C. Dicionário temático do


Ocidente Medieval. Bauru: EDUSC, 2002.
BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Média. Tradução Denise Bottmann. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.

BURKE, Peter. O que é historia cultural? Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2005.

FRANCO JUNIOR, Hilário. A Eva Barbada: Ensaios de Mitologia Medieval, 2ª


edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010.

GINZBURG, Carlo. Histórias Noturnas: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia


das Letras, 2012.

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: O cotidiano e as idéias de um moleiro


perseguido pela Inquisição; tradução Maria Betânia Amoroso. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.

GINZBURG, Carlo. Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos


XVI e XVII/ Carlo Ginzburg: tradução Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010.

NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no imaginário cristão. Bauru; São Paulo:


Edusc, 2000.

RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade Média; tradução


Marco Antônio Esteves da Rocha e Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed;
1993.

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