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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

DIOGO CAMPOS DA SILVA

ESTUDOS DOS FUNDAMENTOS EXISTENCIAIS DO DASEIN:


VERDADE E EXISTÊNCIA EM SER E TEMPO DE M. HEIDEGGER

Relatório final de pesquisa desenvolvida por meio do


Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
PIBIC/CNPq – BIP/UFSC 2008/2009.

Orientadora: Claudia Pellegrini Drucker, Drª

Florianópolis
2009
RESUMO

Nossa pesquisa de um ano tratou-se inicialmente de um estudo da introdução e da


primeira parte da primeira seção da obra Ser e Tempo de Martin Heidegger. Nos primeiros
meses, buscamos compreender em que sentido a filosofia heideggeriana é uma pergunta pelo
sentido do ser e, em seguida, responder por que se faz necessária uma análise dos
fundamentos da existência do Dasein tendo em vista uma resposta à questão do sentido do ser
em geral. Analisamos e discutimos a preparação para tal análise, aquilo que Heidegger
empreende nos capítulos 1 a 6 da obra. O resultado dessa investigação apresentamos nas
seções 3.1 e 3.2 de nosso relatório parcial. O acompanhamento dessa parte de Ser e Tempo
nos servirá também como preparação à leitura da segunda seção da obra (pesquisa já iniciada
desde agosto de 2009), onde o fundamental será interpretar o sentido do ser-aí mediante sua
temporalidade, a finitude. Porém, o resultado essencial desse trabalho foi alcançar uma
visualização do Dasein enquanto estado de abertura. Isto, junto a outros resultados, é o que
apresentamos nesse relatório final. Em Ser e Tempo, os fundamentos da existência humana
são representados através da figura do aberto. No aí, somos lançados e desde então existir
deve se cumprir e possuir sentido. Aberto, Dasein já possui uma compreensão de suas
possibilidades no mesmo instante em que as projeta no mundo. Compreendendo, Dasein pode
realizar sua existência, movendo-se entre os entes com ou sem a mesma constituição
ontológica sua. A compreensão originária do Dasein, o saber de si como ser-possível, ligada
no mesmo instante à dis-posição afetiva, é a condição fundamental de toda a verdade. Nesse
sentido, a Verdade é existência. Não obstante, enquanto Dasein se encontra na maior parte das
vezes distanciado de seus fundamentos e de-caído, a Verdade fundamental permanece
encoberta.

Palavras-chaves: Sentido do ser. Constituição ontológica do Dasein (existenciais). Abertura.


Verdade.
SUMÁRIO

1INTRODUÇÃO.......................................................................................................................4
1.1 JUSTIFICATIVA...................................................................................................................4
1.2 OBJETIVOS.........................................................................................................................5
2 MATERIAL E MÉTODO...................................................................................................10
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO..........................................................................................12
3.1 A INTERPRETAÇÃO HEIDEGGERIANA DA CRÍTICA DA RAZÃO PURA:
ESQUEMATISMO, IMAGINAÇÃO, TEMPO, FINITUDE E FUNDAMENTO...................12
3.1.1 Primeira parte................................................................................................................12
3.1.2 Segunda parte.................................................................................................................19
3.2 VERDADE E EXISTÊNCIA EM SER E TEMPO DE M. HEIDEGGER.........................24
3.2.1 Verdade, significância, mundo: conexões entre o parágrafo 18 e 44 de Ser e
Tempo........................................................................................................................................24
3.2.2 O elemento transcendental da Sorge............................................................................28
3.2.3 Co-originariedade de Verdade e Realidade................................................................32
3.2.4 Da Verdade Fundante à verdade fundada: do modelo operacional da Verdade ao
modelo proposicional..............................................................................................................34
3.2.5 A linguagem que mostra a unidade..............................................................................38
4 CONCLUSÕES....................................................................................................................39
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................................45
1. INTRODUÇÃO

1.1 JUSTIFICATIVA

Falar sobre a importância de uma obra como Ser e Tempo é percorrer o óbvio.
Justificar mais um estudo após 83 anos de seu surgimento só faz sentido quando, absorvidos
pela obra, percebemos que a força radical que dela emana e impele nosso pensamento contra a
tradição e as seguranças do pensar não pode ser facilmente notada e sentida. Quem busca
comodidades deve desistir de Ser e Tempo. A apreensão analítica da obra é com toda certeza
um caminho para alcançar algo do que nela há de radical. Com efeito, a maior parte de nosso
estudo aí se deteve. Todavia, confiamos que toda análise está longe de exaurir e esgotar o
pensamento. Muito mais do que uma compreensão aproximada dos sentidos dos termos,
importa a Heidegger que possamos reconduzir nosso Dasein. O problema de como nos
permitiremos ouvir o apelo por um sentido do ser é recolocado a cada leitura. Tanto hoje
quanto na época de sua publicação, no ambiente cultural e social em que nos movemos ou
naquele do qual emergiu o tratado de Heidegger, a necessidade de uma escuta atenta e
cautelosa do pensamento é evidente. Uma obra de filosofia dessa magnitude, cuja intenção
sincera é começar tudo denovo, reconduzindo nosso Dasein as suas origens e só de lá garantir
algum sentido a sua existência que possibilite, enfim, uma retomada das formas autênticas de
vida e a reinterpretação dos caminhos já assegurados na tradição, tal obra deve ser preservada
ao longo do tempo de modo a dar possibilidades para que ocorram essas revoluções no Dasein
de todas as épocas.
Com razão, também a maneira da obra e a singularidade deliberada dos termos e
argumentos justificam esse estudo demorado. Todo homem comum que se aventura diante das
formas geniais do pensar sabe o quanto, de inicio, elas lhe aparecem herméticas, obscuras e
confusas. Em Ser e Tempo, como em outras grandes obras da cultura, a necessidade interna, o
sentido, está essencialmente ligado à sua exposição formal. Heidegger precisou forçar a língua
para que o discurso pudesse mostrar aquilo de que há muito se acostumou abdicar. Produziu
novos termos ou os reconduziu aos seus sentidos originários. E suas sentenças não resultaram
fáceis para a habitual prosa filosófica acadêmica. Por isso mesmo, ler a obra exige uma
disputa com nosso cômodo rigor lógico, nossa ânsia por clareza e certezas, e com o falatório

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cotidiano que nos afasta do próprio Dasein.
Mas, sobretudo, a mais justa razão que podemos oferecer a um estudo como esse é
dado naquilo que a própria obra propõe. Queremos dizer, aquela necessidade da retomada da
questão pelo sentido do ser, tal como Heidegger expõe na introdução do tratado, é ela que faz
sentir a importância de Ser e Tempo tanto quanto desse simples trabalho que só intenciona
acompanhar a primeira forma que obteve tal retomada. Em outras palavras, é a própria
Seinsfrage que nos justifica.

1.2 OBJETIVOS

É importante frisar aqui que o propósito geral da pesquisa foi o estudo específico
de um texto, com certeza um dos mais influentes da história da filosofia. O que pretendemos
não foi mais do que uma compreensão com algum rigor desta obra. Com razão, ultrapassá-la
em criatividade e força filosófica, assim como oferecer uma interpretação original ou bastante
diversa de todas aquelas que vêm sendo feitas desde o surgimento de Ser e Tempo, são fatos
que nos parecem quase irrealizáveis. A bibliografia disponível sobre este tratado de Heidegger
é vasta e talvez nem mesmo uma vida toda basta para que uma mente possa abarcá-la. Assim
se justifica a ausência nessa introdução de uma revisão bibliográfica de tudo o que tratou do
sentido do ser, tempo, Dasein e Verdade.
Todavia, enumeraremos, tal como fizemos no relatório parcial, de forma geral, os
propósitos e desafios dessa interpretação do texto de Heidegger. Assim, se poderá notar se as
obrigações desse exercício de fato foram cumpridas. Os objetivos de a) à d), segundo nosso
entendimento, foram cumpridos no relatório parcial. Neste relatório final apresentaremos
apenas os resultados referentes ao item e), os quais consideramos mais importantes pois seu
estudo e redação obrigam já a uma articulação com todo o conjunto conceitual dessa primeira
parte de Ser e Tempo. Ou seja, o que investigamos para cumprir aqueles primeiros objetivos
deverá agora servir e mostrar-se nesses textos finais. Os textos que aqui apresentamos têm a
sorte de articular toda a obra sem apresentar-se como um estudo por demais focado nos
parágrafos de Ser e Tempo, num caráter de resenha como se apresentaram os primeiros textos.
Seguem os objetivos:

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a) A primeira tarefa do presente estudo foi compreender a caracterização da
filosofia de Heidegger como questão pelo sentido do ser. Fez-se então
necessária a revisão da talvez maior descoberta heideggeriana: a diferença
ontológica. A diferença entre o ôntico e o ontológico é absoluta. Não obstante,
não há ente sem ser. Também sem o ente, ser é pura abstração ou conceito
vazio. As implicações dessa ideia são fundamentais em todo o pensamento
heideggeriano. Coube-nos, sob essa formulação, interpretar a ruptura de
Heidegger com a tradição metafísica. Heidegger pensou o sentido do ser contra
a vulgarização corrente do conceito: “ser” fora esvaziado enquanto tratou-se
dele como o mais universal e evidente dos conceitos; sob as convenções da
lógica e dos estudos da linguagem, reduziu-se à mera função gramatical de
cópula e permaneceu sem sentido; e ao longo da história da filosofia, no
decorrer dos vários sistemas que investigaram os fundamentos, o sentido do ser
foi tratado por sentido do ente – as bases de todos esses sistemas não foram
mais que entes equipados com características ontológicas que no fundo não
lhes pertencem (ideia pura, substância, primeiro motor, deus, razão, espírito).
Heidegger toma o ser como fenômeno por excelência e sua tarefa é descobrir-
lhe o sentido. Na verdadeira filosofia, só o ontológico é digno de questão. Em
suma, foi tarefa do estudo acompanhar a crítica de Heidegger aos diversos
momentos da história da filosofia sob a luz da diferença ontológica.
b) Uma segunda tarefa consistiu na apreensão do propósito de Ser e Tempo.
Devemos saber, ao fim, em que sentido a análise dos fundamentos ontológicos
do Dasein é condição para a ontologia fundamental, aquela que propõe
alcançar o sentido do ser em geral. A pergunta pelo sentido do ser exige antes a
pergunta pelo sentido do Dasein. Nosso estudo tentou se assegurar dos
caminhos da investigação, notar e compreender o método fenomenológico-
hermenêutico que revela nossa constituição ontológica, fixar e explicar os
modos de acesso (cotidianidade e compreensão mediana) a esse ente tal como
ele se dá a si mesmo. Outro ponto foi compreender a tarefa da analítica em
oposição aos objetivos das ciências do homem. E, ainda que não se alcance o
fim do tratado, devemos com isso já ter conosco os fins da análise: tornar claro

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as estruturas fundamentais e constitutivas do ser-aí que poderão corroborar
como determinantes do sentido do ser em geral: a finitude do Dasein e todas as
maneiras próprias de ser desse ente desde onde ele sempre pode indagar pelo
que é.
c) Num terceiro passo acompanhamos a analítica em cada um de seus momentos
específicos. Tratou-se de uma investigação e compreensão de cada existencial
revelado na investigação fenomenológica de Heidegger. Entretanto, deve-se
seguir a análise partindo daquela constituição fundamental do Dasein que
Heidegger expressa por ser-no-mundo, compreendendo em que sentido mundo
é parte do ser do ente que nós somos e como o fenômeno ser-no-mundo
garante a totalidade concreta do ser do ente em questão. O estudo do manual
intramundano, do conjunto de referências, o “ser-para” do instrumento, da rede
de relações na conjuntura e na significância, do conhecimento como modo
derivado do ser-em e do ser-simplesmente-dado como modificação da relação
existencial entre Dasein e instrumento, da espacialidade existencial, do
distanciamento e direcionamento, tudo isso, por fim, contribuiu para o
entendimento do que Heidegger quer dizer quando afirma que todo existir
conta já com um mundo e que Dasein daí apartado é mera quimera. Na análise
da ocupação, vimos como um mundo está sempre já aberto. O estudo da
abertura do mundo como conjuntura instrumental sempre significante deu o
caminho para se pensar o aberto como conceito central da filosofia de
Heidegger. Também a presença do outro e as formas do convívio estão já
abertas. Enquanto ser-aí é abertura auto-compreensiva de suas possibilidades, o
outro é sempre de algum modo compreendido. O que resulta do convívio são
os modos da existência impessoal. Coube, por isso, também investigar até onde
se pôde, os problemas e consequências da questão da autenticidade ou
propriedade de Dasein. Na medida em que é o modo de ser impróprio o
próprio da existencia cotidiana, o Dasein próprio permanece como algo quase
irrepresentável. Todavia, Heidegger insiste nessa questão e devemos atentar a
ela. O “caso Heidegger” é um dos exemplos dos problemas envolvidos em
torno da questão de um Dasein coletivo e autentico. Em seguida, o estudo

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voltou-se novamente à questão do ser-aí como estado de aberto e investigou
como compreensão e dis-posição compõem o estado originário de nosso ser.
d) A partir do que se apreendeu da filosofia de Ser e tempo tentamos caminhos que
nos levaram além dela. Queremos dizer com isso que, tomando o estudo desta
obra como iniciação ao pensamento de M. Heidegger, buscamos sempre que
possível um diálogo com outros momentos da filosofia do ser. Ou seja, nossa
intenção foi que esse estudo nos munisse de um certo domínio conceitual e de
algum rigor de interpretação que nos possibilitasse travar contato com outras
obras do filósofo. Ainda mais, foi nosso objetivo também construir algum grau
de autonomia que nos permitisse ler e interpretar outras filosofias sob o ponto
de vista da questão pelo sentido do ser. Foi precisamente esse último ponto o
que tentamos num trabalho apresentado na seção 3.3.1. do relatório parcial. O
que apareceu nesse texto foi a tentativa de uma interpretação do conceito de
espaço tal como aparece na Crítica da Razão Pura de Kant mediante a
espacialidade do ser-no-mundo tratada por Heidegger no capítulo 3 de Ser e
Tempo. A investigação de possíveis aproximações e distanciamentos entre
essas duas obras será de suma importância num dos trabalhos finais dessa
pesquisa, tal como se verá no próximo objetivo. Por fim, a leitura de Ser e
Tempo nos colocou questões que não podem ser investigadas apenas no interior
dessa obra. Num trabalho sobre a ética e política da propriedade (seção 3.4.1
do relatório parcial) tratou-se do tema e suas implicações ultrapassando o
tratado em questão.
e) Com nosso último objetivo a intenção será, a partir das maneiras como se
conseguiu compreender o sentido da abertura nos capítulos 1 a 5 de Ser e
tempo, tratar da questão da Verdade. O problema da Verdade originária ou
fundante e da verdade derivada ou fundada. O ser do Dasein enquanto aberto é
a condição transcendental da verdade. Trata-se de ler o capítulo 6 da obra onde
o tema é discutido, mais precisamente os parágrafos 43 e 44. Para esse estudo,
escolheu-se a obra de Ernildo Stein, Seminário sobre a Verdade. Aí o autor
elabora um exame rico e preciso da questão da verdade transcendental.
Todavia, um pressuposto em Stein é alguma proximidade entre o Heidegger de

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Ser e Tempo e Kant da Crítica da Razão Pura. Para Stein, o Dasein humano é
o homem do esquematismo, porém, somado o tempo às categorias e a todo a
priori da Razão. Nosso trabalho deverá analisar esse pressuposto com o
máximo de eficácia que se alcançar.

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2 MATERIAL E MÉTODO

A pesquisa cumpriu-se da seguinte forma.


Ao final de cada etapa do plano de atividades, apresentávamos à orientação um
trabalho a respeito dos momentos estudados em Ser e Tempo. Esses escritos tinham o caráter
de resenha ou quase paráfrase do texto de Heidegger. A intenção era que esse método tornasse
aos poucos a nós familiar tal filosofia. Insistíamos sobre os conceitos, sobre os termos
originados por Heidegger, sobre as construções de argumentos e sobre o complexo exame da
analítica. Esperávamos assim um certo domínio das formas e aparatos desse pensamento para
que em algum momento se tornasse mais livre nossa interpretação. No decorrer do estudo,
acrescentamos aos trabalhos os diálogos construídos com os textos dos comentadores
escolhidos e a partir das conversas na orientação. Os principais interlocutores nesse caso são
Dubois (2005) e Sepich (1954). No relatório parcial, tais trabalhos foram apresentados nos
textos das seções 3.1 e 3.2 e nas respectivas subseções.
As seções 3.3 e 3.4 do relatório parcial apresentaram duas discussões que surgiram
a partir do exame dos capítulos 3 e 4 de Ser e Tempo, respectivamente. Essas discussões
visaram trabalhar questões surgidas na leitura dos capítulos mas de uma forma que
ultrapassasse um pouco o simples estudo da obra, abrangendo assim outros interlocutores e
conquistando informações sobre outras filosofias ou outros momentos do pensamento de
Heidegger.
Todavia, como já dizíamos acima, neste relatório final pretende-se examinar a
relação da Verdade fundamental com a abertura da existência (seção 3.2). O principal
comentador nessa caso foi Stein (1993). Entretanto, como é um pressuposto no pensamento
deste comentador uma certa aproximação entre Ser e Tempo e a filosofia transcendental
kantiana, foi indispensável que investigássemos, ainda que sucintamente, aquilo que o próprio
Heidegger encontra como interessante à sua filosofia na Crítica da Razão Pura. O texto que
apresentaremos aqui na seção 3.1 é apenas o início de uma pesquisa que há pouco iniciamos e
que, esperamos, torne-se o nosso trabalho de conclusão de curso.
Porém, como já dizíamos na introdução desse relatório, o mero exame de uma
filosofia não esgota seu sentido, sua importância e sua compreensão. Um trabalho acadêmico
como esse corre o risco enorme de corresponder àquilo que Heidegger chamava de “o

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escritório”, ou seja, de trazer para a escrita nenhuma compreensão verdadeira do sentido do
ser, apenas apanhar partes do conjunto dos “saberes de ouvido” a cada dia espalhados pelo
discurso sem raízes. Se pelo menos em alguns momentos disso conseguimos escapar, com
certeza aí há uma conquista.

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3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.1 A INTERPRETAÇÃO HEIDEGGERIANA DA CRÍTICA DA RAZÃO PURA:


ESQUEMATISMO, IMAGINAÇÃO, TEMPO, FINITUDE E FUNDAMENTO.

Este trabalho é apenas o início de uma pesquisa que se pretende muito maior. Ao
término do primeiro semestre do ano de 2010, esperamos que ela já tenha se resolvido em
nosso trabalho de conclusão no curso de filosofia. Por conta disso, se justifica o caráter ainda
confuso e ainda incompleto do texto que se segue. Ao passo que avance a pesquisa, esperamos
solucionar as falhas que nesse trabalho aparecem. Porém, nele agora pretendemos,
primeiramente (parte I), acompanhar aquele procedimento da razão pura que Kant chama
esquematismo e o que nele tem de envolvimento da imaginação e do tempo enquanto forma
pura da intuição. Intencionamos também relacionar o momento do esquematismo com o
contexto geral e com as proposições fundamentais da obra na qual ele aparece, a Crítica da
Razão Pura. Em seguida (parte II), tratamos de dar uma visão geral de uma das leituras
heideggerianas dessa obra específica de Kant, leitura na qual pesa sobretudo uma relação entre
o esquematismo kantiano e conceitos que são próprios do pensamento de Heidegger, como a
finitude do Dasein, Ser e fundamento.

3.1.1 Primeira parte

Evidentemente, os objetivos reais de uma Crítica da Razão Pura não foram


expostos por Immanuel Kant se não se resumem nessas duas tarefas: fundar a possibilidade
dos juízos sintéticos a priori e com isso legitimar as ciências de sua época, como também
circunscrever o campo da metafísica que se pretenda ciência. Todavia, na caminhada de Kant
até o cumprimento final das razões da Crítica, seu pensamento esbarrou numa questão que, de
certo modo, vinha sendo preparada. Esse problema, cujo o termo “esquematismo” nomeia a
solução, acompanha a história da filosofia ocidental desde muito. Uma cisão na estrutura
conhecedora humana remonta à Platão. No homem, naquele que conhece, participa uma dupla
natureza: a alma que lhe põe em contato com a esfera nobre que é o mundo das ideias, e a
matéria, corpo físico, que lhe confere pertencimento também ao mundo sensível e ilusório. O
problema, aquele que daí em diante prossegue vivo através de diversas reformulações mesmo

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ainda na antiguidade, ou na escolástica, ou no período moderno, é a possibilidade de um nexo
entre essas duas faces que compõem o sujeito cognoscente. Tanto os nomes para aquilo que no
homem permanece sempre verdadeiro e que escapa às transformações dos fenômenos de
natureza sensível, quanto as nomeações dessa esfera empírica e confusa, variam na mesma
proporção que as soluções apresentadas para o problema ao longo da história. A título de uma
rápida recordação tomemos a filosofia de Platão. Nela, uma ponte é construída entre os dois
mundos mediante o uso discursivo da razão, dialética a saber, à que cabe distinguir por entre a
multiplicidade fenomênica e compreendê-la submetendo a variedade a um conceito comum: a
Ideia, que é a essência única para cada variação na coisa.
Até Kant, toda essa questão recebera inúmeras interpretações. Mas é importante
notar que, principalmente nos séculos XVII e XVIII, com a querela entre empiristas e
racionalistas, tratou-se cada vez mais de encurtar a distância entre os mundos, entre o que se
dá para a sensibilidade e o que se dá no entendimento. Mesmo para um racionalista como
Descartes, as ideias claras e distintas do cogito podiam conectar-se diretamente com a
realidade; e eram elas, afinal, que confirmavam e garantiam a existência do mundo. A mesma
coisa, só que numa direção inversa, está presente no empirismo de J. Locke, por exemplo. O
material inteligível era o resultado de um processo que inciava na empiria. Entre o sensível e o
inteligível, pensava-se, havia apenas uma diferença de grau, não de classe. Por entre ambos os
casos deve-se notar que a separação dos mundos – fortemente marcada em Platão, e que no
seu pensamento tornava expressa a necessidade de uma ponte, do intermédio, de uma
passagem – agora, com os modernos, é abandonada. Sensibilidade e entendimento são trechos
de um caminho contínuo nessa natureza que é nossa.
O intrigante no Kant da Crítica da Razão Pura é o fato deste retomar aquela cisão
platônica, de tal forma que a construção da ponte entre as esferas torna-se, nessa obra, um
momento crucial. É o que já está anunciado na introdução da primeira Crítica (KANT, B 291,
grifo nosso2): “(…) há dois troncos do conhecimento humano, porventura oriundos de uma
1
. Utilizamos a numeração padronizada para o texto da 2ª edição da Crítica da Razão Pura de 1787. Embora a
tradução da qual nos valemos é de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão (ver referências
bibliográficas no final desse relatório).
2
. O que nesse texto grifamos pode parecer negar o que estamos dizendo sobre o pensamento kantiano, a saber,
que ele retoma a separação total entre sensibilidade e entendimento. De fato, é bom guardarmos esse grifo pois é
sobre essa ideia, a da possibilidade de uma origem comum das duas faculdades, que Heidegger desenvolverá sua
leitura da primeira Crítica. Todavia, por enquanto, devemos olhar para esse trecho através do que supomos ser
sua interpretação standard: Kant não está postulando nenhuma fonte comum para essas faculdades, pelo

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raiz comum, mas para nós desconhecidas, que são a sensibilidade e o entendimento; pela
primeira são-nos dados os objetos, mas pela segunda são esses objetos pensados”. E no
primeiro parágrafo da “Estética Transcendental”:

A capacidade de receber representações (receptividade), graças à maneira como


somos afetados pelos objetos, denomina-se sensibilidade. Por intermédio, pois, da
sensibilidade são-nos dados objetos e só ela nos fornece intuições; mas é o
entendimento que pensa esses objetos e é dele que provêm os conceitos. Contudo, o
pensamento tem sempre que referir-se, finalmente, a intuições, quer diretamente
(directe), quer por rodeios (indirecte) [mediante certos caracteres] e, por conseguinte,
no que respeita a nós, por via da sensibilidade, por que de outro modo nenhum objeto
pode ser dado (KANT, B 33, grifo do autor).

Com isso, descarta-se, então, qualquer possibilidade de uma intuição intelectual.


Isto é, sozinho, o intelecto não pode obter conhecimento imediato do objeto. Essa imediates
está na intuição que é um produto da sensibilidade. Portanto, o intelecto só participa do
conhecimento na medida em que a sensibilidade aí contribuí e atua como força parelha e não
apenas como mero meio. O intelecto humano finito (e aqui já estamos antecipando um pouco
Heidegger) não pode produzir em si aquilo mesmo que ele conhece. De ideia alguma presente
no nosso espírito pode-se retirar o objeto que lhe enfrente. Só em Deus, o intelecto infinito,
pode haver tal intuição intelectual. Com razão, e isso Heidegger reforçará bastante em sua
leitura de Kant, à Crítica é essencial a noção de uma fronteira bem marcada entre intellectus
ektypus, o sujeito finito, e o intellectus archetypus, o sujeito infinito. De certa forma, a
filosofia do idealismo posterior a Kant faz do sujeito finito um mero estágio no caminho ao
Absoluto. No fim da trajetória da consciência, é possível alcançar a visão de Deus desde onde
se apreende a unidade da Idéia, a completa fusão sujeito-mundo. Pensar para Deus é produzir
a coisa. A Deus, o sujeito infinito, nada se opõe; não há, portanto, objeto (no alemão,
Gegenstand, onde gegen é contra e stand, a coisa que se levanta contra), há só unidade entre o
que conhece e que é conhecido. O idealismo alemão suprime a tensão entre idealismo crítico e
realismo empírico que governa a obra de Kant. Nesta, tratava-se de dissecar a estrutura do
espírito humano, descobrir o conhecimento que nele se pode ter a priori e que é portanto a
zona da verdade necessária e mais, revelar também como essa matéria a priori contribui e
circunscreve o conhecimento que temos daquilo que existe fora de nós, o mundo, o objeto. Em
outros termos, Kant está consciente da finitude de nossa estrutura conhecedora.

contrário, diz apenas que, mesmo que ela exista, não nos caberia conhecê-la.

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Mas, exatamente, como é que o conhecimento se opera nesse intelecto finito que é
do homem? Como, sobre o total divórcio entre entendimento e sensibilidade, se dá a façanha
de conhecer? A chave em Kant está na noção de relação ou, melhor dito, síntese. A síntese
kantiana é a produção de um juízo, ou seja, a unificação de uma multiplicidade dada na
intuição sensível sob um conceito do entendimento. Com isso, qualquer operação do
entendimento deve referir-se sempre a dados que são produtos apenas da sensibilidade.
Também por meio da síntese, Kant está afirmando que todo pensamento (a formação de um
juízo) empírico deve se referir à sensibilidade empírica, assim como o pensamento
transcendental às formas puras, a priori, da sensibilidade. Mesmo a experiência interna do
sujeito não acontece mediante um isolamento das categorias do entendimento, mas conta
sempre com o tempo, enquanto forma a priori da intuição sensível, como sua condição. Toda
experiência, transcendental ou empírica, se resolve num laço entre o inteligível e o sensível.
Kant pôde tomar do empirismo moderno a certeza de que a experiência sensível é constituinte
do conhecimento. Por outro lado, ao afirmar que a síntese só acontece quando entra também
em questão a faculdade puramente cognitiva fundada sobre elementos a priori, i.e., quando diz
que não bastam as intuições sensíveis, ele está fazendo jus ao racionalismo. E, se sem a
sensibilidade nenhum objeto nos seria dado, e se sem o entendimento nada seria pensado,
coube então à filosofia transcendental a tarefa de elaboração de uma Lógica Transcendental
que, pensa Kant, resolveu o problema da indiferença mútua entre as duas faculdades e suas
respectivas limitações. A solução para tanto foi ter Kant descoberto a importância da
imaginação no processo do conhecimento.
Antes de tomar a imaginação como meta de nossa investigação, voltemos um
pouco atrás e atentemos ao tempo segundo a exposição kantiana. O tempo, porquanto
condicionante da experiência sensível externa, põe-se entre o objeto e o sujeito conhecedor
implicando que este jamais perceba aquele fora do sistema de ordenação de sucessividade e
simultaneidade. O mesmo acontece no tocante à experiência interna: o tempo condiciona-a de
tal modo que o sujeito não pode aperceber-se livremente, i. e., não apreende a si mesmo em
sua multiplicidade, mas apenas como fenômeno ordenado, em partes. Para a experiência
interna o tempo é a única condição necessária a priori. O espaço não desempenha aí função
alguma. Dessa necessidade resulta que o sujeito não alcança aperceber-se enquanto aquilo que
é em si mesmo, mas sempre já põe a si mesmo como objeto. O eu é para si, internamente, já

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um outro e é a forma do tempo que opera o corte no eu.
Porém, é a imaginação que sobretudo nos interessa. Há em Kant dois tipos de
imaginação. Num primeiro momento, dá-se a imaginação produzida apenas no seio da
faculdade do entendimento e que independe da aparição de um objeto aos sentidos. É o que
Kant chama de imaginação reprodutora e, numa releitura, Umberto Eco (1998) nomeia
fantasia. Isso porque a imagem gerada não advém de um fato presente frente ao sujeito
mediante as intuições, mas é o resultado do entendimento ao re-produzir (relembrar, talvez)
algo já pelo intermédio dele conhecido. Há, num segundo instante, a imaginação produtora ou
synthesis speciosa, ou ainda figuração como quer U. Eco. Para compreendê-la, tomemos nota
de um exemplo do próprio Kant (B, 176). O conceito empírico de “prato” é homogêneo ao
conceito puro de círculo. Isto é, o que é intuído (o prato real) já é percebido conforme um
elemento do puro pensamento (a forma geométrica círculo). A função da imaginação
produtora é exatamente essa síntese: formar a ideia clara de um objeto quando já o que é
intuído só o é baixo uma categoria pura que o determina. No contexto de uma investigação
sobre a passagem do esquematismo na primeira Crítica kantiana só a segunda espécie de
imaginação interessa.
Se até o momento está claro a distinção kantiana entre entendimento e
sensibilidade e o papel indispensável de ambos no conhecer, por outro, ainda não sabemos
como Kant resolve a questão da heterogeneidade completa de ambas. Não falta apenas isso,
mas também carecemos compreender como o filósofo constrói a relação possível entre elas.
Afinal, sensibilidade e entendimento, a despeito da sua radical diferença, devem trabalhar
juntas de modo a que se produza um único e coeso conhecimento e não se transforme o
homem numa quimera de duas cabeças. A pergunta é: como o intelecto submete o múltiplo da
intuição na unidade de sua categoria? Parafraseando Kant, a resposta é aquela arte por demais
escondida na profundeza da alma humana, o esquematismo, o terceiro elemento do jogo do
conhecimento:
É claro que tem de haver um terceiro termo, que deva ser por um lado, homogêneo à
categoria e, por outro, ao fenômeno e que permita a aplicação da primeira à segunda.
Esta representação mediadora deve ser pura (sem nada de empírico) e, todavia, por
um lado, intelectual e, por outro, sensível. Tal é o esquema transcendental (KANT, B
177).

O esquema transcendental não é nem uma das categoria puras do entendimento,

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nem uma forma da intuição sensível, ao lado do espaço e do tempo. Não é também a intuição
sensível do objeto. É algo que não se confunde inteiramente com nenhuma daquelas duas
faculdades enquanto na verdade está entre elas e é apenas com elas compatível. Num segundo
momento, Kant afirma que o esquema é um produto da imaginação. A interpretação corrente
entre os comentadores diz tratar-se aí unicamente da imaginação produtora. É a imaginação:

[…] uma faculdade de determinar a priori a sensibilidade; e a sua síntese de


intuições, de conformidade com as categorias, tem de ser a síntese transcendental da
imaginação, que é um efeito do entendimento sobre a sensibilidade e que é a primeira
aplicação do entendimento (e simultaneamente o fundamento de todas as restantes) a
objetos da intuição possível para nós. Sendo figurada, é distinta da síntese intelectual,
que se realiza simplesmente pelo entendimento, sem o auxílio da imaginação. Mas,
na medida em que a imaginação é espontaneidade, também por vezes lhe chamo
imaginação produtiva e assim a distinguo da imaginação reprodutiva , cuja síntese
está submetida a leis meramente empíricas, as da associação, e não contribui,
portanto, para o esclarecimento da possibilidade de conhecimento a priori, pelo que
não pertence à filosofia transcendental, mas à psicologia. (KANT, B 152).

A imaginação é uma faculdade cuja tarefa é determinar a priori a sensibilidade,


mas que determinação é essa? Não são antes as formas sensíveis da intuição (espaço e tempo)
que determinam, ou seja, que dão as condições de toda intuição sensível? Esse determinar
cabe à imaginação de um modo peculiar. Determinar consiste em dar ao objeto intuído na
sensibilidade algo que somente pelos sentidos (já sempre submetidos ao espaço e ao tempo)
não podemos captar.

Só poderemos dizer que a imagem é um produto da faculdade empírica da


imaginação reprodutiva, e que o esquema de conceitos sensíveis (como das figuras
no espaço) é um produto e, de certo modo, um monograma da imaginação pura a
priori, pelo qual e segundo o qual são possíveis as imagens; estas, porém, têm de
estar sempre ligadas aos conceitos, unicamente por intermédio do esquema que elas
designam e ao qual não são em si mesmas inteiramente adequadas. Pelo contrário o
esquema de um conceito puro do entendimento é algo que não pode reduzir-se a
qualquer imagem, porque é apenas a síntese pura, feita de acordo com uma regra da
unidade segundo conceitos em geral, e que exprime a categoria; é um produto
transcendental da imaginação, referente à determinação do sentido interno em geral,
segundo as condições da sua forma (o tempo), em relação a todas as representações,
na medida em que estas devem interconectar-se a priori num conceito conforme à
unidade da apercepção (KANT, B 181).

O esquema, portanto, não é uma imagem. Toda imagem é produto da imaginação


reprodutora que, para relacionar-se com o conceito e com os dados fenomênicos ao mesmo
tempo, precisa ainda do esquema. O esquema é um modelo, um desenho preparatório, um

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esboço, um esqueleto, um esquema mesmo na acepção comum da palavra. Trata-se do suporte
arquitetônico que permite que interajam categorias, conceitos com intuições sensíveis. Não é
uma imagem, propriamente, mas um conjunto de regras que me oferece a capacidade de ir do
universal ao singular e vice e versa. Pensemos um exemplo banal mas facilitador. Imaginemos
que até hoje eu nunca tivesse encontrado uma flor, qualquer que fosse, em minha vida. Agora
é a primeira vez que me deparo com uma e ainda não possuo a menor informação sobre ela.
Dados são por mim intuídos: cor, textura, tamanho, cheiro. Mas tudo aí é singular demais para
eu dela obter algum conhecimento. Dá-se então que, como num milagre, meu espírito põe-se a
reduzir aquele fenômenos a gêneros e espécies e a partir disso vou construindo os esquemas
que me permitem pôr o dado particular sob as categorias que a priori possuo mas que não têm
sentido nenhum enquanto não aplicadas a experiência: pelos aspectos que sensivelmente capto
da flor, excluo considerá-la como um ser inanimado; todavia, tão pouco me parece um animal,
não se move, não reage, não tem instinto; aos poucos enquadro-a como uma parte do reino
vegetal até poder descobri-la como orgão reprodutor de certas plantas. O exemplo é ruim pois
não se trata de encaixar o objeto nas categorias de uma ciência específica, a botânica nesse
caso, mas sim de submetê-lo a categorias que são minhas e universais, que compõe a estrutura
do sujeito que conhece. Em outras palavras, deixar que aquele objeto seja compreensível,
possua sentido ou seja conhecido, o que só ocorre na condição de que aqueles dados sensíveis
(submetidos ao espaço e ao tempo) possam também submeter-se à tábua de categorias do
entendimento. Subsunção essa que ocorre apenas na experiência com o fenômeno. As
categorias, altamente abstratas, sem sua aplicação ao múltiplo sensível que se dá mediante o
esquema, não possuem sentido algum. Esquematizar é encher de sentido a constituição a
priori do entendimento e ao mesmo tempo permitir o conhecimento da coisa, na unificação do
confuso no conceito; é, portanto, também uma doação de sentido ao mundo que diante de nós
é posto. E não há privilégio no tempo. A sensibilidade receptiva não opera antes do intelecto.
A primeira não pode efetivar-se sem, junto e no mesmo instante da sua efetivação, contribuir o
entendimento.
Para compreendermos a importância da intuição finita, do tempo, na operação da
imaginação produtiva, que resulta no esquema enquanto ponte ente conceito e intuição
sensível, atentemos para uma passagem de Kant:

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A realidade é, no conceito puro do entendimento, aquilo que corresponde a uma
sensação em geral, ou seja, aquilo cujo conceito indica em si próprio um ser (no
tempo); a negação é aquilo cujo conceito representa um não-ser (no tempo). A
oposição entre ambos dá-se pois na diferença do mesmo tempo, como tempo
preenchido ou vazio. […] O esquema da substância é a permanência do real no
tempo, isto é, a representação desse real como de um substrato da determinação
empírica do tempo em geral, substrato que persiste enquanto tudo o mais muda
(KANT, B 182-183).

Antes de encerrarmos a digressão sobre a doutrina do esquematismo na Crítica da


Razão Pura, convém ainda refletir um pouco sobre a função que tem dentro do arcabouço
geral da Crítica e em referência aquilo que Kant entendia como a tarefa fundamental da
mesma. Dadas as condições em que se encontrava a metafísica frente aos avanços das ciências
positivas, Kant ansiava responder a pergunta: é possível a metafísica enquanto ciência? O
caminho a essa resposta deveria ser uma mimesis daquele trilhado pelas demais ciências.
Consistia em, primeiramente, investigar se era possível uma mudança metodológica em
metafísica. Segundo, carecia-se delimitar e definir seu objeto de modo a evitar que ela invada
o campo de outras ciências. Um terceiro ponto: demonstrar que a metafísica deve e pode
contar com juízos sintéticos a priori (ou seja, mostrar que a metafísica produz conhecimentos
que tem valor universalmente verdadeiro mas que também se aplicam aos objetos da
experiência, e não à ficções para além deste mundo). Para tanto, é preciso também operar uma
dedução sobre os conceitos dessa ciência de forma a justificar a necessária aplicação destes
aos objetos da experiência. É justamente este quarto ponto que resume a tarefa da passagem
sobre o esquematismo na Crítica. Com o esquematismo, a metafísica pode abdicar da
pretensão de estender seu saber para além da experiência possível, não se tornando assim,
como na tradição, uma metafísica numênica (que ultrapassa o campo da verdade em direção à
coisa-em-si), mas sim uma metafísica da experiência possível. Daí em diante, ela poderá
pensar-se como uma ciência, não das coisas do mundo ou das bases ontológicas das coisas
para além delas mesmas, mas uma ciência que procure a explicação para o conhecimento das
coisas.

3.1.2 Segunda parte

Martin Heidegger dedicou boa parte de seu pensamento e de seus escritos à obra

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kantiana. Ao contrário das posições filosóficas que, tomando a Crítica da Razão Pura como
base de seu próprio pensamento (a escola neokantiana), viam nessa obra apenas uma teoria do
conhecimento, mais precisamente uma discussão sobre a possibilidade do conhecimento e,
portanto, a fundamentação das ciências empíricas ao mesmo tempo que a negação da
metafísica enquanto ciência meramente especulativa, i.e., que se aplicava a objetos que
podiam ser unicamente pensados mas não intuídos, Heidegger lia na primeira Crítica
(notadamente, a primeira edição, de 1781, onde enxergava maior confirmação de sua
interpretação) muito mais que isso. Via ali uma introdução à verdadeira metafísica ou
ontologia que, ao fim, acabava por ser uma preparatória para aquilo que Heidegger nomeava
“a ontologia fundamental” ou “a questão pelo sentido do Ser” - empreendimento que se
assemelhava muito com o que Heidegger desenvolveu principalmente em Ser e Tempo: a
analítica existencial do Dasein. Em Heidegger, o sentido do Ser é algo que, encoberto pela
tradição do pensamento, precisa ser retomado. Para tanto, é indispensável que se comece por
uma análise dos modos de ser daquele ente que se pergunta pelo sentido do Ser, o ente que a
todo momento caminha com uma pré-compreensão desse sentido, o ente que já sempre
compreende o mundo e que não é mais do que essa própria compreensão limitada com a
abertura (Lichtung) do mundo, o ser-no-mundo, o ser-aí, nós. Para Heidegger, o que Kant
desenvolveu na Crítica da Razão Pura não era algo muito distinto: ele buscava a possibilidade
da metafísica, i.e., de um pensamento sobre o Ser e o seu sentido, através de uma pergunta
pela natureza da estrutura do sujeito cognoscente que, ao cabo da obra, resulta finita, limitada
pela presença do tempo nas operações da imaginação produtiva, no esquematismo. Em suma,
Heidegger entendia a empreitada kantiana não apenas como uma epistemologia radical e mais
como uma fenomenologia da finitude humana.
Muitas são as obras em que Heidegger desenvolve essa sua interpretação de Kant.
Neste trabalho nos cabe não mais que dar alguma notícia sobre alguns pontos presentes em
uma dessas obras, a saber, Kant e o problema da metafísica (1966). Comecemos por aquilo
que Heidegger chama de tríplice síntese. Segundo Heidegger, a Crítica da Razão Pura é um
sistema de sínteses, ou seja, de unificações do múltiplo (de conhecimento) que se dão em
diversos níveis. Essas podem ser sistematizadas num conjunto de três:
- Apofântica: a síntese entre todo tipo de sujeito e todo tipo de predicado, não
importando se a proposição, a síntese, por consequência, é analítica ou sintética. Tanto “A é B”

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quanto “A é A” são sínteses apofânticas. Todas as proposições são sintéticas nesse sentido
fraco em que eu ligo um predicado a um sujeito.
- Predicativa: é a síntese realizada estritamente no juízo sintético a priori. “Essa
cadeira é azul” não é uma síntese predicativa pois o juízo aí apesar de sintético, não é a priori,
i.e., ele já depende de um apontamento para a experiência. “O triângulo é uma figura cuja
soma dos ângulos internos é igual a 180º ” é uma síntese desse nível pois a definição de
triângulo não vem da experiência mas da definição pura do espaço enquanto forma a priori da
intuição..
- Por fim, e é onde começa a questão crucial de Heidegger, há a síntese veritativa
que é aquela que liga o sujeito do predicado a um ente, e que é a base das demais na medida
em que nela finamente se ligam objeto e sujeito.
Heidegger faz também uma digressão que a respeito da diferença entre fenômeno e
númeno. A tradicional leitura dessa diferença consiste num procedimento quase platônico:
mostrar que o númeno está para o fenômeno assim como a essência está para a aparência.
Heidegger diz: isso não confere. O númeno é apenas um limite hipotético do meu
conhecimento, não é nada que resida de fato em algum lugar para além do fenômeno. Só o
fenômeno é. O fenômeno é o ente. E o ente em Heidegger só o é enquanto está no horizonte da
compreensão de Ser efetivada pelo Dasein, na existência. Em Kant, segundo Heidegger, há
algo muito similar: o fenômeno é o ente que é apenas enquanto está no horizonte da finitude
do conhecimento humano. Para além dele, tudo é mera especulação de uma má metafísica.
Isso consiste, para Heidegger, em acentuar radicalmente a finitude humana. A pergunta pela
possibilidade da metafísica, assim como a pergunta pelo sentido geral do Ser, obriga-nos a
atentar antes para outra questão: a maneira pela qual o ente se manifesta para um sujeito
humano finito. Cabe à filosofia descrever a estrutura da subjetividade finita do homem para a
qual o ente se manifesta como primeiro passo na direção da pergunta pelo sentido do Ser em
geral. A comprovação de que é isso que Kant está buscando se dá quando a intuição finita, o
tempo a priori, ganha papel fundamental na descrição do procedimento da imaginação
produtiva, no capítulo sobre o esquematismo.
Todavia, a interpretação de Heidegger se passa supondo que Kant tinha o problema
nas mãos mas não o pôde enxergar claramente. Ou seja, a questão de uma metafísica retomada
a partir da finitude humana era algo que no seu pensamento se desenvolvia quase que

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inconscientemente. Lembremos aquela nossa citação de Kant:

(…) há dois troncos do conhecimento humano, porventura oriundos de uma raiz


comum, mas para nós desconhecidas, que são a sensibilidade e o entendimento; pela
primeira são-nos dados os objetos, mas pela segunda são esses objetos pensados
(KANT, B 29)

Heidegger retoma essa sentença de Kant para mostrar que aí está em jogo algo
fundamental porém encoberto. Kant diz algo próximo a isso: talvez haja uma origem comum a
sensibilidade e ao entendimento, algo que compõe o humano ainda mais essencialmente do
que aquelas duas faculdades. Há sensibilidade e entendimento e aquelas três sínteses que se
operam por intermédio delas. De início, parece que para Kant talvez isso bastasse para
concluir a investigação acerca do que é o homem, para decifrar num sistema o espírito
humano. Mas, quando cogita a possibilidade de uma base ainda mais primordial, uma fonte
última mais originária que a síntese veritativa, que algo esteja por debaixo das sínteses, uma
espécie de pré-síntese subjacente às sínteses veritativa, predicativa e apofântica, Kant, diz
Heidegger, tem em mente aquilo que se encontra no capítulo do esquematismo, a imaginação
produzindo esquemas, sintetizando intuições sensíveis e conceitos a partir do tempo. Mas Kant
não prosseguiu, preferiu deixar a questão da origem como um fato para sempre desconhecido
e postular a imaginação como mais uma operação do entendimento sobre a intuição. Perguntar
pelo fundamento da metafísica é continuar aí onde Kant parou, perseguir a questão da intuição
finita como o fundo último do humano.
Aquela sentença encontrava-se no início da Crítica da Razão Pura. Tomemos
agora outra, que se encontra no fim e da qual Heidegger também se vale, e que mais nos
revelará. Mostrará uma outra forma sob a qual, pensa Heidegger, Kant concebeu o problema
do fundamento da metafísica. Ainda é para nós necessário relacionar esses dois momentos da
interpretação Heideggeriana, i.e., a imaginação produtora junto a temporalidade como
fundamento da questão metafísica e aquilo que agora se segue. Todavia, essa explicação é algo
que não obteremos nesse trabalho.

Limitamo-nos aqui a completar a nossa obra, ou seja, a esboçar simplesmente a


arquitetônica de todo o conhecimento proveniente da razão pura, e começamos a
partir do ponto em que se divide a raiz comum da nossa faculdade de conhecer, para
formar dois ramos, um dos quais é a razão (KANT, B 863).

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O que acontece agora? O que Heidegger lê nessa sentença? Ele diz: enquanto na
anterior a ideia de uma raiz comum era tratada apenas como uma conjectura, agora, nessa
segunda passagem, é positivamente afirmada. Porém, nos dois momentos ela é apenas aludida.
Num caso, hipótese, noutro afirmação, mas em nenhum dos casos Kant diz o que é essa raiz.
Kant entende, portanto, que a raiz é desconhecida, não se pode tomá-la como objeto do
conhecimento, o que nos resta é partir dela, dos ramos que ela produz. Heidegger vê nessa
postura um ponto decisivo para explicar como Kant concebe o fundamento da metafísica,
maneira que também muito se assemelha ao seu pensamento. Para Heidegger, Kant sabe bem
que essa origem não pode ser tomada como uma primeira tese ou primeiro princípio do qual
poderíamos nos assenhorar mediante algum conhecimento. Entretanto, também sabe que o
pensamento (e em Heidegger, pensar é diferente de conhecer, o último dirige-se para o ôntico,
o primeiro para o ontológico) pode acessar essa questão e nela permanecer, ruminando.
Todavia, quando empurrado na sua direção, o pensamento imediatamente se encontra diante
do desconhecido. Ora, sabemos bem que em Heidegger, o fundamento do pensar filosófico é a
experiência do nada, do absurdo de ser ao invés de não ser; o Ser, que é o fundamento de todo
ente, é algo para sempre obscuro e não objetivável. É com esse tipo de instauração do
fundamento da filosofia, que Kant se aproxima de Heidegger e se distancia de seus
contemporâneos. A instauração do fundamento da metafísica não é cartesiana porquanto não
se trata de descobrir e partir de uma primeira tese absolutamente clara e distinta, a verdade
privilegiada da qual todas as demais são derivada. Por mais que Kant tenha sido leitor de
Descartes, nesse trecho ele não é cartesiano. Sua fundamentação caminha para o mais
completo não fundamento.
Pertence à estrutura do Dasein, aos modos do ser do homem, uma espécie de pré-
compreensão do Ser que o põe na direção da pergunta pelo sentido, ou seja, pelo fundamento
de tudo que é, tal como dizia Kant que as especulações da Metafísica eram inerentes ao
espírito humano. Mas essa pré-compreensão não garante, e nunca garantirá ao Dasein que ele
possa acessar aquilo que ele pré-compreende como um objeto o qual se possa conhecer. Sobre
o fundamento só cabe um pensar infinito e insistente. O fundamento é o que permite a
compreensão de tudo que constitui o mundo ôntico, mas ele mesmo, o ontológico não pode ser
compreendida à maneira ôntica. O conhecimento, a epistemologia, os ciências não dão conta
de tudo, não esgotam o mistério. Muito há que só cabe à filosofia. Muito espaço sobra no

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pensamento para a metafísica. O fundamento, em Heidegger, é apenas acessível num
sentimento, na experiência da angústia que nos põe plenamente em contato com isso que em
Kant é dito a fonte primordial que, por fim, não é objeto, não é coisa, é nada.

3.2 VERDADE E EXISTÊNCIA EM SER E TEMPO DE M. HEIDEGGER.

Esse texto deve investigar a noção de Verdade transcendental que aparece ao fim
da analítica existencial de Ser e Tempo (parágrafo 44, mais precisamente). Para tanto, utilizou-
se principalmente a interpretação do professor Ernildo Stein em seu livro Seminário sobre a
Verdade – Lições preliminares sobre o parágrafo 44 de Sein und Zeit. Por alto, podemos dizer
que os critérios de verdade postos no nível lógico-semântico ou de uma teoria do
conhecimento devem pressupor uma Verdade fundamental que está ligada à compreensão do
Ser que se produz sempre na abertura Dasein. Há todo um movimento originário na abertura
que antecede a separação entre mundo e discurso adequado, é o que poderemos chamar de
condições transcendentais daquelas outras condições que se procura numa investigação
epistemológica. Todavia, vale frisar algo. Independentemente da forma como Stein possa
interpretar o sentido do termo transcedental, quando aqui o utlizamos, mesmo ao citar ou
comentar Stein, estamos tomando este termo numa direção muito diferente da tomada por
Kant. Transcendental aqui dispensa a arquitetônica e a estrutura a priori da consciência, não se
trata dos limites da experiência possível os quais, em Kant, apenas são desenhados na medida
em que se toma a consciência como fundamento incondicional. Transcendental aqui
tomaremos sempre como aquilo que é condição, é primeiro, anterior a própria presentificação
e objetivação dos entes. Essa abertura onde se dá a Verdade só é transcendental enquanto aí
nada pode haver de ente e nunca se poderá contar com a segurança que o pressuposto da
consciência transcendental kantiana assegura.

3.2.1 Verdade, significância, mundo: conexões entre o parágrafo 18 e 44 de Ser e Tempo.

Por volta da lição 6 de sua obra Seminário sobre a Verdade, Ernildo Stein inicia a
aproximação da questão da Verdade em Ser e tempo com o tema da significância ou referência
(Bedeutsamkeit, Bedeutung). Para Stein, o parágrafo 44 do tratado de Heidegger só diz algo se,

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na leitura, se toma antes uma interpretação do parágrafo 18. A mundanidade do mundo como
lugar da emergência da significância oferece-nos o caminho para apanhar a Verdade como
revelação na abertura.
Stein rememora como a crise da metafísica foi assimilada em meados dos anos 20
e 30 do século XX. Antes, conclui que todas as construções de realidades paralelas ao mundo
empírico por parte das ontologias, construções que deveriam funcionar ao mesmo tempo como
fundamento e possibilidade da experiência, fracassaram. Isso por que naquele momento, por
alguma razão, a filosofia era tomada por um sentimento desesperador que lhe revelava o quão
pouco ou quase nada naquelas construções surgia de fato da estrutura do real ou era
compatível com ele. (STEIN, 1993, p. 88) Ou seja, toda produção de esferas supra-empíricas
aparecia aos filósofos como mera recolocação em novos termos do problema kantiano, mas
sem ganhar nada em aproximação com as coisas mesmas. Os lugares onde o pensamento
alcançava pôr a origem do sentido e dos significados possíveis não traziam junto a si aquela
ponte não encoberta por onde se atravessa e assim se pode compreender e viver o mundo. Ao
menos desde Aristóteles, tais construções metafísicas, em maior ou menor medida, se
resolviam num universo de categorias, de modos do dizer. Heidegger sempre fora muito atento
a isso, porém não é o que agora pretendemos sublinhar. Não investigaremos nesse instante
como Heidegger pensa a presença do logos nos caminhos tradicionais e também originários da
questão do Ser. O interessante é que, sendo tais esferas supra-sensíveis das ontologias
construções categorizáveis, a questão do fracasso da Metafísica pôde aparecer, entre as
décadas de 20 e 30, como um problema de articulação entre categorias (ou linguagem, de certo
modo) e realidade. Se era daquele universo paralelo que o mundo recebia, como dádiva, o
sentido, e se cada daqueles conjuntos fracassava na tentativa de se justificar ou se apresentar
enquanto origem da significância das coisas, e mais, se a esfera fundadora apresentada nos
sistemas filosóficos não era mais que um conjunto de sentenças analisáveis, pareceu evidente
que a cura das mazelas filosóficas só seria possível quando as investigações tomassem a
direção lógico-semântica. Era a cura dos problemas filosóficos via terapia da linguagem.
Justifica-se assim que o conteúdo do pensamento metafísico, e a produção por aí de esferas
verdadeiras, zonas doadoras do verdadeiro e primeiro significado das coisas, na medida em
que esses universos eram categorialmente construídos, se resumisse naquela questão do
significado e da referência tão perseguida pelos filósofos analíticos.

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Todavia, não fora esse o único caminho. Houve quem percebesse que as falhas das
construções metafísicas não resultavam apenas da má compreensão dos pressupostos lógicos e
da má articulação da linguagem com a realidade. Na perspectiva da Escola Histórica e para a
Filosofia da Vida, faltou aos sistemas metafísicos a clareza sobre a própria vida do homem e a
noção de que é na estrutura da vida que se encontram as possibilidades de toda investigação
empírica (STEIN, 1993, p. 90). Com razão, não temos aqui o espaço propício para pesquisar e
discutir em detalhe as diversas concepções comprometidas com esse caminho, tampouco,
analisar em detalhe a recepção em Heidegger dessas ideias. Entretanto, algo é fundamental
salientar. Tenham sido quais foram os reais objetivos de pensadores como Nietzsche e Dilthey
(muito por alto e respectivamente: restruturação dos valores e fundamentação das ciências do
homem), o que seus pensamentos trouxeram àquele momento de descrédito na Metafísica foi o
apelo para que a questão do Ser se pusesse não no horizonte semântico, mas num campo
anterior, num universo pragmático3, já sempre experimentado. Tal ideia determinará com força
a reflexão de Ser e Tempo. Mas o âmbito prático que é o fundo de toda a verdade e de todo
discurso, e portanto, anterior à linguagem e ainda fundamento das possibilidades da
linguagem, esse princípio não é o fluxo desordeiro das vivências, o oceano de compreensão e
confusão que domina nossas ações, mas o conjunto de relações no Ser e no ente que sustentam
essas vivências. A vida, do ponto de vista ontológico, é estruturada e, em certo sentido,
ordenada. Com isso, se justifica a distinção em Heidegger entre o vasto campo da existência e
a regularidade finita da existencialidade, i.e., das estruturas necessárias e universais da
existência contingente as quais Heidegger nomeará existenciais.
Foi desde esse olhar para a esfera prática que sub-determina todos os discursos
sobre a realidade e inclusive todos os discursos que compõe possibilidades e fundamentos para
a experiência que o filósofo confeccionou a noção ser-no-mundo. O que está dito nesse
conceito participa da estrutura do ente em questão e é por isso um elemento a priori de todo o
3
. Não podemos confundir o sentido aqui conferido a pragmático ou operacional com qualquer instância da vida
prática, do fazer e do agir. Para tanto, basta lembrar a análise da mundanidade do mundo e dos entes
intramundanos, manuais, operada por Heidegger no capítulo 3 de Ser e Tempo. Aí, no mundo que é sempre parte
do ser do Dasein, os entes aparecem sob a conjunta, sob a teia das referências e serventias. Isto é, o ente nunca
me aparece numa pura visualização, mas sempre como um momento de um todo referencial que já sempre faz
sentido. Cada ente se dá por meio do ser-para. Ele sempre já é compreendido pela circunvisão que apreende as
referências e que nos guia no mundo. Quando aqui falarmos de significância, significabilidade, ou instância
prática da existencialidade do Dasein fazemos referência a esse processo de compreensão que se dá entre a
circunvisão e os entes tomados na sua serventia. Esse processo compreensivo é anterior a toda teoria, mas
também a toda prática (no sentido de fazer e agir) do Dasein.

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dizer. Não por outro motivo é que Heidegger precisa debater-se com a língua, com a
gramática. É preciso dar ao conceito forjado na língua mãe a transparência necessária para que
ele aponte para o ontológico, para o que no Ser é o dar-se e não para aquilo que no Ser é dado,
o ôntico. E a quê no Ser esse conceito deve ajudar a revelar-se? Justamente ao instante
operacional da existencialidade, ao espaço aí em que já sempre nos movemos num saber para
quê, a circunvisão que descobre o ser-para dos manuais intramundanos.
Porém e sobretudo é outra a pergunta que devemos fazer em relação ao conceito
de ser-no-mundo. Em quê a descrição desse momento estrutural implica a concepção de
Verdade que só aparece no capítulo sexto da obra? Na medida em que a análise do ser-no-
mundo não discute um problema de referência ou significado dos termos, conceitos e sintaxes
sem os quais possa parecer impossível nosso mover-se no mundo, mas quando a descrição
aponta para a origem da própria significância ou significabilidade (STEIN, 1993, p. 91), i.e.,
para o campo onde se dá a possibilidade da linguagem referenciar e, enquanto esse campo é
operacional, aí podemos acompanhar a “passagem do modelo proposicional para o modelo
operacional de verdade” (STEIN, 1993, p.91). Essa é uma primeira caracterização da Verdade
em Ser e Tempo e só alcançamos seu sentido quando fazemos repercutir o parágrafo 18 sobre
o 44.
Avançaremos se tomarmos na memória a análise do mundo. O mundo que não é
continente de entes quais sejam, mundo que não é mundo natural nem representação de uma
consciência, mas uma totalidade fechada de remissões, mundo prático que me cerca e
inseparável, no qual se dá minha existência. Todo e qualquer mundo que surja em uma
descrição ou ciência do Dasein (mundo histórico, lógico ou social) terá de pressupor essa
esfera prática que compõe as estruturas da vida e que não resulta de um acesso às coisas
mediante a conjunção de intuições com categorias, mas da circunvisão, do compreender-se
originário do Dasein que é um saber lidar com. Porque o homem pode ser auto-referido desde
um ambiente que dispense a consciência e a representação. E bem sabemos que é com ser-no-
mundo que Heidegger rompe o paradigma da subjetividade enquanto fundamento último que
o pensamento não consegue ultrapassar.
O mundo da tradição, o mundo enquanto um quid, um algo, um objeto é dissolvido
naquele tratamento das coisas que Heidegger aprendeu com a fenomenologia husserliana. O
mundo na maneira como ele próprio se dá não é uma realidade sobre a qual eu acumulo

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descrições, discursos que permitem nele me mover. O mundo já sempre dado a mim dá-se
num como, Wie. A primeira e originária apresentação do fenômeno é compreendida naquilo
que Heidegger chama “como hermenêutico”, um saber já sempre em operação, explicitando-se
e ex-sistindo, de como lidar com o mundo dado. Dasein não aprende a lidar com o mundo
mediante teorias e descrições. Antes do “como apofântico” que dá o mundo como algo
revelado no enunciado, Dasein já sempre se encontra no como prático que produz a
circularidade da qual não se pode saltar: só há compreensão originária do Ser enquanto me
compreendo, ex-sistindo, i.e, enquanto tomo as coisas como elas se dão já sempre. Qualquer
interrupção nesse movimento a favor de uma teoria do conhecimento ou de qualquer
representação da tradição metafísica é romper a circularidade hermenêutica tão cara ao
pensamento que pretende apanhar as coisas em seu ser.
A esta totalidade do fato homem, já há muito perseguida pela filosofia e vale citar
aqui o papel crucial que desempenhava nas investigações do historicismo cuja meta era
mostrar as possibilidades dos saberes sobre o homem os quais não estariam justificados caso
não partissem de uma ideia antecipadora do que é o homem, pois bem, essa totalidade que em
Heidegger é desenhada quando se trata da compreensão do Ser e das estruturas fundamentais
da existência sobre as quais já sempre se opera aquela compreensão, ora seja, o círculo que
compõe a totalidade do ser do Dasein, é pelo filósofo denominada Sorge, cura, cuidado. Mas
importante para nossa investigação da Verdade em Ser e Tempo é notar que a significância se
instaura nesse aspecto prático do cuidado que antecipa as questões semânticas. O sentido é
primeiramente “vivido”, experimentado, realizado nas relações práticas do cuidado que estão
para além da experiência no sentido meramente empírico. Só num movimento posterior se
pode perguntar pelos significados das práticas humanas ou por uma epistemologia que nos
guie nas investidas pelos significado das ações para que possamos estar certo da nossa
seriedade em ciências humanas.

3.2.2 O elemento transcendental da Sorge.

Enquanto tomamos sob a vista a dimensão prática do ser-no-mundo muito


facilmente podemos cair na tentação de interpretá-la como mera experiência. Um termo como
“cotidianidade do Dasein”, se mal visto, nos amarra ainda mais a essa leitura. Stein atenta

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especialmente a esse problema (STEIN, 1993, p. 103) Certamente se trata aí, em ser-no-
mundo de alguma experiência, mas pensada como a relação fundamental com o mundo. E
mundo aí, como dizíamos, já está despido de seu caráter objetal. De modo que a experiência e
o mundo são um continuum, inseparáveis: mundo é sempre mundo experimentado, e
experiência, enquanto lugar primordial da significância, tem de ser o primeiro instante em que
emergem os objetos do mundo em seu ser. Por isso a Sorge não tem apenas uma direção como
bem se poderia pensar mediante o construto moderno da subjetividade. A cura engloba
atividade e passividade, e a experiência no sentido vulgar, a existência mesma do Dasein
apenas ocorre sobre essa instância sempre aberta em que sujeito e objeto, homem e mundo, se
confundem. Notemos, a preocupação heideggeriana é deixar ver as estruturas fundamentais de
onde originariamente surge o sentido que embala as vivências mais diversas. Evidentemente,
essas estruturas não são captadas na fenomenologia hermenêutica se nos contentamos com
uma pesquisa empírica, com a descrição dos atos mais regulares, por exemplo. O que, com
certeza, está pressuposto aí é o elemento transcendental4 dessas estruturas e que deve ser
levado em conta na descrição fenomenológica de cada uma delas. Esse é o ganho de
Heidegger frente ao Historicismo e aos filósofos da vida que, ansiosos por uma filosofia que
partisse de um plano existencial, vital, não conseguiram a suficiente liberdade da empiria e das
descrições factuais e históricas, liberdade necessária ao pensamento ocupado com o
ontológico. O ganho está em expressar na cura tudo o que naquela época se pretendia com o
conceito de vida porém, agora, desde um plano transcendental. O que realmente se quer dizer
com essa transcendentalidade e a diferença entre esta, do pensamento heideggeriano, e aquela
inaugurada na modernidade por Kant é o que agora investigaremos acompanhando o texto de
Ernildo Stein.
Retomemos o sentido da cura. Ela é uma estrutura ontológica do Dasein alcançada
pela analítica existencial tendo como meta, entre outras, abrir, mostrar, as estruturas
fundamentais do Dasein que inauguram, em seu desvelamento, as condições necessárias para
que se possa pensar a vida e a existência, e sobretudo, o conhecimento, desde suas
possibilidades mais originárias, fundamentais. E é por tal razão que não há em Heidegger uma
teoria do conhecimento. O que movimenta o pensamento próprio não é a correção do
conhecimento, seus limites e seus direitos – o que, de fato, era o objetivo da Crítica da Razão
4
Notar o que falávamos a respeito do termo transcendental na introdução desse texto.

Estudo dos Fundamentos Existenciais do Dasein Página 29


Pura. A filosofia de Heidegger visa a origem do conhecimento, a manifestação e a história do
saber (STEIN, 1993, p. 107). O que vem ao pensamento depois disso é construção de
aparelhos, hipótese finitas, descrições variadas das maneiras como os epistemólogos
conseguem representar a Razão (e é aí se incluem ou se excluem os entes capazes de ser
compreendidos), teorias do conhecimento que já pressupõe aquele conhecimento dado nas
estruturas, nos existenciais.
Stein (1993, p. 105) nos chama a atenção para o título do último capítulo da
Crítica da Razão Pura: A História da Razão Pura. Em seguida, Kant afirma que essa história
faltara em seu sistema e que seria necessário, posteriormente, preencher a lacuna. Mas o que
exatamente seria uma história da Razão? Em certo sentido, é o que Stein nos faz ver, o
idealismo alemão foi uma tentativa de completar o que Kant abandonou. A Fenomenologia do
Espírito de Hegel é claramente uma construção extraordinária onde se tenta reproduzir a
história da experiência da consciência. E com isso se põe sempre em questão o aparecimento
do saber em cada figura da consciência, não meramente a configuração e a forma do saber, do
conhecimento, como em Kant, mas o movimento do Espírito que deixa com que o saber surja
a cada instante sob uma forma específica. Mas como Hegel pôde operar essa descrição? Ele
precisou subir a montanha da Filosofia e contemplar o movimento do Espírito desde o ponto
alto do Saber Absoluto. Uma pretensão infinitista marca a lógica hegeliana: nada fica de fora,
todo movimento é abraçado no exercício conceitual que só o filósofo que se pôs no alto da
montanha pode operar.
Exatamente, é essa concepção de uma razão infinita que Heidegger não aceitará
como legado da tradição. Não só em Hegel, como também em Kant. Seja lá como possamos
imaginar aquela história da Razão Pura pretendida por Kant, podemos afirmar que este só via
como possível tal tarefa enquanto apostava na infinidade da Razão. Em Kant, o tempo da
Razão não é o tempo da vida. O tempo da vida é justificado como resultado das impressões
sensíveis garantidas mediante as formas da intuição. Mas a própria Razão, mesmo que esteja
sujeita a fenomenalizar-se e apreendida pelo sujeito segundo as formas do tempo e do espaço,
ela própria permanecerá imutável operando sempre pelos mesmos meios, descobrindo o
mundo baixo sua limitações e suas capacidades, seus a prioris. Assim sendo, a história da
Razão Pura pode ser antecipada sem que para isso tenha-se que viver todo o tempo da vida.
Heidegger temporaliza, por assim dizer, o cuidado. Eis a finitude, o ser-para-a-

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morte. A morte se afunda na questão do conhecimento, no acesso ao mundo, ao tempo do
mundo. O que a tradição produziu muito bem foram tentativas de expulsar o tempo da vida
das questões de acesso ao mundo. Por isso, mostra Stein uma possível objeção a esse primado
da morte: “Mas eu, com o tempo da vida, acompanho o tempo do mundo através de teorias
como a de Kant. Então, para sempre, tenho garantido como é que vai ser o tempo do mundo,
isto é, o tempo de acesso ao mundo” (STEIN, 1993, p. 109). Justo, a teorias da tradição estão
comprometidas com o desejo de garantir um acesso imutável ao ente, são desenhos da Razão
que se pretendem universais. Mas notemos, Heidegger que acessar um espaço anterior àquele
desde onde se constroem teorias do conhecimento, uma abertura fundamental que permite as
diversas arquiteturas da Razão que se substituirão através dos séculos. Se nomearmos, como
faz Stein, essa abertura de transcendental, teremos que atentar, como ele, que aí fluí um tempo
que não é aquele que nos permite desenvolver um esquema infalível da Razão, mas um tempo
que dá a possibilidade de se produzir distintas hipóteses finitas sobre os contornos da Razão,
sobre os limites do saber e sobre o que é possível conhecer. Nessa ideia muito precisa de
transcendental marcada pela temporalidade do Dasein, o tempo da existência distinto para
sempre do tempo do mundo, dão-se as condições de se articular o sentido, aí se instaura a
significância.

A história da razão pura, de certo modo, será uma crítica a Kant (se ele for escrevê-
la, será uma crítica a Kant). Ora, a história da Razão Pura como crítica a Kant, que
Hegel desenvolve, que é a história da experiência da consciência, essa história da
Razão Pura como Hegel desenvolve, não poderia ser uma crítica à teoria
fenomenalista da Crítica da Razão Pura, de que só se chega aos fenômenos. Deveria
haver uma crítica mais radical a Kant. E essa crítica mais radical é a crítica que
Heidegger faz em Ser e Tempo. É por isso que Ser e Tempo não se põe ao nível da
Fenomenologia do Espírito, pois Heidegger não pretende articular as condições da
manifestação da Razão ou da consciência, mas as condições transcendentais dessa
própria história. E desenvolver essas condições transcendentais significa ir nas raízes
da Bedeumtsamkeit (significância ou da significabilidade), ver como essas raízes se
articulariam. Heidegger expõe essas raízes; essas raízes se dão aí onde se articula o
mundo. “Mundo”, evidentemente, enquanto ele é uma maneira prática de ser, isto é,
prático não em relação com a práxis, mas prático no sentido de já sempre ancorado a
um processo que é anterior a qualquer teoria (STEIN, 1993, p. 111, 112).

Heidegger não subiu a montanha como Hegel, não tomou o ponto de vista infinito
desde onde se pode produzir uma história da consciência. Ao contrário, ele desceu ao
fundamentos. A filosofia deve investigar as possibilidades, no Ser, de se produzir uma
construção como a Hegeliana. O recuo para além dos espaços abertos ao pensamento por

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Kant, Hegel, e toda a tradição, só foi possível pelo envolvimento da temporalidade, da morte,
no transcendental de Heidegger. Desde então não é mais possível equiparar o tempo da
existência finita com o tempo do mundo. Essa era a motivação kantiana: construir um sujeito
transcendental livre da finitude, por onde o mundo fosse acessado sempre segundo os mesmo
princípios. E por que? A resposta Heidegger dará em outras obras em que investiga a
constituição moderna da filosofia e o pensamento kantiano. O filosofar de Kant parece a
Heidegger determinado pelo modelo matemático, modelo esse que forçava a construção de
uma Razão, de um sujeito, que devesse antecipar em si as estruturas do mundo tal como este
era revelado pelas ciências naturais da modernidade. Heidegger separa para sempre o tempo
do mundo e o tempo da existência. Doravante, todas as tentativas de reaproximá-los são
hipóteses finitas cujas possibilidades se dão na própria abertura em que navega o tempo da
existência. Ser e tempo é:

[…] onde o caráter da temporalidade (ser-para-a-morte) não concorre mais com o


tempo do mundo, em que o próprio conceito de mundo é transformado e posto no
nível transcendental. Então a filosofia não concorre mais como o conceito de mundo
da teologia ou das ciências naturais: este é o grande corte heideggeriano. Onde o
mundo se instaura como significância e termina com a morte, simplesmente não há
mais garantia de significação em algo, seja Deus, Natureza ou Cogito (STEIN, 1993,
p. 113).

3.2.3 Co-originariedade de Verdade e Realidade.

Entre as definições tradicionais da Verdade, talvez seja a teoria da correspondência


a de maior repercussão em toda a história da filosofia. Aí já está dada a separação, no
pensamento, entre realidade e Verdade. Realidade enquanto zona dos entes, objeto das
ontologias. Verdade enquanto adequação de um discurso à realidade, o problema do acesso ao
real, objeto das teorias conhecimento. Para nós nada disso soa misterioso. Pelo menos até
Heidegger ter dito que desde a noção de Dasein era possível pensar numa emergência
simultânea de realidade e Verdade. Por meio dos existenciais fundamentais do Dasein o
filósofo tem a chance de apontar para essa unidade anterior à separação entre realidade e
conhecimento (verdade). E nisso, acentua o existencial mundaneidade como próximo ao
conceito ôntico de realidade e, a revelação, para a questão da Verdade.
Pensemos um pouco na história desses dois conceitos, Verdade e Realidade, na

Estudo dos Fundamentos Existenciais do Dasein Página 32


perspectiva da tradição ontológico-transcendental. Com isso talvez possamos apreender, tal
como fala Stein (1993, p. 124) que essa dupla de conceitos é pela tradição pensada
conjuntamente a duas outras noções, a saber, a universalidade e a originariedade. Desde os
gregos, a universalidade está contida na pergunta pelo Ser em sua totalidade. Nessa busca, a
filosofia deparou-se na maior parte das vezes, guardadas as diversas configurações que na
história pôde tomar o que se segue, com um ente absoluto. Todavia, a face moderna dessa
tradição repete a pergunta pelo universal e e pelo originário (o mais fundamental) desde a
questão do conhecimento. Em outras palavras, agora, os modernos perguntam pela
possibilidade de todo o ente dar-se no conhecimento. Dessa forma o universal é buscado
enquanto ele pode ser conhecido, porquanto se possa dele dizer alguma Verdade. É aí que a
separação entre os conceitos finalmente se instaura: a realidade (a totalidade dos entes) é
divorciada daquela instância por onde ela pode ser conhecida e desde onde se decide por seu
caráter de Verdade. E que instância é essa que decide sobre a verdade do real? Trata-se da
esfera mais originária, para onde todo sentido e toda possibilidade de Verdade deve remeter.
Não mais o ente absoluto da filosofia clássica, mas algo absolutamente dado: a consciência
transcendental, a subjetividade com seus conceitos e categorias a priori que são a condição
dada de todo conhecer.
Grande parte do que move o pensamento heideggeriano é sua insatisfação perante
a subjetividade, a dúvida de que ela se dê por si e que seja o dado absolutamente originário, o
último lugar de remissão da Verdade. Heidegger nem mesmo apostará na consciência
transcendental husserliana que traz um novo sentido de verdade, pressuposto de todos os
outros, com o caráter de absoluta evidência a ser continuamente conquistado na pesquisa
fenomenológica. Todavia, Heidegger em Ser e Tempo é ainda devedor da tradição
transcendental, crê também possível descobrir um lugar originário e universal, anterior a tudo.
Mas esse lugar deve ser também anterior à subjetividade. O ego moderno tem as raízes no eu
que se apóia no Dasein, na abertura da compreensão prática do mundo. Stein (1993, p. 129,
130) afirma que Heidegger não se afastou tanto quanto desejaria da tradição ontológico
transcendental. O filósofo não abandona o problema da universalidade e da originariedade. O
que muda é a forma que adquire o lugar onde se localizam esses dois elementos. Vejamos,
então, como e onde Heidegger os compõe.
Diz Ernildo Stein (1993, p. 127): em Ser e Tempo, “ […] a questão da

Estudo dos Fundamentos Existenciais do Dasein Página 33


universalidade é garantida pela pergunta pelo sentido do Ser e a questão da originareidade pela
analítica do Dasein”. Já no parágrafo 1 de Ser e Tempo a universalidade do Ser é afirmada.
Dentro do Ser está todo ente, ainda que sua universalidade, pelo fato de não ser aquela do
gênero, não esclarece em nada o seu sentido. Há que se perguntar então desde onde o Ser toma
e dá sentido: eis aí o ponto originário. O ente interrogado é aquele que já sempre se move
numa certa compreensão do sentido do Ser, pré-ontológica, o Dasein. A investigação do
sentido do Ser deve começar então permitindo que o próprio sentido do ser deste ente se abra e
se manifeste. Enquanto é na existência que o ser do Dasein está em jogo, e é também a partir
dela que o Dasein compreende o sentido de seu próprio ser e do ser dos outros entes, deve-se
iniciar por uma análise da existência. Mas a existência mesma é um assunto ôntico do Dasein,
não ontológico. À compreensão que busca o saber ontológico sobre a existência chamamos
compreensão existencial. E à estrutura ontológica da existência que essa compreensão busca
obter, denominamo-la existencialidade. Portanto, é na análise existencial, na descoberta das
estruturas fundamentais da existência, que o sentido universal do Ser começará a se revelar.
Todavia, o lugar originário da Verdade, a existencialidade do Dasein, não pode se
revelar no discurso transparente que acompanha àquele sobre a subjetividade. Não será
possível produzir um inventário das categorias sempre presentes nesse fundamento último.
Não há um ponto de apoio eterno e constante. Heidegger já abdicou do ponto fixo, absoluto
regular, flutuando na presentidade. Inseriu aí a questão da finitude: a abertura originária é
fática, não tem proveniência, e acaba com a morte.

3.2.4 Da Verdade Fundante à verdade fundada: do modelo operacional da Verdade ao


modelo proposicional.

Falamos muito que a Verdade na abertura é fundamento daquele critério de


verdade enquanto adequação entre mundo e sentença o qual já é devedor do corte moderno
entre mundo (representação) e sujeito (representante). Mas como Heidegger explica o
surgimento da verdade proposicional? Investigar o tema com suficiente profundidade
equivaleria a rever todo o parágrafo 31 e 32 onde Heidegger trata do Dasein como
compreensão e o surgimento, no seio desta, da interpretação. Como a brevidade é necessária,
tomemos na memória esses dois parágrafos e partamos já para o parágrafo 33 onde se trata da

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proposição como modo derivado da interpretação.
A proposição, tema clássico da lógica, acontece na negação ou afirmação de um
predicado relativo a um sujeito. Porém, é só na medida em que esse juízo se funda no
exercício originário da interpretação que ele pode possuir sentido. Lembramos que sentido é o
que se articula na interpretação enquanto modo existencial do ser-em e que na compreensão já
foi possibilitado para tal articulação. Logo, o sentido não ocorre primariamente ao longo ou ao
lado de um juízo (por exemplo, só quando a proposição corresponder aos fatos). Assim, o
logos, que na tradição, sempre fora tomado como principal modo de acesso ao ente ou seu ser,
e a proposição, tomada como lugar da verdade, perdem esses seus privilégios. É aqui então
que Heidegger começa a delinear o problema da verdade.
Destacaremos, com Heidegger, três significados do termo proposição retirados do
fenômeno por ela designado:
a) Proposição é indicação ou de-monstração (numa direção
fenomenológica e nada lógica ou matemática). Proposição é pôr diante o que diante
está. Desse modo, mantemos o sentido originário do logos como apofântico: deixar e
fazer ver o ente a partir e por ele mesmo. Com o dizer ‘o martelo é pesado demais’ o
que se descobre à visão não é um sentido, mas o ente em seu modo de ser manual.
Mesmo que esse ente já esteja sob a visão ou à mão, o já mais próximo possível, ou ao
contrário esteja distante do circundante, em todo caso o que primeiro visa a proposição
é o ente e nunca uma mera representação daquele (uma imagem ou conceito) nem o
representar do ente que se supõe dar-se em um sujeito. Sempre, de início a proposição
mostra o ente em seu ser desde si.
b) Proposição é predicação. Do sujeito se diz um predicado. O primeiro é
determinado, o segundo determinante. A predicação determina o sujeito com o
predicado. O que se põe primeiro na preposição é sempre o sujeito, não o predicado. O
que se faz nessa segunda acepção da proposição é estreitar o conteúdo do sujeito que
se deu na primeira acepção. A predicação se funda na de-monstração. Já os integrantes
da predicação, sujeito e objeto, se dão na de-monstração. Não é a predicação que
descobre o ente, mas ela que restringe a visão fazendo com que o já manifesto (o
martelo) se torne agora expressamente manifesto em sua determinação (é pesado
demais). A proposição primeiro deixa na sombra o que não é martelo. E, no pôr-se do

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sujeito, o manisfesto (na de-monstração, o martelo) deixa-se ver em sua determinação
possível (por meio do predicado).
c) Proposição é comunicação, declaração. Diretamente relacionado aos
outros dois modos, esse significado da proposição é um co-fazer-ver o indicado no
modo próprio do determinar. O ver resulta comum, enquanto é comunicado de um
(aquele que faz a proposição) a outro. Ver é ser vendo o indicado e determinado como
modo de ser-no-mundo, naquele mundo de onde se destaca aquele ente (martelo). O
comunicar-se da proposição é um modo essencial dela enquanto entendida como
comunicação existencial. O comunicado pode assim ser partilhado com os outros sem
que esses necessitem ter próximos à mão e a visão o ente de-monstrado e determinado.
O que se dá na proposição pode ser transmitido aumentando desse modo o âmbito do
que é partilhado. Nessa transmissão, o que é de-monstrado pode voltar a se encobrir
enquanto apenas um ouvir dizer, mesmo que o saber aí em jogo vise sempre um ente e
não um sentido que possa ser compartilhado. Mesmo o saber de ouvido não é mera
afirmação de um significado, mas um saber sobre entes. Também o saber de ouvido é
um modo do ver-em-comum-os-entes e por isso um modo de existir vendo os entes. “O
saber de ouvido que ‘o martelo é pesado demais’ não significa simplesmente conhecer
a significação dos termos, mas mostra os entes mesmos” (Sepich, J. R., 1953, p. 286).
Todavia, com essa concepção da proposição enquanto comunicação Heidegger já
caminha em direção ao encobrimento daquela Verdade originária que se deu na
compreensão e que se mantém de certo modo ainda viva na proposição enquanto de-
monstração. Na comunicação e no saber de ouvido estamos já no modo impróprio do
Dasein,esfera total da não verdade originária.
Numa visão do conjunto do fenômeno, poderíamos dizer que a proposição é uma
demonstração que determina através da comunicação. Fica ainda a questão de saber como a
proposição é um modo da interpretação. A solução parece ser a necessidade de que as
estruturas essenciais da interpretação reapareçam na proposição. Ou seja, esta se deve cumprir
com base no que já se abriu na compreensão e se descobriu na circunvisão. A proposição
(assim como o conhecimento do mundo) não poderá abrir pela primeira vez o ente como tal,
pois ela já se detém no ser-no-mundo. Carece então assim de uma posição prévia do que já se
abriu para só depois demonstrar. Em segundo lugar, como determinação, já lhe é inerente uma

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visão prévia da perspectiva em que se vai tomar o ente dado a fim de torná-lo determinado.
Essa perspectiva assume a função de determinante e só assim a proposição pode tomar o
predicado e incluí-lo sem notar no ente. Ademais, uma conceituação prévia já se dá (e toda a
língua a possui), ou seja, uma articulação do significado do que se demonstra. Só sob essa
condição, o que se de-monstra e determina pode ser comunicado.
Mas além de se encontrar os mesmo prévios da interpretação na proposição, algo
necessita modificar-se. O quê? Façamos um exercício. Tomemos uma proposição que na
Lógica tratar-se-ia como categórica e simples: ‘o martelo é pesado’. O que para lógica é tema
nessa proposição já é algo compreendido muito antes daquela análise, e é o que nos permite
dar sentido a frase. Ou seja, o fato de que o ente martelo possua a propriedade do peso. Mas, o
importante é ver agora que, no nosso cotidiano ocupar-se dos entes, em seu caráter de
instrumentos não há lugar, no imediato, para isso que as proposições comunicam, indicam e
determinam. Antes, na circunvisão, a interpretação dá-se de outra forma, ela diz como se há de
tomar os entes que na proposição são indicados. A proposição dada na frase ‘o martelo é
pesado’, nossa interpretação imediata interpreta como ‘que pesado é esse martelo!’ ou ‘passe-
me outro já que esse não me serve’. Citando Heidegger: “o exercício originário da
interpretação não se acha numa sentença teórica proposicional, mas na recusa e na troca do
instrumento inadequado dentro de uma circunvisão ocupacional” (1993, p.215). Se isso se faz
sem palavras não quer dizer que não haja interpretação, ainda que não seja uma proposição no
sentido definido.
Na posição prévia da interpretação na circunvisão, o ente que se sustenta é de
início um instrumento que está à mão. Ao se tornar objeto da proposição já se realiza nessa
posição prévia uma mudança junto com a proposição. O ‘aquilo’ com o que se lidava torna-se
agora um ‘sobre’ o que a proposição de-monstra. A visão prévia, na proposição, encontra, pela
primeira vez, o ente simplesmente dado enquanto se encobre a manualidade. Encontra-se o
ente em-si sem sua existencial referência a nós. Só agora se abre o acesso às propriedades. E a
proposição pode haurir conteúdos simplesmente dados para determinar o que também é
simplesmente dado. Foi a estrutura-como da interpretação que se modificou, separou-se da
significância que constitui o mundo circundante e já não pode mais articular relações. O como
agora está no nível do simplesmente dado e assim a proposição pode tornar-se uma
visualização de-monstrativa. Está mostrada assim a dependência da proposição de uma

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interpretação compreensiva. A modificação ontológica existencial que aí se produziu foi: o
como hermenêutico-existencial da interpretação se modificou no como aponfantico da
proposição.

3.2.5 A linguagem que mostra a unidade.

Como então se pode fazer ver o que é a condição finita de toda compreensão? Que linguagem
tortuosa poderá falar do âmbito pré-semântico, antepredicativo, onde ainda Verdade e
realidade estão unidas na abertura? A resposta está no próprio conceito heideggeriano de
fenomenologia: logos é o elemento da universalidade, phainómenon, o da originariedade. O
método de Ser e Tempo é a resposta. No logos originário, na fala (Rede) articula-se o que, com
a decaída do Dasein, não se alcança no verbo. Mas aquilo que se oculta é já a condição desse
próprio dizer originário. A revelação (a Verdade) já é dada na própria constituição da
mundaneidade (realidade) onde se produz a significância. O “como” do mundo, a significância
que emerge na abertura, só se revela no logos hermenêutico, o logos do método hermenêutico-
fenomenológico heideggeriano. Ainda que o logos hermenêutico não possa sempre
simplesmente deixar ver o fenômeno assim como ele se mostra. Pois é também do fenômeno a
possibilidade de encobrir-se. Então só sobrará ao discurso a violência. Por essa razão
aparecem os novos termos heideggerianos: superar a gramática metafísica tradicional que não
respeita o fenômeno na sua manifestação. O discurso encobre, o mostrar muitas vezes não diz
– é onde se prefere o silêncio. Aqui já nos aproximamos daquilo o filósofo pôde ver no termo
alethéia, a característica própria da Verdade de conter em si tanto o velar como o desvelar.

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4 CONCLUSÕES

A pergunta pelo sentido do ser carece de uma interrogação pelos fundamentos


ontológicos de um ente que somos nós mesmos, o Dasein. A pergunta mesma não pode existir
sem o ente ao qual ela se dirige. A questão do sentido do ser não é puro resultado da razão
humana ou produto do entendimento. Sobretudo, ela é visão que exige participação do ser
daquele que pergunta. Dasein não é essência sob uma forma, o que faz o existir do ser-aí é a
constante relação deste com o ser nele mesmo implicado. O que importa na caracterização
ontológica do Dasein é manter sua relação ou referência a seu ser. Se perco essa relação o que
fica de mim, se é o cumprimento das possibilidades que se abrem no meu ser que me confere
existência e se as determinações de essências para o Dasein apenas podem ocorrer quando
aquelas possibilidades já estão abertas, assumidas ou negadas? A relação Dasein-ser, ao longo
da trajetória do humano, se fenomenalizou, por assim dizer, como consciência, como
conhecimento e pensamento, ou como relação do sujeito com a verdade. Em Heidegger, todos
esses fênomenos são de uma ordem posterior, ôntica. O que primeiro é determinante é a
própria existência do Dasein, ou melhor, aquelas estruturas fundamentais sobre as quais toda
existência pode cumprir-se. Por isso mesmo, cabe ao pensamento revelar nossa constituição
fundamental no ser. Todo modo de ser próprio do Dasein, ocultado ao longo da tradição, é o
que essencialmente conta como base de todo conhecimento, verdades e práticas.
Ser e tempo anseia, então, por uma análise do conjunto de modalidades de ser
constitutivas e fundamentais do Dasein. Mas a pergunta por um fundamento do homem não é
novidade alguma. Heidegger sabe bem que há uma história antes dele e que algo é preciso
dizer sobre ela. O homem tem sempre uma certa compreensão inicial de seu ser. É ela que
orienta uma série de saberes a respeito de nós mesmos. Psicologia, ética, antropologia, poesia,
biografia e história há muito são as modalidades de interpretação e condução do ser-aí. Tais
ciências reinvidicaram, e ainda o fazem, o direito sobre a compreensão do humano, suas
forças, faculdades, possibilidades, origens e destinos. Heidegger sabe de tudo isso, não negou
a compreensão mediana do ser-aí. Todavia, o filósofo pode garantir que tudo isso se moveu e
move no ôntico. Não são essas espécies de reflexão sobre nosso ser que se busca quando se
trata da questão ontológica fundamental. O que há com elas? O que há de melhor no caminho
de Heidegger? Na tentativa de voltar a reflexão para o próprio de nosso ser e fazer dele tema

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de uma análise puramente ontológica, esbarramo-nos naquela preocupação mais imediata
dessa reflexão, a cura do mundo. Nossa compreensão inicial do ser-aí de imediato e na maior
parte das vezes é determinada por aquilo que primeiro encontramos na realização da
existência. Existindo, Dasein é sempre num mundo e a compreensão de seu ser toma
inicialmente a direção de uma compreensão do mundo. Assim seguem as pesquisas sobre o
humano. Mas, se o interesse consiste exatamente em alcançar uma compreensão de nosso ser
que brote dele mesmo, os saberes das humanidades pouco ou nada contribuem. Por outro lado,
de onde partir se não do que é primeiro, mais comum e acessível?
E é justo a compreensão mediana o ponto de partida da análise. É no que
Heidegger chama de cotidianidade que o ser deste ente que somos nós se mostra regularmente
e sem os artifícios do pensamento viciado no ôntico. No cotidiano, Dasein é revelado sem
carecer de um plano ideal ou racional de sua constituição. Aí, o Dasein aparece no fáctico,
naquilo que somos na maioria das vezes. No entanto, trata-se apenas de um início, de uma
preparação, como diz o título da primeira seção da primeira parte de Ser e Tempo.
Indispensável é que a análise não se perca no banal e não trate apenas de ressaltar estruturas
acidentais. A cotidianidade entra como momento da análise só na medida em que permanece
um único objetivo: atingir por seu intermédio o que há de mais próprio no ser-aí, aquilo que
em todos os casos perfaz seu existir fáctico.
A investigação fenomenológica da cotidianidade revela o ser-aí em diversos
momentos de sua constituição. Cada um desses elementos é descoberto como guardando uma
relação estrutural entre si. Enquanto descreve Dasein nesses momentos, a analítica deve
preservar a totalidade. Só uma descrição ôntica pode dividir em partes a realidade. Assim ela
obtém um conhecimento do tipo definição sobre a base de categorias universais e abstratas.
Para alcançar uma compreensão do ente em seu ser é necessário manter a totalidade. Isso
porque Dasein é uma determinação concreta, não abstrata. Ser-no-mundo é como Heidegger
nomeia essa todalidade dos momentos existenciais. Enquanto, estrutura fundamental do ser-aí,
ser-no-mundo assegura o conjunto concreto da existência agregando toda a série de existencias
que a analítica conquista. Porém, mundo não é ente, mas elemento formador e indispensável
do ser do ente que somos nós. Por isso, se a expressão ser-no-mundo mostra alguma relação,
esta não se aplica a dois entes distintos, mas entre dois momentos ontológicos de um mesmo
ente: ser-em e mundo. É a facticidade que garante essa relação. Tomar o Dasein como ser

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factico é compreendê-lo como aquele ente que, sendo, não pode escapar de uma essencial
ligação com o ser daquele ente que lhe vem ao encontro no mundo enquanto aderente à sua
existência. Mundo está em toda compreensão que o Dasein faz de si mesmo. Mundo é chave
na realização de tudo o que pode ser dito humano. Não há Dasein sem mundo, nem mundo
sem Dasein. Essa estreiteza absoluta foi esquecida nos caminhos históricos que o pensamento
percorreu. A descoberta da epistemologia moderna, a saber, a distinção sujeito-objeto, não
passou de um erro ontológico, de uma cegueira que velou o fenômeno ser-no-mundo. Um
sujeito anterior ao mundo é mais completa abstração. Nada de Dasein sobra caso se apague
seu ser relativo ao mundo. Ser-aí é curar-se de mundo, sempre e em primeiro lugar entre os
fundamentos da existencia.
Quando Dasein “vê” mundo, a relação deixa de formar a existência.
Conhecimento teórico só é possível quando nos abstemos da cura e portanto de nossa própria
existência. Qualquer verdade que o conhecimento possa adquirir não acrescenta em nada o que
é fundamental no Dasein, nem faz retornar esse ente à sua propriedade. Os entes (objetos) que
fazem frente ao Dasein enquanto sujeito já não preservam nenhuma relação estrutural com seu
existir e realização, lhe surgem apenas em seus puros aspectos. Dasein não mais existe
propriamente quando conhece. A ontologia precisamente esqueceu o significado existencial de
mundo porque não tratou mundo como algo essencialmente importante a nosso ser-aí, isto é,
enquanto condição de nossa existência.
Na cotidianidade, o mundo que primeiro aparece como constitutivo da existência é
o mundo circundante. O termo circundante não possui em Heidegger nenhum sentido espacial,
mas de concomitância constitutiva. O mundo que imediatamente participa de nosso ser, é o
mundo formado por rede de relações instrumentais já sempre significativas. Ser-aí é cumprir
relações que surgem na facticidade. Sempre numa exteriorização, em direção ao mundo que
completa e acolhe a existência. Existindo, Dasein projeta lugares privilegiados para sua
realização. São as possibilidades do Dasein já sempre irradiadas sobre o mundo. O primeiro
desse conjunto de raios dirige-se aos entes com o caráter de ser instrumental. Ao se assegurar
dessas possibilidades lançadas e cumprí-las, o Dasein é no modo da ocupação. Assim se revela
o mundo circundante, como momento do nosso ser onde toda possibilidade de concretude do
Dasein é dada na lida com o instrumento. Essa prática, enquanto é ela mesma caráter de nosso
ser, já sempre possui seu guia e farol, a circunvisão. Quando Dasein abre mundo, o ser do

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instrumento já é dado pelo conjunto relacional onde ele surge inserido e por onde Dasein,
ocupando-se, existe. Referência, por sua vez, é como Heidegger chama cada relação
instrumental dentro do conjunto relacional. Ao ver (na circunvisão) em torno do ente, o
Dasein descobre a totalidade de referências e a referência específica daquele manual, assim o
ente já está dado ao Dasein em seu caráter instrumental. E tudo isso apenas quando Dasein se
realiza imediatamente na ocupação, excluindo qualquer contemplação de mundo. De fato, o
ser dos entes intramundanos dão-se muito mais à mão dos que ao olhar que examina e
descobre funções das coisas. Assim é que mundo nos configura. Na ocupação, mundo aparece
pela primeira vez significativo para Dasein. Em contrapartida, só no percorrer dessa
significância, o homem é pela primeira vez.
A des-coberta do ente, i.e., o aparecimento do ente intramundano enquanto tal, só
pode dar-se na medida em que o Dasein como ser-no-mundo e todos os momentos da estrutura
da mundanidade já se deram. Caminhamos assim em direção a uma noção crucial em
Heidegger, o ser-aí como abertura e fundamento da verdade. Para o que os entes possam nos
fazer frente enquanto manuais, serem des-cobertos em seu ser, deve haver algo aí previamente
aberto: o fundo do qual emergem os entes. Precisamente, o ser. Ser enquanto mundo, ser-no-
mundo. É inerente a nossa compreensão do ser uma certa compreensão do mundo. O estar
previamente aberto do mundo significa que já se compreende antecipadamente o modo
relativamente ao qual se conduz sempre já o ser-aí. Dasein, compreendendo mundo, encontra-
se originariamente familiarizado com ele, muito antes de qualquer reflexão sobre as formas do
mundo. Nessa compreensão originária de mundo, Dasein compreende também imediatamente
a si enquanto ser-possível. Essa compreensão originária do mundo é o início de qualquer
metafísica.
E mundo não é apenas instrumentos conformados em redes de relações de
serventia. Mundo é também Dasein. As relações dos instrumentos se extendem até um ponto
onde esbarram no Dasein alheio, aquele para quem a obra se destina ou junto de quem nos
ocupamos na lida com o manual. A concretude das possibilidades do Dasein possue também
um outro raio de cumprimento, outra direção na exteriorização . Dasein também se realiza na
preocupação com o outro. Dasein existe com outro e nunca só. Ser-aí é ser-no-mundo
enquanto, em igualdade originária, é ser-com. Assim como o mundo da ocupação antecede as
singularidades de cada existencia permanecendo já sempre aberto, o ser-com mantém sempre

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aberto o Dasein do outro antes de qualquer particularidade de nossas relações interpessoais.
Isso quer dizer que assim como uma compreensão do mundo é primeira em relação aos nossos
afazeres “reais”, do mesmo modo possuimos em todo caso uma compreensão do ser do outro.
Na abertura já opera um conhecimento do si mesmo e do outro como Dasein e ser possível.
Essse conhecimento originário já tem os limites de sua preocupação: podemos tomar do outro
o seu cuidado, privando-o da responsabilidade por seu Dasein ou ajudá-lo no sentido de tornar
para ele ainda mais transparente a originariedade de seu ser-aí. Ônticamente, podemos viver o
Dasein alheio na indiferença e insistir na ilusão de uma existência centrada, individual e
privada. Ontologicamente, porém, no existir não se forma nó nenhum de Dasein, ego ou
consciência livre de mundo. Mas é porque o existir é com-partilhado que na cotidianidade o
Dasein de cada um se entrega a tutelha alheia. No impessoal, onde o existir quase sempre se
mantém, o próprio do Dasein é tão anulado que ninguém pode responder por si. Todas as
possibilidades são niveladas e sempre já superadas e desprezadas.
Aqui, mais do que em qualquer outro instante da obra, a dicotomia
autenticidade/inautenticidade ganha força. Heidegger descreve as formas como a existência é
submergida na alteridade informe e dissonante. É a de-cadência tentadora do existir. Ser-aí não
pode escolher manter-se na autopossessão em detrimento da existência coletiva. Não, Dasein
está-lançado num mundo com outros e se quiser ser terá que ceder a tentação do mundo. Por
isso, a inautenticidade do Dasein não é o fortuíto de uma época histórica, não é a característica
de uma civilização que perdeu seus valores, nem um castigo à humanidade. Inautenticidade
não é um desvio do Dasein autentico que a si mesmo já não pode encontrar. O impróprio é o
próprio e mais insistente existir. As possibilidades do retorno ao próprio do Dasein não são
ainda discutidas nesse instante do texto de Heidegger. Percebemos apenas que tudo que é
originário na abertura de-cai na convivência cotidiana: o discurso que governa e compreende o
Dasein como ser-possível é agora falatório; o espanto diante do ser é mera curiosidade; a
angústia, que como ainda caberá investigar é meio para a preservação do Dasein, é medo do
mundo.
Mas só no capítulo cinco de Ser e Tempo a abertura originária do Dasein é melhor
tratada. Nesse difícil momento do texto, do ser-aí é dito pela primeira vez que é estado de
abertura. O aí é claridade absoluta de toda a existência. Não se trata de uma essência que
determina os modos de ser do humano, mas são já esses modos de ser de alguma forma

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arranjados. A abertura do aí permite toda realização do Dasein, é ela mesma a possibilidade da
existência. Originariamente no aí, Dasein é já uma compreensão de suas possibilidades
projetadas no mundo instrumental e no mundo da convivência. Mas, também aí Dasein está
dis-posto no sentimento. Compreensão e sentimento são igualmente originários de modo que
juntos guiam toda concretização. Mundo é sempre iluminado pelo aí, na compreensão e
disposição afetiva. Todavia, enquanto na maior parte das vezes Dasein está de-caído nas
formas impróprias de vida, guiando-se num mundo que lhe aparece apartado de si, Dasein está
também na não-Verdade.

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