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HISTORICIDADE
E OBJETIVIDADE
Organização
Tiago Santos Almeida
Tradução:
Derley Menezes Alves
Francine Iegelski
1ª edição
LiberArs
São Paulo – 2017
APRESENTAÇÃO
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em português” 1. Os sete textos reunidos aqui, publicados ao longo de duas
décadas, não substituem a leitura dos livros de Daston, nem diminuirão o
desejo de vê-los traduzidos para o português (esperamos, na verdade, que
produzam o efeito contrário), mas permitem compreender o processo de
formação e a consolidação de seu “programa historiográfico” para a história
das ciências.
Em meados dos anos 90, Daston apresentou a “epistemologia histórica”
como um programa capaz de aproveitar as contribuições e de escapar das
limitações específicas das três grandes escolas de história das ciências do
período: a escola filosófica, a sociológica e a histórica. Para Daston, o problema
não residiria nas metodologias empregadas por cada uma daquelas escolas,
mas na parcialidade das relações que elas estabeleciam entre o conhecimento e
seus objetos: seja o viés preponderantemente idealista da primeira, o
estruturante da segunda ou o demasiadamente preso ao particular da terceira.
Assim, a sua epistemologia histórica busca se distinguir menos pela crítica dos
programas historiográficos anteriores ou concorrentes que pelo tipo de
questões que decide enfrentar.
A causa que suscitou as investigações de Daston foi, muitas vezes, seu
espanto diante da ideia, bastante aceita e difundida, segundo a qual historicizar
equivaleria a relativizar, ou pior, a invalidar. De fato, as relações entre a
historicidade e a objetividade do conhecimento científico foram centrais para o
desenvolvimento do “estilo epistemológico-histórico”2, em suas diversas
filiações. Aliás, aqueles que acreditam que a epistemologia histórica feita no
Max-Planck-Institut für Wissenschaftsgeschichte não é apenas diferente, mas
indiferente ou hostil àquela gestada no Institut d’histoire des sciences et des
techniques, em Paris, podem ficar um tanto desconcertados diante das
referências que Daston faz a Gaston Bachelard no artigo sobre a “economia
moral das ciências”, aqui publicado. Porém, enquanto um autor como
Canguilhem explorou o problema da historicidade e da objetividade por meio
de investigações altamente especializadas nos domínios da história das
ciências da vida e da história da medicina, Daston voltou sua atenção para
temas que podem ser mais facilmente compartilhados por historiadores das
ciências naturais e das ciências humanas, como as condições sociais e as
emoções cognitivas necessárias para o exercício de certos tipos de
racionalidade.
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Sua epistemologia histórica reabilita o recurso da comparação entre
ciências que já não eram mais comparadas devido ao seu alto grau de
especialização. Sem ignorar essa provavelmente irreversível especialização,
um dos méritos da abordagem de Daston para a história das ciências é o de
possibilitar um programa de trabalho comum, capaz de reunir pesquisadores
vindos de diferentes áreas, interessado pelas categorias, conceitos e práticas
fundamentais para a ciência moderna. O livro Biographies of scientific objects –
organizado por Daston a partir dos textos apresentados em um simpósio sobre
“o vir a ser e a morte dos objetos científicos”, realizado no Instituto Max Planck
para a História da Ciência, em 1994 – é um dos melhores exemplos da
fecundidade desta abordagem. Entre os autores e objetos biografados,
encontramos tanto Hans-Jörg Rheinberger, com seu estudo sobre as partículas
citoplasmáticas enquanto objeto constituído na junção da citomorfologia, da
bioquímica e da biologia molecular, quanto Marshall Sahlins e o estudo da
cultura como principal objeto da antropologia.
Parece-nos que uma quantidade não-negligenciável de historiadores
chegou à história das ciências por meio da teoria da história, e vice-versa. Não
é difícil entender a sedução que um campo exerce sobre o outro. A história das
ciências fomentou um bom número de problemas na teoria e na metodologia
da história, como a relação entre ideias, discursos e contextos, ou as questões
ligadas à temporalidade e à escrita da história – pensemos, por exemplo, no
debordamento de certos debates para fora de seu campo original de
elaboração, como internalismo vs. externalismo, anacronismo vs. história do
presente e continuidade vs. descontinuidade, e também de certas noções, como
“ruptura” e, claro, “paradigma”. Num movimento de aproximação mais
profundo, talvez até estrutural, a partir dos anos 80, os historiadores buscaram
operar, relativamente tarde se comparado aos historiadores das ciências, uma
aproximação entre epistemologia e historiografia, como se quisessem realizar
uma espécie de conjunção entre os dois termos, visando, nas palavras de
François Hartog, “não uma epistemologia ‘dura’ (muito distante), nem uma
história da história ‘plana’ (muito internalista), mas uma abordagem atenta aos
conceitos e aos contextos, às noções e às circunstâncias, sempre mais
cuidadosa com suas articulações, preocupada com a cognição e com a
historicização”. Em resumo, Hartog continua, “algo como uma epistemologia
histórica ou uma historiografia epistemológica” 3. Vale lembrar que o texto
programático “Uma história da objetividade científica”, aqui publicado, no qual
Daston apresentou a epistemologia histórica, foi originalmente preparado para
um colóquio dirigido por Hartog, no ano de 1996.
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Foi inevitável que uma pergunta viesse importunar a imaginação
daqueles nossos colegas formados na conjunção entre teoria da história e
história da ciência: é possível escrever a história da história como história da
ciência? Caso sim, qual tipo de história da ciência? Verdade seja dita, sem a
intenção de provocar, essas perguntas são feitas em voz alta mais
frequentemente nos simpósios da SBHC que nos da ANPUH4... Fato é que, assim
como os historiadores da astronomia, da biologia ou da medicina, os
historiadores da história foram atraídos pela história intelectual. Seguindo por
esse caminho, encontraram nos trabalhos de Daston um grande número de
temas que poderiam ser utilizados na exploração dos diferentes correlatos da
ideia de “história como ciência”: a imparcialidade como virtude epistêmica dos
historiadores do século XVIII; a economia moral da revolução metodológica da
historiografia no século XIX; a persona do historiador; a biografia do tempo
como objeto da história etc. Mas não resta dúvida de que a principal
contribuição dos trabalhos de Lorraine Daston para os historiadores da
história é a confirmação da possibilidade de uma epistemologia em ato, ou seja,
não um tribunal que determinará se a história atingiu ou não a objetividade e,
caso sim, quando e como, mas uma “exploração histórica das múltiplas
significações e manifestações da objetividade” em história. Afinal, para citar
Hartog mais uma vez, os historiadores aprenderam que “a objetividade não é
separável das formas de objetivação” 5.
Quem seguir os textos dessa coletânea em ordem cronológica não ficará
surpreso quando, chegando no último artigo, encontrar um chamado à
intensificação dos esforços pela construção de uma “história comparada das
humanidades” e de uma “epistemologia das humanidades”. Os elementos para
essa história e para essa epistemologia foram dispostos nos textos anteriores,
e, de fato, já haviam sido notados por certos historiadores da história mais
familiarizados com a obra de Lorraine Daston. No Brasil, essa aproximação
ainda é um pouco tímida, com notáveis exceções, e foi muitas vezes realizada
de modo indireto, por exemplo, através dos trabalhos de Herman Paul. O
resultado mais visível dessa recepção parcial ou mediada é o fato de que certos
objetos, digamos, historiográficos foram retidos das linhas de investigação
abertas por Daston, mas não como parte de uma epistemologia histórica das
ciências humanas ou de uma “historiografia epistemológica”. Os historiadores
interessados em promover a reintegração encontrarão nessa coletânea não
apenas palavras de incentivo, mas verdadeiras contribuições.
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