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Uma das questões centrais propostas pelos teóricos das ciências sociais pode
ser formulada do seguinte modo: como as sociedades modernas – produtos
da industrialização, da divisão do trabalho e do capitalismo – recriaram for-
mas de solidariedade equivalentes às relações outrora existentes em pequenas
comunidades tradicionais? Nas respostas a essa questão, detectam-se elemen-
tos de natureza muito diversa. Inventariá-los implica reconhecer a falta de
homogeneidade da própria teoria social ao longo dos séculos xix e xx. Em
primeiro lugar, alguns pensadores do social encontraram na religião, nas suas
formas mais elementares e não só, essa espécie de elo que as sociedades e os
indivíduos necessitam para funcionarem de modo integrado. Se aceitarmos
como válida uma resposta desse tipo, valorizadora do carisma e de modos
de união investidos de uma intensidade exemplar, temos de reconhecer
que ela implica uma crítica a ideias correntes acerca da secularização e da
laicização do mundo moderno. Em segundo lugar, será possível identificar
elementos relativos a uma mudança de escala, situados no contraste entre o
micro e o macro, com implicações de vária ordem sobretudo na orientação
da pesquisa. A esse respeito, foram muitas as solicitações que levaram à des-
coberta da pequena escala e à sua escolha como uma espécie de laboratório
de análise das relações concretas por excelência, tudo isso porventura em
reação às relações sociais estabelecidas em grande escala. Em terceiro lugar,
haverá que isolar, no interior das respostas mais reativas à referida questão,
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Peru, Brasil, Cuba, Indonésia e Índia (cf. Mariátegui, [1928] 1981; Freyre,
1933; Ortiz, [1940] 2002; Leur, 1955; Boxer, 1979; Blussé e Gaastra, 1998;
Panikkar, 1953).
Na concorrência com o trabalho dos historiadores, romancistas e ensaístas
representaram, configuraram ou imaginaram a nação. No caso português,
a geração de 1870, tendo à cabeça as obras de Eça e Antero – dois autores
obcecados com o atraso ou a decadência –, diversificou as linguagens capazes
de identificar a nação e o povo. Por exemplo, Adolfo Coelho explorou a
filologia e a etnografia, disciplinas às quais Teófilo Braga pretendeu somar
a da história da literatura, entendida como um grande reportório de textos
definidores do cânone nacional (cf. Matos, 1998; Leal, 2006). A partir de
então, uma das questões que se colocou consistiu precisamente no grau de
autonomia conferido a qualquer um desses gêneros ou disciplinas. Fernando
Pessoa, por exemplo, deixou inédita vasta obra ensaística sobre Portugal
(cf. Pessoa, 1928, 1978a, 1978b, pp. 324-325, 1980, 2011). Mas foi em
António Sérgio que o ensaio português atingiu o seu auge, ao menos na
intervenção e formação de um espaço público. Ao nosso lado, Ortega y
Gasset, num ensaio intitulado España invertebrada (1922), ousou responder
à referida questão colocada pela teoria social clássica. Mas fê-lo a partir dos
conhecimentos concretos que tinha acerca da questão nacional na Espanha.
Mostrou-se, então, um crítico feroz de uma continuidade, mais ou menos
evolutiva, das formas do viver associado: “A ideia de que a família é a célula
social e o Estado uma espécie de família que engordou é um obstáculo para
o progresso da ciência histórica, da sociologia, da política e de muitas ou-
tras coisas” (Ortega y Gasset, 1922, p. 29). Depois, tendo no horizonte os
casos da Catalunha e do País Basco, afirmou de forma peremptória: “Não;
uma incorporação histórica não é a dilatação de um núcleo inicial” [“No;
incorporación histórica no es dilatación de un núcleo inicial”] (Idem, p. 30).
Ficavam, assim, estabelecidas as bases a partir das quais era possível pensar
uma Espanha invertebrada, composta por várias nações.
Nos limites de uma abordagem que não pretende ser mais do que um
inventário das formas a partir das quais a nação foi pensada, será necessário
incluir os ensaios de György Lukács sobre a teoria da novela (cf. [1916]
1978) ou o romance histórico (cf. [1937] 1981); e destacar, no interior de
um campo de investigações prolixas, os estudos sobre o poder performativo
das narrativas e sobre a memória de Paul Ricoeur (Temps et récit, 3 vols.,
1983-1985). Quando, por centramento nas questões analíticas da linguagem
ou na constituição da linguística em ciência universal, as humanidades e
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ideológica exigiu, aparentemente com sucesso, que seus militantes desejassem tanto
matar como morrer pela sua própria nação (1993, p. 212).
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mento que Anderson acumulou do Sudeste Asiático, nem tampouco de uma de A. D. Smith, Leah Green-
feld ou Josep Llobera, mas sim
revisão geral dos preceitos culturais que defendera nas duas décadas anterio- às escolas primordialistas (nas
res. Como ele próprio reconhece, seu irmão Perry Anderson foi importante suas variantes, do “nacionalismo
orgânico” à sociobiologia de
no processo, ao questionar sua tendência de afirmar a excepcionalidade do Pierre van den Berghe, passando
particular e ao confrontar o argumento da “amálgama única” que constituiria pelas contribuições de Edward
Shils e Clifford Geertz, com seus
a cultura javanesa, presente nos seus trabalhos iniciais. Anos mais tarde, a laços primordiais, resistentes às
“tradição” javanesa passava a ser, no essencial, uma “invenção” do século forças da modernização política
e sociocultural) e perenialistas (de
xx, que precisava, para além disso, ser comparada com casos semelhantes.
Harold Isaacs e de Joshua Fish-
Foi o que sucedeu tanto em Comunidades imaginadas como em The spectre man a Walker Connor). Para uma
discussão sobre as escolas primor-
of comparisons e em Under three flags (cf. B. Anderson, 1990a, pp. 9-10,
dialistas e perenialistas ver, entre
1998, 2005a). muitos outros, Smith (1998,
Quer ao abordar os movimentos nacionalistas europeus, quer ao refletir principalmente pp. 145-169).
Em geral, ver Smith (1986, 1991,
sobre a imaginação da nação, com base nos projetos políticos da América 1999, 2000, 2003, 2004, 2008);
Latina e do Sudeste Asiático na era das descolonizações, a originalidade de Greenfeld (1992, 2001, 2006);
Llobera (1994, 2004); Berghe
Anderson parece estar no seu duplo distanciamento crítico em relação, por (1978, 1981); Shils (1957);
um lado, às inúmeras mitologias nacionais, a começar pelas menos con- Geertz (1973); Isaacs (1975);
Fishman (1972); Connor (1994).
vincentes versões da tese da naturalidade e da antiguidade das nações6; e,
7. Sobre a obra de B. Anderson
por outro, às doutrinas que diabolizam sua existência histórica e projeção e o caso português, ver Sobral
política7. Como afirmou Anderson, em Delhi, a 17 de fevereiro de 2012, (2003).
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sentido ontológico e existencial às categorias produzidas pela classificação: com a adição de alguns textos
importantes, como o de Ernesto
etnias, raças, culturas, costumes, crenças de vária ordem etc.), assim como as Laclau, “On imagined communi-
de redução do espaço político e da nação a logotipos (logoization) por via dos ties” (pp. 21-28), e um de An-
derson, que responde às críticas
mapas e da museificação das genealogias da identidade nacional – processos (“Responses”, pp. 225-246). Ver
que Anderson explora no capítulo “Censo, mapa, museu”, inserido apenas ainda B. Anderson (2004).
Este é um dos argumentos centrais que Anderson desenvolve em The oferecida pelo sétimo capítulo
(“The last wave”) e, mais em
spectre of comparisons e em Under three flags, aprofundando algumas de suas particular, à não inclusão de uma
próprias categorias e análises, como sucede com a distinção entre modali- dimensão periférica na análise da
sua formação, ou seja, ao obscu-
dades, bound e unbound, de “serialização”: as primeiras promovidas pelas recimento do papel do Estado
práticas de regulação do Estado (por exemplo os recenseamentos e os sistemas colonial no condicionamento da
sua manifestação histórica. Adi-
eleitorais modernos), práticas que correspondem a lógicas políticas de repro- cionou assim o capítulo “Census,
dução social, econômica e étnica; as segundas emergentes das variadas formas map, museum”. A segunda dizia
respeito à inexistência de uma
populares, vindas de baixo, associadas ao mercado do impresso, o capitalismo
explicação sólida do modo como
impresso, dos jornais aos romances, entre outras tecnologias da representação as novas nações imaginavam a sua
ancestralidade, por isso adicionou
(cf. Eisenstein, 1968, 1979)12. Ambas são fundamentais para a construção de
o capítulo “Memory and forget-
uma “imagem da comunhão” (a concepção da “profunda e horizontal cama- ting” (cf. B. Anderson, [1983]
radagem” que oblitera evidentes desigualdades de pertença e propriedade) que 1991, pp. xiii-xiv).
preside à imaginação da comunidade política que é a nação (que substitui, ou 12. A noção de “capitalismo
impresso” é devedora da obra
se sobrepõe, a outras formas de imaginação, da comunidade religiosa ao reino de Lucien Febvre e Henri-Jean
dinástico), como o próprio Anderson determina em Comunidades imaginadas Martin (1958).
(cf. B. Anderson, 1983, pp. 15-16, 1990c, 1998, pp. 29-45). Contudo, para
o autor, as primeiras formas de “serialização” constituem os instrumentos
por excelência das políticas étnicas promovidas pelas instâncias oficiais, en-
quanto as segundas correspondem a formas de ação política revolucionárias,
patrióticas e nacionalistas, e possuem um potencial emancipador relevante.
Ora, essa distinção entre política do nacionalismo e política da etnicidade
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Resumo
Abstract
The article examines Benedict Anderson’s contribution to studies of the nation and
nationalism in the social and human sciences, taking as its pretext the reissue in Por-
tuguese of his most well-known work, Imagined Communities. The text begins with
a brief genealogical survey of studies of the nation and nationalism, which seeks to
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emphasize and question the relative disinterest that classical social theories devote to
the idea of the nation and its specific forms of political, economic and sociocultural
incorporation. Next it turns to the author’s intellectual and civic career, contextualizing
his interests and his analytic propositions, specifically in terms of the imagination of
national identities and communities and their organization into nationalist movements,
but also the notions of power and the virtualities and limits of the comparative method,
and the role of ideas and cultural phenomena. Finally the text concludes with a critical
and reflective exploration of the notions of imagination and community in Anderson’s
work, connecting their meanings, uses and appropriations with the historical, academic
and political contexts of his intellectual career.
Keywords: Nation and nationalism; national identity; Imagined communities; Compara-
tive method; Anticolonialism.