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2004
DOSSIÊ MÍDIA E POLÍTICA
MÍDIA E DEMOCRACIA:
FALSAS CONFLUÊNCIAS1
Francisco C. P. Fonseca
RESUMO
Este trabalho pretende demonstrar as falsas confluências do papel da mídia em relação à democracia e às
teorias políticas acerca da democracia. Para tanto, procura-se refletir criticamente sobre os argumentos:
a) que naturalizam o fato de a notícia ser uma mercadoria, b) voltados aos (supostos) fins públicos da
mídia, embora seus órgãos sejam em larga medida privados e c) que vinculam esses órgãos aos valores
liberal-democráticos. Assim, o texto procura demonstrar ao mesmo tempo a ausência e a necessidade de
anteparos – consubstanciados na teoria dos freios e contrapesos – aos poderes constituídos, sobretudo da
mídia; apontar o paradoxo da intermediação entre as esferas pública e privada realizada pela mídia e
questionar até que ponto a mídia realiza a idéia de que quem controla deve ser controlado, sobretudo em
um mundo em que as comunicações ampliaram sua atuação para dimensões planetárias. Conclui-se que a
democracia somente poderá efetivar-se caso haja controles democráticos sobretudo sobre a mídia, assim
como urge criarem-se, em escalas nacional e internacional, meios públicos de informação: nem privados
nem estatais.
PALAVRAS-CHAVE: mídia; democracia; teoria da democracia; controles democráticos.
Recebido em 1 de novembro de 2003 Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 22, p. 13-24, jun. 2004
Aprovado em 8 de maio de 2004
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cráticos a um poder cada vez mais sem controle produção de informação. O poder da mídia implica,
– o da mídia, desde há muito considerado um portanto, um instável equilíbrio entre: a) formar
quarto poder –, que, além do mais, torna-se ainda opinião, b) receber as influências de seus consu-
mais complexo em razão das novas tecnologias midores (leitores, ouvintes, telespectadores,
informacionais que alargam a esfera pública (a internautas, entre outros) e sobretudo de toda a
“sociedade global”), ao mesmo tempo em que gama de fornecedores e anunciantes, além do
ampliam o poder da mídia, pois tornado próprio Estado (em virtude de questões tributárias
transnacional. e regulatórias), c) auferir lucro e d) atuar como
aparelho privado de hegemonia3. A inversão de
II. O PAPEL EMPRESARIAL DA MÍDIA E O CA-
capital fixo apontada por Weber é, dessa forma,
RÁTER MERCANTIL DA NOTÍCIA
um elemento-chave nesse equilíbrio.
Os órgãos da mídia, quando privados, são
Observado esse elemento central, pode-se dis-
empresas capitalistas de comunicação 2, que,
cutir o poder da mídia, dada a renitente afirmação,
portanto, objetivam o lucro. Segundo Max Weber,
notadamente por parte de seus proprietários, da
deve-se observar a relação entre capital e função
legitimidade do caráter mercantil da notícia, assim
ideológica, pois “Se ha dicho que el obvio cambio
como o perfilhamento dos órgãos de comunicação
de opinión de determinados diarios franceses [...]
às teses republicanas (liberal-democráticas). A
puede explicarse simplemente por el hecho de que
notícia, portanto, tomada per se e enquanto
el importante capital invertido de forma fija por
“processo produtivo”, é considerada similar a qual-
estas modernas empresas periodísticas justifica
quer outra mercadoria – como os produtos agrí-
el aumento de su nerviosismo, y las hace depender
colas, industriais e serviços –, tornando-se
del público, al detectarse cualquier inquietud entre
irrelevante o fato de ser “imaterial”. Como dissemos
éste, que suele traducirse en la anulación de
acima, aceitaremos essa premissa com vistas a
pedidos, resultando esta situación comercialmente
analisar suas conseqüências.
insoportable. [...]
O aspecto crucial a observar refere-se ao fato
[...] Debemos preguntarnos: qué significa el
de que a notícia como mercadoria possui uma
desarrollo capitalista en el interior de la propia
especificidade ausente dos outros tipos de merca-
prensa para la posición sociológica de la prensa
doria. Afinal, sua utilização pode causar danos a
en general, para el papel que desempeña en la
pessoas, instituições, grupos sociais e sociedades,
formación de la opinión pública?” (WEBER, 1992,
na medida em que, no limite, as notícias possuem
p. 255; grifos no original).
o poder de fabricar e distorcer imagens e versões
Assim, o papel mercantil da mídia torna-se a respeito de acontecimentos e fenômenos, simulta-
distinto de seus similares de outros setores eco- neamente à sua função de informar. É claro que
nômicos, pois, não bastasse o poder de modelar a não se trata de considerar o processo de informar
opinião, sua mercadoria – a notícia – está sujeita a como neutro, pois ele próprio submete-se a um
variáveis mais complexas e sutis do que as exis- conjunto de variáveis (como a visão do consu-
tentes nos produtos comuns. A necessidade de midor de notícias, das testemunhas e das fontes,
altos investimentos em capital fixo, sobretudo em assim como o próprio “processo produtivo” das
virtude das novas tecnologias informacionais, faz notícias – intrinsecamente complexo). Mas entre
que uma eventual perda de leitores e anunciantes essa impossibilidade intrínseca e os interesses
cause prejuízos nessa atividade “de risco” que é a políticos, econômicos e sociais dos proprietários
privados dos meios de comunicação e suas even-
2 Na verdade, sobretudo a partir da década de 1990 as em- tuais bases de representação – enfatize-se:
presas de comunicação cada vez mais ampliaram o seu es- interesses aumentados pela ausência de controles
pectro de atuação, por meio de fusões e aquisições, e trans-
formaram-se em empresas de comunicação e entretenimen-
to, com conseqüências importantíssimas no que tange à 3 Sobretudo a grande imprensa (notadamente a impressa)
chamada “espetacularização” da política. Mais ainda, de atua como aparelho privado de hegemonia. Apliquei essa
modo crescente essas empresas vêm diversificando sua atua- categoria analítica (que convive com o caráter empresarial
ção nos mais distintos mercados, tanto em âmbito local co- da mídia) aos principais jornais brasileiros em minha tese
mo internacional, o que implica uma intrincada gama de in- de doutoramento intitulada Divulgadores e Vulgarizadores:
teresses empresariais (comerciais e financeiros) que se entre- a grande imprensa e a constituição da hegemonia
cruzam, levando ao paroxismo o caráter mercantil da mídia. ultraliberal no Brasil (FONSECA, 2001).
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mercado” coube a pecha de “neolíticos” por e do Estado não ser onisciente nem onipresente,
estarem dissonantes com os ventos do neolibe- não haveria aqui, de certa forma, em perspectiva
ralismo5. Trata-se, portanto, de hegemonia, blo- histórica, um certo consenso forjado8 por uma
queadora, contudo, de outras formas de pensar e, sociedade efetivamente não “poliárquica”?
como tal, antidemocrática. Note-se que a unici-
Ocorre que a grande mídia, concebida como
dade de pensamento contraria a tradição que se
ator político-ideológico, deve ser compreendida
requer liberal, pois essa tradição é afirmadora do
“[...] fundamentalmente como instrumento de
pluralismo que, em rigor, constitui o cerne da
manipulação de interesses e de intervenção na vida
preocupação liberal em seu veio político.
social” (CAPELATO & PRADO, 1980, p. XIX).
Por outro lado, não podemos nos esquecer de Afinal, a mídia representa, por meio de seus
que, no século XX, possuir um meio de comu- órgãos, uma das instituições mais eficazes no que
nicação, sobretudo com abrangência razoável, tange à inculcação de idéias em relação a grupos
requer imensos recursos econômicos, tornando- estrategicamente reprodutores de opinião –
se proibitivo à maioria absoluta dos grupos sociais, constituídos pelos estratos médios e superiores
aumentando assim o temor dos liberais demo- da hierarquia social brasileira –, caracterizando-
cráticos. se seus órgãos como pólos de poder.
Portanto, é paradoxal observar que justamente Assim, uma vez mais a questão apresenta-se:
as empresas de comunicação sejam as menos quais mecanismos controlam o quarto poder,
controladas (em termos democráticos, reitere-se) sobretudo em um país como o Brasil e mais ainda
em relação aos outros tipos de capital. Afinal, obter em um mundo em que a esfera pública vem-se
a hegemonia sempre foi o objetivo dos grupos ampliando em escala planetária, além do poder dos
detentores das diversas formas de poder nas oligopólios comunicacionais9 ?
sociedades em que o Estado tornou-se “am-
pliado”6 . Mais ainda: uma das mais fortes críticas
desferidas aos regimes socialistas dizia respeito
justamente à impossibilidade do dissenso, em razão maior democratização do acesso à informação. Aliás, dificil-
do controle estatal dos meios de comunicação. mente o mercado per se possui essa função. Quanto ao po-
Ou, em outras palavras, do pensamento único, na der Judiciário, dado inexistir, na prática, uma lei de imprensa
no Brasil, à Justiça cabe julgar os crimes específicos da
esteira da unicidade partidária e do monopólio imprensa por meio das leis gerais dos crimes contra a honra,
produtivo por parte do Estado, supressor das o que faz que, por exemplo, o direito de resposta, crucial à
iniciativas particulares, entre as quais a liberdade democracia e à própria honra dos atingidos, seja extrema-
de imprensa. mente frágil no Brasil. Embora haja uma Lei de Imprensa,
que data de 9 de fevereiro de 1969, Lei n. 5 520, ela reflete
Ora, a situação não seria semelhante em países, o arcabouço jurídico do Ato Institucional n. 5; por isso, não
como o Brasil, em que há verdadeiros monopólios é utilizada na prática, o que faz que o julgamento dos “crimes
e oligopólios da comunicação, formais e informais, de opinião” submetam-se aos códigos Civil e Penal, reco-
sem que o Estado e a sociedade possuam instru- nhecidamente insuficientes quanto à punição dos “abusos
da opinião”, sobretudo por parte dos proprietários dos
mentos eficazes para contê-los, que não o jogo
meios de comunicação. Não bastasse isso, a lei e o aparato
do mercado e a Justiça7 , sabidamente insuficien- judiciário são condições necessárias mas jamais suficientes
tes? Apesar de a existência do multipartidarismo, para a democratização dos meios de comunicação, dada sua
de diversos proprietários de meios de comunicação necessidade de controles sociais.
8 “O consenso forjado” é, aliás, o título que dei ao meu
5 Observei, em minha tese de doutoramento (FONSECA, livro sobre o papel da grande imprensa perante a formação
da agenda ultraliberal no Brasil, a ser publicado em setembro
2001), como a grande imprensa brasileira veiculou a agenda
de 2004 pela editora Arquivo do Estado, São Paulo.
ultraliberal no país, estigmatizando vigorosamente todos
que se opusessem seja à própria agenda seja à forma de 9 Para diversos autores, o mundo passaria por uma
implementá-la. verdadeira compressão do espaço e do tempo, que se confi-
6 No sentido conceituado por Antonio Gramsci de “Estado guraria como uma das características da contemporaneidade.
Em outras palavras, as informações são cada vez mais trans-
ampliado”, isto é, “coerção + consenso”.
mitidas em tempo real – em linha –, encurtando brutalmente
7 Em um mercado tão pouco competitivo como o brasileiro, o tempo de sua “geração” assim como, especialmente, de
sobretudo no setor de periódicos e de emissoras de televisão, sua propagação (transmissão) em escala planetária. Dessa
o mercado certamente não é o locus central com vistas à forma, nesse mundo encurtado por satélites, fibras óticas,
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III. O PAPEL PRIVADO DA MÍDIA VERSUS SUA Afinal, segundo esse conceito de liberdade, o
ATUAÇÃO PÚBLICA espaço privado, que seria garantido fundamental-
mente por um Estado de Direito, possibilitaria ao
Para além do caráter mercantil da notícia, em
indivíduo, tornado igual a seus semelhantes perante
perspectiva teórica a distinção entre a esfera pú-
a lei, poder fazer tudo o que quisesse sem ser
blica e a esfera privada – conceitos por excelência
impedido, assim como deixar de fazê-lo sem ser
controversos – encontrou um verdadeiro divisor
obrigado a agir em um sentido que não desejasse
de águas com as revoluções burguesas, sobretudo
(em ambos os casos, desde que não infringisse
a Revolução Francesa, pois inaugurou um novo
direitos alheios). Para tanto, a condição que permite
conceito de liberdade, agora identificado com o
ambas as possibilidades refere-se justamente à linha
mundo privado – por meio, inicialmente, do mer-
limítrofe que separa o público do privado; ou seja,
cado – e politologicamente definido como perten-
refere-se à existência de direitos definidos aprio-
cente ao caráter negativo da idéia de liberdade. O
risticamente, embora de modo não estático, na
liberalismo clássico do século XIX afirmou-o enfa-
medida em que cambiáveis historicamente, no
ticamente, encontrando nas figuras de Benjamin
sentido de configurar o que é público, portanto
Constant, John Stuart Mill e Alexis de Tocqueville,
pertencente aos interesses comuns (mas não ne-
entre outros (mesmo que com distinções impor-
cessariamente iguais) de todos, e o que diz respeito
tantes entre eles), expressões máximas de seu
apenas às individualidades11. Como observado por
desenvolvimento. Esses autores representam a
Bobbio, em busca de uma compreensão da política
tradição que melhor expressou os dilemas – de
moderna, cotejada à antiga, à guisa de Benjamin
um ponto de vista liberal – acerca do que conte-
Constant: “O tema fundamental da Filosofia
riam ambas as esferas10.
Política moderna é o tema dos limites, umas vezes
mais restritos, outras vezes mais amplos conforme
os autores e as escolas, do Estado como organiza-
ção da esfera política, seja em relação à sociedade
tevês a cabo, agências noticiosas, jornais e revistas impressos
simultaneamente em diversos países (em inglês, língua cada
religiosa, seja em relação à sociedade civil (enten-
vez mais falada e mesmo traduzida para as línguas nativas); dida como sociedade burguesa ou dos privados)”
nesse mundo a mídia vem crescentemente extrapolando (BOBBIO, 1986, p. 960).
mais ainda sua influência, pois estendida agora ao planeta.
É claro que não falamos de qualquer mídia, isto é, das que Ora, no século XIX, o referido Constant, em
se encontram na periferia do sistema. A grande mídia, aquela sua famosa obra acerca da Liberdade dos antigos
que influencia suas congêneres nacionais e em conseqüência comparada à dos modernos, mostrou-nos o sentido
a população mundial, encontra-se na sede do capitalismo privatista da liberdade para o homem moderno
internacional. Assim, se a esfera pública tornou-se cada posterior às revoluções burguesas – esse mesmo
vez mais global – a ponto de podermos falar de uma agenda
privatismo, inclusive, faria degenerar a esfera
planetária, que envolve temas como capital financeiro,
cadeia produtiva, miséria, migração, meio ambiente, direitos pública se extremado12. Apesar dessa ressalva,
humanos, armas nucleares, drogas e inúmeros outros – e, Constant não só diagnosticou o significado da
se, além disso, a mídia procura, a partir de interesses liberdade moderna como o defendeu: para ele, ao
privados, traduzir e intermediar relações sociais na esfera
pública, qual o controle democrático que os cidadãos
comuns, agora em dimensão internacional, possuem sobre
ela? Se a questão já era complexa em escala nacional, torna- 11 O imaginário popular referenda essa distinção conceitual
se ainda mais problemática quando pensamos que o “mundo por meio da expressão: “o meu direito termina quando
está menor” na medida em que certas fronteiras estão sendo começa o seu”.
diluídas. Portanto, a compressão espaço-temporal implica 12 O privatismo, sobretudo a partir da segunda metade do
o alargamento da esfera pública, pois cada vez menos
exclusivamente nacional, devido à crescente século XX, faz do homem uma espécie de “homoshopping”
“internacionalização” (em sentido amplo). (com o perdão do neologismo), isto é, aquele que se concebe
como homem por meio de tudo o que cerca o universo do
10 É interessante observar que, no século XX, autores
consumo, como a propaganda e a cultura do descartável,
ultraliberais, como Von Mises, Milton Friedman e sobretudo culminando naquilo que Rousseau, no século XVIII, antevia:
Friedrich Von Hayek, entre outros, superaram esse dilema a transformação do homem em um ser que é o que possui.
ao associar liberdade a privatismo. Em outras palavras, a Por fim, cabe lembrar que, no século XIX, o liberalismo
esfera privada e, nela, o mercado, seriam sinônimos de afirmou o individualismo possessivo como forma de
liberdade. Daí a conhecida denominação de “liberismo” expressar a confiança sem limites na idéia de apropriação e
conferida a esta corrente. de posse capitalistas.
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cidadão caberia rogar “[...] à autoridade de Segundo Mill, haveria (em relação aos mórmons)
permanecer em seus limites. Que ela se limite a uma: “[...] linguagem de manifesta perseguição
ser justa; nós nos encarregamos de ser felizes” usada pela imprensa deste país quando chamada
(CONSTANT, 1982, p. 24). a noticiar o notável fenômeno dos mormonismo”
(idem, p. 161)15.
Se a separação entre as esferas pública e
privada, por um lado, e o privatismo, por outro, Já Tocqueville, no clássico Da democracia na
marcam o mundo moderno, resultando na América 16 , notabilizou o temor de que as
separação entre os poderes e impedindo com isso sociedades, mesmo as institucionalmente
a tirania do poder do Estado, autores como Stuart democráticas, produzissem “tiranias da maioria”.
Mill e Tocqueville temeram um outro tipo de tirania. Para ele, nos EUA, a “[...] maioria [...] exerce
Essa tirania não proviria mais do Estado e sim da uma autoridade real prodigiosa e um poder de
própria sociedade, na medida em que o poder da opinião quase tão grande; não existem obstáculos
maioria, sobretudo da opinião majoritária, igual- que possam impedir, ou mesmo retardar, o seu
mente resultaria em tirania, a tirania da maioria, progresso, de modo a fazê-lo atender às queixas
com efeitos semelhantes à historicamente temida daqueles que ela esmaga no seu caminho. Esse
tirania estatal, tão cara ao pensamento republicano estado de coisas é em si mesmo prejudicial e
e ao pensamento liberal13. perigoso para o futuro [...]” (TOCQUEVILLE,
1969, p. 132-133)17. Essas palavras soam, hoje,
Stuart Mill, em seu clássico Sobre a liberdade,
proféticas!
ao relatar a sanha persecutória de caráter moralista
a comportamentos pouco usuais (como era o caso No que tange à expressão opinião pública,
da poligamia dos mórmons na Inglaterra do século referida diretamente por Mill e indiretamente por
XIX), temia os seus efeitos, pois, para ele, “[...] a Tocqueville, ela continua sendo utilizada abundan-
opinião de semelhante maioria, imposta como lei temente no debate público contemporâneo, sobre-
à minoria, em questões de conduta estritamente tudo pela grande imprensa escrita, que se coloca
individual, tanto pode ser certa como errada. como sua representante. Trata-se de um falso
Nesses casos, a opinião pública, na melhor hipó- conceito, como o próprio Mill apontara, pois:
tese, significa a opinião de algumas pessoas sobre a) há inúmeras interpretações conceituais, o que
o que é bom ou mau para outras pessoas” (MILL, faz desse conceito um verdadeiro campo minado,
1991, p. 149). tal a divergência quanto às suas premissas;
b) “opinião pública” para os grandes jornais brasi-
Essa assertiva certamente permanece válida,
leiros significa a “opinião” de seus leitores, isto é,
sobretudo no que tange à mídia que, por vezes,
cerca de 15 milhões de pessoas (em uma perspecti-
contribui para tal caráter persecutório, mesmo que
de maneira mais sofisticada no mundo contem-
porâneo14, o que coloca em xeque o pluralismo.
13 É interessante observar que a novela literária contem- legítima. Já em escala internacional, o mesmo pode-se dizer
porânea, também adaptada ao cinema, mostra-nos dois em relação a países como Cuba e Líbia, a líderes como Fidel
exemplos paradigmáticos do controle totalitário. O primeiro, Castro e Hugo Chávez, entre outros, que, independen-
tornado um clássico, é o famoso 1984, típico do período temente de suas virtudes e defeitos, são estigmatizados
posterior à 2ª Guerra Mundial, em que o “Big Brother” liminarmente.
estatal tudo vê e controla. O segundo, contemporâneo, é o 15 Deve-se ressalvar, por outro lado, que a tradição marxista
Truman Show, em que uma criança, ainda no ventre da mãe, nega a existência de uma esfera pública, dado o caráter de
é comprada por um proprietário de uma rede de televisão, classes das sociedades capitalistas. Afinal, haveria uma
tornando sua vida um espetáculo visto 24 horas por teles- vinculação inescapável de cada indivíduo aos seus interesses
pectadores, vivida em uma cidade-estúdio em que o único de classe.
personagem real, Truman, é visto por todos por meio de
18 000 câmeras ocultas: o controle do capitalismo sobre a 16 Paradoxalmente, essa obra é a mais citada entre os
vida das pessoas é caricatural mas real nessa novela. políticos norte-americanos.
14 Basta observar qual a imagem que a mídia brasileira 17 Tocqueville também acreditava na proliferação de órgãos
como um todo faz do Movimento dos Trabalhadores Rurais de comunicação que, dessa forma, exerceriam socialmente
Sem-Terra, por exemplo, que, para além de seus erros e um controle mútuo. Essa idéia, contudo, parece não ter
problemas, expressa um problema real e uma demanda vigorado em nenhum lugar do mundo.
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também atuar em uma perspectiva pública, sempre namente, como se sabe, de caráter “democrático”
estarão presos os meios de comunicação privados e “republicano” das instituições20.
a interesses e compromissos privados e mercantis
Ora, reitere-se que a mídia, ao constituir-se
e, o que é essencial, desprovidos de controles
como um quarto poder extra-institucional –
efetivos por parte da sociedade e do Estado.
embora republicano –, foi paulatinamente reco-
IV. A MÍDIA E AS TEORIAS POLÍTICAS SOBRE nhecida como uma instituição política e sobretudo
A DEMOCRACIA como pressuposto à democracia, a ponto de a
adjetivação “democrática” só ser conferida a
Como não pretendemos traçar aqui um
sociedades em que a livre manifestação da opinião,
panorama amplo das teorias políticas sobre a
sobretudo por intermédio da mídia, exista. Tendo
democracia, e sim levantar um problema comum
em vista esses pressupostos, cabe novamente a
a elas, basta-nos realçar que essas teorias sorvem-
pergunta: quem controla o “quarto” poder?
se, em larga medida, de autores e experiências
Enfatize-se que tal indagação é legatária da tradição
históricos sintetizados em O federalista, assim
republicana, que, em rigor e como vimos, preo-
como em Stuart Mill e Tocqueville, como vimos.
cupava-se com “a fiscalização dos fiscais” e com
Por isso é que podemos compreender a famosa
“o controle dos controladores”. Trata-se, portanto,
sentença de Madison acerca da natureza humana,
de uma via de mão dupla.
que certamente pode, e deve, estender-se à mídia:
“Se os homens fossem anjos, não seria necessário Por seu turno, a constituição de uma sociedade
haver governo. Se os homens fossem governados poliárquica implica fundamentalmente a democrati-
por anjos, dispensar-se-iam os controles internos zação das instituições políticas, entre as quais a
e externos do governo. Ao constituir-se um gover- mídia tem presença obrigatória, pois, segundo Ro-
no [...], a grande dificuldade está em que se deve, bert Dahl, em Um prefácio à teoria democrática,
primeiro, habilitar o governante a controlar o uma das pré-condições às sociedades que se quei-
governado e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si ram democráticas – isto é, o topo da poliarquia –
mesmo. [...] Essa política de jogar com interesses é que “Todos os indivíduos devem possuir infor-
opostos e rivais [...] pode ser identificada ao longo mações idênticas sobre as alternativas” (que dispu-
de todo o sistema das relações humanas, tanto tam o poder, nos períodos eleitorais, por exemplo)
públicas como privadas” (MADISON, 1990, p. (DAHL, 1989, p. 73). No Brasil, essa condição
273). certamente é bastante tênue. O problema da demo-
cratização das instituições, sobretudo da mídia,
Essa desconfiança em relação à natureza
permanece portanto crucial às teorias sobre a de-
humana, tão bem demonstrada por Madison,
mocracia, embora seja desenvolvido de modo in-
como se sabe, não é nova na filosofia e na teoria
suficiente21 pelas teorias que se debruçam sobre
políticas. Afinal, desde Maquiavel e sobretudo
elas22.
desde Hobbes, o ceticismo quanto à solidariedade
entre os homens tornou-se marca registrada de Por fim, um tema central que move a Ciência
diversas correntes de pensamento, culminando Política contemporânea, mas perfeitamente
naquilo que o “espírito das leis” de Montesquieu e
a “teoria dos cheks and balances” de O federalista 20 A experiência contemporânea, embora incipiente, dos
sintetizaram como forma de controlar os homens
chamados “governos eletrônicos” é muito interessante
detentores de poder, seja o poder do Estado (mais quanto a novas possibilidades de controles democráticos –
visível), seja o poder da sociedade, por meio de embora também de riscos de concentração da informação –
grupos que se tornam majoritários e impõem-se, nos estados nacionais.
em boa medida, por suas opiniões. Em outras 21 Para uma posição distinta da nossa, sobretudo
palavras, se de um lado dever-se-ia controlar o relativamente às metamorfoses da democracia, cuja mídia
cidadão comum por meio das autoridades, de ocupa um papel diverso do que aqui consideramos, ver de
outro lado as autoridades igualmente deveriam ser Bernard Manin, entre outros textos desse autor: Manin
controladas, tanto por outros poderes – daí a (1997) e Przeworski, Stokes e Manin (1999).
famosa divisão entre os três poderes – quanto pelo 22 Essa questão foi discutida por Luís Felipe Miguel, para
próprio indivíduo. A isso se conceitua moder- quem “[...] uma teoria da democracia válida deve ser uma
ferramenta para a compreensão da arena política nas
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extensível ao problema do poder da mídia, refere- Media Watch e Le Monde Diplomatique23 , entre
se à questão da accountability. Termo de difícil inúmeros outros, não apenas se utilizam da inter-
tradução em termos políticos, implica por um lado nete como veículo de informação global como,
transparência e responsabilidade dos que detêm o principalmente, avaliam os grandes jornais,
poder e, por outro lado, a possibilidade de o poder revistas, agências noticiosas e emissoras de televi-
ser fiscalizado e sobretudo controlado. Ora, se são. Procuram demonstrar, assim, outros lados,
isso é verdade em relação aos três poderes outras vozes e outras interpretações dos fenô-
constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário), menos que tendem a ser retratados de maneira
por que não o deveria ser em relação ao poder da homogênea pelos grandes grupos de comunicação.
mídia e mesmo a outros pólos de poder, tais como Esses novos organismos estimulam o surgimento
o os militares, o capital, os cientistas, o Ministério de jornais e revistas, não vinculados a grandes
Público, entre inúmeros outros? grupos – é a situação, na grande imprensa brasilei-
ra, das revistas Carta Capital e Caros Amigos.
V. ALTERNATIVAS PARA CONTROLAR-SE
Tudo isso conflui para a idéia de que “um outro
DEMOCRATICAMENTE A MÍDIA
mundo é possível”, lema do Fórum Social Mundial,
Dado o inconteste poder da mídia, cujas conse- cujo tema da informação plural é fundante.
qüências os grupos, classes sociais, indivíduos,
No que tange ao âmbito político-legal dos
organizações, empresas e países sentem direta e
controles democráticos, pode-se citar, entre outras,
indiretamente, torna-se imperativo discutir quais
as iniciativas referentes à forma como as conces-
medidas – em termos políticos, econômicos e so-
sões de emissoras de rádio e televisão são efetua-
ciais – poderiam exercer um controle democrático
das, isto é, a necessidade de ampliar-se o escopo
sobre as organizações de comunicação, em escala
de participação da sociedade no sistema decisório,
nacional e também internacional.
sobretudo por meio do fortalecimento do recém-
Do ponto de vista da sociedade brasileira, as criado Conselho de Comunicação Social; a conces-
iniciativas já consolidadas do Observatório da são e mesmo o estímulo governamental em termos
Imprensa e mesmo a Revista Imprensa cumprem de crédito, que poderia ocorrer, às emissoras de
um importante papel fiscalizatório que, no entanto, rádio e televisão livres (comunitárias), que, no
representam ainda apenas uma condição neces- Brasil, foram abarcadas por grupos evangélicos
sária, mas não suficiente – deve-se considerar, em larga medida descompromissados com os
além do mais, a pequena abrangência dessas valores democráticos; o rigoroso impedimento da
iniciativas –, seja para a denúncia dos oligopólios, concentração acionária dos veículos de comuni-
seja para trazer à tona visões alternativas às da cação e a proibição de que um mesmo proprietário
grande imprensa, seja, especialmente, para o fran- possua diversas modalidades de meios de comu-
queamento ao dissenso. Já em escala global, a nicação, como existem em determinados países
tentativa de constituição de centros de informação europeus, entre inúmeras outras medidas.
independentes, tais como os sítios brasileiros
Em relação a iniciativas mais enfaticamente
Carta Maior e Ciranda, além dos internacionais
políticas, podemos citar como possível – dado
que são iniciativas abertas à inventividade – a
criação de conselhos pluralistas provindos da
sociedade, seja no Congresso Nacional, seja ainda
sociedades contemporâneas reais, isto é, sociedades de
em fóruns temáticos, mesmo que consultivos, e
classe, cindidas por profundas clivagens e desigualdades,
inseridas em ambiente transnacionalizado”; por outro lado, sobretudo nas emissoras de televisão e de rádio,
segundo o autor, “[...] o acesso à mídia impõe-se como um pois poderiam retirar dos proprietários dos meios
dos principais pontos de estrangulamento das democracias de comunicação “social” (como são chamados) o
contemporâneas – e, portanto, como um dos principais exclusivo poder de fazerem-se “ver e ouvir” em
desafios àqueles que se dispõem não apenas a compreender uma determinada sociedade. Mais ainda: a existên-
o funcionamento das sociedades democráticas, mas também
a aprimorá-lo” (MIGUEL, 2000, p. 67; grifos no original).
É interessante observar, por outro lado, que mesmo teorias
conservadoras acerca da democracia, tais como a chamada 23 Os endereços eletrônicos desses órgãos são, respecti-
“teoria econômica da democracia”, concedem espaço vamente: http://www.cartamaior.uol.com.br/; http://
privilegiado ao tema do acesso à informação (cf. DOWNS, carosamigos.terra.com.br/; http://www.cirandabrasil.net/;
1999). http://www.mediawatch.org/ e http://www.lemonde.fr/.
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MÍDIA E DEMOCRACIA: FALSAS CONFLUÊNCIAS
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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 22: 13-24 JUN. 2004
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