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A PSYCHÉ “MITO-LÓGICA”
E
A PSYCHÉ “LÓGICA”
Estudo apresentado à
Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo como
avaliação da disciplina de
História da Filosofia I, do
Curso de Pós-Graduação em
Filosofia.
Julho – 2000
ÍNDICE
Considerações introdutórias........................................................................................... 03
CONCLUSÃO............................................................................................................... 11
BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................... 11
CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS
Nascer e morrer são dois fatos que sempre intrigaram os homens. Todas as
culturas em todos os tempos o atestam por meio de rituais que envolvem esses dois
fatos, talvez o morrer com muito mais intensidade que o próprio nascer. Na cultura
grega os poemas homéricos atestam as dores e os cuidados que a vida proporciona. Para
os personagens homéricos a vida e a existência na terra são certamente um bem, mas
esta vida debaixo da luz do sol desaparece com a morte. Isto é um fato que não pode ser
contestado.
Se a morte é um dado certo, o que sucede depois dela é uma grande incógnita e é
precisamente esta incógnita que subjaz aos poemas homéricos e que o fazem dobrar-se
sobre a própria incógnita da vida e suas incertezas. É possível encontrar suficiente
material nos poemas homéricos sobre sua crença de que à morte “algo” subsiste e este
algo é denominado de psyché. Tanto é verdade que no dizer de E. Rhode 5, “(...)
certamente os deuses do Erebo não exerceriam seu império sobre seres que não
existem.” A psyché é um ser. Esta afirmação de que a psyché é um ser que subsiste à
morte nos permite analisá-la em dois momentos, seja no ser vivo ou depois de sua
morte. Começamos respondendo pela segunda pergunta.
Em diversas passagens Homero nos informa que as psychai, separadas dos seres
vivos, dirigem-se para o Hades, a casa dos mortos. As passagens que colhemos, nos dào
uma idéia que o Hades é um lugar, um lugar onde se encontram as psychai sem
nenhuma atividade:
5
E. RHODE. Psyche. Seelencult und Unsterblichkeitsclaube der Griechen. Traducción de Salvador
Fernándes Ramírez: Psiqué: el culto de las almas y la creencia en la inmortalidad entre los griegos;
vol. 1, Barcelona: Labor, 1973, p. 21.
6
“...kai ein Aidao domoisi yuc kai eidwlon, atar frene ouk eni pampan” – A tradução
inglesa diz: “...even in the house of Hades is the spirit and phanton somewhat, albeit the mind be not
anywise therein”. Note-se que “psyché” aparece traduzido como “spirit” (espírito) e “fhrenes” é traduzido
por “mind” (mente). Na casa de Hades (está) a psyché (estão as psychai) como imagem sem o movimento
das frenas (das membranas). ( Cf. HOMER, The Iliad. With an english translation by A. T. Murray; vol.
II. London: Willian Heinemann; Cambridge: Harward University Press, 1939, pp. 501-503).
essa noite, a gemer e a chorar, se manteve ao meu lado, dando
instruções minudentes de quanto fazer é preciso.” (Il, XXIII 100).7
Com a exceção da psyché de Tirésias que pode manter os sentidos intactos, todas
as demais psychai depois da morte dirigem-se ao Hades e lá permanecem como sombras
(Od. X 494). No Hades, depois que Odisseu fez as oferendas recomendadas por Circe,
aparece-lhe a psyché de Tirésias (Od. 492). As outras psychai esvoaçam quais sombras.
Entre estas sombras, Odisseu consegue identificar a psyché de sua mãe Antíclea, além
de outros amigos como Elpenor que lhe pede para completar seus funerais (Od. XI
57ss). Todas as demais psychai estão privadas de consciência (Od. XI 475). Na
descrição do Hades encontramos ainda adjetivos que o apresentam como lugar sombrio,
tenebroso (Il XV 251), de portas escuras (Il XI; XIV 456) ou ainda como um reino de
trevas espêssas (Il XXIII 19; 51; 179). As psychai permanecem no Hades como aéreas
sombras (Od XI 206-209), sem exercerem quaisquer atividades tais como pensar e saber
que são propriedades específicas do seres vivos (Od XI 218-224). Tirésias é a única
exceção no reino dos mortos, que pode conservar estas propriedades (Od X 368).
A psyché é imagem (eidwlon) que se parece com o ser vivo (Il XXIII 104). É
uma imagem que reproduz o contorno daquele que foi em vida (Od X 995; XI 207).
7
HOMERO. Ilíada; tradução de Carlos Alberto Nunes, 3.ª ed. São Paulo: Melhoramentos.
8
Cf. J.P. VERNANT. Mythe et pensée chez les Grecs (Mito e pensamento entre os gregos: estudos de
psicologia histórica); trad. de Haiganuch Sarian; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, pp. 303ss.
9
HOMERO. Odisséia. Trad. de Carlos Alberto Nunes, 3.ª ed. São Paulo Melhoramentos, 1960.
10
Aidao domou (cf. HOMER. The Odissey; with na english translation by A. T. Murray; vol 1,
London: William Heinemann; Cambridg: Harward University Press, 1938.
11
Cf. E. Rhode, Psiqué: el culto de las almas y la creencia en la inmortalidad entre los griegos, op. Cit,
p. 33ss: Rohde tece um comentário minucioso sobre os rituais fúnebres e as honras prestadas aos mortos
nas culturas primitivas. Sobre o ritual fúnebre de Pátroclo (um ritual provavelmente dedicado aos reis ou
pessoas famosas), Homero descreve os detalhes da noite de vigília, a cremação, o banquete fúnebre
oferecido aos amigos e jogos olímpicos em homenagem do morto.
Durante o funeral de Pátroclo, sua psyché aparece a Aquiles e lhe pede rápido funeral
para que a sua psyché possa juntar-se às imagens cansadas dos vivos:
“Com toda a pressa sepulta-me, para que no Hades ingresse, pois as imagens cansadas
dos vivos12, as almas, me enxotam, não permitindo que o rio atravesse para a elas juntar-
me”. (Il XXIII 71)
Quando falamos inicialmente que a psyché não perece com a morte do corpo;
que ela, no momento da morte separa-se do corpo e se dirige ao Hades, não estamos
querendo com isso afirmar a imortalidade da psyché. Em Homero a “imortalidade” não
pode ser identificada como permanência eterna, para todo o sempre. Semelhante
identificação é bem posterior aos poemas homéricos. Limitamo-nos a dizer que depois
da morte a psyché é um hálito que sai do corpo e vai para o Hades onde permanece
como sombra sem atividade alguma.
12
yucai, eidwla kamontwn. Veja-se HOMER, The Iliad. Vol. 2, Op. Cit. p. 498.
13
Os gregos acreditavam que em casos de devaneio ou exaustão, cansaço, a psyché havia abandonado o
corpo. Cf. E. Rhode. Psique: el culto de las almas..., Op. Cit. p. 26.
14
Idem., p. 25.
15
Sobre o culto às almas entre os povos primitivos veja-se Rohde, Op. Cit. pp. 30-34.
1.3 – A psyché e o lógos
Não é possível determinar um “outro eu” por meio das representações que se
produzem pela sensação, pela vontade e pelo pensamento 16. Todas as funções que nós
costumamos habitualmente atribuir à psyché, tais como o pensar, o querer e o sentir, não
podem ser identificadas na psyché homérica; na psyché homérica não há entendimento,
não há lógos. Todavia, não há também nenhuma referência para que possamos afirmar
que a psyché não tenha nenhuma participação nas atividades do homem enquanto está
de plena consciência. Visto desta maneira, os poemas homéricos são míticos 17, no
entanto de forma alguma nos permite dizer que sejam “irracionais”, incompreensíveis
ou despossuídos de sentido, ao contrário, estão perfeitamente ao alcance da mentalidade
grega. Embora não possuam a co-autoria do povo, eles, no entanto, identificam a
maneira de ser e de expressar do pensamento próprio da época homérica em torno da
vida e da morte. Há lógos em seus poemas porque eles podem ser recolhidos e
entendidos.
“Na mente e no ânimo20 o herói, indeciso, reflete três vezes” (Il VIII
169).
O termo nous aparece para designar uma reflexão mais demorada, normalmente
uma reflexão ou uma ponderação. A reflexão consiste em refazer mentalmente um
caminho percorrido, retomar as coisas e fazer ponderações:
16
Idem,. p. 63
17
Os poemas homéricos são ditados pelos deuses aos homens. Um exemplo disso nós podemos verificar
em Hesíodo: “as deusas um dia a Hesíodo belo canto ensinaram..” (Hesíodo 22) Cf. HESÍODO,
Theogonia. Estudo e tradução de Jaa Torrano: Teogonia: a origem dos deuses, 3.ª ed., São Paulo:
Iluminuras, 1995. P. 107.
18
E. Rhode, Op. Cit., p. 34
19
Od. X 493
20
kata frena, kai kata qumon.
“Tão velozmente como homem que, tendo viajado por longe, em pensamento repassa aprazíveis
paragens, dizendo ‘bem desejara estar neste ou naquele lugar’, saudoso: Hera, a magnífica, assim,
De posse destes elementos sobre a psyché vamos agora partir para a concepção
da psyché e as suas relações com as funções de pensar e sentir na filosofia. Antes
precisamos ainda fazer uma menção de um fator que foi determinante nesta mudança de
pensar que foi o surgimento da pólis. O início da Filosofia, do ponto de vista histórico,
se dá com o nascimento da pólis. Por diversas circunstâncias históricas os gregos viram-
se necessitados a migrar e por conseguinte foram obrigados a se reorganizar socialmente
estabelecendo um mínimo de leis necessárias que permitisse uma convivência entre
grupos oriundos de diferentes procedências. O homem sabe que está como um igual
entre iguais onde cabe o particular de cada um, mas há também um todo a ser
preservado, geral a todos. As fratrias começaram a perder poder, o que obrigou o rei a
abrir a palavra aos aristocratas. O rei ouvia e depois decidia. A palavra se tornou pública
na forma de argumentos. As mudanças começaram a aparecer na medida que já não
eram mais os deuses do Olimpo a ditar ao poeta o seu canto, a sua poesia. O lógos
produz novas perspectivas naquilo que se busca. Isto procuramos agora contemplar em
alguns fragmentos de Heráclito.
21
Para nossas considerações sobre os fragmentos de Heráclito, servimo-nos do texto de R. GAZOLLA
DE ANDRADE: Acerca del Frag. 45 de Heráclito (acerca de la psyché), III Congreso Sul-americano de
Filosofía, Cochabamba – Bolívia, 31.07.2000
Limites de alma não os encontrarias, todo o caminho percorrendo, tão profundo logos ela tem.” (frag.
45)
22
Cf. M. NUSSBAUM. YUCH in Heraclitus, II; in Rev. Phronesis 17, 1972, p. 153.
23
R. GAZOLLA. Acerca del Frag. 45, texto já citado, p. 3.
distantes que o levam aos limites mais profundos do Hades (Od XII 1). As palavras
“caminho percorrido”, “profundo”, “limites” são palavras que também aparecem em
Heráclito no frag. 45, mas possuem outro sentido. As diferenças de sentido acentuam-se
muito mais do que a semelhança pelas palavras. Diferente de Homero, a psyché não se
destina para nenhum lugar, nem todo o caminho percorrendo, não chegará a lugar
nenhum. Diferente de Homero, a psyché em Heráclito não tem imagem, nem limite,
nem lugar. Assim como o lógos, ela é sempre, é cósmica.
CONCLUSÃO
24
Fusi (physis) – Aparece traduzido para o português como “natureza”, mas há pelo menos quatro
sentidos diversos (Cf. N. ABBAGNANO. Dizionario di Filosofia, já citado, pp. 698-701. Deixamos a
palavra no texto sem tradução.
25
S. M. DARCUS. Thumos and Psyche in Heraclitus b 85; in Rivista di studi classici, n. 74, Torino,
1977.
eu”mais atenuado. Já em Heráclito estas atividades começam a aparecer como
faculdades da psyché. O fator que julgamos como determinante para tal mudança, foi a
descoberta que a psyché tem lógos.
BIBLIOGRAFIA
a. primária
2. HOMER, The Iliad. With an english translation by A. T. Murray; vol. II. London:
Willian Heinemann; Cambridge: Harward University Press, 1939, pp. 501-
503).
5.________. Odisséia. Trad. de Carlos Alberto Nunes, 3.ª ed. São Paulo
Melhoramentos, 1960.
b. comentadores
8. VERNANT, Jean-Pierre. Mythe et pensée chez les Grecs (Mito e pensamento entre os
gregos: estudos de psicologia histórica); trad. de Haiganuch Sarian; Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1990