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1. Situando a Discussão
Com o avanço das ciências da linguagem, nas últimas décadas do século XX, estudiosos da
lingüística têm se interessado cada vez mais pelos estudos das atividades cognitivas e interativas. O
que não é nada surpreendente, se levarmos em conta a intrínseca relação que existe entre linguagem,
cognição e interação. De um lado, a linguagem é uma forma de interação e ação social constitutiva do
conhecimento; de outro, caracteriza-se, num certo sentido, como uma forma de cognição. Como bem
diz Marcuschi (2002), “a linguagem surge porque temos cognição e somos seres cognitivos porque
temos linguagem e capacidade de desenvolvê-la”. Essa concepção, com certeza, é necessária hoje para
uma maior clareza no tocante à construção do conhecimento dos indivíduos como fruto de ação
conjunta de significações.
Entretanto, no contexto escolar, como se sabe, nem sempre essa correlação entre linguagem,
interação e cognição ocorre de forma satisfatória, ao contrário, o que freqüentemente se observa é o
ensino-aprendizagem de língua dissociado dos processos interacionais e de estratégias cognitivas que
favoreçam a ampliação dos conhecimentos dos alunos, a título de exemplo, práticas de leitura
meramente decodicadas, sem espaço para que o aluno possa interagir com o autor do texto; escrita
inexpressiva, sem levar em conta as condições de produção e os interesses dos produtores de textos;
ensino de gramática pautado em uma visão essencialmente prescritivista, em detrimento da relação da
língua com o social.
Práticas dessa natureza, constatadas a partir de várias pesquisas na área da Lingüistica,
certamente interferem no desenvolvimento lingüístico e cognitivo do aluno1, uma vez que ele não é
levado a interagir com o novo objeto de ensino em uma situação efetiva de comunicação. Tendo em
vista essa realidade, justifica-se o interesse da presente pesquisa em investigar a questão da interação
professor /aluno em aulas de língua materna no ensino fundamental, refletindo sobre as possíveis
implicações de tais práticas de ensino no desenvolvimento cognitivo do aprendiz.
Os exemplos das aulas de Língua Portuguesa que constituirão o corpus da presente pesquisa
foram coletados em turmas do Ensino Fundamental de uma escola pública, da cidade de Campina
Grande2 (PB).
As reflexões que fundamentam a análise do presente trabalho apóiam-se,
preponderantemente, nas concepções teóricas da Lingüística Cognitiva de base interacional
(Vygotsky, 2000, Marcuschi, 2003, 2004), Mondada (2003), Morato (2004) e em discussões sobre a
relevância da interação em aulas de língua materna (Matêncio, 2001; Antunes, 2003), entre outras. No
contexto da abordagem teórica do trabalho, merecem destaque o ponto de vista de Mondada (2003),
ao ressaltar que a cognição consiste em um conjunto de práticas sociais publicamente manifestadas
nas ações de um dado contexto por seus participantes, e a idéia diversos autores no sentido de que a
interação pressupõe encontro, parceria, envolvimento entre sujeitos para que aconteça o
compartilhamento de informações e intenções pretendidas entre estes, no caso da sala de aula, entre
professor e aluno.
1
O conhecimento cognitivo, neste trabalho, é entendido como a capacidade de processar / construir
conhecimentos mediados pela interação e pela linguagem. Afinal uma uma esxplicação apropriada do processo
cognitivo não pode deixar de incluir o fato óbvio de que a atividade linguística, assim como as atividades
cognitivas, em geral acontecem em contextos reais de uso. /.../Um modelo cognitivo adequado às descobertas
sobre as ações lingüísticas deve garantir espaço para a importância da interação, da negociação e da sensibilidade
e flexibilidade em relação ao contexto que os processos cognitivos demandam ( Cf. KOCH e CUNHA-LIMA,
2004, p. 290)
2
O total de aulas observadas e analisadas na escola campo de pesquisa foi em nº de 20 horas-aulas.
2199
Para uma maior clareza acerca da discussão em pauta, o presente trabalho encontra-se
subdividido basicamente em três partes: linguagem como ação; interação em sala de aula; aulas de
língua portuguesa e desenvolvimento cognitivo do aluno.
A noção de linguagem que orienta o presente estudo e que determina seu direcionamento
metodológico é a da ação conjunta que depreende-se de uma lingüistica de base interacional e
sociocognitiva. A linguagem nesta perspectiva, mais do que possibilitar uma transmissão de
informações de um emissor a um receptor, é vista como um lugar de interação humana: através dela,
como observa Geraldi (2001), o sujeito que fala, pratica ações que não conseguiria praticar, a não ser
falando; com ela o falante age sobre o ouvinte, estabelecendo compromissos e vínculos que não
existiam antes da fala.
A concepção de linguagem, como forma de interação, tem sido destacada pelos linguístas
porque implica uma postura educacional diferenciada, isto é, que concebe tal atividade como o lugar
de constituição de relações sociais, onde os falantes se tornam sujeitos. Afinal, como sabemos, é por
meio da linguagem que construímos sentido, desenvolvemos nossa capacidade cognitiva, ensinamos,
aprendemos e negociamos ações. A linguagem é constitutiva do saber e do próprio ser humano.
Para Clark (1996), citado por Koch e Cunha (2004, p. 255), a linguagem é um tipo de ação
conjunta. Assim, compreender a linguagem é, de acordo com as autoras, entender como os falantes se
coordenam para fazer alguma coisa juntos, utilizando simultaneamente recursos internos, individuais
cognitivos e recursos sociais. No interior dos vários fenômenos da lingüística há necessidade de
compreendermos aspectos cognitivos de interação pela linguagem, tais como o papel desempenhado
pelo conhecimento partilhado na produção e na compreensão de textos falados ou escritos. Os
processos cognitivos são construídos e produzidos nas práticas sociais e culturais. Em cada evento
lingüístico, os interactantes tomam como base para suas decisões um conjunto de conhecimentos e
experiências.
Desse modo, torna-se evidente que a questão do conhecimento partilhado é essencial para que
os falantes possam decidir sobre que tipo de informação pode ser explicitada ou permanecer implícita,
sobre quais fatos se deve chamar a atenção, ou não, sobre quais posturas eles devem ter em relação aos
outros e quais gêneros devem ser utilizados em um dado evento comunicativo. Todo texto inclui essa
dimensão partilhada, assim como uma certa divisão de responsabilidade, no processo de
compreensão/construção de sentido.
A partir da sustentação do caráter social da cognição humana, o princípio do partilhamento no
processo de significação põe em relevo a participação dos interactantes (MIRANDA, 2001). O
sentido não seria, pois, uma propriedade intrínseca da linguagem, mas o resultado de uma atividade
conjunta que presume cooperação, consentimento. O que significa dizer que o sentido é uma
construção situada no jogo, no drama da interação. É assim, pois que informações idênticas podem ser
processadas de modo distinto em contextos diferentes.
No contexto dessa discussão, a língua só tem existência no jogo que se joga na sociedade, na
interlocução, e é no interior de seu funcionamento que se pode procurar estabelecer as regras de tal
jogo (Geraldi, 2001, p.43). Essa concepção de língua, apresentada pelo autor, aponta para a
importância do princípio dialógico da linguagem, o qual integra a relação linguagem/vida.
A esse respeito merece destaque uma das principais teses de Bakhtin (1995, p. 123), ao
reconhecer que:
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de
formas linguísticas, nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo psíquico-
fisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada
através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim, a
realidade fundamental da língua.
Baktin ( op.cit) também ressalta que a consideração da língua como sistema de formas nos
distancia da língua viva e histórica que evolui, pois a língua é um fenômeno puramente histórico. “A
língua constitui um processo de evolução ininterrupto, que se realiza através da interação verbal
social dos locutores” (p. 113).
2200
O ponto de vista da autora acima citada, nos faz acreditar que a interação presume
provocação de efeitos de sentido nos participantes da linguagem e que, na sala de aula, o uso de
estratégias interativas de ensino possibilita o desenvolvimento da competência cognitiva do aluno.
Assumimos, nesta pesquisa, a ideia de que a cognição não é uma atividade autônoma da mente, um
processamento de informação desencarnado da realidade e dos aspectos socio-culturais dos falantes de
uma dada língua, mas um conjunto de práticas, ações dos interactantes da linguagem que conseguem
integrar aspectos da mente humana, como geradora de conhecimento, com a cultura, a sociedade e a
2202
Desde os anos 80, os pesquisadores da área do ensino de língua portuguesa vêm defendendo a
necessidade de mudança, no sentido de priorizar a concepção de linguagem como um lugar de
interação, de interlocução humana que favoreça a construção conjunta do saber e não a transmissão
dieta de um saber pronto e acabado.
Nesta perspectiva, o principal objetivo do ensino de lígua materna consiste em desenvolver a
competência comunicativa do aluno, dando-lhe condições necessárias para que ele tenha o domínio
pleno das atividades básicas da língua: ler criticamente, escrever com objetivos bem determinados,
expressar-se com clareza, enfim, que se torne sujeito de seu próprio saber.
Mesmo com a grande discussão sobre o ensino de língua e a preocupação dos pesquisadores
da área (Geraldi 2001, Matêncio (2001), Kleiman (1995), Suassuna, Antunes (2003), Marcuschi
(2003), entre outros e os próprios PCNs (1998), a escola ainda privilegia a linguagem na contramão,
fora de seu contexto social. Não há incentivo, muitas vezes, para que os alunos participem ativamente
das aulas de leitura, de interpretação de textos, de gramática, entre outras, atividades básicas da língua,
conforme demonstra a aula nº 01.
Veja-se o texto a seguir, trabalhado em uma turma do 3º. do Ensino Fundamental de uma
escola pública da cidade de Campina Grande (PB).
RARIDADE
A arara
é uma ave rara
pois o homem não para
de ir ao mato caçá-la
para a por na sala
em cima de um poleiro
onde ela fica o dia inteiro
fazendo escarceu
porque já não pode
2203
ESTUDO DO TEXTO
compreensão, avançar na busca de esclarecimentos, validar no texto suposições feitas. (PCNs 1998,
pp.69-70).
Diferentemente da aula analisada no exemplo 01, vejamos um exemplo de aula de língua
portuguesa em que a interação entre professor e aluno acontece de forma favorável, possibilitando a
participação efetiva dos alunos, o entrelaçamento de seus conhecimentos prévios com o conteúdo do
texto, e, conseqüentemente, o desenvolvimento da capacidade cognitiva do aluno.
AULA 02 - Texto: O Meu Guri - Chico Buarque. Tópico: Leitura e compreensão de textos
olha aí, ai o meu guri, olha aí
Quando, seu moço, nasceu meu rebento olha aí, é o meu guri
não era o momento dele rebentar
já foi nascendo com cara de fome
e eu não tinha nem nome pra lhe dar
como fui levando, não sei lhe explicar
fui assim levando ele a me levar
e na sua meninice ele um dia me disse
que chegava lá
olha aí
olha aí
olha aí, ai o meu guri, olha aí
olha aí, é o meu guri
e ele chega
Chega suado e veloz do batente
e traz sempre um presente pra me encabular
tanta corrente de ouro, seu moço
que haja pescoço pra enfiar
me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
chave, caderneta, terço e patuá
um lenço e uma penca de documentos
pra finalmente eu me identificar, olha aí
olha aí, ai o meu guri, olha aí
olha aí, é o meu guri
e ele chega.
Chega no morro com o carregamento
pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador
rezo até ele chegar cá no alto
essa onda de assaltos tá um horror
eu consolo ele, ele me consola
boto ele no colo pra ele me ninar
de repente acordo, olho pro lado
e o danado já foi trabalhar, olha aí
olha aí, ai o meu guri, olha aí
olha aí, é o meu guri
e ele chega
Chega estampado, manchete, retrato
com venda nos olhos, legenda e as iniciais
eu não entendo essa gente, seu moço
fazendo alvoroço demais
o guri no mato, acho que tá rindo
acho que tá lindo de papo pro ar
desde o começo, eu não disse, seu moço
ele disse que chegava lá
olha aí, olha aí
2205
(Texto trabalhado em uma turma do 5º. ano de uma escola pública da cidade de Campina
Grande)
A estratégia de ensino utilizada pela professora, na aula acima transcrita, pode ser
considerada como interativa ou produtiva de interação na construção de conhecimentos dos
alunos por diversas razões: primeiro porque leva em consideração a opinião dos alunos no
tocante ao conteúdo do texto; segundo porque há todo um jogo interlocutivo/discursivo entre
professora e alunos, responsável pela co-construção de turnos que veiculam a interação, fator
crucial para o desenvolvimento cognitivo do aluno.
O jogo interativo observado na aula em análise, corrobora o ponto de vista de
Marcuschi (2004), ao ressaltar que:
Considerações Finais
Referências
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