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Introdução
À preocupação com o folclore somou-se o interesse crescente com a infância como idade de
formação do homem, interesse comum a toda a sociedade da época. O material recolhido
foi, então, publicado, a partir de 1812, sob o título Kinder unde Hausmaerchen, Contos da
Criança e do Lar, traduzido em muitas línguas e transformado em uma das obras-primas da
Literatura Infantil, integrado definitivamente ao universo mágico das crianças do mundo
inteiro.
(...) Seu sucesso deve-se, de um lado, a esta extrema capacidade de condensar, de forma
mágica, na trajetória das ações das personagens, as mais inconscientes aspirações e
necessidades humanas e, de outro, a sua linguagem despojada de artificialismo e expressões
de cunho didático-pedagógico. As narrativas visam ao prazer e, se elas educam, é porque
trazem consigo a globalidade da experiência humana. (AGUIAR, 1993, p.30)
do outro. Ao final, tem-se a consecução dos objetivos traçados; o fracasso do herói raramente
acontece nos contos de fadas.
O olhar que paira sobre os contos de fadas alarga-se, evidenciando que longe estão da
puerilidade, no sentido de infantilidade inócua. Bruno Bettelheim já se tornou referência
obrigatória aos estudos de Literatura Infanto-Juvenil, apontando a importância desse tipo de
leitura na formação das crianças – e dos adultos, acrescentaríamos -, uma vez que as auxilia
a se entenderem melhor, a se relacionarem com o outro e, acima de tudo, a conferirem um
significado à vida:
A criança intuitivamente compreende que, embora estas histórias sejam irreais, não são
falsas; que ao mesmo tempo que os contos narrados não acontecem na vida real, podem
ocorrer como uma experiência interna e de desenvolvimento pessoal; que os contos de fadas
retratam de forma imaginária e simbólica os passos essenciais de crescimento e da aquisição
de uma existência independente. (1980, p.90)
Nos contos da tradição, a figura feminina traz a marca da submissão. Seu principal
atributo é a beleza: todas as heroínas dos contos de fadas, orgulhosas ou humildes, são belas
e, quase sempre, boas. São geralmente premiadas por um comportamento que prima pela
passividade e pela bondade, o que se coaduna à ideologia do momento de produção dos
textos. Abordando os contos de Grimm, Nelly Novaes Coelho distingue como “qualidades
exigidas à Mulher: Beleza, Modéstia, Pureza, Obediência, Recato... total submissão ao
Homem (pai, marido ou irmão)” (1991, p.147), ainda que realce a ambigüidade da natureza
feminina, perspectivada como causadora tanto de bem, quanto de mal à figura masculina.
Segundo Sonia Salomão Khéde, as personagens femininas dos contos de fadas são passivas
“na medida em que refletem as relações codificadas entre homens e mulheres, e, em outro
nível, revelam que essas relações começaram a ser modificadas com a valorização da
virtude e da beleza no lugar do dote” (1986, p.32). A título de exemplificar essa
possibilidade do feminino, elegemos o conto Rosa Branca e Rosa Vermelha (GRIMM,
2005, p.133-138), também conhecido como Neve Branca e Rosa Vermelha.
As personagens principais estruturam-se como figuras modelares do comportamento
feminino desejado pela sociedade da época. A história apresenta duas irmãs - Rosa Branca e
Rosa Vermelha -, que vivem em companhia da mãe. A harmonia reina na casa. A rivalidade
fraterna, presente em vários textos dos Grimm, dá lugar à amizade, apesar de ambas serem
distinguidas por predicados próprios, adequados ao adjetivo que caracteriza o nome de cada
uma:
Elas eram boas e felizes, ocupadas e alegres tanto quanto poderiam ser duas crianças no
mundo, só que Rosa Branca era mais sossegada e meiga do que Rosa Vermelha. Rosa
Vermelha gostava mais de correr pelos prados e campos, apanhando flores e perseguindo
borboletas. Rosa Branca ficava em casa com a mãe e ajudava no trabalho doméstico ou lia
quando não havia nada para fazer.
As duas crianças gostavam tanto uma da outra que sempre andavam de mãos dadas quando
saíam (GRIMM, 2005, p.133)
candura que pela luta: o comportamento final das duas é premiado com o casamento e a
ascensão social, o consagrado „viveram felizes para sempre‟, ainda que não sejam estas as
palavras que encerram a narrativa.
Sobre o conto, Marie-Louise von Franz considera, como questão nuclear da história,
a integração do aspecto masculino, caracterizado basicamente por atitudes viris, ao
feminino. Há o risco, porém, da assimilação dos defeitos masculinos e não somente das
virtudes que caracterizam o animus
A atitude justa consiste em evitar cair de um excesso no outro e, de uma mulher doce demais
e sem personalidade, transformar-se numa espécie de homem caricatural, que se impõe, age
pretensiosamente, tornando-se ainda superintelectual e excessivamente ambiciosa. (FRANZ,
2000, p.95)
humilhada e se arrepende. Ao final, é celebrado o seu casamento com o Rei Barbicha, que
era o músico mendigo.
O texto apresenta uma heroína que foge, inicialmente, ao padrão de virtude e
bondade. A idéia de submissão, porém, consagra-se ao final. A figura feminina
transgressora ao modelo de obediência é submetida a punições que garantem a sua
redenção: “Fiz tudo isso para dobrar o seu espírito orgulhoso e castigá-la pela arrogância
com que caçoou de mim.”, ao que ela retruca: “Eu fui muito má e não mereço ser sua
esposa.” (GRIMM, 2005, p.123). A leitura do conto permite realçar o aspecto didático-
pedagógico da história, ilustrando o destino das moças desobedientes às determinações
paternas: é preciso „corrigir‟ o temperamento feminino, enquadrá-lo no que dele é
esperado; a heroína, ao final, aprende a „lição‟.
Por outro lado, o pai, que representa a autoridade – não há referência à mãe –,
desiste de lidar com a filha, entregando-a ao primeiro maltrapilho que passa: ele foi incapaz
de educá-la bem e abdica de sua função. Em relação à heroína, pode-se afirmar que um
aspecto negativo do animus foi desenvolvido, gerando atitudes não só de indiferença, como
de desprezo ao outro, uma vez que não há uma imagem masculina plenamente integrada na
personalidade interior da princesa do conto. Rejeitar os pretendentes, deles zombando e
fazendo pouco caso, representa animosidade para com o próprio pai, que não se construiu
figura de autoridade, respeito ou amor para a filha. Sob outro prisma, a rejeição dos
pretendentes explica a forte ligação – que ela não pretende afrouxar - com o pai, que até
então provavelmente se curvara às vontades da filha.
A convivência com um outro paradigma masculino – o músico-rei, também
representante de autoridade e poder – permite à heroína resgatar e integrar comportamentos
que definem o feminino em harmonia com o masculino. É ele que lhe faz vivenciar a
importância do trabalho, da acolhida, do cuidado com o outro – embora também lhe tenha
feito desempenhar atividades e vivenciar humilhações e sofrimentos inimagináveis em sua
condição anterior, estágios necessários ao seu amadurecimento pessoal. A princesa se
lamenta, ao longo do conto, por sua arrogância e orgulho e por ter rejeitado a oportunidade
de se casar com o rei Barbicha, no que é repreendida pelo marido „pobre‟ – “É uma
característica de mulher possuída pelo animus de se remoer de remorso pelas falhas
cometidas, por suas omissões. Lamentar-se sobre o que podia ter sido feito é um falso
sentimento de culpa e é completamente estéril.” (FRANZ, 1990, p.198). Ao final,
empregada no castelo do rei, recolhia nos bolsos do avental parte das sobras dos alimentos
que recebia para dar a ele, evidenciando a sua preocupação com o esposo.
O final do texto não reitera o final feliz através do casamento, que é marcado apenas
como estratégia para desmascarar e prender o noivo, garantindo a integridade da moça. O
noivo representa o lado negativo do animus – a figura masculina é o predador da psique: “A
promessa enganosa do predador diz que a mulher será rainha de algum modo, quando de
fato o que ele planeja é seu assassinato.” (ESTÉS, 1999, p.71). Estas observações remetem
ao trabalho da psicóloga junguiana Clarissa Pinkola Estés sobre o conto Barba Azul, de
Perrault:
Todas as criaturas precisam aprender que existem predadores. Sem esse conhecimento, a mulher será
incapaz de se movimentar com segurança dentro de sua própria floresta sem ser devorada. Compreender o
predador significa tornar-se um animal maduro pouco vulnerável à ingenuidade, inexperiência ou insensatez.
(1999, p.65)
Conclusão
AGUIAR, Vera Teixeira de. “Apresentando os Autores”. In: GRIMM. Jacob e Wilhelm.
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ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do
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. A Terapia dos Contos. GRIMM. Contos dos irmãos Grimm. Editado, selecionado e
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FRANZ, Marie-Louise Von. A interpretação dos contos de fadas. São Paulo: Paulinas, 1990.
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