Departamento de Teoria Literária e Literaturas –TEL
Realismo Português Docente: Ana Laura dos Reis Corrêa Discente: Michelle Maciel Falcão
Os contos "O milhafre" de Eça de Queiroz e "Ideias de Canário" de Machado
de Assim pertencem ao movimento literário realista. O realismo surgiu na França no século XIX e tinha como objetivo a representação da vida, dos costumes e os problemas da sociedade na literatura, por meio da problematização das questões sociais da época. Uma das características do movimento é a objetividade, que se contrapõe ao subjetivismo do romantismo, além disso, o movimento busca fazer uma descrição e uma análise da realidade, além de uma crítica social. Ademais, os heróis do romantismo são substituídos por personagens comuns e humanos, que possuem qualidades e defeitos e muitos problemas para enfrentar em suas vidas. Assim, os dois contos pertencem ao realismo e tratam de temáticas frente à realidade da decadência ideológica no capitalismo periférico. O pensamento ideológico da burguesia frente à realidade decadente é apologético, pois não percebe as condições reais para o desenvolvimento da sociedade, mas tem uma visão limitada à realidade imediata. Ademais, as histórias possuem duas formas distintas de representar a realidade, sendo que o conto de Eça de Queiroz é majoritariamente descritivo, enquanto o de Machado de Assis é narrativo, portanto há uma oposição estética de composição dos contos. O conto "O milhafre", de Eça de Queiroz, é narrado em terceira pessoa, por um narrador onisciente, ou seja, que tem conhecimento profundo sobre a história e sobre os personagens. A ação do conto se passa em uma casa aparentemente abandonada e que se encontra totalmente destruída. Os personagens principais do conto são: um milhafre e um homem que não é nomeado. O conto inicia com um homem entrando em uma casa destruída e encontrando um santo de pedra que lia atentamente uma bíblia. A partir daí, o conto focaliza na descrição do santo e no pensamento das pessoas que avistavam tal santo quando passavam próximas à casa. O narrador disserta que várias pessoas, de todos as classes sociais, idades e gêneros, como: mercadores, poetas, mulheres e mendigos indagavam-se a respeito do santo e reclamavam que ele não prestava atenção nelas. Entretanto, à noite, quando uma criança extremamente pobre chegava perto do santo, este afastava o livro e cobria a criança com a luz de seus olhos. Aqui, podemos perceber que o santo padecia das dores das pessoas miseráveis da sociedade, o que é comprovado pelo fato de que ele consola a menina pobre. Também podemos perceber que há uma personificação do santo no conto, pois há características humanas, como a ação de proteger e consolar a menina, a um santo que é desumano. Outro personagem muito importante também irá ser personificado no conto de Eça é o milhafre. O enredo avança e volta para o homem que entrou na casa arruinada. Ao entrar na casa, o homem encontra um crucifixo de madeira de Jesus Cristo totalmente deteriorado, cheio de teias de aranha e com ratos a roer-lhe. A primeira reação do homem é a de limpar o crucifixo, pois ele sente que Jesus Cristo havia feito muito pela humanidade, espalhando amor e perdão e que o mínimo que ele poderia fazer era limpar sua imagem. Entretanto, neste mesmo momento, um milhafre impede-o de limpar o crucifixo e diz para o homem deixar a cruz em paz. E assim, outro personagem principal do conto é apresentado na história, o milhafre, que também é personificado, isto é, possui características humanas, como falar e fazer reflexões filosóficas acerca do mundo e dos problemas da sociedade. Por meio do pássaro, o Autor Eça de Queiroz mostra todo o seu pessimismo em relação à vida e aos problemas da sociedade. O pássaro começa a falar com o homem, mas na verdade o que ocorre é mais um monólogo do pássaro, tendo o homem como um ouvinte, do de um diálogo propriamente dito. No desenrolar da conversa filosófica e pessimista do pássaro com o homem, o milhafre faz uma severa crítica às pessoas que dedicam suas vidas a cuidar dos santos, como o homem queria cuidar do crucifixo, por exemplo, mas que cometeram verdadeiras atrocidades e torturas à Jesus Cristo na sua crucificação. Portanto, percebemos que há uma crítica às pessoas religiosas e que seguem o catolicismo, pois para o pássaro, na verdade os cristãos são pecadores e possuem muitos defeitos em suas almas. Isso está representado nesta passagem: Queiroz (página 5) "A vós, que vindes limpar os cabelos de madeira, depois de ter arrancado os cabelos vivos; a vós, que quereis lavar as nódoas que ele tem no peito, e não vedes as imundícies que tendes na alma." Além do mais, o milhafre fala para o homem que todos os sentimentos bons e puros que Jesus Cristo criou, como o amor, o ideal, o perdão, a fé o pudor e a religião degradaram-se no mundo, como o próprio Jesus Cristo de madeira também o está. Ademais, o pássaro faz uma comparação de todos os problemas e tragédias que atingem a sociedade capitalista com as ruínas da imagem de Jesus Cristo. O conto finaliza com o milhafre falando que o homem da sociedade capitalista tem uma exagerada preocupação com a aparência, mas que na verdade eles têm almas "miseráveis e leprosas", e que essa preocupação com a aparência não vale a pena, pois no final todas as pessoas irão morrer. De acordo com Fátima Bueno (2012), em sua tese intitulada "Machado de Assis e Eça de Queiróz: para além da polêmica", a temática religiosa está presente em todo o conto de Eça, isso pode ser compreendido como uma crítica do autor à temática da religião e ao poder que o clero ainda possuía em Portugal na época em que o autor escrevia. A religião era muito forte e importante no país, visto que ela está associada à formação da nacionalidade de Portugal. Entretanto, com a chegada das ideias Iluministas e liberalistas no país, surge um grupo de estudiosos, artistas e intelectos que começaram a combater fortemente o cristianismo e o clero em Portugal, porque eles tinham o desejo de fazerem uma reforma social em seu país e também de se igualarem ideologicamente às ideias da Europa. Fazendo uma análise crítica do conto de Eça de Queiroz, percebemos que o conto passa uma mensagem verdadeiramente pessimista em relação aos problemas da sociedade do capitalismo periférico, já que para o autor o capitalismo fez com que o mundo se tornasse decadente, onde muitas pessoas vivem uma vida miserável e totalmente desumana, sem o mínimo essencial para viver, o que é representado no conto na cena em que a menina pobre dorme aos pés do santo, podemos deduzir que esta menina vive na rua, sem o conforto e a segurança de um lar e sem alimentação, assim, vive uma vida desumana. Acerca do método de composição do conto de Eça, percebemos que ele é majoritariamente descritivo. O método descritivo, de acordo com Lukács, tem como característica apenas descrever os ambientes, os personagens e as cenas de um romance, sem que tais descrições tenham uma importância essencial para o enredo e compreensão da história . A descrição, desta forma, está intrinsicamente ligada a apreender apenas a aparência da realidade que é representada, sem captar os verdadeiros problemas e conflitos da sociedade. Desta forma, a descrição é falha, já que a verdadeira arte realista é aquela em que o principal método de representação da realidade é a narração, pois apenas ela consegue interpretar a realidade em sua totalidade, e não apenas em sua aparência superficial. Assim, o método de composição de Eça de Queiroz, no conto analisado, é a descrição, uma vez que ele descreve a casa arruinada, o santo de pedra, o ambiente em que o crucifixo está, e o próprio crucifixo nos mínimos detalhes, e nós conseguimos realmente imaginar este ambiente de destruição em nossa mente quando lemos o conto. Analisando, agora, o conto de Machado de Assis, "Ideias do Canário", conclui-se que ele é composto pelo método da narração como representação literária da realidade, mesmo tendo algumas passagens em que há descrição na história. O personagem Macedo é o responsável por narrar o acontecimento para o leitor, então conhecemos a história a partir de sua perspectiva. A verdadeira arte realista é composta pelo método da narração, já que ela é a única que consegue interpretar a realidade na totalidade, e não apenas em sua aparência superficial. Assim, os escritores que são capazes de escrever obras realmente realistas, como Machado de Assis o fez, o que está representado no conto analisado "Ideias do Canário", conseguem compreender profundamente a totalidade da sociedade em que estavam inseridos e consequentemente representar esta totalidade na literatura. O conto inicia com um narrador em terceira pessoa, que apresenta o protagonista da história, Macedo, e diz que irá fazer um resumo da narração. Logo após, a história passa a ser narrada em primeira pessoa por Macedo, que relata uma história espetacular acerca de um pássaro que conheceu e que mudou a sua vida. Assim, ele narra acerca de quando entrou em uma loja de Belchior e encontrou um canário incomum, visto que a ave conversava, pensava e refletia filosoficamente a respeito da vida, como apenas os seres humanos são capazes de fazer, isto deixou Macedo totalmente surpreso e curioso pelo pássaro. Assim, Macedo e o canário iniciam uma conversa na loja de Belchior. E o homem pergunta para o pássaro quem o tinha deixado em condições tão ruins, largado em loja escura de Belchior, dentro de uma gaiola minúscula. O canário responde dizendo que o homem está louco, pois não foi abandonado por ninguém e diz que, na verdade, o dono da loja de Belchior é seu criado, que o alimenta, e que o mundo, na realidade, pertence aos canários. Macedo fica espantado com a resposta do pássaro e resolve perguntar o que é o mundo para o canário. Desta maneira, a ave dá a primeira de três definições de mundo à Macedo – o que é essencial na análise e na compreensão do conto – : O mundo, redarguiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de Belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira. (ASSIS, página 3)
No decorrer da história, Macedo resolve comprar ave e levá-la para casa,
pois ele queria fazer um estudo dela para poder revelar a todos a sua extraordinária descoberta. Assim, ele começa a estudar a língua do pássaro, as ideias e os sentimentos. O homem ficou totalmente recluso em seus quarto enquanto estudava o pássaro, parou de sair de casa e começou a entrar em um estado de alienação, visto que para ele a importância do mundo passou a ser apenas estudar o canário para poder revelar a sua descoberta para todas as pessoas. Ao decorrer de seu estudo e de sua convivência com a ave, ele teve acesso à segunda definição de mundo de acordo com canário: O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira. (ASSIS, página 4)
No final do conto, o homem fica muito doente e é impossibilitado de cuidar
do pássaro e estudá-lo, assim, o canário acaba fugindo. O homem fica intensamente triste, mas sabe que poderá escrever sua pesquisa com as informações que tinha tido do canário até o momento. Até que um dia, passeando em um jardim de um amigo, Macedo, espantado, encontra novamente o canário, que estava no galho de uma árvore. O homem pede com ternura que o pássaro volte para o jardim de sua casa e para a gaiola branca e circular e, ao responder Macedo, a ave dá a terceira e última definição de mundo: Assis (página 5)"[...] o mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima." Fazendo uma análise crítica do conto de Machado, percebemos que a ave representa a alienação, pois dependendo do ambiente em que ela está, ela modifica a sua visão e definição de mundo, ou seja, ela tem uma visão limitada, superficial e falsa de mundo, enxergando apenas uma parte da realidade, e não a totalidade dela. Além disso, é notável que o pássaro transmite um sentimento de otimismo diante de sua realidade, mesmo quando ela é péssima e ele está em uma gaiola pequena, presa em um prego, sem acesso à luz do sol e ao vento, o que demonstra também a alienação. Ademais, o pássaro deixa claro, em suas três definições de mundo, que não há nada além do lugar em que ele vive e que todo o resto é ilusão e mentira, assim como o pensamento ideológico burguês, que não consegue enxergar e compreender a sociedade além de sua realidade aparente e superficial. Podemos fazer um paralelo desta afirmação com a visão de realidade decadente da burguesia, pois para a burguesia, o capitalismo é a evolução ideológica máxima que a humanidade conseguiu alcançar e não há outra maneira de existência e de sistema econômico que não seja o capitalismo. Assim, essa ideologia frente à realidade decadente também é limitada, visto que eles só enxergam uma parte da realidade, só veem os pontos positivos que esse modo de existência da humanidade trouxe, sem enxergar a totalidade, isto é, todos os problemas causados com a chegada do modo de produção capitalista ao mundo. O que, na verdade, não se confirma, pois o capitalismo realmente trouxe muitas mudanças positivas para a sociedade, como a estimulação da produtividade da economia, entretanto ele também trouxe muitas problemas que afetaram e afetam até hoje a sociedade, como a degradação ambiental, a intensificação da exploração do trabalho, e a extinção dos valores humanos.
Referência Bibliográfica: BUENO, Fátima. Machado de Assis e Eça de Queiróz: para além da polêmica. Rio de Janeiro. 2012.