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UNiVEBSIDADE FEDERAL DO RI_O DE J_ANElRO (UFRJ)

DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS~GBADUAÇÃQ EMANTROPOLOGUlSOCIAL

(PPGAS MUSEU NACIONAL)

AlNVllNÇÃO DAFAMÍLIA-AFRO-AMERICANA: FAMÍLIA, PARENTESÇO


E DQMESTICIDADEENTRKOSNEGROXDQ RKCÔNCAVQ DA-BAHIA,-BRASIL.

Tese apresentada por: Louis Herns MARCELlN


Em vista da obtenção do grau de Doutor em Antropologia Social

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Dezembro 1996

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Caminante, son tus huellas


e1camino, y nada más;
Caminantc, no hay camino,
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c4ntonio "!Jnchndo

I am still waiting for a phi1osophical physician in the


exceptional sense of that word - one who has to pursue
the prob1em of the total health of a people, time, race or of
humanity - to muster the courage to push my suspicion to
its Jimits and' to risk the proposition : what was at stake in
aJJ philosophizing hitherto was not alJ "truth" but
something else - 1et us say, health, Iuturc, growth7 power,
Jife.

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íNDICE

Prefácio v

Introdução.................................................................................................................... .. 1

1. Viver a regra na promiscuidade....................................................................... 2

2. Casa, família, parentesco e etnicidade 17

Notas da introdução 27

Capítulo I: Cachoeira e a herança da plantation 31

1. A sociedade das plantations e a invenção das Américas................................... 34

2. Cachoeira no Recôncavo 37

3. Cachoeira hoje: Espaço, Cultura e Sociedade................................................... 54

Notas do capítulo I . 71
'"'

Capítulo fi: Casa e rede doméstica . 75

1. Habitar os bairros populares de Cachoeira: a Casa . 81


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2"/Constnúr a casa __ _ . 92

3. Casa e configuração de casas , . 106

Notas do capítulo II . 118

Capítulo Ifl: O Sangue e a Consideração: Representações e experiências do

parentesco no Recôncavo da Bahia 124

1. O paradigma estruturalista funcionalista ... .. 126

2. Os princípios do sangue e da consideração 146

Notas do capítulo TIl 181


iV

Capítulo IV: A prática matrimonial . 186

1. Onde e como escolher seu parceiro? . 190

2. O cenário do julgamento . 201

"A
.). esco lha d o parceiro
. na pratica
, . matnmoru
imonial . 216

4. O exercício da conjugalidade ..........................•................................................. 221

(.\. 5. Casa, parentage e deslocamentos infantis . 229

Notas co capítulo IV . 242

Capítulo V: Celebrar a família: casa, mitos familiares e transmissão de bens entre

gerações . 246

L~'
~ '1' ou nao
r er uma rarmua
c. - ser nmguem
. '" . 249

2. A festa familiar como uma celebração da troca . . 274

Notas do capítulo V . 289

Conclusão . 296

Notas da conclusão _ . 301

Bibliografia . 303
v
PREFÁCLO

Meu tema de pesquisa sobre a família remonta a uma antiga vontade de ruptura com um

certo tipo de discurso científico, produzido sobre a experiência familiar dos negros nas Américas,

surgida por ocasião de minhas pesquisas sobre a família no Caribe (Haiti, Jamaica e República

Dominicanaj.Apos mais de dez anos de familiaridade com o tema [decorrência de meus trabalhos

de pesquisa no mestrado em Sociologia (J 986-1988) e em Antropologia (J 989-1991)], eu aprendia,

gradativamente, que as discussões levantadas pelos modelos estatísticos na sociologia e os

paradigmas que conduziram à elaboração do discurso antropológico regional, sobre a vidafamiliar

dos negros nas Américas (antropologia afro-americana), diziam muito mais desses modelos e desses

paradigmas, que das próprias práticas e cosmologias daqueles que são os agentes em questão. Eu

havia então decidido dedicar uma outra atenção à pertinência desse discurso sobre a realidade

familiar dos negros no Caribe. Decidi assim vir ao Brasil, visando produzir um estudo comparativo

com o Caribe, a partir de uma pesquisa sobre as práticas familiares entre os negros nesse país.

Empresa difícil, visto que, chegando ao Brasil, constatei não existir literatura antropológica/

sociológica sobre o tema. As razões apresentadas por certos acadêmicos brasileiros, para justificar

esse vazio de discurso, são as seguintes:

- a vida familiar dos negros não foi pensada, porque o contexto das relações interraciais no

Brasil, resultante da miscigenação - assim como a própria miscigenação -produziu uma realidade

decididamente diferente daquelas dos Estados Unidos do Norte e do Caribe;

- o que é uma pesquisa sobre a família dos negros no Brasil? Perguntavam-me certos

pesquisadores - é uma pesquisa sobre a permanência dos traços africanos na família desse grupo

étnico? Essa família, no Brasil, teria um formato sociológico diferente daquele da família das

classes trabalhadoras (ou classes operárias)?

- finalmente, para outros, a construção ou não desse objeto, está ligada às tradições

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intelectuais próprias a cada universo acadêmico (por exemplo nos Estados Unidos ou nos países

do Caribe), e essas tradições se enraizam profundamente na estrutura social da formação social

considerada; nos Estados Unidos, por exemplo, a categoriafamília afro-americana corresponde a

um processo de alterização, que leva a pensar o negro em sua radical alteridade - a sociedade

tendo sido edificada, em seus fundamentos, em torno de uma oposição historicamente constituída:

os civilizados brancos e os não brancos, o que não foi o caso no Brasil;

Em consequência, segundo essas afirmações, no Brasil não haveria "família negra", 'X

'família branca", etc., haveria "a" família brasileira, produzida sob afigura-modelo da 'família

patriarcal" ...

A economia dessas restrições me seria inteiramente revelada no decorrer da pesquisa

'. bibliográfica e empinca, durante os cinco anos de experiência de vida cotidiana em diversas

camadas sociais e em diversas regiões da sociedade brasileira, sobretudo através das frutíferas

conversas que tive com colegas - principalmente do mundo acadêmico brasileiro.

Aliás se, por um lado, podemos questionar ofato que o discurso antropológico/sociológico

abafe a vida doméstica dos negros nas estatísticas gerais sobre as classes, operárias para alguns,

trabalhadoras para outros, resta, por outro lado, que os próprios negros produzem muito pouco,

ou quase nenhuma informação sobre o seu convívio doméstico. Tudo se passa como se a miscigenação

tivesse o poder de transformar a estrutura social; seria suficiente apenas invocá-Ia para atenuar

magicamente a visibilidade e a concentração do negro em seus espaços suburbanos e rurais.

Um estudo sobre a construção atual da família, da domesticidade e do parentesco junto

aos negros, e as lógicas que dão conta de seus respectivos usos sócio-culturais, ofereceria, a meu

ver, a oportunidade de discutir, num nível propriamente empirico, a respeito do fundamento e da

operacionalidade de certos conceitos, teorias e diligências que Ihes são corolárias.

Pensar a família, é pensar o Estado: É pensar as. mecanismos de controle que o Estado

inaugura, institui, e reconfirma, no seio do espaço doméstico, no âmbito de um projeto de sociedade

associado a uma visão que ele tem das diferentes funções e atributos dos segmentos e grupos

IVor não fazer anobçÓS8 ou grlfol


• tinta ou à lápis nesta publicaçã
Vl1

étnicos dessa sociedade. Tal estudo permitiria verificar a ação do Estado no cotidiano dessas

famílias. No caso em questão, ele constituiria em si mesmo um questionamento da economia desse

vazio no discurso antropológico/sociológico, apesar de que não poderia, nesse nível da pesquisa,

dar conta de sua "razão de ser". Ele nos conduziria a compreender, primeiro, o quanto "afamília

negra" existe ou não existe, num discurso acadêmico que, segundo os usos que a sociedade global,

através principalmente das instituições do Estado, fazem dele, e, segundo, que em consequência, a

noção de "família negra", não mais que a de "família", não pode dar lugar à reificação. Ele

ofereceria ainda um pretexto para que se ponha em questão a própria noção de família, a pseudo

uniformidade subentendida em certos estudos sobre "a" família nas classes populares. Ele permitiria

escapar a esse "apriorismo", que propõe a ausência de situações de diversidade no seio de uma

mesma classe popular. A família dos grupos dominados (minorias étnicas, classes populares, ...) é

um elemento decisivo no projeto de sociedade veiculado pelo Estado e, através deste, pela sociedade

dominante. Opano de fundo do debate consiste portanto nos usos que o discurso e o silêncio fazem

desse objeto, enunciado por uns, calado por outros, e as consequências próprias a esses usos no \'

ato de pesquisa. Em outras palavras, o debate nos conduzirá àproblematização do próprio conceito

de "família", e dos elementos (enjeux) sociais, culturais e políticos encobertos pelo discurso que a

reifica e sacraliza.

Para construir meu campo, escolhi não me distanciar do projeto comparativo, mesmo

considerando-o muito mais como um ponto de partida do que como um ponto a ser alcançado. Os

quatro principais critérios, a seguir apresentados, traduzem essa preocupação:

1) O critério histórico: o lugar da pesquisa deve derivar de uma mesma produção de passado

histórico que o Caribe (escravatura, economia de platation;

2)0 critério "étnico": dada a problemática de minha pesquisa, a composição étnica da

população deve ser em sua maioria de ascendência africana, quer dizer, de descendentes de escravos;

3) o critério sócio-cultural: esse grupo deve ser analisado em seu contexto sócio-cultural e

a partir de suas próprias representações do mundo, d'onde decorre a importância das práticas
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religiosas e das tradições de predominância africana, em geral comuns às culturas negras das

Américas;

4) o critério geográfico: esse grupo deve ser escolhido pela sua antiguidade na produção

sócio-histórica da comunidade em questão, em outras palavras, a localização física deve

acompanhar a localização histórico-cultural; isto me permitiria acompanhar o processo e o modo

de apropriaçã~paço, as lógicas que acompanham os ~ovda família e do parentesco, a

invenção das tradições familiares, assim como dos modos de transmissão dos diversos bens, a

transformação da estrutura familiar, etc.

Minha primeira visita ao Nordeste do Brasil ocorreu durante meu primeiro ano de pesquisa

em Doutorado. Nesse ano, eu havia decidido fazer uma visita "turística", por assim dizer, nas

principais regiões do Brasil. Eu havia começado pela região de São Paulo, onde permaneci por

um mês (fevereiro/março 1992) junto ao CESEp, um centro de formação para os militares de base

latino-americana. Esse centro desenvolve ainda uma atividade educativa junto aos CEB e às

associações de moradores de algumas favelas de São Paulo. A experiência das famílias ligadas a

essas associações foi para mim maravilhosa. Como, entre essas famílias, havia mais de 80% de

Nordestinos - é o termo pelo qual os paulistas designam os migrantes vindos dos Estados da

Bahia, do Maranhão, do Ceará, de Alagoas e de Pernambuco - eu decidi contrastar minha

experiência, me propondo a visitar um outro centro no Nordeste do país. Entretanto, a organização

Réseaux Sud-Nord, da qual eu era o representante caribenho, e uma instituição européia, a Fondation

pour le Progres de l'Homme (FHP),para qual eu trabalhava (1992-1994), me haviam proposto uma

pesquisa visando capitalizar certas experiências de pesquisas-ações executadas em meio popular,

pelas ONGs que elas financiam. Essa pesquisa iria me levar a duas retomadas, primeiro em Fortaleza

(Ceará), onde trabalha o Centro de Estudo da Família (especializado em terapia familiar em meio

popular), junto à imensa favela Pirambú; em seguida a Recife e a Salvador, onde ONGs acompanham

grupos da pastoral voltados à valorização da "negritude". (No Rio de Janeiro, um outro centro,
IX

este especializado em educação popular, o SAP É, fazia parte das instituições alvo com as quais eu

viria a trabalhar durante cerca de dois anos. Ao longo dos meus dois primeiros anos acadêmicos,

meu tempo era exclusivamente dividido entre as pesquisas acadêmicas e a experiência de campo

junto a ONGs em meio popular brasileiro). Percorrendo esse imenso território que é o Brasil, o

contraste que eu queria descobrir se impunha por ele mesmo: não se trata de um contraste, mas

sim, como dizia Bastide (Brasil país de contrastes), guardadas as devidas proporções, de "contrastes".

Desses contrastes, havia o que era preciso construir, e o que era preciso descobrir e desconstruir. ..

E, exatamente nessa mouvance, construía-se o campo de meu trabalho, na base da produção dessa

tese, a qual responderá apenas pobremente às riquezas dessa diversificada experiência de

comunicação humana.

'.•\ Associadas a essa experiência, as ricas conversas que tive com colegas - quatro deles

haviam tido contatos de campo na região - me estimularam também a aceitar o desafio dessa

imersão, tendo somente como referência a confiança íntima que tudo vai dar certo ... Foi então que,

no final de 1993, após ter reunido o máximo de informações que me foram acessíveis (literaturas

e informações de primeira mão), eu decidi começar a experiência de pesquisa propriamente dita.

A experiência de pesquisa stricto sensus foi realizada entre outubro de 1993 e junho de

1995. Entre 20 de outubro e 22 de dezembro de 1993, eu tive minha primeira estadia no Recôncavo

da Bahia, visando selecionar o campo de pesquisa. Após ter passado uma semana nos Arquivos de

Salvador, tentando, não sem grandes dificuldades e complicações, estabelecer relações com o

mundo acadêmico local (eu já tinha relações no mundo das ONGs), eu comecei meu périplo pelas

cidades de Cachoeira e São Félix; por indicações dos amigos que lá desenvolveram pesquisas

anteriores. A partir de então, dediquei duas semanas a visitar as principais cidades do Recôncavo:

Santiago do Iguape, Santo Amaro, Maragogipe, Muritiba, Conceição da Feira, Cruz das Almas, a

ilha de Itaparica, Camaçari (onde se concentram as indústrias petrolíferas do Estado da Bahia, da

PETROBRAS), e mesmo Feira.de. Santana; a.segunda. cidade do Estado da Bahia; que não faz

parte do Recôncavo propriamente dito. Nessas cidades consultei os Arquivos e/ou documentos
x

oficiais disponíveis que poderiam me ajudar a situá-los na região.

Como resultado dessas visitas às cidades do Recôncavo, pude constatar quais outras cidades,

além de Cachoeira, corresponderiam aos critérios acima estabelecidos. Mas Cachoeira é a cidade

que, do ponto de vista sócio-histórico, desempenhou um papel capital na formação do Recôncavo

bahiano e do Estado da Bahia. Ela é hoje uma das cidades "mais vendidas" nos meios turísticos

do Nordeste, como "bastião da cultura afro-brasileira". A tradicional festa da Irmandade da Boa

Morte, a presença simbólica das "nações" Ketu-Gege, N agô, etc. nos candomblés, a densidade da

população negra, com sua concentração nas periferias da cidade e no interior do município,

contrastam com aforte penetração dos valores de consumo de massa vindos da capital (Salvador)

e dos turistas estrangeiros, principalmente negros americanos, pesquisadores, turistas brasileiros,

etc.

Eu decidi prolongar minha estadia em Cachoeira visando estudar as condições e os critérios

de constituição do campo. As redes de relações que eu começava a estabelecer - relações que

visavam o longo prazo - acrescidas das informações que eu havia recolhido nos Arquivos ejunto

a colegas, me levaram a escolher definitivamente essa comunidade como campo de pesquisa.

Nesse sentido, reuni informações convencionais sobre a história da cidade e do município, assim

como uma bibliografia sobre a história econômica e demográfica do Recôncavo bahiano, e ainda,

a estatística da distribuição dos recursos e das atividades, de acordo com a distribuição dos

segmentos sociais que estruturam a cidade e o município. Eu me dediquei a uma sistemática consulta

aos Arquivos das cidades de Cachoeira, São Félix e Santo Amaro, o que me possibilitou o acesso

a documentos históricos interessantes, sobre uma dimensão da memória da escravatura no município.

Durante essa estadia de dois meses, eu estabeleci relações que viriam a ser decisivas para

mim, por ocasião de minhas visitas ulteriores. Graças a contatos locais, eu me hospedei na casa de

pessoas que, na minha segunda visita, acabaram por fazer parte de minhas amostras. Com meus

guias locais, comecei por visitar as freguesias de Belém, Iguape, etc. no município de Cachoeira e

de São Félix - cidades gêmeas separadas apenas por um rio, o Paraguassú, tendo ambas vivido
Xl

quase a mesma história durante o tempo das plantations. Eu efetuei um survey de forma a construir

a sociografia da cidade, cujos resultados me permitiram identificar os três principais bairros que

iriam fazer parte de minha amostra. Os resultados desse procedimento encontram-se sistematizados

no Capítulo 1.

A partir dos dados recolhidos no decorrer dessa primeira visita, eu comecei a trabalhar o

quadro técnico da pesquisa. Tratava-se, para mim, de definir os modos de coleta de dados que eu

iria privilegiar, os tipos de informação a coletar, as escolhar técnicas afazer, em função dos modos

de coleta e dos tipos de informação escolhidos, de repensar a redução dos obstáculos ao mínimo -

sobretudo a barreira à comunicação, o enfoque, as redes de relações a construir, ou a conservar, os

problemas de incompreensão - e os benefícios que eu iria tirar dessas escolhas.

Minha segunda estadia em Cachoeira durou mais de sete (7) meses, de fevereiro a setembro

de 1994, visando continuar as pesquisas de campo (com um breve intervalo de uma semana entre

7 e 14 de junho de 1994, no Rio de Janeiro). Durante esse tempo, eu trabalhei quase exclusivamente

com os agentes circunscritos aos 3 bairrosfocalizados (para maiores detalhes ver Capítulo I). Em

cada um desses bairros, eu parti de uma unidade doméstica que eu traduzo aqui, provisoriamente,

pelo termo casa, para poder alcançar as redes domésticas, ou um conjunto de redes de unidades

domésticas designado aqui, também provisoriamente, sob o termo configuração de casas (ver

Capítulo lI, sobre a construção da noção de casa e de configuração de casas). Os cortes e os

procedimentos aplicados afim de produzir as genealogias, a análise dos termos do parentesco, etc.

estão expostos sistematicamente na introdução de cada capítulo. Não faria nenhum sentido, na

perspectiva assumida nesse trabalho, descontextualizar os procedimentos a fim de torná-los

inteligíveis ao leitor, separadamente do contexto.

Por outro lado, os bairros estudados na cidade de Cachoeira são muito mais pontos de

partida empiricos, do que lugares fixados para o desenvolvimento da pesquisa. Os agentes com os

quais trabalhei, participam de diversos bairros, de diversos mundos e de diversos contextos

identificadores ao mesmo tempo. Visto que se trata, para mim, de acompanhar a produção da

_._.- _._------
XlI \

f!xperiência familiar e do parentesco entre os agentes, essa experiência se constrói em circuitos

familiares que ultrapassam, necessariamente, a localização física. A rede familiar não se constrói

numa casa, num bairro, numa cidade. A casa, o bairro, a cidade, nessa pesquisa, são compreendidos

como pontos de partida analíticos e como lugares de cristalização de um domínio de relações

sociais difusas, transitórias e articuladas. A experiência que eu estudo aqui é uma experiência-

que-se-faz. Ela se constrói num espaço sócio-espacial em contínua redefinição, indo de um bairro

a outro, de uma cidade a outra, até atingir à periferia de Salvador. O trabalho de pesquisa por mim

desenvolvido consiste no acompanhamento dos agentes, através dos circuitos de redes familiares e

de parentesco, da periferia de Cachoeira aos bairros populares de Salvador e de outras cidades do

Recôncavo. Não há portanto nenhuma contradição quando escrevo em certas passagens do texto

expressões tais como: "nos bairros estudados ", "na periferia de Cachoeira ", "nas cidades

estudadas ", "na região do Recôncavo ", "nas zonas estudadas ", etc. para localizar certas relações.

Do mesmo modo, certas observações foram intensivamente realizadas nos bairros escolhidos (tais

como o estudo da elicitação dos termos de cor), enquanto outras (tais como as redes de troca entre

os agentes) puderam ser estudadas numa escala mais abrangente que a do bairro. A casa, o bairro,

a cidade, a região, se encaixam uns nos outros, em situações especificas, assim como se diferenciam

em outros contextos. Certos dados coletados em outras cidades, ou em outros bairros, serviram

apenas de controle e não foram utilizados diretamente nesse trabalho.

Em fevereiro de 1995, retomei a Cachoeira afim de participar de umafesta dada pelos

descendentes de uma das famílias que me acolheram nos bairros estudados, e que fizeram parte de

minha amostra. Como eu os havia frequentado, regularmente, no espaço dos dois últimos anos de

pesquisa de campo, acabei sendo incondicionalmente admitido em seu círculo de intimidade. Por

ser ainda prematuro explicar, nesse prefácio, o que é uma "festa" de família ou de uma linha

familiar, eu não poderia explicar ao leitor, no momento, os elementos centrais (les enjeux) dessa

festa para os agentes familiares, e sua importância fundamental para minha experiência de pesquisa

(ver os capítulos IL IV, e principalmente o capítulo V,dedicado às 'festas de família ''). Digamos,
XlII

de maneira bem sumária, que certas famílias originadas dos bairros estudados se consideram

como sendo descendentes diretas de certas linhagens ou "nações" africanas escravizadas. Essas

famílias reinvindicam uma linha de descendência biológica articulada a uma linha de descendência

espiritual, sendo esta dotada de uma forte herança simbólica (mitos familiares, relíquias familiares,
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mitos fundadores, ancestrais mitológicos, etc.), apropriada a ser transmitida a partir das posições

de poder no seio de uma determinada configuração familiar, de geração em geração. Essas famílias

em questão instituem ritos de celebração, a fim de realçar a magnificência de seus ascendentes e

de seus protetores invisíveis (patriarcas miticos, nações, Orixás, etc.). Nesse ano de 1995, era a vez

dos descendentes de Dona Conceição me convidarem a participar dessa celebração. Eu me

contentarei em dizer aqui que dediquei quinze dias junto aos descendentes de Dona Conceição, de

modo a acompanhar a produção da festa, tirando dela as melhores informações possíveis.

AIgJ1ns meses mais tarde, de 7 de maio a 30 de junho de 1995, eu voltei pela última vez a

Cachoeira, em plena redação da tese, a fim de verificar e completar certas informações, e ainda

participar de certos acontecimentos públicos (festa de São João, festa dos Candomblés, etc.).

As condições de realização desse trabalho não foram, para mim, as melhores. Além das

contradições intelectuais das quais era alvo, eu enfrentava rupturas interiores tão brutais, e tão

violentas, que se tornara por vezes difícil administrá-Ias. Eu chegara ao Brasil no momento em

que o Haiti conheceu um dos mais sangrentos golpes de Estado de sua história recente. Eu havia

me exilado de um país que se tornara hostil a toda esperança e a todo sonho de liberdade. Nos

Estados Unidos, os organismos internacionais de direitos humanos estavam engajados em fazer

valer meu direito ao asilo político junto ao governo desse país, em setembro-outubro de 1991,

quando uma instituição da Bélgica, a Broderlijk Delen, para a qual eu havia feito pesquisas

alguns meses antes, ofereceu-me pagar uma bolsa de estudo em doutorado, em uma universidade

da minha escolha, na Europa ou América do Norte. Nesse meio tempo, a violência política haitiana

ultrapassava níveis tão absurdos e tão perversos, que os militares haitianos não faziam a menor
XIV

cerimônia em amontoar cadáveres pelas esquinas imundas dos bairros populares da capital. Um

pesadelo que forçava os exilados de fato, dos quais eu era um (pois nenhum texto de direito no

Haiti nos proibia a entrada no país) a perder toda esperança de um imediato desenlace de nossa

"crise ininterrupta". Nós podíamos apenas constatar afacilidade com que uma sociedade política

militar proibia, aos vivos, de respeitar a própria memória de seus mortos. Estava claro que a

democracia não era algo para o dia seguinte. Eu precisava utilizar meu tempo, mesmo sob a

metralhadora, para questionar o que constitui a trama das sociedades surgidas das plantations. E

como a questão para mim estava colocada desde meus estudos sobre a família, e o Brasil se

oferecia, a meus olhos, como um campo comparativo ideal, eu não tive nenhum problema, para a

surpresa de meus comanditários', a optar por este país.

Escolhendo "viver" minha pesquisa no Brasil, eu tinha escolhido não viver esses últimos 5

anosjunto aos meus: meus pais, minhafamilia, meus amigos, dos quais alguns sucumbiram sob as

balas dos militares (alguns entre eles, membros de organizações populares e paisanas às quais eu

pertencia, foram enforcados ou afogados). Eu estava condenado a viver à distância o que o "governo

dos ratos" fazia da vida dos seres humanos e de seus sonhos.

Os amadores da ciência têm muito pouca consciência das condições humanas de produção

das pesquisas no Sul. Refletimos muito pouco sobre as condições sociais nas quais emergem os

discursos sobre as práticas humanas. De minha parte, eu não creio que nenhum objeto intelectual

possa ser desvinculado das condições de sua emergência ~ não mais que um discurso das condições

de sua produção.

1 Para a surpresa de meus colegas também, pois ninguém do meu círculo havia levado a sério minha decisão de
concluir meu doutorado num país do Sul. Porque, eles me perguntavam, "perder a chance" de ter o selo da
Sorbonne, de Gainesvil/e ou de Liêge sobre meu diploma - o qual, segundo alguns colegas, poderia me abrir
muitas portas - em troca de uma obsessão de diálogo terceiro-mundista? Mesmo meus colegas brasileiros se
intrigavam quanto à "verdadeira razão" de minha escolha de fazer meu doutorado em seu país, considerando as
oportunidades que me haviam sido oferecidas na França, na Bélgica e nos Estados Unidos.
xv

É talvez nas condições mais hostis ao desabrochar do humano que há em nós, que nos

damos conta do profundo sentido da solidariedade humana. Essa solidariedade, eu a recebi

primeiramente pelo apoio de Broderlijk Delen que despendeu um imenso esforço para sustentar

meus primeiros anos de estudo em Doutorado. Sem isto, eu não teria os meios para viver essa

experiência. Fui também beneficiado com a bolsa da CAPES, durante meus últimos quatro anos de

pesquisas no Brasil. Os concursos premiados da ANPOCS e do Centro Afro-Asiático, me ajudaram

a realizar os trabalhos de campo. As perspectivas de pesquisa que me foram abertas pelo instituto

de pesquisa ISER, durante meus primeiros anos, me foram muito benéficas. A essas instituições, eu

sou profundamente agradecido.

Recém-chegado ao Brasil, eu não conhecia nada: nem a língua, nem os costumes, nem os

códigos de honra. Eu não tinha em mente nada além de uma certa literatura internacional, que me

havia apresentado um Brasil bem feito em matéria de estereótipos, mas na medida da democracia

racial da qual diz-se ser ele o campeão. Eu pude logo perceber que, o que o carnaval e a mestiçagem

são para nós, nas nossas representações caribenhas, os coqueiros e o mar o são para os brasileiros:

dois universos que se ignoram, apesar de que, tanto no Brasil quanto no Caribe, os coqueiros,

como o carnaval, a mestiçagem, como o tropicalismo, constituem somente um simples pano de

fundo! Mas por quais mecanismos essa ignorância recíproca se instituiu entre esses dois mundos?

Eu também não tinha, no Brasil; nenhuma relação. Eu não conhecia ninguém, apenas

alguns nomes do pessoal do ISER (Instituto de Estudo da Religião), dos quais Rubem César

Fernandes, que participava da mesma organização internacional que eu (o Réseau Sud-Nord). O

ISER foi para mim a principal instituição a me acolher. Durante todos os anos que passei, a

produzir essa pesquisa, eu me beneficiei, 24 horas por dia, de toda a infraestrutura dessa instituição,

ao ponto que essas facilidades imprimiram, à minha pesquisa, uma dimensão à qual eu estava

longe de esperar.

Essa solidariedade também se manifestou vivamente no contexto do Museu Nacional, onde

se encontra o programa de Pós-graduação em Antropologia Social (pPGAS) da Universidade


XVi

Federal do Rio de Janeiro. O Museu Nacional me ofereceu um contexto acadêmico que não tem

nada a dever aos melhores departamentos de Antropologia da Europa ou da América do Norte

(por ter feito a experiência). Alguns colegas e professores foram muito além de me dar um simples

apoio moral e intelectual: eles me deram seu tempo e nós nos comunicamos (o que é, em nossos

dias, uma rara exceção). Eu me arrisco a citar, entre estes, alguns professores: Dr. Moacir Palmeira,

meu orientador de tese, Dr. Antonio Carlos de Souza Lima, Dr. Afrânio Garcia, Dr. Márcio Goldman,

Dr. Eduardo Viveiros de Castro, Dra. Giralda Seyferth.

A alguns deles, tais como os professores Moacir Palmeira, Afrânio Garcia, e Antônio Carlos

de Souza Lima, eu tenho uma dívida inestimável. No decorrer desses anos, no momento em que eu

esperava o mínimo de mim, o professor Antônio Carlos de Souza Lima não me regateou seu apoio

moral e intelectual. Sua constância e estímulo foram a marca de sua atenção intelectual com

respeito a meu trabalho. Eu o agradeço infinitamente.

Eu sublinhei anteriormente que é nas condições mais hostis ao desabrochar do humano

que há em nós, que nos damos conta do sentido profundo da solidariedade humana. Afrânio Garcia

se destacou a meus olhos como a encamação da generosidade intelectual. Quantos dias de profundas

e elevadas discussões eu passei com o professor! Detalhista em suas reflexões, fecundo em sua

interpretação e atento em sua escuta, Afrânio Garcia tem, especialmente, a arte secreta de me por

em diálogo comigo mesmo. O ato solidário não tem medida. E seria insensato de minha parte se eu

tentasse lhe talhar uma dimensão. Obrigado, professor.

Com meu Orientador; o professor Moacir Palmeira, eu trabalhei com toda a liberdade.

Hoje eu reconheço que, sem essa liberdade de inventar meu objeto, através do meu próprio

questionamento, nenhum elogio a esse trabalho poderia ser justificado. Com ele, eu compreendi

que o verdadeiro mestre não é, sem dúvida, aquele que se impõe entre o aluno e seu saber, mas que

o orienta a descobri-lo por si mesmo. Meu saber é minha questão, e com o professor Moacir

Palmeira eu a soube formular. E lhe sou profundamente agradecido.

Eu tive o privilégio de discutir longamente com outros pesquisadores indicados, junto a


XVll

diferentes universidades brasileiras e estrangeiras. Graças a alguns deles, eu tive a oportunidade

de apresentar seminários sobre o estudo dafamília e do parentesco em meio urbano, principalmente

na área afro-americana (Caribe, Estados Unidos, Brasil). Essa oportunidade de discutir meu

trabalho de pesquisa me foi oferecida pela Dra. Mariza Corrêa, da Universidade de Campinas, e

pela Dra. Mariza Peirano, da Universidade de Brasilia. Em Paris, na França, eu tive a notável

ajuda, nas primeiras formulações de minha tese, de Annette Langevin, Diretora de pesquisa junto

ao Laboratório de estudos sociológicos da família, GEDISS, do Centro Nacional de Pesquisa Científica

(CNRS).

o clima de intercâmbio acadêmico promovido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

me permitiu discutir de modo contínuo - até à conclusão da tese - com os professores Abdelmalek

Sayad; da École des Hautes Etudes, do CNRS._e Verena Stolke; da Universidade de Barcelona. os

quais justificaram a fundamentação de pesquisas a respeito das práticas familiares dos negros no

Brasil. Eu recebi igualmente o apoio intelectual de Michael Houseman, Diretor de pesquisa junto

ao Laboratório de Antropologia do Centro Nacional de Pesquisa Científica As sugestões e críticas

de Michael Houseman no decorrer da redação da tese me foram excepcionalmente regulares e

oportunas. Graças a esse clima de intercâmbio, próprio ao Programa de Antropologia Social do

Museu Nacional (UFRJ), eu pude dispor de centros de discussão que, em outro contexto, me seriam

inacessíveis. A esses pesquisadores, manifesto meu profundo reconhecimento.

Não posso deixar de mencionar a ilimitada dedicação do pessoal da secretaria do Programa

de Doutorado e da Biblioteca do Departamento de Antropologia Social, sem a qual meu trabalho

não estaria acabado. Os responsáveis pela biblioteca epela secretariafizeram tudo para mefacilitar

o trabalho, liberando-me das pesadas tarefas burocráticas. Entre essas gentis pessoas, Tânia F erreira

da Silva se destacou como a pessoa chave que tornou suportáveis, as inevitáveis complicações,

próprias a um empreendimento de pesquisa numa sociedade diferente da minha. Tânia se encarregou,

literalmente, da organização de minha pesquisa de campo e das complicações burocráticas

cotidianas. Eu lhe sou profundamente agradecido.


XV111

No decorrer de minha permanência no Brasil, e, particularmente, no momento em que eu

passava por graves dificuldades pessoais durante minha pesquisa de campo, recebi o apoio

incondicional de meus amigos, principalmente do Dr. Frederico Neiburg, Tânia Ferreira da Silva

e Rosângela Cintrão. Seu apoio foi para mim tão fundamental que, sem isso, eu não conseguiria

continuar minha pesquisa de campo. Eu conheci amizades tão belas e generosidades tão tocantes

da parte de meus amigos, que eu não creio haver necessidade de palavras para dizê-lo. Eu preciso

somente que eles compreendam que foi graças a eles que, meus sofrimentos sendo partilhados

(sejam quais forem as condições dessa partilha), deixaram de ser para mim um exílio!

Minha opção pela etnografia explica essa longa imersão no universo estudado, e os pesados

investimentos em tempo, energia, e em dinheiro, que se fizeram necessários. Tais investimentos

seriam impossíveis, se eu não houvesse recebido o apoio financeiro e moral junto a essas instituições

e pessoas.

Por ocasião da pesquisa de campo, tive a oportunidade de tecer redes de relações pessoais

tão profundas, que o tempo não poderá apagar. Existem coisas as quais vivemos, que participam

do sentido de nossa própria existência. A experiência de campo, se ela é humana, não se traduz

numa experiência de texto. O amor e a sabedoria dos amigos Cachoeiranos e Bahianos, foram

para mim lições de vida. Lições que me modificaram profundamente. Elas fundam doravante minhas

esperanças humanas, às quais não renunciarei jamais. Eu espero que a vida venha a me dar razão.

Ao longo de todos esses anos de trabalho e privações, recebi o apoio inestimável, sem

reserva e sem limite, de minha maravilhosa mulher, Louise Myrlande Marcelin. Estando engajada,

nos Estados Unidos, na produção de sua própria dissertação de mestrado em Sociologia, ela

procurava, para mim, textos especializados sobre a literatura sociológica caribenha, visando

suplementar sua inacessibilidade no Brasil. Sem a rica documentação por ela fornecida, me seria

impossível progredir convenientemente em minhas idéias. Nossos encontros no Rio de Janeiro

foram marcados por intensas discussões sobre o estado de minha pesquisa. Eu gostaria de lhe

testemunhar aqui, o quanto essas reflexões foram, para mim, estimulantes e proveitosas.
XlX

As circunstâncias da vida nos forçaram a viver separados, um do outro, ao longo desses

cinco anos. Era sempre entre dois aeroportos, a Flórida (USA) e o Brasil, que a nossa vida afetiva

ia sendo construida, no risco da distância e sob as ameaças constantes dos tempos perdidos e dos

ventos que os levam. Tan ale tan pa tounen: exceto nosso amor. Nossa filha também, Louixelle, que

. é o seu mais puro produto. Eu estava ainda em campo, quando um telegrama - entregue com 48

horas de atraso - me anunciava que, em alguma parte nos Estados Unidos da América, ela

acabara de nascer. Hoje, a cada vez que o sopro do tempo vem a me fechar em meu silêncio, minha

mulher, para apagar minha tristeza por não ter estado então a seu lado, reinventa o mito de seu

nascimento, me contando, pela enésima vez, essa cena inaugural ... de "Ia" famille Marcelin.

Que esse trabalho final, embora incompleto e sem grande pretensão, justifique ofundamento

de tão grandes sacrifícios. A minha mulher e à minha filha, eu dedico esse trabalho.

Louis Herns Marcelin, setembro de 1996.


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1
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Introdução: A ordem e o caos

Anthropology wil/ survive in a changing world by allowing itself to perish in order to be


bom again under a new guise.
C. Lévi-Strauss 1967: 127.

Its obvious that unlesswe put people back into anthropologywe wil/ only dealwith behaviour
and institutions, and we wil/ deal with them imperfectly, for what people do is never fully
comprehensible unless we try to find out what they believe in and what their purposes,
values and norms are. [ ..j
[,.j The crucial question; therefore, is not Who is doing anthropology? but What kind of
anthropology is being done?
T. N. Madan 1994:134,)38

Eu descrevo nas páginas seguintes, os caminhos teóricos e metodológicos da pesquisa,

começando por discutir os paradoxos da alteridade doméstica nas sociedades não ocidentais, e o

quanto, nesses paradoxos, é dificil o diálogo entre as categorias analíticas apropriadas de maneira

acrítica pela antropologia das classes populares, e o vivido pelos agentes em questão. Esses paradoxos

são ilustrados na seção 1, a propósito das trajetórias das relações família, classe e etnicidade em

antropologia/sociologia, presos entre a "regra" e a "promiscuidade". Eu me concentro, nessa seção,

principalmente sobre exemplos de etnografia da família no Brasil, localizando-os inteiramente no

contexto latino-americano e caribenho, nos quais, mesmo sem grandes comunicações, eles buscam

parcialmente suas fontes teóricas e seus modelos metodológicos. Na seção 2, eu ilustro o objeto

intelectual de minha pesquisa, visando dar conta do campo, da metodologia e da produção da

etnografia.

-
2
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

1. Viver a régra na promiscuidade: família, classe e etnicidade em antropologia!

sociologia.

o discurso "definitivo" sobre a família no Ocidente (e em outros lugares), foi elaborado

principalmente no século XIX. A Europa ocidental, em sua singularidade cultural, produzindo um

discurso articulado sobre a diferença, inventariou, documentou, classificou e sistematizou, em um

conjunto de discursos, suas representações sobre o sexo, o gênero, a família e o parentesco, que são

de fato traduções de uma representação da sociedade "civilizada 1. Os postulados nos quais se baseia

essa representação consistem no fato que, numa sociedade baseada sobre o "solo e o Estado" (ver

nota 4), as relações de interações íntimas para serem reconhecidas e admíssíveis, devem ser traduzidas

em termos matrimoniais, perante as instituições jurídicas, visto que elas põem em jogo a transmissão

de bens vitais nas respectivas famílias, bens dos quais o Estado é a última garantia. Foi no ceme da

discussão sobre as relações de direito na sociedade, que as teorias sobre a família e o parentesco

foram elaboradas, sob diversas formas - evolucionismo, funcionalismo estrutural, estruturalismo. .s:

A questão da legitimídade matrimonial punha em jogo a transmissão dos bens pela linha patriarcal,

as condições desta, a filiação patriarcal, etc., constituindo um elemento central (un enjeu) da sociedade

(a organização do grupo famíliar numa estrutura legal que não comprometa o sistema social) e do

poder político (do qual o Estado é a suprema garantia). A questão consistia em produzir e fixar os

limites do privado, e em separar e conter o domínio do público.

Nas sociedades coloniais, tal como a sociedade brasileira do século XIX, esses discursos

foram redimensionados na medida da sociedade local, ao ponto que toda discussão sobre a atuação

do enfoque legalista nas representações dos discursos oficiais da família nessa sociedade (brasileira),

ou na região (latino-americana e caribenha), deve, evidentemente, partir desse contexto. É um truísmo

afirmar que a herança colonial carregou com ela as estruturas sociais e a força das ideologias

fundadoras das visões que os colonos civilizados tinham deles próprios e dos povos bárbaros/primitivos

por eles domesticados. Como em todas as colônias e neo-colônias - e o Brasil não é uma exceção
3
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

- os discursos jurídicos, políticos e científicos sobre a instituição da família, não foram simples

reflexos da realidade social da qual eles falam e codificam (em termos jurídicos ou não), mas sim um

eco da visão dominante da "sociedade" e da "civilização" em curso nas metrópoles, visão forjada

pelas elites locais. Na América Latina, com a emergência dos novos Estados-Nações, essa visão da

"sociedade" era concomitante à visão da "nação" (Graham 1990; Skidmore 1974; Stepan 1991;

Wade 1993). No final do século XIX e princípio do XX, o discurso sobre a família no Brasil era um

discurso construído principalmente na busca de um ideal da nação e do caráter nacional que marcaria

a sociedade brasileira (Skidmore 1993; Seyferth 1995).

o discurso sobre a família no Brasil, discurso imbricado na busca do caráter nacional, se r

cristalizava, bem antes de Gilberto Freyre e das ciências sociais dos anos 30, (desde as discussões

) pré e pós-abolição), na busca da origem, do sentido e das implicações da família patriarcal na produção

da sociedade brasileira. A família brasileira colonial, punha um obstáculo maior no pensamento

jurídico: a família colonial patriarcal, seria uma simples aclimatação da família portuguesa, ou derivaria

da família romana? O "privatismo" que funda a ordem social brasileira (Duarte 1966 [1939]:64-89)

consiste num complexo social (a família patriarcal) articulado a partir do núcleo conjugal colocado

contra o Estado; quando ele não desenvolve seus tentáculos até o cerne da organização do próprio

Estado. Esse complexo que se alastra, diferente em suas estruturas do observado em Portugal,

reúne no mesmo bloco agregados de todos os tipos no cimento ideológico do patriarcalismo, podendo

passar do patriarcalismo rural ao patriarcalismo autoritário (Azevedo 1948:73-98), até constituir a

matriz do "caráter nacional brasileiro" (Freyre 1977, contra a tese de Vianna, 1933, sobre a formação

racial do povo brasileiro). Sua estrutura se dá na casa (casa-grande), da qual a autoridade patriarcal

se exerce, desde o núcleo conjugal, até ao escravo em sua senzala. Em torno do núcleo conjugal

legalmente fundado, se distribuem, numa estrutura altamente hierarquizada, os empregados, as amas,

os bastardos, os escravos e outros dependentes (Freyre 1977). Essa família patriarcal, adaptação

tropical do patriarcalismo português (e não sua reprodução), encontraria sua origem na antiguidade

greco-romana, na qual reencontramos essa mesma estrutura que seria, de direito e de fato, o patrimônio
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

do pater familia. No Brasil, no final do século XIX e no decorrer dos anos 20, a discussão em torno

da idéia de "família patriarcal" visando dar conta do que representava a família para as classes

dominantes - a qual, diga-se de passagem, precedeu a elaboração freyriana sobre o caráter familista

da sociedade brasileira - havia se desenvolvido num quadro teórico filiação de jurídico com o

direito romano, segundo o qual, a noção de família entre negros e mestiços escravos, e mesmo entre

os agregados, constitui uma inépcia. Como pensar juridicamente a noção de família escrava? Como
-tj

pensar juridicamente a família dos agregados (negros ou mestiços livres integrados na casa do pater

familia), fora das relações verticais paternalistas que a integram na família do senhor? Além de

confundir a instituição da escravatura e seu exercício prático (segundo a distinção de Davis, 1970),

a representação jurídica da família e as experiências que a contradizem, as classes dominantes, por

essa mesma representação jurídica da idéia de família, negam aos "agregados" (como aos escravos)

sua condição de agentes. Tudo se passa como se tratasse de uma mecânica, cujas peças são montadas

e mantidas na mesma posição, segundo os desejos do montador (o senhor).

Meu interêsse aqui pela família patriarcal limita-se a seu caráter fundador das pesquisas

sobre a família no Brasil. Eu não me interesso pelo conceito em sua dimensão analítica e cultural.

Em sua dimensão analítica ela é uma configuração local do juridismo, em voga na Europa, sobre o

fato da sociedade. Como categoria cultural, ela traduz um contexto de intensos debates sobre a

identidade nacional e sobre as tramas da diferença. De fato, através da ideologia dominante da

família, as classes dominantes inventaram o que iria ser geralmente aceito como sendo o mito de

origem da "sociedade", baseado na crença de uma descendência comum, senão biológica (brancos),

ao menos cultural (ocidental, antiguidade romana), mas configurada, em virtude da miscigenação,

na "democracia racial", a qual, à maneira da família patriarcal, integra os diferentes componentes da

sociedade (independentemente de sua raça), assim hierarquizados. Esse mito da democracia racial,

modelado pela família patriarcal, constitui um dos fundamentos da idéia de nação, e do caráter

primordial e absoluto da descendência ocidental da "sociedade" brasileira, tal como formulada no

pensamento social da época (Seyferth 1980, 1995; Skidmore 1974). A ideologia patriarcal nesse
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

contexto sócio-histórico e intelectual, funciona muito mais como uma metáfora para definir um

"nós" cultural, que consiste num lugar sócio-espacial hierarquicamente superior. A família patriarcal

define e organiza (analítica e sócio-culturalmente) um sistema de lugares sociais e espaciais altamente

hierarquizados, cujos dois extremos, o senhor e o escravo, o branco dominante e o negro agregado,

se constróem num continuum de valores e de preferências, sempre em transição, no qual o senhor

traduz todos os valores absolutos e positivos, e o escravo/negro, os valores relativos e negativos,

nas fronteiras/limites da natureza e da cultura.

A discussão jurídica sobre a família - e isso não é um acaso - formalizou-se realmente nos

discursos oficiais (políticos, jurídicos, do final do século XIX aos anos 20, e, mais tarde, cientificos,

a partir dos anos 30) no momento em que as grandes convulsões de fim de século na Europa (a

revolução industrial, os desafios jurídicos, políticos e econômicos da sociedade emergente, a vaga

positivista e evolucionista, a quebra fatal do sistema escravagista, a elevação dos Estados-Nações

pós-coloniais, etc.) tiveram forte repercussão no Brasil (na América Latina e no Caribe). No Brasil,

a abolição da escravatura, a intensa penetração de capitais estrangeiros nas ruínas da economia do

açúcar e, mais tarde, do tabaco, a onda migratória branca para substituir os negros e impedir que o

Brasil fosse um novo Haiti, etc., acrescentaram novos desafios jurídicos sobre o acesso e a manutenção

da propriedade, o modo de acesso no novo sistema econômico, e, não menos, o modo de entrada do

Brasil nos rangs das "Nações civilizadas", no "Progresso". A idéia de progresso, de nação, do

Estado, da modemidade (daí decorrente) pediam novos regulamentos dos sentimentos, novos

mecanismos civilizadores. Uma tal concepção de família patriarcal tinha a vantagem de pensar uma

ideologia da nação que afasta toda e qualquer possibilidade de diálogo com a diferença. Os agregados

eram tomados por um movimento de promiscuidade sexual e fisica, no qual eles perdiam toda a sua

autonomia, definindo-se nos interstícios das relações patriarcais. Semelhante concepção exclui a de

imediato todo e qualquer estudo efetivo da vida familiar dos negros em particular, e das classes

populares em geral. Essa ideologia da família se relaciona com uma representação do caráter nacional

brasileiro, cujos termos serão explicitados em outros estudos, posteriores a essa tese'.
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

As melhores ilustrações da atuação dessa ideologia nos estudos sobre a família no Brasil,

nos são dados pela construção de um modelo único, o modelo patriarcal, construído como modelo

analítico por Antônio Cândido (ver Mello e Souza 1951), seguido de Freyre (1977 [1933]) e de

Sérgio Buarque de Holanda (1941). Em Freyre, o conceito se refere ao mesmo tempo a um sistema

familiar de produção econômica, e a um sistema patriarcal de regulação familiar - poder incontestado

e incontestável do senhor, pai, chefe de família. Essa estrutura se dá, em toda sua significação, no

par Casa Grande e Senzala, unidade certamente contraditória, mas suficientemente integrada na

promiscuidade do cotidiano familiar que dela emerge como o pattern de conduta que tornou possível

a "democracia racial" (Freyre, LXIII e passim). Em A. Cândido (Mello e Souza 1951), houve uma

reavaliação do conceito, tal como construí do por Freyre; sua perspectiva consistiu em perfazê-lo e

traduzi-l o numa figura modelo que pudesse dar conta das transformações em curso na família brasileira

(sendo seu objetivo estudar como se operam essas transformações, da organização patriarcal à

organização nuclear urbana). A imagem evocada por Cândido se desenhava assim: três círculos

concêntricos, dos quais o primeiro é o núcleo familiar do senhor branco; em torno dele, a periferia

informe composta "de escravos, agregados, índios, ou mestiços, nos quais contava-se as concubinas

dos chefes e seus filhos legítimos", numa palavra, a ordem da natureza segundo a qual as pessoas

não constituiam ''família'', mas se reproduziam e satisfaziam suas pulsões sexuais; e, enfim, no último

círculo, a massa polimorfa dos desclassificados. Com a industrialização e o crescimento da vida

urbana, operou-se uma transformação segundo a qual o centro nuclear da família patriarcal, se

autonomizava na vida urbana; esse desprendimento progressivo levou a uma renuclearização dos

grupos familiares periféricos com relação ao universo patriarcal, que ele traduz pelo termo "família

parcial", família desorganizada, sem pai, ilegítima e submersa na promiscuidade. Sobre a base do

modelo trabalhado por Cândido (Mello e Souza 1951; 1971 [1954]), WiUens (1954) construiu sua

análise sobre a estrutura da família brasileira. Willens assume, sem discussão, a existência generalizada

do modelo único de família patriarcal rural no Brasil colonial. Esse modelo teria se modificado

progressivamente no decorrer do princípio do século XX, deixando de corresponder à realidade que


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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

ele estudava. Criticando inteiramente a posição assumida pelas pesquisas clássicas quanto à família

das classes dominantes, ele buscava demonstrar que nas classes populares (que ele chamava de

classe inferior), a família se caracterizaria pela desorganização, a instabilidade, a ilegitimidade dos

filhos, devido ao pouco casamento entre os grupos populares. A família nesses meios, tanto para

Willens quanto para Cândido, é uma espécie de mecanismo de regulação de sentimentos, mecanismo

ainda fraco, cujos valores civilizadores não foram ainda assimilados pelos integrantes desses grupos.

C. Hutchinson (1955), em seguida a H. W. Hutchinson (1954)3,. reformulou nos seguintes termos

essa classificação da prática familiar no Brasil, num estudo sobre a organização familiar no Recôncavo:

"( ....) existem três tipos distintos de organização de família no Brasil:


1- o tipo a que podemos chamar "remanescente patriarcal".
2- o tipo de família nuclear biológica.
3- o tipo a que chamaremos aqui de família parcial".

Bem entendido, o terceiro tipo, o mais divulgado, é composto de famílias de negros e de

mestiços, da periferia das cidades e das vilas. As famílias que ela chama de parciais (ver Hutchinson

1954:262), constituem segundo a autora a imensa maioria, e caracterizam-se por todos os aspectos

acima mencionados. Essas caricaturas de família (as famílias parciais segundo Hutchinson) são presas

às redes dos grandes núcleos familiares, e seriam desprovidas de toda autonomia, constituindo, de

preferência, uma corrupção da família normal.

É interessante observar o quanto, em todos esses. estudo s, as práticas das famílias das classes

populares são estudadas apenas como residuais. Os pesquisadores assumem um modelo familiar

como ponto de partida. Um modelo, no entanto, que não se toma explícito em nenhum dos estudos

mencionados. Contudo, esses modelos analíticos uma vez estabelecidos, constituíram os paradigmas

centrais em tomo dos quais foram construídos os discursos sobre a família das classes populares, até

às discussões dos anos 70. Que seja Oracy Nogueira (1962), Thales de Azevedo (1966), passando

por todos os trabalhos que tiveram influência mais ou menos limitada sobre as pesquisas

contemporâneas, já sabemos o que é "a" família e já conhecemos os termos nos quais ela pode ser

formulada, nas "condições normais" e "anormais". A família das classes populares, até os anos 70,
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

foi pensada como uma massa informe de promiscuidade, de desorganização, da família parcial,

resultante da transição entre a economia escravagista, baseada no modelo único de farrúlia patriarcal,

e a crescente economia industrial, baseada na família nuclear. Nesse dualismo constitutivo do discurso

sobre a farrúlia no Brasil, dualismo manifestando dois universos estruturados na democracia racial,

pela virtude mágica da miscigenação (também aceitafor grantedpelos estrangeiros, Seyferth 1980),

não haveria nenhuma possibilidade de reapropriar a história social das classes populares, ainda menos

a história da passagem dos negros, da escravidão à liberdade (e das significações desta em sua

invenção do cotidiano, Scott 1992) - condições determinantes para a apropriação da história social

brasileira.

Essa ideologia da família diluída na ideologia racial não é, como mencionado, um fato isolado.

Ela se articula num contexto de relações sócio-raciais geradas e articuladas nas plantations. Para

situar e compreender esse cruzamento entre a produção local e a produção regional sobre a farrúlia

das classes populares, e dos negros em particular, no Brasil, é preciso redimensionar o debate,

colocando-o em seu contexto americano, e ver como, em outros espaços de plantation, a questão

negra - em sua farrúlia- foi colocada. Pois é nessa fonte comum que reside a unidade dos discursos,

apesar de sua aparente variação.

Ao mesmo tempo que se produzia um silêncio absoluto sobre a farrúlia dos negros no Brasil

e na América Latina, silêncio administrado no pensamento social pelo mito da "democracia racial",

sustentado pelas elites dominantes das sociedades locais (na América Latina) - tornando irrelevante

e caduca qualquer pesquisa sobre a questão -, no Caribe, onde as sociedades locais se definiam não

com relação a elas mesmas, mas com relação a suas metrópoles, nas relações renovadas da colonização

(Estados Unidos, sociedades coloniais, Dom Tom, etc.), o discurso formal da farrúlia sobre a farrúlia

(o discurso político-jurídico) se construiu completamente. fora das sociedades locais. É para pensar

a alteridade no coração das metrópoles - os negros nos Estados Unidos e nas colônias da Inglaterra

- que esse discurso foi elaborado. Esse discurso sobre a farrúlia dos negros que se transformara em

nossos dias em discurso sobre as classes populares em geral - universalização forçada! - nasceu
9
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

/ no próprio seio da sociedade anglo-americana. Compreender o contexto desse discurso é capital.

Em toda a América das Plantations, o negro só se tornou um problema, a partir do momento

em que o sistema escravagista começou a representar muito mais um obstáculo, do que uma solução,

frente aos problemas colocados pelos novos contextos da produção. Escravos = fator de produção

(Mintz 1982) tornava-se uma resposta obsoleta a um desafio moderno. A questão dos negros no

sistema de trabalho assalariado se colocou da mesma maneira, em termos diferentes para os Estados

Unidos, para os tutores do Caribe e no seio deste (uma comparação desses termos, tais como

explicitados nas colônias francesas, holandesas, inglesas, e mesmo no caso sui generis do Haiti,

seria bem reveladora!), e na América Latina. Mas em função da posição social comum aos negros

nas hierarquias sócio-raciais locais, que modelavam todas essas sociedades (à exceção da configuração

singular do Haiti), a questão se COl7u em torno da problemática da assimilação ou não dos negros "..

nessas sociedades, ou do acesso ou não (ou do nível de acesso) destes à cidadania, ou, enfim, do

modo de utilização de sua força de trabalho no novo sistema de produção. Jamais sua cultura, seu

modo de habitar o mundo, eram tomados como campos de estudo em sua positividade.

Dois textos constituíram os parâmetros inaugurais em torno dos quais foram construídos os

debates acadêmicos ulteriores, sobre o que viria a ser doravante conhecido como sendo "a família

negra" em antropologia/sociologia. Primeiramente, The Negro family in the United States, de E.

Franklin Frazier, publicado em 1939, como reação aos estudos racistas publicados no mundo

acadêmico americano no final do século XIX e princípio do XX (as pesquisas de campo foram

empreendidas no decorrer dos anos 20). Nesse estudo, Frazier se propunha a estudar as práticas

familiares dos negros como expressão da desorganização consequente do sistema escravagista.

Haveria uma tábula rasa que teria arrebatado ao negro seu passado familiar. Frazier - que era ele

próprio negro - estava preocupado com os processos que dinamizavam as relações raciais,

inevitavelmente no sentido da assimilação. Essa assimilação, conforme seu argumento, se dava por

etapas: se o negro está sem família hoje, é por causa de seu passado de escravo. Durante a escravatura,

ele era assimilado pela família do senhor, pois as condições da escravatura o impediam de viver as
10
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

dimensões de uma família normal, quer dizer, com pai, mãe e filhos. A emancipação dos escravos os

teria tirado de seu meio histórico: ao encargo dos brancos, civilizados a educá-los para que eles

assimilassem os novos valores da civilização e assumissem suas responsabilidades na família. Contra

a tese da tábula rasa, Herskovits se insurgiu. Segundo ele, Frazier, ao tirar do negro sua história,

fazia do negro um alvo fácil para as teorias racistas. Ao contrário, trata-se de revalorizar o passado

negro, é preciso remontar à África para apreender os sentidos de suas práticas familiares. Com essa

finalidade ele escreveu The Myth of the Negro Past (1941), cujas pesquisas de campo foram efetuadas

quase que na mesma época das de Frazier (ele havia publica1~ 1937 Life in a Haitian Valley).

Desde os trabalhos de Frazier (1939) e de Herskovits (1941) - os quais lançaram um

debate cujos efeitos fazem eco ainda hoje nas discussões contemporâneas relativas à família no

Caribe (Price e Mintz, 1976:33) - os antropólogos/sociólogos coletaram dezenas de volumes de

trabalhos etnográficos sobre a família dos negros (André 1987; Benoist 1077; Trouillot 1992). Esses

estudos se desenvolveram no momento em que o funcionalismo-estrutural de inspiração anglo-

saxônica, o culturalismo de inspiração americana - herskovitsiana (herança de Boas), e o

estruturalismo lévi-straussiano, disputavam o campo. O culturalismo herskovitsiano se prendeu à ..

pesquisa das práticas culturais que estabeleceriam a sobrevivência das práticas africanas nas Américas.

Tratava-se, segundo os parâmetros culturalistas, de construir a área, hoje clássica, dos "afro-

americanos'" - ou as Américas negras (Bastide 1969).. Se a tradição culturalista dedicou-se sobretudo

ao estudo das práticas culturais, através da religião (entre outros Herskovits, Métraux), do folclore,

da antropologia econômíca (Mintz) etc., a organização familiar dos negros foi o terreno exclusivo,

até os anos 80, do funcionalismo estrutural, e isto desde Frazier. Nos trabalhos de Frazier (1939), a .::)

questão central dirigida à família dita negra, visava à história das determinações estruturais que

explicariam as razões de sua desorganização e de seu afastamento com relação à norma universal'.

Partindo da premissa do caráter definitivo dos trabalhos de Frazier, os antropólogos anglo-saxões

redimensionaram suas questões, no que concerne às sociedades caribenhas, visando o efeito de sua

posição na estrutura sócio-econômica dessas sociedades sobre a estrutura familiar dos negros,

li.
11
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

transpondo os debates em curso na antropologia africanista na realidade caribenha. A ilustração

desses debates se dá na discussão em torno dos conceitos de matrifocalidade e de ilegitimidade na

família negra", conceitos importados na América Latina para pensar as classes populares (ver capítulo

TIl para discussão e capítulo IV, a propósito da matrifocalidade e da ilegitimidade). O Caribe funcionou,

durante muito tempo, como laboratório de pesquisas sobre os negros, de modo a sugerir respostas

à problemática negra nas sociedades dos Estados Unidos e inglesas.

Os pontos que convém reter dessa discussão são os seguintes:

1) A alterização contínua e radical das práticas familiares, que são experimentad~argens

das normas postuladas por um ideal de sociedade (a sociedade capitalista de célula familiar nuclear);

em função dessa norma, os estudos foram desenvolvidos, seja no Caribe ou nas Américas, a fim de

produzir um discurso sobre o afastamento da norma (seja ela patriarcal ou conjugal) vigente nas

classes dominantes, brancas, das Américas; em consequência, foi preciso aguardar muito tempo

para que rupturas epistemológicas fossem produzidas a partir de pesquisas alternativas (como em

Genovese 1974; Gutman 1976, em história; ou Stack 1974, em antropologia) ou de reflexões teóricas

l que colocam a pluralidade das práticas familiares no centro do debate (como em Blumberg 1977),

ao invés de colocá-Ia como um simples elemento dos discursos acadêmicos, jurídicos e políticos. No

Brasil esse questionamento do estatuto da família das classes populares em geral" no discurso clássico

sobre a familia, foi empreendido no decorrer dos anos 70 (Corrêa 1982; Samara 1980). Uma

convergência de questionamentos teóricos e posições políticas, nos anos 70, conduziu a uma avaliação

das formas de se escrever a história social (a partir das pesquisas de demógrafos e historiadores

sociais, mas ver discussão no capítulo Ill) e do regime de discursos sobre a família, em vigor na

sociedade brasileira, assim como no sentido de uma reescritura que levasse em conta as famílias

invisíveis, mascaradas pela ideologia patriarcal nessa sociedade.

2) A redução da vida dos agentes familiares em meios populares, a simples seres carentes, ")

presos à máquina econômica infernal do capitalismo, incapazes de produzir uma cultura, de habitar

simbólicamente o mundo [redução contra a qual Oscar Lewis se revoltou em suas monumentais
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

abordagens da vida familiar em meio popular no México (1980) e em Porto Rico (1966), apesar de

sua noção reificada de "cultura dos pobres" ter provocado bastante polêmica]. No Brasil, a abordagem

que tentou restituir o espaço dos pobres nos discursos eruditos sobre ~ família, permitiu a elaboração

de importantes trabalhos [como H. Woortmann s/d; ou em Woortrnann 1982; 1987 - mesmo que

este não tenha escapado ao discurso matrifocalizante (1987), imposto pela literatura afro-americana r.
3) Através do discurso da anomia gerada, pelas pesquisas estruturalistas funcionalistas sobre ()
-
a família dos negros nas Américas, ou, através da ausência de discurso (ou o discurso da ausência)

sobre a família dos negros no Brasil (na América do Sul), operam-se os mesmos postulados da

norma e da desordem; da ordem e do caos, no mesmo continuum hierárquico do negro nas sociedades

dominantes locais. Há somente um deslocamento dos termos de apreensão da diferença: na medida

em que a sociedade dominante branca local postule a radicalidade da alteridade negra, produzir -se-

á o discurso da família como discurso da diferença (como é o caso nos Estados Unidos). A família

negra, dotada de características reificadas, se apresenta como um problema ou desafio à sociedade

[para aqueles que pensam que a discussão seria obsoleta, eles devem apenas consultar o livro The

Bell Curve publicado nos Estados Unidos (The Free Press 1994) e a discussão que dela faz objeto

na revista Mais do jornal Folha de São Paulo entre Outubrol1994 e marçoI1995). Na medida em

que a sociedade dominante propõe um ideal de "nação" no qual a noção de "raça" entra como um

componente essencial da individualidade nacional, como é o caso na América Latina, principalmente

no Brasil, através da noção de branqueamento e seu corolário, a "democracia racial", a família do

negro simplesmente não é construí da, ou melhor, é pensada apenas em sua relação (no sentido da I

sociedade relacional de DaMatta 1985; 1987) com a família patriarcal da qual ela tira sua existência,

e sem a qual ela não guarda nenhuma individualidade. Considerando, por um lado, a literatura

antropológica/sociológica sobre o negro em família nas Américas, há uma abundância de discursos,

montados em torno do tema da família negra ou família afro-americana ou afro-caribenha - o que

conduziu a um essencialismo caricatural e enganador da "família negra" nos Estados Unidos e no

Caribe. Por outro lado, no Brasil, há um vazio de discurso, suspeito. Nas duas formas do exercício
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

da pesquisa, opera-se uma concepção que sanciona o espaço familiar do negro, seja como alteridade

reconhecida - que deve ser compreendida, corrigida, integrada - seja como pura relação,

desprovida de toda identidade familiar, eterna agregada da grande família patriarcal, a qual engendrou

a sociedade relacional. A antropologia (ou a sociologia) dos Afro-americanos produziu a família

negra pelos enunciados. A antropologia (ou a sociologia) brasileira, evitando construir a família ~

entre os negros como objeto de investigação, a construiu pelo silêncio.

É todavia curioso constatar que, apesar da significativa ruptura, acima mencionada, com a

abordagem tradicional da família no Brasil, não existe uma preocupação intelectual nos novos

estudantes da família, em querer construir a vida familiar dos Negros contemporâneos como objeto

de pesquisa relevante (mas ver Barbosa 1983)8. No entanto a problemática da "família negra" exerce

uma dupla influência sobre as pesquisas contemporâneas dedicadas à "família" das classes populares:

a) pela repatriação das ferramentas conceituais aplicadas à análise das estruturas familiares dos

Negros do Caribe e dos Estados Unidos ao Brasil- é o caso dos conceitos de "matrifocalidade" e

de consanguineal household, de "ilegitimidade", para citar apenas as fórmulas analíticas chaves da

antropologia afro-americana; se é verdade que essas novas perspectivas pós-freyrianas renunciam

ao projeto de "racialização" ou de "etnização" das organizações familiares em curso na antropologia!

sociologia das sociedades negras das Américas, elas não renunciam no entanto à apropriação dessas

ferramentas conceituais para pensar a família dos pobres em geral; b) pelo silêncio suspeito que se

faz a respeito da construção da vida familiar dos Negros no Brasil como objeto de estudo legítimo.

As novas perspectivas embarcaram, apesar de todas as suas promessas, na idéia da miscigenação

como um fato acabado (mas graças aos demógrafos, começa-se a se dar conta que o processo da

miscigenação participava muito mais da ordem da convicção que da demonstração; ver Berquó

1987; Carvalho 1988). Como se esse fato acabado (se ele o fosse) pudesse tirar magicamente o

Negro de sua condição étnica construída nu cotidianc às margens da sociedade dominante, É como

se a condição de classe esvaziasse a condição étnica de todo significado, e como se fosse suficiente

liberá-lo da primeira para que ele não seja mais construí do, por seus pares e pela sociedade dominante,
14
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

como portador de diferença.

Minha escolha em estudar a construção da família entre os negros do Recôncavo da Bahia


_/

faz parte de um projeto de reflexão sobre o conjunto de discursos montados em torno desse objeto

- em exercício nessa antropologia/sociologia regional sobre as classes populares. Partindo da

construção social e cultural da família entre os agentes, eu me proponho primeiramente a mostrar

que não existe "a família negra", enquanto organização social própria aos negros das Américas,

assim como também não existe~~mília como realidade transcendente cujas normas seriam -r

universais. Insistindo, por outro lado, sobre o uso sócio-cultural da família junto aos Negros nas

zonas estudadas, eu espero mostrar o fundamento de uma pesquisa sobre a produção cultural das

regras de convivência familiar, entre os agentes participantes dos segmentos sociais construídos, na

sociedade dominante, como sendo "grupos étnicos".

Abordar de modo diferenciado o uso cultural e social da família entre os Negros nas zonas

estudadas, implica para mim numa tripla demarcação: a primeira consiste em rejeitar a tese essencialista
"1.

sustentada por uma boa parte da literatura antropológica/sociológica sobre os "afro-americanos". A

segunda demarcação se inscreve na perspectiva de rupturas à qual eu me referia acima - ela consiste

em produzir outros parâmetros de análise, que possam dar conta de outros aspectos da vida familiar

dos pobres, até então ignorados pela bibliografia. Eu penso aqui na impossibilidade de produzir essa

abordagem a partir do modelo patriarcaL É verdade que Q modelo patriarcal permitiu abordagens

originais e criativas de fenômenos, tais como o autoritarismo brasileiro (DaMatta 1983), mas ele

não permite pensar as estratégias de resistência dos dominados, face a esse movimento autoritário.

Quanto mais essa abordagem procede pelo apagamento de traços, como o sublinha Corrêa, ela

reduz a existência histórica de todos os elementos que não participam do modelo dominante, num

lugar privilegiado; o engenho. É evidente que essa demarcação não implica, de modo algum, na

negação da importância de tal conceito para pensar, não somente certos traços próprios às

organizações familiares no Brasil, mas também certos traços dominantes da sociedade brasileira.

Enfim minha terceira demarcação consiste na recusa ao economismo que por muito tempo caracterizou
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

a abordagem família/classe social. As condições econômicas constituem um determinante incontestável

no estudo da família, não importa em qual sociedade, mas elas não são suficientes. Meu procedimento

aqui privilegia tanto essas condições econômicas (reificadas sob o conceito marxista de classe)

quanto o simbólico (que é uma dimensão da classe). Eu proponho uma abordagem construtivista

social e cultural pela qual eu espero desmistificar a abordagem da "família" nas classes populares

como um todo indiferenciado. Ela informa o quanto as estratégias familiares e os usos sócio-culturais

da família,no seio de uma mesma classe Qar, podem ser diferenciados. Ela mostra que não

existe "a" família dos pobres, mas sim usos diferenciados da família como experiência diversificada

nas classes populares. A etnografia confirmará ou invalidará essa postura.

A intenção de minha tese não é exatamente o tratamento do caráter essencial da família,

numa condição sócio-cultural determinada, mas antes a apresentação de um estudo compreensivo

da construção do fato familiar, que possa ser aplicado a diversos níveis da prática social. Meu

objetivo não está em remontar aos traços ou elementos africanos na vida dos agentes, mas sim em

estudar as integrações específicas e as formas simbólicas elaboradas na produção do seu cotidiano.

Nessa perspectiva, eu tentei construir um modelo analítico de família e do parentesco em

meio popular, no Recôncavo da Bahia, que tem como ponto de partida a experiência subjetiva dos

próprios agentes, quer dizer, suas crenças, as normas que orientam seus comportamentos, suas

estratégias, os valores que configuram suas opiniões e que dão conta das lógicas que governam suas

práticas no cotidiano. Eu suponho que essa experiência subjetiva da família e do parentesco, nas

classes populares, assim como seus usos sociais/culturais por parte dos agentes, não se encontram

ao abrigo das determinações sócio-históricas, não são vividos nos mesmos termos, com igual

intensidade, e não traduzem as mesmas significações, em todos os segmentos sócio-étnicos nas

classes populares brasileiras. Em outras palavras, eu rejeito uma certa concepção monolítica e

reificadora da classe, que permitiria essencializar a família em meio popular. Em compensação, eu

coloco a diversidade da experiência familiar em função das trajetórias geográficas e sócio-históricas

diferenciadas das camadas sócio-étnicas que a compõem. Para dizer brevemente, eu abordo a

,>
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

experiência familiar dos agentes como um processo que se constrói a partir do lugar social, e da

hierarquia sócio-étnica nos quais eles estão localizados. É nesse contexto que é preciso apreender o

alcance de um estudo das práticas familiares de uma categoria étnica, dentro de uma realidade de

classe. O estudo da experiência e dos usos da família, entre os negros do Recôncavo da Bahia, não
+-
é como a de uma ilha, isolada da sociedade; esse não é um estudo das sobrevivências africanas, mas

sim de uma maneira de viver um lugar social e espacial; é o estudo d~dimensão das condições

sociais em meio popular. As práticas sociais dos negros não são um traço a apagar, nem uma dor a

sarar: elas representam uma dimensão da sociedade brasileira.

Mas essa dimensão da sociedade brasileira não apareceu espontâneamente. Os sistemas· de

relações sociais que tornaram possível essa configuração sócio-cultural, participam de um processo

histórico que deixa sua marca, de longa duração, na construção do presente; uma longa duração

cuja história daria conta das continuidades e rupturas em curso nos sistemas atuais de relações

sociais. Eu sustento nessa pesquisa que essa configuração sócio-cultural participa de uma constelação

maior, na qual essas variedades e especificidades encontram sua unidade, a das sociedades latino-

americanas e caribenhas. Com efeito, para compreender as relações sociais e culturais nos meios

estudados no Brasil, eu parto da idéia da originalidade e da especificidade cultural das sociedades

pós-plantocráticas: a produção das Américas consistiu numa modelagem sócio-racial hierarquizada,

expressão de uma interpretação do mundo que remete, todas as práticas sócio-culturais não ocidentais,

às fronteiras da natureza e da humanidade. Eu assumo, implicitamente, a partir das pesquisas intensivas

efetuadas sobre o exercício e os efeitos sócio-étnicos da instituição da hierarquia, inaugurada nas

plantations americanas e caribenhas (por exemplo, Drummond 1980; Smith 1985), a idéia de um -<

continuum cultural (sugerido por Drummond 1980:370) para dar conta das continuidades - da

experiência plantocrática - inscritas nos sistemas de relações que configuram cada uma dessas

sociedades, e da diversidade histórico-cultural que constrói sua individualidade. Essa diversidade

histórica encontra, segundo Drummond, uma unidade no fato de partilhar um conjunto de mitos

sobre a diferença, assim como a própria experiência desta. Ela constitui o "signo distintivo" (no
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

sentido de Schneider 1969) dessas sociedades, nas quais "[11 he 'elementary structure' of such a

cultural system is not an isolated proposition, but an intersystem - the pragmatic residue of persons

seeking to define their identity "vis-à-vis" one another".

Eu parto, nessa pesquisa, da premissa da necessidade de uma etnografia da construção social

e cultural das formas de organização social, assim como das relações sociais que as criam e as iJ
situam, como ponto de partida de toda análise da experiência familiar, em meio popular. O ponto de

partida que eu proponho nesse procedimento, supõe um trabalho de desconstrução teórica (destrutiva

e construtiva), pela confrontação dos termos da tradução cultural, através das etnografias dos sentidos

atribuídos aos vocabulários analíticos que servem a dar conta, seja nas etnografias nacionais, seja

nas formulações teóricas gerais, das práticas familiares dos agentes estudados. Em outras palavras,

o leitor não deve esperar aqui a construção de um modelo analítico de família ou de parentesco,

como ponto de partida da análise. Estarei partindo, antes, de uma tentativa de por em diálogo

conceitos culturais e relações sociais envolvidas com os conceitos analíticos e as generalizações

teóricas por estes supostas. Por outro lado, na seção seguinte da presente introdução, eu problematizo

os postulados implícitos nas categorias analíticas aplicadas à família nas classes populares, categorias

que se quer universais. É somente após ter dado conta das noções culturais e das relações por elas

engendradas entre os agentes, assim como seus respectivos usos por parte destes, que eu arrisco

alguns termos de generalização, numa perspectiva comparativa.

2. Casa, família, parentesco e etnicidade

Eu sustento nessa tese que os patterns sócio-culturais que modelaram e geraram as hierarquias

sócio-étnicas, traduzidos pelo ideal do branqueamento e do mito da democracia racial, e os sentidos

das relações daí decorrentes no Nordeste do Brasil, embora inaugurados a partir de uma matriz

social hoje não mais existente - o sistema das plantations com a escravatura negra nas Américas -
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

configuram, em sua forma de atuação, as lógicas implícitas à produção e aos usos dos laços familiares

e de parentesco nessa região. Eu situo, nesse trabalho, os laços familiares, de parentesco e afetivos, '

no cerne das determinações sócio-históricas. Com efeito, os resultados das pesquisas analisadas

nessa tese mostram que os laços em questão veiculam uma relação obsessiva com o corpo, no que

ele traz, em graus diversos, de marcas estigmatizadas socialmente construídas.

Estudando a produção das relações familiares em meio as construí do "negro" no Recôncavo

do Nordeste do Brasil, eu enfoco a categoria cultural "casa":

1°) Como lugar no qual se constróem e posicionam os "corpos geométricos" (no sentido de

Bourdieu 1977), quer dizer, a casa como representação de si, em relação aos outros, e como reinvenção

e construção do mundo. Eu postulo que o corpo, a casa e as representações estão em eterna interação,

e que por esta interação se joga o lugar sócio-étnico dos agentes estudados, nas hierarquias em

curso na sociedade brasileira (Capítulo 11).Partindo da categoria cultural casa a fim de dar conta da

produção da família e do parentesco entre os agentes do Recôncavo, eu faço, analiticamente, não

somente uma extensão das pessoas que a habitam - cristalizando os atributos dos estigmas pelos

quais são identificados na sociedade (como negros) - cuja identificação é combatida, rejeitada,

reapropriada e simultaneamente negada - mas também considerando-a como lugar de invenção e

articulação de redes familiares intra e inter-geracionais (Capítulo 111).As relações entre o corpo e a

casa, no que está representada fisica e cognitivamente, constituem o centro focal onde são absorvidos,

articulados e redefinidos os modelos cognitivos pelos quais os agentes se situam no mundo familiar

e social. /

2°) Os resultados das pesquisas apresentados nessa tese sugerem que a casa é também um

lugar de atuação da ideologia do branqueamento e do mito da democracia racial. As relações de

interação íntimas entre parceiros, as relações afetivas entre família e parentes, não se constróem

fora das questões ligadas ao estigma, à sua gestão e transmissão: as escolhas de objetos afetivos são,

elas próprias, "pre-determinadas" pelos agentes. O corpo socialmente estigmatizado é a expressão

de um lugar preexistente ao estigma.


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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

3°) Do qual decorre o problema da transmissão, a terceira razão de se abordar as lógicas que

sustentam a construção dos laços intra-geracionais e do parentesco, a partir da casa. Com efeito,

uma das questões centrais que atravessam essa pesquisa, pode ser formulada da seguinte forma: por

que a aliança e a filiação (a descendência) conduzem ao estigma? Em outras palavras, como se

transmite um estigma entre aqueles que são socialmente estigmatizados?

Todo grupo social experimenta a necessidade de transmitir. A transmissão das coisas entre

gerações é, para retomar Thompson (1993), tão velha quanto a humanidade. Diversos estudos

sociológicos/antropológicos mostraram, por exemplo, que os objetos de transmissão de uma pessoa

à outra, de uma geração à outra, de um grupo ou sociedade a seus herdeiros, participam de um

sistema de objetos altamente valorizados. São objetos simbólicos (relíquias e antiguidades de uma

família, títulos de propriedade, nomes, etc.) e materiais que dão e relevam o estatuto da filiação,

assegurando a transmissão de um valor positivo à progenitura. Os indivíduos, as gerações, os grupos,

as sociedades, em geral, administram apenas a transmissão daquilo que, à sua vista, constituem

valores positivos. A questão que me interessa aqui, afasta-se positivamente desse lugar comum. Eu

me dedico a estudar os mecanismos de transmissão, não de valores positivos, mas sim do estigma

em "situação extrema", através da família; entendendo-se aqui por "situação extrema", não uma

prisão, um gueto ou um campo de concentração, mas sim,na ausência dessas estruturas, uma condição

interior inscrita numa ordem social que não é, em nada, arbitrária. Essa condição interior é a

manifestação íntima da tradução, no corpo, das marcas sociais construídas sobre posições biológicas:

ela constrói o corpo como lugar de confrontações e auto-negações de si. Eu entendo por estigma,

construções sociais produzidas em torno de posições biológicas das quais o corpo se torna a

cristalização (os atributos associados à raça ou à etnicidade).

Volto então à minha questão: como um grupo composto de corpos estigmatizados pela

sociedade dominante se constrói numa rede de interdependências sociais e cognitivas, e se transmite,

através das práticas sociais, dentro e fora de seus estigmas? As práticas familiares constituem domínios

sociais por excelência, graças às quais podemos estudar os modos atuais de transmissão e de
20
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

perpetuação dos estigmas entre os respectivos agentes. Tomando as práticas familiares e da

domesticidade do construído "negro" no Recôncavo da Bahia, eu me proponho não somente a -1-

tomar por objeto as formas e usos da família e do parentesco nos meios populares nessa região, mas

sobretudo a estudar a lógica dos mecanismos de transmissão que as fundam e perpetuam. Os domínios

da família e do parentesco estão ao centro desses mecanismos, por colocarem os agentes frente a

questões às quais não podem escapar, e sobre as quais não podem exercer qualquer controle. Nos

mais simples atos, como a escolha dos sabonetes para banhar seu filho, a colocação de um rebento

junto a um receptor (adoção oufosterage), a representação da beleza de uma mulher ou de um

homem, ou ainda, a atitude preferencial manifestada por uma mãe frente a tal filho mais que a outro

... a questão sócio-étnica e racial interfere (Capítulo IV).

Nos meios estudados, ninguém é livre para se abstrair completamente da cor de sua pele, da

forma de seu nariz, ou da natureza de seus cabelos, mesmo nos domínios das relações familiares e de

parentesco. As marcas sócio-étnicas são constitutivas da emoção, e o ato mais simples, cognitivo ou \ ~

social, antes de passar pela razão, passa pela emoção; elas são ao mesmo tempo transcendentes e

imanentes aos agentes; elas constituem as "condições extremas" nas quais se constróem os domínios

específicos de relações sociais que são a família e o parentesco. Estudando as lógicas dos mecanismos ,,:P\

que fundam as práticas familiares e os usos do parentesco nessas "condições extremas", eu concilio,

no mesmo termo - "classe" - as relações econômicas e étnicas, quer dizer, não separo as relações

sociais das relações simbólicas; colocando-me assim em ruptura com a falsa dicotomia disciplinar

segundo a qual teríamos as seguintes equações: sociologia = classe = relações econômicas;

antropologia = raça (etnicidade) = cultura ou relações simbólicas. Num universo de categorizações

acabadas, as categorias de classe não se constróem à parte das categorias simbólicas.

Com efeito, os estudos expostos nesse trabalho mostram que o domínio matrimonial entre

os agentes estudados se constrói em torno, ao menos, de duas questões centrais: quem escolher

como parceiro? Como escolher? D'onde a problemática das formas e das espécies de capital necessários

para produzir uma relação de aliança entre os agentes (Capítulos III, IV, V). A segunda questão
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

consiste numa conseqüência da primeira: quais são as conseqüentes implicações para a filiação?

D'onde a problemática da descendência e das espécies de capital a serem transmitidos à progenitura

(Capítulos Ill, IV). Face a essas duas questões, podería-se perguntar: por que a aliança e a filiação,

juntas, colocam o problema da transmissão das marcas sociais do estigma? É que, como pode se

constatar no capítulo IV, o corpo socialmente marcado participa de um lugar que preexiste à sua

marcação. As práticas sociais desse corpo, prêso à rede de interdependências sociais e cognitivas,

remetem a alguma coisa que lhes é anterior, e que preside à própria individualidade de seus produtores.

O estudo das relações matrimoniais, familiares, e as práticas de transmissão entre gerações, se elaboram

dentro e a partir da cena primordial das relações raciais, inscritas na ordem social em seu conjunto

(Capítulo IV). Nesse domínio de relações que mettent aux prises estruturas de legitimação e de

enquadramento das interações íntimas, as marcas do corpo traduzi das nos atributos do estigma,

assim como sua potencialidade de serem transmitidas à progenitura, constituem a trama interior que

dá sentido às relações e que mediatiza os sentimentos, organizando os princípios perceptivos e

categorizantes: as denominações podem se multiplicar à vontade - pela designação de termos

referentes à cor - mas a problemática continua a mesma.

4°)A abordagem das relações familiares e do parentesco, pela casa, supõe diversas rupturas

implícitas a determinadas posições teóricas, frente a certos paradigmas que informam as teorias do

parentesco e da família (Capítulo Ill). Partir da construção cultural dos agentes para produzir uma

categoria analítica com a qual esta dialogue, supõe uma concepção geral dialógica do trabalho

antropológico, que não existe sem graves dificuldades epistemológicas. Como conciliar, com efeito,

uma definição da "família" sugerida pelo vocabulário analítico da sociologia e, ao mesmo tempo,

assumir uma postura antropológica que toma como ponto de partida as categorias nativas? Como

ficam as relações entre o universal e o especifico? Como produzir uma reflexão analítica sobre as

lógicas que presidem às invenções perpétuas dos mecanismos que fundam e perpetuam as práticas

familiares, assim como as formas e os usos do parentesco e, por outro lado, a abundante literatura

dedicada aos inventários das formas e das estruturas comuns às organizações familiares dos
22
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

descendentes de escravos nas Américas e, mais recentemente, dos agentes da periferia das cidades?

Enfim, como privilegiar um estudo da transmissão dos estigmas, em sua correlação com as lógicas

das alianças e com os modos de transmissão de bens materiais? A orientação teórica adotada nesse

trabalho pôe em relêvo a importância do construtivismo metodológico, pelo qual as categorias

analíticas e os métodos que as sustentam são postos em perpétua confrontação, de modo a poder

produzir não somente um trabalho de desconstrução daquilo que, conceitualmente, nos é apresentado

for granted- a família negra, a família das classes populares, a família brasileira, etc., o sistema de

parentesco nas periferias das cidades, a residência em meio popular, etc. - mas também um trabalho

de reconstrução do campo, a partir das monografias anteriormente produzidas sobre os espaços das

classes populares e os dados empíricos por ele coletados.

Assim, a partir da categoria cultural casa, eu pude, analiticamente, dar conta das práticas

familiares e do parentesco (e as relações e representações que elas implicam) como processo, quer

dizer, das relações captadas numa configuração de lugares sócio-étnicos, num sistema de relações

hierarquizadas, inscritas numa continuidade cultural cuja matriz social fora inaugurada com as

plantations de. açúcar. ~ nesse sistema complexo, marcado pela história, que são produzidos e

jogados os elementos centrais (complexos) das relações familiares e do parentesco, no cotidiano,

entre os negros no Nordeste do Brasil - dos sistemas das plantations aos bairros periféricos das

cidades.

Esse parti-pris etnográfico me levou a adotar uma abordagem construtivista, uma outra

atenção dedicada à experiência familiar. Por essa abordagem, me foi possível reduzir a distância

entre o modelo por mim utilizado, como outsider, e as próprias construções que os agentes fazem de

seu mundo e de suas práticas familiares. Com essa finalidade, organizei a produção de minha

investigação fazendo, de meus próprios key informants, meus assistentes de pesquisa. O primeiro

momento dessa démarche consistiu nas diferentes etapas de familiarização com os membros da

comunidade - o que faz todo pesquisador tradicional. Num segundo momento, eu produzi meus

próprios assistentes de pesquisa, a partir dos key informants que fizeram parte da comunidade com
23
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

a qual trabalhei. Esse procedimento não é novo. Oscar Lewis (1969 [1965]:777) prestava já uma

atenção especial aos pontos de vista mexicanos de seus assistentes de pesquisa, vindos das famílias

pobres mexicanas por ele estudadas, sobre a cultura porto-riquenha. A vantagem desse procedimento

reside, com efeito, em sua capacidade de reduzir a distância entre observador e observado - ele

ajuda a construir, por assim dizer, um campo concreto de exercício da antropologia, compreendida

assim como diálogo.

No caso de Cachoeira, eu organizei uma série de encontros com os agentes dos bairros

estudados, de modo que eles participassem - até certo ponto - na produção da modalidade da

pesquisa. Trata-se de uma experiência de pesquisa participativa, que certamente traz com ela

dificuldades de ordem epistemológica. Podemos nos perguntar em que medida há uma ruptura com

o que Bachelard chama "os três graus da vigilância", ou ainda, as "prenoções" de Durkheim. Imersos

no "champ doxologique", como se diz hoje - quer dizer, esse lugar de saberes não sistematizados

e de evidências da prática cotidiana - esses assistentes-de-pesquisa-produzidos-em-campo

confinariam o pesquisador numa "certeza sonâmbula" (Mannheim) que impediria toda verdadeira

ruptura com as prenoções, as evidências do cotidiano, etc." Entretanto o pesquisador, uma vez

avisado, usufrui, por esse procedimento, de um espaço privilegiado de troca e diálogo, sem os quais

essa escolha metodológica não teria mais sentido.

Em um terceiro momento, eu organizei, através de encontros com os entrevistados, em

tomo de suas próprias entrevistas, sessões informais de restituição das informações recolhidas -

principalmente a própria entrevista. A restituição me permitiu avaliar o "como" C'le comment") do

desenvolvimento do processo da pesquisa efetuada. Além do mais, a restituição das informações

recolhidas constitui uma resposta ao problema ético que se coloca, quando se trata da "extração" de

informações de ingênuos informantes, que nada sabem do que o pesquisador tem em mente; ela me

permite ainda produzir o que eu chamo um "efeito de espelho" entre os entrevistados e as próprias

. informações por eles produzidas. Apesar desse procedimento exigir energia e tempo, ele permite

todavia aos agentes familiares se verem, através do que disseram de si próprios, dialogando assim
24
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

com suas próprias representações do mundo. O entrevistado ou o grupo de entrevistados se vê

através do material restituído. Graças à restituição, o pesquisador pode observar o entrevistado que

subtrai, apaga, reafirma, confirma, dissimula, renega, nega, se contradiz, acrescenta, e ainda mais ...

Cada uma dessas vias de reação pode conter indicações para o pesquisador; indicações que denunciam

ou revelam os sentimentos, as atitudes" os caráteres, as contradições, etc ... Esse "efeito de espelho" \-

é capital para o pesquisador, pois trata-se de um dos meios relativamente seguros a lhe permitir

comparar as sequências de uma mesma informação, objetivar a subjetividade, mensurar, acompanhar

a produção da memória, reduzir - aprés coup - os eternos riscos de manipulação deste pelo

agente familiar, assim como do agente pelo background científico do pesquisador; a lhe permitir

produzir uma distância reflexiva entre ele e o entrevistado, criando ainda condições para a produção

de uma distância, de outra natureza, entre o entrevistado e seu próprio discurso.

A complexidade da experiência de pesquisa - não sendo redutível nem aos a priori empiristas,

nem a uma sequência de démarches lineares, necessárias e imutáveis - exige relações constantes

entre os campos episitêmico e teórico, com os instrumentos técnicos construídos para seu exercício.

As escolhas metodológicas aqui formam sistemas. Elas conduzem a retornos e diálogos constantes

entre os polos acima mencionados.

A noção de "campo" é aqui construída contra a idéia objetivista, pela qual o objeto da

pesquisa se daria como uma realidade toda-pronta-a-observar, preexistente ao pesquisador, realidade

cuja exterioridade fundaria em si a objetividade. Eu parto aqui da idéia de "campo" como,

essencialmente, um trabalho simbólico de construção de sentido, pondo em diálogo o pesquisador e

o universo dos próprios agentes pOL ele- produzido quando em experiência. de campo. É essa

experiência que oferecerá as condições de uma certa "verdade antropológica", mediada no trabalho

de texto. Insistirei portanto, em primeiro lugar, sobre o processo de construção desse campo que é:
+--
a experiência familiar entre os negros no Recôncavo da Bahia.

As técnicas utilizadas nessa pesquisa combinam, o questionário, a entrevista estruturada

e semi- estruturada, as histórias de vida (biografia), a entrevista em profundidade indireta" a


25
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

observação, a observação participante de uma quantidade reduzida de unidades domésticas e,

enfim - para elucidação das terminologias de cor, no seio de uma mesma famíla - a aplicação de

um teste sobre a elucidação de termos de cor na periferia de Cachoeira.

Elaborei um questionário visando a sociografia dos bairros sobre os quais trabalhei (ver o

Prefácio). A sociografia, viabilizada pelo questionário e a observação direta, permitiu me preencher

ertas dificuldades relativas às informações calculadas tocantes a rendimentos, despesas, distribuição

e domicílios, etnodemografia, habitat, etc., não disponíveis junto aos serviços oficiais. Meu segundo

questionário dirigiu-se à organização da unidade doméstica enquanto grupo sociológico.

A natureza de uma pesquisa em profundidade sobre a vida das famílias, explica porque eu

trabalhei com uma amostra tão reduzida. A partir dos dados recolhidos, escolhi três unidades

domésticas, participando de três configurações familiares - ou configurações de casas - como

ponto de partida. A partir daí outras configurações se revelaram pouco a pouco no decorrer da

pesquisa. Como foi mencionado, todas as casas têm sua extensão, seja em Salvador, seja nas outras

cidades acima mencionadas o que me levou a acompanhar alguns de seus membros, da periferia de

Cachoeira às periferias das outras cidades, principalmente à de Salvador, Nordeste, Pau da Lima,

Sussuarana e Liberdade. O estudo intenso das práticas familiares apresenta vantagens metodológicas

insubstituíveis (Lewis 1966). Ele me permitiu apreender, do modo mais íntimo, a partir do vivido e

do discurso subjetivo dos agentes familiares, o processo e os elementos centrais (les enjeux) da

construção sexuada da configuração doméstica e familiar, da construção dos gêneros, das relações

de poder e de desigualdade no domínio do familiar, e do mecanismo de construção das redes sociais

nas quais os agentes estão implicados e em nome das quais - ou graças às quais - eles produzem,

distribuem e redistribuem os diversos tipos de relações no doméstico. O estudo intensivo é feito

então utilizando-se as técnicas e modos de coleta acima mencionados,

Eu poderia resumir as diferentes etapas do primeiro momento da pesquisa da seguinte forma:

a) a aplicação dos questionários para ter em mãos as variáveis necessárias para executar a segunda

etapa; b) a seleção, com os assistentes de pesquisa locais, de uma unidade doméstica participante de

1... .. -.
26
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

uma configuração de unidades domésticas em cada bairro (o que me permitiu trabalhar intensivamente

com uma quinzena de unidades domésticas durante 11 meses, no espaço de dois anos ); c) a observação

direta e a observação participante dessas configurações domésticas foram feitas, na maior parte dos

casos, em diálogos críticos com os assistentes locais; d) a entrevista sistemática e em profundidade,

dos membros de cada unidade básica de uma configuração, assim como a aplicação de um teste de

elucidação dos termos de cor; e) a reconstrução, a partir da observação direta e participante, e das

entrevistas, de um dia, de uma semana na vida dos agentes familiares; f) a restituição, através dos

encontros com grupos de entrevistados, ou com entrevistados individualmente, do material produzido

por ocasião dessas entrevistas.

Num segundo momento da pesquisa, as etapas se deram da seguinte forma: g) a transcrição

das entrevistas; h) a classificação e análise do material recolhido; i) a produção da reflexão científica

a partir dessa classificação e dessa análise. Como eu havia anteriormente sublinhado, as escolhas

meto do lógicas aqui formam sistemas. Elas conduzem a retornos e diálogos constantes entre os

campos epistêmico e teórico, com os instrumentos técnicos construídos para seu exercício. Por isso

alertei o leitor a não esperar de meu trabalho um capítulo discutindo as teorias em voga, para poder

me apropriar de uma delas, e os outros expondo meu material etnográfico. As críticas teórico-

metodológicas se dão dentro e pela etnografia.


27
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Notas da Introdução

1. Considerando as idéias em seus respectivos contextos, seria interessante lembrar aqui o que todo
mundo já sabe. Da filosofia das Luzes à primeira metade do século XVIII, a pesquisa de uma ordem
social natural que daria conta de uma natureza humana universal, cuja evolução seria determinada
por leis fixas e imutáveis, dominou a busca do pensamento ocidental sobre o sentido da diferença.
As profundas convulsões revolucionárias que minaram as bases da sociedade tradicional (o antigo
regime) e os sistemas de pensamento articulados nos naturalismos, no final do século XVIII,
desencadearam uma transformação nos modos de se ver a "sociedade" e os paradigmas de construção
do outro em sua singularidade. Nessa nova concepção, a "sociedade", em sua coletividade ou enquanto
manifestação de vontades individuais, passa a ser puramente uma criação humana. Enquanto criação
humana, a sociedade - o estado de civilização que ela traduz - é passível de evolução, de
transformação, e torna-se conhecível em suas leis, que a razão se encarrega de desvendar. Nesse
contexto de emergência dos pensamentos sociais científicos, a antropologia se afirmou no século
XIX como capaz de responder à questão relativa às leis universais que explicam a variabilidade
cultural. Por seu método privilegiado (método comparativo), ela estabelece os termos da distância
entre as sociedades primitivas, baseadas no "sangue" e no "parentesco", e as sociedades civilizadas
(ocidentais), baseadas no "solo" e no "Estado". Com essa finalidade, a antropologia, em sua versão
anglo-saxônica, define seu programa, que consiste no estudo comparado da maneira pela qual os
indivíduos produzem os fatos coletivos; sua questão: como os grupos se articulam em sistemas e
estes em sociedades? Ela se dedica a estudar corno; nas sociedades baseadas no "sangue" e no
"parentesco", se davam as relações entre famílias, parentesco, linhagens, sexos e a organização
social em seu conjunto. Era-lhe preciso então estabelecer critérios de coleta de informação,
classificação, agenciamento, etc. Com Morgan e Maine, a antropologia herdou as bases filosóficas
de coleta dos termos do parentesco (Morgan), assim como as primeiras sínteses sobre as relações
entre o direito, o parentesco e a família (Morgan, Maine, mas veja capítulo IlI, seção 1, para discussão).
Com Malinowski, ela herdou uma formulação definida da familia, como unidade social fixa em suas
fronteiras, o espaço doméstico, lugar essencial de circunscrição das tarefas e funções especificas da
instituição que ele supunha universal (Malinowski 1913). Os trabalhos ulteriores dos antropólogos/
sociólogos evolucionistas, estruturo-funcionalistas, estruturalistas, tentariam se desfazer de certas
teses e concepções, assumindo, entretanto, outras como evidentes. (Ver discussão no capítulo Ill).

2. Os limites que me são impostos nesse trabalho, fazem com que eu me limite a apenas destacar
aqui as grandes Iinhas.da.discussão.É suficiente.lembrar que as.ciências sociais.no Brasil construíram-
se em torno da problemática da identidade nacional articulada no "problema da raça", quer dizer, no
problema colocado pelos negros na nova sociedade brasileira pós-escravagista, da miscigenação, do
branqueamento e da construção do mito da democracia racial (Seyferth 1980; Skidmore 1974).
Nessa discussão, conviria situar o Brasil no contexto das nações emergentes da América Latina, no
qual a problemática da raça consistiu numa questão chave para a questão nacional (C.M.Azevedo
1987; Graham 1990; Skidmore 1974; Stepan 1991; Wade 1994). Não é portanto por acaso que em
todos os países da América Latina, o pensamento social traduziu sempre o negro como um traço a
apagar, um obstáculo ao progresso, refratário à civilização (Graham 1990; Wade 1994).

3. O fato que mais contribui para a hegemonia do conceito "família patriarcal" como categoria
analítica totalizante das práticas familiares no Brasil, consistiu em sua reapropriação acrítica pelos
pesquisadores estrangeiros que contribuiram na implantação das ciências sociais no Brasil, no decorrer
da primeira metade desse século. Primeiramente, a tese da democracia racial implicitamente mantida
28
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

na ideologia da família patriarcal, foi retomada pelos antropólogos americanos que se dedicaram, de
início, ao estudo das relações raciais, tendo em mente a eterna comparação com os Estados Unidos
(principalmente Pierson 1971 [1933]). Medina e Almeida (1972) observam, a propósito, que esse
fato contribuiu para o não questionamento, pelos pesquisadores estrangeiros, dos dados locais
coletados pelos brasileiros, visando apoiar sua tese patriarcal, o mito da "democracia racial" na
miscigenação; por seu turno, os brasileiros não questionaram, o mínimo que fosse, a pertinência dos
resultados por eles publicados. "Como num 'acordo de cavalheiros' todos ficaram bem, só a família
é que ficou ausente" (1972:IV).

4. A área das Américas negras se refere ao espaço das plantations coloniais, toda a América
intertropical e o Caribe, onde as "sociedades" negras se destacaram como força de trabalho escravo.
Do ponto de vista empírico, o conceito "afro-americano" apresenta uma base dificilmente refutável.
Ele se refere, de fato, a uma variedade de sociedades produzidas a partir da mesma forma histórica
(a escravidão, a plantation_~~mesmas referências.étnicas e culturais (população. negra, África
ancestra1. ..). Sociedades que se distribuem nas Américas, com excessão do Haiti, segundo a matriz
de uma organização social dominante, tal como: "subculturas", minorias étnícas, políticas e econômicas
(Brasil, Estados Unidos), nacionalidades sem Estado (nas Antilhas) - (André 1987; Benoist 1972;
Gracchus 1987). Mas esse conceito serve também para designar formas de organizações sociais,
valores e práticas culturais, que a antropologia/sociologia afirma serem próprias aos "afro-americanos"
- organização familiar estigmatizada como patológica, cultos ancestrais e de possessão, idiomas
(créoles nas Antilhas), folclore, organização econômica (Caribe), campesinato etc. Enfim, o conceito
de afro-americano ordena um espaço geográfico, social, ideológico e político que corresponde aos
ditos "afro-americanos". Este arranjo não é um simples acidente do discurso, mas participa de uma
produção histórica.

5.Lembremo-nos que a universalidade da família nuclear lá havia sido postulada desde os trabalhos
de Malinowsk:i (1913), e, em seguida, nos trabalhos de Murdock em De Ia structure sociale, publicado
em 1941, e de Radcliffe-Brown em Structure et fonction. Para Malinowsk:i, é o laço masculino
representado por!!:!!! pai sociológico que constrói a relação entre a criança e a sociedade. "Um
grupo tendo uma mulher e seus filhos é uma entidade legalmente incompleta". Para Murdock as
funções da família são universais e a família nuclear é estritamente formada pelo homem, sua esposa
e seus filhos. Para Radcliffe-Brown, a família elementar é a unidade de estrutura fundamental a
partir da qual se constrói um sistema de parentesco. Essa família elementar é composta de um
homem, da mulher e de seus filhos. Nos três, sobressai o fato do pai dar a legitimidade sociológica
à família.

6. Sabemos que, a partir da literatura antropológica/sociológica sobre os negros das Américas, "a
família negra" responde pelas seguintes características: alto índice de ilegitimidade (desde a sociologia
de Frazier), permanente ausência do pai (My Mother who Fathered Me, E. Clarke 1957),
matrifocalidade ("mater-focus", R. Smith 1957; "consaguineal household", Solien Gonzalez 1965;
1971), instabilidade, promiscuidade sexual (desde DuBois 1899; 1908), etc.

7. É indispensável considerar os anos 70 como momento epistemológico chave da pesquisa sobre a


família no Brasil. É a partir desse momento que foram claramente eoastrsídos-os-meies de ruptura
com a visão da família patriarcal veiculada pela elite intelectual do país. Essa ruptura teórico-empírica
permitiu pensar a viabilidade histórico-social das estruturas familiares e ainda, pelos temas
privilegiados, os meios de pensar a prática familiar. Podemos periodizar as produções intelectuais
sobre a família no Brasil, sem grande arbitrariedade, em dois tempos: 1) as produções anteriores ao
29
Famllia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

decênio dos anos 70, marcadas pela hegemonia da figura-modelo "família patriarcal", elaborada
principalmente a partir dos trabalhos de Freyre [1977 (1933), 1936], de Cândido (1951, 1964) que
marcariam - até a sua nova elaboração no decorrer dos anos 70, 80 - as pesquisas ulteriores. 2) As
produções posteriores a 1970, 1980, marcadas por um questionamento quanto à pertinência do
modelo patriarcal para dar conta não somente da sociedade colonial, mas também do conjunto da
ociedade brasileira contemporânea, sem levar em consideração a variabilidade regional, intra e
inter-classes [Corrêa 1982 (1976), Mott 1978; Graham 1976; Ramos 1975; Samara 1983, 1987;
Slenes, 1983) e, em consequência, por uma ruptura epistemológica significativa com o procedimento
e a tese freyrianos, que conduziram à construção do objeto "família" em sua relação com a classe
Alvim 1979; Bilac 1978, 1981; Durham 1973; Fausto Neto 1982; Macedo 1979; Viana 1981;
Woortmann 1981), a partir das teorias dos gêneros [Almeida 1982; Bilac 1978; Di Giovanni 1983;
Durham 1983; Kunesof 1980; Woortmann 1987 (1975)] e à exploração e legitimação de outros
aspectos do tema até então não explorados ou simplesmente ignorados pela bibliografia, tais como
casamento e organização familiar entre escravos (Graham 1976; Nizza da Silva 1980; Slenes 1983),
sistemas de casamento no Brasil colonial (Nizza da Silva, 1976), etc ...
É preciso lembrar que esse movimento só é compreensível, por um lado, no contexto
internacional de novos movimentos seeiais dos-anesôü, principalmente do movimento feminista, da
renovação do pensamento marxista na época, do desenvolvimento da história social, do
questionamento dos paradigmas tradicionais das ciências humanas e, sobretudo, da crescente
importância da demografia na política do Estado em direção às populações e, por outro lado, no
contexto sócio-político local dominado pela violência da ditadura e da censura, o qual estimulou os
intelectuais (notadamente de esquerda) a investir no conhecimento da realidade de seu próprio país.
Desde então temas como: a família dos escravos (inspirado nos trabalhos de Genonese 1972, de
Gutman 1976 ... sobre a existência da família junto aos escravos negros americanos), família
camponesa/família de classes trabalhadoras, famílias operárias ... tomaram-se campos legítimos de
pesquisa em antropologia/sociologia. °
campo de pesquisa sobre a família esquivou-se, pouco a
pouco, do império dos modelos macro-estruturais, para tomar-se objeto concreto de análise, num
esforço plural de pensar as práticas familiares em sua descontinuidade (em complementaridade ao
continuum próprio à linha de pesquisa introduzida por Freyre).

8. Em autores tais como Florestan Femandes (1964-1972) ou F. H. Cardoso (1962) e Ianni (e


Cardoso 1960), a questão é simplesmente ignorada. Primeiramente porque eles assumiram as teses
de Frazier sobre a inexistência de família entre escravos, sem uma avaliação crítica da historiografia
disponível sobre a escravatura, isto em função do enfoque jurídico acima mencionado e da confusão,
nessa representação jurídica, entre escravatura enquanto instituição jurídica (e família também) e a
prática da escravatura em seu exercício no cotidiano (sobre a importância dessa discussão, ver
Davis 1971). Em segundo lugar, para esses autores de tradição marxista latino-americanos e
caribenhos, a questão racial foi sempre considerada como sendo um epifenômeno; a construção
social e cultural da noção de raça é invalidada em proveito da de classe (em sua reificação econômica).
Essa posição não é, ela própria, expontânea, ela tem uma história na historiografia da família no
Brasil. Por um lado, ela foi a posição lógica assumida pelos pesquisadores americanos no Brasil,
antes e após as pesquisas da UNESCO, privilegiando a história da escravatura como princípio
determinante da posição social do negro no Brasil. Não poderia haver espaço para se pensar o
negro, tal como constituído em sua diferença, porque este fora introduzido numa estrutura de classe
e numa dinâmica de miscigenação tal (postulada mas muito pouco estudada), que seria assim
impensável considerar o lugar negro na sociedade brasileira. °
estigma do negro resultaria de seu
status social muito mais que de sua diferença construída na sociedade. Por outro lado, a posição da
Escola Paulista (Femandes, Cardoso, Ianni, entre outros), traduz a influência da posição da Escola
""-

30
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

de Chicago (principalmente através de F. Femandes), a qual se traduziu, no Brasil mesmo, na clássica


polêmica entre Frazier (1942) e Herskovits (1943;1945) a propósito da pertinência do estudo das
práticas familiares dos negros na Bahia. Na época, René Ribeiro (1945) acreditou resolver o debate
apresentando as conclusões de seu estudo sobre as relações de amasiamento em Recife. A ideologia
da "democracia racial" e do branqueamento progressivo da sociedade no sentido de uma só raça (a
raça brasileira) é tão poderosa, que ela impediu uma elevada discussão da história social dos negros
na sociedade brasileira. Principalmente uma história de sua passagem da escravatura à sua auto-
produção como livres, a dos significados de seus espaços de liberdade, a qual, se estou certo, deve
passar pelo estudo de seu cotidiano doméstico.

9. O pesquisador está ainda exposto a manipulações grosseiras ou sutis; além disso, a escolha dos
assistentes numa comunidade pode acarretar a alienação de um grupo, de uma família, dos indivíduos
que seriam chave para a pesquisa. É por isso que essa escolha se efetuou somente após ter havido
uma idéia da configuração soeial dos bairros em questão- 0- que- não- quer dizer no entanto que
minha pesquisa está isenta de manipulações grosseiras ou sutis.
31
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Capítulo I: Cachoeira no Recôncavo;a herança da plantation

Uma semiologia das construções fisicas e suas distribuições na cidade de Cachoeira (e São

.
Félix) ensina tanto sobre a história e os sentidos dos regimes. de espaço que a estruturam, quanto

sobre a ordem social e as relações sociais que os sustentam e traduzem.

A cidade partilha com São Félix uma topografia e um ambiente natural de rara beleza. O rio

Paraguaçú, que as corta como se fossem de duas metades de um conjunto, divide os dois lados de

um estreito vale, estendendo-se por muitos kilômetros de comprimento. Cachoeira é limitada pela

colina Timborá, ao norte pela Cakende e, a oeste, pelo morro de Pitanga. Em frente, sobre a margem

direita, se estende São Félix sobre os flancos do morro Miritiba (ver o mapa). Cidades gêmeas, elas

conheceram, essencialmente, a mesma posição na constelação do Recôncavo, desde as grandes

campanhas contra os autóctones que lhes valeram a própria existência 1, até à nova paisagem modelada

pela economia das plantations.

Nesse cenário natural, a cidade de Cachoeira se estende numa estrutura espacial que descreve

perfeitamente a economia do espaço das formas de convívio da época de sua fundação: no centro da

cidade, as edificações residenciais de estilo barroco se erguem em linhas irregulares, com dois ou

três andares, agrupando-se em blocos separados por ruas pavimentadas de pedras, entrecortadas

por templos católicos, entre os mais antigos: uma catedral, Nossa Senhora do Rosário, quatro capelas,

Conceição do Monte, São Pedro, Amparo, São João de Deus e um imponente Convento, outrora

pertencente à Congregação franciscana, todos construídos entre o final do século XVII e meados do

XVIII. As construções públicas acompanham o ritmo arquitetônico da cidade, distribuindo-se

progressivamente, do centro da cidade à beira do magestoso rio, onde se encontravam os principais

complexos de depósitos comerciais e aduaneiros da cidade, a velha estação ferroviária, construí da


32
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

durante a segunda metade do século XIX, até à entrada da imponente ponte metálica suspensa, com

cem metros de comprimento, entre Cachoeira e São Félix. Em torno desses bairros, socialmente

considerados como sendo do centro, estendendo-se como num semi-círculo, a partir das duas

extremidades das margens do rio, os conglomerados de habitações populares da periferia. Esses

bairros populares, habitados em mais de 61% por negros e em cerca de 39% por mestiços, todos

descendentes de antigos escravos e libertos, se consolidaram, com o passar do tempo, nas periferias

de antigas plantations coloniais, no decorrer dos séculos XVII e XVIII,. em torno das fábricas de

tabaco ou nas antigas plantations, transformadas em fábricas de papel ou de fósforos, durante o

final do século XIX. Outros desenvolveram-se em torno dos grandes centros de Candomblé, religião

de fato da maioria, dominados, no decorrer do século XIX, pelos negros africanos e seus descendentes,

antigamente mantidos afastados dos negros crioulos, por necessidades políticas da ordem escravagista

(Reis 1986; 1992; Wimberly 1988).

O centro da cidade é tambérn,literalmente,o centro das atividades econômicas" e dos serviços

e administrações públicas. Em torno desses serviços, giram 50% da economia da cidade, controlada

em 95% pelos bancos. Muito poucas indústrias do século passado e do começo desse século

sobreviveram ao.s abalos das grandes transformações que afetaram a economia das duas cidades. Os

habitantes da periferia são absorvidos nas redes locais ou regionais de pequenos comércios, artesanato,

serviços domésticos, redes de serviços religiosos e agricultura'.

No município de Cachoeira, a cultura do tabaco e da cana-de-açúcar, que eram a base da

economia das duas cidades até o século passado, foram relegadas a um segundo plano. A paisagem

das antigas plantations cedeu à emergência das F 'azendas; desde o final do século XIX. Essas próprias

Fazendas, imensas extensões de terra concentradas nas mãos de proprietários brancos, são hoje

muito pouco produtivas. O modo de exploração dominante consiste num regime tradicional, de

meia. Os descendentes de antigos escravos negros e mestiços, distribuídos ao acaso geográfico

nessas fazendas, trabalham, às suas próprias custas, uma parcela de terra alugada, sublocada, ou

cedida pelos intermediários. Em geral eles cultivam a mandioca, o dendê, a laranja, o feijão, e outras
33
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

mercadorias comestíveis. Ao final de cada colheita, eles dividem seus produtos com os latifundiários,

através de terceiros que os representam. A outra metade é repartida entre o consumo precário e a

enda nas feiras em Cachoeira, São Félix, Conceição da Feira, Santo Amaro, Maragogipe, etc. As

outras Fazendas tentam racionalizar sua produção de gado (7%, segundo minha própria estimativa),

a cultura do tabaco (10%) e do açúcar (30%). Os principais proprietários são, em sua maioria,

absolutamente ausentes. Muito poucos entre eles residem na cidade de Cachoeira ou São Félix.

Esse breve quadro da cidade e dos arredores de Cachoeira pode, com pequenas variações,

se aplicar às outras cidades e municípios que, antigamente, faziam parte da imensa Comarca de

Cachoeira. Nas cidades de São Félix, Muritiba, Santo Amaro, Conceição da Feira, Santiago de

Iguape, Cruz das Almas, etc. encontramos a mesma modelagem sócio-espacial, na mesma paisagem

sócio-econômica. Vive-se as mesmas decadências de uma economia que, num passado não muito

distante, fazia ainda a glória dessas cidades, alicerçando as relações sociais por ela inauguradas. E se

alargarmos o horizonte geográfico, veremos se desenvolver às nossas vistas uma paisagem familiar

sobre mais de 4.000 kilômetros quadrados que compõem o Recôncavo da Bahia, até à entrada de

Salvador, a capital regional. Para compreender as redes sociais que estruturam essa modelagem,

assim como os regimes de espaço que as ditam, as formas de relações sociais das quais eles são os

elementos centrais (les enjeuxy; convém abandonar, por um instante, a evidência contida nesse quadro

uniforrnizante, procurando penetrar, para além das estruturas aparentes, as continuidades e as rupturas

que informam os princípios de percepção, de categorização e de diferenciação, constitutivos dessas

relações e constelações de espaços. Nós compreenderemos então a economia do espaço impressa

pela estrutura social na cidade de Cachoeira, entre outras, e a razão de ser dos bairros populares

habitados pelos negros e mestiços de negros, nessa economia.

Esse capítulo visa produzir o quadro de referências históricas, geográficas e sócio-culturais

da cidade de Cachoeira, no Recôncavo da Bahia, o qual desempenhou um papel econômico e sócio-

histórico determinante no Estado da Bahia. Nesse capítulo, eu parto essencialmente da idéia de


34
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

açúcar" e de "poder" (Mintz 1985) para dar conta das relações sócio-econômicas e político-culturais

específicas, tais como historicamente constituídas na Plantation. Em segundo lugar, eu tomo por

objeto certos aspectos das relações sociais tais como atualmente construídas na cidade de Cachoeira.

Meu objetivo aqui é de mostrar, considerando um lugar de concentração de negros, como são

produzidas essas formas particulares de relações sociais. A forte presença demográfica e cultural

dos Negros no Recôncavo da Bahia, especificamente em Cachoeira, assim como suas condições

sociais e sua visibilidade em diversos dominios da vida sócio-cultural nesse espaço geográfico do

Brasil, respondem a uma trajetória específica das relações entre o étnico e o nacional. Essa distribuição

espacial- fisica e cultural- do negro não deve, contudo, ser tomada for granted. Ela participa da

construção sócio-histórica de um ideal hegemônico de raça, de nação, e de uma hierarquia de lugares

(sociais e espaciais), na gênese do fato sociológico brasileiro (Graham 1990; Seyferth 1995; Stephan

1992; Skidmore 1974). Na primeira seção desse capítulo, eu situo Cachoeira e o Recôncavo da

Bahia no contexto das sociedades de plantations, na segunda seção, eu trato, através da relação

espaço e sociedade, da etnogênese dos lugares e grupos étnicos estudados na região de Cachoeira

nos séculos XVIII e XIX; na terceira seção, eu produzo uma análise das relações sócio-espaciais em

curso nos bairros estudados; finalmente, exponho as características sociográficas dos lugares em

questão.

1. A sociedade das plantationse a invenção das Américas.

By 1900, sugar in the form of processed sucrose had beco me an essential ingredient in the British national diet.
Combined with bitter beverages, it was consumed daily by almost every living Briton. It was added to foods in the
kitchen and at table, and could be found in prepared delicacies such as jams, biscuits, and pastries, which were
consumed at tea and frequently with meals. Sugar had also become a commom feature offestive and ceremonial foods
from season to season and from birth to death. Bread and salt had been the basis ofwestern man's daily fare and daily
imagery for millennia; now sugar had joined them. Bread and salt - and sugar. A loaf ofbread, a jug of wine - and
sugar. The diet of a whole species was gradually being remade.
[...]
[...] But we have already seen how sucrose, this "favored child of capitalism" [...], epitomized the transition from one
kind of society to another. The first sweetned cup of hot tea to be drunk by an English worker was a significant
35
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

historical event, because it prefigured the transformation of an entire society, a total remaking of its economic and
social basis. We must struggle to understand fully the consequences of that and kindred events, for upon them was
erected an entirely di:fferent conception of the relationship between produces and consumers, of the meaning of work,
of the definition of self, of the nature of things. What commodities are, and what commodities mean, would thereafter
be forever di:fferent. And for that same reason, what persons are, and what being a person means, changed accordingly.
lu understanding the relationship between commodity and person, we unearth anew the history of ourselves. (Mintz
1985:187,214).

o estudo antropológico das sociedades nascidas da economia das Plantations coloniais

escravagistas deve sempre situar seu discurso em relação à originalidade da estrutura social matriz

que caracteriza essas sociedades: não se trata aqui nem de sociedades tradicionais - objetos clássicos

da antropologia - nem de sociedades de tradições milenares, como as sociedades européias, cuja

antiguidade histórica conduziria a produzir o fantasma de origem; a invenção das Américas consiste

na inauguração de um sistema social hierarquizado no qual a ideologia da raça funda e justifica um

lugar social e cultural específico para os autóctones e os descendentes de africanos então escravizados.

Trata-se de sociedades datáveis, inauguradas e formadas na escravatura, expressão de uma

interpretação do mundo que coloca a Europa "como centro da humanidade ou como único lugar

possível de realização da humanidade do homem" (Hurbon 1987:8), cujos signos distintivos se

constróem entre as eternas fantasias da Raison Conquérante ocidental e os incessantes pesadelos

dos vencidos, há muito escravizados. Insistir sobre os fundamentos desse posicionamento, é resistir

contra a eterna tentativa dos vencedores de banalizar a importância da escravatura e naturalizar as

relações por ela inauguradas, fazendo da "globalização" crescente do mundo contemporâneo um

trampolim universalizante, que justifica toda a recusa em produzir um trabalho etnográfico

contextualizado e particularizado das relações nessas sociedades. É portanto do interesse das

antropologias locais, nessas sociedades - como da Antropologia simplesmente - situar seus

discursos em relação à importância decisiva da produção das Américas na história do gênero humano

e no próprio advento de "Ia" sociedade capitalista que se quer globalizante. A produção das Américas

- assim como a irrupção concomitante (consecutiva?) de um sistema econômico planetário - pela

amplidão do movimento populacional por ela mobilizado e pelos blocos geográficos implicados

nesse empreendimento, acarretou uma tal subversão nas sociedades humanas, que tomou-se impossível
36
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

ensar as relações entre e no interior destas, sem levar em conta esse lugar inaugural.

Se é importante, como observou Wallerstein (1974), situar as relações econômicas coloniais

nas Américas como constitutivas da economia mundial moderna, nas quais a combinação do trabalho

. Te na Europa, em certas empresas de produção, com o trabalho coercitivo no sistema plantocrático

das Américas e do Caribe, constituiam o componente essencial do capitalismo (1974: 127), é também

e importância central pensar a especificidade das sociedades escravagistas no que elas instituiram,

elas mesmas, como modelos de relações econômicas, sociais e culturais. Todo estudo das estruturas

sócio-raciais nessas sociedades deve levar em conta as consequências dessas relações de dominação,

instituídas pela escravatura, enquanto relações fundadoras que marcariam o futuro dessas sociedades.

As relações de dominação em curso nessas sociedades foram instaladas na P lantation. E não

há signo distintivo da Plantation mais poderoso e sugestivo que o açúcar'. Se a sucrose foi o

elemento central constitutivo da paisagem herdada pelas sociedades americanas, ela tem, sobre um

outro plano reconfigurado, as bases tradicionais da instituição da sociedade, tanto no mundo Europeu,

quanto no dos outros povos, conquistados e colonizados; metáfora por excelência, marcando a

ransformação da sociedade mercantil em capitalista. Nesse sentido, a obra de Mintz não poderia

traduzir melhor a força operante dessa poderosa metáfora, no nascimento da revolução e da

universalização do gosto, das formas de sociabilidade, da produção, e também da definição e

construção da pessoa e da diferença nas sociedades contemporâneas (1985, cf. legenda acima).

No entanto, como se sabe, nem as plantações de açúcar, nem a escravatura dos negros, nem

o construído "negro" no imaginário colonial, não foram uma invenção das Américas: as plantations

não deixaram de ser a continuidade de um processo inaugurado desde o Extremo Oriente até o

Leste do Mediterrâneo e Norte da "África, acompanhando o curso dos movimentos do Islã e dos

Árabes; e a instituição da escravatura, assim como os fantasmas construídos em torno do negro,

conheceram trajetórias, senão similares, ao menos localizáveis no mundo antigo e nas velhas

civilizações (Davis 1970; sobre as representações sobre o negro precedentes, Tráfico e Escravatura

dos Negros nas Américas, François de Medeiros 1987). O que mantém a especificidade acima relatada,
37
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

é a escala geográfica e a variedade dos povos domesticados e mobilizados na produção açucareira

em sua globalidade.

2. Cachoeira no Recôncavo: a herança da Plantation.

Falar de açúcar nas sociedades coloniais americanas - como escreveu Freyre (1974) no

aso do Brasil- é falar do negro, em suas relações com o mundo fabricado pelos senhores e por ele

mesmo (Genovese 1974)~e de seu lugar no continuum cultural produzido pela instituição da hierarquia

em curso nas sociedades contemporâneas americanas (Drummond 1980; Smith 1984). É nesse espaço

previamente configurado, que é o da plantation colonial, que os cativos africanos iriam refazer seu

mundo, a partir dos elementos tirados dos novos contextos de relações sócio-econômicas e culturais

nas quais foram inseridos.

Nessa escala geográfica da produção do açúcar, o Nordeste do Brasil, principalmente o

Recôncavo da Bahia, representava um eixo crucial, por sua efetiva importância na economia mundial

da época. O Brasil colonial guardava uma posição peculiar no conjunto do Império Português:

contrariamente às outras colônias portuguesas, onde o comércio constituía o cerne das relações

coloniais, a colônia brasileira constituía para Portugal uma gigantesca fonte de riquezas, baseada

principalmente na agricultura. Nessa economia, o Recôncavo se destacava numa posição central e

estratégica, primeiro, pela variedade de sua produção agrícola - com o tabaco, algodão, gado,

madeiras valiosas (como o pau-brasil), cacau, ao lado de sua produção principal, o açúcar; segundo,

pela importância da cidade de Salvador, capital do Brasil na época, edificada à beira da Baía de

Todos os Santos (ver o mapa geográfico da Baía de Todos os Santos), principal porto de exportação,

mas também de importação: o maior mercado de escravos africanos nas Américas (Mattoso 1992: 78).

O Recôncavo se estende desde a magnífica Baía de Todos os Santos, a partir de 300 kilômetros

de costa, vales e planaltos, e penetra no interior do Estado da Bahia por uma extensão de cerca de
38
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

. 0.000 kilômetros quadrados, entrecortados pelos principais rios e córregos da região, como o

Paraguaçu, Açupe, Pojuca, Sergi do Conde, Joanes e Pitanga, os quais irrigam suas terras argilosas

:> criam, na Baía de Todos os Santos, diversas linhas de embocaduras. O clima e a vegetação dão

nidade ao Recôncavo. Região costeira situada entre 370 - 390 de longitude oeste, e 120-130 de

latitude sul, ele se limita, ao Norte, pelos atuais municípios de Feira de Santana, Coração de Maria,

Pedrão, Alagoinhas e Entre Rios; ao Sul, por São Miguel das Matas, Laje e Valença; e a Oeste, por

Antônio Cardoso, Santo Estevão e Castro Alves (ver mapa em anexo).

A paisagem que ele oferece nos revela tanto das formas sócio-econômicas que lhe foram

modeladas, da herança dos grupos que o habitam, quanto da devastação ecológica aqui continuamente

exercida há mais de quatro séculos de exploração. Seu clima é associado aos tipos de vegetação

dominantes - devidas, certamente, à sua estrutura geológica: a mata, terras profundas e aráveis -

.onhecidas pelo nome de massapê - contém reservas de madeira de lei que fizeram a riqueza dos

olonos; a mata compõe a região onde desenvolveram-se as plantations de cana-de-açúcar e as

fazendas de tabaco, cacau, dendê e mandioca; o Agreste, zona menos fértil, que constitui uma transição

entre o sertão, o interior semi-árido do Estado da Bahia e a mata; e o litoral, zona salgada, coberta

de vegetação costeira. A variedade das vegetações explica a susceptibilidade do clima, cujas

características globais podem ser resumidas da seguinte forma: o regime dos alísios do sudeste

resultando das baixas pressões do Atlântico Sul se manifesta geralmente em julho e agosto, e os

ventos de alta pressão do nordeste em novembro e dezembro.

A paisagem acima descrita deriva de uma paisagem colonial, a qual consistiu numa

remodelagem do espaço anteriormente configurado pelos indígenas que o habitavam: foi ao preço

de grandes expedições exterminadoras e graves perdas em vidas de autóctones, que os portugueses

edificaram a nova paisagem do açúcar, do cacau e do tabaco no Recôncavo. Na base dessa

remodelagem, encontravam-se dois grandes veículos: o açúcar, e a fé. Com efeito, como refere-se

Schwartz (1985: 80-81), é o Santo e a usina de açúcar - a plantation - que imprimiu a marca

distintiva da capitania da Bahia, de suas pequenas cidades e paróquias: na ilha de Itaparica, foi criada
39
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

a paróquia de Santa Cuz; em Santiago de Iguape, a paróquia de Santiago; em Santo Amaro (sobre

o Paraguaçú), a de Santo Amaro de Pitanga - todas em 1563; em Cachoeira, a de Nossa Senhora

do Monte. Em 1698 foram fundadas as cidades de São Francisco do Conde, Cachoeira e Jaguaripe.

A de Santo Amaro em 1727, e Maragogipe em 1724. Essas cidades constituiam mediações entre

Salvador, principal cidade da capitania, capital do Brasil colonial e porto estratégico da colônia, e as

grandes plantations de açúcar e de tabaco, as fazendas agrícolas, e outras riquezas do interior. Por

causa da precariedade -da comunicação - até o século XIX, o cavalo e o jumento foram os meios

tradicionalmente privilegiados - a via fluvial, organizada em 1819, foi por excelência a via de

comunicação entre Salvador e as cidades do interior. As cidades situadas à beira dos rios navegáveis,

tais como Cachoeira à beira do Paraguaçu, navegável por 33 kilômetros, ou Santo Amaro, à beira

do rio Sergi de Conde, navegável por 26 kilômetros, erigiram-se em pontos estratégicos entre Salvador

e o interior. É nesse sentido que Mattoso (1992: 59, 100) escreve que a história de Salvador não pode

ser separada daquela do interior do Recôncavo: Salvador, as paróquias, as aldeias e seus arredores,

formam um todo inseparável.

Se o açúcar, como produção dominante, modelou a paisagem colonial do Recôncavo, ele

não foi no entanto, como sabemos, o único. Os tipos de solo acima descritos, os condicionamentos

da topografia e do clima, influenciaram a distribuição destes segundo tratava-se da Mata, do Agreste,

do Litoral ou do Sertão (área rural semi-desértica). Era na Mata que concentravam-se as grandes

plantations de açúcar e outras fazendas de produção agrícola. A área de Cachoeira / São Félix, ao

norte do Recôncavo, concentrava ao mesmo tempo plantações de tabaco, fazendas agrícolas e, nas

paróquias dependentes, as grandes plantations de açúcar". As cidades de Cachoeira e São Félix

prosperaram no espaço limítrofe entre o açúcar e o tabaco.


40
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cacho-eira e São Félix

No decorrer do século XVIII, um número crescente de imigrantes, comerciantes, fazendeiros,

senhores das plantations, instalaram-se na vila de Cachoeira e no vilarejo de São Félix, transformando-

os progressivamente nas mais prósperas aglomerações comerciais da região. O crescimento das

duas cidades acelerou-se num ritmo desenfreado durante o século XVIII. Por volta de 1650, a

população de Cachoeira e suas paróquias era estimada em 5.814, enquanto que em 1775 o número

havia passado a 26.980 habitantes (Vilhena 1969, vol 2). Em 1833, a região administrativa sob a

jurisdição de Cachoeira conheceu uma expansão considerável, ao ponto de ascender à categoria de

omarca, uma divisão administrativa que estendia a jurisdição da vila sobre uma extensão que

hegava até Feira de Santana; em 1837, a vila de Cachoeira foi promovida à categoria de cidade. A

idade propriamente dita, em meados do século XIX, contava mais de 15.000 habitantes.

Até o princípio do século XIX, a prosperidade de Cachoeira e São Félix crescia na medida

da explosão da indústria açucareira. A região de Iguape, um dos lugares de concentração das

plantations açucareiras do Recôncavo, reunia sozinha 14 grandes plantations e produzia, segundo

Luiz dos Santos Vilhena (op. cit.), o açúcar de melhor qualidade do Recôncavo da Bahia. A florescente

prosperidade das duas cidades deveu-se também à sua posição no comércio entre o interior e o

litoral, através do rio Paraguaçu. Em 1697, Cachoeira já concentrava quatro depósitos, que

armazenavam produtos de todos os tipos vindos do interior a fim de encaminhá-los para Salvador,

pela via fluvial. Durante o século XVIII, Cachoeira concentrava mais de 80% das transações

comerciais, através desse transporte, entre as vilas do interior, incluindo Feira de Santana e Salvador.

Em 1836, a administração do Recôncavo decidiu investir na navegação entre os portos da Baía de

Todos os Santos; em 1839, Cachoeira e São Félix conheceram suas primeiras linhas regulares de

transporte fluvial. Até 1860, o transporte era feito principalmente por barco. Somente por volta de

1875, a administração do Recôncavo começou a investir na via férrea, ligando Cachoeira à Feira de

Santana, cidade interior em plena expansão.

O declínio da economia açucareira após a primeira década do século XIX, a forte concorrência
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

caribenha e o advento do açúcar de beterraba no mercado europeu, tiveram sua influência na produção

açucareira brasileira. Na Europa, as novas idéias do final do século XVIII, associadas à transformação

os meios de produção e do mercado consumidor, tiveram grande repercussão nas colônias. No

Brasil, as rebeliões anti-escravagistas que afetaram as plantations entre 1807 e 1835, as instabilidades

olíticas que acompanharam a Regência e o advento do próprio movimento abolicionista, tendiam a

ostrar que a escravatura havia se tornado uma resposta obsoleta às necessidades da produção.

Lma resposta anacrônica aos novos problemas colocados pela crescente industrialização, pelas

onsequências sócio-políticas da transformação


---
industrial na europa, pelo desenvolvimento das

"idades, pelo nascimento e desenvolvimento da opinião pública, pelas grandes transformações que

redefiniram a comunicação, etc. É daí resultante a progressiva desconstrução das grandes plantations

e, por consequência, da importância comercial das cidades cuja economia apoiava-se principalmente

o mercado do açúcar.

Em Cachoeira, esse movimento de desestruturação das grandes plantations já havia começado

esde o final do século XVII. Primeiro por causa da emergência da economia do tabaco. Certos

produtores preferiam claramente o investimento, menos caro, na cultura desse gênero, do que na

manutenção extremamente onerosa dos engenhos. A economia do espaço do engenho consistia

numa imensa extensão de terras consignadas a um único proprietário, o senhor de engenho. [Ricas

descrições da organização desses engenhos e de certos aspectos da vida cotidiana dos senhores, se

encontram, entre outros, em Hutchinson (1957), Schwartz (1985, parte lI).]. Até o início dos anos

l860, o espaço plantocrático era ainda mantido em sua lógica, sem grandes fragmentações. Mas no

final dos anos 60 aproximava-se seu declinio num ritmo acelerado. No caso da Comarca de Cachoeira,

o declínio econômico da plantation ocasionou uma relativa fragmentação do espaço. Primeiro, o

solo estava devastado, e a imensa zona da mata, outrora coberta da rica vegetação que fez a felicidade

dos exportadores de madeira, e que encobria o massapê - terra altamente fértil - entrava em

acelerada degradação. Pequenos fazendeiros começaram por conseguir importantes subsídios. As

plantations se fragmentaram em função da cultura do tabaco, a qual exigia menos esforços e menores
42
Famllia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

espesas.

Em resposta a essa desestruturação acelerada das plantations e para viabilizar a entrada do

abaco no mercado europeu, o governo local decidira incentivar, no fmal do século XVIII, a produção

do tabaco em Cachoeira e São Félix, nas terras apropriadas a essa cultura, depois de estender sua

ultura em outras cidades, tais como Cruz das Almas, Maragogipe, Muritiba, Nazaré e Santo Antônio

e Jesus. A subida do preço internacional do tabaco, trouxera então benéficos resultados para a

egião. Progressivamente o tabaco havia substituído o açúcar.

Cultivado a partir de técnicas rudimentares, o tabaco acelerou o processo de fragmentação

da plantation, encorajando assim a formação de pequenas áreas de cultivo de descendentes de

escravos, em parcerias contratuais. Alguns fazendeiros e outros proprietários de terra preferiram

investir na cultura do tabaco, em regime de parceria, delimitando parcelas de terra à seus escravos

IFundação de Pesquisa 1978; Vilhena 1969; Wimberly 1988)5. Os grandes proprietários arrendavam

parcelas de terra a pequenos e médios agricultores, os quais trabalhavam sua parte com suas próprias

famílias. Wimberly observa que os "[elx-slaves, who had gaigned their freedom during the current

period of depression, were attracted to tobacco along with much of thefree population of color who

eked out a meager living in the countryside. Neighbors traditionally joined together in a festive

atmosphere during planting time, to sow each field in return for a hearty meal and plentiful drinks."

(1988:34). A própria economia do tabaco, até à sua maciça industrialização no final do século XIX,

apoiava-se em 46% nas produções independentes e artesanais, controladas pelos pequenos produtores

brancos, mestiços e negros (livres e escravos).

Durante a segunda metade do século XIX, a guerra civil americana ocasionou uma brutal

baixa na produção do tabaco. O preço internacional continuou a subir, e com ele a economia das

regiões que cultivavam o tabaco. O tabaco bahiano conquistou um mercado significativo: o da

Europa. Primeiro a Alemanha, com as empresas vindas das cidades de Hamburgo e Bremen. Durante

os anos 30, essas empresas bremenianas se instalaram na região para organizar o comércio do tabaco

e outros produtos. Nos anos 1840, os laços comerciais se consolidaram, em tomo do tabaco, entre
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

o Estado da Bahia e a Alemanha. Seguiu-se uma monopolização da produção pelos alemães. Os

estudos da CPE (Fundação de Pesquisa: 1978) sustentam que as recaídas econômicas no Recôncavo

eram poucas, comparativamente ao nível elevado da produção, uma vez que eram as empresas

estrangeiras que organizavam a distribuição no mercado e controlavam os lucros. No entanto, essas

mesmas empresas ocupavam uma posição central na produção. A maioria de suas fábricas eram

disseminadas" em torno de Cachoeira e São Félix.

A indústria do açúcar não havia, no entanto, perdido sua importância nos arredores de

Cachoeira, Santiago do Iguape, etc. As transformações na produção industrial entretanto aceleraram

o declínio do açúcar. Essas transformações consistiam principalmente na intervenção do capital

estrangeiro, arruinando pouco a pouco os velhos métodos de produção, baseados na escravatura.

A lei Áurea de 1888 havia sancionado o fim..oficial. da escravatura). O problema. do trabalho se

tornava, cada vez mais, crucial, mesmo nas novas centrais açucareiras apoiadas por fundos do

Estado. Os fazendeiros, para contornar o novo problema colocado pelo trabalho assalariado, cederam

pedaços de terra aos novos emancipados, em troca do trabalho destes em seus campos de cana.

Até o início do século XX, o tabaco representou uma importante fonte para a economia

cachoeirana, permitindo-lhe, assim como São Félix, relançar sua economia, abalada com a queda

acelerada da economia açucareira. Houve, em consequência, um incremento da renda territorial em

função da produção do tabaco. Grandes proprietários de terra ou tornavam-se fazendeiros, ou

vendiam, ou arrendavam partes importantes de terra a particulares, os quais, por sua vez, sublocavam

parcelas a indivíduos ou famílias, livres ou escravas.


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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Entre Brancos, Mestiços e Ne.gros; Espaço e Sociedade em Cachoeira no

século XIX.

A configuração do espaço fisico, assim como os usos sociais dos lugares fisicos nas cidades

de Cachoeira e São Félix, foram inaugurados dentro da hierarquia das diferenças sociais e étnicas, a

qual confere ao negro seu lugar na sociedade local.

Como escrevi no início desse capítulo, no centro da cidade mantinham-se as edificações

oficiais e os bairros residenciais, as praças e os passeios da sociedade branca escravagista. Por volta

do final do século XIX, esse espaço foi sensivelmente rearrumado, por causa da explosão da indústria

o tabaco, do comércio e da imigração de portugueses, alemães, etc. A vida social, na época, girava

em torno desses lugares fisicos, exclusivamente estruturados para o exercício das formas de

sociabilidade brancas - tanto em Cachoeira quanto em São Félix. Era no coração da cidade que se

encontrava o teatro, a sede das duas orquestras filarmônicas da cidade - aLyra Ceciliana, fundada

em 13 de maio de 1870, e a Minerva Cachoeirana, fundada em 10 de fevereiro de 1878;a sede dos

- principais jornais e semanários da cidade; encontrava-se aí também a sede da ordem maçônica

aridade e Segredo, fundada em 1879. Os habitantes desses bairros, no decorrer dos séculos XVIII

e XIX, constituíram as classes favorecidas da época. Elas eram compostas principalmente por grandes

" roprietários de terra, grandes senhores de engenho (plantation) possuidores de títulos de nobreza,

tais como: o Barão de Belém, que possuia as grandes plantations da paróqui de Belém; o Barão de

_~agé; o Barão de Iguape, um dos maiores proprietários de plantations de Iguape e de Santiago do

Iguape, grande centro de produção açucareira (cf. acima mencionado), cujos descendentes viveram

ainda por várias gerações na região (Arquivo de Cachoeira, Livro de Notas; Wimberly 1988: 111);

eles eram também fazendeiros, comerciantes (principalmente portugueses), profissionais da medicina,

farmacêuticos, etc. No final do século XIX, após o ciclo do açúcar ter cedido lugar à indústria do

abaco, comerciantes e industriais alemães e italianos redistribuíram a composição desses grupos

dominantes. Essa nova sociedade continuou ainda a florescer até o início desse século. Até que as

grandes vias de penetração construídas entre Salvador e as outras cidades do interior tiraram de

~
45
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Cachoeira o que fazia dela a porta de entrada para o Sertão, e a porta de saída em direção a Salvador

e ao exterior. Até que a diversificação das indústrias, a queda do preço do tabaco no mercado

internacional e a segunda guerra mundial explodiram as estruturas básicas que sustentavam a economia

do tabaco: as fábricas.

o contexto da economia do tabaco imprimiu em Cachoeira e São Félix - assim como nas

cidades e vilarejos próximos (Cruz das Almas, Muritiba, Maragogipe, Belém, Conceição da Feira,

Capoeiruçú) - uma organização social distinta no Recôncavo', A cultura do tabaco em parceria,

pensada no conjunto da produção voltada para o consumo interno - até a reconversão das grandes

plantations de cana-de-açúcar, e o encarregar-se definitivo desse produto pelas grandes empresas

no século XIX - implicou, como sublinhei acima, numa relativa fragmentação do espaço

plantocrático, consolidando a emergência de uma agricultura de técnicas rudimentares, privilegiando

um modo de trabalho baseado principalmente em redes familiares. Uma tal forma de disponibilidade

do espaço e de investimento do tempo na produção, engendrou outros modos de relações sociais

entre escravos, entre estes e os libertos, e a consolidação de espaços sociais alternativos, no próprio

seio do sistema plantocrático. No caso de Cachoeira e São Félix, essa relação peculiar com o regime

do tempo e a organização do espaço da produção, introduziram outras esperanças na vida dos

escravos, principalmente relacionadas à acumulação de bens a fim de poder comprar sua liberdade,

ou ainda, no sentido de uma ativação dos laços familiares de modo a alcançar esse mesmo objetivo.

Além disso, quando, no decorrer do século XIX, a economia do tabaco substitui progressivamente

a do açúcar, a vinda das empresas especializadas acelerou a generalização da produção do tabaco

nas cidades dependentes da Comarca de Cachoeira, ocasionando uma reorganização da força de

trabalho, num contexto de dec1ínio da mão de obra escrava. Essa reorganização do trabalho foi

acompanhada de uma reorganização do espaço urbano devida à concentração das habitações dos

negros e mestiços em tomo dos centros de produção de cigarros e outros tipos de indústria leve.

O contexto urbano contribuiu para modelar de modo diferenciado a sociedade escravagista


46
- ilia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

al com relação a outras regiões no Recôncavo. A importância comercial das cidades de Cachoeira

~ .....ão Félix, a imensidade da mão de obra aplicada, principalmente no transporte e armazenamento

te mercadorias, o uso generalizado de negros nos serviços domésticos, a proliferação de escravos

z.e"ofícios" (esc/aves de métiers) servindo como importantes fontes financeiras para os senhores, o

_'O intensivo de mulheres negras escravas, prostituídas, em proveito dos senhores, e outras situações

ceculiares a cidades comerciais estratégicas tais como Cachoeira e São Félix, levaram ao

zesenvolvimento de uma forte comunidade de escravos urbanos no decorrer dos séculos XVIII e

tendo uma margem de liberdade muito maior que nas plantations de açúcar em outras regiões

-- Recôncavo. Em seu estudo sobre o papel dos africanos "livres" na constituição das classes populares

oahianas entre 1870-1900, Fayette Wimberly mostrou o quanto, durante os séculos XVIII e XIX, os

escravos negros e mestiços estavam concentrados nos bairros exclusivos da periferia da cidade,

.3ildo nascimento, progressivamente, a espaços alternativos de sociabilidade entre escravos afiicanos

~ escravos crioulos (negros e mestiços). A concentração das habitações dos negros e mestiços,

escravos e livres, em bairros separados daqueles dos senhores, supõe consequências insuspeitáveis

-Q que concerne à recriação do mundo dos negros no universo plantocrático escravagista. Se nas

representações clássicas sobre aplantation, o modelo de casa grande e senzala (Freyre) foi largamente

..:rilizado para dar conta da vida social dos escravos como prolongamento da de seus senhores, no

.ASO de Cachoeira e São Félix, o modelo se mostra inoperante. Se é verdade que nas grandes

plantations de Iguape, Belém e seus arredores, no decorrer do século XVIII e princípio do XIX~ os

escravos negros e mestiços eram reagrupados nas plantations de seus senhores, em Cachoeira e em

São Félix, a concentração dos negros, escravos ou livres, se fez nas periferias das duas cidades" e

não em tomo da Casa Grande. O ambiente urbano foi um outro fator decisivo na constituição dos

espaços alternativos negros (afiicanos, crioulos). e mestiços, escravos ou livres, em Cachoeira e em

São Félix". No espaço urbano,

[tJhe slave had greater freedom of movement; especially negros de ganho, or siaves who
sold their wares and services in the city streets. Many lived in rented rooms or houses,
separate from their masters, retaining a small portion of each week's earnings for personal
47
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

expanses. Captive vendors, porters, stevedores and tradesmen formed communication


networks which stretched throughout the city spreading information about the lost homeland
and fellow countrymen. Such occupations provided a larger income than rural labor and
many urban slaves managed to purchase their liberty.
[. ..}Freedom of movement also increased the physical and psychological distance between
urban slaves and their masters ... The urban environment ... intensified the division between

masters and slaves. (Wimlerly: 171-172)

Numa ordem sócio-espacial hierarquizada, os termos da hierarquia se retraduzem até nos

componentes íntimos das relações entre os hierarquizados. Seria efetivamente ilusório crer que as

comunidades negras e mestiças, livres ou escravas, teriam se desenvolvido ao abrigo da eficácia

performativa dos termos da hierarquia, modelada pela sociedade dominante. Schwartz lembrou,

om razão, que a divisão entre livres e escravos, na sociedade escravagista colonial, informa muito

pouco a respeito de suas condições. Do ponto de vista do proprietário de escravos, ele escreve, o

trabalho livre e o trabalho escravo representavam com efeito apenas dois pontos, alinhadas sobre

m mesmo continuum. Efetivamente, a instituição da escravatura se exerceu a partir de uma hierarquia

e fato, e de direito, em exercício nas plantations: "Slavery and race created new criteria of status

that permeated the social and ideologicallife of the colony" (1985: 252- 253). Os termos do exercício

dessa hierarquia manifestaram-se em diversos contextos da vida cotidiana dos negros e mestiços,

escravos ou não. Os modos de aquisição da liberdade (houve mais crianças emancipadas que adultos,

mais crianças mulatas ou mestiças de peles mais claras que a de negros, etc.), os modos de distribuição

de favores e castigos (O Livro de Notas de Cachoeira faz eco de várias concessões de terras e outros

bens aos filhos ilegítimos dos senhores, favorecendo a ascensão individual de mulatos), os usos

diferenciados pelos senhores das diversas formas de atividade, remuneradas ou não, livres ou escravas

(d'onde a divisão entre escravos domésticos, escravos de "oficios" (de métiers), escravos des ateliers,

escravas prostituídas, escravos comerciantes e escravos das plantations), a política de controle dos

grupos de escravos espalhados nas senzalas dos negros (d'onde as animosidades conscientemente

estimuladas entre negros boçais e negros crioulos; entre os negros boçais - os africanos - as
48
Famllia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

aostilidades entre as nações ou grupos étnicos; entre os crioulos, os mestiços e os negros; entre os

estiços, os mais claros e os menos claros, etc.), a legislação discriminatória (principalmente contra

os africanos temidos pelo clamor público ...), combinavam-se na produção dos princípios de visão e

....e divisão na base das categorias de percepção em curso na sociedade colonial, entre as comunidades

ae livres e escravos, e no próprio seio dessas comunidades periféricas. Esses tratamentos seletivos e

. referenciais favoreceram, por um lado, no final do século XIX e princípio do XX, a emergência de

uma importante camada de profissionais, fazendeiros, pequenos funcionários mulatos, consolidando

:otalmente a estrutura hierárquica de cor, indo do mestiço mais claro ao mais escuro, destes aos

egros crioulos, e destes aos africanos; uma hierarquia que localiza o lugar e a posição do negro na

ase da sociedade colonial e pós-colonial".

Até o final do século XIX, as divisões entre as comunidades negras, nas periferias de Cachoeira

e São Félix, manifestavam-se em suas maiores hostilidades. Os africanos ou os boçais, por exemplo,

em Cachoeira e São Félix, viviam em pequenas comunidades, notavelmente voltados para si mesmos

e para seus valores. Os africanos livres eram designados ao trabalho dos campos, da rua (como

carregadores, vendedores de acarajé, etc.), bem menos que às tarefas domésticas. Seus bairros

istribuiam-se às duas margens do norte do Paraguaçú, onde eles viviam em pequenas casas

construidas com materiais precários, praticavam suas religiões, ao mesmo tempo toleradas e reprimidas

elas leis e pela polícia, de acordo com os interesses políticos das autoridades locais, organizavam

suas confrarias religiosas, das quais uma das sobreviventes consiste na das mulheres da confraria

. .ossa Senhora da Boa Morte. Era através de suas comunidades que eles obtinham suas alforrias,

principalmente através das fraternidades religiosas - tais como a Boa Morte - organizadas tendo

por base o pertencimento étnico. Não é por acaso que eles representavam 35% dos que compraram

sua liberdade entre 1860 e ... . Zonas consideradas perigosas e subversivas pela sociedade local,

esses bairros estavam sob constante policiamento. Foi a partir deles que partiram as rebeliões dos

africanos entre 1807 e 1835, em Cachoeira. Verger (1981) observou que após a Revolução Haitiana,

vitoriosa em 1804, e as ondas de rebelião entre 1807 e 1835 no Recôncavo da Bahia, um medo
49
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

generalizado - canalizado pelo medo internacional de revoluções similares à do Haiti - gerou um

clima de histeria na Bahia. Em Cachoeira, esse medo cristalizou-se principalmente em torno desses

airros, habitados pelos africanos e seus descendentes (Wimber1y 1988), sendo esses lugares

considerados, tanto pelos negros como pelos brancos ou pelos mestiços, como sendo lugares

. erigosos, de poluição, de instabilidade, de magia negra, etc. Uma legislação rigorosa foi promulgada

e modo a controlar os direitos de propriedade dos africanos livres, o ritmo de sua deportação, seu

eslocamento de uma região para outras, o montante dos adiantamentos sobre as vendas de seus

•.rodutos artesanais, etc. A tudo isso acrescenta-se as divisões inter-étnicas alimentadas pelas

autoridades locais.

Os livres e escravos mais claros e crioulos se aproximavam, por assim dizer, muito mais da

ultura dos senhores. Eles desenvolviam laços afetivos com seus senhores, assimilavam suas falas e

integravam-se na simbologia da casa do senhor; suas condições e suas proximidades fisicas com os

rancos se erigiam em capital que eles manipulavam (assim como seus senhores), opondo-se, de

. om grado, à rudeza e ao fechamento do africano que, seja dito de passagem, falava com dificuldade

o português. Eles eram, na maioria dos casos, lavadeiras, cozinheiras, etc. Quando le glas da

escravatura soou em 1888, alguns deles haviam simplesmente trocado sua condição de escravos

ela de afiliados ou de criados (Wimber1y 1988). Mais próximas dos bairros centrais da cidade,

encontravam-se as senzalas dos velhos escravos, e mesmo dos escravos crioulos. Alguns entre eles,

ma vez libertos, especializavam-se num domínio de atividade qualquer; eles tornavam-se pequenos

agricultores (roceiros) de tabaco ou de outros produtos agrícolas, trabalhavam nas fábricas de cigarro,

ou como carregadores, carpinteiros, pedreiros, pequenos comerciantes, ou corno prostitutas ou

ladrões - a maior parte estimulada por seus senhores (Fundação, op. cit: 70). Outros, livres ou não,

trabalhavam suas parcelas de terra nos velhos engenhos transformados em fazendas. É o caso do

velho engenho de Tororó, que havia sido transformado em fazenda no final do século passado,

instalando mais tarde, em 1872, uma fábrica de fósforos e uma oficina têxtil muito importante na

época, empregando livres e escravos nos dois regimes.


50
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Na virada do século XVlII e no decorrer do século XIX, a roça - a agricultura em parceria-

ganhou uma especial importância na vida dos negros libertos, dos mestiços e mesmo dos escravos.

A agricultura em parceria tinha não somente uma importância econômica central - quando

consideramos o volume relativamente importante dos produtos agrícolas em circulação no mercado

local (ver, por exemplo, Fundação, op.cit.) - mas sobretudo um alcance simbólico e social

incalculável, na medida em que ela implica numa multidão de comportamentos criadores e re-criadores

em relação com o tempo, o espaço, a ordem social, e, principalmente, com a noção da pessoa. Pela

possibilidade de informar o espaço fisico com seu próprio ritmo, geralmente ao abrigo do chicote do
\
feitor ou do senhor, o agente é acionado no interior do escravo, tranformando-o em criador de

mundos possíveis, em reconfigurador do espaço, em mediador do tempo e da memória. O agente

habitava então interstícios espaciais, pelos quais ele podia habitar diferentes formas de relações

sociais, assim como as normas que as comandavam. Pelo controle parcial dos produtos, da sua

produção à sua distribuição, ele entrava em circuitos de trocas sociais pelos quais, numa sociedade

escravagista, o sonho de liberdade se mantinha aceso. Ele mantém assim redes familiares e pessoais,

manipula certas formas de relações de dominação; ele entra num circuito de jogos de sedução: ele

espia, ele espreita, ele vigia, ele mima, ele dissimula ... e se torna humano, um agente. E como todo

agente, ele habita a cultura das relações escravagistas sendo ele próprio produtor de cultura.

Certamente, trata-se aqui de um alcance que não deve ser superestimado, na medida em que, como

observou Schwartz (1985:254), ninguém no Brasil era livre da escravatura.

Com o fim do tráfico, por volta de 1870, os africanos escravos diminuiam consideravelmente

(10%) e os crioulos (63%) passavam a constituir progressivamente o segmento mais importante da

população escrava, enquanto que o segmento mestiço era estimado em 24%. Os livres, por sua vez,

compunham 25% da população total de Cachoeira, contra 12% de escravos (Fundação, vol I). Em

1888, a lei Áurea proclamava a liberdade geral dos escravos, transformando os escravos em sub-

proletários e, como consequência, um novo sistema legal para controlá-los. Entretanto, a hierarquia

sócio-racial se perpetuou, mantendo em seus lugares aqueles que lá já estavam e integrando,

individualmente, aqueles que tiveram a felicidade de novas e boas conexões. Esperava-se dos livres
51
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

os mesmos comportamentos do tempo em que eram escravos, e eles eram designados aos mesmos

trabalhos. Novas legislações sobre o trabalho tentariam regê-los; as leis sobre a vagabundagem

viriam lhes restringir em seus espaços sob o controle estrito da polícia. O chicote da polícia substituiu

o do feitor, e o senhor, ancien maitre, frequentemente se reservava o direito de chicote sobre quem

quer que se pensasse cidadão, igual a si. Esse nivelamento ocasionou, por outro lado, uma leve

ascensão de certos mestiços mais claros, na classe média, graças à profissionalização militar, às

ocupações industriais e à crescente urbanização do início do século XX. Os mestiços mais escuros

se fundiam no novo proletariado com os antigos libertos africanos e crioulos. ''Ability, social

onnection, but most importantly skin color, determined success" (Wimberly: 137).

Na virada do século, o processo de homogeneização dos espaços das camadas populares em

Cachoeira e em São Félix, oficializado pela Abolição, se acelerava. Os africanos, tradicionalmente

separados do resto da sociedade desde sua chegada, eram, no princípio do século XX, crioulos,

nortadores de tradições e práticas religiosas e mágicas, ao mesmo tempo fascinantes e temiveis.

Através de suas confrarias religiosas, de suas redes de solidariedade familiares baseadas sobre suas

nações imaginárias e, sobretudo, através das redes sociais e religiosas articuladas em torno de s~us

'erreiros, eles transformaram-se em guias culturais, principalmente nas religiões africanas que haviam

se tornado o centro da vida cotidiana dos pobres, reunindo todos os seus segmentos. Seus elementos

culturais ganharam progressivamente outros sub-espaços sociais e deixaram de ser exclusivamente

igados aos africanos, tornando-se.aos olhos dos grupos dominantes, a marca de toda uma classe de

proletários e sub-proletários. Esse poder gradualmente conquistado e transmitido de geração em

geração, alcançou à construção das representações do Negro feiticeiro e temível. (Taussing 1987).

Em Cachoeira e em São Félix, a vida social das elites da época passava-se dentro das casas

;: dos teatros; a rua era o lugar dos escravos, lugar da perversão, dos sem família, dos imorais, da

=iolência e dos sem lei. Lugar de articulação das redes familiares e sociais dos agentes da periferia.

:"ugar a partir do qual cruzavam-se certas formas de sociabilidade, anteriormente contidas nas

::-onteiras das etnias, dos livres e dos escravos; dos crioulos e dos boçais; dos mestiços e dos crioulos ...

:"-m espaço público doravante sob vigilância.


52
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Negro, onde está teu pai?


A estrutura particular da economia cachoeirana, assim como o funcionamento individual das
plantations (ver Schwartz 1985) no Recôncavo, sugerem o quanto as práticas da escravatura podem conter
variações não postuladas pela instituição jurídica da escravatura (Davis 1970:62-90). No caso de Cachoeira!
São Félix, essa prática não excluía o desenvolvimento de modelos familiares alternativos ao modelo dominante.
Bem ao contrário, as redes familiares dos escravos e livres foram determinantes na prática escravagista
exercida nesse contexto. A existência de redes familiares constituiu, para os senhores, uma margem de manobra
necessária à administração da escravatura: enquanto a condição de livres representava aos olhos dos escravos
não- somente uma saída definitiva da condição.servil, mas-um- status. vital a conquistar; as.redes. familiares.
constituíam lugares sociais de canalização de recursos para poder comprar sua liberdade - em lugar de
morrer pela liberdade. As redes familiares ligavam etnicamente os iguais entre si, e remetiam os diferentes às
fileiras do inimigo, do outro. Elas baseavam-se sobre representações da familia e do parentesco - que é até
os nossos dias um campo livre a investigar pelos praticantes da antropologia histórica - os quais retomavam
as ideologias- hie-l'aFqH;izant~s-~ "eelorizantes" da-ol'dem soeiab Assim- eomo-as- Fe-de-s-
soeiais apoiadas- sob re
as nações de origem (Reis 1992) permitiram aos africanos comprar sua liberdade, em Cachoeira e em São
Félix, as redes familiares foram determinantes na obtenção das cartas de alforria (Wimberly 52). A pequena
produção agrícola (tabaco ou outros gêneros) executada sob o regime de arrendamento e de adiantamento
em parceria, ao mesmo tempo que ela simbolizava o empreendimento direto do agricultor sobre sua produção,
seu consumo; sobre- seus modos de-distribuição; sobre o-espaço-e-o-tempo; era; ao-mesmo-tempo, uma-fonte
interessante de recebimentos para os senhores ou para os proprietários de terra, capazes de mobilizar e de
utilizar toda uma rede familiar (no caso dos parceiros livres) a seu proveito, e sem despender um centavo.
Se é verdade que a estrutura agrícola constitui o ponto de partida necessário para o estudo da
família no século passado, é também verdade que, como observou Mattoso (1992: 142), o modelo dominante
utilizado- para pensar a família foi muito- pouco- relativizado-pe-l-cr-historiografia-brasileircr: Foi-esquecido.
que, em certas regiões, a agricultura de subsistência ladeou as plantations, como no caso de Cachoeira, onde
a economia do tabaco apoiava-se, ao menos até a segunda metade do século XIX, em 46%, sobre pequenos
sitiantes compostos de negras. e mestiços de negros e.pequenas brancos. Além. disso; coma foi visto, o
desenvolvimento da vida urbana em Cachoeira e em São Félix favoreceu a uma concentração nas margens
da cidade de habitações péri-urbanas, de negros e mestiços livres, de escravos, as senzalas. Nem todas as
senzalas eram integradas fisicamente à casa do senhor. Essa variação espacial é significativa, pois ela permitiu
aos negros uma certa autonomia, nascida da distância fisica que sancionava a distância social entre eles e
seus senhores. As rígidas divisões. entre africanos. e crioulas; entre negros. crioulos. e mestiços e.. a. mais;
central, entre senhores e escravos, brancos e não brancos, operavam uma construção espacialfragmentada,
simbolicamente, em diversos níveis, moderada por valores contraditôrios e constrangedores.

Apesar desse trabalho não ter por objeto afamilia dos escravos no tempo da escravatura, ou ainda,
a histéria da-familia entre as-negFos- do-RecôncClVO-- empreendimentos, na- verdade, urgenies-no-contexto
brasileiro - eu me proponho a abrir um parêntese, com essa nota, visando uma breve confrontação das teses
centrais que alimentam os sabidos mitos a respeito da ausência dafamíliajunto aos negros escravos, com as
condições objetivas e particulares de existência da organização da vida familiar entre escravos, na medida
da prática da escravatura nas cidades e municípios estudados no Recôncavo. A utilidade de tal confrontação,
apesar depeueo-detalhada, consiste no suporte, easo-seja-neeessário- de trabalho« dos historiaderes sociais;
no Brasil, inaugurados a partir dos anos 70 (entre outros, Slenes e as pesquisas da UNICAMP; para uma
bibliografia detalhada, ver Slenes s/d, e Slenes 1994).
Em sua obra clássica sobre a formação dafamília brasileira, Freyre (1974) inaugurou uma visão
totalizante da família patriarcal, na qual o negro aparece apenas como agregado, um sujeito incapaz de
inventar uma- resposta social e-cuhural-à absoiuta-vtoíência-na-qual ele-estava-imerso. Consequência dessa
visão vertical e monolitica da plantation, a visão freyriana levou a construir as relações patriarcais expressas
pelo sintagma casa-grande/senzala numa relação de agregação segundo a qual o espaço da segunda é
53
Famllia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

desprovido de toda autonomia e de toda identidade. Graças a proximidade espacial dos escravos vivendo
nas senzalas, ao investimento cotidiano dos escravos na vida de seus senhores, e, certamente, à sexualidade
desregrada entre senhores, a proximidade afetiva entre crianças de peito e mães de leite, seria daí resultante
uma integração relativa, senão total, do escravo na vida familiar do senhor: não haveriafamilia de escravos,
mas sim escravos participando da família do senhor. Se é verdade que o regime das plantations apoiava-se
obre uma estrita disciplina dos corpos, acontece que esse mesmo regime variava de uma plantation a outra.
Ainda mais no Brasil onde, por razões estabelecidas em outros estudos (por exemplo Schwartz 1985), os
senhores das plantations detinham poderes de imprimir em suas plantations suas marcas pessoais. Em segundo
lugar; a visão freyriana se enraiza nas discussões inaugurais sobre Q estatuto da familia que iriam marcar
lodo o empreendimento antropológico posterior (oparadigmajurídico na antropologia é discutido no capítulo
Ill desse trabalho). A definição jurídica ctássica dafamilia; tal como formulada peio direito romano, expressão
da cosmologia ocidental, conceitualizava uma representação das normas familiares em contradição lógica
com a escravatura, enquanto instituição e enquanto prática. No Brasil, o eco dessa discussão ressoou de
modo significativo junto aos juristas brasileiros da época.formulando o direito matrimonial patriarcal em
estreita continuidade com o conceito de patriarcalismo romano!" (ver discussão na introdução desse trabalho).
Essa representação da família a partir da norma; expressa através do conceito- defamilia patriarcal, e sua
incompatibilidade lógica com a instituição da escravatura, penetrou a mentalidade das elites dominantes
rancas, aoponto de se erigir como paradigma analítico, não somente em história, mas também em sociologia,
em antropologia, etc., em autores contemporâneos cujos trabalhos sobre a escravatura ou sobre os negros
são referências reconhecidas, tais como: Florestan Fernandes (J 964; 1972) ou F H. Cardoso (J 962) e Ianni
(e Cardoso 1960).
A esse juridismo acima estabelecido acrescenta-se a herança teórica positivista objetivista (cujas
consequências nos estudos sobre a família são posteriormente estudados) legada principalmente pelas
pesquisas sobre afamilia negra na Universidade de Chicago (principalmente Fraziet; 1948)11 Essa concepção
positivista objetivista fez da organização familiar dos escravos, por um lado, uma simples variante da
organização social e, por outro lado, uma expressão da anomia, da desorganização devida aos efeitos da
ordem escravagista, d'onde viria sua postulada ausência. Curiosamente a tese patológica reúne num mesmo
conjunto, o racismo dos conservadores de direita norte-americanos, contra os quais Frazier concebia sua
revolta, e certos intelectuais de esquerda brasileiros. Sabemos que nos Estados Unidos, o mito da
desorganização familiar levou à reificação da família negra contemporânea, enquanto que no Brasil ele
levou os autores a negar aos negros, mesmo dentrodecontextos socio-histàricos diferenciados, a capacidade
de produzir uma experiência famíliar diferenciada, diluindo a condição étnica na condição de classe, graças
às virtudes da miscigenação e do branqueamento progressivo da sociedade brasileira. As duas posições
levaram curiosamente a dois tipos de reificação: à reificação pela raça nos Estados Unidos do Norte, e à

reificação pela classe no Brasil (ver introdução e capítulo llI).


Par outro-lado, a análise historicadafamilia do-tempo-da escravatura-permanece; analiticamente,
presa a uma representação conceitual dominante, mediada por uma concepção jurídica e uma visão positivista
objetivista, prévias aos estudos. Os conceitos defamília, parentesco, etc., como são analisados nesse trabalho,
são categorias sociológicas, antropológicas, apropriadas por outras disciplinas em circunstâncias de
questionamento metodológico - empirico determinado - é o caso da História na primeira metade desse
século: Os historiadores não- são- obrigados- a- importar o- conceito: e os debates subsequemes que são a
condição de sua existência analítica, tanto mais que, o caso do conceito de família e de parentesco (ou ainda
de casa, assim como outros conceitos próximos), a todo mundo é reputado saber, pela observação e pela
intuição primeiras, o que é "a" família, "os" parentes, "a" casa, etc. É assim que, em numerosos trabalhos
sobre afamilia escrava, oufamília de negros livres (alforriados, libertos), encontra-se o uso naturalizado e
indiferenciado de "matrifocalidade", de "famihaconsaguinea", etc. para designar e construir analiticamente
essas organizações familiares. No tempo para essa disciplinas, produtoras de categorias analíticas (sociologia/
antropologia), efetuarem um questionamento desses mesmos conceitos, estes são já integrados no senso
comum acadêmico, como sendo categorias naturais de percepção.

-"'I
54
lia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Cachoeira hoje: Espaço, Cultura e Sociedade

Até o primeiro quarto do século XX, a economia do tabaco continuou a manter no primeiro

o a cidade de Cachoeira no Recôncavo. Mas também, desde esse período, os sinais de decadência

zomeçaram a se manifestar, principalmente com o ritmo acelerado das profundas subversões que

-:am marcar o curso desse século. A penetração de estradas a partir do sistema McAdam no interior

Coa país, os novos meios de comunicação, o deslocamento progressivo do centro da geografia

econômica, etc., favoreceram a emergência de outros centros regionais, como por exemplo, a cidade

':e Feira de Santana, que tomou literalmente o lugar de Cachoeira no que concerne à sua importância

comercial e sua posição estratégica, com relação a certas regiões do interior e à capital bahiana.

tros fatores internos iriam precipitar a queda de Cachoeira de sua posição econômica privilegiada

o Recôncavo, como a desativação das principais fábricas de tabaco por ocasião da segunda guerra

mundial. Resultou daí um progressivo abandono da cultura do tabaco e um empobrecimento

generalizado dos segmentos sociais dela dependentes. Os decênios 1950 e 1960 acabaram com o

sonho de crescimento e renascimento de Cachoeira. As prospecções da PETROBRÁS e a seguida

instalação de suas usinas de exploração de petróleo em Camaçari, a construção de vias rodoviárias,

e as intensas migrações locais daí resultantes, abriram novas esperanças para aqueles que partiam e

confirmaram o desespero daqueles que lá ficavam. No decorrer dos anos 70, o governo federal,

frente às condições alarmantes das velhas edificações, carregadas de história, e à economia moribunda

da cidade, promulgou uma lei tombando a cidade de Cachoeira no Patrimônio Histórico. Essa medida

permitiu ao governo local tentar, durante os anos 1980-1990, uma retomada de sua economia,

investindo no potencial turístico da cidade.

A cidade de Cachoeira, com uma população urbana de 12.041 habitantes divididos em 2.853

domicílios, não é mais, atualmente, que a sombra de sua sombra. As edificações do centro, envelhecidas

pela história das relações sociais estão, em sua maioria, caídas em desuso; as outras, graças ao

esforço de restauração dos proprietários, tentam ainda resistir ao tempo. A velha aristocracia

latifundiária emigrou progressivamente para Salvador e foi, hoje, substituída por uma nova elite
55
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

.ocal branca e mulata, composta de funcionários, de intermediários de latifúndios (participantes da

raesma família destes), de comerciantes, profissionais liberais, proprietários de terra medianos,

oteleiros e restauradores. Sua sociabilidade gira principalmente em torno da vida familiar (visitas,

encontros e festas em família), dos clubes e organizações implicitamente exclusivas (o Rotary local,

;;.Ordem Maçônica Caridade e Segredo, fundada em 1879), das associações culturais e esportivas (a

âlarmônica Minerva Cachoeirana, associações de apoio às atividades culturais em Cachoeira,

associações esportivas locais, etc.), as associações religiosas (principalmente as confrarias e as

associações de jovens católicos), os bares e restaurantes do centro.

Na periferia de Cachoeira, desdobram-se, em leque, os principais bairros pobres e

marginaíizados que participam, numa certa medida, da vida social e econômica da cidade. Essa

. eriferia é dividida em doze bairros e contém mais de 70% da população da cidade de Cachoeira.

Cinco desses bairros têm sua origem no tempo da escravatura. Dois desses cinco bairros foram

habitados exclusivamente por africanos", até o final do século XIX, separados dos outros, habitados

pelos escravos crioulos e mestiços, e os livres (libertos). Os outros bairros desenvolveram-se

rapidamente na virada do século e nas transformações ocorridas durante a primeira metade desse

século. Os mais antigos bairros negros, tanto em Cachoeira quanto em São Félix, desenvolveram-se

. rincipalmente sobre as duas margens do Paraguaçú. Os outros cercam, num semi-círculo, as duas

cidades, do extremo norte ao extremo sul. Visando as necessidades do presente estudo, foi operada

uma classificação arbitrária de nove entre eles, por número, de modo a poder designá-los sem que

fossem reveladas suas identidades.

A divisão interna dos bairros, aos olhos de seus habitantes, não corresponde necessariamente

àquela traçada pelos documentos dos serviços oficiais. Um bairro, nas comunidades estudadas,

pode ser designado sob o termo rua - dir-se-á por exemplo Rua Santo Antônio de Jesus (que não

existe na realidade) para designar o bairro de mesmo nome. No interior do bairro ou da rua, os

habitantes subdividem os blocos como sendo também bairros. Esses blocos se originam em geral no
56
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

modo de possessão da terra pelos ocupantes, segundo tratar-se, por exemplo, de uma terra da

refeitura invadida, de uma terra alugada de um intermediário, de uma ocupação por meios não

egais de terras de um fazendeiro, etc.

O termo rua é altamente polissêmico. Os habitantes da periferia de Cachoeira designam

orno rua, muito frequentemente, o espaço propriamente do centro da cidade, comercial. A expressão

"vou pra rua" pode designar "eu vou à cidade" - entenda-se centro da cidade - ou "eu vou ao

mercado". Mas ela pode também significar "eu vou a tal ou tal bairro", "eu vou a uma festividade",

etc. Rua e casa se encaixam e se opõem de modo muito circunstancial. Casa é, primeiramente, o

•..spaço doméstico, mas é muito mais complexo que isto (ver capítulo TI). Nesse caso, ela se opõe à

rua, quer dizer, ao público. Mas casa é também o bairro tal como sócio-culturalmente construído,

er dizer, o bairro enquanto quarteirão, vizinhança. Nesse caso, a casa é oposta ao resto, aos

utros; e o critério de distinção principal constrói-se em torno do "bem viver", da "família" pensada

como "unidade" de próximos e a filosofia implícita a esse critério é a da união, participante de um só

corpo (de uma família só). Quando a casa se refere ao bairro de modo muito mais genérico, quer

dizer o conjunto dos blocos sociais, espaciais e culturais que o compõem, a identidade dos agentes

se constrói então em referência à unidade sócio-espacial na qual eles estão inseridos. Nesse caso, o

critério de distinção e de auto-distinção se traduz em termos de uma etno-filosofia moral opondo

gente ruim e gente boa; gente de sangue bom e gente de sangue ruim (sobre essas oposições ver

capítulo ITI). A residência carrega com ela não somente a significação social do lugar (a localidade)

na qual se reside, mas também a significação moral, e, segundo os contextos em questão, as

significações raciais desse lugar. Dir-se-á por exemplo que os habitantes do bairro #3 (bairro muito

populoso e famoso em Cachoeira por ser a referência dos pretos - 85% de negros contra 15% de

mestiços, ver Ti - dos bandidos, da gente de sangue ruim e de pobres diabos) são degenerados,

.iolentos e corrompidos. Eles são, aos olhos dos outros bairros, pessoas essencialmente más,feiticeiros

do candomblé); a eles são aplicados todos os estereótipos associados aos negros. Eu não me interesso

aqui em produzir uma etnogênese dos bairros (o que seria muito interessante). Entretanto, devo

L
57
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

embrar ao leitor que esse bairro #3 era um dos bairros onde, no tempo da escravatura, as autoridades

ocais mantinham em observação os negros africanos recém-chegados, os boçais. Durante esse

período, a mata existente atrás desse bairro era célebre como sendo a referência de ladrões, salteadores

e malfeitores de todo tipo. Aliás, o bairro #3 era um dos principais bairros da comunidade dos

africanos de Cachoeira, isto até o final do século XIX

Os bairros da periferia são hierarquizados pelos próprios agentes que lá vivem. Essa hierarquia

e espaços sócio-fisicos é redobrada por uma hierarquia da topografia moral daqueles que os habitam,

segundo a qual, os bairros tradicionais são redefinidos de modo ambíguo e contraditório, de acordo

om o elemento (l'enjeu) posto em causa pelos agentes. O bairro #3, por exemplo, considerado

totalmente, nas representações dominantes - tanto da periferia como do centro - como sendo o da

promiscuidade, da degenerescência e da criminalidade, é ao mesmo tempo um dos bairros invocados

pelos agentes por traduzir a antiguidade de velhas famílias de candomblé, descendentes de patriarcas

mitológicos, um dos lugares onde ainda se guardam os traços puros das tradições do candomblé!

Além do lugar, a religião e a família operam também como critérios de categorização e de

divisão simbólica do universo da cidade. Na periferia de Cachoeira (e de São Félix), as religiões

crístãs são as religiões declaradas. De fato, para os agentes investigados, a idéia de religião só pode

ser ligada às religiões cristãs. Se é verdade que certos membros do condomblé, participando ou não

da comunidade intelectual, operam uma classificação a partir dos critérios dominantes sobre o que

constitui a religião, classificando assim os Candomblés sobre o quadro das religiões, para os agentes,

membros dos candomblés, estes são considerados mais como uma prática ou um conjunto de práticas

ligando a existência dos agentes à vida cotidiana". Os agentes dizem ainda tranquilamente: eu sou

um católico, servidor de tal Orixá. Enquanto as práticas rituais na intenção dos Orixás são explicitadas

e pensadas pelos agentes sempre como "serviços", como obrigações voltadas para o interior, para a

pessoa, as práticas religiosas propriamente ditas voltam-se para o exterior, ou seja, para o público.

Produz-se portanto, entre os agentes, uma concepção dos candomblés como prática da dimensão

existencial do sujeito, subtraindo-a implicitamente da ordem da religião.


58
Famllia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Entretanto, essa prática reúne e associa iguais entre si, os irmãos e irmãs de santo entre eles,

:azendo dessa associação uma dimensão espiritual da vida familiar. Assim, na linguagem da família

e do sagrado, traduzem-se relações que aproximam espaços, em outros contextos sociais distanciados

e divididos. Os movimentos pentecostais estabelecem um corte similar a esse dos Candomblés: os

,!ue são salvos do pecado pela fé, devem manifestar seus testemunhos, mostrando àqueles que não

são, independentemente do lugar sócio-espacial, que o reino de Jesus começa a se estabelecer

:'esde o momento, na solidariedade manifesta entre os irmãos e irmãs em Cristo. As comunidades de

case da Igreja Católica tentam timidamente recuperar os jovens dos bairros da periferia. Mas são

sobretudo as pequenas confrarias religiosas que buscam a maioria das mulheres desses bairros,

sejam elas dos Candomblés ou não, em um só exército celeste comandado pela Virgem Maria. Esse

exército, cujo destino é aterrorizar os demônios, não tem para seus integrantes as mesmas definições

':0 inimigo: para certos membros das fraternidades carismáticas, o demônio é evidentemente o

Candomblé e seus servidores; para outros, é o vizinho ou o adversário. Nessa cacofonia de objetivos,

acaba-se por fazer um exército na medida de seus inimigos.

Em cada um desses bairros, existem grupos familiares que se apresentam como dos mais

zatigos. A reinvindicação da antiguidade pode traduzir-se como princípio de legitimação da posição

:.ominante de um grupo familiar na configuração das relações sociais no interior do bairro. Em

geral, a antiguidade invocada como princípio de legitimidade, sempre remetida à invocação de uma

comunidade imaginária, uma nação (Gege-Nagô, Angola, etc.), em nome da qual o grupo familiar

_etém sua legítima posição. Os primogênitos de um grupo familiar, por exemplo, invocam seus

ascendentes africanos, não somente como princípio de filiação biológica, mas como princípio de

5.liação espiritual, cosmológica, para justificar a antiguidade da família, de seus objetos de uso e de

seus objetos rituais. Esses grupos familiares constituem o centro, o cerne do que eu chamo mais à

~ente de "configuração de casas" (ver capítulo 11). Eles são principalmente filhos de Orixás, quer

dizer, descendentes biológicos de divindades espirituais, cujos poderes são transmitidos de pai ou
59
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

mãe para filho (mas, geralmente, de mãe para filho). As casas fisicamente dispostas preenchem um

espaço fisico, simbólico e sociológico no qual se inscrevem as formas de sociabilidade do grupo

:à.rniliar.Em torno desse núcleo se concentram e articulam relações sociais traduzidas em termos de

parentesco espiritual: a família de santo, pais e mães de santo, irmãos e irmãs de santo, etc. Essas

relações sociais tão amplas que se articulam em torno desses núcleos - formados de descendentes

ciológicos e espirituais de um Orixá ou de um patriarca mítico - combinam indivíduos de origens

sociais as mais diversas: desde o filho de santo, sem família e sem trabalho, adotado por essa grande

:3rnília que é o grupo, até o poderoso homem político local, branco, da classe média, ou ainda, o

_ ande proprietário de terras ou industrial de Salvador que, por "procuração", através de seu

empregado doméstico, possui um assento de sua divindade no terreiro, casa principal da configuração,

co grupo".

Nas Pranchas a seguir apresentadas (Pl, P2), tentei traduzir uma fotografia instantânea dos

. rincipais bairros da periferia de Cachoeira (9 por 12). De fato, eu poderia ter recuperado nessas

pranchas os principais dados coletados sobre São Félix, a cidade gêmea de Cachoeira, já que as

famílias por mim acompanhadas habitam nas duas cidades e estendem seus tentáculos até a periferia

e Salvador (três bairros). Entretanto, creio que os dados que utilizo nesse trabalho diferem muito

pouco, não somente dos de São Félix, mas também dos de outras cidades do Recôncavo por mim

estudadas. Como todo discurso sobre o social se produz a partir de um lugar fisico e social, considerei

-,er útil limitar-me aos dados largamente verificáveis relativos aos bairros populares de Cachoeira.

Essas pranchas são puramente descritivas e, em consequência, serão raramente referidas no texto

omo apoio demonstrativo. Entre os 9 bairros, destacam-se como os mais populosos os bairro #3 e
=5. Por não poder dispor, pelos documentos oficiais, da população total por bairro, tive que recorrer

a um rude procedimento, que consistiu na contagem dos domicílios (casas enquanto construções

fisicas). Muitos erros e falsas verdades devem ser denunciadas no momento em que se leiam essas

pranchas: sejam, por exemplo, os 450 domicílios para o bairro #3. É evidente que uma pesquisa

conduzida em caráter particular, sem a legitimidade da presença formal de autoridades locais e sem
60
í1ia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

5 meios apropriados, implica numa abordagem grosseira do fato "domicílio"; eu e meu assistente

zos limitamos a contar fisicamente o número de casas, sem poder discriminar qual casa abriga mais

ze uma unidade doméstica, ou qual unidade doméstica vive em duas casas ao mesmo tempo (o que

zão é raro). Assim, os 450 domicílios inscritos nesse quadro, traduz que existe, ao menos, 450

zomicílíos no bairro #3. Essa advertência vale para os bairros do #2 ao #9. O bairro #1 foi para mim

mais acessível, na medida em que eu conhecia todos os habitantes do bairro. Assim eu sei que

cesse bairro, até 1995, havia 139 domicílios abrigando 139 unidades domésticas.

Os ítens "casas de Candomblé" ou "Igreja Pentecostal" (Pl) traduzem a presença de templos

em funcionamento num bairro. No caso dos Candomblés, existem casas-templos que são

absolutamente privados, voltados para a família e não para a comunidade (ver a casa de Elma,

capítulos II e V). Em cada bairro existe uma espécie de batalha simbólica, feroz, entre as casas de

r andomblé (associadas ao diabo pelos cristãos) e, principalmente, os pentecostais. De fato, os dois

universos apresentam, sob referências simbólicas diferentes, o mesmo modelo de cooperação; eles

traduzem na mesma linguagem do parentesco espiritual os laços sociais por eles criados e reinventados.

Mas essa presença maciça dos pentecostais não reduz em nada a importância dos Candomblés na

'ida cotidiana dos agentes em Cachoeira. A própria classe dominante tem todo interesse,

contrariamente ao passado, em proteger os terreiros e fazer deles um motivo de orgulho no lugar de

vergonha, pois eles representam um capital cultural decisivo no mercado regional, e mesmo

internacional, dos produtos folclóricos (as elites referem-se a Cachoeira como o maior centro mundial

e Candomblé!). Esse produto, que é a "africanidade" de Cachoeira, está hoje em dia num processo

e enquadramento, de refinamento, de modo a poder concorrer, em igualdade de condições, com os

outros produtos negros exóticos do Estado da Bahia (a música, as mulheres mulatas, por exemplo).

Esse enquadramento dos terreiros de Candomblé não é um pequeno negócio, ele implica no

investimento dos políticos locais, regionais, de modo a assegurar seus votos por ocasião dos comícios".

Além disso, a organização do poder local está estreitamente associada ao poder dos terreiros, com

grandes comerciantes apoiando simbolica e financeiramente os terreiros. Em troca, eles têm seus
61
~al1lília, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

sentos nos terreiros.

Eu cheguei a uma média de quartos de dormir por domicílio após ter aplicado. um

crocedimento sistematicamente em três deles. O leitor encontrará uma análise detalhada das casas

dos bairros de #1 a #4, no. capítulo. lI. A média geral de quartos nas casas das classes populares em

Cachoeira/São Félix, pode ser lida segundo. a seguinte relação: n ~ 2.2 (ver ítem "Quarto. de dormir

por domicílio" Pl).

O princípio. de antiguidade é central na constituição das configurações de casas entre os

agentes (ver PranchaPl "Ordem de antiguidade dos bairros"). Corno foi acima exposto, esse princípio.

consiste na invocação ambígüa das ascendências, principalmente dos patriarcas míticos, no. sentido.

e firmar determinadas formas de dominação intra-familiares. Corno será colocado na seção. seguinte,

essa ascendência po.de remontar. a uma África míticac mas.nunca a uma África real pois, para os

negros. brasileiros; a África é Q mais, baixo lugar, da.decadência. humana.i lugar; da barbárie, da

animalidade, abismo. sem fim onde se encerram.na miséria, milhares de negros infelizes". Do. mesmo.

modo, a linha ascendente evita sempre a escravatura: exceto em circunstâncias muito. particulares,

das quais falarei mais tarde, tudo. se passa corno se ninguém tivesse tido. um ascendente escravo. Eu

designo. pelo. algarismo. 1, os bairros mais antigos, participantes da própria fundação. de Cachoeira;

pelo. algarismo. 2, os bairros surgidos com os movimentos demográficos dos negros por volta da

segunda metade do. século. XIX; e pelo. 3, os bairros relativamente recentes, datando, no.máximo, de

um século.

Na rubrica "Antiguidade dos grupos familiares" (Prancha Pl), eu dou conta das famílias

mais antigas dos respectivos bairros. À questão. Desde quando suafamília (linha de descendência)

mora nesse bairro? as respostas flutuaram entre 5 gerações e, respectivamente, 4 e 3 gerações. O

que é interessante aqui, não. é ter ciência do. que diz o. informante, mas sim estudar os modos de

invenção. de identidade e de legitimação de poderes familiares, assim como seus usos no.interior dos

bairros. Entretanto, eu considero as informações representadas sob essa rubrica entre as mais

importantes, pois elas nos permitirão. urna boa compreensão do. funcionamento das grandes
62
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

configurações de casas. Se não me foi possível verificar essas informações quanto aos bairros de #2

_ =9. tal não foi o caso quanto ao #1. Com efeito, esse bairro se erigiu a partir de umafazenda, como

:ai anteriormente mencionado. Até o final do século XIX, havia no local apenas uma grande plantation

z.ecana-de-açúcar. Graças aos Arquivos locais, pude constatar que em 1872 o engenho em questão

havia sido transformado emfazenda, abrigando uma fábrica de fósforos que empregava uma parte

:e seus escravos e de seus antigos escravos, tendo sido os restantes, por meio da concessão de

carcelas de terra, reconvertidos em trabalhadores agrícolas meeiros (parcellares) na fazenda. Eu

,__de então acompanhar, sobre quatro gerações, a história das residências e da vida cotidiana, o que

5Ç encontra nos capítulos 11 e V. Para compreendermos a importância desses números, é preciso

zcompanharmos, no capítulo IV, a prática matrimonial e os elementos em jogo (les enjeux) nas

:.ianças entre os agentes oriundos desses grandes núcleos familiares.

Prancha 1 (P1): Sociografia dos bairros #1 a #9 da periferia de Cachoeira.

I
#1 #2 #3 #4 #5 #6 #7 #8 #9
"\.""0 domicílios 139 1-58- 450 117 230 .152 186 lQ7 176
Casas de 1 3 5 3 2 1 3 2 1
Candomblé
Quartos/ 2.6 2.5 1.8 i.s - 2.4 2.3 t.8 2 1.5
domicílio I

~úmero 4.5 5 5.7 3.3 4 4.3 4.3 3.7 4.2 I

nessoas/ -
I

domicílio
- I

Igreja 2 2 4 1 2 1 2 1 1
Pentecostal -
I

Escola 1 1 2 1 1 2 1 I

primária
i

Ordem de T T -r r z- r 3 3- 3 ,

antiguidade t- - -
I
I

dos bairros
Antiguidade 5 4- -5 4 -4 5 :r -:r 3
dos grupos
}àmiliares -
63
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Prancha 2 (P2): Sociografia dos bairros #1 a #9 (sequência)

#1 #2 #3 #4 #5 #6 #7 #8 #9

Serviços/comércio e 50% 70% 66% 60% 78% 68% 80% 80% 80%
vida econômica!
domicílio

Agricultura e vida 50% 20% 34% 40% 22% 32% 20% 20% 20%
econômica! domicílio
Rendimento mensal/
65$ 65$ 45$ 45$ 30$ 45$ 40$ 40$ 35$
domicílio
N°. mestiços
60% 20% 15% 22% 40% 70% 44% 50% 30%
estimados/Bairro
Negros estimados/B 40% 8.o%~ 85%~ 780/G- 60%~ 300/0- 56% 500/G- 70~

As pranchas 1 e 2 levam em conta dados parciais coletados em Cachoeira e em seus arredores entre 1993 e
1995. Trata-se aqui de pranchas descritivas e não de quadros demonstrativos, pondo em relação certas variáveis, as
quais, na maior parte, são tratadas de modo mais sistemático.
64
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahi a, Brasil

•ista parciaL das cidades Cachoeira e São FéLix.


Foeo # 1: São F élix, vista de Cachoeira. Observe a ponte metálica centenária Dom Pedro II posta entre as duas cidades,
re o rio Paraguassu.
=-oto#2: A cidade de Cachoeira, vista do alto de São Félix.
65
lia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

parcial dos bairros estudados (J:ér capítulo V para ilustração bairro #1).
=1: Vista pacial do bairro #2. As casas do bairro #2 seguem em linha e distribuem-se no topo da colina que leva
me. Esse bairro é um dos mais antigos dos bairros populares da cidade. No tempo da escravatura, ele era
.o pelos crioulos (negros e mestiços livres, os pequenos artesã.os escravos). Hoje em dia ele é considerado
s;c:ilinente superior ao bairro #3.

=2: Vista do bairro #3, o mais populosos dos bairros populares da cidade. O mais pobre e o mais marginalizado
c:zr:;;Skm. No tempo da escravatura, ele era consagrado exclusivamente aos escravos recentemente vindos da África
"Unberly 1988).

histórico e características dos bairros nas pranchas PI, P2)


66
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

H.sta parcial das editicações do centro da cidade. (fotos José Mário, Cluposil)
Foto #1: No centro da cidade, as edificações residenciais de estilo barroco são dispostas em linhas irregulares, com
oois ou três andares, comprimindo-se em blocos, delimitados por ruas pavimentadas com pedras e entrecortados por
templos católicos.
Foto #2: O hotel da cidade e câmara dos representantes locais. Bem à direita, a imponente pousada, antigamente
~3!!gscano construído no final do século XVII.

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67
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Morar (habiter) é um verbo que não se conjuga da mesma maneira em todas as classes

sociais e em todos os segmentos sociais construídos como sendo grupos étnicos. Quando eu digo na

nrancha Pl, na rubrica "número de pessoas/domicílio", por exemplo, que os domicílios são compostos

em média de 4.5 (com 4.3 como média geral de moradores por domicílio nos 9 bairros reunidos - o

dice do IBGE é de 4.2 para a população global da cidade, ver quadro QJ), o que é morar em meio

popular e entre os grupos estudados? Quais são as regras de moradia que governam seus

comportamentos? Quais são os valores que os sustentam? O quadro nada diz a respeito. Nenhum

auadro o dirá. O que eu desejo sublinhar aqui, é a média relativa a um dado período de frequência

casas. Sabe-se, a partir da história das moradias, que os agentes não se distribuem nas casas com

mesma constância no decorrer de toda sua vida. Existem moradores permanentes (e é preciso

estudar a economia de sua permanência) e os moradores periódicos (cuja periodicidade deve ser

bém estudada, veja capítulo lI). As sequências variam na prancha Pl entre 5.7 e 3.3.

__ adro {Ql]: Domicílios rurais e urbanos e população no Município de Cachoeira.

Região Tot.Dom. Populac. T. M.!do Do.U Pop.U MID Do.Ru Po.Ru MlDR

6186 27744 4.48 3307 14050 4.25 2879 13694 4.76


1240 5838 4.71 89 367 4.12 1151 5471 4.75
3855 16883 4.38 2&53 12041 4.22 1002 4842 4.83

1091 5023 4.60 365 1642 4.50 726 3381 4.66

• Legenda: Primeira linha: Total dos Domicílios (Tot.Dom.); População total (Populac.t.); Média geral de pessoas
domicílio (M/do); Situação dos domicílios em itálico: Domicílio urbano (Do. U); Número de pessoas - população
-=rllw.a - (PoIJ.u.); Média de pessoas por domicílio urbano (MID); Domicílio rural (Do.Ru.); População rural (Po.Ru.);
lédia de pessoas por domicílio rural (MlDR.) .

• Primeira coluna: 1= Município de Cachoeira; 2= Distrito Belém da Cachoeira; 3= A cidade de Cachoeira; 4=


Jistrito Santiago do Iguape. (Fontes: IBGE, 1991).

Eu apresentei na prancha P2 um espectro analítico esclarecendo as diferentes fatias de

.dades investi das pelos agentes dos bairros estudados, desde o comércio ambulante até os trabalhos
68
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

de agricultura. É a partir desse espectro, e em função da.&declarações dos ageates..que.construí a

estimativa dos rendimentos destes (P3). Para sair da análise estimativa e penetrar no mundo concreto

dos agentes, eu tomo por exemplo, após o espectro, os três bairros que constituem o terreno efetivo

da pesquisa em seus detalhes. O leitor terá assim uma matéria de comparação com as afirmações

;onstruídas em diversos níveis a partir da realidade das pessoas. O espectro traduz a média das

fontes de rendimento a partir dos 9 bairros acima expostos.

Prancha #3: Combinação defontes de renda na economia doméstica das casas.


Mandioca

Outros 5,1
-------------
Outros
Agricultura- ~- -8
:laInéstieos-22,2 --.~"

5
Bóias-frias .•
Plantas
Construção 4

AFlesanato-11,1

AteJiers 5,1

Essa prancha traduz aimportância dos diferentes setores de atividade na economia doméstica das casas dos
bairros reunidos, sobre a base da média estatística fixada a partir da prancha P2. Numa determinada casa, os
3gentes adultos podem investir simultaneamente ou separadamente em diversos setores de atividade, por exemplo, a
economia da casa X no bairro Z pode depender em 25% da agricultura, 30% do comércio, 11% do artesanato, 2% do
trabalho assalariado, etc.
Por outro lado, se acompanharmos a prancha P2, veremos que a importância dos setores de atividades e seu
modo de combinação variam de bairro em bairro e de casa em casa. O bairro #1, por exemplo, por ser exclusivamente
:onstruído a partir de dentro de uma fazenda, tem 50% de suas fontes de renda na agricultura, com uma margem.de
variação interna significativa entre as casas, indo de 25% a 70%. A rubrica "outros" inclui as outras atividades não
declaradas, tais como a prostituição, cuja importância varia de bairro em bairro e de casa em casa.

Por falta de dados oficiais sobre a sociologia dos bairros periféricos da cidade de Cachoeira,

ptei pela realização de um survey de modo a poder fazer uma idéia a respeito das condições sócio-

econômicas dos referidos bairros. Baseado nesses dados coletados, e em função da antiguidade dos

bairros, eu selecionei três dos nove bairros acima descritos: o bairro #3, o mais populoso - 450

omicílios, média dos componentes n=5.7 - e o mais pobre (ver P4, para comparação com dados do

:BGE) da periferia de Cachoeira; o bairro #2, de status social relativamente mais alto e o bairro # 1.

_\ estrutura demográfica de sua respectiva população é marcadamente jovem'? e o índice de


69
- ilia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

alfabetização estimado em 40% entre os adultos e 60% entre os menores de 10 anos". No caso do

bairro #3, o rendimento mensal dos agentes ativos varia em tomo de 45$ (exatamente a média

calculada para o conjunto dos 9 bairros). O bairro #2, com perto de 158 domicílios, responde por

rendimento mensal superior ao dos habitantes do bairro #3, em média $65. Os dados demográficos

. bairro #3 não são diferentes dos do bairro #2 ou do bairro #1 (ver notas abaixo), terceiro bairro

constituir meu campo de investigação. Este último consiste muito mais numa aglomeração de 139

cmidades domésticas, situadas no flanco de uma colina que protege a fábrica da qual ela leva o nome.

Essa fábrica emprega em tempo parcial uma quinzena de pessoas oriundas de diferentes unidades

omésticas. Quando se toma como unidade concreta de análise um grupo dentro de um bairro,

toma-se muito dificil traduzir as formas de atividades entre os agentes de maneira separada umas

das outras. No caso do bairro #1, são os mesmos agricultores que trabalham como trabalhadores

agrícolas temporários (bóias-frias) nas grandes plantations (salariados), dos quais um percentual

significativo exerce o oficio de artesão. Eu sou um trabalhador - tal é a auto-qualificação que se

dão os lavradores/trabalhadores agrícolas. Eles se concebem como diferentes dos camponeses, na

medida em que eles não vivem exclusivamente do trabalho da terra e, além disso, consideram-se

perfeitamente urbanizados. Entre esses trabalhadores agrícolas temporários (bóias-frias), um grande

percentual não numerável trabalha, temporariamente, em Salvador durante as estações secas. Um

pai de família, um marido, um chefe de família, segundo os agentes do bairro # 1 (e dos outros

também) é alguém sempre em luta contra a passividade, a indolência (alguém que vai à luta); é

alguém que vai para rua, quer dizer, para fora da casa. Os adultos do bairro # 1 trabalham como

operários na fábrica (16%), como trabalhadores agrícolas temporários - bóias-jrias (24%), como

agricultores (50%), como artesãos (5%), como empregadas domésticas (29%), na casa (18%),

comerciantes (35%), loterias populares - jogo do bicho (54.8%) ou não fornecem nenhuma

informação exata (7%). O termo "empregada doméstica" - que designa exclusivamente as mulheres

- é talvez impróprio para designar os domínios de atividades que ele sugere. Os agentes entendem

por "empregada doméstica", aquelas que trabalham, na localidade, como lavadeira, cozinheira, ou
70
Famllia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

e, uma vez por semana, vão à casa de uma família do centro para fazer a faxina e passar roupa.

Raras são aquelas que são efetivamente empregadas em tempo integral. O preço médio que se paga

uma engomadeira/lavadeira/cozinheira/faxineira varia entre 15 a 25$ por mês; a empregada

oméstica em tempo integral recebe entre 30 e 45$ por mês.

A renda média dos agentes ativos é sensivelmente igual àquela encontrada no bairro #2

S60, ver P2). A noção de renda média por "chefe de família" é muito enganosa. Em primeiro lugar,

termo "chefe de família", tal como usado no censo, dificilmente se aplica à realidade estudada;

segundo, ao individualizar a renda, supõe-se irrelevante as redes familiares e sociais a partir das

quais essa renda tornou-se possível. Numa casa, ao menos na realidade que serviu de base para esse

rrabalho, o "chefe de família" não tem necessariamente uma renda, e a renda não vem unicamente

os adultos ou de fontes controláveis.

Prancha #4 (P4): Distribuição dos níveis de renda e população no Município e na cidade de


Cachoeira. (Fonte, IBGE, 1991).

16.000

14.000 114.236

12.000

_ Munjcípio
10.000
_ Cidade
8.000

6.000

4.000

2.000
.s-:H
192

o ..,. , 147
"<t
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.s ~
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M
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'"
.;; ~ ~ ~
'" '"
.;; '"
.;;
'" ~ ~ ~
~

Esse gráfico traduz a proporção das desigualdades sociais no Município e na cidade de Cachoeira. Esse
gráfico poderia traduzir o mesmo fenômeno em qualquer cidade do Recôncavo da Bahia. Cachoeira é um microcosmo
que diz muito sobre as condições sócio-econômicas das classes populares compostas em quase sua totalidade de
71
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

gros e mestiços. Por outro lado, um gráfico sobre a posse agrária nos arredores das cidades estudadas, revelaria a
marginalização quase completa dos mesmos grupos quanto ao acesso à propriedade de terra, enquanto que,
paradoxalniente, eles são incluídos no sistema de produção dominante na região, na medida em que controlam uma
grande parte da agricultura em parceria, exercida no sistema de meia (forma local de arrendamento de terra). É nesse
contexto paradoxal de exclusão e inclusão que seria necessário estudar a formação do pequeno campesinato ne~ro no
Recôncavo, do século XIX aos nossos dias. Esse empreendimento ultrapassa os objetivos desse capítulo.
De outra parte, por falta de dados estatísticos concretos sobre a posse agrária em Cachoeira, torna-se no
omento impossível desenvolver uma análise sistemática baseada em dados quantificáveis.
I

Todavia, não se pode dispensar, por falta de alternativa, os dados disponíveis sobre esse

.ema; mesmo quando esses dados dissimulam muito mais do que revelam. A título de comparação,

-"'.exponho, sem muitos comentários, os resultados do IBGE a respeito dos rendimentos e da escala

ce desigualdades na região (ver P4). A partir dos dados coletados pelo IBGE, eu representei na

referida prancha a escala da distribuição das rendas entre os habitantes do Município e da cidade de

Cachoeira.

Esse quadro da cidade de Cachoeira nos permite bem situar as casas que iremos estudar.

Elas constituem o objeto do capítulo seguinte.


72
- tilia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

atas do capítulo I

: Entre as campanhas mais famosas, os historiadores referem-se as de Tomé de Sousa (1549-1553),


Duarte da Costa (1553-1557), Mem de Sá (1558-1572) e Gaspard Rodrigues (no final da primeira
cietade do século XVII). Este último havia recebido da Coroa Portuguesa uma vasta terra que se
estendia às duas margens do Paraguaçu onde, mais tarde, seu filho João Adorno com outros colonos
edificaram, um. sítio fortificadc., protegendo as. plantações; as destilarias, e_a.capela, É sobre. esta
.erra, em torno dessa plantation, que se edificara, na margem direita do Paraguaçu, o pequeno
ilarejo da paróquia de Nossa Senhora do Rosário; e na margem esquerda, o vitarejo de São Félix.
Em 1698~ o lugarejo fora elevado a condição de vila, chamada de Nossa Senhora do Rosário do
Porto de Cachoeira.

: O Município de Cachoeira tem uma população de 27.744 habitantes; a cidade de Cachoeira


oossui 12.041 habitantes, divididos em 2.853 domicílios; a população rural, de 4.882 habitantes,
~.•contra-se distribuida em 1002 domicílios (fonte IBGE 1991).

- Sabe-se que os escravos importados da África eram distribuidos nos mais diversos domínios de
zrividades: desde-os trabalhos domésticos, aos trabalhes nas-minas; entretanto-aprodueãee a eeonomia
:0 açúcar, assim como as relações sociais por elas geradas constituiram os elementos essenciais que
zaarcaram a especificidade das sociedades de plantation. Assim, Schwartz (1985:245) escreveu o
seguinte, concernente ao Brasil: "Although from the beginning there were always other groups and
'her activities in Portuguese Brazil, sugar, the engenho, and Slavery played central roles in defining
razilian society. They did so not only because sugar remained an important economic activity but
1<"0 because the principIes on which sugar society was grounded were widely shared, adaptive to

ew situations, and sanctionned by both church and state".

- Insisto sobre a importância da variedade das culturas nas plantations, porque ela foi determinante
::.a variedade das formas de organização social, principalmente a organização familiar, a despeito do
faro da particularidade do Brasil-colonial acima mencionada, uma economia agrícola voltada
:=TIncipalmente- e não exclusivamente - no sentido da exportação para a metrópole. A importância
.:as outras formas de produção agrícola no consumo e na economia locais, assim como as redes
ccmerciais urbanas desenvolvidas a partir dessas produções, foram muito frequentemente obscurecidas
por certas abordagens do modo de funcionamento das plantations coloniais. Essas abordagens
tradicionais do Brasil colonial, apesar de historicamente fundamentadas; erigiram-se num prisma
e impede leituras alternativas do caráter plural do espaço das plantations. Em outras palavras,
pelo fato da economia do Brasil colonial ter sido voltada principalmente para a metrópole, a
aistoriografia brasileira tem tendência a ignorar ou a minimizar outras dimensões da produção que
engajavarn outras formas de organização social do trabalho, e que traziam necessariamente com elas
tras formas de sociabilidade entre senhores e escravos e entre estes últimos. Tal estudo da plantation,
aseado numa representação monolítica, não somente obscureceu as variações do fato histórico da
lantation, mas também as variações das formas sociais organizadas em torno das formas de produção.
E as implicações de tal visão - infelizmente ainda dominante no pensamento social - são de tal
porte, que elas impedem que se pense devidamente as continuidades e as rupturas nas relações
sociais contemporâneas.
Exceções tais como: Mattoso 1992; Palmeira 1978; Schwartz 1985; Slenes (s/d;1994) levaram a
ma restituição das consequencias sociológicas da produção voltada para o consumo interno. Do
mesmo modo, o avanço da Demografia Histórica no decorrer dos anos 70, permitiu uma reformulação
significativa da história social brasileira, abrindo novas perspectivas, até então impensáveis, sobre o
73
Familia, Parentesco e Domesticidade entre 'os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

estudo das formas de organização social dos escravos nas plantations (ver, entre outros, Costa e
Samara 1984; Slenes s/d).

5. Asplantations, como sublinhei logo de início, não se voltavam unicamente no sentido da produção
. ara exportação. Em diversas plantations estudadas no Recôncavo, desenvolveu-se uma agricultura
iversificada, sustentada pelos senhores; paralelamente à.grande, produção, Éo_ caso das culturas de
grãos, mandioca e diversos mantimentos, organizadas em parceria e sob controle dos proprietários.
O rendimento da terra constituiu red-es sociais que escapam ao alcance deste trabalho. Devemos
mencionar aqui, no caso de Cachoeira e de São Félix, a importância das redes familiares na compra
no aluguel de terras para os próximos, assim como na compra de cartas de alforria, etc. (Wimberly
-988).
A, historiografia brasileira é muito pouco - ou quase nada - interessada no estudo da formação
cesses pequenos campesinatos em parcerias contratuais - que acompanhou a fragmentação das
plantations no Recôncavo, no caso em questão, desde o final do século XVII - e de seu impacto na
fcrmaçâo da organização familiar dos negros do Recôncavo. Contentava-se em invocar um modelo
preciso de ''plantation'' para dar conta das formas de organização social que excluiriam da questão
z existência de famílias escravas.

S. A primeira fábrica de charutos foi instalada em 1819 nos arredores de São Félix. Tratava-se da
.mperial Fábrica de Charutos Juventude, com um investimento de 50.000 réis; em 1851, instalou-
5C por sua vez a fábrica Fragância, popularmente conhecida como Simas, nome de seu proprietário.
Em 1873, as companhias Danneman e Cia. instalaram-se em São Félix; essa companhia, fundada
pelos irmãos Reinhardt e Gerhard Danneman, com um capital de 200.000 réis, espalhou-se em todas
zs grandes regiões do tabaco da Comarca de Cachoeira. Entre 1877 e 1880, a maior agência da
Danneman, situada em São Félix, empregou 400 lavradores, sem contar os outros tipos de
empregados. O conjunto da companhia empregava até 1600 trabalhadores, em vastas propriedades.
Em 1874, seguiu-se a instalação da fábrica Cândido da Costa e Oliveira, tendo 300 lavradores, com
.rrn capital de 150.000 réis; a fábrica Costa Ferreira e Penna empregava mais de 600 lavradores.
Fábricas de médio porte se multiplicavam, a Casa Suissa alemã em São Félix, Jezler and Honning
Cachoeira; ainda em Cachoeira, as quatro fábricas seguintes reuniam mais de 400 lavradores:
Faria e Reis 1977, filial Vicente Ferreira de Faria 1887, Gudeville e Cia 1883, Lucas Frey e Cia
:377 (Aguiar 1979 [1888]; Fundação de Pesquisa 1978; Wimberly 1988). A maior parte dessas
fàbricas reuniam números consideráveis de trabalhadores individuais, quer dizer, produções artesanais,
:3miliares. A Imperial Fábrica de Charutos, por exemplo, empregava 80 homens, 30 mulheres, 20
crianças e 20 chateiros trabalhando em casa (Wimberly 1988:91).
Havia apenas fábricas de charutos em Cachoeira e em São Félix. Se é verdade que uma grande parte
zos bens de consumo v:inham.dametrúp-üle,_c,ectos_produtosnãQ vinham.É.o caso. dos.produtos de
costume dos escravos (entre outros). Em Cachoeira, com a aceleração da desconstrução da indústria
co açúcar, certos industriais investiram seriamente na produção têxtil, dos quais a mais importante
foi a de São Carlos de Paraguaçu, com um capital de 200.000 réis .
•....
ertas fábricas, estreitamente ligadas às plantations açucareiras moribundas, produziam peças de
reposição para os engenhos utilizando, como um bom número de fábricas, a mão de obra livre e
escrava, Certos engenhos haviam sido transformados em fazendas, depois em fábricas, como no
caso do Engenho Tororó que, em 1872, havia se transformado em Fazenda Tororó, abrigando uma
:ãbrica de fósforos, empregando uma parte de seus escravos e de seus antigos escravos na fábrica, e
s restantes, mediante a concessão de parcelas de terra, sendo reconvertidos em trabalhadores agrícolas
em regime de parceria, na Fazenda. (os descendentes de escravos moradores dessafazenda, fizeram
arte das amostras estudadas nesse trabalho).
74
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

7. Em meados do século XIX, a população escrava contava em 15% da população; isto devido às
transações dos senhores com os proprietários de minas de ouro e diamantes do Estado de Minas
Gerais e com os proprietários de plantações de café em São Paulo, à reconversão dos escravos em
outros setores de atividades remuneradas, ligadas às diferentes mediações engendradas pelo comércio
e economia do tabaco nas duas. cidades,. etc.

8. Eu entendo por "espaços alternativos", a criação e a ativação de redes familiares e sociais, religiosas
e simbólicas, comerciais e políticas, funcionando num esquema mínimo de regras, direitos e obrigações
entre agentes escravos. A expressão "de agentes escravos" só tem sentido por uma aparente
contradição, pois a constituição de espaços públicos alternativos supõe formas de utilização máxima
de diferentes espécies de capital, inscritos no espaço social e fisico por agentes que, mesmo escravos,
são portadores de projetos, criadores de mundos simbólicos, de culturas.

9. Sobre as práticas diferenciadas dos senhores em relação aos escravos e aos livres, e a manipulação
política das identidades étnicas ver Mattoso 1982; Reis 1986; 1992; Schwartz 1985; em Cachoeira,
Livro de Notas Cachoeira e São Félix; Verger 1981; Vilhena 1969; Wimberly 1988.

10. Ver por exemplo os trabalhos de Oliveira Vianna 1933 (1902).

11. Fernandes foi um dos raros autores brasileiros a dedicar sua atenção à vida familiar entre negros
ontemporâneos (1964). Entretanto, ele foi profundamente influenciado pelos pesquisadores da
Escola de Chicago, principalmente por Frazier (1939). A hipótese da desorganização e a do
determinismo estruturo-funcional, valorizada pelo tipo de sociologia marxista exercida, dominou as
abordagens de seus colegas e estudantes da Escola de São Paulo (Cardoso e Ianni, op.cit.).

12. O leitor lembrará que, pelas necessidades da dominação escravagista, os escravos negros vindos
da África eram fisicamente separados dos escravos crioulos, quer dizer, aqueles nascidos na colônia.
Devemos guardar ainda que, entre os-escravos Africanos e os crioulos, entre os crioulos e os mestiços
e, não menos, entre os diferentes grupos étnicos que compunham os Africanos, havia uma forte
animosidade, que se traduzia em termos de hierarquias sociais e espaciais .

•3. Contrariamente às teorias do sincretismo e ao famoso princípio de "corte" de Roger Bastide


1960), não há nenhuma contradição entre os membros da Nossa Senhora da Boa Morte, fraternidade
religiosa de mulheres negras criada no tempo da escravatura no século XIX, brasileira, em ser ao
::nesmo tempo Mães de Santo, usando colares sagrados do Candomblé, proclamando-se católicas
fervorosas, sem que houvesse no entanto, a seus olhos, a menor dificuldade. A amplitude e a
complexidade desse trabalho fizeram com que eu não pudesse tratar das ricas informações disponíveis
sobre essa Fraternidade.

:.t. Assim, em um dos principais terreiros do bairro #3, podemos encontrar, bem ao meio das imagens
:!e Santos da religião católica e dos Orixás, bem acima dos assentos, a imagem radiosa e, diria-se,
.mortal, do ex-governador do Estado da Bahia, Sr. Antonio Carlos Magalhães, hoje Senador Federal
ia República. Eu gostaria de sublinhar, de passagem, que em muitos terreiros, dentro e fora de
Cacho eira, o Sr. Magalhães tem um status demiúrgico, meio-Orixá, meio-Ougã, no interior dos
. artos sagrados de diversas grandes famílias de Candomblé. Esse fenômeno de cruzamento entre o
religioso e o político, que certamente virei a estudar, ultrapassa o quadro do presente trabalho.

: 5. Eu tive o privilégio de conduzir esta investigação em três momentos diferentes: em 1993,


75
~ ilia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

estávamos longe das eleições; em 1994, durante o longo período eleitoral; e em 1995, um ano após
_ subida da aliança ao poder .

. 5. Os jovens cachoeiranos, da periferia ou não, mais ou menos escolarizados, afirmam de bom


~do que a escravatura no Brasil foi um mal que produziu um bom resultado: não fosse a escravatura,
.:.!Zemeles, os negros brasileiros seriam como os infelizes da África e do Haiti de hoje (eles confundem
"-2iti e África geograficamente).

L-. Divisão da população por grupo (população total: 217 pessoas). Essas 217 são divididas em três
~pos, obedecendo à amostragem por ramo; eu escolhi um "bloco" ao acaso no bairro ao qual
zpliquei as categorizações. Esses ramos são traduzidos da seguinte forma: bairro #3, pop.= 84;
~airro #1, pop.= 64; bairro #2, pop.= 60.

bairro 0-5 anos 6-10 anos 11-15 16-20 21-30 30-49 50-65 mais de 65
-:;1 p=64 8 10 12 10- 11 s s 3
"ii2 p=69 6 12 11 13 11 8 5 3
=;3 p=84 7 15 14 12 14 10 7 5
tot.=217 21 37 37 35· 36 23 17 11
,
média ·10% 17% t7% 16% 17% 11% 8% 5%

. S. Considerando o quadro anterior e respeitando a mesma ordem, divisão da população dos três
cairros por grupos alfabetizados. Os dados não fornecem discriminação por sexo.

I bairro 0-5 anos 6-10 anos 11-15 16-20 21-30 30-49 50-65 mais de 65
ti-1 #-2#-3 20% 78% 7Q% 4-1-% ·4-1% 23% 6% 0%
76
dia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Capítulo 11:Casa e rede doméstica

Admite-se geralmente que os termos casa (maisony, maisonnée, demeure (home, lar), familia,

- outros termos que lhes são associados, trazem com eles uma carga de significados culturais muito

erosos. Eles são categorias culturais. E como tais, traduzem realidades de contornos extremamente

: zidos, cujas normas participam de uma determinada experiência social. Lofgren (1984) e Gubrium

z: Holstein (1990), entre outros, mostraram o quanto, no Ocidente, os usos das palavras famille,

meure e maisonnée (family, home and household) podem remeter às mais diversas imagens e

realidades. Seus sentidos podem ser intercambiados. Entretanto, é através desses termos, que os

ecialistas dão conta da diversidade das experiências de interação íntima e doméstica, em todas as

sociedades humanas. Eles são também categorias analíticas. E como tais, constróem fatos sociais e

_:Jlturais, tematizando, teorizando e classificando-os. Para serem categorias culturais e analíticas,

~es são necessariamente polissêmicos.

A vasta literatura produzida sobre o tema de household', por exemplo, informa a respeito

:as dificuldades de seus usos, seja como categoria nativa entre as sociedades ou em diversos segmentos

:e uma mesma sociedade, seja como conceito analítico que remete a uma pletora de esquemas

zaalíticos? .

Hammel (1984) chamou a atenção sobre o estatuto epistemológico duvidoso desse conceito.

O uso do termo household, por exemplo, visando dar conta da experiência localizada da vida

2oméstica, leva-nos a questionar o standpoint onde a análise se situa, o modelo ideal com o qual

dialogamos', a experiência concreta com a qual trabalhamos, e o arsenal conceitual ou o campo

:eórico com o qual produzimos a análise. Como Hammel observa, quanto mais se parte de um

esquema particular de categorias analíticas, mais os resultados das análises são comparáveis e mais,
77
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

paradoxalmente, eles se afastam das construções nativas; por outro lado, quanto mais nos

aproximamos das construções culturais, mais nos afastamos dos parâmetros que tornariam possível

a comparação. (Hammel 1984:30).

Essa literatura tem, por outro lado, consagrado o fato household em termos de grupo de

ertencimento, ciclo de desenvolvimento, consumo e produção. As práticas sócio-culturais que

ligam> contextual e especificamente, essa unidade analítica assim construída eo modo de habitar,

foram largamente ignoradas pelas discussões levantadas por essa literatura. Se essa literatura levou,

rogressivamente, ~ uma defasagem significativa entre o modelo analítico e as práticas culturais

. dígenas, ela permitiu, no entanto, que houvesse uma inteligência do funcionamento do household

enquanto estrutura, nas sociedades cognáticas.

Por uma singular ironia, é de Levi-Strauss, defensor da teoria da aliança, que surgiu a idéia

e um ultrapassar às oposições filiação/aliança, que sustentam a categoria de household, propondo

uso da palavra casa (maison), a fim de dar conta das práticas familiares, da domesticidade e do

arentesco, nas sociedades que não se deixam apreender pelas duas grandes teorias em questão.

Para propor indicações que pudessem permitir a construção da "casa" como modelo analítico,

Lévi-Strauss se inspirou na casa medieval européia, pensando esta como um grupo social cu~as

caracteristicas escapam às categorizações clássicas propostas pela antropologia". A noção de casa

em Claude Lévi-Strauss (1984; art. Maison, 1991) designa essas unidades "que não se deixam

~efinir nem como famílias, nem como clãs ou linhagens". A casa, nesse caso, seria dos verdadeiros

sujeitos de direitos e deveres e não se reduziria, em consequência, à demeure (home): "A casa é 1)

:.:mapessoa moral 2) detentora de um domínio 3) composta de bens materiais e imateriais, e que 4)

se perpetua pela transmissão de seu nome, de sua fortuna e de seus títulos em linha real ou fictícia,

.da como legítima, com a única condição que essa continuidade possa se exprimir na linguagem do

. arentesco ou da aliança, ou dos dois juntos" (art. Maison 1991). A casa, como experiência social

.ross-societal, resultaria do parentesco cognático, escapando assim a "tal ou qual modo de

eterminação de estatuto". Ela seria uma representação dos laços sociais sob forma material
78
~ í1ia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

. 984:200). Assim, as longas discussões a propósito da aliança e da descendência unilinear e bilinear

::.:e atravessaram todo o campo da antropologia, não teriam mais sua razão de ser, se partimos da

casa como unidade social e cultural de análise.

Se é verdade que, pela proposição de Lévi-Strauss, a casa pode ser recolocada no centro

:2.S discussões como instituição social, combinando princípios contraditórios (tais como matri/

_milinearidade, hipo/hipergamia, aliança/filiação, proximidade/distância matrimonial, etc.) e sendo

....todos transcendente, ocorre que a casa, tal como proposta pelo autor, não passa de um

prolongamento da aliança e da bilateralidade próprias às sociedades complexas'. Nessa perspectiva,

_ discussão em torno da casa seria muito mais uma metáfora que remete aos detalhes em torno' da

. rança e da descendência, que uma efetiva consideração dos aspectos sócio-culturais que entram na

composição da casa, os quais pedem uma outra atenção antropológica, segundo a qual as condições

sócio-históricas, os contextos sócio-culturais onde emergem as casas, a produção do espaço destas,

assim como a arquitetura que as caracterizam, não podem ser pensados separadamente dos grupos

sociológicos que as habitam e que, reciprocamente, são habitados por elas.

Essa observação nos leva a uma segunda restrição: Lévi-Strauss, sugerindo tratar a casa

como categoria intermediária, absorvida na linguagem do parentesco, e fazendo dessa unidade social

uma pessoa moral, nos leva a questionar o que seria a gênese dessas casas de seus contextos

socio-culturais de emergência, assim como os possíveis termos de sua comparação. Enfim, os casos

estudados nesse capítulo põem em questão toda reificação da casa em termos de estatuto, de riqueza;

e.es levam a re-situar a casa num contexto sócio-cultural e étnico de dominação, no qual os termos

::os valores se definem de modo totalmente diverso.

Muitas são as restrições relativas ao uso limitado do conceito de household, tal como

construído na literatura, e ao de casa, tal como sugerido por Lévi-Strauss. Diante das dificuldades

~e aplicá-los aos contextos sócio-étnicos por mim estudados, optei por construir um modelo analítico

a partir da categoria cultural casa nos referidos meios. Tentando definir os contornos de um modelo

articular, eu me proponho a dar conta de um modo particular de habitar o mundo e das relações
79
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

-- ciais que o sustentam.

Nessa etnografia, eu parto da sugestão de Lévi-Strauss de introduzir a casa,en'luanto realidade

.:::sica e instituição social, no centro da análise da organização social. Partindo dessa idéia, eu espero

_•.pitalizar as potencialidades de "transcendência" intrínsecas a essa categoria, relativas às

~eterminações de seus estatutos, com relação à aliança e à descendência. Baseando-me nessa

pitalização, eu estabeleço uma diferença significativa entre os usos do household (ou grupo

:oméstico, ménage, maisonnée), analiticamente construído como unidade social separada da

construção fisica, e dos enjeux sócio-culturais próprios à casa. Eu gostaria, no entanto, de sublinhar

::aramente para o leitor, que não se trata aqui de uma simples substituição de palavras, mas sim de

lliI1 investimento num outro sistema de questões, o qual nos leva a cercar melhor os contextos a

serem estudados. Minha filiação à discussão inaugurada por Lévi-Strauss, se limita ao momento em

. e eu me aproprio de sua sugestão de introduzir a "casa" no centro do estudo da organização

social. Meu modo de apropriação do conceito situa-se numa ruptura teórico-metodológica com este

rimo, na medida em que me preocupo com as condições de emergência da casa e com as práticas

socias que a constróem e são construí das por ela. (Lévi-Strauss não se interrogava sobre a gênese

ias casas). Essa interrogação me leva a situar a casa no cerne do sistema simbólico que funda as

redes socias que a contextualizam.

Nessa perspectiva, a noção de casa consiste, num primeiro nível, numa unidade social local

de análise, que me levará à construção do conceito de família e de parentesco entre os construí dos

"negros" e "mestiços de negros" (designados aqui sob a categoria genérica de negros) habitantes da

. eriferia de Cachoeira. Como todo fato social, a casa, representação nativa, tem sua forma resultante

de um processo simbólico que merece ser explicado antes de ser comparado. A casa dos pobres no

Brasil, assim como a relação entre os agentes que nela vivem, foi inventariada, classificada e tratada

a literatura sociológica/antropológica, a partir dos sistemas de interpretações teóricas que ajudaram

a compreender as formas de respostas possíveis, dessas famílias em condições sócio-econômicas

precárias. Raras são as perspectivas que partem das construções locais, das formas de produzir e, de
80
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

viver a experiência familiar. Eu sugiro que uma explicação dos sentidos que os agentes dão a suas

experiências sociais e os usos sócio-culturais que delas fazem, podem contribuir ao reconhecimento

o que são essas unidades em si mesmas, antes de serem comparadas dentro de uma perspectiva

geral". Fazendo isso, nós poderemos tentar continuar o especial e difícil exercício da tradução cultural

das experiências particulares, das configurações de sentidos ligados às atividades, das ambivalências

e dos dilemas, através das categorias analíticas, no minimo problemáticas, que nos são apresentadas

corno uruversais.

Num segundo nível, a apropriação da casa como "sistema de sentidos", remete a um conjunto

e posicionamentos teórico-metodológicos. Ela remete ao reconhecimento das variações nas funções,

o seio da casa, classicamente atribuídos ao household (produção, distribuição e reprodução), dentro

as configurações locais/étnicas participantes de uma mesma classe social. Esse conjunto de

oosicionamentos implica num trabalho de desconstrução dos sentidos atribuídos aos vocabulários

analíticos que servem a dar conta, seja nas etnografías nacionais, seja nas formulações teóricas

gerais, a respeito do grupo doméstico. O ato de desconstrução? - entendido como destrutivo e

construtivo (Derrida) - consiste na confrontação dos termos da tradução cultural, através das

etnografias da casa em meio popular, com as elaborações teóricas sobre o tema.

Nesse texto, a casa como construção física não é separada dos corpos que a habitam ou que

'ela transitam, nem das redes de pessoas que a modelam. Essas redes de pessoas no seio de uma

casa constituem redes domésticas na unidade social (Stack 1974) e física qU,eé a casa. Essas redes

comésticas que se constróem na dinâmica da casa e em sua cosmologia, são, por sua vez, ligadas a

.!IDadinâmica de redes de casas, interligadas umas às outras. A casa, nesse contexto analítico e

sócio-cultural, é pensada como um processo, inseparável da permanente construção dos laços que

se traduzem em termos de parentesco. As casas, enquanto construção física e enquanto instituição

social, constitui momentos de articulação e de mobilização de laços intra e intergeracionais, segundo

- quais os ciclos de transformação acompanham os da casa. Nesse contexto analítico e sócio-

zultural, a casa, assim compreendida, não se deixa pensar como unidade absolutamente autônoma
81
silia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

ircunscrita a espaços delimitados: a casa é inseparável das redes de pessoas e casas na qual ela

efine. Ela participa de uma configuração de casas. O modelocujos contornos eu demonstro, é

':::-dado sobre a inseparável associação desses dois níveis: o da casa e o da configuração de casas.

~:: procuro apreender as estruturas de tensão, remetendo às relações dos espaços e às relações

iais por eles circunscritas.

Eu demonstro, nessa etnografia, a distinção entre a casa como estrutura e a casa como

ema. O nível estrutural da "casa" é considerado na descrição dos modelos de arranjo em vigor,

:..:.referência (repérage) estatística, da composição, etc. O nível analítico se inscreve no prolongamento

:2S discussões elaboradas na literatura sobre o household (como em Carter 1984:47-48). Ele resulta

amente de minha dívida para com essa literatura. Num segundo nível (a casa como sistema) eu

ronsidero os princípios culturais que sustentam esses arranjos, que dão conta das regularidades

estatisticas, da composição das casas, etc. Em seguida a Carter (op. cit.), eu identifico dois elementos

-:ue participam dos sistemas: as regras e as estratégias. As regras comandam a especificidade da

rombinação dos recursos culturalmente definidos, e o pessoal para dar forma à casa. As regras, por

sua vez, se dividem em dois tipos: as que são próprias às maneiras pelas quais os agentes passam de

.nna posição à outra na casa, e as que são associadas às diferentes espécies de recursos disponíveis,

podendo ser transferidas de uma casa para outra. As estratégias remetem aos melhores usos possíveis

:os meios e pessoas disponíveis para alcançar detreminados objetivos ou realizar tarefas (individuais!

coletivas). Elas referem-se aos mais diversos domínios, desde o modo de aquisição de crianças, às

estratégias matrimoníais, passando pelas escolhas das atividades produtivas, o consumo (Cohen

:976), a partilha, a determinação de tarefas, etc. Esses dois níveis de análise são interdenpendentes

;> encontram-se em muitos pontos. Minha estratégia nesse trabalho, consiste no cuidado em conciliar

a abordagem da casa, como um modelo cognitivo no espírito dos agentes que a vivem, e como uma

rede de pessoas. Esse capítulo consistirá num quadro etnográfico para os que virão a seguir.
82
'ia. Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

abitar os bairros populares de Cachoeira: a Casél'

Nem o aspecto, nem a antiguidade, ainda menos os artificios de fachada, parecem suficientes

_.:. destacar das representações locais da idéia de casa, seu conteúdo social e cultural. As duas mil

_ccvecentas (2.900) unidades domésticas reunidas nos 12 bairros populares da cidade de Cachoeira,

,-iuzem em suas formas concretas, as normas ecológicas e arquiteturais que governam os modos

aabitar essa periferia. Uma superficie retangular cobrindo em média 7m x 16m, com 10 pés de

TIl, fachada bem erguida como uma parede uniforme da base ao cimo, deixando uma abertura

zzdrada na qual, para a maioria, é fixada a janela, protegida por barras de ferro; pequena varanda?

~3.S funções variam, de lugar para pequeno comércio, a lugar de lazer; teto em cerâmica'? ajustado

re uma estrutura de madeira; espaço interior arrumado e organizado de tal modo que o visitante

entrar, de acordo com o grau de intimidade com a casa, atravessará por ordem sucessiva desde a

randa: a sala/sala de jantar -> a cozinha -> o quintal, onde se encontra o banheiro - todos

spostos diante de si em linha reta - tendo à sua esquerda, os dois quartos de dormir".

O interior da casa" é arrumado de modo que, do lado esquerdo, as portas de entrada de cada

azrto, a começar pelo quarto principal - frequentemente o único - se abre diretamente sobre a

sala de jantar. No fundo da sala, à direita, a imagem do Santo ou do Orixá protetor da casa

- da na parede. Toda casa tem, em princípio, seu Oratório, espécie de altar consagrado às divindades

...;.:.
família. Mesmo nas casas onde há apenas protestantes, reserva-se um espaço sagrado onde "a

:7a do Criador" pode ser reconhecida. O Oratório parece muito mais com um buffet com cerca de

~ oés de altura por 6 polegadas de profundidade, colocado no canto direito da sala - quando não é

_ ::ireita, é no alto da cama no quarto principal.

No quarto principal, a cama pode ser improvisada, isso não é o essencial: o que importa é o

gar sagrado reservado aos Santos ou aos Orixás da família. Sua organização interior se dá da

seguinte forma: a cama é orientada de acordo com a posição da rua, geralmente no centro, quer

::zer, embaixo da janela, de tal modo que seja possível ao(s) ocupante(s) espiar o movimento dos
83
'lia. Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

sssantes ou vizinhos, prevenir-se da presença desejada ou não de uma visita, controlar as entradas

saídas dos próprios membros da casa ... ; bem ao centro, no alto da janela, é fixada a imagem do

zo/Orixá guardião" e protetor dos integrantes da casa contra o mau olhado e as forças maléficas

::omáveis pelo gênero humano; acompanham ainda a imagem sagrada ou a estátua santa, folhas/

mos de plantas cruzadas, das quais diz-se que os tipos malvados têm horror ... ; à beira da cama

eando há cama), à sua esquerda (ou uma peça em cada lado), uma penteadeira, e, abaixo, um

ére, um armário, ou pura e simplesmente nada. O(s) outrotsjquartors) - quando há quartos-

eguem em contigüidade na mesma linha e contém cada um uma cama e as coisas pessoais de seus

.~~••pantes. Ao fundo, a cozinha transcende a quase todas as oposições anteriores, por opor-se a

;:0 o resto. Muito frequentemente, a cozinha consiste num retângulo, bastante largo, já que ela em

=5"al corresponde à largura total da própria casa. Finalmente os banheiros, muito frequentemente

- aptados no quintal.

.1. Características das casas: 6 casos por bairro

c~ iRtiiti~i1j$t~tht()J~id~ib.~i~~ft#À ç()tPt~Nd~tth~Q~i,~;.
1- :na #1 familiar privat. Fab 7xl6xlO' rosa - 3 7x7 2x4
a #1 familiar privat. Fab 6xI4x8.5' azul O 2 6x4
zulo #1 privativa privat. Fab 8x17xl0' azul O 2 8x8 2x4
a #1 privativa' privat. Fab 7x14x8' verrnl. X 2 7x4 3x5
_~gIo #1 familiar privat. Fab 6x14x8' azul O 1 6x4
_~dmila #1 familiar privat. Fab 7x16xl0' ---------- 3 7x5 2x4
~:arice #2 familiar municipal 7x15xl0' branca V 1 7x8 7x2
Iilda #2 privativa municipal 5x9xT 1 5x4
.Ianoel #2 privativa municipal 6xl0xT
----------
---------- 1 6x5
Ras
.enice #2 familiar municipal 8x14x9' vermel. X 2 8x4 3x5
.íaris #2 alugada municipal 7x12x8' azul Y 1 7x4
laudio #2 privativa municipal 7x15x9' ros/bran N 1+1dep. 7x5 3x5
lice #3 privativa arrendada 6x12xT azul Y 1 esg . 2x3
.'enancio #3 familiar arrendada 6xl0x6.5' amarela O 1 esg. 2x3
=...ea #3 privativa arrendada 5xl0x6.5' vermel. - 1 esg. 2x2
3eatriz #3 familiar privativa 7x14x8' azul Y 2+1dep. 7x8 3x5
acia #3 familiar privativa 6x20x8' azul OxY 5+2santo 6x9
Pedrinho #3 privativa municipal 6xI5x6.5' verde C 2 6x4 3x5

• Legenda: • Casa - designada pelo nome do titular principal. • Bairro .• Estatuto 1 - refere-se ao estatuto da casa,
se ela é considerada como propriedade privada ou propriedade familiar .• Estatuto 2 - refere-se à propriedade da terra.
84
ilia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

DalITO 1, a terra pertence à fábrica da qual ela leva o nome (100%); no bairro 2, a terra é propriedade da
cipalidade (80%); no bairro 3, a terra é em grande parte propriedade da prefeitura, da qual 60% é arrendada aos
tantes por particulares .• Quintal - se a casa o possui; idem para varanda .• Superfície da casa - largura x
rimento (em metros) x altura (em pés) .• Cor predominante - as cores são geralmente associadas a um Santo ou
_~~;á(A = Oxum, C = Caboclo, 0= Ogum, X = Xangô, V = Obaluayé, o Velho, Y = Yemanjá, OxY = Ogum com
ljá, etc.); os protestantes não fazem nenhuma associação (-) .• Dep. - dependência, que é um quarto bem
. no, consagrado a uma divindade .• Santo - um quanto exclusivamente consagrado ao culto dos Orixás .• Esg. -
--"'Iização de águas de esgoto .• Pas. - passeio, a frente da casa .

.2. Características gerais das casas nos quatro bairros

~61:lr'!~li:lliiill~i~i:i.~11rl~liiliir~llj::=i\ii::I
=1 139 7x14x9 fábrica ceram. 88% 2.6 azu/ros 100% 1
=~ 158 7x16x9 mumc. ceram. 76% 2.5 . az/bran 100% 2
=, 450 6x12x8 arrendo ceram. 69% l.8 azu/ros 78% 3,1
- 117 6x12x9 arrendo ceram. 80% l.5 am/azu 100% 3

Legenda: • Número de casas - o número de casas recenseadas no decorrer dessa pesquisa, em cada bairro .•
rficie média das casas - a superficie média das casas em cada bairro .• Estatuto terra predominante - o estatuto
ial (ver legenda do quadro anterior) .• Telhado - material predominante em sua fabricação (a cerâmica é o mais
~;;:tum).• % de casas com varanda. • N. de quartos média - número médio de quartos que tem as casas .• Cor
'ominante - azul, rosa; azul, branca; azul, rosa; amarelo, azul. • % de casas com quintal.» Modelo dominante -
105 de casa dominantes num bairro (ver os três modelos abaixo).

Prancha 1

CJ. I
.,
;f..!r
I, __
n
Modelo 1 Modelo 2 Modelo 3
.-
p quarto quarto cozinha banheiro
a
s
principal
/ t
/ t
I quintaIl MATA

o
varanda

o espaço
r sala de-
jantar

interior da casa
l quintaL
jardim
85
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Há um ponto comum a todas as representações dos ag:entes habitantes da periferia de

choeira, segundo o qual toda casa deve ter o seu passeio, uma sala (sala de estar, sala de visita),

.zna sala de jantar (que pode não ser separada da sala propriamente dita), no mínimo um quarto de

cormir onde se desenrola a intimidade dos cônjuges, a cozinha, o banheiro e o quintal. De acordo

com os agentes, e segundo minhas próprias observações, a sala - que em certos casos é também

saia de jantar - é considerada como sendo a face pública da casa, sua imagem. A escolha dos

jetos de decoração é a expressão, entre outras, dessa imagem da casa, sempre em construção.

Esse lugar de acolhimento por excelência, é proibido às crianças como espaço de brincadeiras -

cara estas são o passeio ou terreiro que precede a varanda" a própria varanda, a cozinha e o quintal.

sala deve estar sempre limpa, mesmo quando ainda não se tem grande coisa para lá colocar.

Arravés da sala, pode-se ler a dignidade de uma casa, o sentimento de orgulho que impõe o respeito

ecrre iguais ou quase-iguais. O quarto principal é o lugar mais sagrado da casa. Apesar do quarto

cinciQal frequentemente guardar objetos pessoais de certos membros da casa, na casa de Elma, por

exemplo, ninguém entra lá sem autorização do titular principal. Na casa de Elma, os agentes admitem

ce bom grado que não é a idéia de quarto em si que é sagrada, mas sim "o quarto da tia Elma".

Penetrar no quarto da tia Elma, é violar não propriamente um espaço privado, mas sim um lugar

zepositário de "segredos" (documentos familiares e pessoais,objetos rituais, etc.) e bens (dinheiro)

za casa - a "casa" é aqui compreendida como uma pessoa moral (Eu voltarei a esse ponto).

Os outros quartos não são regidos pelos mesmos códigos de conduta. Qualquer pessoa da

a, quer dizer, que participa da mesma "configuração de casas", pode entrar em princípio em

'1.WCLuer
quarto. Eu observei muitos casos onde os quartos eram associados a "integrantes ausentes"

:a casa. O quarto da Antônia é um espaço de cerca de 4.5x3.5m, no qual dormem outros três

embros da casa. Quanto à Antônia, ela mora em Salvador. Entretanto, a cada vez que ela volta

<<à casa», ela retoma seu lugar, que lhe é estritamente reservado. Os quartos onde dormem várias

pessoas, apesar de serem espaços exíguos.não são espaços de promiscuidade. Sua frequência obedece

::.regras implícitas que, contraditoriamente, supõem a exclusividade e a inviolabilidade dos espaços


86
- ilia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

_2..--ticulares(micro-espaços), assim como a comunidade do próprio quarto.

Os agentes concordam com o fato da cozinha ser o lugar de sociabilidade por excelência da

zasa. Apesar de sua modesta dimensão, na maioria dos casos, ela é ao mesmo tempo um lugar

_~mum - a todos os integrantes da casa - e "preservado" (aos intrusos) - quer dizer, o lugar

cace se desenvolve uma das dimensões da intimidade coletiva: não é bom que os outros, vizinhos,

esmo certos membros de uma mesma "configuração de casas", saibam o que se come (quando se

e comer) e nem como se come. A cozinha é portanto o lugar pelo qual a trama do cotidiano

doméstico se faz: poder comer e beber a cada dia é uma conquista cotidiana, mas também uma

reação das Alturas. A importância da cozinha na casa como espaço de sociabilidade por excelência,

carece estar associada à luta cotidiana para obter-se o arroz com feijão que se torna cada vez mais

zro. Uma casa onde o fogo da cozinha não se acende é uma "casa morta", dizem os agentes.

Atrás da cozinha localiza-se o banheiro. A representação sobre os banheiros não se aproxima

'to da que deles fazem as pessoas das classes médias. O banheiro é estritamente associado ao ato

ce defecar. Visto que defecar é um ato sujo e repugnante, deveria ser fisicamente separado da casa,

- no fundo do quintal. Além dessa separação, seria conveniente ainda separar algumas de suas

::.mções,por exemplo, seria bem mais higiênico ter o lugar de banho a uma certa distância do banheiro

sanitário 1 propriamente dito'". O que não impede, no entanto" de se ter 64% dos banheiros

zonvencionais dentro das casas. A explicação encontrada por certos agentes, ao comentar esses

eros, orientou-se mais ou menos assim: há sempre uma fronteira entre o que cremos que é bom

:3.zer e o que a sociedade diz que devemos fazer.

Segundo as representações dos agentes, a casa deve ser bem aerada de dia e bem ventilada

~noite, por isso a altura média do piso ao telhado varia entre 8 e 14 pés. Durante o dia, é bom deixar

=~ portas abertas entre, mais ou menos, 9 horas da manhã e 6 horas da tarde, para que o ar possa

circular. Mas também a porta aberta durante o dia é sinal de vida, de saúde. A porta principal aberta

expõe a casa aos olhos dos passantes. Ela abre caminho à comunicação social e confirma a honra da

casa. A porta fechada é sinal de ausência, de doença, e mesmo de morte simbólica. Uma casa cuja
87
"amilia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

_orta principal não é aberta, está fechada à comunicação social. Ela está imersa num sono incomum.

Entre 8 e 9 horas da manhã, deve-se reconverter a casa, do que ela foi à noite, ao que ela deve ser de

ia. Durante a noite, nas casas, em geral populosas, arruma-se os espaços para ~ue possam dormir

zaueles que não têm um lugar num dos quartos de dormir. De fato, a sala/sala de jantar torna-se

bjeto de uma completa redefinição, segundo a qual, novamente, cada um tem seu lugar. Essa

-ea.rrumação da casa, durante a noite, põe em relêvo a divisão sexual do espaço. Como todos os

espaços produzidos nas sociedades humanas, a ordem da casa corresponde, entre outros, aos princípios

_ e governam as relações entre gêneros e entre gerações. Durante o dia, esses princípios, embora

nipresentes, explicitam-se muito discretamente nos termos das relações cotidianas, e são ainda

concomitantes a outros. Os quartos são respectivamente associados ao feminino, à idade adulta e à

conjugabilidade; enquanto que a sala corresponde ao masculino, à infância e ao celibato. Os quartos

secundários - quando existem - transformam-se exclusivamente no lugar onde se exercem as

erações íntimas, pode-se dizer, o lugar da conjugabilidade - quando há mais de uma união

ulta na casa - e a sala então, lugar do celibato. Nesse caso, a sala/sala de jantar é dividida de tal

ziodo que os machos dormem bem perto da porta de entrada e as fêmeas bem perto da entrada da

cozinha, bem em frente ao quarto dos adultos. Quando há na casa apenas uma união adulta,

reconhecida pelos membros, os homens/rapazes dormem na sala e as mulheres/moças no quarto. E

..:;divisão interna de cada um desses espaços é feita em função da idade: no quarto a(s) mulher(es)

ais idosa(s) dorme(m) na cama e as mais jovens no chão mesmo. As crianças pequenas dormem

.:om suas mães (os bebês), ou no chão, ou ao lado da cama dos adultos. No chão, a hierarquia do

espaço se reproduz em função das faixas etárias. Apesar dos agentes afirmarem que as relações

sexuais podem ser feitas dentro ou fora de casa, durante o dia como durante a noite, eles reconhecem

e a noite é o momento privilegiado em cujo decorrer satisfaz-se os desejos sexuais. Durante a

noite, a casa põe em ação todas as estruturas de vigilância para que os princípios de divisão dos

espaços, em função dos gêneros e em função das gerações, sejam respeitados; ela evita assim toda

roximidade fisica da "gasolina" - associada ao sexo feminino - e do fósforo - associado ao


87
í1ia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

.•erra principal não é aberta, está fechada à comunicação social. Ela está imersa num sono incomum.

;::ctre 8 e 9 horas da manhã, deve-se reconverter a casa, do que ela foi à noite, ao que ela deve ser de

. Durante a noite, nas casas, em geral populosas, arruma-se os espaços para que possam dormir

ueles que não têm um lugar num dos quartos de dormir. De fato, a sala/sala de jantar torna-se

~~eto de uma completa redefinição, segundo a qual, novamente, cada um tem seu lugar. Essa

rearrumação da casa, durante a noite, põe em relêvo a divisão sexual do espaço. Como todos os

. ços produzidos nas sociedades humanas, a ordem da casa corresponde, entre outros, aos princípios

_e governam as relações entre gêneros e entre gerações. Durante o dia, esses princípios, embora

.presentes, explicitam-se muito discretamente nos termos das relações cotidianas, e são ainda

comitantes a outros. Os quartos são respectivamente associados ao feminino, à idade adulta e à

ecajugabilidade; enquanto que a sala corresponde ao masculino, à infância e ao celibato. Os quartos

secundários - quando existem - transformam-se exclusivamente no lugar onde se exercem as

erações íntimas, pode-se dizer •.o lugar da conjugabilidade - quando há mais de uma união

..ulta na casa - e a sala então, lugar do celibato. Nesse caso, a sala/sala de jantar é dividida de tal

o Que os machos dormem bem perto da porta de entrada e as fêmeas bem perto da entrada da

cozinha, bem em frente ao quarto dos adultos. Quando há na casa apenas uma união adulta,

-~onhecida pelos membros, os homens/rapazes dormem na sala e as mulheres/moças no quarto. E

- divisão interna de cada um desses espaços é feita em função da idade: no quarto a(s) mulher(es)

is idosa(s) dorme(m) na cama e as mais jovens no chão mesmo. As crianças pequenas dormem

m suas mães (os bebês), ou no chão, ou ao lado da cama dos adultos. No chão, a hierarquia do

espaço se reproduz em função das faixas etárias. Apesar dos agentes afirmarem Que as relações

sexuais podem ser feitas dentro ou fora de casa, durante o dia como durante a noite, eles reconhecem

..•....•
e a noite é o momento privilegiado em cujo decorrer satisfaz-se os desejos sexuais. Durante a

coite, a casa põe em ação todas as estruturas de vigilância para que os princípios de divisão dos

espaços, em função dos gêneros e em função das gerações, sejam respeitados; ela evita assim toda

oroximidade fisica da "gasolina" - associada ao sexo feminino - e do fósforo - associado ao


88
ília, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

'-~('ho, e cuja união, todo o mundo sabe, arrisca de produzir fogo!

O crepúsculo, afirma-se em Cachoeira, e isso em todas as camadas sociais, é o mais frágil

mento de passagem.do. dia para os habitantes da terra. É o momento em que ainda não, ~e fez

mas já não, é mais, dia, R nesse momento,...no crepúsculo do dia,...quando nada está, ainda

~~do, quando as forças da noite tomam o controle das forças do dia, que são soltos os maus

aados, os maus espíritos, as forças do diabo. Por volta das 6 horas da tarde, portanto, é bom fechar

porta principal, ponto de inversão entre o interior e o exterior, e vice-versa. O processo de

czasformação da casa começa e a noite reinará até o próximo nascer do sol.

É. interessante.observar. que.,...no.s..
bairros. próximos.às.zonas.de. vegetação"; à mata , ou que

- próximos a pequenas áreas de plantações, a casa é pensada pelos agentes que nela habitam como

fronteira entre a ordem da natureza e a ordem da sociedade. A casa se apresenta então como

.ompromisso entre duas ordens opostas, já que submetidas a leis e códigos de conduta diferentes.

-= sse compromisso entre essas duas ordens está inscrito concretamente na oposição passeio (e terreiro)

tintalljardim. Esses dois espaços são integrados à casa e apropriados pelos agentes de formas

ivalentes. Toda casa deve ter o seu passeio, dizem os agentes. Mas o uso que se pode fazer do

.eio de uma casa está submetido a um duplo registro: ele é regido pelas regras públicas, já ~ue

nguém pode, em princípio, proibir alguém de nele circular; mas ele é também regido segundo os

igos da casa, já que ele é reconhecido como passeio da casa à qual está ligado, e em caso de

. ade entre parentes e/ou vizinhos, é preferível que um e outro campo mantenham distância

z.esse espaço, proibindo seu uso mesmo a suas crianças, de modo a evitar provocações e

rrecimentos.

Toda casa deve ter também o seu quintal. O quintal se situa, em geral, próximo à mata. Em

certos casos o quintal é voltado para um canteiro de hortaliças e outros tipos de comestíveis. O uso

-- quintal é múltiplo. Além de sua relação com o toilette, tal como acima descrito, ele é também o

gar de criação de algumas cabeças de gado e de aves. Mas seu uso principal consiste no cultivo de

r.antas medicinais, de plantas que tem efeitos mágicos terríveis, particularmente contra o mau-
89
l/ia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

zado, necessárias para a fabricação dos "banhos" ou das "limpezas", visando sempre a proteção

zrra as más influências do mundo diverso e perverso de fora; planta-se aí também árvores sagradas,

~ a-se fossas nas quais "planta-se" "comprometimentos" ou segredos místicos da casa/família. O

~ "plantar" que utilizei aqui para representar os enterramentos de objetos rituais familiares,

acipalmente elementos do próprio corpo das pessoas vivas - unhas, cabelo, roupas manchadas

~~sangue, umbigos, placenta, etc. - não é uma simples metáfora. Na cosmologia familiar, explicitada

- certos agentes, a natureza é por excelência o habitat dos espíritos bons e malvados, divinos e

. .coso A natureza, o inverso simbólico do mundo produzido pelos homens, é o lugar que une a

. - -ersidade dos seres humanos, é dela que tiramos a energia necessária para cumprir nossos destinos,

_~r sejamos brancos ou negros, homens ou mulheres, ricos ou pobres, adultos ou crianças. Sempre

~ acordo com essa cosmologia, tal como recolhida no discurso dos agentes, o que diferencia o

_éaero humano, é o pacto que nós fazemos com as forças do bem ou do mal que reinam na selva, na

'a. Construir uma casa, é como colocar a base do cumprimento desse destino, as condições de

realização. E como fazer uma base sólida, sem enraizá-Ia materialmente na mata, sem plantar

-";i"idual e coletivamente as sementes desse destino que, como a árvore, tirará suas seivas místicas

- -- espíritos do bem (ou do mal), e da natureza, a energia e a sabedoria necessárias para produzir

lugar sob esse céu impassível, num mundo diverso, perverso e temível?

A casa em seu conjunto é pensada na junção, por assim dizer, da ordem da natureza e da

rdem social, da ordem do simbólico e na do econômico, da ordem da exclusão e na da integração

social, e, enfim, na do dia e da noite. Sua organização estrutural nos é dada de tal modo que seu

erior opõe seus espaços entre si, assim como os micro-espaços que lhes são associados, sendo

::'xadas as fronteiras invisíveis que condicionam e localizam os modos de conduta que, por sua vez,

.ião forma e sentido às relações assim estruturadas: a sala/sala de jantar oposta aos quartos/quarto

:rrincipal; a cozinha à sala/sala de jantar/quartos; o quintal ao passeio, etc. Essa organização estrutural

cos é dada ainda através de sua orientação simbólica: o Leste, sol nascente, porta de entrada da casa,

rientação obrigatória das camas, é oposto ao Oeste, onde se encontra a imagem do protetor, mas
90
Familia. Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

:ambém a orientação de tudo o que é associado à morte. É frente ao "Oriente" da casa que dona

Clarice (bairro #1) se orienta, todas as 6 horas da manhã com um copo d'água na mão, sem dirigir

_alavra a ninguém, para pedir proteção às forças do bem, a fim de começar o seu dia com o astral

alto, e é contra o Oeste simbólico que ela despeja, recuando até a porta dos fundos, oposta ao

intal, o copo de água carregado. As cerimônias religiosas de Xangô e de São Benedito, que

" recederam os três dias de festa em homenagem ao protetor da família de dona Elma, no bairro # 1,

.niciaram com uma invocação em cada casa que participava da configuração: orientando-se sempre

em direção oposta ao quintal, invoca-se, e devolve-se os fluidos negativos a um atrás simbólico ...

A porta de entrada ocupa uma posição crucial na representação local da casa. A porta de

entrada é o ponto de passagem que põe em relação o dentro e o fora, duas ordens de orientação das

uais a primeira é o inverso da segunda. Em seu livro sobre O sagrado e o profano, Mircea Eliade

istiu sobre a importância crucial das portas (entrada e saída) nas culturas populares; as portas

traçam uma interseção entre duas ordens: a do público e do privado, a do sagrado e do profano.

Pierre Bourdieu, em A casa Kabyle (1977) fez delas o ponto de inversão do mundo exterior. As

. ortas das casas por mim estudadas demarcam e inauguram áreas e regimes de circulação, no interior

c no exterior destas. Certos agentes revelaram que em suas casas, há um objeto sagrado plantado

embaixo da porta, a fim de impedir que as forças desconhecidas de fora, invadam o espaço de

Jentro; ou para que a ordem fria, impessoal, perversa, temível e indomável do exterior não venha

inverter a ordem calorosa, pessoal, íntima e fraternal, mas, sobretudo, a ordem domável do interior.

Seria preciso nos determos um instante sobre as categorias: dentro :fora :: interior : exterior (o

orasteiro é aquele que vem de longe, cujos contornos relacionais são imponderáveis) participantes

do sistema de oposições da casa. Ao lado de fora pertencem o desconhecido ou o pouco conhecido,

aquele que não tem família ou que não tem casa, o mundo da cidade, as mega-estruturas tais como

as instituições estatais (a polícia, ajustiça, etc), os avatares do mercado, o mundo do trabalho, numa

palavra, tudo o que é instituído, negociado e regulado segundo regras sobre as quais não se tem

nenhum controle. Existe no entanto diferentes graus do fora, indo desde o estranho (o forasteiro)
91
~ ilia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

s diversos graus de apropriação dos "vizinhos" (ou da casa vizinha), com relação aos quais as

ssoas se posicionam. Assim, aqueles que são de dentro, que fazem parte da casa, não são somente

equeles que nela comem e dormem, mas também a maior parte dos que participam da mesma

ccnfiguraçâo de casas. Sobre a idéia e a realidade da configuração de casas e sobre seus diversos

5=1iusde apropriação pelos agentes familiares, ver o ítem 3 do presente capítulo. Esse sistema de

, osições no entanto não remete, de modo algum, a uma separação radical entre o lado defora e o

dentro, entre o interior e o exterior, a casa e a rua, o privado e o público. Existe todo um

-ecanismo inscrito nas relações internas da casa e em sua relação com o mundo exterior, que a

coloca numa estrutura de manipulação das oposições acima mencionadas,...de modo que o fora possa

-".inverter no dentro, que o público se dê também no privado, na rua, e na casa.

De acordo com as entrevistas em tomo da idéia de casa por mim realizadas junto aos habitantes

ca periferia de Cachoeira e das outras cidades acima citadas do Recôncavo, e conforme minhas

:~óprias observações, a casa está no centro de um sistema de representações que seria preciso

explorar, analisar e restituir em seu contexto sócio-cultural e em sua relação com o sistema sócio-

econômico e cultural dominante,. a fim de determinar suas implicações na constituição das idéias de

':omesticidade, de família e de parentesco.

Para destacar desse sistema de representações o conteúdo social e cultural da idéia e do fato

.asa, é preciso tomarmos também como objeto de análise o processo que leva à sua construção, à

sua concretização. Em outras palavras, compreender as determinações, os códigos de conduta aos

quais obedece o processo de construção, identificar a natureza dos recursos que esse processo

:nobiliza e, finalmente, resgatar sua profunda implicação na produção da experiência familiar no

cotidiano.

A história das casas - em certa medida, a história das residências, se seguirmos as categorias

da antropologia clássica - é em grande parte, a história dos modos das relações que as concretizaram

" as mantiveram numa configuração d'enjeux. A investigação desenvolvida em Cachoeira e em

alvador, me permitiu reunir uma grande quantidade de informações indispensáveis ao entendimento


92
Famllia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

esse objeto. Uma vez colocada a questão "Como você construiu essa casa?", os agentes expõem

:odo um conjunto de temas, indo dos circuitos de troca na vizinhança, aos sacrificios e investimentos

pessoais e familiares, passando pelas rivalidades e conflitos familiares, les enjeux matrimoniais; a

produção das redes de parentesco, o mecanismo de seleção do parentesco, a representação da idéia

e família e de parentesco, o nome de família; o mito familiar; etc., dando lugar a longas,. p~rém

apaixonantes, entrevistas.
93
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

2. Construir a ca,sa

Na periferia de Cachoeira, não se pode isolar o/ato casa do fato de construir. O construir

mobiliza projetos individuais, recursos humanos e materiais de uma coletividade construída a partir

dos mecanismos sócio-culturais acionados pela ideologia da família e do parentesco. Eu insisto

obre o fato que essa coletividade não é algo dado, mas algo construído. Um construído baseado ao

mesmo tempo em valores individuais e coletivos".

O tomar a decisão de construir não é uma simples operação individual. Segundo os agentes,

ele leva a consideração de ordens maiores: onde construir? com quem? mediante quais recursos? e,

em certos casos, para quem construir? Construir é uma operação coletiva porque ela põe em jogo

negociações matrimoniais, a organização ou o reforço de um espaço fisico (um território) onde se

exerce a experiência familiar, as estratégias individuais e coletivas, recursos econômicos e humanos.

Construir, na periferia de Cachoeira, é um processo pré-configurativo da casa; ele não pode deixar

de ser uma operação coletiva. Consideremos o caso da casa de Elma.

A família de Elma é uma das doze famílias mais antigas do bairro # 1. A mãe de Elma, dona

Conceição, filha única de uma velha escrava, passara seus últimos dias a trabalhar na fábrica de

papel que. dá o nome ao bairro. Ela.havia obtido.na época, como os outros trabalhadores.um lote de

terra para construir para si uma casa. Tia Elma, 60 anos, sua irmã dona Lígia, 78, e seu irmão, seu

Paulo, 58,.têm apenas uma memória parcial e fragmentada de como a casa de sua mãe, dona Conceição,

fora construí da. Mas podemos captar a história em suas manifestações recentes, considerando como

as casas da geração seguinte foram construí das.

Página seguinte: (otos das casas dos descendentes de dona Conceição. (c=casa)
1"-fiJeíra: da esquerdã para direita, antiga c. d Cónceição, c. Olga, c. Erma, c. Ludinila - cuja construção
foi acabada em minha presença em 1995. Ao lado c. Ludmila, Igreja Pentecostal. As outras casas seguem em linha,
dos dois lados da rua, até o cume da colina.
2" fileira: casa rosa e azul não faz parte da configuração, c. Paulo. Observe as portas de entrada das casas
e a posição das janelas (exceto do templo pentecostal). Repare como a casa se constrói na junção da mata e da rua,
da natureza e do social, do privado e do público.
O corpo geométrico habita não importa qual espaço cosmológico (Bourdieu 1977). Ele deve ter então um
imperativo simbólico, não uma impossibilidade prática para que os grupos humanos "situem" suas modalidades
físicas e seus modos sociais de habitar o mundo.
l!SD.lf[ 'D!lfDf[ DP OtlIJ:Ju9:Jo~ op SO.lgoN SO o.lJUOoPDPPllSoWOa o o:JsaJua.lvd 'v!lJUlDd
176
95
dlia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Q.1. Histórias de uma configuração de casas, no bairro 1.

A. Genealogia das respectivas pessoas

Gerações
I _~\JJ~-,é6
- . D,
Conceição

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IV ••••

Legenda: = (casamento legal ou religioso) '" (casamento, segundo a categoria local) == (uniões múltiplas,
simultâneas ou não) : (juntado) ~ (amigado) - Para as categorias de designação, ver Cap. IV

B. A casa Conceição, por volta de 1960-1961

Por volta de 1928-1930, Dona Conceição arrumou um segundo casamento com um homem que era
praticamente da terceira idade, e cuja fama de mulherengo se propagava em toda a plantation de tabaco na qual eles
trabalhavam na época. "perdia-se a conta de seus filhos", dizia sua filha, dona Elma (6). Foi no decorrer dos anos 40,
que seu segundo marido decidiu juntar-se a ela, em sua casa no bairro 1, após o casamento de sua filha (1), Esta casou-
se em 1944, aos 23 anos. Com essa finalidade, a casa de Conceição - entendida aqui como construção fisica - tinha
sido aumentada. Em meados dos anos 50, a casa de (1) tinha sido construida. No final dos anos 50, (5), em plena
gravidez, não conseguia mais se entender com sua sogra, em São Félix, e decidiu juntar-se à sua irmã (1), no bairro
I. deixando sua filha mais velha com sua mãe (Dona Conceição). A composição do pessoal da casa, obedece às
relações de troca ditadas pelas construções locais dos domínios de direitos e obrigações. Assim, a presença de (8) se
explica pelo fato que ela sempre viveu com seu pai, antes da vinda deste à casa de Conceição, enquanto que a de (9)
remete às relações em vigor durante o primeiro casamento de dona Conceição [os casais da primeira geração viveram,
ao que parece, na mesma casa, servindo ao mesmo patrão (senhor), na mesma plantation'Ti. No final dos anos 50,
começo dos 60, a casa de dona Conceição se apresentava da seguinte forma:
96
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

.1. Pessoal
ID.No. Nascido em Tipo de União Idade
Dona Conceição
Seu marido
o filho mais velho de 2
3
1 filhos de 5
1902
------

1952
1925
1946,1957
casada
casado
--------
amigad035
--------
58
(7)
9
11008
15,4
I~~,.,3-1
1i7 06 O~ "'2- !
6 1935 -------- 25
1939 -------- 21 00 O O
8 1929 -------- 31 B A C
11 1907 (?) -------- 53
Legenda: OA: longa ausência da casa

Durante certos períodos do ano, segundo os ciclos do trabalho ou dos acontecimentos que afetam a transformação de
suas respectivas vidas domésticas, os agentes seguintes vem à casa por um tempo indeterminado.
1 1923 amigadoâô
a filha mais velha de.J 1949 -------- 12
1935 casada 25

.2. Size 1 (residências fixas): 10; Size 2 (com as residências móveis); 13

.3. Recursos: agricultura 60% (marido de Dona Conceição, 3, 9); atividades remuneradas no exterior 30% (na
fábrica D. Conceição, 6), em Cachoeira comércio ambulante (8), em Salvador (2); outros 10% .

• 4. Casas em fila: C, B, A. (A casa em fila, é a potencialidade que tem um sub-conjunto de se transformar em casa.
As chances de um sub-conjunto se transformar em casa dependem de sua autonomia financeira, da diversidade de
seus recursos e de sua posição na configuração doméstica e nas redes que se estruturam entre as casas. Os sub-
conjuntos são aqui simbolizados pelas letras A, B, etc.).

C. Prancha 2 - Referências espaciais de redes domésticas no bairro 1: o caso dos filhos de dona Conceição.

Casa ....•••• 1#- 1#1-


Casa (2)
"'·'11, Salvador
~
~ ..
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....
~ ~J.D '.
"iI' ...

"... ••
. \iiiii".,'iU H-tÜ-".'lL'''''.'I,.'It''''''''~.,.,;;'';;''0
~T.. .,..•.............
H \'II •• ~
Casa (1) Casa (10) Casa (5) em construção São Félix

Prancha 2. Os serviços em torno dos quais se estruturam as redes domésticas variam largamente. As linhas azuis
representam os circuitos de troca das crianças em vista de sua socialização. Entre as pessoas hoje entrevistadas, por
ocasião de sua infância, nenhuma delas escapou a esse circuito. As linhas vermelhas representam a troca de alimento.
Os agentes se lembram com saudade do tempo em que a marca da sociabilidade na vida comunitária passava pela
troca de pratos nas ocasiões especiais (festas comunitárias, celebrações rituais, etc.), A troca dos pratos de alimento
foi feita sempre "em família". Aliás (5) - (hoje com 55 anos), que habitava a casa de (1), se lembra que ela fazia
sempre suas refeições na casa de sua mãe, até o dia em que ela se mudou, indo habitar em sua própria casa em São
Félix. A linha verde representa a circulação de dinheiro; a amarela, a circulação dos amuletos, objetos rituais de
fanúlia, serviços espirituais, etc. A casa, como já havia sido dito, é um lugar ontológico, o lugar da mãe, uma fonte
para a qual sempre se volta a fim de tirar as energias necessárias para continuar a luta da vida. Aquele que parte de
sua casa, pede a seus pais para prepararem poções de boa sorte, banhos e outros elementos mágicos, a cada vez que se
tem que enfrentar o mundo do trabalho, por exemplo. A cor malva se refere a outros serviços. As linhas negras se

/.
97
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

referem aos laços de parentesco. Eu indiquei pelo símbolo Qa representação dos laços de vizinhança. As diferenças
de altura exprimem a importância da vizinhança na vida da casa e a desta na vizinhança .. Nesse caso preciso, dona
Conceição constitui o centro de uma rede social muito densa. Parteira - ela é uma espécie de guia para muitas
pessoas, uma segunda mãe, como se diz dela hoje. Observar que a rede não se deixa conter no espaço do bairro. A casa
(2) por exemplo é estratégia para as migrações em familia. Todas as linhas malvas convergem para ela. Essas redes
domésticas anunciavam o que designei aqui como sendo configurações de casas.

D. Acontecimentos que modificaram a casa de Conceição entre 1961-1970

Em 1963, (5) foi morar na casa construí da por seu marido em São Félix, e com eles sua filha de 6 anos. A
casa de (5) foi construída especialmente com a participação - em serviços e/ou dinheiro - de (2), (3), (7) e de dona
Conceição. Em dezembro de 1964, Seu Fausto, marido de dona Conceição, morreu. No mesmo ano, (3) parte para
procurar trabalho em Camaçari. Em Camaçari, a implantação do complexo petrolífero da PETROBRÁS, deu esperança
à grande maioria de negros no Recôncavo. Quase todas as famílias foram tocadas por essa transformação da geografia
econômica do Estado da Bahia. No mesmo ano, as filhas de (5) voltaram a morar com sua avó; (5) encontrou um
emprego como doméstica graças aos contatos de uma das antigas de (2), em Salvador. Por volta de 1965-1966 as
fanúlias se ressentem pelas crises políticas da época. A memória dos agentes de todos os bairros pesquisados concorda
quanto ao agravamento de suas condições econômicas. Muitas migrações, e muitas decepções. Durante esses anos,
dona Conceição parou de celebrar a festa de Xangô e de São Benedito. Festa da família.

Durante o mesmo período (1966-1967), (3) deixa Camaçari, partindo com sua nova mulher para Salvador. Ele envia
sua filha mais velha para a casa de sua avó.
(7) teve seu primeiro filho (1967).
Em 1967, (11) morre. No fim de 1967, (3) é prêso em Salvador, e sua mulher Nice, ainda amamentando, foge para
Cachoeira, para a casa da mãe de (3).
Em 1968 dona Conceição decidiu adotar Marlene (9), abandonada por sua mãe com a idade de 5 meses. (8) passa a
morar com sua irmã, mas continua a frequentar regularmente a casa de dona Conceição.
Em 1968-1969, Dona Conceição mobiliza a família a fim de construir a casa de (6), que vai se casar.
Em 1969, (6) se casa. Ela está em plena gravidez.
_,o fim de 1970, (6) e seu marido se divorciaram. Seu filho morre um ano após, com a idade de 2 anos. Em 1970,
Ludmila vai à casa de Elma. A mulher de (7) vem morar na casa de sua sogra, onde ele tem seu segundo filho. (3)
volta a Cachoeira. A construção da casa de Elma é acabada.

E. A casa de dona Conceição em 1970.

• Pessoal
ID. No. Idade Tipo de União Código
42 amigado
3 40 amigado
5 35 casada
31 amigado
9 2
filhos de (2) 18, 10 -------- (2)18, (2)10
filhos de (3) 21,5,3 -------- (3)21, (3)5, (3)3
filhos de (5) 24,13 -------- (5)24, (5)13
filhos de (7) 3,0 -------- (7)3, (7)0

• Size 1: 15 Size 2: 18

• Recursos: Espécie Porcentagem total


5Ha de terras trabalhadas por (7), (3), (5)24
3 bois 28%
atividades remuneradas (trabalhos domésticos,
comércio ambulante, artesanato, transferência
de dinheiro pelos parentes que trabalham fora
de Cachoeira) 75%
98
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

• Casas enfileiradas: D, E, B, C, A.

~._---_-_. ~. __ J

..
I:
- - -.- .

i. ~ri'li'l '21:
~~I ..'O-A-' . A-A' .
L A- A, •

F: E '- p,- c- , B~ ~

IDn" Contribution ratie- Diff. Bi1f.1


Ratio" consl ,
I - ratio

A: Chce; a- Clice, a- mulher- de- (2t, recebia-uma- contribuição- irregular taté-l9-80-) de-seu- - 6- 7.
mulher de (2) e companheiro que vivia em Salvador. Ela ia periodicamente trabalhar como
seus fitlros-(2) 18, empregada- doméstica-enr Salvador, orrde ela-continuava a-ve1(2). Do-que-ela
,10) conseguiu economizar, ela investia no comércio ambulante, entre Salvador e
Cachoeira: (2)r~ havia obtido trabalho na fábrica de tabaco Danneman, em São
Félix. Sua irmã, (2) 10 acompanhava muito frequentemente sua mãe na rua,
vendendo artigos de toilette comprados em Salvador. A cota de contribuição, em ...
espécie e em serviços - tempo, de cada membro, situa a posição dos membros na
casa e na configuração de casas. (2)18 e sua mãe davam, separadamente, sua
contribuição diretamente à Dona Conceição. A contribuição do sub-conjunto "A" ,
sem acrescentar os diferentes serviços não qualificáveis de Clice, de (2) 10 e (2) 18,
... pode ser estimada em cerca de 9% da receita da casa .

B: (3), sua Olga passara também um tempo trabalhando como empregada doméstica em 6 5
mulher Olga e Salvador, deixando (3)5"e (35, na ausência de seu pai, sob a responsabilidàdê de
seus filhos (3)21, sua mãe e de Clice. Quando Olga se encontra em Cachoeira, ela trabalha como
- -
3)5, (3)3. lavadeira para quatro ou cinco residências da cidade. (3) se ocupa, com (7) (5)24
do cultivo de cinco hectares de terras cercadas por um período indeterminado. De
fato, três dos cinco hectares de terras pertencem a uma antiga fazenda e foram
postos à disposição de Seu Justo, o segundo marido de Dona Conceição, por
serviços prestados ao patrão. Os direitos de exploração dessas terras não são
legalmente reconhecidos. E Dona Conceição só reinvindica seus direitos com
relação a terceiros (invasão por outras famílias pobres, por exemplo), desde que a
antiga fazenda não seja reapropriada. Os dois outros hectares são arrendados por
(3). Os produtos agrícolas constituem contribuições que amortecem as despesas
- familiares.Osque são destinados.ao consumo.imediatonãc são objeto de.qualquer ...
diferenciação, enquanto que os produtos destinados à venda são divididos entre
(3 ),..(7) e.(5)2 ...
4, já...que...
o.modo ...de.exploraçãaé.coletivo.Bjz.l trabalhavanaépoca, _ -
na fábrica do bairro l. Como nos outros casos, (3), sua mulher e (3)21 dão
diretamente à dona Conceição suas respectivas-contribuições, estimadas aqui em
9% do orçamento da casa.

C: (5) e seus Desde 1964-1965, (5) trabalha em Salvador. Em 1969, ela começou os trabalhos 8 7
filhos (5)24, _de construção, graças ao apoio de seu marido, que nesse meio tempo havia imigrado
5)13 para Salvador, e de seu irmão (2). Sua casa é um lugar de trânsito para diversos
membros.dacasa-mãe.Ela.envia ...
diretamente.ànona...Conceição...sua...contribuição...
para seus filhos. (5)24 trabalha com (7) e (3) as terras de Dona Conceição. É a ele
....que...Dona...Conceição.recorre,...muito..frequentemente, quando ...ela..tem.necessidade. I-

de efetuar um serviço. Contribuição estimada em 9% do orçamento da casa.


99
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

D: (Elma), seu Elma ficou easada-durante deis anos, até-a-morte-de seu-filho-I? anos e-3-meses). 8 8
marido e um Ela dava aula mnna pequena escola comunitária, e seu marido trabalhava como
bebê de 2 anos mecânico- assistente-numa- oficina. Elma-sempre-forum dos fífhos preferidos- de .
Dona Conceição. Ela dizia de Elma - "Ela soube manter a honra da família. Ela
não andou tendo filtros por aí, pelo contrário, ela se casou na Igreja, com véu e
grinalda, dama de honra e recepção". A contribuição de D (Elma e seu marido)
-
mantinha T5% do orçamento fâmiliàr. Erma era encarregadã da compra dos
mantimentos e do necessário para a cozinha. Ela deveria prestar contas a sua mãe
dos menores detalhes sobre as compras efetuadas. Ela insiste sobre o fato que esse
trabalho implica em pesadas responsabilidades, provocando ciúmes e mesmo
irreverências da parte de certos membros da casa".

F: (Dona Dona Conceição ainda trabalhava na fábrica de papel. Ela era a grande 8 6
Conceição) e seu administradora dos recursos da casa, recebendo mais de 60% de sua receita. Desse
filho adotado (9) dinheiro, ela fazia uma redistribuição: a Elma, ela dava a quantidade possível
para comprar o necessário para a cozinha; a Nice, o dinheiro para fazer a limpeza,
etc. No seu quarto, ninguém entrava; lá ela guardava as economias da família -
embaixo do colchão, no interior de uma almofada, sua criatividade fazia dela um
gênio da camuflagem. Ela guardava lá também alimentos, bens de valores e
"segredos de família". Ela supervisionava as atividades das crianças, contribuindo
no processo de sua socialização. Dona Conceição era ainda parteira de quase
todas as mães. do,bairro, Ela não.recebia nada por este.trabalho. "Era uma.missão
divina". Como retorno, as famílias a quem ela ajudava davam uma cotização
símbólíca.acadaano paraaorganização dafestadafamília.Xangô,e São.Benedito, -
herança ancestral que vela pelo bem estar econômico, entre outros, da família.
Ela- estava- n(}·centro.da.configuração dmnéstica-e-dO-estímulQ- a()-prccesso.de. -
construir "em família". É dificil isolar sua contribuição. (9) foi adotada por Dona
E:olleei~ão-em-eolldi~êes-muit(}-partieu1afe$-; Sua-mãe a-sinha-ebaadeaade-aaeasa
de Dona Conceição, a quem ela passou a considerar como mãe de criação. Na
casa de-Conceição, (9-)--pagou bem caro-o-preço- de-sua-integração-na-fatnHia~
"Todas as tarefas mais imundas pediam-me para fazer. Eu era a primeira a ser
acordada-e-a-últinra-rirdonnir'-', dizia=me-ela:
:::..:.
(7),..sua. Trabalhando pesada..ele era - e.é, até o. momento. - artesâo.ele.produzia 5 7
mulher, (7)3 e belissimas peças as quais vendia numa espécie de mercado modelo, em Feira de
"")O. Santana.a.segnndacidade doRecôncauo .. Além dosrrabalhos agrícolas.elecuidasa, -
exclusivamente das cabeças de gado da casa (três bois). Sua contribuição era de
~ 5910. Sua- mulher, amamentaadc.seu.bebê.de. 7. meses, ocupava-se- de- trabalhos .
I
domésticos.
l

F. Acontecimentos que modificaram a casa de Dona Conceição entre 1971-.1985

Em 1971, a construção da casa de Dona Elma (6) estava acabada. Elma se muda, assim como Clice e seus
filhos. No final do mesmo ano, o filho único de Elma morre, com a idade de 2 anos.
Em 1975, (3) morreu. No mesmo ano nasceu o primeiro bebê da filha primogênita de Olga (identificada
; ~I no esquema anterior). Olga, mulher de (3) e dois dos seus três filhos passam para casa de Elma. A mais velha
~.5..~ bebê continua a viver na casa de Dona Conceição. (7) parte para a ilha de Itaparica, a procurar trabalho.
Em 1977, começavam os trabalhos de construção da casa de (5). Final de 1977, (5) volta definitivamente
Cachoeira. (5)24 parte para Salvador.
Por volta de 1979-80, Dona Conceição empreende uma mobilização familiar para construir a casa de Olga.
Em 1979, o proprietário dos 3 hectares de terras arrendadas por (3) retoma sua posse. A filha primogênita de
[identificada como (3)21 no esquema anterior] parte para Salvador; ela deixa seu filho com sua mãe.
Em 1980, Dona Conceição caiu doente. Os trabalhos de construção da casa de Olga foram suspensos. Em
.ereiro de 1980, Dona Conceição, mesmo doente, organizou a maior festa de família jamais realizada no bairro.
ocasião, ela confiou a guarda de São Benedito a Elma (6) e a de Xangô a Lígia (1). Doravante, as duas se
enderiam para organizar as celebrações anuais. A mulher de (7) e seus dois filhos partem para Itaparica,
100
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Início de 1981, Dona Conceição decidiu enviar (9) para a casa de Elma. Em 1981, morre Dona Conceição.
Em 1981, (7) volta da ilha de ltaparica com quatro filhos.
Em 1982, Dona Elma e Dona Lígia conseguiram organizar as primeiras festividades em homenagem a São
Benedito e Xangô.
Em 1983; Olga mora em sua nova casa.

G. A casa de Dona Conceição em 1985

~ ~o'
ir" ..... Legenda: A não está na casa. : amigado, adoção

H. A casa de Dona Elma em 1985.

...........
r-l .

,l r r-fU-l-KJ
ot I
A
:~ laços inexistentes

A casa de Elma foi construída no início dos anos 70. Até essa data, ela havia morado na casa

z.e sua mãe, onde alguns dos integrantes de sua casa atual passaram sua infància. Por volta de 1969-

o, o número de pessoas em trânsito, por momentos, na casa de sua mãe (com 68 anos na época),

rassava de quinze. Acrescentando a esse número a passagem dos outros filhos, netos e parentes que

ram fora de Cachoeira. Confrontada com as dificuldades resultantes do crescimento demográfico

.:-5 moradores da casa, diante portanto da necessidade de produzir para sua filha mais velha sua

_.opria casa, seu próprio espaço dentro da família, ela tomou a iniciativa de convocar um mutirão",

:lm de poder construir uma outra casa, que seria então uma espécie de casa-filial. Com a assistência

=- um parente e a de seus filhos, ela reuníu o necessário para construir a casa de Elma. Essa casa-

alojou, além de Dona Elma, sua cunhada (Clice) e seus dois filhos, e, quatro anos depois, Olga

~ 5eUS três filhos (ver quadro Q4 sobre as sequências das construções das casas na família de Elma

zre 1960 e 1985).


101
ilia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

o processo de construção no entanto não se acaba. Durante minhas estadias em Cachoeira,

~_~e assistir à construção de uma enésima casa: a de Ludmilla, cunhada de Elma. Por ocasião de

ha última viagem, em maio de 1995, eu tive o privilégio de participar das festividades

emorativas do acontecimento. Enquanto que em Pau da Lima, Salvador, o esqueleto de uma

_~a casa era montado, e servia de abrigo provisório para uma mãe e seus quantro filhos aos olhos

~ um observador distante, no entanto, não passaria de mais um barraco.

Eu me lembro do dia das festividades comemorativas da casa de Ludmilla. Era uma bela

rde de verão, um sábado. Tia Elma, após um pequeno exagero na cerveja, me abraçou forte, muito

~ rte, no colo, reclamando de sua condição de "velha-prestes-a-morrer e que trabalha para os ingratos",

_ eu. confuso com tanto calor humano, por uma realização tão banal, pensava, lhe respondi num

.asileiro bastante enrolado: "que bom que a senhora tenha conseguido! que bom!" E senti então

_e para tia Elma, a casa, entendida como suporte fisico dessa construção simbólica, era uma

xmquista; ela é uma realização ao mesmo tempo assegurante e frágil. Ela é uma conquista contra as

lências dos conflitos familiares e domésticos, mas também uma conquista de novos membros, um

esforço de fusão contra as forças reais e temíveis de ruptura. Uma vitória momentânea do simbólico

sobre o econômico. Ela é assegurante porque construir a casa foi uma vitória pessoal, nascida de um

enpreendimento coletivo. Ser capaz de mobilizar um mutirão, é mostrar ao mundo o quanto se é

-espeitado, importante, e integrado a seu meio. É prova que se tem boas relações.

No entanto essa vitória traz com ela uma frustração. "Quem não gostaria de ter alguma

zoisa a transmítir? Quem não gostaria de ter herdeiros?" ela me perguntava. A frustração reside na

;::-ópria fragilidade da coisa realizada; um sentimento de distância, uma forma de relação impessoal

zom a casa, que lhe impede de dispor, no amanhã, aquilo que, para ela, ela em grande parte criou. É

_~e, nessa sociedade que se quer moderna, os grupos minoritários marginalizados não inventam

eios coletivos de sobrevivência porque assim o querem, mas porque eles não podem fazer de outra

:orma.

"Construir uma casa" constitui, para os negros de Cachoeira, um avanço decisivo na produção
102
ília, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

~- dispositivo que torna possível a realização, no cotidiano, do projeto familiar. Não se trata somente

ce uma realização que seria fruto de uma simples acumulação pessoal. Trata-se sobretudo de meios

odos coletivos de se habitar, de produzir a casa, de tornar possível a família e de vivê-Ia como

ecoeriência. A casa é um momento de um processo complexo de invenção e reinvenção da família,

:.a amizade, da vizinhança e da iniciação da conjugalidade, muito comum nos bairros populares de

~achoeira21, realizado numa trajetória particular. A casa é o resultado de um compromisso, porque

=. .., aciona a solidariedade coletiva, na base da ideologia familiar. Ela é também um comprometimento,

_~rque ela reconcilia os agentes com as instituições locais de reciprocidade programada (piégée)-

ifts and poison, Bailey 1971), na medida em que ela constrange os agentes à obrigação de cooperar.

':>arabem captar esse processo, é preciso estudar as relações por ela circunscritas, e que a ela

zrcunscrevem, tal como elas se dão em sua configuração.

O que distingue uma casa, de acordo com as representações dos agentes, é o lugar que ela

,...cupa no imaginário e na prática familiar, no cotidiano daqueles que a habitam. A casa, como a ela

se referem os próprios agentes, é compreendida menos como espaço físico, fixo, sob a fírme direção

:e um chefe - cujas fronteiras de jurisdição seriam claramente definidas - do que como um

compromisso de cooperação multi-dimensional entre parentes e entre as gerações. Esse compromisso

~ apresenta como sendo um dos suportes que tornam possível a realização da categoriafamília. A

.asa é uma posição participante de uma configuração de posições. A casa é um lugar que se estrutura

-~ medida da convergência e da sedimentação das relações familiares-em-eterna-construção dentro

ce uma configuração de casas. Nela e por ela se jogam as estratégias de construção do tipo de

:.ispositivo familiar que permite, aos agentes familiares, produzirem respostas apropriadas aos

. roblemas e obstáculos eternos do universo social que os contextualiza.

A casa, segundo as representações dos agentes, é ao mesmo tempo uma referência temporária,

um lugar de passagem, e uma referência permanente. Como referência temporária, a casa é de

ninguém, apenas daquela (raramente daquele) que assume a sua coordenação, que canaliza o poder,

centro focal por onde transitam as relações - a exemplo da própria casa - é por essa razão que,
103
.i/ia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

centificando tal ou qual casa da configuração, o jovem adulto (e mesmo a criança), a designa

pre com um complemento: a casa da tia E/ma - mas raramente como minha casa. É um lugar

-.- qual e pelo qual o indivíduo se constrói, na complexidade das relações que tornam possível a

_eriência familiar; é o lugar no qual ele se define, até que ele reúna as "espécies de capitais"

recessários para poder investir em algum lugar e realizar o que ele crê ser o seu destino. Seus laços

rem a casa são, em certa medida, reciprocidades afetivas, econômicas e familiares, das quais dispõe

configuração.

Em suma, durante toda a pesquisa nos bairros populares de Cachoeira, os membros que

ulam na casa não manifestaram nenhuma relação de propriedade com a casa. A gente constrói

lar mas a gente não tem casa. Possuir alguns metros quadrados de terra que seriam uma

C70priedade privada sancionada pelos poderes, e sobre os quais construiria-se uma casa, um bem

cznsmissivel a uma outra geração, é um sonho muito pouco sonhado entre esses agentes familiares.

- bairro # 1, a terra pertence à fazenda que lhe dá o nome. Propriedade colonial sobre a qual se

esfalfavam os escravos negros, a fazenda se transformou numa fábrica de papel, no final da primeira

-etade desse século, convertendo os descendentes destes, na força de trabalho de uma indústria

semi-artesanal, no entanto, uma das raras usinas que ainda subsistem em Cachoeira. A história do

ccvoamento das terras dafazenda revela que 95% dos habitantes foram trabalhadores - em tempo

:lfcial ou regular - da fábrica. Por essa razão, eles tiveram o direito de construir suas casas sobre

-.5 terras dafazenda, com base num acordo entre a Fazenda e os trabalhadores. Mantndo afazenda

plena liberdade de expulsar não importa qual unidade doméstica, em qualqer momento. Esse

-odeIo de povoamento que estrutura as relações de trabalho entre descendentes de escravos e

arifundiários, não é uma característica exclusiva do bairro #1 ou da periferia da cidade de Cachoeira.

_~o Município de Cachoeira - Iguape, Belém, etc. ou no de Santo Amaro, esse regime é

-:redominante.

Morar é um sonho. Esse estado de coisas, eu o encontrei na quase totalidade de minha

amostra. Esse duplo estatuto de "propriedade temporário" e não proprietário, encontrei-o também
104
-.:Il1lília,Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

cos bairros 1, 2 e 3. No bairro #3, 30% dos responsáveis dos domicílios são proprietários não

zncionados por um ato do Estado", 48% são locatários do Estado, mas sujeitos a deslocamentos

apesar de que a administração pública da cidade se veria "constrangida" ao fazê-lo), sendo sua

.uação mais ou menos análoga à do bairro #2 (28,7% e 51%). As noções de casa, de morar, de

construir, obedecem às mesmas regras de cooperação na rede doméstica. A noção de residência, tal

como construída e utilizada para descrever os grupos domésticos rurais e urbanos proprietários, não

carece ser provida do mesmo conteúdo: na periferia urbana, uma decisão exterior (o Estado,

carticulares poderosos) pode provocar uma expulsão a qualquer momento. A história do povoamento

":.~certos bairros periféricos assim como a própria memória popular, ainda guardam dela fortes

-aCOS23.

A casa é lugar de passagem. Com finalidades puramente descritivas, eu ouso dividir as

- essoas que circulam na casa sob três categorias: as residentes fixas, aquelas que transitam entre

:-:;as e cinco casas de uma mesma configuração, e as "residentes móveis". Nas representações

~ais, não há uma grande diferença entre as três formas de residir que aqui descrevo sumariamente.

- ém disso, não há uma fronteira rígida entre tais categorias. Um residente fixo pode passar a ser um

--esidente móvel ou ausente" e vice-versa. Na construção da casa em Cachoeira, ao menos nos

.:::illrospor mim pesquisados - aquela (ou, raramente, aquele) que dirige o grupo familiar, em geral

ora". Ela (ou ele) é a referência mais ou menos fixa para os constituintes da casa.

A segunda categoria consiste naqueles que transitam nas 7 ou 8 casas participantes de sua

_.....
nfiguração de unidades domésticas. Robson dorme na casa de Paulo, irmão de Elma; ele come na

-:= sa de Carmem, onde ele cumpre certas tarefas cotidianas (que ele crê fazerem parte de suas

rigações), e tem seu "guarda-vestido" em um dos dois quartos da casa de Elma. Elisette dorme na

~;~sade Elma, cada vez que ela tem saudade do povo da casa. Rita circula periodicamente entre 4

.dades domésticas, entre elas a casa de Elma, onde ela morou durante mais de seis anos. Ela

=abalha agora em Cachoeira, e a cada fim de semana, ela vem passar seus dias de descanso em uma

zessas residências ("em casa", insiste ela).


105
í/ia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

A terceira categoria pode incluir membros que emigraram temporariamente para Salvador

_ Itaparica. Eles voltam "para casa" a cada ano, por um período relativamente longo (um mês; ou

trimestre) de acordo com o tipo de trabalho que efetuam. Em outras unidades domésticas eu

contrei vários casos de jovens mulheres que passam de três a seis meses trabalhando "na casa dos

erros" (como domésticas) em Salvador e voltam para passar o mesmo período "em casa", cuidando

- retamente de seus filhos, ou investindo no comércio ambulante. Muito frequentemente, o trabalho

méstico é apenas uma árvore que esconde a floresta. Como os empregos domésticos, apesar de

no mal pagos, tornam-se cada vez mais raros, algumas delas vão a Salvador para se prostituir

::...!Ianteum período variando entre três e seis meses. De volta à Cachoeira, elas retomam a "vida

rrnal" até que se ofereça uma próxima oportunidade.

Nos bairros onde pesquisei, tanto em Cachoeira quanto fora, as mães são, em 60%, as

-=:erências fixas na casa. Elas fazem o pequeno comércio ambulante (28% de minha amostra em

zchoeira), elas são vendedoras de acarajé (9%), vendedoras de produtos artesanais (7%), elas

aoalham nas fábricas (6%), elas fazem faxina e passagem de roupa (a ferro) ocasionais (5%), têm

es de rendimentos não declarados (12%), e consideram não fazer nada (10%). As crianças

uenas e os jovens estudantes constituem a maioria dos residentes fixos.

As mulheres membros das unidades domésticas que vivem em salvador, encomtram-se

::;.amésticas(60%)~ trabalham em fábricas (20%), em comércio ambulante (5%); os jovens, estudantes

meio período (5%), atividade não declarada (10%); os homens trabalham como pedreiros"

.30%) ou são trabalhadores periódicos não qualificados (30%), lavadores de carro (8%), vendedores

ulantes (2%), não se declararam (9%). Em Salvador, eles se reagrupam em suas famílias, divididos

incipalmente em trêsfavelas: Nordeste, Pau da Lima e Sussuaruana. Eles reconstróem, consolidam

.• prolongam a configuração, em torno dos parentes próximos ou afastados, consangüíneos ou

..:cticios; eles se reapropriam das redes de parentesco e se redistribuem nas redes domésticas

sedimentadas nas favelas.

Os agentes familiares se movem, numa configuração, entre duas ou sete casas, num espaço
106
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

. róximo - O bairro -, semi-próximo - a cidade, num outro bairro periférico, ou afastado -

oeriferia de Salvador, Camaçari, etc. Traçar as fronteiras dos "grupos domésticos" numa configuração

ce casas revela-se um empreendimento inútil pelas evidentes razões ligadas à mobilidade dos agentes.

Os circuitos de trânsito diversos e dinâmicos que se constróem entre as unidades de residência,

:esorientam todo projeto que vise fixar um retrato estatístico destes. Toda construção estatística

e pretenda dar conta da composição - ou mesmo das tendências gerais dessa composição -

cessas casas, deve ser considerado com prudência.

Para os agentes, a casa é também, paradoxalmente, uma referência permanente. A casa

.em, digamos, como um estatuto mítico, no imaginário daqueles que dela se separaram há dez anos

u mais. Bem simbólico coletivo, ela se transforma numa matriz simbólica na qual nascem a

coletividade familiar e os mitos de família.

A casa não é somente um bem individual transmissível, uma coisa, um bem familiar, uma

eologia. Ela é uma prática, uma construção estratégica na produção da domesticidade. Ela também

-;:;0 é uma entidade isolada, voltada para si mesma. A casa só existe no contexto de uma rede de

.midades domésticas. Ela é um dos centros focais de acumulação e de redistribuição das redes

.omésticas. Ela é pensada e vivida em interrelação com as outras casas que participam de sua

construção - no sentido simbólico e concreto. Ela faz parte de uma configuração.


107
_-amília, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

3. Casa e configuração de casas

Observei anteriormente aliás que a casa - conforme a representação que os agentes estudados

3zem dela - é um momento de um processo complexo, pondo em jogo estruturas de interação e

zma configuração ideológica que se exercem desde a decisão de construir, o fato de construir até à

concretização das relações por ela circunscritas e que a circunscrevem. Apresentei também um

conteúdo a respeito da maneira pela qual essa construção simbólica informa a construção espacial,

:'e modo que, em seus mínimos detalhes, não se possa separar dessa representação fisica, a construção

bólica a que ela encarna. A partir dos discursos dos agentes.jentei por em relação os sistemas de

comologias e os sistemas de oposição que dão conta dos usos em curso nessa construção. Para

complicar ainda mais o quadro, precisamos acompanhar agora como se apresenta o mecanismo que,

- - cotidiano doméstico, institui a casa nas relações de troca entre os agentes familiares.

A partir das considerações feitas acima sobre o modo de residir na periferia de Cachoeira e

zos bairros populares estudados em Salvador, torna-se dificil circunscrever certos agentes familiares

a unidade doméstica específica. Da gênese. da. casa à. sua. construção,. desta. ao exercício, no

zotidiano, da experiência familiar, os agentes não se pensam e não pensam a vida doméstica que. não

seja no contexto das redes dentro das quais eles interagem. O processo de produção das casas, no

sentido concreto e simbólico, a organização da vida doméstica no interior de cada casa e entre as

casas, o caráter ao mesmo tempo estruturado e não estruturado das relações entre as casas, fazem

ia idéia de casa uma rede na qual e pela qual o agente se realiza, enquanto um lugar no qual ele se

.::entifica É comum ouvir dos agentes familiares que habitam a .periferia de Salvador.. estou com

udade de casa ou finalmente estou em casa. Interrogados sobre as significações de casa, eles

coservam que a saudade de casa é ao mesmo tempo a desse espaço fisico e simbólico que eles

- abitam, da receita culinária da casa de tia, da configuração da qual sua própria casa faz parte; é a

udade daqueles com os quais se pode contar", aqueles com os quais eles produzem relações

::mdadas sobre códigos de conduta traduzidos na ideologia da família (Goodenough 1970); é. a


108
- xmilia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

iaudade da configuração de unidades domésticas na qual eles constróem suas referências (repêresy

ce identidade, onde eles investem, dispõem e manipulam suas diversas espécies de capital; enfim, a

-audade desse lugar ontológico pelo qual eles existem. Essas redes domésticas-que-se-constróem,

-- cotidiano, nas periferias de Cachoeira e nos bairros populares observados em Salvador, se produzem

z partir das referências espaciais que concretizam cada casa. Essas referências espaciais concretizadas

oor um certo número de casas, eu as designo como sendo configurações de casas?"

A configuração de casas não se dá como um conjunto imediatamente localizável. Ela não

compreende aqui o conceito de "família extensa". É uma conceitualização de uma representação das

relações entre agentes familiares originados de diversas casas. Ela não se revela ao pesquisador de

.im dia para outro; nesse sentido, ela não tem seus fundamentos em valores exclusivamente holistas.

A. exemplo das próprias casas que criam em seu seio mecanismos de regulação dos individualismos

de seus agentes ou do regime de espaço interior da casa que arruma a conciliabilidade e maleabilidade

:0 comunitário e do individual, a configuração de casas compreende um espaço de fronteiras

oaradoxalmente tênues (para o observador) e claras (para os agentes), no qual se desenrola um

. rocesso de eterna criação e recriação de laços (redes) de cooperação e troca entre entidades

autônomas (as casas). Ela pode ser compreendida ao mesmo tempo como estrutura e anti-estrutura.

Como as casas, as configurações de casas se constróem numa estrutura de tensão entre a hierarquia

e a autonomia, entre o coletivismo e o individualismo, entre os mecanismos tradicionais de socialização

e o impulso pós-moderno dos modos de consumo, etc.

Em Cachoeira, e nas zonas pesquisadas em Salvador, a regra de cooperação - que não é

uma regra explícita e consciente mas sim a minha tradução de uma prática de solidariedade - se

exerce segundo a construção cultural local dos.domínios de direitos e obrigações.É importante nos

determos aqui sobre as idéias locais associadas ao tema da cooperação". "A mão direita sozinha não

vale nada", explica um agente; "não lhe serve em nada ser a mão direita se ela não sabe como contar

com a mão esquerda; e ela saberá como contar com a mão esquerda se ela estiver disposta a agir

junto com esta". ''Deus mesmo", explica um outro, "se ele se voltasse só para si, não funcionaria,
109
ilia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

_~is ele não teria nenhum meio de prover às necessidades de seus filhos, tão exigentes e tão numerosos.

E por isso que ele precisa da colaboração dos anjos e dos santos, dos orixás e das entidades. Uns são

mão direita, outros a mão esquerda: as duas fazem parte de um só corpo: o corpo de Deus". "Se

5 olharmos à nossa volta", argumenta um outro agente, "na mata, na selva, nós veremos que

os os animais colaboram entre si: assim fazem as formigas, os insetos, até os animais mais

_~..vagens". A idéia básica que exprime a obrigação de cooperação entre os. humanos. é a de

olaboração". Sem a "colaboração", o mundo não existiria. ''Já pensou, continua um outro, se o

ento resolvesse não-ventar, ~O--soLnão-.br-ilhar,


se o-dia-não-ehegan Deusé. pai!" É pG-t:-~ que

=.ç permite que tudo funcione - que o sol continue a brilhar; que a chuva continue a cair e. que a

erra continue a dar de comer a todas as suas criaturas. Da ordem da natureza à ordem do social, a

rolaboração entre os animais ou entre os homens se dá como aquilo que possibilita a existência. A

colaboração consiste no fato de cada elemento contribuir ao funcionamento do conjunto.

Colabora-se.em.nome da.unidade, Numa.família, numa casa, cada membro deve.colaborar

.:.J seu modo a fim de produzir o bem estar do conjunto; os ricos colaboram entre si, a fim de

.,ssegurar seu próprio bem estar e o dos seus; os brasileiros colaboram entre si para produzir a

sociedade. ''Nós somos todos um," exclama um agente com convicção; "que nós sejamos brancos

ou negros,. morenos ou sararás,. ricos e pobres,. camponeses e citadinos; brasileiros do Norte ou do

- u~falando com sotaque ou não, apesar de nossas pretensões de nos diferenciarmos uns dos outros".

- egundo as numerosas conversas que tive com os agentes sobre a solidariedade entre os humanos,

apesar da diversidade de homens e mulheres, apesar das diferenças sociais e culturais entre os grupos,

apesar da distância que separa os seres humanos, apesar da pluralidade das confissões religiosas,

existe um lugar onde todas as diversidades, as diferenças e as distâncias fisicas, sociais e culturais se

encontram unidas. Esse princípio de unidade que é Deus, une o gênero humano,. os vegetais, os

animais, as águas sob todas as formas, enfim, tudo o que existe, sob o controle do Criador. Deus é

o princípio da unidade, uma vez que tudo vem dele; a natureza é o lugar da unidade da diversidade,

já que tudo vive apenas por ela. "Colaborar" é um imperativo ditado pela unidade, o preço da
110
éámília, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

--- brevivência. Na ordem da natureza,.. como na ordem da sociedade humana.

Numerosos trabalhos que tomaram por objeto, após Mauss (1985), as dinâmicas obrigatórias

zas sociedades humanas, argumentaram que a condição humana se origina de um estado de dívida

Baslé 1985, Bloch e Buisson 1991; 1994; Caillé e Godbout 1992): o ser humano, uma vez nascido,

encontra-se na obrigação de restituir o que ele deve a Deus, a seus pais, à sua família e à sociedade.

!\ tradução da idéia de "colaborar" parece reforçar essas hipóteses de trabalho. A idéia de colaboração,

segundo as representações que fazem os agentes, na periferia de Cachoeira e nas outras zonas

estudadas, remete a duas grandes implicações na economia das trocas na família em meio popular,

;rincipalmente em Cachoeira e nas outras zonas pesquisadas. Ela traduz a idéia dafalta original: ela

e inerente à condição de toda criatura, presa a ela própria, de estar em situação de falta, quer dizer,

:e ser incompleta, parcial. A colaboração na família é a forma inteligente de reduzir essa falta:

.uanto mais numerosa for a família", mais se desenvolve o circuito de troca e mais as pessoas se

zompletam. Por outro lado, a condição da falta é tributária à de endividada. Dos vegetais aos animais,

aa criança ao adulto, nós temos todos uma dívida em direção àquele que nos deu a vida - Deus -

~ àquela por quem a vida nos.foi dada-- a muíher. (a mãe). Éessa.d~vida, nascida-falta, q\l€ funda a

exigência de dar. sob outras formas, a outros, o que se recebeu de Deus, de sua família, etc. A idéia

ca dívida fundadora é corolária à do dom primordial: a vida, sob todas as suas formas, é um dom de

Deus, o princípio da unidade. Dessa falta original, e desse domprimordial (e_a dívida fundadora por

ele sugeri da), que se traduz no nascimento, na transmissão dos bens materiais e simbólicos, se

enraizá a lógica das trocas, dom contra dom entre os seres humanos.

Nas representações locais, reconhecer essa condição de falta, é manifestar inteligência. Negá-

a, é provar estupidez. Reconhecer esse dom; através das formas de circulação da dom em exercício

na comunidade, é proyar sua consideração. Negá-lo é aprisionar-se em sua ingratidão, é renunciar

para sempre a viver relações de parentesco que traduzem, no fundo, as relações de dom. A palavra

consideração significa demonstrar que se reconhece ter recebido o que se recebeu, e que se entra

assim ativamente na circuito de reprodução simbólica da família e.do parentesco. As, múltiplas
111
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

implicações da palavra "consideração", como princípio de constituição da ideologia da família e do

parentesco, serão estudadas no capítulo Ill.

Nas zonas pesquisadas, as relações de troca não se efetuam num termo unívoco. Se

"colaborar" é um imperativo tanto na ordem da natureza quanto na do social, "ajudar" é um

::nperativo propriamente humano. Quando se tem um fardo pesado demais a levantar" pede-se ajuda.

?ede-se ajuda porque se é fraco. Assim acontece nas relações entre humanos. Há os fortes, e os

:::-acos.Na sociedade global, os agentes se consideram como sendo dos fracos; entre os pobres, os

zegros são os mais fracos; nos bairros aqui estudados, os fracos são os pobres, os coitados; na

:àmília há aqueles que são fortes e aqueles que são fracos, economicamente, mas também

"misticamente". Muito frequentemente aqueles que são fortes economicamente, o são também

zaisticamente - quer dizer eles têm o apoio das forças invisíveis (forças do Espírito Santo - para

- pentecostais, santos e orixás - para os católicos e adeptos do camdomblé, etc.). Quem precisa

ze ajuda não é o forte, mas o fraco. Assim a palavra ajuda se aplica apenas Rara designar uma

-~lação entre desiguais, enquanto que a colaboração é feita em princípio entre iguais, de preferência

rarticipantes de um mesmo conjunto. Pode-se esperar a ajuda - o que raramente acontece - do

:"'Üverno federal, do Estado ou da municipalidade, porque o conjunto faz parte dos fracos da

iedade. Assim como, de um modo mais geral, todos os seres humanos são fracos diante de Deus

_nas forças invisíveis. É por isso que, em todos os seus empreendimentos, eles têm a necessidade -

.3 querem vencer - de solicitar a ajuda das Alturas, de por a seu lado as forças que julgam positivas.

r outro lado, a mesma operação entre desiguais, efetuada entre iguais é chamada participação.

zrticipa-se financeiramente, ou sob qualquer outra forma, na realização da festa de família, na

.onstrução de uma casa, na ajuda a um parente para que saia de uma situação dificil, etc.

Colaboração, ajuda, participação são termos através dos quais são traduzidas as relações

ze trocas familiares nos bairros estudados. Elas constróem domínios específicos nos quais se jogam

~'ações particulares em termos de direitos e obrigações. Suas traduções não se querem aqui

clusivas. Elas indicam os níveis complexos e os mecanismos de desigualdades que se jogam na

fi
112
":::mília, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

zrculação do dom nesses espaços. "O dom tem horror à igualdade, ele procura a desigualdade

"~emada", sugerem Godbout e Caillé (1992:51).

Colaboração, ajuda e participação são formas manifestas da prática de solidariedade entre

- membros das casas e entre as casas de uma mesma configuração. Eu traduzo essas práticas pelo

:;?IIDO de cooperação". O funcionamento da cooperação, como principio articulador das relações

~•.•tre casas, se dá como dentro das casas. A casa constrói domínios de intervenção, segundo a regra

:..a cooperação formulada na participação e na elaboração. Esses donúnios de intervenção constituem

.zma forma de negociação' entre o íntimo/pessoal/o meu, e o comunitário; entre a hierarquia e a

zirtonornia. Assim como ocorre nas relações entre as casas de uma mesma configuração. Em função

cesses mesmos princípios, a regra da cooperação opera em domínios específicos. O domínio dominante

~ o da socialização das crianças. "O que não se faz pelo bem estar de um filho!", afirma uma jovem

ãe cachoeirana. Se há um domínio que constitui o centro da troca de serviços, da colaboração,

entre agentes familiares de uma mesma configuração, é aquele da guarda do filho durante os tempos

ce ausência. "Se não se tem alguém para "vigiar" as criancinhas e intervir quando for necessário,

nossos filhos se tornam uns delinquentes". Com efeito, são essas redes de apoio que impedem as

crianças de ganhar a "rua", espaço dos delinquentes e dos bandidos. Deixar seu filho com um parente

ce uma outra casa é um "direito" que têm todos os agentes de uma configuração. E, por outro lado,

= um "dever" recebê-lo. ''Dar uma olhada" na casa x quando X está ausente é uma "obrigação" para

Y que mora na casa ao lado. Isto, um vizinho poderia fazê-lo; mas ele o fará se ele quizer, se ele for

um bom vizinho. Nesse caso, trata-se de um serviço por ele prestado, e não de um "dever". Eu

traduzo aqui como o domínio das heranças da família, um outro domínio que tem por objeto as

atividades das redes de trocas. Em ocasiões especiais, tais como as festas dos Santos/Orixás da

familia, os membros de uma configuração têm obrigação. de colaborar e participar em todos os

níveis e sob todas as formas. Num capítulo ulterior, eu analiso a constituição dessas heranças, as

formas que elas assumem - principalmente suas formas simbólicas - e os enjeux que eles

representam na constituição das identidades familiar e étnica. "Construir", tal como acima analisado,
113
-::amília,Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

zonstitui também um dos grandes domínios nos quais as regras da cooperação circunscrevem os

5reitos e os deveres. O alimento, e tudo o que está ligado à cozinha, constitui um outro domínio

~ade se exerce a cooperação; as formas de cooperação nesse domínio variam da troca de pratos, à

~juda, quando necessário, na cozinha, etc. Entretanto, domínios ligados aos quartos, à vida íntima

:'e uma casa ou de seus agentes, o orçamento doméstico" etc., não são domínios onde se exerça a

cooperação. Esses domínios são construídos segundo o princípio da autonomia/intimidade/

rrivacidade.

-_._-- -------
114
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Prancha 3. Referências espada; s atuais de.configurações de casas.- bairro 1..

Esse esquema visa dar conta da disposição física das casas de uma mesma configuração: a das casas acima
estudadas está representada em amarelo. A dimensão das figuras refere-se à importância da casa na configuração.

o
Casa
Clice
4

• Legenda:

a casas clã configuração dona C-onceição TO


t
Igreja
Pente- (f outras configurações, E: Escola + Igreja Pentecostal c:::>
costal
+- Igreja-eatólica; - outras easas não estudadas

"T" Casa de Candomblé


O'
Casa
Ludmi
O

Casa
Elma
o
Casa

O

Otga

Antiga casa D.
Conceição.
Fechada. Lugar do
Xangôfamiliar
(cap. V)

Casa
• Direção
do centro
da cidade
Praça pública, espaço
de lazer para adultos
e crianças. •••
Paulo
O O
E o Ilt
115
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Prancha 4. Ilustração de redes domésticas na configuração do esquema 6.

Casa dona Clice

,
Salvador e outros lugares
---------------~~~/'
=}O=}O=}O=}O=}O=}=}
~ ~-r. -
-
_-::--;.:Y.~_~~
'F<'. ---:. y~
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--- ..···..··r ~.,~
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Casa dona
ndimilha
~ ......
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.y ,.,.,,-
<..-,;,-
.....-:
.y- -
,,-"'-.
.
. ::

Casa da dona
/ 4'
/'Z....... O
: Casa.dona Silvia
Elma

\ :
Casa.de deaa
Diga-

-Casa dona Lígia

Legenda: O designa as-unidades. domésticas, circulação. das crianças entre .redes domésticas, -4

.dade doméstica na qual o agente de uma outra unidade vai fazer regularmente suas refeições, H o movimento se
fiz nos dois sentidos, -4 unidade doméstica na qual o agente de uma outra unidade doméstica vai dormir, todos
agentes das outras casas reconhecem a casa de Dona Conceição H como centro focal da fanúlia, os ir e vir nos
zircuitos da migração, todas as casas têm ao menos um agente que reside entre Cachoeira e um dos bairros pesquisados
em Salvador. As linhas ------.- designam as outras formas de serviços entre agentes domésticos, D designa a
anportância da vizinhança para cada unidade doméstica, os laços de parentesco "reais ou fictícios".
116
Famllia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Entre as casas de uma mesma configuração, existe, paralelamente às relações de autonomia,

relações hierárquicas. Como no interior da casa, cada casa está presa a uma rede de interrelações de

constrangimentos e obrigações. Cada casa é. de. algum modo a expressão de uma. coletividade e

resiste a todo esforço de independência - esforço individual, esforço de diferenciação - que poria

em jogo a própria configuração. A palavra esforço aqui não é uma metáfora. A casa emprega de

rudo a fim de que a regra da cooperação não seja posta em questão. A casa invoca o mito familiar,

- práticas religiosas, as festas familiares, as festas comunitárias, etc. para manter/justificar o

fundamento da cooperação. Eu voltarei mais à frente a respeito do caráter e da importância do mito

3miliar em Cachoeira.

Os agentes não confundem uma configuração de casas e a vizinhança. Cada casa, sendo

eira e fortemente integrada na família (ou nas redes domésticas) como princípio constituinte,

_articipa também das formas de cooperação que são pensadas, a seus olhos, como sendo relações de

izinhança ou "quase-familiares". Como W. Goodenough (1970:49) o demonstrou para certas /

comunidades; as relações sociais são aqui organizadas sob o modelo de kin relationships. O ,\ue~

~arece distinguir essas relações daquelas entendidas - ou construí das pelos agentes - como

:-:-opriamente familiares será estudado mais à frente. Contentemo-nos aqui em dizer que é seu caráter

~:-opriamente social que funda sua distinção; são as regras da boa vizinhança que querem que cada

_ill tenha o direito de construir seus próprios circuitos de relações sociais de vizinhança, na medida

que essa relação não ameace a cooperação, regra estratégica que participa do fundamento da

- stituição da casa. As relações de vizinhanÇ.a, quase familiares, entre duas casas, podem dar lu~ar

z criação de uma nova extensão da configuração. Assim como essas relações podem esfriar ou

__rmanecer no mesmo estado, segundo a dinâmica das relações e de interesses emjôgo.


117
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

À guisa de conclusão

Em Cachoeira, a vida doméstica é produzida e articulada na linguagem das redes de 'apoio

entre agentes familiares (parentes por consideração ou não). As redes domésticas por sua vez são

articuladas na linguagem estruturada pelas. posições de. cada casa numa dada configuração. A

onfiguração (configuratio), que é a representação de uma disposição de posições articulando redes

e relações, se dá num 'território" historica e socialmente construído, e não leva em conta as divisões

administrativas oficiais - condados, comunas, regiões - nem as divisões (ou oposições) sociológicas

clássicas do espaço. (bairro rural, cidades pequenas, cidades grandes,. oposições cidade/campo,

~LC.). Enquanto que as fronteiras do espaço social dos negros na sociedade global são bem definidas,

:anto nos grandes centros urbanos quanto nas pequenas cidades do interior (as relações espaço e

sociedade, são tratadas no capítulo I), nesse caso preciso, tanto em Salvador quanto em Cachoeira,

- anto Amaro, Muritiba, Itaparica, Camaçari, etc., as redes de apoio familiares, através das

configurações domésticas e/ou das casas, se localizam, se regionalizam e, em certos casos, se inter-

regionalizam" ~As ilustrações apresentadas nos quadros sobre as configurações de casas demonstram

~~e não se pode estudar o cotidiano doméstico, sem partir das redes que o suportam.

O modelo que eu tento construir aqui para dar conta da variação de uma experiência familiar

Cachoeira e nos bairros estudados em Salvador, traduz uma realidade dominante que não é

.clusiva aos. negros de. Cachoeira e dos mencionados bairros. Ainda é cedo para mostrar de ~ue

forma a condição étnica impõe e acrescenta, à condição social dos negros, uma particularidade no

-so do domínio da família e do parentesco. Os capítulos seguintes se propõem a dar conta da

zonstrução do domínio doméstico, dos sentidos e dos usos da família e do parentesco, da produção

:: dos usos dos mitos familiares, decodificando os sentidos implícitos próprios a essas redes de

-elações aqui descritas. O objetivo desse capítulo consistira em capitalizar os sentidos e as implicações

gadas à categoria cultural "casa", assim como as condições de sua emergência no contexto estudado.

A instituição casa é uma categoria fundamental para a compreensão das práticas e projetos

3.miliares, na sociedade global brasileira. Os trabalhos de DaMatta (op. cit.), Gilberto Freyre (Casa
118
=-amília,Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

-rande & Senzala e Sobrado e Mucambo), Palmeira 1977 e Garcia Jr. 1983, entre outros, mostraram

iue ela está na base da constituição do ser social brasileiro. A casa é um lugar, um mundo de ethos

.:.partir do qual os "sistemas de disposições" fundamentais se constróem e se configuram. E como

.odo lugar, a casa é presa a uma hierarquia cujos termos específicos no Brasil são historicamente

zonstituídos nos modelos sociais e culturais instituídos pela escravatura e pela colonização. Restituir

entido da casa como categoria cultural, é partir do lugar social e étnico a partir dos quais ela é

ventada. A casa se constrói e se lê em relações sócio-econômicas e culturais da sociedade. Assim

corno as pesquisas dos anos 70 demonstraram que não se pode falar da família brasileira, a menos

que haja entendimento quanto aos termos pelos quais ela é considerada, as pesquisas ulteriores

':everiam mostrar que não existe a casa brasileria, como categoria cultural geral, a menos que se

parta das variações sociais locais e étnicas que exprimem, no fundo, os termos da hierarquia social,

espacial, cultural e racial, em exercício nessa sociedade. É a partir desse nível que se pode produzir

s termos de uma comparação empírico-teórica.


119
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Notas do capítulo 11

1. Usarei doravante o termo household em lugar de maisonnée. O termo ménage (conjunto de


coisas e trabalhos no interior de uma casa; vida em comum de um casal; casal constituindo uma
comunidade doméstica; família, lar - N. T) é por vezes utilizado como equivalente a household por
ertos autores de língua francesa (por exemplo A Collomp, Ménage efamille: Etudes comparatives
sur Ia dimension du groupe domestique, Annales ESC, 1974, pp. 777-86); outros, como Segalen
'ociologie de Ia famille et du mariage, A Collin, 1981), insistem sobre o caráter restritivo da
. alavra ménage para traduzir household, cujo equivalente seria maisonnée - sinônimo de grupo
oméstico - (pp. 15-16).

_. As discussões em torno da natureza do household são tão densas que torna-se dificil sintetizá-Ias
aqui. Na maioria dos casos, os antropólogos estabeleceram a co-residência e o parentesco como
ois princípios diferentes de sua organização (Bender 1967,1971; Cohen 1970,1976; Fortes 1958;
Hammel and Laslett 1974; Pasternak et al. 1976). Em outras ocasiões, Hammel (1972) propôs que
seja compreendido como um processo, em lugar de um simples fato; enquanto que outros procuraram,
em vão, construir suas fronteiras fixando-lhe, além da referência espacial, critérios de atividades que
âmdamentariam sua especificidade, Assistimos então à formação dos conceitos de "grupo doméstico",
"unidade orçamentária", "grupo co-residencial", etc. As tentativas funcionalistas de definição dos
conceitos de household e de família levaram Goodenough (1970) a propor uma definição universal
ao household, separando-o das funções que os pesquisadores haviam lhe atribuído. Enfim outros
especialistas preferem não estabelecer uma definição desse conceito, baseando-se precisamente em
seu caráter polissêmico e seu estatuto epistemológico - é o caso de Berkner 1975; Yanagisako
.979,1984 .

.3 É preciso guardarmos na memória que o termo household foi introduzido em antropologia c.omo
.ma categoria de exceção, que sancionava a organização familiar de um grupo transitório, um estado
residual (Wilk and Netting 1984) cujo estatuto lhe conferia um lugar entre as formas primitivas da
rganização familiar e do parentcscc..e.o casamento monógamo (a família nuclear ocidental). É em
::mção desse background que é preciso compreendermos a construção analítica da organização
3.miliar das sociedades não-ocidentais - penso particularmente nos estudos dedicados à família dita
negra do Caribe, Estes últimos insistiram por muito tempo - e insistem ainda - sobre as normas
':efasadas sobreviventes nesses "grupos domésticos" aos arranjos matri-patrifocais, por oposição fi
zorma neolocal própria à família nuclear. A herança evolucionista consistiu num background teórico
'1ue formula a mudança no seio dessa organização familiar em termos lineares, enraizados na
cosmologia ocidental.

- De fato Levi-Strauss inspirou-se em Franz Boas que, primeiro, experimentando dificuldades em


traduzir as práticas do parentesco dos Kwakiutl, seja na linguagem da patrilinearidade ou na da
atrilinearidade, optou pela categoria cultural de numaya. Ele aproximou a discussão levantada por
Boas àquela de Kroeber que, não se entendendo com a organização social dos Yurok, passara pelas
mesmas dificuldades. Este último, apreendendo a importância da casa (maison) enquanto construção
fisica na organização desse grupo, optou por um caminho analítico que separa a construção (casa,
aison) do processo (social). Essas duas etnografias participavam, segundo Levi-Strauss, do mesmo
.stema de questões, segundo o qual a casa estaria no centro da organização social dessas sociedades
1983: 163-176). Em seguida, ele estabeleceu uma relação entre essas práticas sociais e as casas dos
aobres da Europa medieval de modo a propor uma classificação global do que ele chama societés à
aison (174-187). Indicações sobre essa categorização encontram-se também, entre outros, em
120
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Levi-Strauss (1984, 1979, 1991).

5 Levi-Strauss demonstrou, desde Les Structures Élementaires de Ia Parenté, uma distinção


significativa entre as estruturas elementares e as estruturas complexas do parentesco. Os primeiros
se traduzem nas sociedades prescritivas, nas quais as regras matrimoniais, baseadas em critérios de
parentesco, determinam as escolhas de cônjuges; os segundos são regulados pelos princípios gerados
oelo tabu do incesto, a troca generalizada, fora dos circuitos do parentesco. As escolhas, nesses
.pos de sociedade, são determinadas por outros fatores tais como a classe social, o poder, a riqueza,
etc. Essa categorização subentende, entretanto, um esquema evolutivo (sociedades baseadas nas
relações de parentesco VS sociedades baseadas nas relações de classe). E nesse esquema, as societés
. maison situam-se a meio caminho entre as duas últimas categorias (ver L. Strauss 1984).

-. Eu não penso que a densidade das produções etnográficas sobre a família no Brasil possa anular
~ urgência desse tipo de orientação de pesquisa. Ainda que a verificação de M. Corrêa (1982) sobre
~ produção etnográfica nesse tema não tenha perdido sua atualidade. Na apresentação de seu livro,
. mais de quatorze anos, ela insistiu sobre a necessidade de se debruçar sobre as relações concretas
. roduzidas no cotidiano, empreendimento decisivo em vista da construção de visões globais sobre
15 realidades familiares no Brasil, 'já que as certezas sobre o mais imediato ainda são frágeis" (10-
~n.
-. O termo de desconstrução é emprestado das pesquisas filosóficas de Derrida, principalmente em
"-'Ecriture et Ia Dif.férence, Paris, Seuil, 1967 .

. .Morar; moradia, casa foram objeto de estimulantes debates na literatura sociológica/antropológica


50bre as classes populares no Brasil. Essa literatura não tem no entanto por objeto a discussão
defendida nesse trabalho. É geralmente admitido que os picos alcançados nesses debates - intelectuais
~ políticos - a partir dos anos 60 e no decorrer dos anos 70, acrescentados do revigoramento do
ateresse atual sobre a "problemática" das favelas, traduzem a preocupação das instituições e
respectivos grupos sociais diante da proliferação acelerada das favelas, devida, entre outros, ao
ctescimentc demográfico e à corrente acelerada das migrações intra e inter -estados. Sabe-se que os
estudos tetnatizaram "a habitação" por meio dos quadros conceituais que respondem aos estatutos
.eóricos e políticos desse objeto, no mundo acadêmico e nas instâncias políticas de decisão. Ou
esmo nas abordagens produzidas a partir do pressuposto teórico da marginalização social, dá-se
ma apreciação sociológica da habitação nas favelas e suas periferias, como sendo uma anomalia da
al a sociedade deve se desembaraçar a qualquer preço, ou então, naquelas que dão ênfase à
condição social daqueles que lá vivem, a habitação se apresenta como um espaço de falta, lugar de
referência de famílias parciais, desorganizadas, onde reinam a desordem e a precariedade; outros,
numa perspectiva funcionalista, estudaram sua significação junto aos favelados, acentuando
especialmente seu caráter adaptativo. (Para as discussões relativas às diferentes abordagens e
. erspectivas ligadas à questão, ver, entre outros, Leeds 1978; Perlman 1977; Kewarick 1980;
alladares e Figueiredo 1987; sobre a relação casa, família e trabalho ver Garcia Jr. 1983; Lopes
et.al. 1979; Palmeira 1976).
Apesar do interesse voltado aos modos de habitar inventados pelos habitantes das periferias,
a antropologia/sociologia das classes populares revela muito pouco sobre as relações entre família,
casa e parentesco. Um certo uso das escolhas teórico-metodológicas objetivistas enraizado numa
isão miserabilista das classes populares (Grignon e Passeron 1992) contribuiu a produzir uma
percepção seca, congelada e miserável da casa. Respostas adaptativas às condições precárias de
existência, o habitat dos pobres, assim como as famílias que nele vivem, são frequentemente descritos,
121
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

a exemplo das classes populares, como um todo indiferenciado, privado de sentido, de sociabilidade,
e histórias, etc. A despeito da abundância das produções relativas a diversos temas ligados à habitação
em meio popular no Brasil, a despeito da importância central da categoria "casa" (maison) na produção
da família e do parentesco nessa sociedade, muito pouca atenção foi dada à construção dessa categoria
como objeto de estudo. À parte os raros estudos que trataram das relações casa e trabalho (op.cit.)
_ nto aos trabalhadores rurais, muito pouca atenção foi dedicada à simbologia e à dinâmica da casa
a periferia urbana. Sob essa relação, Klass Woortman (1982) foi um dos raros antropólogos a
istir sobre a necessidade de pensar a casa a partir dos próprios sistemas de significados dos
grupos estudados. A importância da casa é crucial, escreve o -autor, "não apenas de um ponto de
vista material, óbvio, mas igualmente por constituir uma categoria central de um domínio cultural e
m mapa simbólico de representações ideológicas". ~p.119)
..•

No bairro #1,67% das residências têm o seu passeio, contra 53% do bairro #3 e 51% do bairro
=1.. O uso que dele fazem varia de casa em casa: pequenos comércios, espaço de lazer para crianças
~adultos, ponto a partir do qual observa-se o mundo da rua, etc. Aliás, a regularidade estatística das
:ormas aqui constatadas não sugere de modo algum uma indiferenciação fisica entre as casas dos
cairros periféricos de Cachoeira. Há, certamente, desvios nas regras da construção que denotam
.erarquias internas socialmente signifi .tivas. A construção de uma casa obedece a constrangimentos
~ mobiliza recursos que anali . mais à frente.
Em Cachoeira/São Félix, como nas pequenas cidades do interior do Brasil, a distribuição
espacial das casas é horizontal; a elite e os segmentos sociais socialmente dominantes habitam as
construções, na maioria seculares, que correspondem às regras da arquitetura barroca. Uma grande
~arte dessas residências se agrupam principalmente em torno do centro da cidade - que é ao mesmo
.empo o centro político-administrativo, econômico, cultural; elas são na maioria "sobrados", edificios
eavelhecidos e sedimentados pela história das relações sociais, econômicas e políticas, herdados do
.empo da colonização e da escravatura.

J. No bairro #1, cerca de 88% dos telhados são de cerâmica, contra 69% no bairro #2 e 76% no
.airro #3 .

. . Em geral o número de quartos de dormir numa casa pode ser lido de acordo com a seguinte
-=-lação:n=I>2.2. O(s) quarto(s) de dormir ocupa(m) geralmente a ala esquerda da casa, isto é, à
esquerda de quem entra. Uma das casas que estudei em detalhe (em novembro-dezembro 1993 e
zais longamente em 1994), a casa de Elma no bairro # 1, foi objeto, por ocasião da festa do Encantado
ca família em fevereiro de 1995, de uma reestruturação. O espaço interior foi rearranjado obedecendo
~ outros critérios "dos tempos modernos". Essa nova concepção emergente toca particularmente a
z.a direita de quem entra. A proposta, nessa nova visão do interior da casa, é de separar a sala de
tar da sala. A sala deve ser posta em evidência desde que se atravesse a soleira principal. as
':"onteiras imaginárias (simbólicas) ou concretas (cortinas) que separam a sala da sala de jantar se
enuam principalmente quando se recebe alguém para almoçar ou por ocasião de uma comemoração
ecial. Nas construções convencionais, a sala de jantar não se diferencia da sala (de estar): as
-~as de sociabilidade autorizam a fazer as refeições no mesmo espaço onde "se recebe". Agora,
ma rearrumação, é de bon ton sentar-se na cozinha para fazer as refeições. Os agentes da casa de
:::ma me confirmaram, efetivamente, essa mudança na concepção do espaço interior da casa no
airro # 1. E as novas casas construí das levam essa marca.

_. Afrânio Garcia (1983) estudou a relação casa e trabalho na Zona da Mata, Estado de Pernambuco.
-o decorrer das numerosas conversas que tivemos, ele efetuou comigo uma releitura de seu próprio
122
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

trabalho sobre a disposição do espaço interior da casa na zona estudada. Há, segundo Garcia, um
imperativo simbólico (e não uma impossibilidade técnica) que leva os agentes a organizar o espaço
interior em torno de oposições estruturais articuladas numa concepção de mundo. Há, certamente,
variações técnicas na construção das casas de acordo com a região, mas a matriz simbólica permanece
a mesma. Na construção da casa, os agentes se apropriam de um universo e reinventam o mundo
para si: a organização e os usos dos espaços interiores da casa respondem a um arbitrário cultural.
Como Bourdieu (1977) observou, os espaços interiores da casa só ganham sentido através das
práticas particulares.

13. Os crentes penduram aí "a cruz sagrada" ou a cópia de um Salmo (os Salmos, por ordem de
frequencia, 91, 21, 23, 24 são os mais observados). O importante é que por esta guerra dos invisíveis
a casa esteja protegida.

14. Em minha amostra, 64% das casas têm o seu banheiro integrado à casa; 21% têm seu banheiro
no quintal, onde os espaços para se banhar são claramente separados dos dispostos para o banheiro;
12% usam fossas cavadas no fundo do quintal.

15. De fato, todos os bairros populares em Cachoeira, e das outras cidades do Recôncavo tais como
São Félix, Muritiba e Santo Amaro, situam-se no limite das zonas francamente urbanizadas e as
_ andes áreas de vegetação densa que anunciam o rural, trata-se de uma fronteira entre a ordem
propriarnente social e a ordem propriamente natural.

6. Em princípio, todo mundo, exceto as crianças, adoraria ter sua própria casa, entendida aqui
corno sonho de consumo comum aos agentes oriundos de não importa qual camada social. Essa
déia de casa individual se revela nos projetos individuais dos agentes, construídos em torno da idéia
~e ascensão social. Mas os constrangimentos sócio-econômicos levam muito frequentemente ao
.racasso a grande maioria das opções individuais .

. . . Por falta de tempo e de meios, eu não pude prosseguir com a investigação até chegar à história
:essa plantation - que transformou-se em fábrica - em relação com a das transformações no seio
:os grupos familiares que lá trabalhavam. Um empreendimento nesse sentido esclareceria muitos
, spectos sobre a vida familiar contemporânea entre os negros na região.

: 8. Eu tentei apresentar aqui, sob uma forma mensurável, a diferença nas cotas de participação na
casa de Dona Conceição. A importância dessa empresa encontra-se na possibilidade que ela oferece
:-ara estudar-se as relações de poder no seio da casa. É porque a noção de cooperação tal como
::efinida nesse texto não exclui em nada os conflitos que atravessam as casas no cotidiano. Para
:emonstrar as escalas dessa medida, eu pedi, no mínimo, à metade dos membros que participavam
za casa na época, para me descrever as formas de participação material de cada membro ou de cada
grupo de membros. Ao efetuar essa operação, o agente hierarquiza as posições na configuração
3miliar, ele discute a legitimidade ou não de tal ou tal posição que dominou na época - e assim
sagere as tensões atuais contra as quais as ideologias da unidade e da fraternidade tentam se afirmar;
::-:eavalia a dinâmica das redes domésticas, refaz a trajetória das subredes que se criam, se desfazem,
Soe recriam, se negociam, etc. através das relações no cotidiano. Baseado nas informações coletadas,
dou, com o acordo de meu interlocutor, um score indo de O (para um bebê que não produz mas
ccnsome bens variados - energia, tempo, dinheiro, etc) aIO.

9. Controlar o alimento é uma questão (enjeu) vital na casa dos pobres. É a conquista do "pão de
123
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

cada dia" que dá, em parte, o sentido da luta e da criatividade quotidianas. A manipulação do
alimento nas casas confere àquela ou àquele que tem os meios, uma posição de poder na configuração
doméstica. Em certos casos, ela prefigura a disposição da fila para um eventual deslocamento do
centro focal da casa. É o que ocorreu dez anos mais tarde com Dona Elma.

20. O mutirão, forma de cooperação entre os membros de um bairro, é aqui apropriado em sua
forma familiar. Certamente faz-se apelo aos vizinhos, aos técnicos da construção, pedreiros, mas o
núcleo dinamizador do mutirão é a atividade sobre uma base familiar. (Sobre a noção de família e de
parentesco ver capítulo Ill). O mutirão, forma concreta da troca nas classes populares e rurais, é
apropriado na circulação de bens de troca entre agentes familiares. O enjeu é o seguinte: aquele que
participa do mutirão, "compra" para si ou "investe" (em) seu direito de habitar uma posição na casa.
Esse direito conquistado através do mutirão é consolidado por outras formas de contribuição: dinheiro,
material de construção, o pagamento de um "técnico", o investimento mágico, etc.

_1. Minhas numerosas conversas com outras pessoas habitando a periferia de cidades tais como:
São Félix, Muritiba, Santo Amaro, Santiago do Iguape, Itaparica, Conceição da Feira, Belém e
mesmo nos três bairros populares de Salvador referidos por essa investigação, assim como as
observações efetuadas nesses lugares, convenceram-me que esse modelo de análise pode ser aplicado
a todo o Recôncavo da Bahia.

22. Sobre esses 30%, perto de 45% compraram os locais de vendedores ilegais, isto é, que não
ossuem títulos de propriedade legal. 20% também não têm seus documentos contratuais!

23. Por falta de lugares eu não poderei relatá-los aqui.

_4. Como mencionei a respeito da categoria empregada doméstica, o pedreiro trabalha teoricamente
na construção; no entanto diz-se pedreiro quando se tem vergonha do bou/ot que se faz. O primeiro
trvey que realizei sobre as atividades dos parentes dos entrevistados que trabalham em Salvador,
mostrou perto de 87% destes últimos (homens) como sendo pedreiros, e 80% das mulheres como
sendo babás.

_5. Em outros contextos etnográficos, Carol Stack estudou a importância das redes de solidariedade
a prática familiar num gueto urbano - Those you count on (Stack 1974:90-107).

_6. A palavra configuração (do latin configuratio) é definida como sendo um aspecto geral de um
conjunto de seres ou de coisas (Dicionário Litré); ele traduz aqui uma disposição relativa de posições
de pontos, em geometria) num conjunto (uma constelação, em astronomia), ou um sub-conjunto:
são as redes de relações que configuram as posições das casas. A idéia de correlação, de
.nterdependência, é aqui expressa na idéia de rede. Mas as relações que tecem uma rede entre os
agentes não são de igual densidade. As redes domésticas, e as configurações de casas que dela dão
conta, transformam-se na medida em que elas são dinamizadas pelos conflitos familiares, pelas
retraduções dos termos de parentesco, pelas criações de novas relações familiares, de novos
compromissos, fortificando certas relações, enfraquecendo outras, na casa e entre os agentes de
diversas casas de uma configuração. A idéia de configuração, tal como traduzida nesse texto, sugere
a de contradição, de conflitos de interesses individuais e coletivos, de ambivalência e de hierarquias.
_\5 redes aqui são compreendidas como as casas, elas não têm começo. Em função das necessidades
da análise, fizera-se um corte arbitrário (1960-1961), para situar o ponto de partida de uma casa (tal
corno a casa de Dona Conceição). A palavra configuração, tal como é empregada aqui, é usada no
124
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

esmo sentido usado por Norbert Elias em A Sociedade dos Indivíduos, Paris, Fayard, 1987.

- Para coletar essas informações, eu organizei sessões de encontro coletivo em diversos bairros e
sÓ,

em diversos lugares e circunstâncias diferentes (num bar, em torno de algumas cervejas ou tomando
.achaça, em encontros entre adeptos do Candomblé, com um grupo da pastoral dos jovens, entre
_ vens escolarizados, ou entre os membros de uma casa em sua quase totalidade). Os encontros,
::1Uitofrequentemente informais, partiam de diversos temas indo da percepção da pobreza, da idéia
':e classe social, da idéia de cor e de raça, de diferenças sociais, da "solidariedade familiar", e dos
.emas originados dos discursos dos próprios agentes em questão. Eu estimulei sobretudo a livre
ssociação de idéias, de modo a daí tirar os temas ou palavras a serem aprofundadas. Essa apreciação
== uma tradução, numa certa ordenação, da visão de mundo que se desenhava através dessas
.onversações.

~S. As representações sobre a família e o parentesco, são tratadas no capítulo IV

~o. A palavra cooperação é usada aqui, como indica a etnografia, em sua acepção local. É uma
categoria cultural. Eu estou, aliás, consciente dos problemas colocados por esse termo em seus usos
naliticos. O tema da cooperação foi objeto de muita discussão no decorrer dos anos 70 e 80 na
.eratura sobre as classes populares no Brasil (mas também no Caribe e na América Latina).
erguntava-se em que medida, traduzindo uma forma específica de solidariedade entre agentes
::.miliares pela idéia de cooperação, não se estava reificando a idéia de família como lugar de harmonia,
ma de cálculos egoístas, de política, de lutas de interesses, de ambições, de dominação, etc. O
a das estratégias de sobrevivência também lhe foi associado, ao de cooperação. De fato este
rimo, para alguns, traduzia a própria manifestação da unidade dos agentes familiares explorados
:..ante das vicissitudes e violências da vida cotidiana. Pelos temas de estratégia de sobrevivência e o
z.e cooperação, fez-se da família uma entidade antropomórfica, uma pessoa social dotada de volição,
ze "estratégia" comum, pela cooperação. Reconhecendo totalmente as dificuldades do emprego da
_'::":'avracooperação, eu me encontro no embaraço de usar também o conceito durkheiniano de
.idariedade, para traduzir uma manifestação da ação humana, que me parece não corresponder
5 sentidos específicos imputados pela sociologia durkheiniana a esse termo.

~ =Os dados coletados sobre a inter-regionalização das redes familiares, referem-se particularmente
Salvador - Rio - São Paulo. Não me é dado aqui tratar desse fenômeno.
125
ilia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

apítulo IIL~O sangue e a consideração ~representações ,eexperiências


o parentesco no Recôncavo.

Nenhuma criança teria sido posta no mundo sem que um homem, e só t<le,
assumisse a posição de pai sociológico, quer dizer, a de guardião e protetor, de
laço masculino entre a criança e o resto da sociedade.
[...] Um grupo constituído de urna mulher e seus filhos é urna entidade
legalmente incompleta.
Malinowski in L. Vallée, A propos de ia legitimité et de ia
Matrifocalité, 1965 : 164,166.

A unidade da estrutura a partir da qual se elabora um sistema de parentesco


é o grupo que denomino família elementar. Ele consiste em um homem, sua esposa
e seus filhos [... L A existência da família elementar cria três tipos especiais de
relações sociais, a relação entre pais e filhos, a relação entre os filhos de um mesmo
leito e a relação entre marido e mulher enquanto genitores [... l Os três tipos de
relação que existem na família elementar constituem o que denomino corno primeira
linha.
Radcliffe-Brown, Structure etfonction dans ia societé
primitive, 116-117.

Ao colocar em epígrafe fragmentos que traduzem posições tão comuns a autores tão diversos

corno Malinowski, Murdock e Radcliffe-Brown em antropologia, eu quis chamar a atenção para a

catriz comum que funda urna concepção tradicional, dominante nas ciências humanas, da família e

.- parentesco. A razão de ser destas epígrafes traduz-se ainda nas cargas de significado que os

zonceitos de família e de parentesco trazem consigo no Ocidente, assim como em todas as culturas.

Penetramos então no núcleo de urna concepção do espaço doméstico - do privado - corno lugar

-:rivilegiado das regras do afeto e dos valores familiares nos quais necessariamente se confina a

:àmília. Urna concepção que, por um lado, identifica a reprodução dos grupos como função essencial

ia família e, por outro, privilegia os laços genealógicos fazendo, por fim, do parentesco - corno

servou Schneider (1984: 121) - Q e.ÍXQ


biológico.dareprodução das sociedades humana S 1 _ Como
126
r-=n ília, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

:-ia acima mencionado no estudo da casa, os estudos consagrados à família e ao parentesco

zscrevem-se num circuito de comunicação onde os termos são previamente fixados. Esses termos

-;> análise, tanto pelos procedimentos inaugurados por Malinowski, quanto pelas definições do

0.~etoe temas privilegiados, repousam sobre o postulado da universalidade da família constituída

ce pais e filhos cujas funções seriam universais. Mesmo quando este postulado, tal como proposto

oor Murdock em De ia structure sociale, fora vivamente contestado por certos antropólogos, a

: .isca de uma definição da família, do household ou do parentesco, que possa responder às

zrversidades etnográficas, traduz essa obsessão ocidental, através das ciências humanas, em

z.eterminar as funções essenciais da família nas sociedades humanas. Definição ~ universalidade

·--ram- e ainda são - duas grandes questões que, desde o século passado, remetem aos postulados

~ndamentais que sustentam esses procedimentos.

Proponho-me, na introdução deste capítulo, a produzir uma breve reflexão avaliadora do

acto destes postulados implícitos à herança funcional-estruturalista na constituição do objeto

c.electual "família" ou "parentesco" em meio popular no Brasil, situando as produções intelectuais

contextos regionais do Caribe e da América Latina. Assumo, de fato, que só uma reflexão

_.....
mparativa - no contexto da América Latina e do Caribe - da produção teórico-metodológica

code conduzir-nos ao entendimento das linhas de força que sustentaram essas pesquisas. Num

crimeiro momento, discuto brevemente - o que supõe um corte arbitrário e parcial- os postulados

~damentais que fundam as pesquisas sobre a família e o parentesco. As idéias que exponho nesta

:iscussão não são novas. Encontrar-se-á nas discussões sublinhadas pelas críticas assíduas dos

.eóricos sociais feministas quase os mesmos presssupostos. Contudo, a minha reapropriação o é,

zma vez que consiste na recuperação de uma avaliação, tendo em vista posicionar-me em relação à

disciplina antropológica, reconstruindo os objetos intelectuais de conhecimento em função deste

posicionamento - o qual, corno todo posicionamento, não é neutro. Situo em seguida os impactos

dos postulados gerais sobre as tendências das pesquisas sobre a família e o parentesco em meio

popular na região. Um certo grau de generalidade permitiu-me passar das discussões locais (Brasil)
127
-=-amília,Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

:;;c regionais (América Latina, Caribe), de subtemas e formulações particulares ("a" família das classes

populares, "a" família negra) e específicas (a ordem hierárquica na América Latina - no Brasil-

~ DOCarib e) aos temas gerais (essencialismo, reificação da classe social e reificação da família pela

classe, continuidade na América Latina das pesquisas européias sobre a modernização das relaçãos

:.i.tas..
tradicionaia-s- parentesco - incompatibilidade das relações de parentesco e o crescimento da

:àrni1ianuclear, "nascida" da urbanização e da industrialização). Discuto, por fim, as novas rupturas

:.a pesquisa. sobre o parentesco e a família, assim como o contexto teórico no qual situo o

zesenvolvimento da minha pesquisa sobre a fanúlia e o parentesco no Recôncavo como representações

e como experiências.

1. O paradigma estruturalista funcionalista.

Nenhum domínio analítico constituiu-se como lugar por excelência de formulações e

zrticulações destes postulados fundamentais como o do parentesco. De início, as formulações

organianas da descendência [System of Consanguinity andAffinity ofthe Human Family (1871) e

-ncieru Society (1877)] constituíam-se no contexto da "ficção legal" que marcava a concepção

. oriana da sociedade 2 : o paradigma legalista - que modelaria as pesquisas sobre a família e o

~arentesco, encontrando sua plena reformulação nos trabalhos de Malinowski sobre este tema -

ensejou uma concepção jurídica da organização social. Este postulado legalista criou um enfoque

un biaisy - dificilmente transponivel- pelo qual as pesquisas estabeleceram um corte analítico

entre o domínio doméstico e o jurídico-político, ou, para retomar o teórico mais recente desta

::icotomia, Meyer Fortes, entre a amity, domínio resguardado das vicissitudes da política e das leis

':0 mercado e das determinações históricas, lugar do exercício legítimo da sexualidade e da educação

ias crianças 3, e a polity,. domínio. do. exercício, das.leis. do mercado.ida. política, participante dos

?fOCeSSOS
de mudanças históricas (Fortes 1958; 1969; 1978). De fato, este biais legalista diz tanto
128
ilia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

soare as dicotomias que instaura e alimenta, quanto sobre os modos de operação que efetua, em

_. sta da classificação das sociedades clássicas como tendo uma organização social baseada

ssencialmente sobre o sangue e o parentesco, e as sociedades modernas, industrializadas, cujo

srema jurídico-político, que funda seu modo de organização social, repousa sobre o solo e sobre o

Estado. Esta oposição é significativa para entender a eficácia e as conseqüências do exercício do

ais legalista, pois. que toda a antropologia clássica do fim do século XIX até a primeira metade

cesre século foi elaborada dentro de uma perspectiva de apreensão do "Outro" como inversão das

ciedades ocidentais. A este respeito, a invenção da sociedade primitiva (Kupper, 1988) serviu

. o mais para construir um desafio novo para uma antropologia atual do que para levar a termo

projeto da antropologia positivista, o qual consistia em resgatar as leis universais que governam as

zriedades das práticas culturais entre os grupos humanos.

A busca de uma imagem invertida de "si" nas sociedades diversas, constitutiva do juridismo

antropologia da família e do parentesco, acabou levando em direção à elaboração de modelos

- sticados de análise que, tomados literalmente, serviram mais como entraves à própria pesquisa

que como instrumentos decisivos para o projeto analítico comparativo da antropologia. Desde

~~is Henry Morgan a antropologia do parentesco tomou para si o estudo das terminologias em

ta do entendimento dos sistemas terminológicos que, por seu turno, conduziriam-na à compreensão

pleta das formas de organização social. Um segundo postulado subjazia a este procedimento:

ssumia-se que era possível responder a certas questões fundamentais concernentes às formas

imitivas de organização social, a partir do estudo dos termos de designação do parentesco efetivos

grupo social. A coleta paciente dos kin terms deveria permitir à antropologia avançar no seu

-bicioso projeto comparativo e fazer formulações gerais das regras de descendência, do casamento

_ ca residência. Morgan legou à pesquisa uma herança fílológica da qual os antropólogos apropriaram-

=-. reformulando-a e sistematizando uma álgebra do parentesco, atada aos modelos matemáticos ao

. onto de transformar o parentesco em eixo vertebral da antropologia. Com o legado filológico, a

eoria da descendência podia consagrar-se aos conteúdos e ao funcionamento das relações de


129
- tilia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

~~ente&CQ>-
dando lugar a imponentes monografias etnográficas sobre os grupos de descendência e

zonfirmando, aos olhos dos pesquisadores, as relações entre organização social, linhagens, segmentos,

;:upos de residência e redes de parentesco.

Se o valor destas monografias etnográficas foi questionado; primeiro por Malinowski

~930: 19-29), e em seguida por Leach (1961), não foi por romperem com os postulados fundamentais

_....
e as sustentava. O próprio Malinowski sistematizou em suas pesquisas uma visão explícita da

2milia (Yanagisako, 1979: 161-205) que não é outra coisa senão a expressão das próprias categorias

_:llturais dominantes de sua sociedade. O verdadeiro deslocamento metodológico e teórico que

_é,i-Strauss operou no discurso clássico sobre o parentesco não colocou tampouco em questão

es postulados: o projeto analítico de Lévi-Strauss tinha por pressuposto a necessidade de pensar

.:.S estruturas profundas das relações de parentesco. A partir deste projeto era possível pensar a

rzptura com a tradição funcionalista, fazendo um deslocamento que consiste na passagem do estudo

:.as funções e dos conteúdos do parentesco, ao do inconsciente das estruturas dessas relações. A

esta primeira ruptura correspondia uma segunda: a de dar uma maior atenção à aliança, fazendo das

gnificações do casamento e da aliança o centro de sua teoria (Lévi-Strauss, 1949). Se é verdade

.':le reconheceu-se o interesse do projeto lévi-straussiano em buscar os sentidos profundos das

estruturas para delas resgatar o modo universal de funcionamento do Espírito Humano, é também

"erdade que a.abordagem lévi-straussiana.não implodiu.as.oposições público/privado correntes ~as

:-_squisas sobre família e parentesco (ver Weiner, 1992, para uma discussão sobre as implicações da

zoncepção da troca na teoria da aliança em Lévi-Strauss).

Falar de biais legalista para dizer a respeito da marca da tradição de pesquisa antropológica

sobre a família. QUQ parentesco; é indicar a ponta do iceberg do eterno etnocentrismo por muito

tempo dissimulado sob as aparências do universal. De fato, durante mais de um século, o discurso

zntropológico não fez mais do que construir e reconstruir objetos dignos de análise, definir e redefinir

os termos de análise desses objetos naturalizando, a respeito , definições e ficções analíticas que,

paradoxalmente; deveriam constituir o objeto de questionamento e de desconstrução teórica. A


130
Familta, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

.orça das heranças legadas pelos discursos suspeitos da antropologia clássica instalou confortavelmente

um sistema de disposições" que conduziu a fazer, do objeto a ser explicado, o principio de sua

explicação. O biais legalista articula uma constelação de objetos que é de fato uma constelação de

representações: a família, o privado, o público, o parentesco, etc. De Morgan até os questionamentos

recentes dos teóricos da prática, d.os proponentes da história social e dos feministas, aos quais

oltarei, o conceito de família operou no discurso ao mesm.o tempo corno norma cultural e guia

analítico Àfamilia são ass.oáacl.aRasmaÍRimediatas.r.epresentaçÕ..es~pres.en1ada&com.o naturais, e

são, de fato, come toda.representação, construct{).s-sóciü=culturais._À-noçfuL~par.entesco são

zssociadas construções genealógicas que proclamam claramente aquilo que o fato biológico

representa, como simbolo e como veículo de legitimação, no universo de parentesco do qual o

squisador.é.proveniente Às categorias de S..eXQ


são associados papéis construidos, na literatura,

_orno sendo baseados sobre um fato primordial: a diferença biológica entre .ossexos. A naturalização

:2 família, das categorias de sexo, dos papéis sexuais, da descendência biológica, da oposição público/

c=-Iyad.o,a visão positivista e jurídica da organização social, assim como a oposição que ela sustenta

e sociedade com organização baseada no solo e no Estado, versus sociedade c.om organização

seada no sangue e no parentesco, e ainda, a construção dos sub-domínios de estudo em função

zesta naturalização, participam destes postulados fundamentais; postulados suficientemente evidentes

_.mi serem discretos, e suficientemente discretos para serem naturalizados e passarem despercebidos.

E :.od.oesse discurso, estruturado num edificio conceitual aparentemente inabalável, formulado no

complexo teórico-metodológico positivista e neo-positivista do estruturo-funcionalismo.

É à luz desta concepção que devem ser lidos os estatutos "da" família e "do" parentesco nas

~des teorias construídas em torno do objeto. Compreende-se então porque torna-se corrente

Ije em dia fazer do questionamento - para não dizer da contestação - o ponto de partida de toda

.••álise que deseja situar-se em ruptura com esta concepção. Ruptura necessária, sem a qual é

•.....•
possível apreender os sentidos implícitos dos procedimentos correntes que postulam o estatuto

znômico" das organizações familiares não-ocidentais ou periféricas à "norma nuclear".


131
Famllia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

oparadigma funcionalista estruturalista e as pesquisas sobre afamília das classes populares no


Caribe e na América Latina.

Ahistória da pesquisa antropológica/sociológica sobre a família e o parentesco das classes

populares no Caribe e na América Latina diz mais a respeito dos defensores deste discurso do que

Apesar- d€ sua-aparição r~lati-vatIWBt€tardia4,


sobre e-objeto- Ge-nstruídf>.; OS- estudos- soNe a família

~o parentesco em sociedades que não podem ajustar-se ao modelo clássico de sociedade construída

como objeto pela antropologia clássica (as sociedades caribenhas) ou que tampouco são

::i"olongamentos imediatos das sociedades européias (as sociedades latino-americanas) foram

.aaugurados 1) na continuidade das pesquisas sobre o problema da assimilação dos negros na

sociedade norte-americana, com ênfase principalmente no fato biológico primordial que o torna

couco ou nada adaptável à sociedade moderna - donde a problemática da família negra; 2) na

zontinuidade das pesquisas sobre a passagem, na Europa, da sociedade rural; dita tradicional, à

sociedade moderna industrial- donde a problemática da família das classes populares. No fundo,

.;;:duas referências supra citadas constituem... sustentando o mesmo corpo de problemática teórica:

da erosão dos laços de parentesco face à modernização. A elaboração da discussão teórica

zonstitutiva da construção do objeto família, seja na primeira ou na segunda referência, formulava-

_ç principalmente em torno desta preocupação: qual o fato primordial (cultura rural ou folclorizada,

traduzida nas formas de relações classificadas como tradicionais; fato biológico traduzido na

especificidade cultural- cultura afro-americana - expressaq nas formas de relações não-modernas)

_e fundam as relações tradicionaia.incompatíveis com o advento e o desenvolvimento da sociedade

-ooerna capitalista, nas relações impessoais e competitivas. A tese central, contextualizada em seus

respectivos lugares, aglutinava, em sua elaboração, formulações em torno de temas específicos de

. scussão: no caso de discussões sobre a família negra nos Estados Unidos (antes de tomar o Caribe

_'::illlO laboratório de experimentação) as formulações giravam em torno da tese da tabula rasa de

7:az:ier (1939) e da tese da herança negra ou da reinterpretação cultural de Herskovits (1941t

Szae-se que "a problemática negra" teve principalmente por efeito a constituição de uma antropologia
132
~::mzília,Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

gional dita afro-americana, cuja expressão caribenha conduziria ao estudo das relações de parentesco

,= de família entre os caribenhos - negros - a partir da seguinte questão: quais são os fatores

econômicos que contribuíram na desorganização da família negra desde a sociedade de plantations

zré a sociedade moderna? ou ainda, qual é a causa central responsável pela incapacidade do negro de

:::-oduzir uma organização familiar normal? A família negra das Américas foi construída no espaço

ca carência, carência de estabilidade, carência do pai, carência de legitimidade, da ano mia e a carência

ce uma reação adaptativa ao ambiente sócio-econômico - tudo isto sintetizado no muito original

esquema conceitual analítico da "matrifocalidade" e da "família consanguínea". No quadro das

:iscussões latino-americanas, as formulações retomaram as problemáticas européias da passagem

zas relações tradicionais, pensadas como expressões necessárias de um modo de produção - por

zxcmplo;a análise das relações de parentesco na sociedade rural era produzida em tomo dos conceitos

ce herança e de linha de transmissão, de unidade de produção e de consumo familiar ..., expressão

=-0 sistema agrícola; o contexto latino-americano (ideológico e sociológico) conduziu os pesquisadores

::~ovindos destas sociedades em direção a uma concepção utilitarista das relações familiares ou de

::arentesco entre. as classes pobres. Este complexo processo pode ser analiticamente apreendido

como o seguinte: 1) uma primeira proposição, baseada sobre uma representação da nação e da

sociedade nacional (ver.a nota anterior), põe a sociedade pós-escravista como uma sociedade de

.tasse e, nas relações de classes, os descendentes de negros escravizados são diluídos nesta entidade

monolítica e.reificada chamada "classes populares" para alguns; ou "classes operárias" para outros;

-) uma construção das relações familiares e de parentesco nas classes populares baseadas sobre uma

concepção miserabilista destas últimas: consequências das relações de produção na socieadade de

classes, os indivíduos das classes populares são pensados - a exemplo dos negros, assimilados ... às

classes populares - como corpos adaptativos, mais vítimas da cultura dominante do que propriamente

agentes, produtores de cultura, e suas famílias como lugares de desorganização, de anomia e de

carência; 3) o aparelho conceitual montado para estudar as transformações das relações familiares

uma economia de mercado e num sistema de relações baseadas, daí por diante, em normas impessoais
133
:::-amília,Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

;: universais, traduzia bem a tese européia da incompatibilidade das relações de parentesco com a

onomia moderna e a consolidação crescente da família nuclear parsoniana. Como os agentes das

ses populares não tinham os meios de viver a norma dominante, as pesquisas orientavam-se rio

sentido da identificação e do estudo das estratégias adaptativas, da anomia "da"família trabalhadora;

:0<10 este aparelho é montado em torno de uma proposição implícita: pensar as classes populares

.tino-americanas na continuidade com os estudos europeus sobre suas próprias classes populares,

~'Jer dizer; em sua. relação com a produção e como lugar de reprodução da força de trabalho na

sociedade capitalista. Não é portanto um acaso, o fato dos pesquisadores latino-americanos, nos

contextos teóricos e sócio-ideológicos aos quais identificavam-se, terem recorrido aos conceitos

e.aborados pela antropologia regional acima mencionada (matrifocalidade, ilegitimidade, anomia,

zc.) para pensar as.relações. familiares ou de parentesco,..na classe trabalhadora.

O marcante e tadio crescimento no interesse pelo estudo da fanúlia e do parentesco nas

c.asses populares, no decorrer do final dos anos 60 e da década de 70,. manifestou-se em toda a

-smérica Latina - e o Brasil não foi excessão à regra - e Caribe. Este último quadro regional (o

aribe), como sublinhei na. introdução., tem um estatuto particular na dinâmica da produção dos

ziscursos sobre a fanúlia e o parentesco, pois constituiu o laboratório de pesquisa por excelência no

rual foram montados e verificados os aparelhos conceituais e as abordagens próprias a esta

opologia regional, de inspiração anglo-saxã, denominada "afro-americana", o que a grande maioria

:estas. pesquisas têm em comum é a tentação constante,. por um lado; de pensar as organizaç~es

2miliares destes espaços a partir de uma definição "da" fanúlia, de modo que estas são referidas

';..~nasno residual e na anomia. Sabe-se o quanto, no Caribe, esta tentação levou à transposição do

cebate clássico das teorias do parentesco em torno da descendência (Fortes, 1958; R. T. Smith,

956,.1973) e da aliança (Clarke,.1957 ,.M. G. Smith,..1961,J962) no quadro das discuss.ões sobre as

rráticas familiares dos negros do Caribe (Black West lndies Family Structure) a partir das quais as

.entativas de teorização da família negra conduziram à reificação de um estereótipo sinal distintivo

-~a"fanúlia caribenha: a matrifocalidade, a fanúlia consangüínea. Reificação de um estereótipo pela


134
- ília, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

-:.:,.-.::a - pois que tratava-se da família negra, cujo dispositivo da norma nuclear, até chegar a representar

mente um mínimo biológico, entre a natureza e a cultura, [a família consangüínea mãe-filhos,

Solien de Gonzales, 1965,-1971)J- mas também reificação pela classe, pois que depois do famoso

lTvey de Kunstadter (1964), assistiu-se ao processo de "desracialização" do conceito de

carrifocalidade para ser universalizado como categoria analítica eficaz, a dar conta das famílias sem

e da promiscuidade familiar das periferias da grandes cidades: "a" família das classes populares.

O ponto teórico sobre o qual eu insisto aqui consiste no fato que, na América Latina, a

recuperação do conceito de matrifocalidade produziu-se caindo numa segunda tentação - também

cominame no Caribe: a de reduzir a vida familiar a uma simples conseqüência dos sistemas sócio-

eccnômicos em curso nestas sociedades. Seja no estudo "da"família negra ou no "da" família das

ses populares (ou classes trabalhadoras), "da" família rural; "da" família.operária, é o paradigma

estruturo-funcional que fornece os meios de pensar a organização familiar destes espaços através

zcs temas da produção/consumo, da adaptação, das estratégias de sobrevivência. Os pressupostos

__e sustentavam esses procedimentos traduziam-se na pesquisa do impacto "da modernização"

obre as formas tradicionais de organização social e de modos de vida, ou na pesquisa do potencial

z.e adaptabilidade dos grupos portadores de um sinal distintivo primordial a partir do qual sua cultura

= pensada - os negros - numa sociedade de direito, de competição e de mercado, regida por

-~as universais. Esses pressupostos tiveram efeitos determinantes sobre as práticas de pesquisa

_~r eles engendradas, uma vez que partia-se dos estudos sociológicos/antropológicos sobre as

::ansformações industriais na Europa, para pensar o fenômeno designado sob o termo da modernização

-- América Latina, como se nestes países tivesse havido meramente uma aclimatação, sob os trópicos,

--5 modelos europeus, cuja continuidade se confirmaria pela similitude das respostas adaptadas por

essas sociedades face à industrialização crescente. Estudava-se como a industrialização acelerada

a por conseqüência, dentro da mesma lógica em curso na Europa, a transformação da organização

social em estrutura de classe e a erosão dos laços tradicionais, principalmente os de parentesco ..

No entanto, a apropriação dos conceitos importados para pensar a alteridade local nas
135
éámília, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

sociedades latino-americanas obedece a imperativos empírico-teóricos que, evidentemente, variam

ce uma sociedade a outra na região. No Brasil, como sublinhei na introdução, a construção do

- ojeto "família trabalhadora" ou "família operária" foi feita a partir de uma ruptura empírico-teórica

ignificativa com a tradição de pesquisa nacional inaugurada, entre outros, por Gilberto Freyre''.

\:"altou postular, principalmente sobre a base dos resultados provenientes das pesquisas demo gráficas

= da história social, a incapacidade do quadro-modelo "famílià patriarcal", instituído por Freyre

-:977 (1933)], para dar conta da sociedade brasileira como um todo, em suas variações e

esrratificações. Contudo, as linhas de pesquisa desenvolvidas a partir desta ruptura, dominadas pelo

caradigma estruturo-funcional, não escaparam à tentação de pensar as classes populares na

.orrtinuidade das pesquisas européias sobre as respostas de suas classes populares à "modernização",

.~- mesmo modo que as pesquisas caribenhas sobre a família foram uma continuidade dos estudos

preendidos sobre os negros nos Estados Unidos (Price, 1984). Nesta abordagem etnocentrada,

"ancamente econômica e utilitarista da vida familiar das classes populares, doublée de uma concepção

zaminante que pressupõe a negação dos usos diferenciados dos recursos sociais e simbólicos - ~ue

rcnstróem o domínio da família e do parentesco nessas classes - em beneficio do primado da

sse, o recurso aos aparelhos conceituais produzidos para pensar "a desordem das famílias negras",

....incipalmente no Caribe, era evidente, mesmo quando, não se querendo pensar os negros no

Brasil, pensava-se "a" classe tFabalhado-ra 7.

A prática das transferências. de aparelhos conceituais de um campo de elaboração empírico-

rico a um outro e os usos que lhes são feitos, remetem a constantes avaliações da natureza do

_;eto q.ue se quer apreender,. do regime do discurso q.ue o informa e de seus estatutos neste regime.

desenvolvimento desta breve avaliação sobre o objeto "família pobre"/ "família negra", sobre o

ily discourse e sobre seus estatutos. neste último entre os latino-americanos. e os caribenhos nos

duz:

1) em direção a uma constante avaliação dos postulados fundamentais da herança estruturo-

cional pelos quais construímos o objeto família ou parentesco, e graças aos quais mediatizamos
136
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

- cientificamente - nossos preconceitos e nossos biais etnocêntricos de classe. Sabe-se que as

zaregorias analíticas que usamos para dividir, reagrupar e classificar (e portanto para desclassificar,

aierarquizar) são ficções analíticas.categorias arbitrárias. Noções. como a de.família; de parentesco,

ce casa, etc., são ao mesmo tempo categorias culturais e analíticas. Elas carregam consigo uma

cosmologia, uma concepção. Uma concepção dominante, solidamente enraizada na antropolo?ia

clássica - "digna filha do Ocidente", para parodiar Verdon (1992) - que coloca a aliança, a filiação

.,.a residência como condições essenciais da exis.tência da família. Esta representação social expressa

500bo conceito de "família" transformou-se pouco a pouco numa coisa natural, cuja estrutura,

::aracterísticas e funções seriam universais (Malinowski, 1913~ 1930: 19-29). Falamos de família

corno falamos de uma coisa. Mas esquecemos que esta coisa é uma experiência expressa através de

..:.mconceito bas.eado numa constelação de palavras- casa,..morada,.lar,..casamento,..residência,. etc;

era é uma representação coletiva, um objeto social. Ora, sabemos que os objetos sociais são meios

Si aças aos quais informamos nossa experiência.

A idéia de família não é neutra. Ela sugere um conjunto de atitudes, de comportamentos, de

sentimentos e de representações; ela constrói um interior e um exterior, um domínio público e um

crivado (Fortes, 1958; 1969; 1978); ela veicula um olhar, uma vista do interior e do exterior: ela é

isão~ ela segmenta o mundo que designa como participante do exterior, ela o classifica e propõe

categorias para a apreensão desta classificação: ela é princípio classificatório; ela constrói relações

entre os, segmentos que produziu; ela exclui e inclui; organiza e reorganiza: ela é. construção; ela se

stala na estrutura sócio-econômica que a tornou historicamente possível e edifica sua legitimação

o próprio discurso que mantém sobre si mesma: ela é arbitrário social; ela organiza a estrutura

ental de seus agentes conforme a estrutura social que lhes é antecedente, ela constrói em sua

bjetividade as. normas. do jogo de obrigações, restrições. e prescrições: ela é construção s.ocial e

cultural.

2) Esta discussão sobre a herança estruturo-funcional na construção teórica do objeto família

li parentesco na América Latina - uma vez que meu propósito aqui consiste em não
137
í1ia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

:c~contextualizar as pesquisas sobre a família e o parentesco no Brasil- e no Caribe, leva-nos à

reafirmar a importância da especificidade das sociedades latino-americanas e caribenhas em relação

es sociedades ocidentais. Pensar "a" família operária. (ou trabalhadora ou das classes populares) em

3:1acontinuidade cultural com a família das sociedades européias é esquecer, ao mesmo tempo, o

._e faz a particularidade das sociedades latino-americanas: um sistema social hierarquizado cuja

':eologia da raça funda e justifica, pelos princípios da economia das plantations, um lugar social e

~ral especifico para os autóctones e os descendentes de africanos escravizados. Esta hierarquia

storicamente constituída, assim como as ideologias que a alimentam, informa todas as dimensões

- - social. e do cultural cristalizando como variações de um mesmo modelo, do Carihe. à América

_atina. A variação brasileira reside na continuidade sócio-cultural da instituição da hierarquia e da

7mília como princípios estruturantes da diferença e da produção, estruturas elaboradas na sociedade

~;antocrática.

O princípio hierárquico tal como historicamente produzido nas sociedades latino-americanas

- portanto na sociedade brasileira - informou a organização da produção e da própria sociedade

ce uma particularidade tal que ela funda em si a especificidade do sentido sócio-cultural das relações

cos agentes econômicos com o trabalho. Os valores que fundamentaram a produção na Europa e,

em conseqüência, as relações das classes populares com o trabalho, não foram os mesmos que

imdamentaram a produção na América Latina e não podem ser tomados como referência última

. ara situar a família desses lugares sociais e "suas estratégias de adaptação" em relação, à

modernização. Como observou Martinez-Allier (Verena Stolke): the existence of slavery produced

J social order wich assigned to the coloured people, wheter slave or free, the lowest rank in the

ocial hierarchy (1974: 124). Essa hierarquia perdurou através de mecanismos sócio-econômicos

profundamente ancorados.desde as sociedades de plantations. No Brasil, essa continuidade cultural

- para parafrasear Lee Drummond (1980), a propósito da importância hierárquica latino-americana

e caribenha na produção das representações da diferença nos sistemas sociais dessas regiões - se

expressa nos princípios fundadores da família e do patriarcalismo. É a dimensão fundamental da


138
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

sociedade relacional estudada por DaMatta (1983 ~1985). Não restituir a importância da experiência

aieràrquica no estudo da família dos pobres na sociedade brasileira contemporânea, conduz a uma

falha parcial do objeto que se quer construir, assim como de sua restituição em sua plena significação .

.\ história das classes populares brasileiras, a história das adaptações dessas famílias à modernização,

não foi - como sabemos - a mesma das famílias pobres da França, da Alemanha ou da Inglaterra.

O regime de produção dos pobres nessas sociedades, bem como o lugar e a posição destes na

:rrodução7-não foram produzidos do mesmo modo que nas.nossas, Assim como os.usos que. deles se

:az.

3) Essa discussão remete-nos ainda ao biais etnocêntrico de classe que impregna nossas

escolhas teóricas e metodológicas. Reduzindo a vida familiar dos pobres a uma simples conseqüência

zos sistemas socio-econômicos em curso nestas. sociedades - seja no estudo "da" família negra, ou

cos "da" família de classes populares (ou classes trabalhadoras), "da" família rural, "da" família

_perária - as pesquisas fazem dos indivíduos seres carentes, situando-os num mundo simbólico

-;serável, no qual toda prática cultural não seria senão o efeito dos modelos dominantes.

Essencialismo de classe, que deixa claro nossas posições subjetivas em relação à humanidade dos

zgentes oriundos deste espaço social e que lhes nega a capacidade de produzir a diferença num

espaço estruturado pelo seu próprio paradigma. Essencialismo teórico que não passa de um

reducionismo e de uma reificação da idéia de classe social, pensada como um bloco monolítico onde

zs estratégias dos agentes construir-se-iam unicamente em resposta às necessidades da produçãç e

co consumo. Economismo perverso, pois que trata-se, no fundo, de uma postura ideológica,

zcncomitante à ideologia da democracia racial - no Brasil e no resto da América Latina - que

costula o primado das relações de classe - consolidadas em permanência - cujas virtudes, pela

zassificaçâo do consumo e pela competição do mercado de trabalho; consistiriam em apa ar


9
,~70gressivamente as diferenças sócio-étnicas - historicamente construí das e socialmente

ceproduzidas e consolidadas em permanência.

A ordem social hierárquica das sociedades latino-americanas - inclusive da brasileira, o


139
Famiii a, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

caráter arbitrário de nossas categorias analíticas para produzir e pensar a alteridade local, o biais

emocêntrico de classe que informa nossos métodos, não constituem em nada uma novidade, muito

relo contrário. Em todos os manuais das ditas ciências humanas socilita-se a atenção do iniciado

~ara a importância crucial daquilo que constitui(em) a(s) particularidade(s) - regional, nacional,

emica, etc. de cada campo" assim como para o caráter convencional das classificações e das palavras

zstitufdas para designá-Ias, ou para "as vigilâncias epistemológicas" (Bachelard) na produção dos

ziétodos e dos discursos. A pertinência da evocação destes pontos nesta discussão está no fato

-esmo de serem conhecidos de todos e de não constituírem motivo de uma antropologia reflexiva

exercitada p.ela maioria dos pesquisadores latino-americanos e caribenhos; estes pontos constituem

que é comum chamar-se atualmente os habitus sócio-intelectuais.

meios de rupturas no estudo da família e do parentesco em meio popular.

Enquanto pensava-se a experiência da vida familiar e do parentesco a partir de uma abordagem

~rmal,. tal como sistematizada e aperfeiçoada desde os trabalhos de Malinowski, enquanto os biais

cositivista e legalista continuavam a construir a classificação, a priori, dos domínios do privado e do

_ublico e, por isto, continuavam a construir as categorias de sexo dissociando-as das relações de

:arentesco (Collier e Yanagisako, 1987 Yanagisako, 1987), enquanto as definições monolíticas

znpunham-se como prévias a toda abordagem do fato do parentesco, a antropologia estava condenada

_ produzir modelos cuja lógica distanciava-se cada vez mais da lógica da prática, como constatara

Bourdieu, em sua severa - mas justa - crítica ao juridismo e ao positivismo nos estudos sobre

família e parentesco (1977; 1980).

De fato;a decadência do paradigma estruturo-funcional já se anunciava desde o deslocamento

.eórico-metodológico provocado por Lévi-Strauss com Les structures elementaires de Ia parenté

.949) e seus estudos sobre as estruturas profundas dos mitos e da consciência (1961), mas as
140
ilia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

rmeiras fissuras que minaram as bases do edificio estruturo-funcionalista, em seus postulados

- adamentais, foram produzidos nos anos 60 e 70 (Leach, 1961; Needham, 1971; Schneider, 1968;

-:-2; 1976), quer dizer, no momento em que as pesquisas sobre a familia das classes populares na

-..:néricaLatina - no Brasil - alcançavam seu ponto culminante. A antropologia caribenha ainda

~zia seu balanço sobre o que seria "o" caráter definitivo da família negra (família consangüínea ou

niJia matrifocal), enquanto na América Latina era corrente utilizar, sem reticências, estes últimos

ceitos na análise dos grupos familiares populares, em seus lugares na produção e como unidade

c e reprodução da força do trabalho (no Brasil, entre outros, Moraes, 1980; Saffiotti, 1976;

'oortmann, 1987 [19751; uma avaliação desta bibliografia pode ser encontrada em Stolke (1980).

- criticas provenientes da démarche de Schneider, renovadas em seus trabalhos ulteriores (Schneider,

rrefácio, 1980; 1984), orientaram os olhares dos pesquisadores sobre o parentesco como sistema de

bolos e significados, denunciando o caráter inoperante do formalismo metodológico tradicional.

análise cultural de inspiração parsoniana - Schneider e Geertz foram alunos de T. Parsons -

_~r ele proposta, não parte de uma definição a priori do parentesco, mas, ao contrário, contra as

:-;-emissas bio-genéticas baseadas sobre a decifração genealógica, propostas por Morgan e seus

seguidores; contra o formalismo teórico-metodológico malinowskiano, ele propõe construir

aliticamente o domínio do parentesco onde:

fone might], take it as a matter oj definition that the invariant points


of reference provided by the facts of sexual intercourse, conception, pregnancy
and parturition constitute the domaine of "kinship" (1972:37)_

Schneider, em seguida a Parsons (1951), estabeleceu a distinção entre sistemas culturais,

sistemas sociais e sistemas psicológicos. A cultura é aqui tomada como um sistema de símbolos e de

significados abstratos compreendidos e compartilhados pelos agentes de uma dada sociedade; estes

sistemas de símbolos são formulados pelas consciências individuais independentemente dos detalhes

da vida cotidiana. A cultura, segundo ele, é anterior e constitutiva da ação social; ela é contida nas

ormas em vigor numa sociedade; as quais, por sua vez, informam a cultura. Assim, ele analisa o
141
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

parentesco entre os norte-americanos destacando-o do sistema social" tratando-o como" apure

'evel of domaine ",onde a atenção sobre os estatutos, os papéis e as instituições mostra-se irrelevante

1968: 18). A despeito das reservas suscitadas. pelas formulações totalizantes de Schneider sobre o

:ato de que todos os norte-americanos, sem distinção de região, de raça, de classe, de sexo,

compartilhavam; no essencial, as mesmas significações do parentesco como símbolo: o sangue-,

enquanto substância biológica - e o casamento - enquanto código de conduta - (1968; 1972),

este autor abriu a via para um processo de desnaturalização do conceito de parentesco assim corno

para um deslocamento eurocentrado de sua definição biológica (1984). Bem entendido, as formulações

sehneiderianas devem ser situadas no quadro de sua própria definição de cultura, tal como elaborada

:-,rÍncipalmente em Parsons (1951), mas as discussões que elas destacaram, e as rupturas teorico-

etodológicas que provocaram, foram significativas na reorientação da pesquisa sobre a família ~ o

carentesco (Alexander, 1979; Collier e Yanagisako, 1987; 1984; Smith, 1984; 1986; Yanagisako,

~984~1987), considerados como um domínio que interpenetra outros domínios tais como a religião,

ender, a etnicidade, etc (Alexander, 1984; Collier e Yanagisako, 1987; Schneider, 1972; 1980;

984). A importância do trabalho de Schneider consiste na ruptura metodológica que provocou: .no

..:.sodas definições. A partir de seus trabalhos, ao menos na linha de análise cultural, tornara-se

.zapossivel impor às realidades uma definição a priori; para ele" o parentesco ou a família são categorias

zapostas, que contem em si mesmas seus próprios significados culturais, cuja tentativa de formalizar

.zihas precisas de definição não seria senão "chimera; an artifact of a bad theory" (1968: 119)~ é

erdade que a tentativa de romper a análise do parentesco com seus pressupostos biológicos é

-::mbémuma quimera, pois que as próprias definições culturais constróem suas categorias de percep~ão

=- de representação a partir das referências genealógicas. A análise cultural, em suas diversas versões,

'~[e debates interessantes sobre os esquemas analíticos e conceituais pelos quais pode-se melhor

zefinir o domínio do parentesco (ver mais adiante para o quadro analítico adotado neste capítulo).

Se a análise cultural.abriu vias de desnaturalização dQSconceitos analíticos; os,trabalhos 40s

mrropólogos/sociólogos feministas contribuíram amplamente para contextualizar a produção analítica


142
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

::para instituir a exigência de desnaturalização como ponto de partida das análises do parentesco e

:.a família. Este processo iniciou-se num contexto filosófico de soupçon dos modelos de classificação

::ue análise (contexto filosófico mediatizado nas ciências humanas pelos trabalhos de Bourdieu e de

- ucault), armados, em parte, pela teoria da prática, a qual produz uma crítica virulenta da postura

galista no estudo da família e do parentesco (Bloch, 1988: 19,.inspirado em Bourdieu, 1977:29).

- autores questionaram o fundamento da universalidade da distinção entre as categorias de sexo

enders, onipresente na sociologia das gender relations (Rapp, 1977:508» ou ainda, a maneira

zomo operou-se a divisão entre a esfera doméstica ( domestic domain ou amity ) e a esfera político-

ridica (jural domain oupolity) entre as sociedades (Rogers,.1975~Rosaldo,. 1980~ Yanagisako,

7), assim como a economia desta separação na produção dos sistemas de união entre os grupos

erarquicamente subordinados (Smith,.1987~ 1988)~por fim, as fronteiras analíticas entre as categorias

:~ sexo e as relações de parentesco - assim como o modo como constróem-se essas relações entre

_5 grupos sociais (Yanagisako,.1985;..1987).

A contribuição da história social de inspiração marxista, que consolidou as abordagens

·-~stas, culturais e construtivistas, permitiu também apreender o objeto parentesco ou família em

seas complexidades, suas ambivalências e suas contradições, assim como o processo de

cestionamento dos meios clássicos de pensar as relações de poder nos grupos de parentesco, a

_...nstituição da diferença e a designação hierarquizada dos espaços. sociais, e as relações entre

egorias de sexo (ver também a introdução e a conclusão deste trabalho). O exemplo mais recente

_ mais marcante foi apresentado por Goody (1990). Em seu livro, Goody desmistificou o exercício

:2 comparação, ou melhor, mostrou como as concepções culturais mediatizam a construção do

_'1fO no exercício da comparação (1990: 317,. 425),. mas também, como o parentesco constitui um

~.Jeo articulador das relações sociais, descontruindo assim as bases centrais que tradicionalmente

stentaram a visão ocidental do parentesco - os sistemas terminológicos, as regras de descend~ncia,

casamento e a residência (Goody, 1990:70,366).


143
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

o parentesco em seu contexto: a démarche adotada neste capítulo.

Assumo, como ponto de partida da análise, uma abordagem do parentesco como domínio

de relações sociais construídas a partir das concepções culturais que fixam os processos pelos quais

o indivíduo torna-se uma pessoa social. Como fiz na análise da categoria casa, não partirei de uma

efinição a priori do parentesco para abordar as relações construí das neste domínio. Adotei, de

referência, um esquema analítico que consiste na identificação das características que serviriam

para assinalar o-exercicie-das-relaçêes-que fahriGam-€St€~tIDoont€xtg...€toográ.fiW-€studad~ 8.

Esse esquema consiste em lançar pistas analíticas de maneira a melhor apreender as categorias

culturais pelas quais posso dar conta da contrução das relações designadas neste domínio.

Colocando a categoria casa como categoria cultural central na abordagem das relações da

experiência familiar dos negros nas cidades estudadas, afastei-me da tradição inter-geracional, corolária

:.as discussões entre a descendência e a filiação. Devo sublinhar o que nos traz essa démarche. A

'émarche desse capítulo deu primazia analítica à experiência intra-geracional entre os agentes, quer

5zer, às relações de siblingships - tais como construídas nas casas e nas configurações de casas

- como princípio determínante na organização das relações intra-geracionais (Bourdieu, 1977;

~-e1ly,1985~Needmam,. 1971 :3~Scheffler, 1991 :373). Assim, ela permitiu-nos localizar as relações

concretas e atuais entre os agentes inscritos no domínio do parentesco, insistindo sobre o uso das

~eologias culturais sobre a produção destas relações sociais neste contexto específico; essa démarche

cos permitiu levar em conta as relações entre agentes de mesma geração, que constituem o símbolo

r: oderoso na organização das relações em qualquer grupo social ou em qualquer sociedade (Kelly in

Kensinger, 1985:41-45). Trata-se de focalizar as relações em seus contextos, de estabelecer, segundo

Bourdieu, as relações circunscritas no domínio do parentesco, na prática cotidiana dos agentes,

comportamentos estratégicos informados pelos valores e pelas opções dominantes, mas

_•....
ntextualmente mediatizados, e orientados, em suas execuções, na direção dos valores e obj~tivos

almente definidos (1977:29; 1980; 1994).


144
Familia; Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Essas relações são diluídas na prática. O estudo da prática das relações de parentesco

recorre a uma antropologia da experiência, que leva em conta as contradições inerentes a essas

Játicas,..assim como seus paradoxos e ambivalências. As relações de troca inauguradas e mantidas

entre os agentes não fundam somente um circuito de comunicação entre um agente e outro, como o

__stentam as-te{}Fias-da tr0Ga- € da reciprocidade de 1.évi-Straus-s? Elas- fundam relações- de poder

alienáveis, que constituem o que Weiner (1992) designou como sendo "o paradoxo de reter ao

:oar", ou aquele do "presente envenenado" (Bailey, 1971; Raheja, 1988). Os agentes implicados

-essas relações participam na manutenção e na reprodução de uma certa ordem social, na luta de

controle dos diferentes tipos de recursos disponíveis e em curso em seu espaço sócio-cultural; eles

são criadores de sentido e de ordem. Aproprio-me da idéia de parentesco como chave da reprodução

social (Goody, 1990; Collier, 1987; Kel1y, 1993), intimamente incorporada na prática (Bourdieu,

977~ 1982). Penetrar o domínio do parentesco tal como ele se exerce na prática e naquilo que ele

-~-ela como prática, é penetrar um mundo de estratégias individuais, um domínio onde exercem-se

-=-'açõesde poder, nas quais as práticas se dão numa estrutura de lutas hegemônicas (nas casas, nas

_•...
nfigurações de casas) em suas ambivalências, contradições e paradoxos. Uma tal démarche conduz

~ abordar as relações de parentesco em seus contextos de desigualdade entre agentes, entre sexos e

zaregorias de sexos (Bloch, 1988; Collier e Yanagisako, 1987; Yanagisako, 1987; Weiner, 1992), e

_~,re os grupos hierarquizados. Fazendo isto, encontramo-nos a mergulhar em definições plurais e

::-agmentadas das práticas sociais vividas no domínio do parentesco. Uma fragmentação e uma

ltiplicação que se encontram, entretanto, unificadas nos pressupostos culturais que as sustentam.

As experiências de parentesco aqui estudadas desenvolvem-se em contextos sócio-econômicos

istentados por pressupostos culturais. Se admitimos que os termos família, parentesco, casa,

orada, etc., são representações pelas quais informamos nossas experiências enquanto membros de

grupo, participante de uma sociedade global, e pelas quais estas experiências se informam,

.ornam-se comunicáveis e inteligíveis àqueles com os quais partilhamos estas experiências, é porque

- palavras podem constituir categorias fundamentais pelas quais podemos dar conta das experiências
145
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

numanas, estabelecer relações entre essas experiências e os grupos, a comunidade e a classe que. as

vivenciam, sem que estas categorias se confundam com as experiências em si mesmas. Admitiremos

que uma antropologia/sociologia da experiência familiar deverá partir destes termos fundamentais

. ara tentar dar conta destas experiências. Esta etnografia parte da idéia de que os agentes, os

grupos, os povos, agem em função dos conhecimentos e crenças que têm de si mesmos, dos outros,

'" de seus ambientes. Este conjunto de representações de si e do mundo é traduzido na literatura

~e10 conceito de sistema, q.ue forma o conjunto de proposições inscritas na cultura (por exemplo,

Geertz, 1973) - alguns preferem ideologia (Schneider, 1968; 1969) na sociedade global. Por sua

'ez, as proposições são articuladas em torno de domínios específicos: elas constróem, por assim

éizer, os domínios (Schneider, 1968; 1984; mas também para uma reapropriação crítica de Schneider,

Alexander, 1984~Smith,-1984~ 1988~ Yanagisako, 1984~ 1987) - parentesco, nações, religiõ~s,

=:C. - e diferenciam estes últimos aos olhos daqueles que os vivenciam. Os grupos de proposições

e constróem e diferenciam os domínios são, em sua maioria, partilhados pela sociedade em sua

-otalidade; outros, unicamente por categorias ou grupos particulares; e outros, enfim, por indivíduos.

~sa antropologia das práticas humanas, circunscritas nesse "domínio de relações sociais" que é a

- cneriência familiar, ocupa-se em descobrir o sentido implícito dos termos fundamentais pelos

~:!ais estas práticas se informam; como parte e expressão da ação humana num determinado modo

ze produção.

Se admitimos que o estudo da cultura; dos sistemas de símbolos e sentidos que é, a

=::ropologia, é o estudo dos termos fundamentais pelos quais os agentes se vêem, se pensam e

-~nstróem seus modos de habitar o mundo, conceitos tais como família, parentesco, casa, etc, têm

eatido somente quando nos permitem dar conta dos sentidos profundos que carregam, em campos

ciais específicos e nas relações sociais q.ue implicam. Por esse esforço de restituição de sentidos,

os conduzidos à desnaturalizar seu próprio universo e os próprios sistemas de símbolos e sentidos

--5 quais é fabricado. Reconhecemos - com o construtivismo metodológico - que a família é

construção social e cultural, e questionamos, por esta afirmação, os lugares dos quais provêm
146
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

.3 nos quais são construí dos nossos aparelhos conceituais, para informar, cientificamente, a verdade

àmiliar) dos outros. Mas, para além do construtivismo social, falta-nos reconhecer os enjeux que

encerra a ideologia familiar nas..sociedades contemporâneas - no presente caso, na sociedade

orasileira - ao ponto de assistir a uma tentativa constante de obliteração nos discursos acadêmicos

sobre este objeto, da normalidade das práticas familiares que se constróem à margem da norma

:ominante. Nesse sentido, o princípio da família, como observou Bourdieu (1994), diz tanto sobre

que ele constitui (princípio constituinte). quanto sobre o que ele constrói (principio constituído).

Abordo a experiência familiar dos Negros no Recôncavo como um processo; como um conjunto de

:~áticas cujos termos centrais informam tanto sobre as relações e as práticas em curso nesse domínio

ce atividades humanas, quanto sobre as articulações destes próprios termos com os sistemas de

:IopoSÍções inscritos na cultura da sociedade global. Assumo a idéia de que esses pressupostos se

siruam num continuum cultural modelado desde a sociedade plantocrática (Drummond, 1980).

Quais são as proposições que sustentam as formulações dos habitantes da periferia de

achoeira sobre suas realidades familiares? O que elas podem dizer sobre as formulações da sociedade

_ obal? Em que elas s..ãoespecíficas às condições partilhadas por uma determinada categoria de

zgentes? Em que essas formulações, tais como expressas, formam um conjunto coerente e analisável?
147
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

2 Os Principios do $angue e da Consideração

É atualmente um truismc dizer que as-formulações, ideológicas- sobre a.família ou sQ~re o

. arentesco, variam de uma classe social a outra. As palavras ditas com a respeito às realidades

vividas, apesar de participantes de uma linguagem global, têm os seus sentidos diferenciados em

'irtude, das posições ocupadas na estrutura social da qual emanam. No Brasil, os pesquisadores

cionais e estrangeiros concordam ao considerar «familia ou o parentesco como um dos princípios

ganizadores da sociedade brasileira em seu conjunto (entre outros, Almeida 1987; Borges 1992;

Daívlatta 1985; 1987; 1991; Freyre 1977; 1935; Lewin 1987; Woortmann 1987). Para além desta

zonstatação, trata-se também de investigar como se constróem as variações dos modelos de

comportamento e as redes que os estruturam, e ainda, como se articulam as formulações gerais ao

zivel das realidades segmentárias e discriminadas da sociedade. Como as idéias de classe social, da

_.....
nstituição do privado e do público, recuperam sua especificidade nas relações investidas nas noções

culturais (assim como econômicas) tais como a produção e vice versa? Como essas relações,

erarquicamente fundadas, e histórica, social e culturalmente instituídas, estruturam diferentes práticas

:?miliares? Como foi acima mencionado, eu me arrisco menos ao destacar o parentesco como "domínio

_uro" de análise, que ao estudar sua constituição como domínio de relações sociais, num contexto

::articular de dominação.

,
Em universo de família e de parentes

Se partirmos das.formulações imediatas dos agentes originários dos bairros estudados relativas

termo família, por exemplo, estaremos certos de coletar, num primeiro momento, as mesmas

zescrições, respondendo aos. mesmos valores comuns. a não importa qual região ou classe social do

Brasil. Ouviremos dos agentes o seguinte: Afamília é o grupo que se constrói a partir da união de

r::::n homem e uma mulher, união sancionada pelo casamento, com duração indeterminada, com

trcgenituras legítimas, vivendo sob o mesmo teto: a casa. A família não existe, segundo a
148
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

representação coletiva da sociedade.sem um dos dois cônjuges em união legítima, sem a legitimidade

conferida pela sanção legal, e enfim, mas não com menor importância, sem a casa -pois quem casa

quer casa. Partindo dessas formulações gerais.socialmente construídas e culturalmente valorizadas,

toda a dinâmica social, independentemente da região, da classe social e da diversidade ética, se

orientaria na direção de um só objetivo, igualmente valorizado pelos diferentes segmentos da sociedade

e independentemente das distâncias que os separam desse ideal comum. Entretanto, quando se

omeça a desconstruir e_reconstruir os sentidos implícitos a esses termos nesse espaço social, nos

amos conta o quanto estamos longe dessas formulações gerais ou, para dizer melhor, o quanto as

condições sócio-culturais mediatizam essas proposições gerais, para transformá-Ias em sistemas de

. ráticas originais. É que, como o diriam os teóricos da análise cultural, a cultura não nos é plenamente

acessível sob a forma de proposições.

Nos bairros onde trabalhei, duas palavras parecem dar conta dos estatutos e dos usos da

:àmília entre os agentes: parente e família. Nas conversas correntes, é comum ouvir-se os agentes

.zsarem os dois termos, como se, em todas as circunstâncias, eles fossem intercambiáveis. Ouviremos

~S agentes designarem indistintamente tal ou qual pessoa como sendo parente ou dafamília e, ao

mesmo tempo, insistir, em ocasiões particulares em determinar, mais adiante, sobre a distinção de

zererminado uso com relação a outros. Para entrar no universo das representações sobre os parentes

::s familia e apreender as distinções assim como sua equivalência, eu comecei - de acordo com a

.ecnica utilizada por Alexander (1976) e a equipe de Raymond Smith(1988) a propósito da experiência

ze pesq.uisa sobre o parentesco em meio urbano" - por pedir, a cada agente participante do universo

-estigado, que me dissesse todas as pessoas consideradas como sendo parentes. Em geral, o

zgente começa por justificar suas escolhas dizendo: ''parente mesmo ... não tenho não ... " e começa

,_ me ditar a lista, partindo do mais próximo para o mais distante, dos vivos aos mortos, até a

resa - doravante clássica - relatada por diversos pesq.uisadores q.ue utilizaram métodos

znilares: os parentes são tão numerosos que não se consegue nomeá-los'

A produção das listas de parentes pelos agentes é determinante para o estudo e a reconstituição
149
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

os universos familiares nos quais eles estão inseridos. Nomear os parentes, listá-los.é.como mostrarei

:nais à frente, fazer a exposição de suas próprias formulações sobre o que convém ser considerado

como sendo família ou parente. O agente, pela lista do que ele trata como parente, entra num

. rocesso de reconstrução dos princípios inconscientes que condicionam suas escolhas, suas omissões,

_ ênfase dada sobre determinada linhagem mais do que a outra, etc. Para constituir as listas, eu

esignei duas pessoas por casa, em cada uma das quinze casas estudadas nos bairros # 1, #2 e #3

inco casas por bairro). Sobre um total de trinta listas, eu escolhi aprofundar as pesquisas sobre

aquelas que agruparam as principais variações registradas por ocasião das entrevistas (cerca de 1/3

••o total). Por ocasião da fabricação das listas,. na grande maioria dos casos, constata-se uma

regularidade na ordem sucessiva das pessoas a entrarem na lista: elas são, primeiramente, os integrantes

:ia casa' 1 e da configuração de casas, os. colaterais,. os. primos de grau, do mais próximo até os m~is

~;stantes, os mortos, até aos personagens míticos dos quais o grupo obtem sua identidade familiar".

'11. Característica social dos agentes entrevistados e suas posições em sua respectiva casa. (P0l!':
5 casas por bairro - B#l, B#2 e B#3. Ver Ql, Q2, Capítulo lI).

~~a* estatuto" idade- ~o- PfOOss-ão- bairro- matrim. edueae. religião


~lma 1 1- 2 6- 1 6. 3. 2
Sergio 2 2 1 7 1 4 2 1
Paulo 1 3- 1- 4- 1- 1 5. 2
Sofia 2 1 2 estudante 1 4 4 5
~L 4 2 2 9- 1 9- 1 2
larice 3 1 1 5 2 7 1 9
.~a 1 3- 2 1 2 1 5. 1
.. Ianoel 1 2 1 4 2 5 1 9
eruce 2 1 1 estudante 2 4. 4 4
.Iaris 1 3 2 1 2 1 5 2
laOOID. 1 2 2 1- 3- 3- 1- 2
.enânc. 5 1 2 3 3 4 2 9
lice 3. 2 2 2 3. 7 1 1
.nácia 1 3 1 4 3 9 5 1
Pedrinho 2 2 1- 9 3- 9 3- 9
150
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Legenda: Casa: O nome identifica a.casa e não o entrevistado, Assim, na casa de Clarice, a.pessoa entrevistada
é seu filho mais velho, e assim por diante.
Estatuto: Refere-se.à posição. e à.identídade, do,entrevistado na casa, 1= responsável; 2= filho/filha; 3=
cônjuge/e subordinado aos responsáveis da casa; 4= parente por consideração; 5= "residentes móveis"
(sobre, esta noção, ver Capítulo, li}.
Idade: abaixo de 25 anos = 1; de 25 a 49 = 2; de 50 anos ou mais = 3.
Sexo; masculino, = I..feminino = 2.
Matrimônio (condição): 1 = casamento, categoria local; 2 = casamento civil/religioso; 3 = juntado(a);
4 = solteiro(a); 5 = separado(a); 6 = viúvo(a); 7 = amigado(a); 9 = não declarado.
Educação (nível): 1 = elementar; 2 = primário incompleto; 3 = primário completo; 4 = secundário
incompleto; 5 = analfabeto.
Religião: 1 = candomblé; 2 = católico/candomblé; 3 = espírita; 4 = pentecostal; 5 = católico; 9 = não
definído.
Profissão: 1 = comerciante ambulante; 2 = doméstica; 3 = pedreiro; 4 = agricultor meeiro; 5 = artesão;
6 = professor primário; 7 = garçon; 9 = não declarado.

A reconstrução, com 0& agentes, de seus universos de parentes/ família revela os princípios

graças aos quais eles ordenam esse universo. O primeiro princípio consiste no grau de proximidade

:e ego com os outros agentes, na dinâmica da cooperação familiar no cotidiano. Para os agentes~ o

aço biológico é central na produção da proximidade entre parentes, mas ele não é suficiente. O

espaço da cooperação por excelência que é a casa, a dinâmica das configurações de casa, parecem

explicar o sentido da produção dos parentes dafamília no universo dos agentes investigados. Poderia-

se representar esquernaticamente esse universo por três círculos concêntricos nos quais encontrariam-

~ ao centro (i), os integrantes da casa, num segundo momento (ii), representaria-se o círculo daqueles

daquelas que eles integram nesse universo imediato, aqueles que se distribuem na configuração

:e casas da qual sua casa faz parte, donde a importância da casa como referência na classificação

parentes/família, e enfim, num terceiro momento, aqueles que, pelos laços propriamente

=enealógicos, são considerados como parentes próximos e afastados. Quanto mais nos aproximamos )I

:J círculo (i),.. o centro de produção dos laços propriamente familiares, mais o princípio .da

.cnsideração é determinante e manifesto (já que perpetuamente reivindicado pelos agentes), e menos

princípio genealógico, o sangue, é reinvindicado. Inversamente, quanto mais nos afastamos do

.entro (i), quer dizer, quanto mais nos aproximamos do terceiro círculo (iii) - que aliás não é

srritamente um, pelo fato de ser um espaço aberto aos parentes desconhecidos (por isso foi

_presentado em pontilhado) - menos a linguagem da consideração é reivindicada (já que implícita)


151
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

e mais a ênfase é dada ao princípio genealógico. Essa tradução comporta, como todas as outras

formas de tradução, um lado redutível e arbitrário; seria falso crer aqui que os círculos delimitam

fronteiras precisas. Na produção da experiência familiar no cotidiano, existem passagens de um

nível a outro. Referimo-nos aqui a uma experiência que se faz, inclusiva e exclusiva, ao mesmo

empo, em seu exercício. A produção das distâncias e das proximidades na prática do cotidiano

familiar, assim como os mecanismos postos em ação para que se efetuem essas passagens de um

nível a outro, serão estudadas mais à frente.

França 1

.".,---
r -
" "' ,
I
/

o sangue
~.. ,l II 1'''." A consideração

, /
'r

"
"'
- --- - --- - '"

Veremos na próxima seção que a determinação e o agenciamento das relações de parentes e

_=família são organizadas segundo os princípios do sangue e da consideração, e que esses princípios

- organizam como na Prancha 1. Mas antes disso, tentemos apreender a extensão desse universo de

entes e de família através dos termos concretos de referência dos próprios agentes.

A referência ao laço biológico é explícita nas formulações dos agentes: "a existência fisica

~a pessoa é determinada pelo ato sexual entre um homem e uma mulher. a condição de existência

:oda pessoa é afamília". Todo indivíduo herda caracteres positivos ou negativos do pai e da mãe

sangue, os quais herdaram de seus respectivos pais, e assim por diante. Essa afirmação deveria

-5 autorizar a tirar, como consequência lógica, a total operatividade do princípio da bilateralidade

cerança do sangue na constituição do universo dos parentes/família. O princípio da bilateralidade


152
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

da herança do sangue opera, com efeito, a cada vez que o agente remonta sua linha genealógica a

partir da mãe ou/e do pai. Mas desde a constituição dos "próximos", constata-se que o princípio do

sangue opera simultaneamente com um outro princípio para definir a proximidade: a consideração.

Assim, o agente começa primeiramente citando"seus pais" que, na maior parte, são seus pais e mães

- ou seus pais ou mães de criação - em seguida, ele prossegue com seus irmãos e irmãs -

vivendo ou não na mesma casa; depois, ele continua citando os outros membros da casa - tendo ou

não laços de consanguinidade com eles,. e~qualquer que seja o grau de proximidade consaguíne.a -

quando ele existe; em seguida, ele menciona os tio maternos, bem antes dos tios paternos - em

certos casos ele simplesmente não menciona os tios paternos; os primos de primeiro grau e outras

pessoas consideradas como parentes e que fazem parte da configuração de casas da qual participa

sua p.ró.pria casa; o agente prossegue com os primos de segundo e terceiro grau, e~ finalmente,

termina com os avós ou bisavós. Nessa enumeração, o agente, muito frequentemente menciona

certas pessoas afins, quer dizer, os esposos/esposas dos irmãos e irmãs, e, em muitos casos, de

alguns de seus primos. A integração ou não dos afins na categoria parente oufamília será o objeto

de- uma. análise. mais detalhada,

Prancha II: Sequência geral das listas, tais como ditadas pelos agentes.

Materno raterno
Ml; FZ
ME 'LBMZ:MB.GLG2..~MEMMMMMMM E'LFRGEMEE MFM
ZcBc

otas: G = sibling, C ou c = child, d (D) = daughter; as convenções em itálico = (Mortos), (MMM,M) sublinhados
= (por consideração, em itálico e sublinhados (por consideração e morte MMM). As sequências 1,2 e c remetem à
séniorité na mesma geração. (como, por exemplo, nas pranchas III e IV: Zl, Z2 etc MZiSi, MZlS2 etc.)

Essa lista representada na prancha 2 traduz uma construção da lista dos próximos dos agentes em torno de
dois alinhamentos: s materno e o paterno. Os maternos são alinhados à esquerda e os paternos à direita. Os agentes
enunciam sem distinção e sobre a mesma linha aqueles que eles consideram como sendo próximos, quer dizer, os
"parentes de sangue" e aqueles por "consideração", A lista espontânea parte do lado materno e segue regularmente
a.ordem inscrita na figura, na qual a mãe (M) é o ponto de partida, seguido do pai (F); a irmã (Z) precede o irmão (B)
153
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

e. constituem com Me F os. graus. mais. próximos do ego. As. tias maternas (NZ} precedem os. tio paternos. (NB) e
constituem, no mesmo campo dos mais próximos, um outro grau de agenciamento; o poder das relações
intrageracionais é. traduzido pela seleção e. apropriação, na ordem dos próximos. todos, aqueles cuja proximidade é
colocada e articulada em função do princípio da consideração. Por esse princípio Gl - que tem para os irmãos ou
os.primoa.de.não importa qual grau - entra no circulo dos mais próximos. como G2 - que. tem lugar de qualquer
\
parente por consideração (quer dizer construí do fora dos laços de sangue), aliado ou não. Os paternos seguem numa
segunda ordem. Enquanto.que o pai é. integrado ou centro dos. próximos de ego, aqueles que. são originados de ~ua
linha sãc enunciados depois do estabelecimento do lado matemo. Sempre ocorre os paternos serem organizados de
tal modo que.atíaprecede.ao tio (FZ-FP)..e que os irmãos - geralmente aqueles da tia - seguem, em profu~de,
passando principalmente pelo lado matemo do pai (FN, NFN), sendo FF apenas raramente mencionado. Nessa
sequêncía, os. mortos.intercalam os.vivos, articulando, através dos mitos familiares e da ideologia da descendência,
práticas cotidianas daqueles que assim são integrados (ver figura III e IV).

Durante a. enumeração; os agentes organizam a sequência das pessoas mencionadas

primeiramente, e de um modo geral, em função da distância genealógica. A ordem da sequência é

zeralmente genealógica porque existiram casos onde os agentes fizeram permutas conscientes em

:":Jnçãoda importância que tem, ou que tinha, determinado parente em sua vida pessoal. Além disso,

_ referência básica a partir da qual os agentes organizam seus universos de parenteslfamilia é a

.sa, categoria cultural definida e analisada no capítulo 11. O agente começa por construir seu

.miverso a partir daqueles que lhe são "próximos", quer dizer, aqueles que fazem parte da casa e da

configuração de casas, do "nós". O princípio do sangue, uma vez mais, opera com o princípio da

.deração. O exemplo seguinte é testemunha:

ancha lI] Sequência da lista de Paulo (ver características sociais no quadro Q1): os primeiro
_.:ados:

JS Maternos Os Paternos
_1_\12 Z1 Z2 Z3 Z4 Z5 Bl B2 Z F Y2B 1 Y2B2 Y2B3 Y2B4 VU: MF
_.IZld Z2c MZ1 MZ2 Zc MMZ

: G = sibling, C ou c = child, d (D) = daughter; as convenções em itálico = (Mortos), (MMM,M) sublinhados


por consideração, em itálico e sublinhados (por consideração e morte MMM). As sequências 1,2 e c remetem à
orité na mesma geração, (como, por exemplo, nas pranchas III e IV: Zl, Z2 etc MZiSi, MZIS2 etc.)

Essa lista obedece aos mesmos princípios gerais elucidados na nota sobre a figura 11.Ela tráz, entretanto,
os elementos quanto à legitimação e à articulação das relações parentes/família, pelo sangue e pela consideração.
_~ efeito, a respeito dessa lista, os paternos são radicalmente separados dos maternos (incluindo o pai). As relações
·-meio" (l/2Bl - 1/2B3 e 1/2Z) são sistematicamente colocadas do lado paterno, enquanto que o parentesco
. pelo sangue, é colocado do lado matemo - (mesmo a irmã por consideração Z aí está figurada) enquanto que
154
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

somente Z2 e Z3 (alinhados do lado materno) são do mesmo pai e mãe ~ue ego. Sobre as implicações dos modos de
legitimação do parentesco pela mãe, o leitor deve se dirigir a última seção desse capítulo. Nessa classificação entram
em jogo também outros operadores, além do sangue e da consideração: trata-se de operadores geracionais - Ia
séniorité - (Zl - Z5, BI, B2; 1/2BI - 1/2B3, 1/2Z) e categorias de sexo (gender) - o sexo masculino é separado do
feminino.

Prancha IV Sequência final da lista de Paulo.antes da produção da genealogia: a ordem das pessoas
itadas (legenda abaixo da prancha VIID:

Maternos P-aternos
MM2- Zl Z2 Z3-Z4 Z5- B+ B2 Z. F-1hB+ lhB-2 lhB-3- ljzB4 1hZMF--
MZl MZ2.MZl MB l'JMZ..
Z2s Z2d Z2H Zc
Y1Z1S1 MZ1S2 Mz1D1 MZ1S3 MZ1D2 MZ1D3 MZ1D4 MZ1D5 MZ1S4
MZ1D1d1 MZ1D1d2 MZ1D1s1 MZ1D1s2 MZ1D1s3
MZ3UMZTS-
MZD-3H ML3-Ds- ML3-W-
MEHW MB1.sl MBls2-MRlsl MBls-Ll
FB1 FS

.;otas: G = sibling, C ou c = child, d (D) = daughter, as convenções em itálico = (Mortos), (MMM,M) sublinhados
= (por consideração, em itálico e sublinhados (por consideração e morte :MMM). As sequências 1,2 e c remetem à
séniorité na mesma geração. (como, l'0r exemplo, nas pranchas III e IV: ZI, Z2 etc MZiSi, MZIS2 etc.)

Essa sequência final foi reorganizada por seu Paulo respeitando ao mesmo tempo os critérios de proximidade
pelo. sangue. e.pela consideração RQque..explicaadistânciadeFPLe..FScomrel.açãüaos.mai.s.próximos.
O leitor perceberá a extensão intrageracional das relações construídas do lado matemo, assim como a
profundidade da memória genealógica de ego em relação ao lado paterno.
155
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Prancha V Sequência da lista de Paulo e genealogia (parcial)

Maternos Paternos
M Zl Z2 Z3 Z4 Z5 B1 B2 F Y2B1 Y2B2Y2B3Y2B4Y2Z
Z. Zc MZ 1 MZ2 MZ3 l\IlB1 l\IlB2 MMY2Z
M2MBMMMF FBlhBlhZ FM
Z2sZ2dZ2H
Z2s
MZ1S1 MZ1S2 MZ1D1 MZ1S3 MZ1D2 MZ1D3 MZ1D4 MZ1D5
:\121S4
MZ1D1d MZIDld2 MZIDIs1 MZ1D1s2 MZ1D1s3
MZ2d MZ2s
MZ2d MS2c
MZ3n" MZ3S MZ3DH
MZ3Dc " MZ3-W
MBIWl MBilll MBLD2 MBlSl MBLS2 MBlS3
l\1B 1W2 l\IlB1S4 l\1BID3
l\IlBW2D1 l\1BW2D2
l\1BW2D2d
l\1BID2c l\1B1Slc l\1B 1SW l\1B1Sd
MB2ST MB2SZ MBST
l\1MZ1f28 etc: ..
MMZ14D MMZ!lzDc
MFM
FBl FZl
FZ2 FB2
FBlS1 FBlS2 FBlS3 FBIDl FBID2 FBID3
FBID4 FBID5 FBID6 FBlS4
FB1S3W FB1S3-n- FB1$3$
FZl-S- FZl-D-l- FZl-D-2 FZD-~ FZM
EZ2SH E.Z2S etc.,.,

FZ1SS FZSD etc ...


156
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Prancha VIII Sequência da lista final e genealógica parcial de Dona Elma:

Os Maternos Os Paternos
ZI(65) Bl(60) Z2 B2(56) B3(54) B4 B5(52)
:\1 B B Z B MM MMM F(MH1) MH2 B B FB FZ
B2Wl(~1) B2W2(~2) B2WIS G Z2H
~rrr ~lDZ ~rm ~ro-~
B2W2D ~2S1 ~2S-2
B2W1S.W B2W1S.c.
GS GD Gds
ZlH ZISI ZlS2 ZlD ZlSIW ZISld ZlSld ZlS2W ZS2s ZS2d
Z1D Z1S1 S1S2
BISI BIDl BIS2 BID2 BIS3 BIS4 BIS5 BIS6 BIW6
B1D
BlSls BlSld BlSlW
BIDld BID-ls- R-lD-lH
BlS2S. BlS.2Ss
BID2s B1D2s
BlS4s BlS4d BlS4W
B3D B3S
B3S B3SW B3Sd
BIDa RIDd B3DFr rosa BTSs rosa
B3Sd- B3-Ss- B-3-Ss

Paternes. (seq 11 êncía),


B5S B5D B5S B5S B5S B5D B5S
etc ...
FBS FBD FBDD
FBc etc. FBDc etc. FBDDc etc

-otas: G = sibling, C ou c = child, d (D) = daughter; as convenções em itálico = (Mortos), (MMM,M) sublinhados
= por consideração), em itálico e sublinhados (por consideração e morte MMM). As sequências 1, 2 e c remetem à
niorité na mesma geração. (como, por exemplo, nas pranchas III e IV: Zl, Z2 etc MZiSi, MZ1S2 etc.). Eu utilizo
_ símbolo kin-type tal como sugerido por J. A. Barnes, "Genealogias", em The Craft of Anthropology, A. L. Epstein,
_~ Tavistock, 1967: 101-128. Ver também, H. C. Conklin, "Ethnogenealogical Method", in Goodenough 1964, 25-
157
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Por outro lado, os agentes organizam a sequência separando claramente o lado materno do

. atemo. Eu tentaria parafrasear Alexander (1976:3) que viu nessa separação, na obra de construção

das spontaneous kin lists. "um principio de bifurcação?". Mas parece que, nesse contexto particular,

seja nas casas compostas daquilo que a literatura designa como sendo família elementar, ou nas

casas mais comuns tais como descritas no capítulo II>os ascendentes da mãe constituem a esmagadora

resença nas listas ditadas pelos agentes. Somente após o estabelecimento das referências maternas

'" que se começa a construir as paternas. Nas trinta listas que coletei, 20% não fizeram qualquer

referência ao lado paterno. Entretanto, os agentes têm clara consciência das linhas maternas e paternas

= tudo fizeram para não misturá-Ias, explicitando a todo momento a especificidade de cada linha.

Por outro lado, pode ser observado que os agentes constróem seus universos de parentes/família

ure as gerações +2 e -1>- pois é nesse campo que se estruturam as redes de solidariedade e os

zrrcuitos de troca e de cooperação, traduzidos no capítulo II.

A referência permanente à casa, tal como traduzi da na etnografia, no capítulo II, mostra

como o termofamília pode ser equivalente ao termo casa. Quando o agente afirma que "a condição

existência de toda pessoa é a família" s- devemos reconhecer nisto que a família, ou, nesse caso,

_ casa, tem uma significação ontológica para o agente. Trata-se de um lugar no qual e pelo qual ele I
.=. define e do qual ele tira sua existência social como pessoa. O agente situa seu universo de parentesco

. experiência cotidiana entre siblings, cuja composição se dá segundo os critérios de proximidade

zcastruidos a partir dos princípios do sangue e da consideração". Essa escolha de abordagem da

astituição do parentesco e da família pelas redes de relações tecidas nas casas e configurações de

.sas, justifica-se pelo fato que, aos olhos dos próprios agentes e em sua prática, é a experiência

__ ageracional, e não intergeracional (tal como sustentada nas abordagens a respeito dos descent-

d social units - ver discussão na primeira parte do capítulo), que se coloca como símbolo

ai da construção das relações entre os agentes. Focalizando nossa atenção sobre a categoria

tal como construída entre os agentes e expressa através das práticas cotidianas das relações

ciais, nós perceberemos a necessidade de um retorno à etnografia da construção desse domínio de


158
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

relações sociais que é o parentesco, em suas variações através das classes sociais, dos segmentos

sociais ao seio de uma mesma classe social, e dos lugares "étnicos" que o articulam, de modo a

estabelecer novos termos de comparação intrassocietal - empreendimento necessário para que a

comparação e a generalização seja possível (como queria Corrêa 1982). Além disso, se partirmos da

família nuclear como postulado implícito do trabalho" como medida do universo de parente/família

orientação implícita ao empreendimento estruturalista funcionalista e denunciado na breve e parcial

discussão apresentada no princípio desse capítulo} arriscamo-nos não somente a desconhecer os

laços e os sentidos expressos através de tal construção, mas sobretudo, a produzir uma teoria

classificatória que não terá outras alternativas senão construir os fatos e as experiências dos outros

segundo uma medida exterior às representações e às experiências dos próprios agentes.

As informações. coletadas a partir das listas dos parenteslfamilia; mostram que existe uma

concepção dafamília e do parente fundada sobre o princípio da bilateralidade da herança do sangue

e da consideração. O primeiro princípio remete a uma substância comum, partilhada por indivíduos

originados dos mesmos pais e mães. A partir da bilateralidade, é dado ao agente construir a distinção

entre o lado paterno e o lado materno. O segundo princípio, a consideração; aciona o mecanismo/

•.essoal e coletivo de seleção, integração e exclusão. O segundo princípio mediatiza as relações de

afinidade; amizade, vizinhança, de turma ou de apadrinhamento; e transforma o parentesco fictício

segundo a linguagem clássica) em parentesco operante, de efeitos reais. Ele relativiza a eficácia do

principio do sangue, assim como o alcance do exercício de sua eficácia é relativizado por este

jJtÍmo. O segundo princípio institui as modalidades da escolha, pelo qual o parente "em princípio"

~de tornar-se um parente efetivo; ele revela, pela instituição da escolha em relações sociais

particulares, o caráter ambivalente, relativo, contraditório e paradoxal dos princípios fundadores do

--mÍnÍo do parentesco. Mas em que o princípio da bilateralidade.um dos fundamentos das proposições

ó sociedade brasileira em seu conjunto, aciona significados particulares para os agentes estudados?

Em que a consideração constrói relações específicas à condição social e cultural dos negros e

-estiços de negros, diferentes daqueles do princípio "in law", tal como formulado na proposição
159
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

ominante, como constitutivo do domínio da família e do parentesco? Para restituir essa construção

em seu contexto, é preciso estudar o universo das representações construídas em torno desses dois

princípios, assim como sua eficácia nas práticas dos agentes, e>-em seguida, continuar as análises

acima iniciadas.

princípio do san~ue

Um dos. critérios dominantes utilizados pelos agentes para situar aqueles que eles designam

corno sendo parentes é o sangue. Para os agentes, a noção de ''parente'' remete aos consanguíneos,

5 ascendentes paternos e maternos - os colaterais e os descedentes. O que constitui a essência dos

=parentes" é o sangue. O sangue é o princípio determinante que une os iguais entre si; sua efetividade

se dá pela consideração.

Se o sangue dá acesso ao parentesco pleno, mediante a consideração, esse parentesco pleno

cansita apenas pela mãe. Segundo os agentes, principalmente as mulheres, o parentesco biológico

ure dois indivíduos somente. se dá plenamente pelo ventre materno. O símbolo absoluto que dá

conta desse laço, segundo os agentes, é o cordão umbilical. O cordão umbilical une os iguais. Ele

constrói. Q..irmão. CQ.m.a irmã, ~avés-da.~ É pela. mãe. que. Q.parentescc. entra no. mundo e .pela
é

ziãe que dele sairá, no momento em que, segundo os agentes, ele deva sair. No nascimento de um

ê, os agentes (parteiras, médicos) cortam o cordão que o liga à sua mãe. Esse cordão é secretamente

:: iardado, ou pela mãe ou pela avó,. de modo que, após um certo número de dias,..ele torna-se se~o,

zomo um grão seco, pronto para ser plantado no jardim da vida - o quintal da casa. Em geral, os

gentes o plantam sob as raízes de um arbusto, de modo que o crescimento da criança acompanhe o

-esmo ritmo do da árvore. Nas casas que são associadas a terreiros (ver capítulo V), o cordão

bilical receberá um tratamento, não revelado pelos agentes.mas, no final desse procedimento, ele

será enterrado - os agentes dizem "plantado" - no quintal do terreiro, fazendo parte, assim, da

família de santo. Mesmo a medicalização progressiva da família não impediu os agentes de inserir

s filhos no mundo natural e simbólico da casa: eles retomam o tampão maculado de sangue que
160
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

serviu para proteger a cicatriz umbilical da criança para plantá-lo. Ao "plantar" o cordão umbilical

o recém-nascido, os agentes restituem, de algum modo, este em seu contexto, em sua família. Esse

arocedimento funda?"no imaginário dos. agentes, o fundamento das noções. de casa; de família, de

parente. Ele situa estes últimos numa continuidade atemporal e transespacial, na natureza, habitat

aas divindades familiares. a capítulo V tem por objeto esse simbolismo fundador.

a ato de plantar o cordão umbilical representa o enraizamento simbólico da criança na

::atureza e no universo dos. antepassados - os mortos, assim como no das. divindades familiares.

Lembremo-nos que, no capítulo I, havíamos feito uma breve apreciação da cosmologia familiar, tal

como explicitada por alguns agentes, segundo a qual, a natureza é compreendida como sendo o

aabitat por excelência dos espíritos, bons e malvados, divinos e satânicos. A natureza, como referida

capítulo 11,.apresenta-se como uma inversão simbólica do mundo produzido pelos. homens, ~m

.igar no qual a diversidade dos seres humanos encontra sua unidade. É da natureza, habitat das

:..~'indades familiares e dos antepassados mitologizados, que o gênero humano tira a energia necessária

;-ara cumprir o seu destino; que seja branco ou negro, homem ou mulher, rico ou pobre, adulto. ou

::-lança. Sempre de acordo com essa cosmologia, tal como coletada no discurso dos agentes, o que

";:~rencia o gênero humano" é o pacto que nós fazemos com as forças do bem ou do mal que reinam

- ~ selva, na mata. Esse pacto se manifesta quando, em nossos comportamentos, nós revelamos a

corporalidade do mal ou do bem no sangue: o sangue ruim e o sangue bom. Plantar o cordão

zmbilical, é enraizar materialmente, no quintal, prelúdio da mata, os grãos de seu destino; é entrar

-~ filiação do bem e do sangue bom; é derivar da herança simbólica familiar, o destino individual da

rriança, de modo que el~ possua a garra, a resistência, a força mística necessárias para que ele

rossa afrontar as condições. hostis do mundo dos humanos. Esse destino que, como a árvore, tirará

5:Jaseiva mística dos espíritos do bem (ou do mal), e, da natureza, a energia e a sabedoria necessárias

rara produzir seu lugar sob este céu impassível, num mundo diverso, perverso e temível.

Da mesma maneira que a casa é pensada na junção da ordem da natureza e da ordem do

ial.da ordem do simbólico e do econômicocda ordem da exclusão e da integração social,. do dia


161
lia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

- ~noite, a mãe é ajunção entre a casa e as redes de parentesco que se constróem. Ela é a encarnação

5 valores ideológicos do sangue, naquilo que este liga com a ascendência comum e que religa com

=crações vivas configuradas na casa. Ela é a memória da casa, na junção da herança familiar do

assado e as aquisições das rede familiares do presente, sem as quais nenhuma entrada, nesse mundo

'erso e exclusivo, seria possível ao recém chegado. Poderia-se tentar expressar a posição da mãe

rransmissão dos laços de consanguinidade - de modo arbitrário - como na prancha seguinte:

cha X: A posição da mãe na transmissão dos laços de consanguinidade.

_-atureza - + Siblings

Antepassados
Casa
O Ego Sociedade

- + Siblings

Essa representação tenta traduzir a construção simbólica e social da mãe (o círculo na prancha) como lugar
:rimsito da. comunicação entre. Ega e. a casa; entre. Ego, e. suas ascendências. e. entre. Ego e. os. outros grupos de
igs nos quais ele se constrói como pessoa social, seja na casa ou' na configuração de casas. A importância dessa
esentacão. se. liga; de fato., a uma configuração de. redes de mães - as. configurações, de. casas - tais co~o
das no capítulo Il, cujas implicações sociológicas podem ser expressas na prancha seguinte:

'.ncha Xl: Implicações sociológicas do universo simbólico integrado por Efo.

:Xa casa consiste em / Assim como as relações entre siblings

K
=..:l configuração de \ passam pela mãe, as relações entre
e.:..es. de. comunicação casas tIansitam simOOlisamenre pela,
=::::e sib lings cujos ~COllllIID...que..-~~C3Sa-de.-DOIlJ:!
.entros são articulados \ r/ .É Conceição enquanto construção simbóli-
x:as mães. As flexas O \
~ ca. Ponto focal que traduz os termos de
indicam a ~ Q ~comunicação entre os agentes.
~eção das relações
x azente-A em- ~
~ae- ae- agente B-
••••••••
sitando

T
-,
As redes da
t Ao centro da
1/ configuração se
.estenderrr para

As implicações sociológicas e
configuração: Dona
Conceição. É por ela
o~ além- des- limite.&>

simbólicas do parentesco pleno


_pela mãe. O caso dos descen-
O~
,71
que a fâmília entra
no mundo, Laço
entre--a-liHhagem-e-
1 geográficos. do
bairro e da cidade.
Elas são espalha-
das no Recôncavo,
dentes de Dona Conceição suas divindades.
162
família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Essa prancha traduz, as, implicações. sociológicas, das, representações estudadas até, aqui, Ela i1ustr~ a
rtância da mãe na transmissão da memória, do parentesco como comunicação. Ao centro, a casa da falecida
=:lona Conceição (ver capítulo Il)>-eID turno dela se constrói a configuração das.relações sociais inscritas.na domínio
parentesco.

Eu dizia acima. que é pela mãe que o parentesco vem ao mundo. A família também. A

_.iança, uma vez chegada ao mundo, será construída numa rede anterior a sua existência, e, na qual

= pela qual, ela se definirá como pessoa (ver Prancha m. Se é pela mãe que a família vem ao

-"TIdo, não há portanto qualquer surpresa em compreender que a sociedade, ela própria, vem ao

"';lDdo pelo mesmomecanismo (Prancha X).. Ajamília das mulheres e as.redes sociais por elas

construídas, não produzem, no entento, uma sociedade de falta, de falta de homens, de abundância

:.~ mães, uma sociedade matrifocal. .. Trata-se de uma sociedade de pessoas, na qual os laços são

_ossíveis somente, e somente se, eles transitam por um lugar assinalável. Compreende-se então

---que,. ao ler as sequências genealógicas acima descritas (Prancha Ir-h- o agente Paulo designa a

sequência de seus próximos da seguinte forma:

5-- Ma-temo-s- OsPaterncs.

•. \12 Z1 Z2 Z3 Z4 Z5 B1 B2 Z. F Y2B 1 Y2B2 Y2B3 Y2B4 Y2Z Jv[F

7ld Z2c.MZ.l MZ2 Zc l\1l\1Z

-- qual Z 1-Z5 e B 1 B2 aparecem simplesmente como irmãs e irmãos, enquanto que, do lado paterno,

::31- Y2B4 são designados como sendo meio-irmãos e Y2Z uma meia-irmã. (nessa casa, há apenas

-=.. e.Z3 sendo filhos dos mesmos pai e mãe de.EgO.)15.A mãe.no contexto etnográfico estudado" é

.. astruída pelos agentes como um lugar. Um lugar pelo qual se é. A mãe é para o indivíduo o que a

sa é para afamília. E a casa, como construção social e fisica -já que os agentes têm uma parte

ze.es próprios fisicamente "plantada", seja no quintal, seja num espaço qualquer da casa - é o

gar ontológico pelo qual e no qual se é.

Uma das ilustrações desse ponto encontra-se no capítulo II e no capítulo V. No capítulo II,
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

nós estudamos detalhadamente a linhagem dos Conceição. Nós vimos como ela se constituiu, ao

longo do tempo, e como, hoje em dia, as relações no cotidiano são construídas, através da história

de.uma casa. Nós vimos como.Jioje em dia, o domínio do parentesco que ela representa, organiza

um espaço no qual são possíveis somente as relações que possam transitar por Dona Conceição

(representação mítica, ver Prancha Xl e também o capítulo II). No capítulo V, nós veremos como,

através de Dona Conceição, os agentes constróem seus laços simbólicos com seu passado de escravos

- que eles negam e renegam.corno a herança familiar simbólica transmitida por Dona Conceição

permitiu essa bifurcação e esse evitar (a negação do passado de escravo, para produzir uma linha de

ooSC€Ildência-mitçOOgizada-de-digni-tárIDs-de-luna-Áfricamítica-), de.modo.a.se.ccastruir.uma.ideatidade

social negociável com as mais hostis condições de existência. A família de Dona Conceição.iassim

como as outras por mim estudadas, veio ao mundo pelo ventre da mulher.

Tal representação da filiação pelo sangue, nos meios estudados, faz da mulher a mãe de todo

~ mundo. Mãe de todo mundo. Uma tal concepção da mãe como mãe de todo o mundo, funda uma

representação e uma prática da maternidade, do maternage; que não é necessariamente aClL\elas

zaduzídas nos manuais a respeito: o que é a família? (ver o maternage no capítulo IV).

Segundo as mulheres dos meios estudados, os homens também transmitem os laços de

~~entesco. Somente, sua transmissão é parcial. Ela não será nunca completa, a menos que ela se

:e;nplete com aquela -já inteira - da mãe. Os agentes comparam a semente do homem "plantada"

mãe à imagem do grão que ele planta na terra. Na divisão sexual do trabalho, particularmente no

.-.........;,~·u compete, segundo os agentes, aos homens plantar. Em outras palavras, não importa qual

~ dispondo do capital de energia necessário, pode plantar. De fato, o homem é feito para

jM :;;;pois o ato de plantar participa das condições de sua existência enquanto macho. Mas comp~te

i.e ·captar o grão para plantar, "corrompê-lo", decompô-lo transformando-o em germe, depois

---~, :-acientemente, como uma mãe.atenta a seus menores caprichos e a suas menores fragilidades.

nessa representação, é como a mulher. Ela dá a vida e, ao mesmo tempo, ela dá àquele
l
~t.;.o qual (à qual) ela dá a vida,a potencialidade de transmiti-Ia. Como o grão torna-se planta,
164
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

a planta torna-se árvore, cujos frutos transformar -se-ão em grãos, prontos a serem semeados, aquele

que nasce (da mulher) tira suas potencialidades desta última, mediante o cordão umbilical (comparável

às raizes da árvore) que o prende definitivamente à mãe, e assim aos seus (cuja referência se faz

através da mãe). Através desse cordão umbilical circula, de geração em geração, o sangue que está

no princípio da continuidade entre os mesmos. Segundo essa representação, o pai, como o plantador,

pode semear ao vento, mas o que ele semeia não tráz em si as condições de sua continuidade. O que

o liga à sua mulher e ao bebê que nascerá do ato (como o plantador no jardim e a planta que daí

resultará), é seu compromisso, legitimado pelos contextos sócio-culturais locais nos quais ele está

inscrito. Assim como o plantador legítimo - quer dizer, aquele que é reconhecido pelas leis positivas

e costumeiras como sendo proprietário de um sítio (terra devidamente medida e demarcada) - só

reclama pelas plantas de seu sitio; caso tenha participado, com sua ajuda.no desenvolvimento destas,

do mesmo modo, o pai só pode reclamar por seu recém-nascido (e por sua mulher), na medida em

que tenha sabido tomar as medidas apropriadas, traduzindo assim sua consideração (quer dizer o

reconhecimento de suas obrigações, com os respectivos direitos). O parentesco pleno é portanto

exterior ao fato em si da."p.aternidade", a menos que esta seja efetiva.

As implicações dessa concepção são determinantes na construção cultural da noção de

legitimidade. Nós veremos no capítulo IV, através das práticas de adoção e de fosterage entre os

agentes, o quanto, para os agentes, um filho legítimo não é necessariamente um filho nascido dos

laços. de um casamento legal ou religioso. Apesar dos agentes absorverem as ideologias dominantes

a respeito do "casamento" e da "legitimidade", a prática dos agentes não para de mostrar que outras

normas locais, completamente orientadas em direção aos objetivos locais (Bourdieu 1977; 1980),

objetivos contextuais, mediatizam a representação dominante, a qual, por outro lado, é partilhada

por um número importante de agentes, como participante de um sistema de normas ideais. Nos

meios estudados, uma criança pode nascer sem pai, sem ser por isso um filho ilegítimo. A ilegitimidade

vem do contexto sócio-cultural que a construiu, e, nesse contexto estudado, ela vem das normas

locais e, principalmente, da mãe (ver capítulo IV).


165
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Além do campo da família e do parentesco, o princípio do sangue aciona os mecanismos

sócio-culturais que fundam a visão de si, do nós e do outro, na comunidade negra nos meios estudados.

Além de ser um princípio classificatório que funda o próximo e o afas.tado,. o igual e o outro, e os

_ au de proximidade entre essas categorias, o sangue opera também como princípio de classificação

moral, informado pelos contextos sócio-culturais de produção e de relações entre "diferentes".

Aproveito aqui para abrir um parêntese sobre a operacionalidade desse princípio partindo de duas

categorias: trabalhador e lutador.

Segundo os agentes, qualquer um pode ser herdeiro de dois tipos de "sangue": o sangue

.om e o sangue ruim -literalmente o bom e o mau sangue. O sangue bom informa a personalidade

oásica daquele/daquela que é de bom caráter. Aquele que herda o sangue bom é previamente marcado

oara o trabalho, para o permanente esforço em afrontar as dificuldades cotidianas; ele tem a inteligência

_aquele/daquela que sabe executar o jogo de cintura, quer dizer, a inteligência daquele que sabe

egociar com a vida, com as circunstâncias do trabalho e com os intermediários dos poderosos;

:aquele que sabe driblar as. dificuldades. e jogar, de uma certa maneira, com os obstáculos da vida

cotidiana. Todas essas qualidades morais encontram-se sintetizadas nos termos de trabalhador e de

adoro

o trabalhador éo valor supremo que regula as condutas do bom pai de família, o provedor,

e vai à luta, na rua (donde o termo lutador), que faz tudo para prover as necessidades dos seus.

_~qualidade de lutador; de determinado; confere àquele que a herda o sentido da vitória. Ele pode

-':;0 conseguir economizar materialmente, em razão de prover aos seus suas necessidades, mas, se

reconhecerá nessa pessoa a vontade constante de afastar-se da linha dos fracos; dos coitados":

Apesar da economia do litoral da região do Recôncavo ser relativamente diversificada, se

compararmos. com outras. economias. regionais. do país, as cidades. do interior; tais como Cachoeira

= São Félix, Santo Amaro, Muritiba, Maragogipe, etc. conhecem uma decadência acelerada, tomando

---=:cilsua plena integração na economia regional. Os negros e mestiços de negros da região se

- srribuem, como vimos no capítulo I, nos setores de serviços - comércio ambulante, domésticas,
166
ilia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

"t"'~enas oficinas, artesanatos, construção na periferia, etc. - nas fazendas moribundas, como

.> oalhadores rurais, ou são absorvidos pelo sistema de parceria, como agricultores meeiros. Um

-=-'0 particular: em Cachoeira, os terreiros de candomblé absorvem um percentual; periódico e

ccc quantificável, mas significativo para as famílias que aí estão posicionadas, nas configurações

t.e eles compõem. Instaladas num ou noutro desses setores, por definição instáveis e temporários,

trabalhador deve saber transitar de um setor a outros e, em caso de necessidade, migrar em

cão a outros centros importantes; onde a diversificação dos setores de serviços permita sua

rsorção no mercado de trabalho. O trabalhador, para os agentes, é aquele que sabe transitar nesses

•...
res, sem limitação de espaço ou de tempo. Nesse contexto, o espaço da rua no qual os agentes

referem é menos aquele composto pelo bairro, pela casa, entendido como construção física, que

;>1 e.da competição e do risco, cujos limites geográficos remetem aos mais recuados lugares, c~m

ação a sua cidade natal, a seu município, a seu bairro. O trabalhador, investindo na rua - as

=- zades metrópoles e os centros industriais - se constrói na realização da casa, enquanto construção

cial.

Essa diversificação dQSsetores de trabalho se traduz, no bairro e na família, pela diversificação

; ~ posições sociais: ela constrói a heterogeneidade entre os agentes de um mesmo espaço social,

=-;Qsicionando,..no cotidiano, as posições sociais determinadas nas relações e no domínio do

rentesco. O trabalhador, é aquele capaz de construir e reconstruir suas posições, nesse jogo de

,-=. acões imbricadas. umas nas outras. A categoria trabalhador não opera apenas na construção da

- sculinidade na casa, ela é indicadora da condição de homem, enquanto categoria de sexo (gender).

'::.a é. a referência pela qual o agente de sexo masculino constrói e reinvindica a legitimidade de uma

rosição conquistada em seu umwelt, em seu espaço social. Ela é o paradigma em função do qual ele

a em cena e.executa sua partitura. A categoria trabalhador define o que é "ser homem".

Nesse sentido, a visão do trabalhador como a quintessência da identidade masculina, aos

_:hos dos agentes, não tem nada de específica aos negros. Ela é uma visão universalizante do que

-:efine,.para o agente, o constructo "homem", em não importa qual universo social. Ela é uma
167
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

categoria de afirmação ontológica. Assim, minhas conversas com outros agentes de classes pobres

mas que não vivem, subjetivamente, o estigma de "negro" em seu umwelt, convenceram-me que

essa visão participa de uma formulação mais ou menos partilhada pelas diversas camadas das classes

populares no Brasil. Trabalhos em curso (como o de Cynthia Sarti 1993) e outras abordagens das

ategorias "trabalho" e "família" nas classes populares (como em Costa 1993~ Duarte 1986;

Woortmann 1986; 1984) mostram o quanto a categoria trabalhador é central na abordagem do

universo moral dos agentes das classes populares. As investigações por mim desenvolvidas ~m

:omo do tema, permitiram-me constatar associações estabelecidas pelos agentes, que confirmam as

analisadas nestes trabalhos. Assim, para os agentes, negros ou não negros, o trabalhador remete à

urna série de valores constitutivos deste último, tais como: luta, honestidade, raça (segundo os

agentes,-força, disposição; resistência; vontade,...coragemi; trabalho; saúde; responsabilidade,

dignidade, respeito. Mas o que dá uma marca significativa e particular aos sentidos da categoria

trabalhador nesse contexto etnográfico, vem do fato da disposição dos valores conexos na

configuração de sentidos que essa categoria sugere - em outras palavras, do próprio contexto

emcgráfico.

Para os agentes negros e mestiços, com os quais trabalhei, a manipulação da categoria

rrabalhador participa do jogo de posicionamentos, das lutas permanentes de classificação em curso

zas relações domésticas, nas casas e configurações de casas; nos bairros, nos municípios e nos

contatos circunstanciais no mercado de trabalho. Segundo os agentes, um negro deve se construir

co cotidiano, não somente como um semelhante mas também como um semelhante diferente de seus

semelhantes, quer dizer, como qualquer um cujas qualidades, tais como a honestidade, a

responsabilidade; a garra; a raça - disposição para o trabalho - devem ser para além do que é

exigido de seus semelhantes não negros, para que possa se impor em certas situações tais como o

~ercado matrimonial, o mercado de trabalho, etc nos quais as relações sociais o constrangem a se

:osicionar em relação aos estereótipos instalados na cultura da diferença entre os brasileiros da

região. Um agente me dizia o seguinte:


168
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Olhe! A classe mais complicada: professor. negro ejuiz. Ojuiz; ele não tem direito

de beber na rua, de se divertir, ele não tem direito de andar, ele tem que andar certo. Se ele

fizer dentro de casa; dentro de quatro paredes e se o vizinho saber; ele é comentado. O

professor é o modelo, ele tem que andar certinho, que é exemplo dos alunos. O negro ainda

certinho ou qualquer coisinha que fizer ele é criticado. Então aqui, no Brasil, isso eu sei

porque eu sou negra e sei que é assim. (ver capítulo IV: A prática matrimonial)

Segundo os agentes, um negro tem sempre qualquer coisa a demonstrar aos outros e a

provar a ele mesmo e aos seus (a suafamília, a seus parentes). Em outros contextos etnográficos,

trabalhos (como por exemplo Sarti 1993 ~ Woortmann 1984) mostraram o quanto a categoria

trabalhador opera, como categoria moral, com a de pobre, na constituição das identidades

ontrastantes entre os habitantes dos bairros periféricos das grandes metrópoles. Sarti (1993) l?Of

exemplo, apresentou uma etnografia interessante dessas relações (numa periferia de São Paulo),

expressa pela seguinte narrativa de um agente entrevistado:

Tem aquela frase lá, que quando a pessoa é pobre, pé rapado, não presta. Então, a gente

tem que mostrar para as pessoas ricas, que nem no caso da gente ser um empregado, que a

gente é pobre, mas a gente é honesto, a gente quer vencer, então a gente tem que mostrar

que a gente também somos gente igual a eles.

Os agentes do contexto etnográfico por mim estudado estabelecem, com algumas pequenas

~:~erenças,.o mesmo contraste entre pobre-trabalhador" versus ricos-patrões. Mas o que, para

z.ém desse contraste rico versus pobre - sobre o qual eu não teria nada a elaborar, já que ele já foi

:;abalhado por outros (ver as referências abaixo citadas) - é o uso da mesma categoria entre os

·~entes, negros ou não negros, para se auto situar e situar os outros em relação ao que constituiria

.:..essência do negro enquanto representações sociais e culturais, enquanto lugar na sociedade local.
169
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

A exemplo do contraste relativo entre a categoria pobre e a de trabalhador, segundo o qual a

categoria trabalhador é construída, nas representações dos agentes, como sendo um valor

ompensador (eu sou pobre mas eu sou um trabalhadori; reivindicar a condição de trabalhador é

também um posicionamento moral em relação a seus pares, próximos e afastados; é se dissociar

ontra a representação. do negro; o qual, além de ser pobre, é ladrão, desonesto, irresponsável,

reguiçoso, negligente, perdedor, enfim, um lugar marginal que encerra um caos potencial, tomando

sempre instável a sociedade dos homens. A categoria de trabalhador permite aos agentes operar

uma classificação entre comportamentos "negros" e comportamentos de trabalhador (Eu sou negro

as sou um trabalhador).

Aexperiência dos negros no mercado de trabalho e o incessante processo de exclusão social,

- conduzem em direção à apropriação e à reivindicação, senão de sua qualidade de trabalhador de

fatc, ao menos do potencial de sua condição de trabalhador. Para os agentes nos meios estudados,

~ negro deve saber lutar, negociar com as condições adversas em eterna transformação, de modo a

~ realizar como um bom chefe de família e modificar suas posições nas. configurações sociais I\as

uais ele está inserido. A categoria colateral que os agentes invocam para expressar essa necessidade

:e vencer é a luta, a raça. O potencial vencedor, é um verdadeiro lutador.

O que dá ao lutador sua determinação de vencer, é a raça, a raiva de viver e a vontade de se

zz;_custe o que custar, um lugar ao sol. A raça; essa energia distintiva das famílias estudadas é uma

---ca do sangue. A raça pode também caracterizar o domínio dafamília/parente. Os adultos falam

--5 seus usando o termo raça. Dir -se-á por exemplo, a raça de fulano tal ou família de fulano X

Essa identificação funciona também como princípio de diferenciação, quando se diz "a raça de

10 X",. devemos prever o qualificativo que vem em seguida: "a raça de X é uma raça de boa

'e" ou "gente de sangue bom". A raça pode designar ainda os descendentes de uma pessoa de

te ruim,.mesmo se essa pessoa participa da família.

No oposto do sangue bom cristalizam-se todos os defeitos do sangue ruim: preguiça, inaptidão
170
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

ao trabalho, ingratidão, estupidez, amor ao ganho fácil, indisciplina,.feitiçaria,. feiura, enfim, tudo o

que remete à desordem, ao caos, ao anti-social, ao limite da natureza, etc. O sangue bom informa o

caráter das pessoas de bem; o sangue ruim; aquele dos maus malandros. A oposição sangue ruim/

sangue bom, não é rígida. Trata-se de fato de um princípio de classificação do mundo, dos grupos e

das pessoas, membros ou não da família.

O princípio do sangue é determinante na classificação dos gêneros e dos comportamentos

entre eles: o homem, por exemplo, é mais "quente" que a mulher. A natureza quente do homem se

explica pelo- fat~ de ser-~ homem- ~ depositário da-~aça.A ~aça,a.ga~~a,é masculina. É o-~gno

distintivo do homem (como gênero). O gênero masculino, segundo os agentes, é mais apto à violência,

à cólera, à brutalidade, à exuberância sexual. É por causa do sangue quente do homem que ele é

associado à aventura, à rua. Como veremos mais à frente (capítulo IV), existem domínios e

omportamentosna vida, principalmente na vida sexual, que só podem ser atribuídos aos homens:

esse estado de fato participa de sua natureza, de seu "sangue quente" de conquistador aventureiro,

o gosto pelo que é de fora, do espetáculo, do público. Por causa do sangue quente do homem,

representado por sua garra, por sua raça, certas atividades lhes são instrinsicamente atribuídas: no

:rabalho do campo, o esforço de plantar, de escavar,. perfurar, não lembram atividades adaptadas à

constituição fisica do homem e a uma postura masculina? Mas recolher as folhas mortas, assim

corno colher, de um modo geral; são atividades não exclusivamente femininas; mas adaptadas à

reza "morna", menos quente, portanto menos forte da mulher; na casa, as divisões são construídas

en função do esforço e da adaptabilidade das atividades à estrutura biológica dos sexos, da qual o

sangue é o indicador, etc ... Os agentes admitem que a herança biológica de um indivíduo vem, de

cartes iguais, do pai e da mãe. Entretanto; certos traços do caráter do indivíduo vêm, de preferência,

.:J sangue do pai ou da mãe. Por exemplo, uma forte dose de garra e de raça, transmitem-se de pai

,•ara filho; uma forte dose de paciência, calma, astúcia, etc. transmitem-se de mãe para filha. Se nos

·=:eríssemos exclusivamente às proposições gerais, tais como formuladas pela maioria dos agentes,

--,amos uma prancha traçada da seguinte forma:


171
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

PrandwXlX

homens mulheres

- qualidades biológicas: sangue quente, força - qualidades biológicas: sangue morno, agilida-
fisica, resistência, saúde ... de, saúde ...
- qualidades psicológicas: garra, raça, exube- - qualidades psicológicas: atenção, introversão,
rância sexual, extroversão, inteligência, paixão, emoção, amor, moderação, habilidade (na casa),
cólera, espírito de aventura ... memória, inteligência ...
- qualidades morais: trabalhador, lutador, - qualidades morais: paciência, atenção, mode-
provedor ração; ternura,_pr.ovedora ...

Entretanto, como fora acima sublinhado, a cultura de um grupo não nos sendo completamente

acessível através de proposições, os próximos capítulos mostrarão em que, na prática, elas expressam

a contradição e a ambiguidade.

Se o sangue constrói os gêneros, ele também constrói, nas representações dos agentes, as

diferenças entre as "raças". O homem, segundo os agentes, é mais quente que a mulher, o homem

negro é mais quente que os brancos, a mulher negra é mais quente que a mulher branca. Se o homem

é mais quente (sexualmente) que a mulher, por causa de sua qualidade raça, o negro é mais quente

que o branco, por causa da mesma raça. O negro, incluindo o mulato, é o calor feito homem. Por

ausa de suas qualidades fisicas, o negro sabe fazer com que as mulheres vejam as sete cores do

arco-íris ... Após o negro" (ou moreno; de acordo com o entrevistado ser francamente negro ou mais

ou menos mulato) vem o branco, depois a mulher morena (mulata), depois a negra, e, finalmente, a

ranca. A mulher morena (de fato morena escura; morena clara ...) na representação masculina, e

isto em todas as camadas socias de Cachoeira, é aquela que mais aparece nas fantasias sexuais. Os

agentes entrevistados concordam em declarar que a mulata é a expressão do mais perfeito equilíbrio

de sangue - portanto de virtudes sexuais - que a miscigenação pode produzir! Entre o Branco e

o Negro, passando pelos mulatos, sararás, marrom bombom, etc ... (as designações de cor serão

estudadas em outra parte), existe uma hierarquia diferenciada da raça.

As representações do sangue afetam ainda domínios tais como: o amor maternal, o amor
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

erótico, as relações matrimoniais, o amor filial, geralmente considerados pelo público - e mesmo

por certas literaturas especializadas - como sendo resguardados das determinações sociais e

históricas. Entre as mães entrevistadas, pude apreender uma quantidade significativa que "trabalha",

por assim dizer, suas pequenas filhas de "tez clara", de modo a investir, em seu amanhã, na carreira

de. mulata". Serão tratadas, no capítulo IV,. as implicações das representações do sangue, na

constituição da conjugalidade e das relações entre pais e filhos.

Q sangue bom e o sangue ruim se herda de qualquer raça". Mas ele não é igualmente distribuído

entre as raças. A pessoa branca é, por natureza, de sangue bom. Ela é honesta, trabalhadora, séria,

educada, respeitável e respeitada. O sangue bom é muito mais generalizado entre os brancos. Nas

zonas pesquisadas, os agentes designam como de alma branca, o negro que tem o sangue bom -

preto de alma branca; e de branco com alma negra, o branco - o não negro - que tem o sangue

mim. Os brancos, para serem depositários do sangue bom, têm muito mais de raça que todas as outras

categorias - ter raça, quer dizer.inteligência, vontade de vencer, garra no trabalho; sucesso, etc. Mas

que, segundo os agentes, deu mais consistência ao sangue do branco, é paradoxalmente a mistura,

essa contínua miscigenação; que fará da sociedade brasileira uma raça só. Assim, uma dose bem

pequena de sangue preto (negroi" reconfigurou as qualidades do sangue do branco. Entretanto, se

ça quer dizer resistência, força física, aí o negro 'tá na frente. Os agentes admitem efetivamente que

~ negro, incluindo os mulatos, têm muito mais resistência que os brancos, eles vivem por mais tempo,

são..mais-resistentes, É talvez nesse. sentido. que-é- preciso.compreenderporque.o sangue .negro

. ode recompensar as virtudes do sangue branco para dar a própria raça brasileira. Mas o que mais se

zestaca nas representações sobre o sangue é o seguinte: quanto mais se tem a pele negra, os cabelos

zespos (cabelos ruins) e o rosto negróide, mais se é naturalmente ruim, mas essa marca, indelével,

erá a categorizar o mundo, a classificar os grupos e a hierarquizar os agentes na comunidade". E

o para se liberar de um pecado original, os agentes constróem, desconstróem e reconstróem

:idianamente suas próprias auto-representações, de sua "raça", de sua "cor". Eu retomo, no capítulo

- es.sesestereótipos no quadro de análise da cena de escolha dos cônjuges.


173
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Cachoeira, Santo Amaro, Santiago do Iguape e São Félix e suas dependências municipais,

oferecem um contexto de campo de um "tipo ideal" para aquele que estuda as condições sócio-

culturais dos negros no Brasil. As populações que constituem os bairros populares e a massa de

mão-de-obra contratual desses municípios têm somente, em sua maioria, duas gerações separando-

os de seus pares, que foram submetidos à escravatura. A história dos bairros rurais e urbanos habitados

por negros nesses municípios é também a história dos lugares onde se configuraram formas de

exercicio da escravatura. A hierarquia inaugurada


-r=>:
dentro e pela colonização e instituição da escravatura

mal pode ser aí dissimulada. Os espaços físicos, como mostrei no capítulo I, dizem claramente o que

diziam as formas tradicionais de organização da sociedade. Uma boa parte dessa população, vive

ainda nas plantations dos antigos senhores, cujos nomes têm, para esses descendentes de escravos,

um valor mítico. Essa parte dessa população constitui o segmento menos favorecido das massas de

trabalhadores rurais da região. Em seu mundo, oscilando, em certos momentos, entre o rural e a

periferia urbana,. a herança de seus ancestrais através da religião, da música, da dança; é redimensionada

num contexto social onde conta apenas a força de trabalho que eles podem oferecer nas fazendas.

Esse capital simbólico fez deles. aos olhos dos habitantes das cidades da região,.um tipo particular,

meio urbano, meio rural. Nas representações dos urbanos, do centro ou da periferia, jovens negros

dos bairros estudados ou dos não negros, essa população é construída como sendo uma espécie de

caipira, único em seu gênero. Um caipira sujo, feio, estúpido (como todos os caipirasv.feiticeiro,

elvagem (quer dizer bárbaro; oposto à civilização), lembrando algo do protótipo "do africano?".

Mas o mesmo caipira, é também percebido como um dos "lugares" da autenticidade do poder

mágico que ele detem, em seus terreiros rudimentares e absolutamente desconhecidos dos turistas,

e que oferece uma macumba temível.

Os caipiras negros dos municípios acima citados não constituem, no entanto, uma população
\

uniforme, separada das cidades e voltada para si mesma. Ela é composta de pais, cujas mulheres

ivem nas periferias das cidades da região, onde percorrem cotidianamente asfeiras livres, de avós,

e pais e mães de estudantes, etc. A economia e a composição de suas casas participam da configuração
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Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

de casas, cuja extensão não respeita as divisões clássicas da sociologia/antropologia (rural/urbano),

ou da geografia administrativa (municípios,jreguesia, etc). Nos bairros pesquisados, o percentual

de. casas tendo sua extensão no rural é respectivamente: b 1=65%~ b2= 58%;. b3=48%. Entre.tanto,

os caipiras negros são construídos no interior de cada um desses bairros como sendo pretos. "Pretos .

(negros) só tem na roça" (no campo). E esses pretos da roça; são pensados como pessoas depositárias

do sangue ruim. É em nome do sangue C}!leos habitantes dos bairros estudados constróem a diferença,

sua auto-imagem como "não negros".

Mas os caipiras da roça são também um símbolo de poder mágico. Os agentes invocam com

prazer, quando o contexto é invertido, o nome de um tio, de uma tia, de uma mãe por consideração,

para. mostrar que têm com o que contar e.m caso de guerra entre os bons e os maus espíritos.

Finalmente, acredita-se, c'est l'acier qui coupe l'acier (é o aço que corta o aço); somente uma magia

mais forte pode vencer uma magia forte. A menos que se faça apelo à Jesus de Nazaré, "como

salvador pessoal" (os pentecostais); nesse caso preciso a associação negro (preto) = sangue ruim =

eiticeiro= África= demônio, fala.por si.

As representações sobre. Q ne.gro e sobre o sangue ruim não são isoladas dos contex\os

históricos dos quais foram geradas. Bastide (1969) havia insistido sobre a importância da cosmologia

cristã católica, na produção da imagem do negro. Nos meios pesquisados, particularmente em

Cachoeira, as representações religiosas associadas ao negro, a degenerescência, trazem com elas

esse imaginário coletivo, historicamente construído, sobre a naturalidade da inferioridade espiritual

.3 moral do negro. Os agentes das classes dominantes dos meios estudados, associam, de boa fé, a

condição social do negro à sua condição moral e espiritual. Que "os filhos de Caim", para retomar

::to designações feitas por certos grupos evangélicos aos infiéis dos candomblés, ou os "bastardos",

:-ara retomar o termo do padre da paróquia católica para designar as mulheres negras membros da

confraria religiosa negra" Nossa Senhora da Boa Morte - por ocasião do conflito entre as autoridades

.:ti Igreja Católica local e os responsáveis por essa confraria, em 1993 - sejam associados às coisas

uins, ao demônio, ao sangue ruim e à África, parece ser natural, aos olhos da maioria dos agentes
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

entrevistados: negros, brancos ou mestiços] Entretanto, é possível aos negros, segundo essa

representação, lavar-se num outro sangue, 2ara purificar-se: o sangue do Cristo. É em nome dessa

lavagem, que deve substituir as limpezas de corpo tradicionais e malditas dosfeiticeiros, e em nome

da redenção de todos, sem sujeiras nem diferenças.que os militantes evangélicos agitam suas bandeiras

partidárias. "Felizmente, dizia-me um analista local, informado a respeito das relações religiosas da

região, no Brasil tudo acaba em samba!".

A esse ponto, o sangue perde toda substância biológica e se transforma, nas representações

oletivas, em uma referência moral, que traduz a quintessência do lugar negro. Ele torna-se uma

ategoria moral, metafórica, que opera na classificação da diferença, dos próximos, dos afastados.

Ele transcende o domínio do parentesco para interpenetrar os domínios culturais, tais como a religião,

a nação, etc. Ele torna-se um princípio de classificação social e cultural. E como todo princípio

cultural traduzido na prática, ele constrói o paradoxo da exceção, a ambiguidade da exclusão e a

zmbivalência da aceitação condicional.

Nos bairros investigados.se é difícil.para os agentes, entenderem-se a respeito dos critérios

~e designação da cor de sua pele, os agentes se entendem ao menos sobre um fato: nos bairros não

-.:;gente de sangue ruim. As pessoas de sangue ruim; os pretos, moram sempre no bairro vizinho. O

cegro, poderia-se traduzir aqui, não sou eu, é o vizinho, que, por sua vez, diz que não é ele, é o

cutro; que diz que não é ele, é o vizinho; e assim por diante. E nesse jogo de espelhos, onde a

ziagem do negro se desdobra e multiplica ao infinito, o imaginário vem em socorro, trazendo para

~ .inguagem uma variedade de termos de auto-designação, rico e inesgotável, que é, de fato, uma

'uga desesperada da condição de negro. Como se essa condição social e historicamente construída,

_culturalmente desvalorizada, pudesse ser evaporada pela única virtude mágica da fuga imaginária.

No interior do bairro "a gente é uma só" ou "a gente aqui é uma familia só". É, ao menos,

ue se proclama abertamente. O tema da unidade é onipresente na ideologia franca dos agentes.

. a família só, é a face declarada da união. Mas as histórias das famílias, e as histórias de vida-

ce terei a oportunidade de apresentar mais à frente - contam uma outra realidade a respeito da
176
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

reconstrução constante de si e da diferença.

O sangue, segundo os agentes, transmite as qualidades e os defeitos que marcarão, de modo

irreversivel, a essência de cada pessoa. Os agentes admitem, de bom grado, que essas qualidades e

esses defeitos podem ser transmitidos tanto pelo pai, quanto pela mãe. Outros contextos etnográficos

mostraram como o sangue, princípio hierárquico, opera na construção das fronteiras, não somente

da.família e do parentesco, mas também dos grupos étnicos e sociais. Abreu Filho (1978: 179) mostrou

que, na comunidade por ele estudada, o sangue se traduz como "um vetor de qualidades étnicas"; H.

K. Woortmann (s/d) insistiu sobre o Keim; como princípio fundamental que, por um lado, precede as

relações matrimoniais, e, por outro lado, como princípio classificatório dos membros da família e da

comunidade. Outras pesquisas deveriam ser feitas; nessa mesma direção, para identificar as

proposições pelas quais os agentes, em contextos sócio-étnicos diferentes, produzem suas experiências

familiares.

Em Cachoeira, o princípio do sangue opera em duas direções complementares. Na primeira

direção, que eu designo como sendo positiva, o sangue organiza as fronteiras onde se constrói a

identidade dos.mesmos, dos-p{lJ:entes..e..da.famil~ É.o..princípio. culturaLque..dá..conta-da.desc.endência.

_~areconstrução da árvore genealógica..o sangue é dado a ego como o único meio de identificar

positivamente seus antepassados- bisavô/bisavó. É o sangue que dá a seus antepassados a resistência

iológica que faz com que, em geral, eles usufruam de uma excepcionallongevidade. (A média de

ngevidade, segundo QS dizeres dos agentes,..é fabulosa; ela se situa em cerca de 110-115 anos. Eu

-::;0 conheci uma só família que não me tenha relatado, com orgulho, que a bisavó ou seu avô tenha

rvido para além de 100 anosl), Um outro nivel, no exercício positivo do princípio do sangue,

consiste em seu simbolismo mítico atribuído - ao mesmo tempo, negativamente (negrosfeiticeiros)

! positivamente (negros misticos; poderososi =: aos negros nas representações dominantes da

ciedade, sendo negativa e positivamente recuperado pelos próprios negros.

Na segunda direção, que eu chamo negativa,.. os sangue opera como princípio hierárquico,

ndo como uma categoria de percepção de si, dos parentes/família, da comunidade e da sociedade
177
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

em geral (negros depositários de sangue ruim}. Através dessa categoria, opera-se uma ideolo$ia

hegemônica na sociedade, segundo a qual, o negro cristaliza em si todos os elementos negativos e

caóticos da sociedade. Veremos mais à frente,..como essa ideologia traduziu-se em estrutura normativa

que modela os comportamentos concretos dos agentes, na configuração e na dinâmica do mercado

matrimonial, na regulação dos sentimentos, na produção da escolha de parceiros, nas estratégias

otidianas de distribuição dos agentes familiares através da migração, na produção dos sentimentos

filiais e paternais, na construção das redes de poder na prática familiar, e, enfim, na construção da

àmília e do parentesco como domínio sócio-cultural.

A..consideração

Se o sangue é a condição necessária para identificar aqueles que são parentes (parentes de

sangue), ele não é uma condição suficiente. O parente éparente somente quando ele é "reconhecido"

corno tal. Esse "reconhecimento" passa pelo uso que ego faz da condição de parente de altero Ser

pai é, antes de tudo, reconhecer que a criança é seu filho. O que implica ter consciência das relações

:e obrigação que esse reconhecimento implica. O mesmo raciocínio vale para a mãe, o primo, o tio,

.:.tia, etc. A mãe que não cria é cachorra. A mãe que dá a luz a um filho e que não o reconhece -

que implica em suas responsabilidades enquanto mãe - é comparável a um animal (um cachorro).

cachorro, ou qualquer outro animal, não cria seus filhos. Dar a luz a uma criança, engravidar uma

~, não- são- atos propriamente. humanos, É a. lei- da-natureza. que. se. cumpre. O-humal10 na

estão começa pelo "reconhecimento" - o que supõe a consciência de suas responsabilidades.

e-se não ter os meios necessários para corresponder a suas obrigações como pai, mãe, primo,

rmão, tio,. padrinho, madrinha. Mas o essencial é estar disposto a mostrar-se solidário em certas

c.scunstâncias de vida daquele que reconhecemos como parente.

Nos bairros estudados, um pai que não tenha os meios de assumir suas responsabilidades é

cialmente reconhecido como pai. Ele se esforça, mas as possibilidades (do exterior) não lhes são

I'
178
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

oferecidas. Certamente, todo homem digno desse nome deve trabalhar para assumir o que é seu,

para responder por suas obrigações. Mas se todo o mundo vê que ele se esforça, que ele é um

"trabalhador" - que-não-encontra-trabalho e que, além disso, está disposto a responder por suas

obrigações (ele apenas não tem os meios), ele é tolerado. O mesmo raciocínio aplica-se às mulheres-

mães, ao filho, às filhas, primos, etc.

Esse reconhecimento se traduz pela categoria cultural de consideração. A consideração

supõe uma estrutura de relação de troca; uma demonstração, por códigos sócio-culturais, partilhados

e reconhecidos pela comunidade, do reconhecimento de alter como sendo dos seus, entrando

ativamente no circuito de reprodução simbólica da família e do parentesco. De outro modo, um

'parente" que não tenha "consideração" por um outro parente - quer dizer, que rompe suas

relações com a rede doméstica, que evita a cooperação, que se constrói num conjunto de valores

opostos ao princípio da cooperação ... ou sela, que não "reconhece" o outro parente e que não se

reconhece nele, não é, por sua vez, "reconhecido". Ego ignora X como seu tio, se X, que é seu tio

.ie sangue, não reconhece socialmente ego.

A idéia de consideração sugere um conjunto de proposições, partilhadas pelos agentes,

sobre o que eles consideram como sendo obrigações morais envolvidas na idéia de parente/família.

orno foi mencionado no capítulo anterior, a idéia básica que.junto aos agentes, traduz a obriga~ão

ze cooperação entre os humanos é a colaboração. A mão direita - ou qualquer outra parte do

~~Q a ela ligada - não. v:ale.grande coisa, pensam.os.agentes, É a união. e-a-colaboração. de. cada

-anbro que faz funcionar o corpo. Sem a colaboração, através da união, o mundo, a sociedade, a

Z:nilia, a casa, ... não existiriam. As relações obrigatórias (que fazem com que qualquer um seja

crigado a colaborar) inauguram-se desde o nascimento. E como a criança é marcada pela carência

-ginal, segundo os agentes, já que ela dependerá de sua mãe, ainda por muito tempo, antes de

rccer encarregar-se parcialmente de si mesma, os pais - pais e mães, biológicos ou não - têm a

igação de socializar seus filhos. Essa obrigação vem do fato deles também terem sido socializados

- seus pais. Essa obrigação se inscreve numa relação de troca mais vasta, segundo a qual: todo
179
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

parente tem a obrigação de criar o filho de um outro parente, qualquer que seja seu grau de

proximidade consanguínea com este último, o que leva à abundância de filhos de criação nas zonas

pesquisadas. A socialização das crianças estrutura as relações obrigatórias entre as gerações, conforme

a condição de dívida original da condição humana. Uma outra obrigação moral dos parentes é a

obrigação de ajudar - ajuda; participação, colaboração . Um parente é alguém com quem se pode

contar. Ele é, por definição, um lugar de refugio, um apoio, uma fonte de ajuda em caso de necessidade.

Espera-se. ainda dos parentes a responsabilidade com respeito aos seus. A responsabilidade é, a

marca do trabalhador. Os agentes pensam que, sem a responsabilidade, quer dizer, sem a determinação

de alguém em cumprir com suas obrigações, de cumprir o seu papel, seja como membro da casa ou

da configuração de casas, seja como padrinho/madrinha, seja como vizinho, etc, a vida familiar seria

impossível. A responsabilidade traduz o sentido de honra daquele que a manifesta: a pessoa

responsável, explica um agente, é alguém que sabe cumprir os seus compromissos. A responsabilidade

remete à honra e ao respeito. Os exemplos abaixo mencionados traduzem o quanto, para os agentes,

a noção de responsabilidade é construída em relação a seu papel: um pai que não sustenta sua

familia, uma mãe que não cria seus filhos - ou que não os coloca nas redes familiares com essa

5nalidade, o homem que não trabalha e que ousa reclamar de sua mulher, o agente que, na casa, não

colabora.etc.i são alguns dos diversos casos que podem traduzir a irresponsabilidade.

Essas proposições, traduzi das pela consideração, sugerem o quanto o uso da família e do

_arentesco é seletivo. Os agentes selecionam seus parentes/familia; ou aderem a parentes/família

ca medida em que estes, tomados individualmente, correspondam a seus interesses bem específicos".

reconhecimento efetivo dos parentes aciona mecanismos de seletividade daqueles que compõem

-o universo efetivo" (Firth et aI.1970) dos parentes/familia, aqueles que são considerados como

:ais. A consideração, é a seletividade em ação. A consideração não opera apenas em confirmar as

':emarcações ideológicas e sociais articuladas pelo princípio do sangue. Para estudar o alcance do

;rincípio da consideração na produção concreta da família, é preciso que o vejamos em ação na

:roduÇ.ão dos critérios de escolha dos parceiros e das relações, no seio dos grupos familiares aos
180
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

quais. ele.contribui.em.construir, Ép-r.ecisG-que-G-estude.mos.-em-SWl-acticulaçãG-com-as-c~gias

que fundam as representações e as práticas de si e do outro, do público e do privado, da descendência,

da aliança e da transmissão. É o que acompanharemos no capítulo IV

Família e parente

A "consideração" entre parentes não passa necessariamente pelo "bem viver", pela boa

convivência. Fulano é meu irmão, meu primo, ou meu padrinho. Se, por uma razão ou outra, "nós

não podemos viver juntos" - quer dizer, se nos tornamos adversários ou mesmo inimigos - uma

vez que socialmente ele me reconheça como irmão, primo, ou afilhado, eu também o reconheço

come irmão, primo; ou padrinho, É. porque. as-lutas. de. família. p.odem.le.v:ar.até. à. morte, S-et=i~mão

ão significa não precisar vigiar um ao outro, para não ser envenenado, morto ... porque, na constru,ão

da família como experiência, a casa é central. Nós podemos ser da mesma família mas não podemos

"viver juntos", na mesma casa. Considerarei então fulano como dajamília e não na minha familia.

Um parente reconhecido éfamilia": Afamília é o conjunto dos recursos de parentesco e de

zfilhados que podem ser - e que são - invocados para produzir o cotidiano familiar - quer dizer,

zfamília como experiência - e realizar o projeto familiar - quer dizer, a família como projeto

;essoal e/ou coletivo. Nem todo integrante dafamília reconhecido comojamília (ou dafamilia) é

ente. A condição cardial para fazer parte da família é o "reconhecimento" dos mesmos que

-:-"'sorveramalter nafamília. Esse reconhecimento dos dois lados funda os direitos e as obrigações

- quer dizer, a cooperação - nos limites da experiência familiar e do projeto familiar. Nem todo

'arente é automaticamente dafamília. Mas todo parente reconhecido como talo é. Inversamente,

cem todo agente reconhecido como família é necessariamente parente. Ele pode ser mais do que

tarente (mais que um irmão, que uma mãe, que um pai). Mas ele não é considerado pelos agentes

como tal.

Se a integração de um agente; como membro da família por consideração, cria condições


181
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

para que um novo integrante sinta-se envolver na vida familiar, pertencer a essa família, definir-se

na simbologia da casa, ocorre, por outro lado, que o uso individual que ele pode fazer dos recursos

afetivos, materiais, e simbólicos, disponíveis na rede doméstica, é limitado em relação àqueles 9ue

se sentem parentes de sangue. Como ele não pode dispor, por uma espécie de direito implicito do

sangue, dos mesmos recursos no interior da rede doméstica,. ele cria para si meios de capitaliza~ão

ou de maximalização dos recursos disponíveis - exploração das rivalidades entre parentes de sangue,

charme, sedução, intrigas, integrações em "mini-redes de cooperação", etc - a fim de perpetuar a

construção de seu lugar nafamília.


182
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Notas do. capítlJl~ 111

L Segundo Yanagisako, a importância concedida pelos estudiosos da família à genealogia, à


reprodução e à delimitação dos laços familiares no círculo doméstico, traduz a força da herança
malinowskiana na concepção dominante da família nas ciências humanas (Yanagisako 1979: 161-
205).

2. Um exemplo: a teoria, da "pessoa social" de Sir Henry S. Maine, formulada em Ancient Law,
1861, segundo a qual os grupos sociais, em suas formas as mais primitivas (as sociedades domésticas),
refletiam-se em seus sistemas jurídicos.

3. Ou, como o queria Peter Laslett ou Christopher Lasch , An Haven in a Hartless World.

4. Por exemplo, a antropologia do parentesco construiu-se a partir dos lugares tradicionais


privilegiados para estudar as relações de parentesco entre os indígenas e os grupos tradicionais das
Am-éticas.

5. Desde os trabalhos de Frazier (1939) e de Herskovits (1941) - os quais lançaram o debate cujos
efeitos afetam ainda as discussões contemporâneas (Price e Mintz, 1976:33) - os antropólogos.
coletaram dezenas de monografias etnográficas sobre esta questão. O debate articulou-se em torno
da seguinte questão: qual é a parte da herança africana na constituição do Negro nas Américas?
Devemos pensar este último a partir de sua condição sócio-histórica (Frazier) ou a partir de uma
perspectiva que coloca em relevo a sua especificidade (Herskovits)? A família dos negros é a expressão
de.uma desorganização consequente da escravidão - quer dizer; de uma tábula rasa (Frazier) - ou
das sobrevivências (herança) africanas? Todo um campo foi desde então aberto à sociologia!
antropologia norte-americana, a qual iria instituir-se em paradigma para a pesquisa sobre "a família
negra", não somente nos Estados Unidos, mas também no Caribe e em algumas regiões da América
Central.
Na América do Sul, principalmente no Brasil; em função do jogo instituído por relações
intelectuais construídas entre os conceitos de raça, de classe e de nação, relações as quais traduzem,
evidentemente, a ordem racial e sócio-econômic_a em vigor (Skidmore, 1974~Wade,.1994):>--0estatuto
da família dos descendentes de escravos africanos não conheceu o mesmo destino. No Brasil, as
idéias de miscigenação e de democracia racial permitiram às ciências sociais construir o objeto
familia a partir de uma representação dominante, a família patriarcal, na qual a organização familiar
os escravos e de seus descendentes não é pensada senão como agregada.

S. Sobre a importância desta ruptura na orientação da pesquisa no Brasil, ver Introdução.

-. Após a segunda guerra mundial.i a renovação industrial das sociedades ocidentais, causada pela
revolução tecnológica do pós-guerra, conduziu as potências ocidentais - principalmente Inglaterra
c EUA - a efetuarem uma transferência maciça de suas máquinas antigas para suas periferias,
dinamizando assim a expansão industrial e o crescimento do mercado nos países antes colonizados.
_~oBrasil, esta transferência efetuada no curso dos anos 50,. propiciou um impulso econômico e
.ima onda de industrialização considerável. Como na antiga Europa, os pesquisadores dedicaram-se
posteriormente, ao estudo do impacto da modernização crescente sobre as camadas pobres ~ o
campesinato da sociedade brasileira. O estudo sistemático das famílias dai classes populares no
3rasil acompanhou sobretudo o aumento crescente da industrialização t6paíS,. principalmente nos
znos 60-70 - e mesmo ao longo dos anos 80 - dando lugar a monografias, hoje clássicas, de um

L
183
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

rigor metodológico bastante aplicado. Nessas monografias, as classes populares são tomadas sob a
categoria sociológica de trabalhadores, e as linhas de pesquisa visam situar as famílias provenientes
desses meios dentro das relações de produção, mas também como unidades de reprodução da força
de trabalho (a literatura é vasta; à guisa de ilustração, ver Bilac, 1978; Fausto Neto, 1982; Macedo,
1979. Ver também a Introdução); Para uma crítica dos paradigmas dominantes nestas pesquisas,
ver Durham, 1980; Stolke, 1980.

8. Entre outras tentativas de ruptura com a tradição estruturo-funcionalista que marcou fortemente
a elaboração dos modelos e as formulações abstratas que deviam dar conta das regras e princípios
que governam a organização da estrutura social, Bamard e Good (1984) propuseram estabelecer
pistas que serviriam menos para definir o domínio do parentesco enquanto tal, do que para localizar
as relações pelas quais e nas quais este domínio se constrói. Neste capítulo aproprio-me desta
abordagem colocando as características das relações que podem inscrever-se neste domínio: essas
relações podem iniciar -se ou não podem iniciar-se ou não nas formas de união em vigor no contexto
etnográfico; elas podem se referir, durante toda a vida, à ascendência biológica ou não; mas elas
encontram nesses dois critérios, principalmente o biológico, sua justificação e sua explicação em
termos biológicos; elas constróem relações obrigatórias entre todos aqueles que constituem o nós
por oposição aos outros,. quer dizer.aqueles que não participam desse sistema de relações obrigatórias;
elas mantém propriedades e recursos (de todo tipo) comuns, assim como seus usos e os mecanismos
de transmissão destas propriedades; essas relações servem de meio para legitimar as heranças das
posições sociais; elas colocam as crianças num circuito de troca e de relações obrigatórias entre
diversos graus de proximidade,. etc. (Barnard e Good,.1984:88-189).

9. Conforme mencionei nos capítulos I e 11,o conceito lévi-straussiano de troca coloca em relação
os diferentes (o si mesmo e o outro} para fundar a sociedade. Procurando, através dos princípios da
troca e da reciprocidade, as estruturas profundas suscetíveis de dar conta do universal sócio-cultural
do espírito humano .Lévi-Strauss deu muito pouca ênfase - ou não se deteve absolutamente - às
relações de poder que elas inauguram. Sobre "a economia política" da troca, ver Rubin in Reiter,
1975~ para uma crítica da teoria da troca e da reciprocidade em Lévi-Strauss, ver Raheja, 1988;
Weiner, 1992.

10_Ver também Firth 1970 capítulo 2. Um dos estudos fundadores desse domínio de investigação,
mencionado por Smith (1988:32) e citado em notas de pé de página por R. Firth (1970:51, n.6), na
origem das considerações de Alexander (l976} sobre essa técnica, foi o de Linda M. Wolf,
Anthropological Interviewing in Chicago: Analysis of a Kinship Research Experience, University
of Chicago Press,. 1964.

11.....
Sobre a casa e seus integrantes, assim como sobre a noção de configuração de casas" ver
apítulo 11.

12. Ver capitulo V: Celebrar "a" família: casa, mitos familiares e transmissão de bens entre gerações.

13. O estudo fora desenvolvido sobre a construção cultural do parentesco na classe média jamaicana.

14.Nesse sentido, os siblings não são.eles próprios, antecipadamente dados. Eles se definem conforme
as representações e práticas entre os agentes.

15. De fato, como Woortmann (l987} observou em seu estudo sobre e familia das mulheres nas
184
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

periferias. de Salvador.ou ainda.num outro contexto etnográfico.R. Smith nas sociedades caribenhas
(Srnith 1987; 1988), os agentes acreditam que o parentesco pleno passa pela mãe (sem no entanto
negar a filiação pelo pai).

16. Sobre a oposição com osfracos, os coitados, ver capítulo lI.

17. Uma diferença significativa e interessante a respeito desse ponto, num encontro informal que
reunia cerca de 7 pessoas, entre elas 4 mulheres,. do bairro 3 - o mais marginalizado nas
representações dos agentes dos outros bairros da cidade de Cachoeira, cujos habitantes são em mais
de 85% negros - as pessoas foram unânimes e categóricas ao afirmar: "nós não somos pobres a~ui,
o pobre é aquele que mendiga, ou que vive na rua, nós, nós trabalhamos, nós podemos não ter nada
para por sob os dentes, mas pobres nós não somos. O pobre é o coitado que dorme na rua. Aqui
todo mundo é classe média ..."

18. Entre outros campos de manipulação da "cor da pele" entre os agentes, a sexualidade constitui
um campo interessante de recuperação das qualidades atribuídas especificamente aos negros,
considerando-se seu "sangue quente". As mulheres mulatas e os morenos, por exemplo, que, em
outras circunstâncias negariam sua ascendência negra, invocam e, frequentemente, reinvindicam,
com orgulho, "sua negritude", característica primordial em nome da qual pode-se gabar de suas
proezas sexuais. Sobre os outros campos ou domínios nos quais o construto "negro" está em alta,
ver capítulo IV: A prática matrim~nial.

19. No Brasil, a noção de mulata traz com ela representações complexas sobre a mulher negra,
ligeiramente "tingida" ou "clareada". A porcentagem "de obscuridade" que é preciso deixar de lado
para tomar-se mulata; varia de um espaço social a outro e,. mesmo, de um indivíduo a outro. Os
estereótipos instalam a mulata na prostituição, no streep-tease (para os turistas), no "calor sexual",
etc, Uma mulata (morena escura e uma série de termos de designação a ela associados) pode decidir
tornar-se ou não mulata, no sentido de escolher "fazer carreira" na "profissão" (no sentido de
streep-teasei, nesse sentido, toda mulata.xiz representação geral dos agentes, é morena escura.

_o. Como foi mencionado na nota 22 do capítulo lI, eu organizei seções de encontro coletivo em
diversos bairros, principalmente em Cachoeira. Sobre o tema de "auto-percepção e auto-estima",
assim como sobre as idéias de "raça" e de "cor", no cotidiano familiar; eu reuni grupos de jovens ou
adultos. dos dois sexos, grupos de homens ou mulheres, exclusivamente de Cachoeira. A livre
associação de idéias foi, com essa finalidade, muito estimulada; uma das técnicas privilegiadas foi a
exploração intensiva das piadas sobre os negros na comunidade; em seguida, num outro encontro,
:'azia-se "o inventário" dos insultos que retomam idéias estereotipadas sobre os negros, os contextos
esses insultos, os protagonistas e as respostas apropriadas a cada uma delas. Os temas e/ou sub-
:emas oriundos dessas discussões foram, na maior parte e, na medida do possível, aprofundados. As
pessoas que participaram das discussões de grupo - de modo bastante informal e descontraído,
"isto a carga emocional que tais questões ligadas à raça e à cor dissimulam - provinham todas dos
airros estudados. Eu também privilegiei entrevistas individuais temáticas em profundidade, desta
'ez com indivíduos representantes de todas as camadas sociais de Cachoeira, com indivíduos
~ovenientes de outras. periferias urbanas do Recôncavo e de Salvador. Meu interesse aqui não
consistia na pesquisa das variações na percepção sobre a raça/cor entre os negros do Recôncavo,
sse trabalho outros fizeram e continuam a fazer. Meu objetivo fora captar as proposições mais
~esentes entre os agentes, de tal modo que fosse possível estudar como essas proposições gerais,
...:artilhadaspelos membros de um grupo às brigas, em variações de contextos próximos. nas mesmas
185
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

estruturas de dominação, na mesma hierarquia racial ou de cor, participam na constituição de uma


visão de si, dos outros, e do mundo, impregnando todos os níveis do domínio da família e do
parentesco. Em que medida pode-se pensar a experiência familiar de um "grupo", teoricamente
dissolvido numa determinada categoria social - a "classe social" ü! família proletária ou classes
populares) - sem considerar as proposições básicas que sustentam a construção das relações
investidas nessa experiência familiar? Seja o sangue, por exemplo, que parece ser uma proposição
fundamental partilhada pelas classes populares como um todo (7) ou pela sociedade brasileira em
sua globalidade - (sobre o tema do sangue, em outros segmentos sociais e grupos étnicos, ver
Abreu Filho 1978, H. K. Woortmann s/d), ao mesmo tempo em que ele constrói o domínio dos
parentes (ideologia do parentesco e da família), ele constrói uma hierarquia sócio-étnica no interior
e no exterior das. fronteiras que ele organiza. Ele constrói parâmetros de experiência diferenciados
do público e do privado, do público no público e do privado no privado. É claro que ninguém é
"étnico" 24- horas por dia; mas- &24- horas- por dia-- nos- sonhos como no estado- de-vigí-lia, no
mercado de trabalho como no mercado do lazer, nos domínios "públicos" como na manifestação
dos sentimentos individuais, na criação do objeto de fantasia como no mercado matrimonial, etc -
ue "o ser étnico" se constrói, apesar de tudo, pois ele é instalado num estigma que ele, próprio
ontribui, conscientemente ou não, em reproduzir e perpetuar.

21. Seria bem louco.xíiria o outro, quem pretendesse que Gobineau não seja lido no popular.

~2. Meu estudo, lembremo-nos, tomou como campo alguns bairros da periferia de Cachoeira e
Salvador; tendo como suporte comparativo a observação não regular e as entrevistas de algumas
essoas habitantes das periferias das outras cidades do Recôncavo, com excessão de Feira de Santana.
Esses.bairros. geralmente os mais pobres dos bairros pobres, são povoados - no caso de Cachoeira,
anto Amaro, São Félix, Muritiba - em mais de 75% por descendentes de escravos africanos, e em
cerca de 20% de mestiços, de negros e indígenas.

_3. "A África" tem um estatuto ambivalente nas representações dos negros do Recôncavo. (A África
::eglã assusta' ainda mais os- negros- das outras regiões- do-Brasil; instruídos ou-não; eorn os quais
conversei), Como referência geográfica onde vivem os ''verdadeiros negros" (os africanos), a África
~ traduzida como sendo o lugar da barbárie, da miséria, do caos, da decadência humana. Para os
zegros dos meios estudados, a condição sócio-econômica dos negros no Brasil é "muito, mas muito
elhor" que aquela de seus congêneres africanos. Um casal amigo levou-me a fazer um tour em
- antiago do Iguape para me familiarizar com a vida cotidiana dos negros na região. Exprimindo sua
dignação frente ao espetáculo desolador que apresentam os habitats destes, a mulher de meu
lmÍgo-exclamou: "Olha só,-Loui.sJ plU€C€ atiÁI~ica!"e-meu-amigo conflrmou: "pelo-menos p~lo
. te a gente está vendo na TV né? ... ". Comparar um negro do Recôncavo a um africano, a menos
. e, por uma feliz coincidência, o interlocutor pertença ao (ou seja um simpatizante do J Movimento
-.:gg1'o-da.Bahia,é, para ele, transpor a.África para.o.Brasil; é-tornar visível, aseus..-olhos, ummu~do
:e caos, de barbárie; é rnergulhá-lo nesse lugar imaginário temível que é o negro, lugar do qual,
a sua vida, ele luta cotidiana e-desesperadamente para fügir e libertar-se, a fim de tornar-se um
...ia. quem sabe! Um cidadão .
negros.do. ReCÔJ1Cavo... É um lugar
Mas a.África tem. também. um. outro. estatuto. aos...olhos...dos.
.. co onde reinam os espíritos mágicos. Para alguns, lugar de origem das "nações-mães" (as diferentes
emias e civilizações que fõram transportadas para as plantations da América), dos avós, raízes das
3.mílias, altar dos Orixás; para outros, lugar que detém poderes temíveis, a inversão do mundo real
- ...qual o negro é rei; enfim, outros pensam que é o lugar onde se encontra o Haiti e seus vudus com
So..-"US- mistérios, É a.esse lugar mitico-que..os agentes fazem remontar as.heranças. simbólicas. de suas
186
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

famílias. A África, nessa outra- representação, éum espaço informe, um lugar mítico. e místico, um
.ugar inaugural do qual provém a força mística dos avós. Essa outra África é um pretexto, um
acidente feliz na cosmologia dos negros no Recôncavo, acidente refiz, porque, graças a ele, pode-se
mvocar e reinvocar os antepassados> negando totalmente o passado da escravatura.
2..t.. Sobre as confrarias religiosas negras, ver capítulo V.
v

::5. Como expus. no capítulo I,..no Recôncavo; a existência social dos negros passa pelas redes
sociais, fa~liares e para-familiares, nos quais eles são construídos. Nós vimos também que a
constituição sócio-histórica do espaço público no Recôncavo - como aliás por todo o Brasil -
responde por um regime particular segundo o qual a cidadania do negro não tem seu fundamento
nele mesmo; enquanto sujeito de direito, mas sim em circuitos de relações pessoais nos quais el~ é
~efinido, em função de sua posição nesse campo de relações (DaMatta 1991, 1982; Hanchard 1995) .
.Assim, do mesmo modo que nas plantations escravagistas coloniais, é a própria plantation 9ue
constituia o lugar de referência pelo qual ele se definia, na sociedade baiana contemporânea são
sses circuitos. de relações personalizadas que lhes dão acesso ao espaço público. Esse circuitos de
relações estruturam uma relação de troca desigual entre os agentes da periferia, negros e mestiços,
;:os membros das classes intermediárias e dominantes. Em Cachoeira> esses circuitos são traduzidos,
zas representações dos agentes da periferia e do centro, em termos de consideração. A consideração
:::.àoconstrói apenas os. domínios. do parentesco, mas também os domínios das relações sociais
estruturadas a partir da linguagem e da ideologia da família.
É em termos-de CGnsider:açãoque os.domésticos, por..exemplo, explicam.suas "boas.relações"
= "a amizade" com os patrões. Para os domésticos, o bom patrão é aquele que considera a gente
~Ano gente, gente dafàmilia. O mesmo ocorre para os trabalhadores rurais ou para os agentes que
:2zem "serviços" particulares para os. patrões> sem que esses serviços sejam pensados em termos de
relações de trabalho. O princípio de consideração apela, do ponto de vista dos agentes da periferia,
~ "bondade" (bom coração) dos. patrões, ao respeito, à segurança relativa para o caso de problemas
u de "necessidade" da intervenção destes a seu favor no espaço público. Para os patrões entrevistados,
~ consideração supõe uma relação cordial, q.uase familiar ou expressa em termos familiares; um
:-:lternalismo otimista que convence ao mesmo tempo o pai-patrão social e o agregado que eles
:crtencem a "uma só família"; uma união indefectível de dois mundos separados,. mas que se
eatrecruzam em carrefours bastante previsíveis, tais como: o carnaval, a cozinha, os campos, ou
_ ..•:tIOS lugares. "naturais", s.em os quais "a família" não existiria.
O princípio da consideração, como o do sangue, interpenetra outros domínios sócio-culturais.
::-'es constróem um domínio social denominado parentesco,..em interpenetração com os outros. Ele
'~cula lugares sociais e produz significados nos diversos níveis desses lugares e nos diferentes
=--aus.de interpenetração: a consideração articula a construção do lugar do negro na sociedade local.
-cravés do princípio da consideração, as ideologias dominantes e ativas na sociedade penetram os
-erstícios sociais do parentesco.ríe modo a recompensar as dimensões biológicas e necessárias das
-;:lações, em termos contingentes .

.:S. É porque a-linguagem corrente não. permite estabelecer.no.ímedíato a distinção entre parente e
'amilia.
187
"amilia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Capítulo. LV:. a prática matrímonlal.

Eu mencionei, no capítulo 11,os textos de Lévi-Strauss sobre a casal, nos quais ele expressa

seu desejo no sentido que a antropologia contemporânea possa se preocupar menos com as oposições

teóricas entre a aliança e a filiação - debate; a seu ver; ultrapassado, visto que o estatuto da ---r-
casa,

resultando do parentesco cognático, não é determinado, nem pela primeira, nem pela segunda - e

mais com a compreensão das estruturas cognáticas reguladoras da prática matrimonial nas sociedades

aão-tradicionaís. Essas estruturas, por outro lado, estão sujeitas à variações, não somente entre as

sociedades não-tradicionaia.maa também no interior de cada uma delas, sendo relevante Q contexto

sócio-histórico que caracteriza sua singularidade. O estudo das práticas familiares no meio popular

. rasileiro, enquanto manifestação das representações que uma classe de profissionais faz a seu respeito

'" a respeito da alteridade, que ela ajuda assim a produzir, com raras excessões, revela-se muito

. ouco paciente ao produzir observações detalhadas das práticas matrimoniais neste espaço social.

Os modos de sociabilidade em seu interior passam frequentemente despercebidos e as práticas

matrimoniais dos agentes são traduzi das de tal maneira, que suas traduções os representam pura e

simplesmente como sendo êtres de besoin, inteiramente dentro dos moldes da máquina capitalista,

incapazes de produzir um conjunto coordenado de comportamentos matrimoniais; dentro de um

sistema coerente de normas e de relações que sejam dignas de observação.

Eu me proponho, na primeira parte deste capítulo, a produzir uma contribuição etnográfica

sobre o funcionamento concreto do processo matrimonial tal como é praticado pelos agentes no

Recôncavo. Tentarei, em seguida, traduzir como as disposições individuais e familiares, social e

culturalmente constituídas, constróem a percepção dos gêneros e organizam a classificação e o

julgamento sobre os quais repousam as escolhas dos parceiros. Em outras palavras, encontrar-se-á
188
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

ao longo de todo o texto..a idéia de que as relações afetivas e sexuais, as próprias escolhas afetivas

entre os agentes são profundamente determinadas pela força operante da ideologia do branqueamento,

e do contexto sócio-cultural dentro dos quais esses agentes se definem. A tradução dessas disposições

supõe o estudo das formas de sociabilidade que, assim como a posição social e cultural, e as

representações que lhes são associadas, medeiam a produção do processo matrimonial. Serão também

analisados os quadros de exercício desta classificação, as categorias culturais de percepção que lhes

são relacionadas e os próprios julgamentos sobre os quais (e a partir dos quais) são produzidos e

orientados os sentimentos de amor e de amizade entre os agentes.

O interêsse de um estudo nesse sentido é de sublinhar a importância da vida matrimonial

entre os agentes e também de tentar a localização (le repérage) de um modelo de aliança em vigor

na comunidade. Tentaremos revelar, para além das regularidades estatísticas, as regularidades

rmativas que norteiam as preferências matrimoniais.

As investigações etnográficas sobre a família nas classes populares, particularmente sobre a

-:múlia entre os Negros nas Américas, têm desenvolvido uma rica tipologia de formas de união em

curso nesses espaços sociais. As formas de organização familiar desses espaços sócio-étnicos têm

o inventariadas, classificadas e traduzi das numa linguagem estatística altamente sofisticada. Baseada

- .im formalismo tradicional próprio à antropologia afro-americana, esse inventário decorre dos

delos analíticos aplicados às variações estruturais, indo da família monoparental e os diversos

dos de combinação possíveis, apresentados pelas famílias sem pai, à família extensa. Apesar do

.o grau de sofisticação desta tipologia, ela obedece a formas eruditas de etnocentrismos constitutivos

- desenvolvimentos da antropologia. A operação de categorização das formas de união nestes

aços sociais refere-se no fundo a um princípio universal, formalizado na família nuclear, a partir

~~ qual se efetua esta categorização. Desenvolveu-se portanto uma tradição de pesquisa sobre a

...a e o parentesco, que tem como ponto de partida da análise da estrutura social, as relações

rmais de direitos e deveres - de jure ou de jacto - implícitas nos estatutos e nas relações em
189
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

questão (Bourdieu 1977; 1982). Essa visão legalista e fonnalista constitutiva da pesquisa antropológica

é também acompanhada de um etnocentrismo de classe, que reserva à ordem do caos, todas as

formas de relação que não se deixam classificar dentro dos quadros de valores propostos pelas

classes dominantes. Sabemos que no Brasil este etnocentrismo de classe frente às formas de união

não-dominantes é mesmo constitutivo da historiografia da família brasileira. Eu sublinhei, ao longo

da introdução, o caráter unilinear e homogêneo da trajetória traçada por esta historiografia. Vimos

também o q.uanto o percurso univoco que vai da figura-modelo patriarcal à família nuclear.tal como

reconizado pelas pesquisas clássicas, procedeu pelo apagamento de traços, reduzindo a existência

histórica de todos os elementos que não participam do modelo dominante, num lugar privilegiado: o

engenho - excluindo automaticamente a possibilidade da história das formas familiares alternativas

Corrêa 1982),. estas últimas isoladas na marginalidade.

Finalmente, há um elemento central nos jogos de classificação manipulados em nossas ficções

conceituais. O Estado e a ideologia social dominante participam ativamente na marginalização das

:onnas não legais de união, partilhadas pela sociedade dominante. Falar família é falar Estado. "A

família" como enjeu político, faz parte de um discurso político, garantia de uma certa ordem social.

família é uma metáfora que endossa o Estado em seu projeto econômico e político (Barret & Me.

-nrosh 1990).

Compreende-se então porque, no cerne da tipologia das uniões, à qual me referi acima

contra-se as oposições clássicas pelas quais a antropologia sanciona as formas de relaçõe

:miculares a esses espaços sociais: as uniões legalmente sancionadas, classificadas na categoria d.

ire, e as outras, na de fato. O etnólogo/sociólogo se detém, em campo, a estudar a "digressão" das

E:.:milias
desviant.es,.defacto families.cctu relação à norma (ver introdução); ele recorre a sofisticados

~..•aratos estatísticos, para dar conta das relações entre a norma e a patologia. Como. no mel

pular, é a patologia que é a norma, e não a norma em si, as pesquisas proliferam no sentido dz

construção de um olhar clínico que dará conta deste caos, desta generalisada patologia.

Dedicaremo-nos; num segundo momento deste capítulo, à interpretação do


190
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

implícitos.investidos pelos agentes nas formas de união em vigor nos bairros estudados. Para construir

esta interpretação, eu me distanciei dos enfoques (biais) acima mencionados, principalmente a visão

legalista, que marca tão profundamente as abordagens sobre a família em geral, e, particularmente,

sobre as fanúlias das classes populares. O leitor acompanhará, desde a sociologia e etnografia dos

encontros entre parceiros à produção do processo matrimonial, como os agentes constróem as

variações de uma concepção particular de união, através das quais eles vivem sua sexualidade, eles

se reproduzem, e organizam sua existência sócio-econômica. Não se tratará, neste texto, do estudo

de desvios da "norma", nem de uma pesquisa obsessiva de nomear a diferença. Tratar-se-á de

interpretar as práticas.as experiências familiares, em função de suas regras implícitas (não formuladas)

em relação com as normas dominantes proclamadas, mas não vividas.

Nós vimos no capítulo II que a construção da idéia de casa, assim como a de fanúlia ou de

_arentesco, consiste de fato num complexo de representações locais do público e do privado. O

estudo do cotidiano doméstico dos agentes tem mostrado que esta construção, no cotidiano, do

cublico e do privado, se faz num sentido diferente daquele imposto pelas representações da sociedade

cominante e, consequentemente, o privado e o público neste contexto etnográfico particular devem

_CT analisados a partir de seu contexto de significação e em seus próprios termos - e não o inverso.

:=. dentro.desse.quadro analítico. que. eu.tentarei.restituir, em-seu.contexto.sócio-cultural, os-sentidos

-~...os pelos agentes nas práticas do parentage (maternage,paternage}. Nesta perspectiva, eu abordo

s modos de circulação infantil nos bairros estudados, situando essas práticas num circuito de troca

esaururado em determinadas. redes- familiares.e.sccíais.,


191
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

1. Onde e como escolhe-se o parceiro?

Os dados coletados a respeito das circunstâncias e dos lugares de encontro? entre parceiros,

nos 3 bairros populares estudados em Cachoeira, mostram o quanto os modos de sociabilidade entre

os agentes, tais como os terreiros de candomblé (28.57%), as festas de farrúlia (15.87%) e os laços

intensos de vizinhança (14.28%)~mediatizam o processo matrimonial. Visando responder à questão

··Em que circunstâncias vocês se conheceram'i'", eu constituí uma amostra de proporções

relativamente restritas, mas representativas dos bairros estudados - 17 casais do bairro # 1; 20 do

cairro # 2 e 18 do bairro # 3; a fim de controle, escolhi 8 casais do bairro # 4. Tomei por objeto

somente as uniões efetivas; categorizadas em função do número de anos de vida em comum: menos

:'e 5 anos, de 5 a 10 anos e mais de 10 anos. Essas pessoas (63 casais) foram divididas em três

'0lP0S de idade: menos de 25 anos, de 25 a 40 anos, e mais de 40 anos. Essa categorização permite

evar em conta as transformações em curso no processo matrimonial. Os casais em questão são

.: stribuídos nas. casas e configuração de casas pesquisadas em cada bairro. A maioria delas, fique

~l o, constituída de casas de célula nuclear. A pergunta foi dirigida, na melhor das situações, ao

zasal, ou a um dos dois; independentemente do estatuto local concedido à natureza da relação

zasamento legal/religioso, casamento - segundo a categoria local - juntado, amigado). Outras

estões, relativas, às. sequências posteriores ao encontro inicial.iaté o estado atual das relações,

rnitiram perceber o sentido desses locais de sociabilidade e de certas instituições, principalmente

giosas, na produção do campo matrimonial; relacionar os estatutos sociais das famílias, no interior

cada bairro, ao modo de sociabilidade privilegiada e idealizada entre as "gente de família";

-.preender o funcionamento das redes sociais e familiares na produção dos modos de interações

s, etc. Essa localização (le repérage) dos modos de sociabilidade e suas mediações no processo

. onial é muito parcial. Uma vez dada a amplidão dos dados a coletar e a natureza do objeto à

s:ruir, acrescentando-se os limites (financeiros, de tempo, etc.) que me foram impostos por

·~ào da pesquisa de campo; não pude estender a observação a outros lugares do Recôncavo, o

./
192
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

que me daria uma idéia mais geral da prática matrimonial na região.

O religioso, vê-se no quadro a seguir apresentado (Q1), tem um papel capital nos encontros

entre parceiros em Cachoeira. O candomblé constitui o mais visível espaço de expressão dos negros

da região. O calendário das cerimônias religiosas, já tão denso, é, em certos momentos do ano,

confundido com o da religião católica. As festividades religiosas e cívicas, que se desenrolam ao

longo de todo o ano, transformam-se em festas populares muito apreciadas pelos agentes. A

porcentagem de parceiros (28.57%) que se conheceram numa "festa" - é assim que os agentes

esignam as cerimônias do candomblé - testemunha a importância do espaço religioso como

mediador. OOs.-enc<mtt:,os4.

No decorrer das numerosas conversas que eu tive com os agentes frequentadores dessas

'estas, eles me explicaram que frequentar esses lugares não implica, de modo algum, num compromisso

religioso. Os agentes a frequentam por diversas razões, entre elas: arrumar um/a namorado/a. Mas

arrumar um/a namorado/a num terreiro não traduz no entanto uma subordinação das escolhas do

_ente àquele/aquela que é seu/sua responsável. Os próprios responsáveis, os pais e mães de santo,

reclamam do comportamento dos jovens de hoje, depravados, que "só pensam naquilo", apesar

z eles próprios também agirem para que os "filhos da casa" - quer dizer, aqueles que trabalham (os

~eptos) no terreiro - achem aí um parceiro bem colocado. A importância da religião nas práticas

ziiliares é tal, que é dificil localizar as festas de família (estudadas no capítulo V) num camopo

srinto deste último. Certas festas de família são organizadas diretamente nos terreiros de

domblé, onde os agentes se consideram como participando de uma grande família: "a família

5 Santos" (o papel dafamília de Santo na constituição da idéia de família é objeto do capítulo V;

também consideração, capítulo II1). Quando, além do Candomblé, soma-se a religião católica,

zvés da pastoral de jovens e das comunidades eclesiais de base (6.34%) - mais fortes no interior

5 municípios que na periferia das cidades pesquisadas - e a crescente presença do movimento

ecostal - do qual os grupos de evangelização constituem também um pretexto de encontros

e parceiros (4.76%)- nos damos conta da importância do espaço religioso como mediação no
193
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

processo matrimonial (39.67%).

As "festas de familia" constituem uma mediação privilegiada para os encontros entre cônjuges

e para a descoberta de futuros cônjuges. Pelo fato de traduzirem-se em termos religiosos as relações

de parentesco e, inversamente, em termos de parentesco os laços religiosos, as festas de família

constituem um lugar de agregação quase exclusiva de parentes. É aqui que se manifesta a importância

da aliança na produção dafamília e dos parentes. As festas de familia são organizadas, em geral, por

uma casa, fazendo parte de uma configuração, m nome dafamília (ou dos parentesv. Em geral. o

parente (um herdeiro simbólico) que assume a responsabilidade de sua realização é um parente pivô

tparent pivots, do qual a casa constitui um núcleo decisivo nas redes domésticas. O parente pivô se

utiliza de todos os tipos de recursos disponíveis, de modo que a família/parente se reforce e se

imponha, aos olhos de seus membros, como lugar ontológico onde se enraiza a existência destes.

mas também, aos olhos dos membros do bairro ou da comunidade, como uma verdadeira conjunção

de forças (materiais, simbólicas): uma união. Eu traduzo aqui a ideologia da unidade (a união

orno sendo, para os agentes, um anteparo que fixa, para o exterior, a capacidade de mobilização

solidariedade de uns em direção aos outros. A ideologia da unidade é uma arma que permite negociar

as alianças, de reinventá-las, de garanti-Ias, quando elas se mostram muito frágeis. Num espaco

social onde a precariedade econômica parece atuar como um monstro, devorando sem piedade os

aços daqueles por eles vitimados, onde a fragilidade dos laços conjugais é evidente para todo mundo.

onde a mulher deve se desdobrar duplamente para afastar o mais possível as fronteiras da solidão u~

as diferenças entre as nuances de cor (ver o item: a cena e o julgamento, neste capítulo), parece

constituir uma base circunstancial da hierarquia das preferências entre agentes da mesma família, z

unidade se impõe como uma tábua de salvação. Unidade para cooperar. Cooperar em nome C2

unidade que reata asfamílias/parentes.

Não é portanto por acaso que, como nos terreiros; as festas de família, pela sua imponàn -=-

na reinvenção regular dafamília e dos parentes, constituem uma mediação privilegiada dos encontros

fundadores das relações amorosas (15.87%). As festas de farnília não reúnem somente os pr
194
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Elas reúnem também, os aliados, os aliados dos aliados, os amigos dos aliados, os familia/parentes

por consideração, assim como seus aliados. Quanto mais conseguir reunir de aliados e de parentes,

mais «familia se imporá, aos olhos de seus membros, como uma força, e mais ela será valorizada no

mercado matrimonial.

Uma proporção significativa (14.28%} de cônjuges conheceram-se na vizinhança. O termo

não designa aqui somente as pessoas que moram no mesmo bairro. A história da residência de Clara

(ID,-cap. Il) ilustra bem o que desejo sublinhar. Clara nasceu em São Félix, em 1955. Em 1960, com

cinco anos, ela trabalhava como agregada. (doméstica não remunerada) na casa de uma outra pessoa

no bairro # 4. Ela aí permaneceu até a idade de 8 anos. Uma irmã de sua mãe, constatando o quanto

ela havia sido maltratada onde morava, levou-a para sua casa. Lá ela conheceu aquele com quem

iria a se unir, um dos irmãos de Elma (ID. Cap.II). Até o momento em que ela decidiu unir-se ao

irmão de Elma, ela morou no bairro # 4. Por ter frequntado regularmente, durante sua adolescência,

z casa.de, uma tia no bairro. # 1 - onde. morava também o irmão de Elma, os moradores do bairro

zcabaram por considerá-Ia como sendo de lá e a chamavam, de bom grado, de vizinha. Seu encontro

zom o irmão de Elma foi organizado por dona Conceição e sua filha; dona Elma; por ter sido urna

izinha "respeitável", "trabalhadora" e "respeitosa". Ela era uma vizinha, aos olhos de dona Conceição

;: dona Elma, porque ela era a sobrinha daquela que "esposara" o irmão mais velho do marido de

:ona Elma (ID, Capo Il). As uniões resultantes dos encontros dentro da vizinhança são, em geral,

zranjados ou pelos parentes ou pelos aliados dos parentes:

No Recôncavo da Bahia, as festas padroeiras (11.11 %) são, em certa medida, consideradas

telos agentes como sendo também festas de família. Com efeito, a exemplo do que pode ser

iderado propriamente como festas de família - já que estas se voltam essencialmente aos

entes/familia, os mitos familiares e a dimensão ontológica e secreta da família (os segredos

sticos da família, por exemplo) - as festas padroeiras são uma ocasião de reagrupamento das

__pulações dispersas em outros municípios (Belém, Conceição da Feira, Itaparica, Maragogire,

:Jitiba, Santiago de Iguape, Santo Amaro, São Félix, etc), em outras cidades (Camaçari, Feira de
195
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Santana, Salvador, etc) e mesmo em outros Estados (Sergipe, Pernambuco) diversos dos seus. Esse

reagrupamento é feito, ao menos no que concerne às cidades dos municípios próximos de Cachoeira,

baseado numa forte identificação com a idéia de "cidade natal", que se reconstrói naq.uela de "bairro"

e se concretiza nas casas e configuração de casas, afamilia. As festas padroeiras são um pretexto

para encontro entre os membros de uma mesma comunidade familiar, geograficamente distribuídos

nas periferias dos principais centros econômicos e turísticos da região. Elas constituem, como as

festas de família" mas muito mais que os terreiros, um dos elementos que estruturam o q.uadro sócio-

cultural no qual os João ninguém 7 se redistribuem dentro da hierarquia local. Elas representam uma

cena teatral" sobre a qual cada um tenta - pela introdução de suas novas espécies de capital, tais

corno a cor social (em perpétua redefinição ), a performance econômica, as novas relações adquiridas

em Salvador ou fora, o prestígio de sua profissão, ... - modificar as relações de poder, anteriores à

sua migração para os centros industriais, interpretando os novos papéis de seu personagem,

:::-equentemente atípicos, mas que provocam a admiração ou o desdém dos espectadores - atores,

reinventado assim seu lugar no espaço social e seu valor no mercado matrimonial. Eu escutei e

observei agentes que, voltando de Salvador, de Camaçari.de Itaparica, etc., contavam suas façanhas

cotidianas na cidade, sempre reconstituindo suas trajetórias e invertendo, no imaginário, a ordem do

znndo impessoal e impiedoso com o qual se confrontaram, a fim de reinventar suas posições no

-.ercado mais controlável que é o bairro, a família, a casa".

Outras circunstâncias de encontro entre parceiros, embora menos. recorrentes, foram

__gistradas. É o caso do lugar de trabalho (9.52%) - designado pelos agentes também como Rua

- que remete aos campos de atividades exercidas principalmente na rua: feira livre, comércio

bulante, bóia fria, atelier, etc. A lista prossegue com as festas entre amigos (6.34%) onde,

incipalmente os jovens, se encontram para organizar uma batucada. [a batucada é uma festa

ormal,..bem brasileira, organizada entre amigos. Numa batucada, as pessoas que vão não recebem

convite formal; seus principais ingredientes são: a cerveja ou a cachaça, a música e as canções

cais - particularmente o samba - o churrasco, e o bate-papo - conversas descontraídas -


196
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

entre amigos], As batucadas são organizadas por grupos de amigos, mais ou menos (mas não

exclusivamente) da mesma geração, ou de turmas. Os que participam da mesma turma, vêm em

geral do mesmo bairro. As turmas podem ser consideradas como um dos modos de sociabilidade

dos mais constantes na vida cotidiana dos agentes no Recôncavo. As turmas' que organizam as

batucadas funcionam segundo uma estrutura de reciprocidade: se organizaram a batucada tal dia na

asa de tal amigo, organizarão a próxima na casa de um outro, seja no mesmo bairro ou não. A

. tensidade de vida e de comunhão que perpassa uma batucada é inefável. Encontramo-nos pouco a

pouco mergulhados num universo tão nuançado pelo álcool, pelos cantos improvisados, pela música

~ em certos casos, por uma baforada de herva (marijuanas, que as diferenças se apagam na

.niformidade da dança, do ritmo e do prazer - e mais, do orgulho de ser bahiano! (É isso que a

'hia quer! repetia, de bom grado, um agente, fazendo alusão ao leitmotiv eleitoral do governo do

Estado da Bahia, em 1994).

Por ocasião das festas padroeiras, os amigos fazendo parte da mesma turma, disperses pela

--:?iào do Recôncavo ou fora, reúnem-se e organizam encontros provocadores entre os solteirões e

eironas. A turma é ao mesmo tempo um princípio de agregação e um modo de sociabilidade

e amigos, parentes e família. Como princípio de agregação, ela constitui um lugar social por

celência pelo qual outras formas de relação se tomam possíveis. Um indivíduo pode pertencer a

. ~de uma turma; é o caso daqueles que vivem em outras regiões/cidades, mas que não esquecem

_;:Ies com os quais passaram sua infância. A turma pode ultrapassar as fronteiras da região, e

o do Estado; as migrações em cadeia feitas através das redes familiares, tem levado os agentes

- aglomerarem, às vezes, no mesmo bairro ou na mesma cidade. A cada retomo, ... nas festas

iras, as turmas se reconfiguram e se recriam no bairro, no vilarejo, ou na cidade de origem.

modo de. sociabilidade, a turma pode assumir as formas mais variadas: desde os grupos

:::;;;"zados em tomo de atividades altamente sexuées (turmas de lavadeiras, grupos religiosos,

;::::idades religiosas, de vendedoras de acarajé, equipe masculina de foot-ball, cachaceiros, etc).

companhia de sua turma que se participa de certas festividades e espetáculos públicos tais
197
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

como: o carnaval, a micareta (na Bahia quando o carnaval oficial acaba, na quarta-feira de cinzas,

cada pequena cidade do interior organiza, segundo um calendário previamente estabelecido -

calendário largamente. manipulado pelos políticos locais - ... mini-carnavais chamados micareta,

sugere-se em Cachoeira que a palavra micareta seria proveniente do francês mi-carême: meia-

quaresma) - uma das circunstâncias nas quais pode-se descobrir um potencial cônjuge.

Seria um êrro crer que os agentes da periferia de Cachoeira têm uma igual percepção desses

modos de sociabilidade. Há uma espécie de hierarquia implícita entre as circunstâncias do encontro.

Alguns agentes sentem-se obrigados a "corrigir" a imagem que pode ser feita de sua união, em

função dos parceiros terem se conhecido na rua, ao invés de numa casa de família; ou durante um

ulto da igreja ou protestante. Os espaços da "rua", fique claro, são o carnaval, a micareta, a feira,

e mesmo as "festas" do Candomblé - dependendo da casa (do terreiro) que se frequenta - enfim,

:odo lugar que remete a um indefinido, onde ninguém tem controle. Um parceiro encontrado numa

micareta ou no carnaval, é geralmente associado à "rua", à zona (literalmente zona ou região, mas

delimita as fronteiras da prostituição). Contrariamente, os encontros realizados por ocasião de uma

:esta de família, na vizinhança, na igreja, tem um valor implícito de encontros entre "gente de família"

- pois as "gente de família" são muito discretas na rua e não se expõem, nem às piranhas (nome de

.an peixe muito perigoso que designa a puta), nem aos malandros de rua (segundo o contexto,

oandidos, vagabundos).

A distinção sexuada também opera no jogo social da sociabilidade entre os agentes. Não se

espera, de forma alguma, de uma "jovem de família", que frequente asfestas de Candomblé. Nessas

:5tas, dizem os agentes pai ou mãe de família, há somente coisas ruins, gente de sangue ruim, ge'!te

reta.feiticeiros, enfim, tudo que associa o candomblé à idéia de diabo e de ruindade. Mas espera-

se de uma mulher já mãe, que ela saiba se virar,já que ela não tem mais nada a perder (sendo uma

-:làe-solteira). As "festas" de Candomblé são, em princípio, para os adultos, mesmo que na prática,

..:.proporção de mulheres adultas encontradas nas ''festas'' não ultrapasse a de jovens. De qualquer

zaneira, os pais não são predispostos a aceitar um parceiro que venha da "rua". Ao contrário,
1.98
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

espera-se dasjovens;e das mulheres em geral.que elas frequentem assiduamente a igreja (protestante

ou católica).

Q.l. Circunstâncias de encontro entre parceiros.

Circunstâncias de encontro B1 B2 B3 B4 Total Frequência


acumulado acumulada
,..,
Terreiros. (templos) de candomblé -' 7 5 3 18 255.57
Festas de família 4 3 2 1 10 15.87
,.., ,..,
'izinhança -' -' 2 1 9 1428
,..,
Festas padroeiras 2- 11.11
t -' l 1
Lugar de trabalho (incluído feiras) L r :) - 6 9".5T
Pastoral- católica 1 2 t - 4- 6.34
Batucada / festas entre amigos - 2 2 - 4 6.34
_=--- eja pentecostal 2 - - 1 3 4.76
~
amaval / micareta - 1 - 1 2 3.17
Total 17 26- 1S- 8· 63 100

A distinção também se opera pela geração. Os jovens que frequentam Salvador e os outros

des centros urbanos do Recôncavo, valorizam muito mais as batucadas, o lugar de trabalho, as

estas patronais; outros entram em outros circuitos de sociabilidade tais como: a escola, certos

spping Centers, os bairros em geral dos blocos de carnaval, as bandas orquestradas ditas "afro"

_ pos musicais que valorizam a identidade negra em Salvador), etc. Enfim, cada meio geográfico

escreve seus modos de sociabilidade. Seria interessante ver desenvolver-se estudos sistemáticos

re a variabilidade de modos de sociabilidade junto a diversos segmentos sócio-étnicos em meio

_:J 1ar.

~ Laços anteriores entre os parceiros segundo as circunstâncias dos encontros.

unstâncias uniões lugar moram encontro t~tal por ~FreqUência


anteriores atribuído no mesmo estimulado circuns- por
entre. ao acaso bairro. por tância, circuns-
parentes terceiros tância

7 7 3 1 18 28.57%

,..,
-' 1 4- 2 16- I 15-.87%
199
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Vizinhança 9 - - - 9 14.28%

Festas padroeiras 1 5 1 - 7 11.11 %

Lugar de trabalho - 4 - 2 6 9.52%


Pastoral Católica 1 2 - 1 4 6.34%
Batucada I Festas entre 1 2 1 - 4 6.34%
anugos
Igreja- penteeostal 1- - - ~ 3- 4-.76-%

Carnaval /.micareta - - - - 2- 3r1-7%

Outros
Total 23 23 9 8 63 100
Frequências 36% 36% ·23% 12% 100

o uso de construções estatísticas visando dar conta da vida social de outros, é um

empreendimento extremamente criticado por muitos pesquisadores e epistemólogos, conscientes

:os perigos de reificação e de reducionismo que ele encerra (entre outros Champagne 1989; Bender

971). O quadro (Q. 2), por exemplo; constrói uma realidade - a relação entre os encontros e as

:-rrnas de sociabilidade - que não passa de um cliché instantâneo de um conjunto de determinadas

cráricas sociais. O quadro não poderia nada dizer sobre a passagem de uma forma de sociabilidade

utra, no que concerne as sequências de união que pode conhecer um agente, ao longo de sua

stória matrimonial. A literatura recentemente produzida a respeito das práticas familiares dos

. Iresem geral, e as especificamente elaboradas sobre os negros, não perdoam sobre esse ponto: é

espaço da instabilidade das uniões; da ilegitimidade das crianças e da promiscuidade sexual dos

TOS. O que pode ser utilmente traduzido a partir da leitura desse quadro, é que parece existir

= coerência nas circunstâncias dos encontros entre parceiros. Uma coerência que supõe urna

_~ estruturada da vida social, em torno de certos campos de atividades sociais e culturais, e que

õe ainda princípios de organização das práticas matrimoniais.

Completando a leitura do primeiro clichê instantâneo (Q. 2), com um segundo clichê sobre

-~ções entre as uniões anteriores na determinação das uniões posteriores (Q. 3), podemos notar,

= outros, quatro elementos determinantes que presidem a constituição da rede matrimonial: 1°)
200
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Sejam as relações entre formas de sociabilidade, tipos de união e laços anteriores entre os parentes

dos parceiros. Sobre os 74.59% das uniões das quais os parentes dos dois cônjuges tenham tido

algum tipo de laço (38.09%) ou; ao menos, uma união anterior ao encontro entre as duas partes

(36.50%), os encontros de 79% de cônjuges ocorreram (preparados por terceiros ou não) por ocasião

de festas de família, na vizinhança, nas casas de candomblé prestigiosas às quais são ligadas as

configurações de casas muito importantes aos olhos dos agentes e dos membros da comunidade;

74A6% desta porcentagem são experiências duráveis (mais de 10 anos) e apoiadas pelas redes

domésticas e pelas configurações de casas, nas quais elas se definiram; essas uniões valorizadas são

classificadas pelos agentes como sendo casamentos costumeiros (55.31 %) ou casamentos religiosos/

civis (19.14%). 2°) Considerando sempre o percentual (74.59% das uniões), cerca de metade das

uniões tem - ou teve - ao menos um (1) casamento entre os parentes dos dois cônjuges, anterior

ao seu encontro inicial, o que nos leva a questionar os capitais envolvidos nestes jogos de aliança.

3°) Inversamente, o quadro (Q. 3) mostra uma relação negativa entre os laços com os parentes (o

onhecimento mútuo dos parentes) e as uniões valorizadas (respectivamente casamento legal,

asamento costumeiro). Em outras palavras, quanto mais os parentes das duas partes se conhecem

mutuamente, mais os tipos de união tendem no sentido de sua valorização, pelos agentes, e mais as

niões se definem de forma durável. quanto menos os parentes das duas partes se conhecem, menos

os tipos de união tendem nbo sentido de sua valorização pelos agentes, e menos elas tendem a ser

duráveis 10

Q.3. Tipos de união, determinação das uniões anteriores e laços entre parentes, antes dos
encontros.

tipo <te-união laços uniões nenhum taço total Freqüência


valorizada pelos anteriores anteriores anterior entre
agentes entre entre parentes
parentes- p-Menles-

casamento 5 4 9" r4".28 %


religioso/civil
201
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

casamento costumeiro 12- Vl 2- 2& 44_44%


juntado/a 5 3 4 13 20.63%
amigado/a 2 1 10 13 20.63%
-
Total 24 23 16 63 100
Frequências 38.09% 36.50% 25.39% 100

Diversificação, hierarquia, distinção, sexualismo das formas de sociabilidade. As práticas da

sociabilidade entre os agentes em Cachoeira, se estruturam em torno das oposições fundamentais

masculino: feminino: : casa/família/parentes: rua/público:: gente boa: gente ruim. Essas oposições,

em certa medida, constroem os lugares de sociabilidade, aos olhos dos agentes, numa representação

que encaixa esses lugares uns nos outros. A casa, na configuração de casa, se opõe, em virtude da

hierarquia, às outras configurações; juntas, elas constituem redes, cristalizando a identidade ,do

. airro, do "nós" oposto aos "outros", e assim por diante. Elas participam de um "sistema de

isposições" socialmente constituído, graças ao qual os agentes produzem os sentidos dos cenários

rniciadores das uniões. É preciso perceber os elementos centrais desses mecanismos seletivos C],ue

ompanham a mise en scêne dos encontros, que presidem à produção das práticas matrimoniais,

zssim como a lógica dessa produção e a coerência interna que supõe a linguagem dessas práticas. O

ogo de sociabilidade não ... dirá grande coisa das práticas matrimoniais em Cachoeira, se não levarmos

conta as categorias de percepção de si e do outro; e as referências ideológicas pelas quais

colhe-se, sobre o cenário dos encontros ... (festas de família, vizinhança, terreiro de Candomblé,

:.?."JJcada,ShoppingCenters, escola, etc.), tal parceiro, de preferência a outros. Em outras palavras,

z.esconstruir o julgamento que constrói o parceiro ideal com seus elementos mais simples - pensar

• <: referências ideológicas a partir das quais o próprio julgamento tem a sua razão de ser.
202
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

2. A cena e o julgamento

No Recôncavo da Bahia.a herança das estruturas hierárquicas sócio-raciais.profundamente

enraizadas desde a escravidão e a colonização, empregna todos os campos das relações sociais e do

imaginário coletivo. Essa hierarquia onipresente, mantém com persistência uma ideologia racial

que, apesar de traduzi da em termos ambíguos, postula a superioridade do branco e a "naturalidade"

da posição subalterna do negro na sociedade.

Os componentes ideológicos locais".implícitos nas representações dos não-negros (brancos

e mestiços) a respeito dos negros, e nas imagens destes sobre eles próprios, constituem uma ilustração

do poder hegemônico da ideologia do branqueamento na produção das diferenciações sócio-etnicas.

Essas representações e auto-imagens, historica e socialmente constituídas, formam um sistema, de

modo que não se pode tratá-Ias separadamente: elas exprimem as duas faces de um ethos constitutivo

da sociedade brasileira em seu conjunto. Eu começo por descrever as idéias mais comuns associadas

aos negros, primeiro pelos não-negros oriundos dos meios médios e das camadas dominantes da

cidade de Cachoeira"; em seguida, retomarei a descrição das idéias que os negros, nos bairros

estudados, fazem deles próprios - em seguida da discussão,...preparada no capítulo precedente, em

torno do tema do sangue, como princípio de auto-construção entre contexto sócio-cultural, os

mecanismos pelos quais operam as ideologias raciais atualmente em curso nas comunidades estudadas,

na constituição da cena inicial das escolhas conjugais, e do julgamento que estabelece o fundamento

dessas escolhas.

" ...Graças a Deus".nós pertencemos a uma América portuguesa ... não inglesa. [... 1" - afirma

um informante de meio médio, professor secundário e um dos líderes do movimento de revitalização

ultural (música, teatro, artes plásticas) em Cachoeira. Assim ele demarcava claramente a

especificidade, tão reificada, da situação racial no Brasil. As idéias de democracia racial, tão diluídas

na ideologia nacional (Skidmore 1974;Seyferth 1995t são invocadas nas representações locais para

traduzir as atuais relações entre os negros e os não-negros em Cachoeira. A especificidade da

olonização portuguesa" sublinhada por (e depois dos trabalhos de) Gilberto Freyre (1938)939,:
203
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

expressa por essa proximidade cordial do Senhor de Engenho com seus escravos negros, chegava

até a uma certa promiscuidade (sexual, fisica - mediante o aleitamento, etc.), que impedia uma

verdadeira constituição de uma identidade negra na Senzala; separada da Casa Grande:

"...[NJa verdade, as negras nascidas no Brasil, pela própria exurberância, pela própria

sensibilidade •.pela própria ... é, como é que eu diria? ... elas são muito sensuais. E isso foi bom, de

certa forma né, que geralmente tinha uns portugueses que ele tinha o engenho, mas tinha um

agregado né? um espaço agregado junto à casa do Senhor do Engenho, em que eles permitiam que

determinados escravos vivessem mais ou menos até em contato com eles. [ ..J E teve até ocasiões

em que eles não foram tão crueis, os portugueses, que existia a mãe de leite né? que amamentava

osfilhos do português quando faltava leite ... "

E o resultado é bem conhecido, por ter sido insistentemente repetido nos mais clássicos

manuais da história social brasileira:

"... Realmente, o que aconteceu, houve essa mistura ... quer dizer, houve no Brasil o

trgimento de uma outra raça, É uma raça só, "

As idéias de mistura; de tudojunto, de uma raça só, são muito comuns nos discursos mantidos

celos agentes oriundos dos meios dominantes da sociedade cachoeirana. No entanto, essa convicção

""!cue
têm os Cachoeiranos do surgimento de uma raça só,..mediante a mistura, traz muito mais de

-::-ofeciaque de promessas, e mesmo de realidade. Na verdade, quando se "informaliza" as relações,

:: 3 conversa se desenrola no cotidiano, de maneira mais descontraída, quando se desloca o centro

=--al de ce-qui-fait-qu'on-est-racialment-un em direção ao que entra na constituição de uma "raça",

-= D que marca as diferenças entre as "raças", constata-se que o discurso superficial se desconstrói

r si mesmo. De fato, a convicção tão solidamente afirmada de início pelos agentes, dá lugar a

certezas reveladoras. Como outros registraram, em outras circunstâncias etnográficas na América

tina (Wade 1994), o discurso do branqueamento e da miscigenação, é o próprio fundamento da

- -erença e da hierarquia que a sustenta. Os agentes oriundos desses meios, com efeito, constroem

agem do negro, comparando suas qualidades e defeitos com aqueles dos brancos, recorrendo às
204
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

referências correntes, em vigor em todos os níveis da sociedade. Eu observei que cada agente

entrevistado começa sempre por deixar bem claro que ele não associa em nada a imagem do negro

aos estereótipos correntes, relativos à sua inferioridade". à sua animalidade, etc. Um agente me

explicou que ele acredita que seja tempo de transformar finalmente o sonho de democracia racial em

realidade. "Mas ainda falta muito e o povo daqui não está preparado". O agente, dentro dessa

situação de pesquisa, me descreve o que os outros pensam, o que as pessoas (o povo daqui) pensam.

Os. temas que retomam mais frequentemente em tais descrições, referidos pelos agentes,

onsistem na assimilação do negro à natureza; à animalidade - macaco, porco -; à impureza -

sujo, mal cheiroso, mal lavado; à especificidade congênita - sangue ruim, mau caráter; à decadência

moral- irresponsável, preguiçoso, desonesto, ladrão, pervertido; às taras psicológicas - agressivo,

. rutal, mau caráter,. estúpido; ao seu caráter anti-social - preguiçoso, asqueroso; à sua marca

estética - feio, grosseiro, desajeitado; à sua essência demoníaca - feiticeiro, satânico ... Mas os

egros têm também, segundo essas representações, tais como referidas pelos agentes entrevistados,

seus pontos fortes, legados, graças à mestiçagem, à raça brasileira. Os negros são percebidos como

sendo fisicamente resistentes, apesar de preguiçosos.Por causa dessa resistência, os agentes crêem

ao mito da sexualidade insaciável da mulher negra e da potência sexual fora do comum do homem

gro, Os negros têm no.sangue, a forçae o sexo, É. o.que.explica, pelo. que.se crê, sua indinaçãp ao

~flZer, às. mulheres. É essa sensualidade. da, mulher. negra, acrescentada, certamente, ao. p~uco

;.'reconceito na cultura portuguesa,. que a conduziu à miscigenação.

A maior parte dos negros, se eles fossem educados, poderiam alcançar uma certa forma de

zranscendência moral, quer dizer, poderiam aceder à sua plena humanidade. Segundo os agentes

zão-negros de meios médios e superiores da sociedade cachoeirana, certas pessoas pensam que os

zefeitos acima citados,. não são marcas irremediáveis próprias aos negros. Mas eles admitem de bom

_ do que a raça negra "tem uma certa propensão a produzir esses elementos em maior número que

zs outras raças". A explicação que os agentes retiveram - tal como manifestada nas representações

zomuns que me foram relatadas - a respeito dessa degenerescência dos negros, varia de pessoa a

__ssoa. Para alguns,. a degenerescência do negro é devido à maldição herdada de Cham, (o filho
205
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

maldito de Noé), a qual perduraria de geração em geração. Para outros esta "degenerescência" é

associada às práticas demoníacas herdadas pelos negros, desde o tempo da escravatura (Bastide

1967)12. Para uma boa parte deste grupo entrevistado, esta degenerescência se explica en função da

sua marginalidade na sociedade. Segundo esses agentes, esses males, são redutíveis a uma causa

principal: a ignorância.eles poderiam então ser erradicados pela educação e pela integração completa

dos negros na sociedade. Outros agentes, enfim, atribuem essa degenerescência à natureza congênita

o negro: "o negro que não suja na entrada o fará inevitavelmente na saída"; diz o dito popular.

Se é verdade que essas representações participam da construção social dos negros e de seu

lugar na sociedade brasileira, em seu conjunto, ocorre que as formas de relação estabelecidas entre

s não-negros e os negros se concretizam através de circuitos personalizados. Em Cachoeira, aqueles

nie aderem a essas representações sobre "o negro em geral", não incluem necessariamente "seus"

cegros, quer dizer, aqueles que frequentam o seu círculo pessoal. A aceitação condicional de um

zegro num circuito de sociabilidade particular,. passa pela construção pessoal que os membros deste

--eio fazem dele. A aceitação é condicional na medida em que, a menor gafe de sua parte, levará esse

-esmo meio a interpretá-Io pelo que ele é: um negro.

As idéias expressas nas representações sobre os negros são contraditórias. Se o negro carrega

zom ele toda a negação da sociedade; ocorre, por outro lado, que é a mistura do que há de melhor

:~ sangue negro e índio - com o do branco - que deu uma nova raça, a "raça brasileira". O

cmplexo de idéias que compõe as representações sobre os negros em Cachoeira, supõe não apenas

......
" hierarquia, segundo a qual o negro tem seu espaço num lugar não demarcado entre a cultura e

catureza, mas sobretudo uma dinâmica de integração e de purificação do negro, mediante o

anqueamento, e à revelia da socialização nos ''valores normais" -leia brancos - da sociedade.

"raça brasileira" supõe a construção de um conjunto de caracteres genéticos; sociais, morais,

cológicos e estéticos uniformes. Ela supõe, no fundo, o desaparecimento progressivo de uma

er:a diferença entendida como lugar: o negro 13.

Entretanto, independentemente das vias propostas para a redenção dos negros, a representação

etiva consigna à cultura negra, contraditoriamente, um papel preponderante no desenvolvimento


206
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

de Cachoeira, em seu atual estado de decadência. Cachoeira, reconhecem os agentes com uma

pitada de orgulho, é "o maior centro de conservação da herança africana". Para as agências turísticas

locais, Cachoeira possui uma inesgotável fonte de folclore, a partir da qual a cidade poderia se
I

reerguer e reconquistar suas antigas glórias, hoje perdidas. Os oficiais locais com quem eu conversei,

afirmam que no passado, quando se dizia fora que Cachoeira era a capital do Candomblé, da ma~ia

negra, do fetiche, "nós nos sentiamos tocados, humilhados no fundo do coração"; hoje, afirmam

eles, Cachoeira deve saber converter essa fonte de vergonha em fonte de riqueza: "Cada ano, durante

o mês de agosto, o mundo inteiro se dirige à Cachoeira para acompanhar as cerimônias da festa de

~ssa- Senhora da BcaMorte", Qu-ainda; "É às centenas.que nós recebemos visitantes.-estrang~iros

zvidos de cerimônias de, Candomblé". Com efeito.i num esforço de revitalização do turismo no

Estado da Bahia, a Bahiatursa, órgão oficial de turismo bahiano, multiplica seus contatos com as

:-refeituras da região, principalmente a do município de Cachoeira, a fim de incentivar a

comercialização desses novos produtos que, aos olhos das autoridades e dos notáveis locais, poderiam

zonstituir a nova indústria salvadora. Como em outros lugares onde existam focos (enclaves) [Ro~er

3astide (1967) falava já de quistos] da cultura negra, os cachoeiranos souberam compreender o que

_5 negros podem representar em termos de produtos folclóricos e turísticos.

Essas representações locais, sumariamente expostas, nos ajudam a compreender o contexto

-- qual os negros constroem suas próprias auto-imagens. Efetivamente elas não constituem, em

_.:':-tamedida, nada além que uma outra cabeça, de um mesmo monstro - uma outra versão de uma

esma ideologia. As idéias expostas no capítulo anterior, sobre o que os negros da periferia de

achoeira entendem pela categoria sangue", já confirmava em que medida a produção da auto

gem participa da mesma linguagem da ideologia do branqueamento.

encarregar-se dos corpos

O melhor observatório da força operante da ideologia do branqueamento na produção do

-exto sócio-cultural dos negros dos bairros estudados é a casa. É na casa que os membros da

.a encarregam-se do corpo do recém-nascido. A obsessão dos paradigmas da beleza e da feiúra;


207
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

do sangue bom e do sangue ruim é tal, que uma mulher grávida me chamou involuntariamente

atenção sobre sua angústia, nesses termos: "tudo o que eu gostaria, é que ele herde os cabelos de sua

avó;o nariz de minha irmã, e que ele sela um pouco mais claro que eu!" (acreditaríamos ouvir o eco

de um personagem Caribenho do romance de Mayotte Capécia). A relação dos agentes com o corpo

a criança é fantasmagórica. Antes mesmo de seu bebê vir ao mundo, a mãe o coloca num banho

imaginário, no qual seu profundo desejo operará a transformação do pequeno corpo negro, em um

.abernáculo de graça, um corpo mais ou menos branco. Isso é visto no testamento acima citado. O

corpo do bebê é introduzido no mundo através de um complexo de manipulações e rituais, visando

zrenuar os símbolos sócio-raciais incorporados.

Cada banho administrado à criança, cada creme, cada sabonete, porta em si uma grave carga

':c significados; de fato, os artigos carregam com eles todas as esperanças dos pais para que se

=:etive o processo de transmutação. E quando crescer, a criança deverá começar por afrontar, mas

compreender, as preferências caprichosas, mas bem determinadas e orientadas, dos pais, no

nido de localizá-Ia implicitamente numa hierarquia de nuances de cor de pele, que é, de fato, a

zcntinuidade da hierarquia social que os consignou - pais e filhos - a um lugar socialmente

truídos na casa, que produzem o mundo no qual a criança se construirá. A casa constitui um

paço. afetivo.e langagier, no qual.ela terá a.aprendizagem do mundo. É o que.ilustra o testen:rvnho

guinte; explicando o contexto familiar, da mãe acima citada:

"Passei toda minha infância e minhajuventude sonhando mudar minha cor. Eu acho é por

sa da minha mãe e da minha vó. A minha mãe era filha única da minha vó. Elas duas eram da

'1G cor. A pele da minha vó era assim mais ou menos de renda. Ela não me suportava, e senii

desde criança. Minha vó não me suportava; minha mãe também. [ ..] Meus irmãos estão aqui

Xegra só tem eu e o caçula. Quer dizer, todos meus irmãos são negros mais tem a pele um

o mais clara. Então. a minha mãe achava que eu era negra e eles eram brancos. E ela também

egra. Tinha cabelos muito ruins, os lábios dela eram parecidos aos da minha vó: eram mais

's do que meu, ela tinha um pescoço bem pendurado, ela tinha mais característica de negro

e eu. Mesmo assim ... "


208
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Para essa mulher, seus insucessos sentimentais sucessivos se devem a uma causa: o fato de

ter a pele bem negra, os cabelos "ruins" e o nariz "achatado", os tres principais terrores dos negros

brasileiros.

Palavra de mulher, desejo de mãe

No contexto etnográfico que eu estudei, a cor está no cerne da cena familiar. A exemplo de

outros contextos sócio-étnicos das Américas, "há muito poucas mães que não espreite a saída da

criança que carrega. O nascimento é em cores, assim como o desejo de uma criança, ou as primeiras

palavras com que lhe acolhem e lhe falam" (André, posfácio in Gracchus 01986). Isto pode ser visto

ainda na seguinte afirmação, de um outro agente, mãe de cinco crianças negras:

O sonho da mulher negra comum, pois eu não sou assim, o" me contendo do que tem, m~

sonho da mulher negra dormindo com o marido negro, ela sonha, mas sonha com um homem

branco. [ ..} Eu lhe digo que seja essa consequência, pelo comportamento das pessoas aqui no

Brasil com os negros. Aí, ninguém quer ver um filho sofrer. Eu sofri muito, eu sofri quando era bem

menor até qui, dentro da própria comunidade; aqui só tinha eu e mais outra menina negra. Todas

eram negras, mais negra quer dizer: todas tinham pele mais ou menos vermelha, né? E eu e ela

eram os preta mesmo. Aí tinha umas pessoas que se destacava demais assim ... me tratava assim ...

mais eu dei a volta por cima.

A obsessão da "negralha" é onipresente nas famílias estudadas". As relações intra-familiares

não são construídas num espaço "privado" ao abrigo de "público". Os conflitos não nascem

unicamente da experiência individual com o mundo exterior. A experiência familiar é constitutiva

das hierarquias sócio-étnicas e raciais dos mecanismo de valorização e de marginalização em curso

no contexto sócio-cultural global. Seja qual for o discurso superficial sobre as relações entre pessoas

de cores diferentes, cái-se sempre nesse lugar comum no qual as relações contlitantes entre pais e

filhos,. e,. ernconsequência, entre irmãos, assume o tom ou a nuance entre o mais claro e o mais

escuro:

{ ..} Minhafamtlia:é uma.mistura né.? .É o. caso..pm:que, minha mãe é aCOl' do meu avô. O
209
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

meu avô era mistura de negro com indio; ele era claro de cabelo bom. Pois bem. O meu pai era

negro. O que aconteceu, o meu avô que detestava meu pai, porque ele era daquela cor muito

fechada, criou esse racismo na cabeça da gente. Ele criou isso na cabeça da minha mãe. Ele não

gostava de negro, então a minha mãe odiava negro. Ela me criou, eu sou o filho que ela mais

gostava.porque eu sou mais claro. [ ..] Então, ela sempre foi muito pegado a mim. E aí, ela falava

aquilo, que o negro não presta, o negro é assim, assado, eu via bem como ela tratava as pessoas, e

eu peguei aquilo. [ ..} Quando viajei para Salvador; eu vi que não era menos negro do que os meus

irmãos. E aí, eu passei a me odiar. Eu primeiro não odiei ninguém, odiei primeiro a mim. E aí foi

quando passei a trabalhar.

[ ..J Eu não gostava de mim, porque reparei que eu era também preto; de cabelo ruim, sou

pobre. Pedia a morte.

- (Pergunta) - Você conhece muitos jovens assim ... que vivem essa situação?

- Situação assim eu conheço. A minha irmã. Mas conheço também alguns outros jovens

'sim; mas a maioria não tem coragem de falar nisso. São coisas que a gente vive por dentro.

Porque a gente não pode chegar na cara de uma pessoa e dizer: "você é um negro"! Vocêpode não

protestar para fora, e aí as pessoas sentem ... não gostam mais ficam caladas.

No princípio dos conflitos manifestos entre agentes de uma mesma família, encontra-se

sempre o fracasso e a frustração, causados pelas insistentes e repetidas tentativas de controle e de

::-ansformação do corpo fantasmagórico. Esses conjuntos de práticas, tão frequentemente aplicados

sobre o corpo feminino, consistem em esforços desesperados para afinar o nariz, amaciar os cabelos,

:: reduzir a pigmentação. As receitas são múltiplas e se renovam a cada geração. Os agentes se

zpegam a isso com o mesmo fervor que suas crianças se apegarão à idéia que, chegará um dia

,":~do ela poderá dar a luz a um pequeno "branco". O caráter racial, de acordo com as técnicas de

arregar-se do corpo, é de uma tamanha força, que seu empreendimento abarca a vida do indivíduo

zesde.a.infância até a sua morte.


210
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Negro é o passado de alguém!...

Esse processo de interiorização da negação do negro como lugar conduz os agentes a

"naturalizar", por assim dizer, a posição subalterna do negro na sociedade local. No interior das

casas, entre as casas de uma mesma configuração, no bairro, essa naturalização conduz à edificação

de muros invisíveis, à reificação do negro como espaço temível, no qual ninguém gostaria de ser

atirado. Essa reificação se manifesta pelas maneiras como os agentes procedem para classificar seus

iguais, seus negros, seus caipiras negros, aos quais fiz menção no capítulo anterior.

A imagem que os negros dos bairros estudados fazem de si mesmos, não costuma ser diferente

das representações que a sociedade dominante faz do negro em geral, imagem cotidianamente

alimentada pela televisão. O negro que não presta, negro irresponsável, preguiçoso, sujo, ignorante,

feio, retardado, etc. são termos e expressões que voltam incessantemente entre os agentes. A

construção individual dos agentes das comunidades estudadas, consiste numa luta cotidiana para, se

. tanciar o mais possível do precipício enfeitiçado que constitui o lugar negro. O testemunho seguinte

:nostra o quanto essa construção cotidiana participa da própria produção dos laços sociais:

Na Bahia, negros, eles usam ... eles ... nem todos, mas muita gente trata o negro como se

'osse uma doença contagiosa. Afaste-se de mim! ... Não chegue perto! Até para gente. Até entre

"5. Até entre pessoas da mesmafamília. É tipo uma doença contagiosa. Eu sabendo como uma

ssoa não gosta de negro eu não me dou o trabalho de dar o luxo de aquela pessoa olhar para

inha cara e bancar diferença.

Para os agentes, a redenção de um negro de sua condição de negro, desse lugar de negro,

consiste no abandono do que eles chamam o "passado negro". O "passado negro" consiste em todos

_5 elementos que entram na produção estereotipada do negro" tal como no testemunho seguinte:

Eu acho que o negro é o passado de alguém. Que eu acho também, que tem muitos negros

se faz negro. Além do que ele é negro até na personalidade. Negro na personalidade que lhe

•..
0 é a pessoa ter um péssimo comportamento. É como se diz um passado negro. Tudo que se fale

negro não presta. Então a pessoa de personalidade não sabe se comportar, uma pessoa muito

ata muito extrovertida, que gosta de se meter em tudo que é lugar que não compete; que não
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

conhece o lugar dele, quer se exibir demais, e isso que o torna insuportável.

De um outro agente:

Olhe! A classe mais complicada: professor; negro ejuiz. Ojuiz, ele não tem direito de beber

na rua, de se divertir, ele não tem direito de andar, ele tem que andar certo. Se ele tem que andar

certo. Se ele fizer dentro de casa, dentro de quatro parede e se o vizinho saber, ele é comentado. O

professor é o modelo, ele tem que andar certinho, que é exemplo dos alunos. O negro ainda certinho

ou qualquer coisinha que fizer ele é criticado. Então aqui, no Brasil, isso eu sei porque eu sou

negra e sei que é assim. Agora não me incomodo.

Nomesr; designar.

''Nomear'',. "designar", consistem em operações pelas quais toda uma relação se faz ou se

desfaz, sutilmente; elas impulsionam mecanismos de defesa contra uma certa classificação, dos quais,

aliás, o elemento central é a classificação.

- Eu sou negra, mas detesto ser chamada de preta! Aí o bicho pega! afirma dona Elma.

- Assino em baixo, ratifica dona Clice.

"Ealar" cor, como "nomeá-Ia" s- é rearrumar os muros invisíveis e sutis; constituídos de

determinadas relações. Nos meios estudados, os termos negros ou pretos, assim como seus derivados,

são categorias raramente usadas, com exceção de certos contextos particulares, entre os agentes.

No entanto, as categorias de auto-designação entre os negros e os mestiços de negros, nas

comunidades estudadas, têm uma riqueza reveladora 16. Muitos pesquisadores dedicaram-se ao caráter

prolífico dessas categorias no Brasil (Harris 1964; 1970: 1-114; Maggie 1994; Sanjek 1971: 1126-

1143). As designações mais próximas de negro ou de preto - negão, negona - são constatadas em

circunstâncias de brincadeiras entre agentes da mesma turma. Os termos usados entre agentes para

designar a cor, não somente varia conforme o contexto, mas também participam da dinâmica da

construção da auto-imagem de um mesmo indivíduo. Eu presenciei circunstâncias sociais segundo

as quais o mesmo indivíduo se designa ora como moreno, pardo, moreno-escuro, ou mais ou menos

escuro. É o caso de diversos agentes que, por ocasião dos encontros em grupo por mim organizados
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

a esse respeito, se classificaram ora como negros, ora como negros avermelhados, etc. Por outro

lado, a auto-classificação assume outros significados, em função do "negro" ser um valor em alta ou

em baixa. O negro está em alta em situações excepcionais, nas quais a cidade destaca a sua herança

africana, como referência central para as manifestações turísticas. Em circunstâncias nas quais o

negro está em alta, por ocasião das celebrações públicas da negritude - uma manifestação anual é

organizada em Cachoeira, sobre a negritude, pelo movimento negro da região - 0.\.1 por ocasião da

festa de Nossa Senhora da Boa Morte, os mesmos agentes Q-ue,em situação normal, se classificavam

orno morenos, ou morenos escuros, se classificam então como sendo negros. O negro está também

em alta em certos campos de atividades socialmente reconhecidas como a escultura, a pintura, a

úsica, a capoeira, o candomblé.

Termos usados entre os agentes nos 4 bairros. Pop. 12690u 63 casais)

Termos Bl B2 B3 B4 Total Frequências

morena 5 8 3 2 18 14.28
vermelha 4 4 5 1 14 11.11
escurinha 3 T 5 Z 12 95Z
2 1- 2 2 7 5.55
zaor-escura 6 2 3 1 12 9.52
"
.) 3 2 1 9 7.14
2 3 2 1 8 6.34
2 I- I- - 4- 3.17
1 2 1 1 5 3.96
2 1 1 4 3.17
2 1 2 - 5 3.96
2 3 J 1: 10 793
1 2 3- 1- 1 5.55
zocolate - 2 1 - 3 2.38
1 "
.) 3 1 8 6.34
34 40 36 16 126 100

A dinâmica da ideologia do branqueamento e o processo da constituição individual pela

ão corn a idéia de raça, para serem compreendidos, devem ser situados nos contextos sociais e
213
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

regionais. que os.definem, Em Cachoeira, a.prática.familiar. nãc.está.isenta.dessa.dínâmíca, É Q qerne

da vida familiar, da vida comunitária, que essa dinâmica começa a se mostrar em sua particular

violência. Nesse contexto etnográfico, as questões de cor e de raça são constitutivas das relações

intra e extra-familiares. Como um fogo sob as cinzas, elas devoram com violência, tanto no interior

como no exterior, tanto no público como no privado. Esse espaço privado, intimista e idílico, tão

proclamado nas representações dominantes, assim como nas representações populares, é construído

com o material sócio-cultural em curso no público.

A base material do modelo que estrutura as relações entre os agentes se inscreve, aos olhos

dos agentes, primeiro na experiência familiar que a reifica; segundo, na própria distribuição espacial

da sociedade local. Ela fornece os elementos de definição do negro como um lugar temível e temido.

Ela justifica, tanto aos olhos dos agentes assim construídos pela sociedade dominante, como aos

olhos desta, a "naturalidade" da hierarquia sócio-étnica e da condição subalterna do negro. Ela

fornece aos agentes os elementos de construção, no cotidiano, do negro ao mesmo tempo como

uma categoria racial e como uma. categoria social, um lugar. do qual todo- mundo- quer fugir. É.esse

cntexto. que .constitui a cena. na. qual os. cônjuges- são. escolhidos. É .a.partir desse.contexto .que os

agentes hierarquizam e constroem seus julgamentos.

Página seguinte, a procissão das mulheres negras da Confraria Nossa Senhora da Boa Morte. E um desfile do
grupo afro-brasileiro llê Ayê. O negro nesse período tem um valor positivo.
vIZ
215
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Esse contexto sócio-cultural impõe ao mercado matrimonial regras suplementares àquelas

comuns aos mercados matrimoniais das classes populares em geral. Uma coisa é ser pobre, uma

outra é ser negro e pobre. Essa diferença é claramente expressa no discurso dos agentes:

O que faz o negro é o passado. O negro é o passado de alguém. Porque a paupernia (a

pobreza) é de ninguém.

Mercado matrimonial e construção da feminilidade

O mercado matrimonial retoma cotidianamente os estereótipos associados aos negros. Ele

reconfigura as categorias de sexo (gendersy numa nova relação de poder, na qual a mulher negra, a

menos que ela tenha uma posição central nos sistemas religiosos afro-brasileiros, ocupa o mais

baixo degrau. O homem negro, tendo muito mais mobilidade espacial e margem de manobra -

oferecida pela sociedade dominante profundamente machista - pode se permitir escolher a mulher

para que ela seja a provedoJ:ade.seuS-fJlhos., É que.a.imagem.da mulher negra, no.interior das classes

~~pulares e da sociedade dominante, é construída segundo os paradigmas herdados da escravatura:

.:.puta, a prostituta. A mulher negra é mais livre para o sexo, afirma um agente; ou ainda essa frase

ito frequentemente repetida pelos agentes de sexo masculino: mulher negra é para seforder!

O discurso sobre a sexualidade das mulheres negras e sobre a cor entre os agentes, encobre

a forma de construção da feminilidade que é de fato uma manipulação das relações de poder

e homem e mulher, relações originadas do mundo das plantations. A cristalização da mulher

_ ~a no cerne de uma sexualidade incontrolável, opera como mecanismo de classificação das

. sáveis e das não-esposáveis. Resulta daí uma marginalização daquelas que entram na categoria

• = não-esposáveis; estas, por sua vez, constituem o exército de mulheres da rua - prostitutas,

ias. O que, por outro lado, permite aos homens recuperar, vantajosamente, sua pretensa potência

cial foradc comvm.

Mais uma vez, tudo é uma questão de contexto. A dinâmica do mercado matrimonial não se

erce num único sentido. As próprias contradições e ambiguidades que estruturam a auto-

.. esentação dos negros, fazem com que não possa ser de outra maneira. No entanto, em sua
216
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

frequente busca de clarear a pele de seus descendentes, o homem e a mulher se lançam numa

competição desigual, na medida em que a posição da mulher é culturalmente construída, na sociedade

dominante e na periferia, como sendo subalterna.

Construção da aparência e reconstrução de si

Q contexto impôs a cor em todas as suas nuances, em todas as suas ambigüidades e

contradições, como capital primordial, sem o qual fica-se bem pobre para negociar. Esse capital é

tão caro aos agentes, que lhes permite redefinir os gêneros. as relações entre os sexos. Nos 4 bairros

estudados, a porcentagem de mulheres negras (pretas, escurinhas, cor de renda) solteiras é

significativa (ver adiante o ítem conjugalidades.

O trabalho de construção da cor social é o da construção da aparência. Ele coloca em si a

'brancura" como valor estético absoluto. É um- trabalho de- auto-construção, e-de- pemanente

negociação de si. É também, ao mesmo tempo, um esforço de inclusão na sociedade e um esforço de

luta contra a exclusão social. A construção cotidiana da cor entre os negros de Cachoeira, participa

da cultura da aparência que é a marca da negociação pública-privada no fundamento da sociedade

brasileira [DaMatta 1990 (1978)]. Um trabalho que desenvolve, sob outras formas, o exercício do

branqueamento. O trabalho de construção da cor, da aparência, nos meios estudados, impulsiona

mecanismos sócio-psicológicos pelos quais os agentes se negam mutuamente. Por uma antropologia

da aparência, empreendimento urgente nesse contexto societal, é possível abordar as formas sutis de

dominação e de suas reproduções na sociedade.

Poderia acreditar que a criação do gosto em meio popular, origina-se no campo do ordinário.

O enunciado da beleza e da feiúra, aquele da aparência, se subtrairia assim das determinações sociais

e históricas, para se afirmar apenas na contingência do espontâneo e do artificial. Submersos na

"cultura de massa" - é o modo de falar, hoje em dia, dos efeitos da globalização na produção de

novas identidades em meio popular - os agentes de classes populares seriam reduzidos a simples

consumidores de valores globalizados e globalizantes, veiculados pelas grandes máquinas niveladoras

de consciência, principalmente os meios de comunicação. Uma tal concepção da produção de gostos


""1"-

Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

estéticos em meio popular, impede de pensá-los como agentes históricos, espacialmente localizados.

relacionados às profundas contradições pelas quais inventam sua trajetória de auto- construção.

3. A escolha do parceiro na prática matrimonial

o capítulo lII deste trabalho havia tomado por objeto as modalidades pelas quais a ordem

simbólica funda a constituição do parentesco. Nós vimos: o que os agentes designam como sendo

parentes/família não se reduz apenas à filiação e à aliança. "O exercício do parentesco" alarga o

estreita seu campo mediante práticas sociais e culturais muito diversificadas, entre as quais notou-se

a adoção e o parentesco ritual. Todas essas práticas, sabe-se, são traduzidas no princípio

consideração. O princípio da consideração, tal como formulado e usado nos bairros estudados

'une", por um lado, o próprio ao próprio - ou o semelhante ao semelhante - (parentes de SaJlgzl_ .

ou, no caso de parentes por consideração, "transforma" o outro, em "próprio". O principio de

consideração, finalmente, se ergue como princípio de reconhecimento. Ele constrói o idêntico e o

diferente; o próximo e o distante: ele é um princípio de legitimidade. O princípio de consideracão

constrói e delimita as fronteiras da proximidade social, as da interioridade e da exterioridade. Ele

está no fundamento das práticas sociais acima mencionadas e informa, por assim dizer, através

dessas práticas, tanto a formação dos grupos - as casas, as configurações de casas - quanto a

organização das relações interpessoais - na medida em que participa na definição da pessoa e

relações entre pessoas. Através dessas práticas sociais, a consideração estrutura desde o jogo socia,
I

da sociabilidade, os critérios de "avaliação" e de "escolha" do cônjuge.até à constituição e o de

das uniões, etc .

.Nos bairros estudados, a escolha do cônjuge se opera em função de critérios que si

constitutivos desse contexto sócio-cultural dos agentes. O primeiro critério que parece ser do 11 11".- •••••

entre os agentes, consiste na proximidade entre os pretendentes. O quadro (Q 3) mostra o

formas de união socialmente aceitas na comunidade, se realizam entre parceiros cujos parem

(ou tiveram) algum tipo de laço, o que supõe um conhecimento mútuo entre, ao menos. u

de cada linha dos respectivos parentes. Essas uniões são realizadas entre vizinhos. me
"V'

218
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

mesma.região ou afins. As ocorrências estatísticas das uniões concluídas entre próximos esposáveis,

apesar de que sob formas não preferenciais, parecem significativas se comparadas com a totalidade

de formas de uniões efetivas na comunidade (7.4 sobre 10)17 Essaproximidade, como foi registrada

através da distribuição hierárquica das formas de sociabilidade, definiu-se principalmente em termos

de alguns valores, tais como a localidade (geográfica), a vizinhamça (o bairro) e, fracamente, a

consaguinidade. O exemplo do bairro # 1 ilustrado no quadro (Q 4), mostra a fraca incidência da

consanguinidade sobre as práticas matrimoniais. Sobre um número de 154 uniões, divididas em 131

casas, o bairro # 1 registra apenas 12 uniões efetivas entre consanguíneos (sejam 7.79%), das quais

8 delas são consideradas como estando nas fronteiras toleradas pela sociedade brasileira em seu

conjunto.

Q. 4. Uniões efetivas aproximadas pela consangüinidade no bairro # 1. Pop. efetiva= 154 casais

Uniões casamento c. costum juntado amigado Tot./uniões

2-2 - - - - O
2-3 - 1 - - 1
..,.. '>-
.)-.)
- - - - O
3.-4 - 2 - - 2
4-3 1 - - - 1
4-4 - - - - O
5-5 , - 2 1 - 3
5--4- 2 1 - 1 <t
+-5
,
- - 1 -
-1

Total uniões 3 6 2 1 12 sobre 154

A construção dos próximos - e, por consequência, dos distanciados - aptos a produzir

,~ vida conjugal, qualquer q.ue seja o critério invocado, cria um horizonte relativamente amplo

.zra o mercado matrimonial. Ela participa de um sistema de escolhas matrimoniais cujo ceme é

__nstitutivo das estratégias dos agentes que operam essas escolhas, e das redes matrimoniais das

-.:..ais são originados.


219
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Q. 5. Uniões efetivas aproximadas por afinidade no bairro # 1. Pop. = 154 casais

Uniões* casamento c. costum juntado amigado Tot./uniões Frequência

5 7 2 1 15 36.5
2 1 20 4 1 26 63.4
Totar 6 xr 6 r 4t 100%

Legenda: (*) Uniões efetivas. Parte-se aqui da seguinte hipótese: as escolhas matrimoniais em questão neste
quadro, apesar de não prescritivas, se inscrevem na continuidade das escolhas anteriores entre as linhas. Essa hipótese
concede maior espaço às estratégias individuais e coletivas, que ao acaso. 1= Trocas recíprocas entre duas linhas,
entre as quais houve, sobre duas gerações ao menos, 3 uniões anteriores àquelas figuradas neste quadro; 2= Trocas
recíprocas entre duas linhas, na geração de Ego, entre as quais houve, ao menos, 1 união anterior.
Registra-se, por outro lado, comparando essa ilustração de 41 uniões aproximadas por afinidade (Q 5), e
ela das 12 uniões aproximadas pela consangüinidade, do quadro (Q 4) - os dois somam 34.4% do total das
uniões do bairro # 1 (pop.= 154) - com aquela obtida sobre uma amostra de 63 uniões distribuídas nos bairros
estudados - sejam 36.5% das uniões - representada no quadro (Q 3), que a relação estatística entre as frequências
tidas nos quadros acima mencionados é relativamente estável.

" revelaram os trabalhos de Bozon e Héran (1988: 122), as formas de sociabilidade


Se, como

constituem uma das principais mediações que tendem a estruturar a homogamia de fato das uniões,

estudo das formas de sociabilidade, num contexto sócio-cultural específico, deveria nos permitir

znalisar como se estrutura e se reproduz essa homogamia. Ele deveria revelar o sentido das avaliações

estratégicas dos agentes, através da escolha do cônjuge e da rede familiar e social, no qual se enraiza

~ se constrói a personalidade. identitária do agente. O que a localidade, o bairro, a vizinhanç;a,

corno os mais recorrentes termos de proximidade na prática matrimonial, nos bairros estudados, nos

revelam, é a sua importância na constituição da área privilegiada na qual e pela qual se estruturam as

ronfigurações das redes domésticas. Área privilegiada, mas hierarquizada, na qual o círculo controlável

- -- próximos se constrói em relação àquele mais vasto, mas necessário, dos distanciados. As práticas

catrimoniais dos agentes, exprimindo-se primeiro à partir dessa área matrimonial socialmente definida,

gerem a dimensão estratégica - não necessariamente consciente - do sistema de escolhas

trimoniais. O sistema oferece uma variedade de estratégias que, em conformidade com o capital

.cletivo das casas e das configurações de casas, podem ser aceitas ou sancionadas pela coletividade,

'=Iyilegiando em determinados contextos, a abertura para o "exterior", quer dizer, aos "esposáveis"
220
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

que não fazem imediatamente parte dessa área matrimonial "natural", consolidando certas alianç;as

distanciadas, segundo os enjeux coletivos e as espécies de capital disponíveis sobre o mercado

matri~niaL

A classificação dos "esposáveis" e "não-esposáveis", nas comunidades estudadas, delimita

uma área matrimonial "naturalizada" pelos agentes. Um exemplo. No interior dos bairros, os agentes

fazem uma "triagem", por assim dizer, entre "esposáveis" e "não-esposáveis". No baixo escalão dos

'não-esposáveis" situam-se aqueles que correspondem aos esteriótipos sobre o sangue ruim, descritos

acima;e sintetizados no negro da pele escura. Sobre essa base se erige, entre os Negros em Cachoeira,

uma hierarquia de nuances da cor da pele, indo do preto carvão (escuro) ao moreno claro (preto

mestiço). Os "esposáveis" são classificados em próximos e distanciados (espacialmente). Os próximos,

por sua vez, são distribuídos, principalmente em função de seu status social na comunidade. Aquilo

que, segundo os agentes, entra na composição do status social de um agente, consiste em espécies de

apital que podem ser manipulados à vontade, na posição de sua família ou de sua casa, na rede na qual

ele está integrado, passando pela interpretação social das nuances da cor de sua pele, na rede social

pessoal que ele pode mobilizar com fmalidades específicas (sua turma, por exemplo). Se, no interior da

comunidade, os agentes estudados distinguem os "esposáveis" dos "não-esposáveis", os "nós" e os

"outros" - aqueles de sangue bom e aqueles de sangue ruim - as formas de união, por sua vez, são

_ almente classificadas e manipuladas, no sentido q.ue a aliança seja "adequada" - quer dizer,

uilibrada - ou que ela represente, aos olhos dos parentes dos respectivos parceiros, um casamento

zesigual (une "mésalliance '), quer dizer, uma aliança entre um "esposável" e um "não-esposável".

""\Ssirn, uma união do tipo juntado, entre um membro do bairro e alguém que não pertença a seu

zaiverso matrimonial, pode ser considerada como sendo um casamento (costumeiro) ou um caso,

gundo a importância econômica e o prestígio que "o outro" traz com ele, ou segundo a extensão da

-=ae familiar/social na qual ele está implicado. Do mesmo modo, um casamento desigual (une

salliancei se transforma em "aliança equilibrada", no caso de um dos parceiros, em virtude do

zoalho ou de outras formas de reconhecimento aceitas no bairro, conseguir se impor aos olhos dos
221
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

parentes do parceiro. (Os significados e os critérios de classificação das uniões nos bairros estudados

serão adiante analisados nesse capítulo). Em sua dimensão estratégica, no interior dos bairros, entre os

vizinhos, numa localidade; o sistema integra, exclui e desqualifica as uniões potenciais, mediante a

manipulação dos códigos de conduta partilhados pelos agentes. Vê-se que, como nas classes médias

ou na burguesia, nas "classes populares", as pessoas não se casam com "qualquer um".

A importância da proximidade na constituição das redes familiares nesse espaço social é

capital. Em primeiro lugar, se a proximidade consangüinea é estatisticamente pouco significativa,

encontramo-Ia nas casas e configurações de casas, das mais poderosas nos bairros. Nos bairros # 1

e # 3, essas práticas se estenderam por duas gerações, reforçando os laços entre parentes de sangue

e, ao mesmo tempo, voltando a limitar a extensão das configurações, pela limitação do uso das

considerações ..É de .se registrar no-entanto- que, por um-lado, todas .essas .uniões foram realizadas

nos moldes de casamento civil e religioso e, por outro lado, todas essas uniões se coagulam entre

elas para formar as uniões pivôs" nas grandes configurações de casas. Essas uniões pivôs são

constituídas, no caso do bairro # 3,.de grandes famílias de dignatários do Candomblé, de pais e mães

de santo, dos quais certos membros fazem parte da Irmandade Nossa Senhora da Boa Morte, e que

se colocam como sendo descendentes diretos de reinos africanos (Nações), principalmente das nações

Gege - (essas configurações são estudadas, num outro contexto, no capítulo V). Os casamentos

entre os muito próximos,. permitem às casas, às grandes configurações de casas, criar as condições

de transmissão, de conservação, e de integração dos capitais simbólicos da linha (principalmente:

posições chaves nos candomblés, antiguidade das linhas, bens materiais, posição social na localidade,

etc.).

A partir da análise das uniões efetivas e daquelas de algumas reconstituições genealógicas

(ver capo II e capo III), e me baseando, neste capítulo, sobre os dados apresentados no quadro (Q 3),

foi possível registrar que em cerca de metade das uniões ocorridas entre membros de um mesmo

airro, de uma mesma localidade ou na vizinhança, houve, ao menos, um casamento entre os parentes

os dois parceiros, anterior ao encontro inicial destes. Essa conexão anterior determinaria, em parte,
222
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

a escolha do cônjuge na geração subsequente? Há espaço para se falar em renchainement d'alliance

entre os agentes?" Os dados são relativamente delgados e eu prefiro não investir tanto, para o

momento, nesse modelo. Retenhamos, de todo modo, que esses jogos de aliança participam na

confirmação e na renovação das redes domésticas. Parece que há uma certa homologia entre uniões

legalmente sancionadas e posições nas configurações de casas. Ao exemplo das grandes configurações,

sobre o plano estrutural, as uniões legalmente sancionadas constituem também, elas próprias, os

plVÔS das configurações. Essas uniões são, em geral, tardias, e representam para os agentes umá

espécie de coroação de uma longa vida em comum. Como, nas representações dos agentes, um

casamento deve ser necessariamente acompanhado de grandes festividades, considerado o prestí~io

social associado ao casamento religioso, aqueles que se casam legalmente são aqueles que, durante

suas trajetórias; alcançaram uma posição central na configuração de casas nas quais se inscrevem,

em consequência de sua posição econômica nas redes domésticas. As uniões legais que não estão

diretamente no centro da configuração, estão associadas às casas de seus pais, e nesse caso se

inscrevem no seguimento daquelas que, no futuro, vão exercer uma posição central na configuração.

4~O exercício da "cof!iugalidade"

Nós vimos, nos capítulos anteriores, que as representações sócio-culturais tecidas pelos

agentes sobre o parentesco, participam de um complexo conjunto de idéias sobre o público e o

privado. Para os agentes, aqueles que são considerados como sendo parentes/família, fazem parte

do domínio privado. Pelo prisma do privado, os agentes classificam e localizam na esfera pública

:udo aquilo que participa do incontrolável, do impessoal, do mundo da rua. Mas no princípio dessas

onsiderações, os agentes se vêem e se pensam uns aos outros como sendo homens e mulheres. A

cada uma dessas categorias corresponde um conjunto de atributos, de posições deles resultantes, e

de funções que definem os domínios de uns e outros, o masculino e o feminino. Os domínios das
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

atividades humanas podem ser tão variados quanto possíveis, mas a designação de uma categoria de

sexo a cada domínio, quer dizer, a sexuação dos domínios, faz com que estes se dividam em dois

pólos que se convertem; na vida real, no público e no privado. O que mediatiza a interação social

entre o homem e a mulher são, por um lado, as relações heterosexuais, e, por outro lado, a designação

das atividades de um e de outro, em seus respectivos domínios. No fundamento das relações entre o

homem e a mulher, segundo os agentes, encontra-se a necessidade de colaborar. A colaboração,

como mencionei no capítulo II, pela realização de atividades repartidas conforme o princípio ,da

divisão dos domínios, funda a sociedade. A colaboração funda as relações conjugais assim como

funda a casa.

A idéia de "conjugalidade", tal como expressa nas entrevistas com os agentes, se exprime na

linguagem da cooperação mútua, entre um homem e uma mulher, numa casa. A idéia de cooperação

sugere domínios de atividades designadas aos parceiros em união, seja dentro de casa ou fora dela.

A cada parceiro se projetam perspectivas e expectativas diferentes da relação conjugal: do marido,

a mulher espera que ele invista em seu domínio; o trabalho; que ele vá à luta, na rua, ganhar o pão

de cada dia". O marido, para que ele se coloque nas representações coletivas como "chefe de

família", deve ser capaz de disputar com seus iguais um lugar no mercado de trabalho. Nas

representações dos agentes, espera-se do marido que ele seja responsável, que ele reconheça suas

responsabilidades frente à sua mulher e seus filhos. O marido deve ser capaz de proteger os seus

contra as adversidades, digamos, naturais - doenças, acidentes, etc. - e contra as adversidades

sobrenaturais - ele deve saber onde ir e o que fazer, quando as forças do mal se apoderarem de um

membro de sua família; além de provedor, ele deve ser o protetor da família. Mulher e filhos a

assumir, um espaço a investir: a rua. A definição da esposa, nas representações locais, determina que

a mulher oriente toda a sua sexualidade em direção a seu marido. Enquanto que as "fugas" discretas

do marido com outras mulheres são toleradas, sua esposa lhe deve fidelidade absoluta. Os homens

dizem, de bom grado, que a sexualidade masculina é "feita assim", ela não pode se exprimir unicamente

nos limites da união. Para as mulheres..a fidelidade masculina é tão importante quanto a da mulher.
224
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Entretanto" a sexualidade feminina "é feita assim"> ela só pode se exprimir nos limites da união, uma

vez que o homem preencha suas condições de marido, quer dizer, as de provedor, de protetor, de

responsável.

Se, nas representações locais, as atividades humanas se constróem e se definem nos donúnios

sexuais, elas não impedem, no entanto, as categorias de sexo de passarem de um domínio designado

a um outro não designado. Primeiro na casa, domínio eminentemente feminino, há tarefas que devem

ser executadas pelo marido: toda atividade que exige uma grande energia fisica é predisposta aos

homens. Na rua, espaço público associado aos homens, há também o mercado, os templos religiosos,

constituindo espaços públicos femininos. Assim, as divisões masculino/feminino, privado/público,

ganham sentido somente ao se considerar contextos específicos, elas são ditadas pelas situações.

Nas casas onde o casal está integrado a uma organização mais complexa, tal como na casa de Elma

(ver capítulo II), a divisão do feminino e do masculino é puramente situacional. As tarefas masculinas

ou femininas podem ser executadas indistintamente por um homem ou por uma mulher. A passagem

de um domínio a outro,como mencionei, ocorre em função de contextos particulares.

A noção de responsabilidade é central na constituição dos domínios específicos dos dois

parceiros. Precisamente, porque o signo distintivo da idéia de "conjugalidade", consiste na cooperação

consciente e na troca entre dois parceiros. Se um deles faltar com sua responsabilidade, quer dizer,

parar de colaborar, a união se desfaz. A "conjugalidade" é portanto a expressão da cooperação e da

troca.

Importa agora, a partir da representação dos age,ntes tal como descrita sobre a

"conjugalidade", estudar como estes categorizam as diferentes formas de união, em curso numa

casa, numa configuração de casas, no bairro ou na comunidade. A classificação subtendida nas

categorias de designação das formas de união, conduz inevitavelmente à classificação dos cônjuges.

Classificando as uniões, os agentes constroem uma hierarquia implícita nas estratégias matrimoniais".

O que distingue as formas de união, aos olhos dos agentes, é o gráu de aproximação de cada
225
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

uma delas com relação à idéia coletiva sobre o que é a "coniugalidade". Os agentes julgam e distinguem

as uniões em relação à capacidade dos parceiros de construir e de assumir, publicamente, suas

relações, segundo os códigos morais que definem as fronteiras de uma união séria, quer dizer, capaz

de preencher as exigências materiais e socias impostas pela idéia de "conjugalidade". Para além das

formas que podem assumir as uniões, os agentes utilizam uma referência substancial para designar

as uniões legítimas, aos olhos da comunidade, das simples uniões, e das "outras relações". Os principais

termos usados para designar essas uniões são: casamento e juntado. O termo casamento remete a

duas formas de união: o casamento civil/religioso e o casamento costumeiro. O casamento civil/

religioso é considerado na comunidade como o quadro ideal, que dá segurança e legitimidade à

união. Muito pouca diferença é estabelecida, aos olhos dos membros da comunidade, entre o

casamento religioso/civil e o simples casamento civil. Uma das etapas pelas quais pode-se chegar ao

casamento religioso/civil, consiste na seguinte fórmula:

• Paquera => Namoro => Noivado => Casamento religioso e/ou civil.

A paquera começa, segundo os agentes, na própria cena inicial onde se conheceram os cônjuges.

Ela pode levar - às vezes no mesmo dia - ao namoro. O namoro é o período inicial das

relações, a partir do qual os parceiros entram num processo de oficialização das relações. É o

noivado. Segundo os agentes, o noivado é um estado semi-público, mas mais privado do que público.

É durante 0- período de noivado- que.os.parceiros começam-começam a negociar o futuro.espaço -

a casa - na qual sua vida em comum vai começar. O passo seguinte, após o noivado; é, logicamente,

o casamento. A imagem mais comum que os agentes têm do casamento é a de uma grande festa

religiosa e familiar, para selar a unidade de novos aliados; que tornam-se assim, em princípio, uma

família só.

o Paquera => Namoro => Juntado ou Casamento

O esquema anterior (paquera => namoro) pode também conduzir a uma (outra) forma de união:

o casamento (categoria local) oujuntado. O casamento costumeiro pode levar ao casamento religioso/

civil. Essa sanção, tardia aos olhos do observador exterior, corôa de fato uma experiência de vida
~:6
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

em comum. O que dá sentido a uma união,. não é a sua legitimidade legal. A sanção religiosa civi

tem um sentido apenas estatutário, d'onde a importância das representações sobre o casamento leg

na ideologia conjugal. O que para os agentes caracteriza um casamento é o fato, para os cônjuges.

de viver um contrato, pelo qual eles cumprem suas perspectivas mútuas, segundo a idéia ca

"conjugaíidade" partilhada na-comunidade. É. O- fato- de mcrar junto numa- casa, e vi:v:ero coarra:

conforme as obrigações de trocas e prestações sexuais, que criam a interação entre um homem c

uma mulher. A "conjugalidade", tal como é exerci da entre os agentes, constrói as vias de inreracã

entre as categorias de sexo.

É iadispensável.ac. observador exterior, perceber a importância dada pelos. agentes. ao.carar

público das uniões. Os agentes definem, culturalmente,. as fronteiras internas e externas das termas

de aliança vividas na comunidade. Em sua construção interna, a união se define a partir de referências

bastante claras para os cônjuges. Ela implica num conjunto de comportamentos, de expectativas

mútuas e de trocas, sem o que ela não se sustentaria aos olhos dos parceiros. Esse conjunto .~ 03

comportamentos e expectativas se constrói não somente no espaço interno da casa, mas tamb .

das redes domésticas das quais participa a casa dos cônjuges. Pelo o que ela representa de estáve

de definida, a união mobiliza, segundo a forma optada e seus respectivos meios (casamento religios

civil, casamento local, juntado), recursos familiares consideráveis. Ela supões a construção de

casa" ,.ou a integração numa casa; ela implica no alargamento ou estreitamento das redes domésti ---

ela reconfigura as posições numa configuração de casas, etc. Todos esses enjeux fazem com que as

fronteiras externas de uma união legitimada na comunidade - e portanto da casa na qual ela esta

integrada, e em certos vasos da configuração de casas - sejam bem definidas. A definição exrerrz

das fronteiras da união é um imperativo para o controle da sexualidade. Contrariamente às ,,~l;"'"O-

idéias da sociologia das classes populares, a promiscuidade não é constitutiva da ordem marrirnoni

que eu descrevo no presente texto. As pessoas não trocam de parceiros como trocam de :-o!.!:?-.:.
.. -

construção de fronteiras externas (e internas ao mesmo tempo) para delimitar, na consciência c - .

agentes, o campo da "conjugalidade",consiste no ato de assumir publicamente as relações COi...,.~g-:


227
Famllia; Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Assumir publicamente, para os agentes, é introduzir um tipo particular de relação (a privada) na

rdem pública, quer dizer, tomá-Ia socialmente reconhecida.

Aquilo que constrói um marido ou uma mulher, o que funda o programa do homem e o da

ulher na relação conjugal, está inscrito nas representações públicas do marido, da espôsa, do pai,

da mãe; 00 homem ou da.mulher. É em nome.dessafronteíra. publicamente definida, que-a-com\J.~dade

"exige" dos cônjuges que preencham os termos de seus contratos: isto quer dizer, para o marido,

exercer o seu papel de provedor das necessidades de sua mulher e seus filhos, orientar sua produção

para o bem estar de sua casa, assumir seu papel como chefe da casa, reclamar quando sua esposa

falta com suas responsabilidades, exigir a fidelidade absoluta da parte de sua esposa; e, para a

mulher, mostrar suas capacidades de administração do espaço doméstico, cuidar de seus filhos, se

mostrar capaz de negociar com a rua, sem se comprometer sexualmente, orientar sua sexualidade

exclusivamente para seu marido, e lhe ser fiel, tanto quanto ele cumpra com suas obrigações com

responsabilidade. É nesse quadro sócio-cultural que se constrói a noção de responsabilidade dos

parceiros. É o espaço público que define o que é o QaQeldo pai ou da mãe; é esse espaço que cobra

o compromisso e a obrigação, dos atores sociais, de serem responsáveis.

Uma união que se estrutura nesse contexto de idéias associadas à conjugalidade,publicamente

assumida pelo homem e pela mulher, e se concretiza numa casa, onde a sexualidade da mulher

dirige-se exclusivamente ao marido, é percebida na comunidade como equivalente a um casamento.

A categoria casa é portanto indispensável para se apreender plenamente o sentido implícito investido

pelos-agentes. na noção. de "conjugalidade". É dentro da casa, partilhando. a mesma cama - e

exercício da sexualidade - assumindo seus compromissos, exercendo seus papéis e as respectivas

tarefas inerentes a toda vida em comum - a cooperação e a troca - que se funda, plenamente, a

vida conjugal. Eis o que é,. para os agentes, uma união. A diferenciação, aos olhos dos agentes, da

união das outras formas de relacionamento, refere-se a uma economia das estratégias matrimoniais.

De fato, o compromisso matrimonial que dá lugar às relações de aliança, só é possível pelo

reconhecimento público, que institui uma nova relação entre duas redes familiares.
228
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

A publicidade do compromisso matrimonial constitui o meio, por excelência, de legitimação

e institucionalização de uma classe de relações sociais. Essa legitimação e essa institucionalização

não devem ser no entanto aproximadas da idéia de contrato. A idéia de contrato conjugal como

modo de legitimação se afasta, com efeito, daquela de compromisso matrimonial que eu descrevo

nesse contexto, pela natureza de sua publicidade. O contrato conjugal remete, efetivamente, a um

público geral- um só público - seja qual for o nível social no qual ele é apropriado. O compromisso

matrimonial, o modo de legitimação aqui analisado, ao contrário, implica em vários públicos, não

necessariamente delimitados. Toda a importância de assumir publicamente essas classes de relações,

próprias a essas uniões, reside no fato dos agentes não terem jamais um só público,. pré-definido (e

assim generelizado), diante do qual eles legitimem essas relações. Exatamente ao contrário, o

compromisso matrimonial remete antes a uma renegociação contínua, com diferentes públicos. Essas

relações devem ser sempre negociadas, reafirmadas, recriadas. É o que explica a grande diferença

entre as uniões reconhecidas (legitimadas) e aquelas que não o são, consistir no fato das primeiras

comportarem compromissos publicamente reconhecíveis. E todo o material que eu apresento nesse

texto mostra que são esses compromissos reconhecíveis que devem ser sempre renegociados, mesmo

sendo institucionalizados.

É a partir desse ccnjuntc.decrítérios.que os.agentes.distinguem as propriamente chamadas

uniões - vividas sob a forma de casamento legal ou não, de juntado - das outras formas de

relacionamento assimiláveis às uniões, tais como:

• Paquera => Amigado

• Paquera => Caso ou Armação

• Caso/Armação

Para os agentes, "paquera", "amigado", "caso" ou "armação", designam uma classe de

relações amorosas que põem em relação uma classe de pessoas. Os agentes designam como amigado,

uma relação amorosa entre um homem e uma mulher que não implica em qualquer compromisso

sério, podendo levar a uma relação estável e durável. Ela pode ser uma relação extra-conjugal, uma
229
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

relação entre duas pessoas solteiras mas que não pretendem perder suas condições de solteiros, uma

relação entre duas pessoas de status diferentes, geralmente a mulher, etc. A duração dessa relação

varia em cada situação. O caso, que alguns designam também como armaçãoç paquera, é uma

relação amorosa fortuita, extra-conjugal ou não, na qual não há nenhum tipo de compromisso entre

os dois parceiros. A classificação aqui não é exclusiva. Existem, aliás, outros vocabulários para

designar essas formas de relações amorosas.

O que é comum a essa classe de relações amorosas é que ela não implica em qualquer

compromisso entre os parceiros. A sexualidade feminina não é ferida pela exclusividade, e a mulher

não é obrigada a ter relações sexuais exclusivas com o homem com o qual mantém essa relação,

mesmo quando este o exige. Essas relações, aos olhos dos agentes, não são nunca públicas. Mesmo

quando, diante de todo o mundo, os parceiros mantém interações de caráter íntimo, na comunidade,

não se considera essas relações como uniões propriamente ditas. Elas não põem em relação duas

famílias, mas sim dois indivíduos. Os que vivem esse tipo de relação não partilham o mesmo teto, a

mesma casa. Ela é, em geral, não oficial, quer dizer, não reconhecida, já que não assumida publicamente

- não-pública - e:>-
em consequência, não implica em qualquer responsabilidade mútua entre os

parceiros. As pessoas da comunidade não qualificariam um caso, ou uma armação, como casamento,

nemcorrmjuntado, aindamenos.-Q..S-pró.p.riOS-pat:ceÍI:os--em-questoo. É por isso que, seaconteçe da

mulher ficar grávida - a designação é aliás diferente para as mulheres grávidas, de acordo com elas

serem consideradas como casadas ou numa "relação"; da mulher casada diz-se, certamente, "que ela

espera um bebê" ou "que ela está em plena gravidez"; da mulher "em relação" diz-se "que ela

arrumou uma barriga" - o pai pode se recusar a assunir a responsabilidade de seu filho, com muito

boa fé! A relação não sendo pública, suporta-se a vergonha, quando é o caso, em família. D'onde

vem a importância da casa e da configuração de casas na absorção de crianças nascidas de relações

não reconhecidas. Nas casas pesquisadas, os agentes associam essas relações à rua. Não é por acaso

que a rua - quer dizer, o carnaval, a micareta - tem constituído o mais comum dos lugares de

encontro entre os parceiros que vivem essas formas de relação.


230
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

A importância da casa é mais uma vez crucial, se queremos apreender plenamente o sentido

das práticas conjugais dos agentes, e as restituir em seus contextos. É a casa que absorve o excedente,

por assim dizer, das relações não reconhecidas, e, em consequência, as crianças advindas dessas

relações, incluindo-as assim numa relação de poder. (Eu desenvolvo na seção seguinte os modos de

colocação das crianças).

Onde o analista - o antropólogo/sociólogo - por causa das idéias legalistas,. formais,

enraizadas numa concepção ocidental clássica do que deve ser a família, o casamento, etc., vê o

caos, a desordem e a promiscuidade, onde ele estabelece a diferença entre uniões ilegais (de facto)

e casamentó legal (de jure), os agentes vivem uniões, que a seus olhos equivalem e podem assumir

a forma de casamento legal, de casamentocjuntado ou de amis:.ado.

5. ceee, parentage e deslocamentos infantis

No capítulo 11,eu tentei traduzir os diferentes aspectos que podem assumir a configuração

dos membros numa casa. De fato, qualquer que seja o aspecto, a casa permanece ao centro da

constituição da família/parente.ela está no princípio de sua transformação. O estudo do exercício da

conjugalidade, referente aos papéis que são designados a.os pais, assim como aos deslocamentos

infantis nesse contexto sócio-cultural, devem tomar o espaço da casa como ponto de partida.

Le paternage (fatherhood)

Nas comunidades estudadas, o ideal professado pelos agentes é o seguinte: cada família,

compreendida aqui enquanto representação da família conjugal, deve se encarregar de cuidar

exclusivamente de seus filhos. A ênfase dada à responsabilidade dos pais, parece construir uma

representação da paternidade e da maternidade que não se distinguiria em nada da que é partilhada

em outras camadas sociais da sociedade brasileira em seu conjunto. Essa representação se construiria
231
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

em torno de oposições radicias entre a ordem do privado e do público. Nessa representação o pa~el

da mãe é valorizado, pelos agentes, com uma rara insistência. A deusa do lar, a eterna sacrificada,

aquela que torna possível a casa, a ordem doméstica. Uma representação da mãe que exprime no

fundo uma construção social da feminilidade, reinterpretada num contexto sócio-cultural particular

(tal como acima descrito),. a representação de uma categoria de sexo (gender). Ainda segundo essa

representação, o papel do pai no processo de socialização da criança é avaliado na medida em que

este se coloque como um bom provedor,. que saiba corresponder a suas responsabilidades. E as

responsabilidades, como vimos, se definem em função dos tipos de união. Se acompanharmos a

lógica dessa representação, não estaremos errados em traduzí-la nos termos correntes e dominantes

da construção do privado e do público na sociedade brasileira, tal como reportada por certos analistas

brasileiros, e questionada ao longo de todo esse texto: o homem na rua, a mulher em casa. Mas um

estudo mais próximo e mais atento da prática familiar revelaria, mais uma vez, se fosse necessário,

o quanto as representações não dão acesso completo às realidades da experiência. Se é verdade que

as idéias sobre a família e o parentesco, como eu mencionei acima, traduzem um conjunto de

representações sobre o público e o privado, é necessário,. todavia, questionar o que essas

representações representam, a natureza das experiências ou das práticas, que elas constróem - a

fim de adaptá-Ias às ideologias dominantes - e daquelas que elas dissimulam.

Nos contextos etnográficos estudados, os agentes não estabelecem uma separação clara

entre os domínios ideologicamente sexuados, e as tarefas que lhes são designadas. Nas casas

plenamente constituídas de mulheres adultas e crianças, e onde o homem (ou os homens) da casa

trabalham num outro município ou numa outra cidade,. os papéis ideológica e socialmente prescritos

para os homens, tais como abastecer a casa do essencial para a sobrevivência de seus membros, em

idade ou não de trabalhar, a excursão de tarefas consideradas pesadas para a mulher, assumir a

responsabilidade da casa enquanto um "nós" diante de "outros", etc, - são executadas cotidianamente

pelas mulheres. Mesmo a designação dos sexos aos domínios públicos e privados,. pode ser J
ideologicamente proclamada, sem se inscrever plenamente no cotidiano dos agentes. Nessa~
~I

232
Famllia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

comunidades, espera-se da mulher que ela sela desembaraçada, que ela saiba negociar com os

.íifererues agentes no mercado da sobrevivência; espera-se que ela invista na rua, sem no entanto

deixar-se possuir por esta. Negociação. Esta é a marca das relações público/privado nas casas

estudadas. Não fosse essa negociação, dificilmente se compreenderia os meios pelos quais as famílias

e classes populares, e particularmente as famílias de negros (pois> na sociedade brasileira, quanto

:nais se é negro, menos se tem acesso à cidadania), chegam a estabelecer laços com as instituições

_úblicas, os poderosos de seu mundo, as personalidades públicas, os espaços públicos.etc. A história

essas famílias, nós o vimos através da família de Dona Conceição (hoje a de Dona Elma), é a

história de uma permanente luta de se construir um domínio privado a partir do que lhes é oferecido

o público. É a história de uma constante negociação com o público para que ele se torne o mínimo

rivado.

Por outro lado, pode-se perguntar desde quando;a família das classes populares em geral, e

as de descendentes de escravos em particular, se construíram e se instalaram nessa representação

orninante; público x privado? Desde quando a mulher desses espaços, modelados ao mesmo tempo

pelas formas capitalistas e não-capitalistas de produção, repoduziram seu cotidiano na casa? As

iências humanas têm uma capacidade temível de produzir e dizer, em termos contraditórios e

arrogantes, totalizantes e exclusivos, o que elas têm interesse em difundir como sendo a experiência

e a.verdade dos outros. No momento em que as pesquisas caibenhas e latino-americanas proclamam

o papel das mulheres "chefes da casa" como sendo decisivo na construção do público na família, elas
~
retomam, paradoxalmente, de maneira redundante> a importância crucial da oposição das esferas

públicas e privadas na constituição social da mulher das classes populares (da mulher negra caribenha

e latino-americana) e de sua família. No momento em que os pesquisadores insistem sobre a

instabilidade das famílias, devida à ausência dos pais, à migração de seus membros, e à degradação

de seus meios sócio-econômicos, no momento em que se teoriza "a família consagüinea" (e a

matrifocalidade), insiste-se ao mesmo tempo sobre a~aternidade nessas famíli~ como uma instituição
'-=:-7
privada circunscrita ao domínio da intimidade doméstica. Pode-se perguntar, aliás, desde quando a
233
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

mulher negra, construída histórica e socialmente na servidão, traduzi da nas representações populares

no campo da prostituição, quer dizer, num campo eminentemente público, seria ela guardiã do

privado?

Pelo fato dos agentes não estabelecerem uma separação estrita dos papéis, quer dizer, das

representações sobre a segregação das esferas, - mesmo manifestando toda a força operante das

ideologias dominantes sobre a constituição e a separação do público e do privado - não constituírem

em nada as experiências cotidianas. As práticas de criação das crianças, não devem ser interpretadas

estritamente a partir das representações dominantes das oposições acima mencionadas. A observação

das práticas cotidianas dos agentes e as auto-biografias dos agentes estudados, mostraram que a

criação das crianças, em mais de 80% dos casos, não se faz unicamente no quadro de uma casé!. As

histórias das residências estudadas no capítulo II estabelecem muito claramente a diversidade de

recursos de que dispõem os pais, biológicos ou não, para socializar os filhos. Primeiro, os cuidado~ 1
maternais não são uma função exclusiva das mães. Não somente pela obrigação que as mulheres têm
---
de investir na rua para sobreviver - o que faz com que esse cuidar maternal, enquanto função, seja

talvez exercido por alguém próximo, consagüineo ou não - mas também, sobretudo, por que a

ética da maternidade esenvolvida nas comunidades estudadas celoca a ~ - e mesmo a mUlherw

- no centro da criação de não imposta qual criança. "Mãe e todas as crianças". Tal é a outra

afirmação que contradiz a primeira (que as crianças devem ser criadas por seus pais e mães). Mãe de

todas as crianças traduz a obrigação que têm todas as mulheres de fazer de modo que uma criança

- mesmo que ela seja de alguém com quem se está em inimizade - seja considerada como sua. Nas

comunidades estudadas, tanto em Cachoeira quanto em Salvador, é a ética de mãe de todas as

crianças que sustenta as práticas baseadas nos direitos e nas obrigações do vizinho - ainda mais

entre membros de uma mesma configuração de casas - de dar uma olhada nas crianças, que aliás

deixam, nesses contextos específicos, de ser as crianças de outrem, tornando-se "minhas crianças"

ou "crianças de todas as mães". O processo de socialização das crianças, como mencionado no

capítulo Il.constitui uma das bases primordiais da reciprocidade entre parentes/família, entre vizinhos,
~

234
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

entre os membros de uma mesma casa, entre as gerações. Todo estudo da família em meio popular,

deve começar por procurar o lugar da criança nos circuitos de trocas entre parentes e não-parentes,

ao mesmo título que as trocas matrimoniais.

Essa ética coletiva - que não é certamente a marca particular das famílias estudadas -

parece apoiar-se numa representação da criança", junto aos agentes estudados, que define esta mais

como um estado do que como um sujeito personificado. A criança, é a família - enquanto idéia-

feita carne, é a família em síntese. Os agentes designam muito frequentemente uma criança como

"minha família". A criança, dizem alguns agentes, é uma porção do céu, uma esperança", um encargo

um investimento e, para outros, tudo ao mesmo tempo. A criança é o único argumento que faz com

que sejam razoáveis duas casas, ou duas famílias, num desentendimento. Expulsar -se-á a mãe - e

isso eu constatei em Cachoeira e em Salvador - mas não se expulsará jamais (a mãe com) a criança.

Uma criança, me explicava Dona Elma, não é responsável. pela estupidez dos adultos. É o.que talvez

explique a grande tolerância dos adultos frente às crianças.


,/

Os cuidados maternais~), como todas as atividades ligadas àparentage, nào se


~ =--
circunscreve unicamente ao espaço da casa. A maternage se define aqui somente numa relação ce

troca e de reciprocidade com aqueles considerados como sendo os seus. A maternage não é reservada

à mãe biológica. Ainda menos o exercício da paternidade.

Certos pesquisadores insistiram muito sobre o sentido provedor atribuído pelos agentes li

paternidade em meio popular. Ao inverso, a maternage estaria presa à rede tecida no cotidiano ..•~

casa. Confirmando totalmente a efetiva força dessa representação nas áreas estudadas, eu me permrto

aqui insistir sobre uma outra dimensão constitutiva da maternage entre os agentes: é a dime -

produtiva. A maternage, mesmo quando ela é idealizada pelos agentes como sendo uma o

feminina circunscrita à casa, é construída na prática como sendo também provedor. Para os agea.es

prover a "sua" família - quer dizer, a suas crianças na casa - o necessário para viver. é co

do exercício da maternage. O que define uma mãe é, entre outras coisas, sua capacida

seus filhos, quer dizer, sua capacidade de corresponder a suas responsabilidades: e entre 5~
235
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

responsabilidades, há aquela, na ausência de um marido ou não, de ser a provedora. Certamente as

mulheres com quem dialoguei manifestaram o desejo de ver seus maridos, quando elas os tinham,

exercer plenamente o papel de provedor - se eles podiam. Mas em nenhum caso suas próprias

auto-definições de mães se construíam alheias da dimensão de provedora. A maternage, como a

paternidade, se constrói também na rua, pois é na rua que se jogam os elementos centrais da

sobrevivência dos agentes da casa.

Como eu mostrei no capítulo Ill a propósito do sangue e da consideração, de um ponto de

vista propriamente sociológico, os agentes estabelecem uma equivalência entre direitos de parentescos

e direitos sociais: o parentesco social institui, entre os agentes das comunidades estudadas, um

sistema de direitos e obrigações. Esse sistema se exerce em circuitos de trocas ocorridas entre

parentes/família de sangue e parentes/familia por consideração. Para os agentes,maternage e

paternidade são compreendidos como sendo papéis sociais, intercambiáveis, e que podem ultrapassar,
-
em certas- circunstâncias concretas, O- simples quadro da casa. É 0- caso dos-ter-reir-os.que, em certas

configurações de casas, e para certas casas, constituem um quadro importante no qual se exerce a

guarda das crianças". É que os terreiros são constitutivos de certas configurações de casas. Eu

observei em quatro grandes configurações de casas no bairro # 1, a contribuição substancial dos

terreiros na guarda das crianças, dos quais os pais e/ou mães são membros, ou pelo parentesco

espiritual, da grandefamília de Santo, ou pelos laços de sangue ou de aliança traduzidos em termos

de consideração. A guarda das crianças durante a ausência dos pais por certos terreiros constitutivos

de certas configurações de casas, é uma prática comum aos bairros # 2, # 3, ou # 4, e mostra o

quanto a criação das crianças, entre outras formas de exercício da parentage, não é exclusivamente

designada no círculo interior de um domínio doméstico qualquer, da casa.

Casos similares podem ser observados entre agentes participando da mesma igreja pentecostal.

É muito comum nos grupos evangélicos observados, nos bairros estudados, remeter-se às categorias

classificatórias do parentesco para estabelecer as bem fundadas práticas de solidariedade e trocas,

entre. "irmãos" ou "irmãs?' exercendo o ministério divino. Essas formas de solidariedade às vezes
236
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

reforçam, se necessário, os laços de sangue ou de consideração, assim como os laços de vizinhança.

Em nome da fraternidade professada e acentuada nas mensagens espirituais, as mulheres

patircularmente, mas também as moças que não trabalham, se organizam de tal forma que elas

substituem as mães biológicas prêsas às obrigações de trabalho ou religiosas. Essa forma de

solidariedade constitui às vezes para os prosélitos o estandarte por excelência de uma solidariedade

alternativa àquela praticada entre filhos do demônio (os filhos de santo do Candomblé). Como no

caso das escolhas de parceiros, pela tradução dos termos religiosos em relações de parentesco, as

estruturas familiares se prolongam e se enraizam profundamente na estrutura das religiões do lugar.

Eu dedico uma boa parte do capítulo V ao estudo do uso das duas linguagens na produção do

cotidiano familiar.

Os deslocamentos imemts" (déplacements juvéniles)

A observação da prática de criação das crianças, assim como a biografia dos agentes

entrevistados, mostram a força operante dessa ética coletiva na constituição do ethos familiar nos

meios estudados. Não há, em Cachoeira, nenhuma casa que não seja ou que nunca tenha sido

receptáculo de crianças, sob qualquer forma que seja. Não há também um agente adulto entrevistado

-
que, a um determinado momento de sua história de moradia, não tenha trocado de espaço familiar

ao menos uma vez no decorrer de sua infância. Apesar da evidente manifestação, por assim dizer,

desse ethos familiar, não se pode ceder à tentação reducionista, que consistia em isolar e segregar

positivamente as formas e os sentidos implícitos do ato de deslocamento infantil nesse quadro

referencial.

. Nos bairros estudados, o ato de deslocamento infantil é polissêmico. Num primeiro momento,

ele ganha sentido no ethos familiar acima mencionado: as responsabilidades da parentage na casa

")
são partilhadas entre mulheres. Essas responsabilidades são também partilhadas de modo provisório

entre os grupos e confrarias religiosas, dos quais eu fiz anteriormente menção. O círculo daparentage

se alarga no momento em que a criança começa sua circulação entre as casas de uma mesma -.......
-~
237
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

configuração. A mobilidade das crianças entre as casas participantes de uma mesma configuração

pode ser interpretada como sendo um primeiro modo de circulação infantil em vigor entre os agentes.

Esse modo de circulação, o mais divulgado, se efetua entre parentes/família, por consideração ou

não, de condições sócio-econômicas relativamente similares. Entretanto, uma observação minunciosa

desse modo de circulação permite que se estabeleça aqui uma tipologia, relativamente arriscada,

sobre as categorias de crianças privilegiadas nessa circulação; ela permite constatar que, as crianças

postas em circulação nesse primeiro círculo, são primeiramente as crianças originadas de mésalliance

- do ponto de vista dos pais dos respectivos parceiros, quer dizer, crianças de mães adolescentes

- às vezes de pais adolescentes - que vivem relações amorosas não públicas - aquelas cujos pais

e/ou mães não têm os meios de assumir a guarda, e que as deixam "em família", "entre parentes";

elas são também, crianças de jovens mulheres em uniões julgadas regulares na comunidade, mas que

são obrigadas a ir à cidade, trabalhar como domésticas, e cujos maridos não trabalham no mesmo

município ou na mesma cidade. Nesse modo pti,mordial de deslocamento infaptiL(circulação infantil L


entre as casas de uma m~a configuração ), as crianças são hierarquicamente categorizadas, segundo

- aL que suas relações com seus genitores/genitoras sejam quase nulas, quer dizer, que a criança

tenha sido plenamente assumida pela casa (a avó, a tia, a irmã, etc.); b) que suas relações com seus

genitores/genitoras sejam relativamente estáveis, quer dizer, que estes se manifestem através do

envio de apoio econômico, cujo uso fica à discrição do/dos responsáveis que respondem pela casa;

) que essas mesmas relações sejam estáveis e que as uniões de seus genitores sejam socialmente

reconhecidas e consideradas como estáveis na comunidade. O primeiro caso (a) apresenta uma

criança completamente absolvida pela casa, na qual se encontra também o seu futuro; sua integração

na casa se faz, em geral, numa posição hierárquica segundo a qual, seus direitos serão teoricamente

os mesmos que os de toda criança de sua categoria, mas não compensariam em nada os deveres 9ue

lhe são impostos. Em outras palavras, as histórias de vida que eu analisei, as posições das crianças

transferidas que eu observei, as crianças transferidas, em idade de compreender, com quem eu falei,

me conduziram a estabelecer uma relação entre a posição social da criança no interior da casa que
238
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

lhe acolheu, e a maneira segundo a qual a criança foi "construída" e integrada na casa. Testemunhos

de adultos, de jovens explicando sua infância "na casa dos outros", que eles consideram

paradoxalmente como sendo suas próprias casas em certas circunstâncias, são tecidos de abusos, de

faxinas e trabalhos domésticos intensivos, e frequentemente de violência. O leitor pode se reportar

ao capítulo II para ilustrações. O segundo caso (c) apresenta uma criança cujo modo de entrada não

o destina à dependência completa na casa; seu pai ou sua mãe contribui periodicamente ao orçamento

doméstico, sua posição na casa é ligeiramente privilegiada com relação a (a)" mas o é ainda menos

em relação ao terceiro caso (b), no qual a entrada na casa foi feita, segundo os agentes, "pela porta

principal". O caso (c) apresenta uma criança vivendo na casa provisoriamente, e sua importância é

decisiva não somente em termos econômicos, mas também em termos de reprodução da casa: cedo

ou tarde, ele reencontrará novamente seus pais,. seja numa nova casa, seja na mesma casa na qual a

presença de seus pais contribuirá para fortalecer sua posição.

Nos contextos etnográficos estudados, o amor professado pelas crianças, tal como acima

reportado, nesse texto, não é cego. Ele seleciona, separa, classifica. Conforme as numerosas entrevistas

que eu tive com as jovens mães lavadeiras, domésticas e vendedoras ambulantes, negras ou mestiças

de negras, e as observações atentas dos comportamentos destas, as jovens mães diante da escolha,

entre dois filhos, cuja guarda deixará com os seus, são mais inclinadas a escolher em função do

seguinte esquema: os meninos de preferência às meninas; a criança de pele mais clara que a de pele

mais escura. Esse esquema fala, no fundo, de uma hierarquia de preferências que não se manifesta

pela rejeição da criança em si, longe disto. Trata-se de uma rejeição às marcas simbólicas fisicamente

incorporadas na criança. Essa rejeição de uma construção simbólica reificada no corpo da criança

(sua cor, a natureza de seus cabelos, o formato de seu nariz) se traduz numa hierarquia de preferências,

que estabelece oportunidades sempre privilegiadas, do ponto de vista da mãe, à criança mais "amada".

Também nas casas, mesmo quando compostas por agentes de pele muito escura, a menor nuance

epidérmica, o menor afastamento de traços identificados como negróides, traz a uma criança adotada

ou emfosterage, pequenos privilégios na hierarquia das considerações dos agentes da casa e, em


239
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

consequência, nas escolhas dos serviços domésticos a realizar.

A criança, tão publicamente magnificada, tem um status específico no imaginário dos agentes.

Apequena criança negra.muito frequentemente considerada pelos pais negros ou mestiços de negros,

de simpática, jamais linda, está longe de ser completamente uma jóia": seu status é muito ambíguo,

ela é ~m12.áticae ela é feia (basta assistir os agentes qualificarem as crianças dos outros na comunidade);

ela é uma esperança e ela é um embaraço; ela é o céu e ela é o purgatório; ela é uma jóia, mas

desvalorizada .._mas ela é uma criança. E como tal, a ética coletiva reclama o cuidado, a suporta, sem

distinção de nuances de cor. Mas hierarquizada, apesar dela, apesar dos agentes, apesar de tudo ...

Uma antropologia da construção dos sentimentos nesse contexto etnográfico, nos conduziria

talvez a nos colocar essa questão: em que medida os sentimentos maternais e filiais, as escolhas

afetivas, como qualquer outro sentimento, se constroem à parte das determinações sócio-históricas?

A importância da cor da pele das crianças se manifesta plenamente a cada vez que sua

transferência se coloca fora do círculo dos parentes/família propriamente dito. Nesse segundo modo

de circulação, as crianças mais privilegiadas têm em geral uma certa idade: a partir de seis anos.

Muito frequentemente, elas são recolhidas por famílias de classe média de Salvador (7 no bairro # 3,

5 no bairro # 1, 5 no bairro # 2), e mesmo de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais (3 do bairro

# 2). Essas crianças são todas do sexo feminino, e são colocadas nessas famílias de maneira informal.

Os circuitos de colocação dessas crianças - que eu não estudei a fundo, mas que os pesquisadores

brasileiros teriam interesse (como o fez por exemplo Cláudia Fonseca), em estudá-los sob outras

perspectivas - parecem funcionar através das redes de empregados domésticos que teriam

desenvolvido, ao longo de anos de trabalho, relações de "amizade" e "confiança" (cujos usos não

são estudados nessa tese) com seus patrões. Nos casos por mim registrados, as crianças que foram

colocadas nessas famtlias..o foram por uma sugestão vinda diretamente da mãe, ou por um pedido

feito por um parente, visando tirar uma de suas crianças de uma situação difícil. A guarda das

crianças é assim percebida pelos genitores como sendo ufu favor, que deve ser retribuído pela futura

aplicação da criança junto a seus receptores. Ocorre mesmo aos agentes de considerarem essas
240
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

famílias receptoras como sendo um prolongamento de suas próprias famílias. Essa forma de

"parentesco simulado" (CarrollI970: 10) entra num circuito de troca, pelo qual dois mundos instituem

modos de troca. Por um lado, os favores feitos pelos receptores (aceitando a guarda da criança), por

outro, os agentes que retribuem, pelas diversas formas disponíveis de manifestação de seu

reconhecimento. Uma delas consiste em organizar.para as famílias receptoras, "saídas" ou "consultas

místicas" junto aos terreiros de candomblé, para certos receptores que não se arriscam a frequentar

esses lugares. Essa prática de consultas, de fazer jogar os búzios por pessoas mediadoras, geralmente

os negros, é relativamente corrente. Ela traduz de maneira ambígua, a posição do negro como

portador de poderes mágicos nas representações da sociedade dominante, mas também, as

manipulações que se tornam possíveis aos próprios negros, que não hesitam, nessas circusntâncias,

a usar essas representações em seu beneficio.

O ato do deslocamento, como foi dito, é polisêmico. Assim como a escolha das crianças a

deslocar é estratégica para os agentes que entram nesse circuito, na medida em que essa escolha

obedece a determinações sociais e simbólicas, inscritas no cotidiano dos agentes, num contexto

sócio-cultural particular, a escolha dos receptores obedece às mesmas determinações sócio-históricas:

a escolha das crianças à deslocar, e a escolha dos receptores, formam um sistema. Ele movimenta

elementos sociais e simbólicos decisivos para a concretização dos objetivos individuais, e para uma

hipotética consolidação - indireta - das redes familiares, através da simulada extensão dos laços

de parentesco. Não é por acaso que os 19 casos, entre dezenas, registrados nos bairros # 1, # 2, # 3,

foram colocados em casas de receptores brancos - ou assim considerados. Não há um só em casa

de família negras de classe média. Questionados sobre o sentido dessa orientação nas colocações

das crianças, os agentes apresentaram respostas bem variadas, tipo: - bem, nós não conhecemos

famílias de gente de cor; ou, as pessoas de cor são menos inclinadas a aceitar crianças tão escuras,

ou mais escuras que elas; ou ainda, decididamente, "eu não enviaria nem meu filho para que ele fosse

criado por negros" - Mesmo ricos? - ''Mesmo ricos". É portanto claro, para os agentes nesse

contexto sócio-racial, que a condição de classe não suplanta, a seus olhos, o estigma de negro.
241
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Mesmo um negro cuja condição social é visivelmente diferente das usas, não escapa do lu~ar

imaginário, aos efeitos reais, no qual ele é construído. Não há demonstração mais forte da falsidade

do adágio popular que diz que a condição social (o dinheiro) branqueia. Para esses agentes, no

momento de decidir o destino de seus filhos, a condição étnica dos receptores é claramente desligada

de sua condição de classe: um negro, mesmo rico, é pura e simplesmente um negro.

Seria muito mal vista, pelos agentes, uma criança que, por "ingratidão" ou por "estupidez",

chegasse a ser posta pra fora, pois, segundo esses agentes, seriam todas as suas esperanças que

seriam desestabilizadas. Essa criança escolhida constitui um verdadeiro bem em circulação. Esse

bem em circulação tem, para os agentes, e eu suponho que também, reciprocamente, para os

receptores, tanto mais valor quanto traga em si os indícios, ainda que sob traços primitivos e grosseiros,

da "boa aparência". Os agentes se dispõem, de bom grado, a justificar suas escolhas dizendo que os

receptores só querem ajudar as crianças que têm "boa aparência".

Se na economia dessas colocações, os agentes investem nem certo capital, para um futuro

melhor para eles mesmos e seus filhos, certos pais recebem de volta amargas decepções. Eu encontrei

pais cujos filhos, quando adolescentes, não queriam mais ouvir falar deles, renegando absolutamente

seus genitores, mesmo sob a insistência dos pais adotivos (brancos).

Numa.casa.do bairro # 3;>-eutive uma conversa com Dona Clarice sobre sua filhacolocada

em Belo Horizonte (Minas Gerais). Eu queria saber o estado de suas relações com essa filha (hoje

com 17 anos), que ela tinha colocado desde a idade de dez anos. Dona Clarice raramente fala dela.

Mas quando fala, ela passa um sentimento ambíguo, ao mesmo tempo de desdém e de um alívio

resignado. Foi em Minas Gerais, onde Clarice trabalhou como doméstica durante dez anos, que sua

segunda filha, Laura, nasceu. Dona Clarice me explica e mostra com suas mãos marcadas pelo

trabalho os traços de sua filha, com um raro orgulho que diz tudo do sucesso dessa obra acabada, a

maciez de seus cabelos, a delicadeza de sua pele ligeiramente morena, e sobretudo a vitória do nariz

aquilino que ela herdou de seu pai, um velho mulato que trabalhava numa mina. "Um sucesso ", ela

me dizia. Como a fotografia que ela me apresentou, à guisa de ilustração de sua descrição, a contradizia
242
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

absolutamente, ela se punha a corrigir a imagem, dizendo a cada instante: "não, aqui não dá para

você perceber o cabelo", " ... pois é, mas o nariz dela é mais elevado do que o meu né?", " ... é, mas

ái é a ropa,..eu acho .._parece um pouco mais escuro,. né?" Em sua nova família.Laura participa..das

tarefas domésticas e é a babá dos filhos de seus novos pais. Trabalhadora assídua, ela conseguiu

concluir seus estudos primários, cursando à noite. ''Ela vinha às vezes aqui me visitar",. me dizia

Dona Clarice, sob a insistência de sua mãe branca, "agora ela não vem mais, há quase três anos". Eu

lhe perguntei então se ela não gosta de vir por ela mesma, visitar sua família, se ela não sente

saudade dos seus ... Chente! me dizia ela, "ela não me reconhece mais como mãe. Ela acha que eu

sou preta demais para ser a mãe dela". Eu lhe perguntei então como ela se sentia diante dessa

atitude ... Ela me respondeu que sua filha fez uma escolha e que ela a compreende. Isso dói, dizia ela,

como falando a ela mesma,. isso dói muito. Mas por mais duro que isso seja, me explicava ela, ela

não conhecerá o destino de seus irmãos e irmãs ... A dinâmica do branqueamento implica portanto,

para os envolvidos, uma estratégia de dolorosa renegação, e mesmo de amnésia, das origens e das

experiências que os acompanham. O desenraizamento é a contrapartida de uma estratégia que traz

consigo uma fragilidade trágica: num universo dominado pelo capital social, viver a solidariedade

junto aos seus, na obsessão e no perpétuo encantamento de corpos estigmatizados, ou, se afastar

dos seus, sem no entanto poder constituir uma rede alternativa de solidariedade.

Esse capítulo mostrou o quanto o processo matrimonial, e as estratégias que lhe são

imbricadas, não se constróem à parte da força operante da ideologia do branqueamento. Pelo estudo

da cena inicial e das espécies de capital investidos na constituição dessa cena, pudemos constatar o

quanto as escolhas afetivas entre os agentes também obedecem às determinações sócio-históricas.

Nesse contexto sócio-étnico e racial, os processos e os mecanismos que conduzem à escolha do

cônjuge, à aliança e à descendência, conduzem inevitavelmente ao problema da transmissão dos

atributos próprios ao lugar "negro" no imaginário coletivo, e individual, na hierarquia social.


243
Famllia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Notas do capítulo IV

1. Op.cit. capo 11.

2. O encontro tomado aqui por objeto não se refere necessariamente ao primeiro encontro entre os
parceiros. Conforme a metodologia proposta por A. Girard (Bozon et Héran 1987, mas ver nota 3
a seguir apresentada), é considerado encontro fundador aquele pelo qual "o amor" se manifestou,
aquele a partir do qual "alguma coisa ficou no ar".

3. A sociologia francesa interessou-se muito no estudo da formação dos casais como introdução ao
estudo do "funcionamento concreto do mercado matrimonial" na França. Essa démarche, formalizada
desde os estudos de Alain Girard sobre Le choix du conjoint (A escolha do cônjugev; foi depois
generalizada, levando a interessantes debates e publicações, entre outros, o texto "A descoberta do
cônjuge" (Bozon et Héran 1987) no qual, evidentemente, eu me inspirei para construir a metodologia
apropriada a essa parte da pesquisa em Cachoeira. Agradeço profundamente ao professor Eduardo
Viveiro de Castro, por ter chamado minha atenção quanto a esse aspecto do estudo das práticas
matrimoniais, e por ter tido a gentileza de me fornecer uma cópia desse texto.

4. O uso do conceito "religioso" para designar as práticas associadas aos Candomblés é aqui impróprio,
na medida em que essas práticas não são designadas como "religiosas" pelos próprios agentes (ver
capítulo I, seção 2). Eu utilizo largamente esse conceito nesse capítulo para classificar um fenômeno
designado como tal pelos estudiosos do tema.

5. Ver.por exemplo.a festa de São Benedito/Xangô dos descendentes da casa de Dona Conceição,
cap.V

6. No bairro #1 os três encontros foram, ou diretamente arranjados entre as famílias das duas
configurações de casas (2 casos), ou estimulados por parentes (1 caso); a mesma coisa se passou
respectivamente nos bairros #2 (2 casos) e no bairro #4 (1 caso). No bairro #3, os dois encontros em
questão foram, segundo os cônjuges, encontros "espontâneos". Entretanto, os nove casos registrados
nessa investigação mostram que houve laços matrimoniais anteriores entre, no mínimo, um membro
de cada uma das respectivas famílias.

7. O termo usado pelos brasileiros para designar alguém que não possui uma identidade socialmente
reconhecida, os anônimos. Para compreender a expressão João Ninguém, é preciso restituir seu
sentido no contexto autoritário que caracteriza o espaço público no Brasil. Sobre a interpretação
dos intelectuais brasileiros a respeito do espaço público e da oposição público/privado na constituição
dessa "sociedade relacional" >- ver DaMatta 1990, 1985. Sobre a problemática do espaço público e da
questão étnica no Brasil, ver Hanchard 1994.

8-.À questão: que tipo de atividade você exerce em Salvador (ou outras cidades)? - as respostas
foram as seguintes: para os homens: pedreiros (87%), despachantes (8%), camelô (2%); um se
designava como sendo taxista; para as mulheres: babás (8ü%), secretária de oficina (t2%).
O oficio de pedreiro dá lugar na vida real a lavadores de carro, trabalhos esporádicos que não têm
nada a ver com construção, etc.; os despachantes (intermediários na regularização de documentos)
transformam-se em guardiões informais de estacionamento público (verifiquei dois casos em Salvador)
ou em boys, trabalhando para pequenos comerciantes - os despachantes informam-se, às vezes,
através das empregadas domésticas, dos lugares disponíveis a fim de orientar seus amigos, parentes
ou outras pessoas, mediante comissão, sobre as eventuais ofertas de emprego no setor; nesse sentido,
244
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

eles fazem parte de uma rede de informações relativamente estruturada pelos laços de parentesco -
os camelôs (vendedores ambulantes com capitais relativamente importantes) são de fato pequenos
revendedores cujo capital flutua entre 20 e 30 reais (18-25 dólares), enfim, o taxista (motorista de
taxi), que não sabe conduzir. As mulheres preferem se designar babás em lugar de empregada
doméstica; secretária de oficina; em lugar de faxineira; mas refere-se de bom grado a uma rival
como sendo e faxineira, a empregada doméstica, etc.

9. Num contexto etnográfico bastante próximo deste, Agier (1990;1992) desenvolveu uma
investigação sobre a influência dos valores familiares na produção do sentimento comunitário em
Liberdade, um bairro periférico de Salvador - onde habitam também alguns parentes dos agentes
participantes de minha amostra em Cachoeira. Em sua análise, ele insistiu sobre a categoria turma
como quadro social de identificação no bairro (1992:433). As turmas constituem uma rede densa de
relações quase-familiares, onde valores tais como a fidelidade, a generosidade, a solidariedade e a
honra organizam os mais diversificados laços entre os agentes (433-435). Através das turmas,
organizam-se diversas atividades esportivas, etc., mas também a memória do bairro. Essa "rede
dentro da rede", descrita por Agier, constitui uma referência dominante na produção da identidade
local, regional. Nas cidades pesquisadas no Recôncavo, a turma, enraizando-se na casa, nas
configurações de casas, no bairro, transcende esses micro-espaços em virtude da migração.

10. São estudados mais à frente, nesse capítulo, os conteúdos dessas categorias culturais da vida
conjugal.

11. Algumas entrevistas foram realizadas com notáveis da cidade, tais como: os comerciantes (2),. os
políticos (o Secretário-adjunto do Município e um candidato a deputado estadual pela Bahia), os
restauradores (2),...os professores (2). e uma (1) farmacêutica.
Outras entrevistas, dessa vez menos sistemáticas, foram realizadas, em meu lugar, por meu assistente
de pesquisa cachoeirano, Paulo Antonio Sacramento da Silva, e por um colega norte americano,
junto a descendentes de algumas famílias tradicionais da região, graças aos quais pude dispor de
outras informações complementares relativas a esse tema. Eu devo particularmente a seu Heraldo
Cachoeira um especial reconhecimento, por ter posto à minha disposição documentos muito pessoais
(manuscritos, textos muito antigos, recortes de artigos de revistas e jornais); sem os quais eu não
teria alcançado a complexidade e a ambiguidade intrínsecas à questão racial, tal como pensada pelos
Cachoeiranos. Todos os agentes entrevistados - dos dois sexos - completaram.no mínimo; o curso
primário; mais de 30% entre eles seguiram cursos superiores. Além disso, os entrevistados se auto
identificam como sendo brancos e insistem quanto à sua ascendência portuguesa, alemã e, raramente,
cabocla (mestiços de brancos e autóctones).

12_ Em Cachoeira, onde a presença dos Candomblés é tão significativa, o proselitismo religioso se
efetua a partir das oposições Bem:Mal: .Deus.Diabo, expressas na realidade pela oposição
cristianismo: feitiçaria (candomblés).

13. Os escritos dos anos vinte e trinta; em torno das idéias brasileiras de raça e de nação, são de uma
atualidade impressionante para os agentes pesquisados. Questionados sobre os cinco livros que,
para eles, conservam toda a sua atualidade sobre o tema, os agentes indicaram os seguintes: Casa
Grande & Senzala (G. Freyre 1938), Evolução do povo brasileiro (O. Vianna 1922), Os Africanos
no Brasil (N, Rodrigues 1910),. Populações Meridionais do Brasil (O. Vianna) e Os Sertões (E.
Cunha 1902).

14. O leitor se reportará aos capítulos II e III a propósito das técnicas de coleta de dados relativas a
esse tema.
245
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

15. Esse sonho no entanto é mais um lugar comum aos negros das Américas pós-coloniais, do que
uma marca exclusiva dos Cachoeiranos. Como, na leitura desses testemunhos, não estabelecer uma
analogia entre esses personagens e os do romance antilhano: «Je suis Martiniquaise > de Mayotte
Capécia. O romance conta a infància e a adolescência de uma jovem negra em luta numa escolha de
obj.eto dramática: "Eu bem que gostaria de ter me casado com um branco, somente uma mulher de
cor não é inteiramente respeitável aos olhos de um branco [...] Eu bem que sei que André não se
casará com uma negra, mas eu o amo mesmo assim [... 1Tudo o que eu sei, é que ele tinha os olhos
azuis, os cabelos louros e a pele clara, e eu o amava". Como ela tinha consciência da distância de seu
objeto de desejo, ela decidiu então lhe fazer um filho. (Fanon 1952:54-70)..

16. A lista é longa, eu me refiro aqui somente aos termos de designação de cor nos bairros #1, #2,
#3,- #4, começando pelos mais usados. Cor de renda, vermelha, escurinha, morena, morena-escura,
clara, morena-clara, moreninha, parda, amorenada, cabocla, escura, canela, chocolate, amarelada,
laranja, queimada •.parda; negra; preta; preta carvão.

17. Conforme as observações de Claude Lévi-Strauss sobre o tratamento da representatividade


estatística das uniões entre próximos. Cf Du mariage dans um degré rapproché ; in J.C_Galey,
Dif.férences, valeurs, hiérarchie. Textes oiferts à Louis Dumont, 1984.

18. Eu entendo por união pivô (união religiosa, civil ou costumeira legitimada na comunidade - ver
mais a frente nesse capítulo) uma união chave, estratégica, que reforça uma posição central no seio
de.uma configuração de casas. Tal casamento (união). mobiliza as configurações em presença a fim
de reforçar ou confirmar sua respectiva posição em meio ao bairro ou à comunidade em questão. As
uniões pivôs são de tal importância estratégica para a configuração, que a ruptura de uma delas
desencadearia uma redefinição completa das posições no interior do micro-sistema social. Reforçadas,
as uniões pivôs constituem o eixo central de redefinição e redistribuição das redes familiares: elas
estão no princípio de suas reproduções. Eu confiro a esse termo um estatuto de vocabulário técnico
para os desenvolvimentos seguintes deste capítulo.

19. A designação de renchainement d'alliance foi sugerida nos trabalhos de Tina, Verdier e Zonabend
(1970). Ela foi posteriormente demonstrada como modelo de análise, por numerosos pesquisadores,
entre outros, Segalen (1991). O renchainement d'alliance ou relinking designa dois casais tendo
laços de afinidade com dois pares de ancestrais em comum. Essa prática pode se desenvolver no
decorrer de várias gerações.

20. A definição do marido como provedor (provedor das necessidades da casaj.foi suficientemente
sublinhada na literatura sobre a família das classes populares no Brasil, por exemplo, entre outros,
Durham 1971;.Woortrnann..-19&2.;..J 987.

21. Todavia, é importante lembrar que os usos cotidianos dessas classificações pelos agentes sobre
o plano pessoal podem ser múltiplas. Os agentes usam muito frequentemente esta ou aquela categoria
de designação em situações conflitantes para "rebaixar" este(a) ou aquele/a) rival aos olhos de seu
interlocutor. Os critérios utilizados, nesse caso preciso (conflitos, mexericos, etc.), são muito pessoais
e ambíguos.

22. Sobre a idéia de construção da casa, ver capo II:>- seção 2.

23. Paquerar é cortejar, um(a)paquera equivale aquele(a) que faz a corte; mas os agentes designam
também como paquera a forma de relações acima descritas.
246
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

24. Fiquei pessoalmente tocado pelo profundo cuidado que têm os brasileiros - em geral- para com
a criança. Parece que a representação dominante da criança na sociedade brasileira tem uma certa
marca,. bem particular,. no contexto das periferias ocidentais. De todas as sociedades nas quais eu
vivi, nas Américas como no Caribe, ou na Europa, a sociedade brasileira se destaca por esta forma
de manifestação afetiva.

25. Sobre as práticas contraditórias a essa representação> ver deslocamentos infantis,.mais à frente.

26. Eu desenvolvi, no capítulo V, o papel dos terreiros no cotidiano familiar dos negros nos bairros
estudados.

27. Os tipos de modalidade de deslocamentos infantis variam no interior de uma mesma sociedade e
entre diferentes sociedades. Jack Goody (1969) operou uma distinção significativa entre duas formas
ex.tremas de circulação infantil: "a adoção",. segundo a qual há uma cessão irreversível entre pais
genitores e crianças, e o "fosterage" cuja separação é provisória e reversível. Encontraremos em
Lallemand (1993) uma retomada das categorizações intermediárias estabelecidas pelos antropólogos
desde os trabalhos de Goody. Eu designo por deslocamento infantil (déplacementjuvénile) em meu
trabalho, toda operação a partir da qual as relações genitores-rebentos encontram-se intermediadas
de acordo com as formas concretas da transação entre os genitores e um receptor adulto,parente ou
não.
A circulação das crianças foi objeto de estudos etnográficos muito importantes. Os antropólogos
britânicos e americanos empreenderam investigações de perspectivas comparativas sobre as práticas
de adoção> de amamentação (por amas-de-leite, mise en nourrice) e de criação das crianças junto às
sociedades oceânicas (principalmente V.Caroll, dir., Adoption in Eastern Oceania, Honolulu,
University ofHawai Press, 1976) e às sociedades africanas do Oeste, cuja obra mais importante é
sem dúvida a de Esther N. Goody (em colaboração com Jack Goody), Parenthood and Social
Reproduction, Cambridge University Press, 1982. Elaborações teóricas bastante sofisticadas tentaram
dar conta da variabilidade do fenômeno através do tempo e do espaço [entre outras - abordagens
econômicas - das quais Meillassoux (1975) é um dos mais citados representantes - e demo gráficas,
relacionando a disponibilidade dos recursos (a produção) e a população; as hipóteses cambistas
elaboradas em seguida à teoria de Mauss (1985) sobre o sistema das prestações totais> segundo o
qual toma-se possível pensar as adoptions-fosterages como alianças, desregulando o jogo habitual
dafiliação pela "doublage" das práticas matrimoniais (Lallemand 1993),.etcl S. Lallemand (1993:33)
observa, com razão, que cada uma das representações do deslocamento infantil construi das nessas
teorias, veicula implicitamente uma concepção da família e do parentesco; na medida em que a
oncepção privilegia uma visão biológica do parentesco (o parentesco genealógico), o deslocamento
infantil é representado como "um paliativo à chegada ao mundo"; no caso onde a visão proposta
associa consanguinidade e valores sociais, a circulação das crianças "constitui um compromisso";
naquela conciliando "a primazia do laço construido sobre o laço biológico", ele se toma o lugar de
troca entre agentes ...
Os dados relativos ao deslocamento infantil por mim coletados nos bairros estudados, são
aqui interpretados a partir de uma visão construtivista do parentesco, que coloca a circulação das
crianças num circuito de troca estruturado em redes familiares e sociais determinadas. Eu designo
ela categoria "criança" (enfant), os rebentos situados pelos agentes entre O e 10 anos. Em outros
contextos etnográficos - as ricas etnografias de Fonseca realizadas em Vila do Cachorro Sentado,
em Porto Alegre - o período estabelecido vai até 12 anos (Fonseca 1985:notal; 1995).

_8. Eu faço aqui alusão aos agentes investigados por Fonseca em Porto Alegre (Fonseca 1985).
247
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Capítulo V: Celebrar "a" tamítla; casa, mitos familiaresetransmissãq de


bens entre gerações.

No decorrer dos capítulos anteriores, nós vimos o quanto o conceito cultural de casa é

central na apropriação da experiência familiar dos agentes nas cidades estudadas. Nós acompanhamos

como os agentes contróem seu universo simbólico material através das idéias de casa (como construção

fisica e social) e de configuração de casas, de parentes e defamília, de conjugalidade e de cônjuges,

de próximos e afastados, de belo e feio, de bem e mal. Nós vimos, ao longo desses capítulos, o

exercício das regras que governam o que pode ser designado como sendo "o comportamento familiar"

entre os agentes e a eficácia relativa dos princípios do sangue e da consideração. Nós vimos também

como se operam os modos de classificação entre agentes e a correspondência entre sua aplicação no

interior do campo familiar e no exterior desse campo. Entretanto, todos esses níveis de análise foram

construidos dentro e a partir da rotina da vida cotidiana dos agentes. Se nos contentássemos em

tomar por objeto o desenvolvimento da experiência familiar unicamente na rotina cotidiana, nos

impediríamos de ver lugares excepcionais nos quais os símbolos culturais dos grupos familiares são

reunidos, recuperados, selecionados, reinterpretados e enaltecidos'. Impediríamos-nos também de

estudar a ideologia familiar em ação, em sua força operante, em suas contradições e dissimulações.

Contentaríamos-nos então em tomar as formulações dos agentes, não somente como ponto de partida

(que é o caso, no procedimento deste trabalho), mas também como ponto de chegada da análise,

sem passar por outras formas de manifestação da cosmologia dos agentes - no entanto é possível

fazê-lo. Se fosse impossível, para nós, acompanhar a dramatização do domínio familiar, em torno

dos objetos rituais, dos símbolos, de múltiplas significações - de acordo com o contexto e os

agentes que os interpretam - quer dizer, observar os mecanismos que põem em cena "a cena da

vida cotidiana", nos fecharíamos então em nossas sábias elocubrações, que diriam muito mais sobre
248
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

nossas habilidades em construir e organizar nossos materiais num objeto coerente, quer dizer, muito

mais sobre nós mesmos, que sobre os agentes dos quais nós queremos nos por à escuta. Se não é

possível, a partir da rotina cotidiana, detectar plenamente os mitos familiares, as tradições familiares

e sua força operante na constituição das individualidades, é precisamente porque o cotidiano encenado

é,. ao mesmo tempo, uma mise en scêne de negociações. Os agentes negociam, no interior das casas

e das configurações de casas, suas posições, suas escolhas, suas sub-redes de pertencimento, os

lugares conflitantes nas relações entre iguais hierarquizados. No mundo do trabalho, nas grandes

metrópoles (Salvador, Feira de Santana ...), os agentes se constróem a partir de outros capitais

simbólicos, outros argumentos de negociação, capazes de se impor no mercado social e econômico.

Negociações pela sobrevivência. Mas a partir de quais recursos os agentes conseguem manter suas

posições nas casas e configurações de casas? Com quais recursos interiores eles conseguem manipular

as relações sociais e econômicas, manipulando assim seus argumentos de identificação?

A festa de família pareceu-me um dos códigos por excelência pelo qual eu poderia observar

o que, em condições normais, não seria observável. O estudo das celebrações permite estabelecer

outras relações entre a produção do quotidiano em sua relação com o espaço, a memória e as

representações da transformação social entre os agentes. A celebração da família não é, certamente,

uma exclusividade dos grupos estudados. Ela é a dramatização das relações sócio-culturais - de .

exclusão ou inclusão - em vigor na sociedade brasileira desde sua fundação (Borges 1992; DaMatta

1990; Freyre 1977; Hutchinston 1957; Reis 1991; Schwartz 1985). Eu sugiro que é possível estudar

plenamente as relações familiares, os sentidos e os enjeux (elementos em jogo, apostas) que elas

encerram, restituindo-as em seus contextos, sem passar pelo estudo das festas na sociedade baiana.

A celebração da família não é, certamente, um código de acesso de eficácia equivalente, aplicável a

todos os grupos sociais, É que o estudo. das celebrações é também o estudo. da história dos grupos

sociais. contextualizados'.

Esse capitulo se propõe a tomar um acontecimento, a celebração "da" família "pela"


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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

família, entre os agentes, como um contexto extraordinário (ruptura periódica e irregular com a

rotina do cotidiano), no qual os agentes dramatizam, através dos símbolos detentores de

representações do universo familiar, suas condições de existência e sua filosofia cultural. Eu trabalho,

nesse capítulo, as celebrações realizadas em família nos meios estudados no Recôncavo. Essas festas

de família supõem, como coloquei a respeito das celebrações em geral, na introdução desse capítulo,

diversos níveis de investimento dos agentes. Eu sustento, nesse capítulo, que as festas de família

constituem códigos pelos quais se pode estudar, não somente as formas de sociabilidade em vigor

entre os agentes, mas sobretudo o funcionamento das redes e sub-redes domésticas em suas conexões

com as redes sociais nas quais esses agentes são integrados. Pelas festas de família, tais como realizadas

nesse contexto etnográfico, pode-se explorar outros aspectos da cosmologia dos agentes, que não

seria possíve observar na rotina da vida cotidiana; podemos ainda tentar apreender a lógica interna

que organiza essa cosmologia e verificar como ela se articula com os universos materiais dos agentes.

Eu coloco as festas de família, tais como praticadas entre os agentes, (assim como a casa)

como lugar de referência de si e do nós. Comecei por descrever os elementos que, para mim, mais se

destacam nas cerimônias festivas, simplesmente deixando-os desenvolver-se, sob nossos olhos, como

processos interligados, nos quais constrói-se um diálogo entre o presente e o passado, entre a atividade

e a memória. Esses elementos, pelos quais e com os quais os agentes se identificam (mitos, legendas

e objetos - rituais ou não - familiares, tradições familiares), operam como meios e como referências

na constituição dos lugares negociados nos quais os agentes se reconhecem, um reconhecimento

no duplo sentido do termo: lugar de negociação do reconhecimento de si e do reconhecimento do

nós. Num segundo momento, eu tentei restituir esses elementos em seus contextos sócio-culturais,

de modo a resgatar seus sentidos na sociedade, enquanto totalidade.


250
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

1. "Ter uma família ou não ser ninguém".

Foi preciso aguardar a chegada do crepúsculo, quer dizer, o momento exato em que, segundo

os descendentes de Dona Conceição, as forças diurnas passam as rédeas de comando do dia às

forças da noite, para que Dona Elma, responsável pública" pela cerimônia em honra de São Benedito,

lançasse a palavra de ordem inaugural tão esperada, num tom austero e solene, passando, à sua

volta, um olhar ao mesmo tempo inflamado, reverente e decidido:

- A reza está começando. Meu São Benedito me bote uma benção ...·

- ...A benção de Deus lá da Jurema, respondeu a assembléia.

Do lado esquerdo de Dona Elma estava Dona Clice, a terceira filha, nascida da segunda

união de Dona Conceição. As duas iniciavam o ponto de ruptura entre o Altar sagrado, montado

sobre uma base de três blocos fixos, junto à parede que separa a cozinha da sala, e o público. O Altar

parecia fixar uma oposição relativa entre duas alas equidistantes da sala: na ala direita, entrando pela

porta principal, são agrupados aqueles que não são da casa, por exemplo, os vizinhos, os amigos dos

aliados da família, os visitantes de honra - dos quais eu, evidentemente, fazia parte.na ala esquerda,

as cerca de setenta e oito pessoas, adultos e crianças, membros da família pelo sangue ou pela

consideração e aliança. O Altar ~erguido bem ao centro dos dois grupos, impunha-se por sua mística

e pelo mistério que encerra, indicando claramente o quanto as raízes da família são fortes, profundas

e numerosas. Em sua base, sobre os três blocos, fora colocado um oratório, com cerca de 7 pés de

altura por 4 de largura, uma espécie de pequeno armário sagrado, comparável a um tabernáculo da

igreja católica oua um oratório caribenho - tal como encontrado no Vodou haitiano ou na Santeria

cubana. No interior do oratório, havia um pavio aceso, imerso num pequeno recipiente repleto de

gordura animal. Em torno dessa chama acesa, foram distribuídos, em círculo, grãos de milho, de

ervilha e outros elementos indispensáveis ao ritual. À esquerda do oratório, um vaso com flores

vermelhas, à sua direita, um vaso com flores brancas. Bem acima do oratório fora colocada a imagem

sagrada do santo negro, São Benedito, à esquerda de uma cruz cristã, e~ à direita da cruz, uma
251
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

medalha de bronze com a imagem de Nossa Senhora da Conceição. O conjunto, ornamentado com

duas palmas verdes, cujas pontas se cruzam no topo da cruz. Diante do Altar, uma linha de demarcação,

coberta de pétalas de flores vermelhas e brancas, deixa entender claramente uma divisão fundamental

entre duas dimensões da família: a dimensão mística e secreta e a dimensão aberta e pública. O Altar

é erguido no centro da casa, um centro simbólico, certamente; sua face principal se orienta em

direção ao leste da casa, quer dizer, em direção à porta de entrada, em direção à rua, o ponto

simbólico onde o sol se levanta; enquanto que suas costas é orientada em direção ao oeste simbólico,

o quintal, a mata, quer dizer, o ponto onde o sol se põe".

No decorrer do desenvolvimento da cerimônia, durante os três dias, a porta de entrada e a

porta dos fundos devem ficar abertas. É, aliás, o único momento do ano em que a porta de entrada

é deixada totalmente aberta durante o frágil momento da passagem do dia ao crepúsculo. De fato,

em frente à casa, diante da entrada da varanda, o ritual recomenda que, nove dias antes do início das

festas, quer dizer, no primeiro dia da novena obrigatória - sobre a qual voltarei mais à frente -

dedicada a Nossa Senhora e a São Benedito, que termina no primeiro dia da festa propriamente dita,

a tradição recomenda plantar, no meio da noite, uma "arrête" (um marco simbólico) a fim de que

nenhuma força negativa venha pertubar ou inverter a ordem da cerimônia. Ainda assim, no fundo do

quintal, onde são plantados os objetos individuais - tais como umbigos, roupas manchadas de

sangue e outros - dos membros da casa, portanto, da própria casa, depositou-se uma oferenda no

pé de uma árvore consagrada a Xangô; oferenda que seria renovada todos os dias, até o fim das

festividades.

À esquerdade Dona Elma, atrás-de Dona- Clice, alinhavam-se numa- ordem. simbólica -. já

que não rigorosamente respeitada - aqueles que fazem parte dos descendentes de Dona Conceição,

os parentes/famílias e seus aliados, mas também compadres, comadres, considerados como sendo

dafamília. Erítre as comadres e os compadres, havia dois casais brancos de classe média, dos quais

um é considerado como sendo um notável da cidade, "defensor da cultura cachoeirana". A presença

desses casais foi posta em destaque' - em posição bem visível- entre osparentes. Atrás de Dona
252
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Bra~il

Elma, portanto à direita de Dona Clice.alinharam-se os visitantes. Entre os visitantes" havia convidados

especiais. Primeiro, aqueles que são do bairro e literalmente respeitados por todos; duas mães de

santo' que, seja dito de passagem" não interferiram, em nenhum momento, no desenvolvimento das

cerimônias; "um amigo da família" vindo de Salvador, um profissional branco que trabalha na

PETROB-RÁS-cte Camaçarí, ccnvidado.por sua.servente, a-sobrinha de DOIla-El.Jna1 e Q.S-amigos dos

aliados.

Nesse dia" a cor das roupas usadas pelos membros da família era" de preferência" o vermelho

ou o branco. O vermelho de Xangô e/ou de São Benedito; o branco de Nossa Senhora da Conceição.

Os visitantes podiam escolher um cordão/pulseira de lembrança, branco ou vermelho" distribuído na

entrada pelos membros da família.

Dona Elma começou então a primeira fase da cerimônia. O esquema de sua agenda foi

exatamente o seguinte:

• Glória ao padre;

• Pai nosso;

• Um rosário, entrecortado de vários cantos.em louvor a.Nossa Senhora;

• Uma Salve Rainha;

• A incensação do Altar e da casa;

• A oração dedicada a São Benedito;

• Reza Benção - dedicada a São Benedito;

• Jiíva São Benedito - aplausos vigorosos de todos os participantes.

Havia exatamente uma hora e cinquenta e sete minutos desde que a cerimônia começara. O

tempo das orações e das súplicas havia terminado; Dona Elma ia introduzir a segunda etapa da

primeira fase (sempre pública) da cerimônia.

Durante toda a primeira parte da cerimônia de abertura, Dona Clice, apesar de responsável,

como Dona Elma, pela organização das cerimônias, não havia tomado a palavra; ela se contentava
253
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

em executar, em silêncio, como todo mundo, as etapas do ritual comandado por sua irmã. Mas,

chegando o momento para Elma passar do sério à brincadeira, ela começou a balançar a cabeça,

anunciando uma transformação lenta, mas radical. O gesto que ela havia feito com a cabeça sugeria,

de fato, a seu irmão mais velho, seu Pedro, que chegara o momento de começar a roda. Seu Pedro

chamou os músicos, tamborineiros que iriam executar o samba. Ele pediu educadamente aos

convidados que deslocassem seus assentos; toda a sala fora então completamente rearrumada, para

que a banda pudesse se posicionar e a roda se formar. O que foi feito em alguns minutos. A banda

iniciou o ritmo do samba de roda, uma dança meio-profana, meio-sagrada, herdada do tempo da

escravatura. Seu Pedro, que havia se reunido no centro com Dona Elma e Dona CLice, balbuciou

calmamente:

- Cao, Cao, Cao que Dahomé! E os adultos responderam:

- Cao, Cao, Cao Dahomé! Seu Pedro repetiu:

- Cao, Cao! E os adultos responderam:

- Cao Dahomé!

Essa frase tinha um certo poder. Os velhos, num tom sério, repetiam-na com uma expressão

ao mesmo tempo grave e austera; os outros, ou a repetiam com uma voz baixa e abafada, ou tentavam

conter suas emoções. Um agente me disse depois, a propósito desse momento - "de repente era

como se a gente fosse filhos da mesma mãe e do mesmo pai". Outros testemunhos confirmaram-me

o quanto este momento mágico exprimia para eles, descendentes da família, a força de sua unidade.

- Cao, Cao, Cao que Dahomé! repetia o velho Pedro. E os adultos respondiam:

- Cao; Cao, Cao Dahamél .

Dona Clice pôs-se no meio da roda que se formava lentamente, as crianças empurrando-se

entre as pernas dos adultos, pois não havia lugar suficiente na casa. Com sua voz rouca, que não

deixou de provocar risadas, ela começou a cantar:


254
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

- São Benedito me dálicença Ii me dáseu salão Ii para vadiar

Enquanto o público repetia, num coro desordenado, Dona Elma aproximou-se de Seu Pedro

e Dona Clice, depois vieram os outros irmãos, depois os primos, e, assim por diante, a roda se

confirmava entre os parentes. As comadres e compadres, assim como os brancos considerados

como família e que estavam alinhados à esquerda, deixavam eles também o lugar para os parentes I

família de sangue e aqueles por consideração, negros e mestiços de negros que vivem o dia-a-dia

dos agentes, e seus aliados. O batimento dos tambores começara e a primeira roda era executada.

No centro, Clice arremedava os primeiros movimentos do samba de roda; em seguida, num passo

ágil e vivaz, ela rodava em torno de si mesma, recolhendo até a sua cintura as duas extremidades

laterais de sua grande saia de baiana, e se colocava bem em frente à Dona Elma, a quem ela cedia o

lugar. Dona Elma desenvolvia os mesmos movimentos, depois introduzia Seu Paulo"; seguiram-se

os outros parentes, respeitando mais ou menos uma certa hierarquia, dos mais velhos aos mais

novos. Após cerca de dez minutos de movimento, os tambores, sob o sinal de Clice, calaram-se.

Clice retomou:

- São Benedito da bela coroa Ii Pelo amor de Deus Ii Não nos deixe a toa

O público repetiu em coro, e os tambores reforçaram suas ressonâncias durante quinze

minutos; depois eles novamente calaram-se. Dona Clice prosseguiu com o terceiro movimento da

roda:

- Meu São Benedito me bote uma bênção Ii A bênção de Deus Ii lá da Jurema.

Desta vez o público repetiu o refrão com tal vigor, que sentíamos a sala inteira tremer, com

tudo dentro. Lá fora, lançavam-sefoguetes (fogos de artificio). As explosões repetidas exaltavam o

prestígio do momento, e podia-se facilmente ler, na expressão dos membros da família, um sentimento

de orgulho, de unidade, de alegria, um momento mágico que renova, para os agentes, sua existência

social. A dança continuou, em roda, estritamente entre parentesljamília. Os barulhos dos foguetes
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

faziam-se cada vez mais fortes, cada vez mais próximos; os tamborineiros batiam ainda mais forte,

e alguns agentes começavam a chorar. Um momento de desforra, contra a sociedade indiferente; um

momento de glória da família mítica, mas protetora; a confirmação de um modo, entre vários, de

habitar esse país, de habitar essa sociedade. Um modo particular de habitar esse mundo.

Como repetia-se o refrão pela enésima vez e a atmosfera emocional reificava, cada vez mais,

essa ideologia da união tão verbalizada entre os agentes, tão ingrata - mas tão essencial - da

família, uma pessoa jovem, toda molhada de suor e lágrimas; lançou amargamente: ter uma família

ou não ser ninguém. Desforra contra esse lugar indefinido que define os João ninguém num lugar

limite entre a natureza e a cultura.

A roda durou cerca de vinte minutos. Após terem executado as três rodas, exclusivamente

em família, os parentes misturaram-se aos convidados. E a roda fora liberada.

Se, no interior da casa, reinava uma atmosfera misteriosa, segundo a qual a família parecia

reencontrar seu momento reificador, atrás, no grande espaço arrumado para a cozinha, havia uma

mobilização, quase frenética, das cozinheiras e ajudantes de cozinha, descendentes de Dona Conceição

ou não. Era com um fervor de devotos que os agentes aplicavam-se ao executar suas tarefas. Mesmo

aqueles que não faziam parte da família, assumiam, com uma profunda convicção, que aquilo que

faziam era algo que vinha deles mesmos, de suas "tripas"; alguma coisa que eles faziam por eles

mesmos. Eu não pudera conversar com eles, de modo natural. O lugar não era próprio a conversas.

Teria eu cruzado o olhar com alguém? A reação imediata era pedir-me - Zé Louis entrega isto a

fulano L- Zé Louis eu preciso de uma faca! - Louis, cuidado para não derrubar X! etc. Havia eu

decidido integrar-me, por um instante, numa equipe de trabalho"? - eu entrara num diálogo

compulsivo entre a memória e a atividade. Os agentes comparavam implicitamente a quantidade de

frangos disponíveis para a festa do dia e aquela com a qual pudia-se dispor antigamente; reavaliava-

se as contribuições atuais dos membros do bairro e as do tempo de Dona Conceição. Dona Conceição!

Eis um personagem que passa por ser um mito indestrutível entre os agentes. É como se ela estivesse

presente no meio dos agentes, tanto ela estava presente nas conversas: ela era o paradigma de
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

avaliação das performances e da seriedade de Dona Elma e de Dona Clice. Ela fora a mãe de

umbigo" de mais da metade dos habitantes do bairro. No tempo de Dona Conceição, dizia-se,

"tinha mais devoção" ou "a familia era mais unida", enquanto que "hoje é mais presentação". No

tempo de Dona Conceição, as pessoas, contavam eles, dançavam mais por respeito à tradição, e elas

sabiam o sentido dos passos, das rodas. O passo e as rodas de samba de roda eram contadas às

crianças, elas traziam em si a emoção e a vivência daqueles que, ainda ontem, viviam em cativeiro",

tinha-se consciência que saudava-se a memória dos ancestrais e podia-se contar ainda com a tradição.

Mas hoje, "as pessoas poco se ligam" como elas eram antigamente. A crescente pobreza da tradição

teria provocado essa ruptura silenciosa com o passado; ruptura frágil já que, a cada momento, os

agentes são obrigados a construírem meios e mecanismos de reivenção da tradição, da memória, da

família;..sem o que..o que seria sua existência numa sociedade que soube transformá-los em folclore,

manipulando seus símbolos culturais em símbolos nacionais, mas que não sabe ainda encontrar os

caminhos de sua. inclusão social?

Havia eu decidido integrar uma outra equipe? Desenrolava-se então diante de mim toda a

história - já contada por alguns agentes fora das entrevistas formais - da festa de São Benedito/

Xangô durante esses dois últimos decênios, e os mitos e lendas familiares que legitimizam essas

celebrações. Havia tantas maneiras de contar os mitos fundadores da celebração de São Benedito e

de Xangô quanto havia agentes a contá-Ios. Mas, no essencial,. podemos traduzi-los como o seguinte:

É por uma mulher que essa família veio ao mundo. Havia um tempo em que obrigava-se os
negros-a deixara-Á:frica-evirpara-o-Brasit: Nessetempo; a bisavé--{MMM) de-Dona Conceição,
filha de um dignitário muito importante de uma grande "nação" africana (segundo alguns
agentes, ela seria da nação Gege-nagô, para outros, essa nação seria Angola), fora levada à
força pat:a.colônia. CQ.lI.lQ- ela-fora levada.-da África. em plena. gravidez, alguns- meses após
sua chegada ao Brasil, ela pôs no mundo uma filha (MM de Dona Conceição) e faleceu
alguns meses (dias") após o parto. S-eupatrão acolheu a criança, fazendo-a criar por outras
escravas, pois, nascida sob a lei do "ventre livre'?", ela escapou da condição de escrava.
Sempre segundo a lenda, no decorrer de sua infância, sua mãe vinha regularmente ensinar-
lhe os segredos "da" família, e os modos de sua transmissão. Ela ensinou-lhe os segredos de
Xangô, as raízes místicas e as forças desse poderoso Orixá familiar. Ela ensinou-lhe a arte de
fazer partos, e fazer, assim, os filhos de Xangô. Ela ensinou-lhe como os filhos de Xangô
deveriam render-lhe homenagem. Sua mãe ensinara-lhe também a devoção a Nossa Senhora
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

da Conceição, designando-lhe um local secreto onde era guardada uma medalha de prata,
cunhada com a imagem de Nossa Senhora. Sua mãe recomendava-lhe, fortemente, fazer
dela um objeto de veneração para a liberdade dos escravos 13. Essa medalha, hoje, é considerada
pelos agentes como sendo a medalha da liberdade, é graças a ela, graças à devoção a Nossa
Senhora; que os escravos foram pouco a pouco libertados até ao banimento total da
escravatura na vida dos seres humanos. Essa medalha deveria ser guardada e transmitida de
geração em geração. Assim como a devoção a Nossa Senhora, ela exigia de sua filha uma
devoção especial a São Benedito. A festa de São Benedito deveria sempre coincidir com a
de Xangô. Nesse dia" deverá ser sempre preparada uma grande festa" deverá se dar de comer
a todo mundo, abrir a porta da generosidade.

Segundo os agentes; São Benedito era um religioso cujos talentos de cozinheiro eram hors
concours; como ele amava os pobres, ele deixava regularmente o convento, contra a vontade
de seus superiores, para distribuir alimento aos desprovidos. Um dia, alguém da comunidade
o denunciou. E os irmãos superiores puseram-se a espiá-lo. Bem no meio da rua, bem perto
do lugar onde o esperava a imensa multidão de desprovidos, seus superiores o pararam:
- O que é que você leva nesta sacola? Eles lhe pediram?
- Flores, respondeu São Benedito, sem hesitar em mentir para tirar os pobres daquela
penúria.
- Abra esta sacola imediatamente, ordenaram-lhe seus superiores. O que ele fez sem hesitar,
pois, ele tinha certeza que, contra ele e contra os pobres, jamais Deus se voltaria.
- Flores? exclamaram seus superiores - eram apenas flores, eles confirmaram! O alimento
havia se transformado em flores. Com ele, seus superiores as distribuiram aos pobres. E,
certamente; após terem retomado ao convento, longe dos olhares indiscretos, essas flores
transformaram-se novamente em alimento, nas mãos daqueles que as tinham. E desde então,
São Benedito tornara-se o padroeiro dos pobres.

Para os agentes, esta é uma das razões pelas quais, a bisavó de Dona Conceição deixou essa
herança na família. Para que seus descendentes nunca sofressem da dor da fome.

Apesar de ainda adolescente, a filha da bisavó de Dona Conceição tinha muitos poderes aos
olhos de seu senhor. Foi por isto que ele a quisera como escrava. Mas ela fora carregada por
negros fugitivos e levada para um qui lombo (espaço de negros fugidos), antes mesmo que
seu senhor tivesse tempo para executar seu projeto. A lenda não diz o que lhe aconteceu no
quilombo. Sabe-se apenas que ela teve filhos e que estes voltaram a viver na plantation do
senhor, como agregados, não como escravos, e que ela teve tempo para escolher seu herdeiro
e iniciá-lo nos segredos da família. Ela guardou a tradição, que ela transmitiu à sua única
filha: a mãe de Dona Conceição, que, por sua vez, o passou a Dona Conceição.

Esta última, bem antes de sua morte em 1982, havia escolhido dois herdeiros, ou dois
responsáveis pela herança da família: Dona Elma, para ocupar -se das festas de São Benedito,
do aspecto católico ou público da celebração; e Dona Clice, para ocupar-se da festa de
Xangõ, do aspecto. secreto, herança estritamente familiar (da linhagem). da celebração. É
através das mulheres que esta linhagem se perpetua.

Não eram apenas os descendentes de Dona Conceição, construidos que se construíam no


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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

campo familiar dos descendentes de Conceição, a falar de seus mitos e lendas familiares. Seus

aliados também, assim como a maior parte dos próximos que ajudavam na cozinha. A cozinha, lugar

de manipulação do alimento, apresentava-se como um dos lugares privilegiados onde cristalizavam-

se as memórias e os mitos. Os agentes comparavam as festas na medida da variedade e da quantidade

de pratos oferecidos ao público, pela qualidade destes, etc. Através dessas histórias, os agentes

formulavam e reformulavam os sentidos das celebrações; eles reuniam experiências, partilhadas ou

não - o que lhes convinha, a parte que lhes parecia essencial para dela fazer os recursos negociáveis

do cotidiano. Acontecia assim, quando, após a festa, cada um reformulava, numa linguagem subjetiva,

aquilo que, a seus olhos, fazia da festa uma celebração da família 14

Teria eu decidido participar de uma outra equipe de trabalho? Eu encontrava os agentes,

atarefados; reconstruindo, entre eles e para eles, a exposição dos sucessos, não somente dos

descendentes da casa de Dona Conceição - a mãe de todo mundo - mas também das outras

famílias do bairro ou de um outro bairro da periferia ou do município de Cachoeira. Na memória dos

agentes, o ano 1980 foi o ano mais marcante na história das festas familiares do bairro. Durante o

mesmo ano, houve a festa de Obalouayé (o Velho), na casa dos Santos, descendentes de um patriarca

que trabalhava no fumo por ocasião da primeira guerra", em seguida, houve a de Iansã na casa dos

Silva, cujos membros estão hoje dispersos no bairro #3 e no Recôncavo, e a de Xangô e de São

Benedito, na casa de Dona Conceição que, na época, mesmo doente, organizou a maior festa de

família realizada no bairro em todos os tempos. Dava-se ênfase à solidariedade exemplar dos habitantes

do bairro, às referências sociais bastante definidas que, até os anos 50, fixavam os trabalhadores

agrícolas, os empregados das fábricas, num quadro relativamente estruturado: as fazendas e as

empresas de tabaco. Insistia-se também quanto à contribuição econômica de alguns senhores de

fazenda, para a realização das festas familiares de seus criados. Teria eu alguma oportunidade, tão

rara, de escutar a conversa dos velhos? Era o tema da nostalgia de um tempo, o tempo de sua

juventude (anos 30, 40, 50), quando as formas de relações pós-escravagistas participavam (ou

participam ainda) do habitus de vida - essa segunda natureza socialmente construída e historicamente

instituída- e..continham seu horizonte social.


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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Q.1. Festas defamília nas casas estudadas. Bairros #1, #2 e #3.


Ano Festa de família Casa Bairro
1980 - São Benedito / Xangô - Conceição - #1
- O Velho - Santos - #1
- Iansã - Silva - #1 / #3
- O Velho x Xangô / Santa Bárbara - Clarice - #2
- Yemanjá - Beatriz - #3
1982 - São Benedito / Xangô - Elma (Conceição) - #1
- Xangô / São Jerônimo - Venice - #2
- Ogum x Yemanjá - Inácia - #3
- Iansã - Silva - #3
- Yemanjá - Beatriz - #3
1985 - São Benedito / Xangô - Elma (Conceição) - #1
- O Velho x Xangô / Santa Bárbara - Clarice - #2
- Yemanjá - Beatriz - #3
1986 -Tansã - Silva - #3
- Ogum x Yemanjá - Inácia - #3
1988 - O Velho x Xangô / Santa Bárbara - Clarice - #2
- Iansã - Silva - #3
- Yemanjá - Beatriz - #3
- Ogun x Yemanjá - Inácia - #3
1991 - São Benedito / Xangô - Elma (Conceição) - #1
- Xangô / São Jerônimo - Venice - #2
1992 - Yemanjá - Beatriz - #3
- Ogun x Yemanjá - Inácia - #3
1993 - O Velho x Xangô / Santa Bárbara - Clarice - #2
1994 - Xangô / São Jerônimo - Venice - #2
1995 - São Benedito / Xangô - Elma (Conceição) - #1

Essa lista de festas de família realizadas nos grupos familiares dos bairros estudados demonstra a importância
desse acontecimento na vida dos agentes.

Talvez seja preciso voltar ao modo de mobilização adotado pelos agentes para produzir a

festa de família, para compreender a economia dessa divisão de tarefas na cozinha e nas outras áreas

de atividade, o sentido que os agentes fazem dela>"assim como seu grau de investimento na tarefa

por eles designadas ou que lhes foram designadas. Talvez seja preciso abrirmos um parêntese para

acompanhar a produção coletiva da preparação da festa como acontecimento familiar e coletivo.

A produção da festa familiar não é pouca coisa. Ela supõe uma grande mobilização de meios

e de energia que, muito frequentemente, estão bem acima das capacidades dos agentes. E o modo de
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

mobilização que os agentes se utilizam para a realização da festa, informa tanto sobre a diversidade

dos usos do religioso na produção do cotidiano familiar, quanto sobre as redes de poder local que

estão EM ação nessas comunidades. Tentarei aqui apresentar, sinteticamente, os dois modos de por

"mãos à obra" observados - existem certamente outros - na festa familiar". Desenvolvi minha

análise operando uma divisão, bastante arbitrária, entre dois modos dominantes de organização das

festas de família entre os agentes dos meios populares. O primeiro modo de agrupamento constrói-

se em torno dos terreiros de Candomblé, e evidenciando o predomínio do parentesco espiritual

sobre o parentesco bio-social. Eu desenvolvo, na nota seguinte, uma variação das formas de suas

manifestações, tomando como exemplo os descendentes de Seu Juvenal. O segundo modo de

agrupamento, que faz o objeto específico da análise etnográfica deste capítulo, o exemplo dos

descendentes de Dona Conceição, articula-se, ao inverso do primeiro, em torno do parentesco bio-

social e afirma a "linha de descendência" como a razão manifesta das práticas festivas. Em outras

palavras, enquanto que, no primeiro contexto, a ideologia da família, como representação bio-social,

está subordinada à ideologia do parentesco espiritual, unindo indivíduos ou parentes/familia diversos

numa grande família espiritual - irmãos de Santo - agregando em torno de um Orixá principal,

quer dizer, o Orixá do terreiro - do pai ou da mãe de Santo - os Orixás das famílias particulares

(como representações bio-sociais), substituindo as festas de família particulares, assim como os

mitos familiares que os fundam, pela festa principal da família espiritual, no segundo contexto, é a

família, construida como linha de descendência, cuja representação unificadora, aos olhos dos agentes,

se dá no Orixá familiar, que agrupa os indivíduos e as casas, os Orixás particulares e os Orixás das

casas, os irmãos e irmãs biológicas e os irmãos e irmãs de Santo em torno de um mesmo princípio,

a fim de reinventar e reproduzir Q parentesco (família/parentes) bio-social. Enquanto que, no primeiro

contexto, pode-se levantar uma desconstrução progressiva das "linhagens" assim como de sua

mitologia, em vista de uma reconfiguração na dinâmica da "linha de descendência espiritual",

reforçando esta última ao reproduzí-la, constata-se um movimento de integração progressiva e

perpétua da família espiritual no parentesco bio-social em vista da reprodução da "linha de


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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

descendência". Trata-se de fato de duas faces de um mesmo movimento que, a partir de uma "ideologia

agregadora" reintegra o desalinhado, ofraco, o marginal. Os terreiros absorvem os grupos familiares,

economicamente muito desprovidos, com seus mitos e ideologias familiares,.transformando-se, pouco

a pouco, como lugares nos quais esses grupos familiares, casas, indivíduos, se reinventam e se

reconhecem __
As "linhas de descendência" absorvem os indivíduos sem família,.os adotadoa.as crian.ças

da linha e suas mães, com seus mitos e ideologias familiares; elas os hierarquizam e os estruturam

numa rede de poder polimorfa, transformando-se, pouco a pouco, como lugares nos quais eles se

reinventam e se reconhecem. Trata-se de dois modos concretos de agrupamento dos agentes em

torno das práticas festivas, vividos numa interrelação, dos quais toda tentativa de isolamento, de um

ou de outro, constituiria um engano absoluto a respeito de seu funcionamento: são duas vertentes de

um mesmo modelo. Ambos são abordados nesse texto como duas formas de manifestação de lugares

de referência e reinvenção de si e do nós.

O primeiro modo parece exprimir-se através das festas de família tais como realizadas pelos

descendentes de Dona Conceição. Como não é possível, para os agentes, organizar regularmente

uma festa de tal envergadura, os agentes concordam em que ela seja realizada cada vez que alguns

entre eles "recebam sinais claros", da parte dos Orixás, quanto à necessidade de sua organização.

Esses "sinais" podem manifestar-se sob várias formas> especialmente através das revelações e dos

sonhos, em série, de vários membros da família ao mesmo tempo. Ocorrerá então aos iniciados nos

segredos familiares, estimular e organizar os membros com essa finalidade.

A preparação da festa desse ano começou em 1993. Segundo os agentes, desde o início do

ano diversos membros da configuração viram Dona Conceição> num sonho não habitual, insistindo

com os membros da família em preparar a festa de Xangô e de São Benedito. Em junho do mesmo

ano, Dona Elma, Seu Pedro e Dona Conceição haviam aproveitado a presença de alguns parentes e

aliados na festa padroeira, a festa de São João, para convencê-los da necessidade de preparar a festa

familiar. Após terem reunido alguns membros da família de Cachoeira e de Salvador para discutir o

provável orçamento da festa e as modalidades de coleta do dinheiro, Dona Clice e Dona Elma
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

decidiram mobilizar o resto da família. As responsabilidades de prover o necessário para a organização

da festa e as diferentes tarefas a executar foam distribuídas entre os membros. Para uns, a tarefa de

coletar as contribuições, em espécie ou natureza (aves, arroz, ervilha, etc.); para outros, a de contactar

tal ou qual parente para deixá-lo ciente do acontecimento vindouro; outros ocuparam-se em coletar

fundos junto àqueles que fazem parte dafamília por consideração, etc. As contribuições individuais

de cada casa são obrigatórias. Alguns membros que, por sua confissão religiosa (duas casas em

Salvador cujos membros são pentecostais), recusavam-se em participar diretamente da festa, enviaram

sua contribuição. Considerando as condições sociais dos agentes, as contribuições econômicas da

maior parte dos parentes consistiam, de um modo geral, em participações simbólicas. Entretanto,

para equilibrar o grau de investimento dos agentes na produção da festa, os parentes/familia

considerados economicamente fracos compensavam esta situação encarregando-se assiduamente

da execução de diversas tarefas, ao longo de todo o período no decorrer do qual a festa fora preparada.

A mobilização da família em vista da realização da festa consiste também na mobilização das

redes sociais cujo apoio econômico e simbólico, com essa finalidade, é decisivo. Entre as pessoas

"recursos" contactadas pelos agentes, encontravam-se os antigos ou atuais patrões - brancos -

com os quais alguns parentes (faxineiras e domésticas diaristas) mantém relações de "amizade" e

que são,. na maior parte,. padrinhos e madrinhas de seus filhos; encontravam-se também brancos da

classe média que frequentam (diretamente ou através de pessoas intermediárias - geralmente suas

domésticas) o mesmo terreiro que alguns agentes e cuja presença na festa tem uma alta significação

social para os parentes/familia; havia finalmente alguns membros da hierarquia do Candomblé (pais

ou mães de santos, ougãs da casa que se frequenta) considerados como sendo dafamília de santo

(parentesco espiritual), amigos de Salvador participantes da mesma turma, habitantes do mesmo

bairro ou partilhando os mesmos campos de atividades, todos considerados como fazendo parte das

redes de apoio dafamília.

Como na realização de todas as festas de família entre os agentes, é a capacidade de mobilizar

uma larga rede social que legitimiza o estatuto dessa família em seu bairro e a diferencia das "famílias

ordinárias", confirmando, aos olhos dos membros das casas, a posição de poder daqueles que
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

participam do centro da configuração. Mas o que confere a esse modo de mobilização um caráter

específico, é o fato de ter sido desencadeado, estimulado e organizado a partir e em torno da ideologia

do parentesco, enquanto princípio de organização social. A mobilização é acionada dentro e para o

campo das representações traduzi das sob os termos de parentes efamilia. Esse modo de mobilização

aciona, num primeiro nível, uma "linha de descendência" (parentelfamília de sangue e por

consideração), depois, num segundo nível, os recursos sociais (padrinhos, madrinhas e mesmo patrões)

e religiosos (os irmãos e irmãs de santo), traduzidos entre os agentes em termos de parentesco;

assim, contrariamente ao segundo modo que exporei a seguir, não é o terreiro ou casa de candomblé",

sob a direção de uma mãe de santo, que submete o parentesco bio-social ao parentesco espiritual

(como referido em Silverstein 1978), recrutando o primeiro em vista de reproduzir o segundo, mas

sim, inversamente o parentesco bio-social que redefine o parentesco espiritual em seu domínio,

mesmo quando a maior parte dos parenteslfamília são também integrantes de terreiros; enfim, num

terceiro nível, esse modo de mobilização aciona os vizinhos e os amigos dos bairros nos quais os

agentes constróem seu cotidiano. Enquanto que no modo de mobilização acima explicado são os

parenteslfamília, enquanto representação bio-social, que constituem o princípio de agregação para

a produção das festas familiares, o segundo modo de mobilização se dá através de um mecanismo

claramente diferente, segundo o qual o parentesco espiritual impõe-se como princípio de agregação,

não somente dos parenteslfamília (de sangue ou por consideração) mas também dafamília de

santo. Mas voltemos à organização da festa que estou no momento descrevendo.

A cerca de duas semanas antes da festa, Dona Elma, Dona Clice e Seu Pedro haviam começado

a reunir as contribuições das casas e a designar as pessoas que seriam dedicadas a determinadas

tarefas no decorrer do desenvolvimento da festa. As contribuições dos parentes que habitam fora do

município de Cachoeira vinham de toda parte; principalmente de Camaçari, Salvador, da ilha de

Itaparica, e mesmo do Rio de Janeiro. Os agentes então organizavam e distribuiam os membros da

família disponíveis que iriam constituir os núcleos das equipes de voluntários formados em tomo de

atividades tais como: a preparação da casa de Dona Elma e das casas que iriam acolher os visitantes,

a preparação da cozinha, a preparação das bebidas, compras a fazer, madeira a juntar para a cozinha,
264
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

etc. As atividades não parecem ter sido distribuídas ao acaso entre os membros da família. Como na

economia da casa, as atividades são classificadas de acordo com os enjeux (elementos em jogo) de

poder que elas encerram. A cozinha, por exemplo, ficou sob a supervisão direta de Dona Elma. Os

agentes que ela havia escolhido para constituirem os núcleos das equipes de trabalho na cozinha -

que exige muitas pessoas - são considerados por ela como sendo "pessoas de confiança", que não

somente não irão desviar a comida para fins pessoais, mas que também não irão servir -se dela como

arma para vingarem-se, sob qualquer forma que seja, contra qualquer membro da família 18. A compra

dos produtos para a concretização da festa é também considerada como uma atividade crucial, não

somente pelo que essa atividade comporta de implicações econômicas, mas ainda pelo que ela

comporta de escolha no momento de comprar os produtos. Essas escolhas operam-se mediante um

certo saber sobre o que convém comprar, os elementos necessários aos diferentes rituais e~enfim,

um certo saber sobre o ritual de compra de certos produtos - como comprá-los - (por exemplo

existem produtos que devem ser comprados sem pronunciar seus nomes, ou ainda, nas feiras, se

perguntamos ao comprador: "porque você precisa mais de tal produto que deste outro", o comprador

deve estar suficientemente avisado para não revelar as verdadeiras razões de sua escolha, etc).

Quando se prepara uma festa desse gênero, não se faz compra de qualquer modo. Poderia-se dividir

sumariamente as atividades preparativas em tomo da festa em duas ordens: as atividades estratégicas

- o controle das contribuições (em espécie ou natureza) para a festa, a preparação da comida e das

bebidas, a compra dos produtos - e as atividades comuns - a preparação das casas de acolhimento,

a preparação da cozinha, a limpeza, etc.

A contribuição, financeira ou não, dos membros do bairro, era solicitada apenas sete dias

antes da festa propriamente dita. Ela é feita por ocasião do ritual de procissão em honra a São

Benedito. Nesse dia, uma manhã de domingo, Dona Elma havia inaugurado a novena em honra a

São Benedito. Fora nessa ocasião que se erguera um pequeno Altar em honra ao santo padroeiro,

que viria a ser completado alguns dias após. Nessa manhã, segundo a tradição, o responsável da

festa, Dona Elma, deveria organizar uma procissão em todo o bairro com o santo. Deveria-se parar

diante de cada casa, cantar uma estrofe de uma cantiga em honra a São Benedito, e, em seguida,
265
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

bater à porta, dizendo:

Oh de casa!

Ohde casa!

São Benedito chegou!

Se os ocupantes da casa querem, eles abrem a porta, e então São Benedito entra. Entrando

na casa, os agentes devem cantar cantigas de louvor a São Benedito, depois recitar uma dezena de

rosário e finalmente gritar o Viva São Benedito. Antes de partir, a casa de acolhida oferece aos

participantes da procissão bolo, biscoitos ou bombons acompanhados de licor, cerveja, ou

refrigerantes. No momento de alcançar a entrada da porta, os ocupantes da casa devem dar suas

oferendas, em natureza ou espécie, a São Benedito. Aqueles que não podem, fazem a promessa

pública de ajudar num determinado tipo de atividade (a limpeza, a cozinha, a organização" a preparação

das bebidas, etc).

Eram dez horas da manhã. Após acender as velas e recitar uma dezena de rosário, o pequeno

Altar, com o santo dentro, foi levado para fora. Dona Elma havia convocado alguns músicos sabendo

tocar especialmente o violão, o pandeiro, o timbau, o triângulo e a moráca, para acompanhar o

ritmo dos cânticos. Os membros da casa, acompanhados de alguns curiosos e vizinhos, começaram

a procissão, batendo à porta em cada casa - exceto às casas dos pentecostais - fazendo a veneração

a São Benedito, bebendo um pouco demais de licor, tomando cada pedra um grande obstáculo em

seu caminho, responsável pelos tropeços e vacilos, passando, após terem visitado vinte casas, do

riso à seriedade, e da seriedade à brincadeira e ao samba. São Benedito estava, certamente, sufocado

pelo calor que o abafava, dentro desta caixa sagrada, por isso aspergia-se algumas vezes gotas de

água benta, que o padre da paróquia havia consagrado no último ano, por ocasião da festa da

páscoa. Ele continuava, no entanto, impassível em seu pequeno Altar, mesmo quando, subtamente,

de joelhos, no alto das pedras, subindo a pequena rua na colina do bairro 3, uma velha senhora, de

uma piedade reconhecida e certificada por quase todos os habitantes do bairro, e que não havia

bebido nada ao longo de todo o percurso, gritou:


266
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Ô! Tá chorando, o Santinho, tá chorando! Ô!

Os agentes precipitaram-se em tomo da velha senhora, que, diante da tema compaixão do

Santinho por esses pobres bestializados deste mundo, certa, no fundo dela mesma, que o santo

queria comunicar-lhe alguma mensagem, ou algum motivo de esperança, pôs-se também a chorar.

Mais que as lágrimas de São Benedito, as da velha eram de uma visibilidade contagiante. E diversos

agentes puseram-se também a chorar e a cantar cânticos de louvor em homenagem ao Santinho.

Ninguém olhava o santo quando a velha senhora começou a celebrar sua visão. Dona Elma

que, com seu fisico gigantesco, levava o pequeno Altar, elevou-o em direção aos céus, baixando a

cabeça; os outros ajoelhavam-se em tomo da velha, sobre uma rocha ainda mais dura e impassível

que a vida. Eles tinham como uma vontade, manifesta, de não olhar o Santinho. Eles queriam deixá-

10 chorar todas as suas lágrimas. E todos choravam com ele. Eles tinham uma espécie de mêdo de se

enganar. Todo mundo queria que o Santinho chorasse, e que continuasse a chorar. Mesmo eu, que

era um intruso. Ninguém queria ver que os olhos do Santinho estavam mais secos que o sol. Ao

menos tão secos quanto estavam os olhos de Dona Elma.

Eram quase oito horas da noite, quando a volta pelas casas acabou. São Benedito foi colocado

no lugar que havia sido preparado para o Altar. Foi recitado um último rosário, e, às nove horas, os

agentes, completamente exaustos e ainda bastante bêbados pelos licores, cachaças e cervejas, ou

retomavam para suas casas, ou tentavam encontrar algum lugar onde pudessem descansar. Dona

Elma, num último esforço, visivelmente penoso, teve ainda um gesto de coragem para juntar as

oferendas, em dinheiro, que as casas haviam dado ao Santinho; ela as contou rapidamente, com um

ar visivelmente satisfeito e desinteressado, anunciando o total:

O Santinho deu 150 reais ($145) àfesta.

Ela arrumou o dinheiro, e tomou o caminho do banheiro. Era para mim o momento de

partir.

Era preciso voltar ao modo adotado para a produção da festa, para compreender o sentido
267
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

da distribuição dos agentes na cozinha e seu investimento nos respectivos domínios de atividade. O

modo de mobilização adotado para produzir a festa familiar nos leva a uma leitura mais fundamentada

da natureza das relações construí das nesses domínios de atividade, hierarquicamente elaboradas, e

dos enjeux sociais e familiares encerrados nesta hierarquia. Mas voltemos à sequência do

desenvolvimento da festa; tal corno eu. a descrevia na cozinha.

Segundo a tradição, tal como guardada e transmitida pelos mais velhos da família, os pratos

"típicos" - pois é assim que os agentes os designam - preparados com muitas precauções, seguindo

um ritual apropriado, devem estar prontos antes do final da primeira parte da cerimônia. Primeiro,

os.pratos. estritamente consagrados- a Xangô e aos. ancestrais- da África mítica, são preparados- sob o

controle direto de Dona Clice e Seu Pedro, bem antes do início da celebração, quer dizer, antes do

crepúsculo. Esses pratos, por não serem destinados aos humanos - não somente porque eles contém,

na maior parte, ingredientes altamente letais, mas sobretudo porque eles são pratos consagrados -

são preparados em recipientes especiais, estes também consagrados, há mais de três gerações -

desde o tempo da mãe de Dona Conceição - e dispostos diante do assento" do Encantado e diante

da árvore repositória de Xangô e de seus "escravos", na Mata, no fundo do quintal. Os outros

pratos destinados aos humanos são preparados por equipes especializadas tais como: a equipe que

se ocupa do carurú (3 pessoas) e do vatapá e do acarajé (3 pessoas), a que se ocupa dafeijoada (5

pessoas), a equipe. que prepara as aves (7 pessoas para 50 galinhas vivas e 140 kilos de frango), a

responsável pela carne (5 pessoas) ou camarões (3 pessoas), a responsável pela preparação dos

bolos, dos aperitivos (5 pessoas), as equipes de logística compostas principalmente de homens (compra

de carvão vegetal, de madeira combustível, de transporte das provisões, etc - 7 homens jovens do

bairro), Havia ainda outros grupos especializados: aqueles que se ocupavam das bebidas (caipirinhas,

licor, cervejas, conhaque, cachaça, etc - 4 pessoas), o grupo responsável pela animação (música,

orientação dos músicos - 3 jovens do bairro t aqueles que servem (exclusivamente os membros da

família). Todo esse conjunto, coordenado por Dona Elma, Dona Clice, Dona Olga, Seu Paulo, Dona

Ludmilha. As respectivas cozinhas das três casas foram praticamente rearrumadas com essa finalidade.
268
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Os grupos nelas se desdobravam até abrangerem completamente os quintais das três casas.

Atrás dos quintais das casas, um outro grupo acabava um trabalho muito particular, começado

desde a aurora do dia: a matança. Literalmente, a matança consiste no abate dos animais destinados

ao consumo durante os três dias de festa". Na realidade, esse momento consiste num rito de sacrificio,

pelo qual os agentes (todos aqueles que são iniciados nos segredos da família) renovam seus pactos,

pelo sangue animal, com os Santos/Orixás protetores e as forças invisíveis que tornaram possível

essa família. Os agentes apelaram para um matador de animais profissional - alguém que trabalha

quase que exclusivamente para os terreiros de Cachoeira e que conhece bem o ritual da matança -

para que ele executasse a tarefa. Uma vez acabada a matança, as equipes responsáveis pela preparação

dos pratos entram em cena, continuando durante toda a jornada, para que tudo esteja pronto antes

do final da cerimônia.

Bem em frente às casas de Elma, Olga e Ludmilha, reuniam-se os mais diversos grupos de

pessoas. Havia habitantes do bairro para os quais a festa não dizia grande coisa; havia curiosos

vindos do centro de Cachoeira e dos outros bairros; havia também turmas de bebedores, aguardando

impacientemente a liberação das bebidas alcoólicas", enquanto que no interior da casa, o samba de

roda, liberado, atingia ao máximo.

Voltando ao interior da casa, eu estando, eu mesmo, totalmente pego pela roda, não havia

me dado conta que os principais personagens da cerimônia, Dona Elma, Clice, Seu Pedro e alguns

outros adultos, haviam desaparecido, Eram perto de vinte e duas horas e meia. Começava-se a servir

bebidas alcólicas. E a festa apenas começava. Foi alíás Dona Elma quem enviou alguém para me

dizer que viesse encontrá-Ia no quintal, onde o exército de cozinheiras e ajudantes de cozinha

apressavam-se em acabar os pratos típicos desta ocasião. Dona Elma advertiu-me que, em um

instante, a segunda fase da cerimônia iria começar. Enquanto aguardava, decidi fazer um tour pela

cozinha, sem no entanto ter oportunidade de falar com ninguém: todo mundo estava ocupado.
269
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Distribuição espacial das atividades e dos pontos simbólicos de orientação

Ao pé da árvore repositória de Xangô e de seus

-
escravos- são depositadas oferendas e amuletos

Mata! jardim de plantas medicinais

o quintal das três casas constitui a área da matança dos animais

Área da cozinha. Ela reúne as cozinhas das 3 casas


cozinha
Olga Altar cozinha Ludmilha

quarto de
dormir Linha de demãfcação
quarto de quarto de corre-
dormir
I dormir dor/
I

Divisão simbó- • sala de


sala de lica da sala jantar!
jantar / entre parentes/: sala
quarto sala 1------:.,.
principal familia (à .
quarto
quarto esquerda} e- principal
deOtga
Dona "- . convidados (à •
principal Ludmitha
de Dona direita}
Etma

Oratório <, • Oratório

-
Casa Dona Olga VaFaOOa-€a5a- D: Elma

Passeia f rua Passeio / rua

Marco simbólico contra as forças do mal

Oeste simbólico I

I Leste simbólico I
270
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Eram vinte e três horas e quarenta. Dona Elma pediu-me para aguardar fora da casa de Dona

Conceição, "o tempo para os mais velhos da família fazerem aquilo que eles só podem fazer em

família". Eu observei primeiro que, a esse ponto,. não era dado a todos os membros da família, entrar

na casa do Encantado. Operou-se uma segunda restrição, em função de outros critérios. O princípio

fundamental que guiou a segunda restrição foi o do sangue. No quarto do Encantado, no momento

da cerimônia, entra somente quem é parente de sangue. A segunda restrição é também de ordem

hierárquica: no quarto do Encantado, na casa da falecida Dona Conceição, entram somente os

adultos. Os jovens só vão lá quando estão acompanhados de um adulto autorizado, ou por ocasião

de circunstâncias particulares que explicarei mais à frente. Passou-se uma meia hora antes que eu

fosse autorizado a entrar na casa.

O interior da antiga casa de Dona Conceição está arrumado de tal modo que o quarto

principal, que era antigamente o de Dona Conceição, fora transformado em assento permanente de

Xangô, o Encantado da família, enquanto que o antigo quarto secundário, fora transformado em

depósito de objetos, tais como velhos objetos rituais, velhas caldeiras - como aquelas anteriormente

mencionadas - datando do século passado, que os ancestrais utilizavam para preparar os pratos

especiais para o Encantado. A cozinha e a sala constituem espaços vazios, inutilizados. A casa está

orientada simbolicamente na direção leste-oeste. O primeiro marco está plantado na entrada principal,

cujo acesso fora anulado; o segundo, na porta dos fundos que serve como porta de entrada. No

interior do quarto consagrado ao Encantado, havia vários assentos de Orixás individuais dos agentes,

distribuídos sobre um altar elevado sobre uma plataforma em alvenaria. O Altar principal, o do

Encantado, foi erguido sobre uma mesa circular de alvenaria, bem no centro do quarto, em frente ao

Altar dos Orixás secundários. Diante do Altar principal, os agentes haviam arrumado suas oferendas

em intenção a Xangô, e, perpendicularmente a linha central, as oferendas consagradas aos outros

Orixás. As oferendas alinhadas diante de Xangô constituiam oferendas coletivas, quer dizer, da

família enquanto linha de descendência; enquanto que, aquelas distribuídas sobre os dois lados, em
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

intenção aos Orixás particulares, constituem oferendas particulares, de uma casa, ou de um indivíduo

de uma casa.

A hierarquia das casas, assim como a dos membros importantes da configuração, podia ser

claramente lida na distribuição, na importância e na posição das oferendas consagradas aos Orixás

individuais. As oferendas mais importantes eram as de Dona Elma, Dona Clice, Seu Pedro e as dos

outros membros importantes que moram em Salvador ou fora, mas que deixaram com os parentes

locais (principalmente Clice) o cuidado de ocupar-se delas. Essas oferendas eram colocadas em

lugares bem à vista, de tal modo que elas se destacam, imponentes, das inúmeras de oferendas das

outras casas e indivíduos.

Na minha chegada ao recinto, os parentes já haviam realizado a primeira parte da cerimônia

secreta. Nessa primeira parte, exclusivamente reservada aos parentes de sangue e aliados iniciados

nos segredos familiares, os agentes haviam começado entoando o seguinte canto em honra de

Xangô:

Barretinho vermelho

Meu Pai São Jerônimo

Eu juro pelo ronco do truvão

Meu irmão

E me chama Xangô loco e' iara raé" !

Em seguida, Dona Clice botou o Axé sobre o assento do Encantado, depois dela, os outros

membros parentes lá puseram flores, milho branco e vermelho, akassa e outros elementos apropriados.

Dona Clice encensou o assento do Encantado dizendo: deu Axé de Xangô e os outros repetiam: deu

Axé de Xangô ... No final, os agentes fizeram o salva em honra de Xangô. Foi no momento do salva

que eu fora autorizado a entrar na casa. Iniciava-se a segunda parte da cerimônia secreta.

Os agentes haviam se arrumado em semi-círculo, em torno do assento principal, colocando-

se exatamente em frente a sua oferenda particular, destinada a seu respectivo Orixá. Cada um deles

trajava a vestimenta de seu Orixá, com uma bandeirola vermelha suspensa sobre o braço, em honra
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

de Xangô. Num clima de mistério e discrição,

- Xangô é pai, entoou Dona Clice

- É pai e... , repetiram os parentes.

Xangô é pai

É pai e

E iara raé!

Desta vez, sem instrumentos musicais, formando um coro meio silencioso, os agentes

recomeçaram a roda, indo da direita para a esquerda, dançando em honra de Xangô e dos outros

Orixás.

Após vinte minutos, o tempo de executar talvez três rodas seguidas, Dona Clice lançou o

grito da "nação". Dona Elma me fez um sinal discreto, convidando-me a deixar a casa - como

préviamente combinado. A cerimônia ia chegar ao seu fim. E o que havia começado exclusivamente

entre parentes, devia terminar exclusivamente entre parentes.

Fora, diante da casa de Elma, a festa chegava ao máximo. Distribuia-se bebidas e comidas,

como convém a uma grande festa, digna deste nome. As pessoas do bairro, as turmas de amigos, os

jovens a fim de paquerar, os convidados organizavam-se em torno das mesas de jogo, em cantos

tranquilos, relativamente ao abrigo de olhares indiscretos, ou na pequena praça em frente à capela

(ver capítulo lI, prancha com referências de uma configuração de casas, sobre a topografia do bairro

#1). No interior da casa de Elma, dançava-se. Mas não era mais no ritmo do samba de roda, como

exigiria a tradição. Os mais velhos deram lugar, sem resistência, aos jovens que, mesmo em parte

fascinados pelo exotismo da festa, são pouco ligados a essa tradição. A noite do samba transformou-

se em noite de baile, com os velhos reggaes, os "requebras", ou seja, as pop musics que dominam

atualmente no mercado. Na cozinha, já começava a preparação da feijoada do dia seguinte. As

pessoas apertavam-se para obter mais um prato, mais uma cerveja, etc. Os responsáveis pela festa

haviam previsto tudo, mesmo esta afluência; por isso eles organizaram redes paralelas de distribuição,

cujo objetivo era atender aos convidados de honra e os amigos especiais. A constituição dessas
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

mini-redes participa das próprias redes domésticas e das relações sociais que as fundam. Ela traduz

a posição das casas, das redes domésticas e dos agentes na configuração das relações que sustentam

a casa.

o interiorda casa de Dona Conceição. Construção. simbólica do. espaço. O leitor interessado. poderá compará-Ia
com a casa de Dona Elma.

Mata

l
Quintal

Antigo. quarto. de
Quarto. consagrado a dormir; reservado Antiga
Xangô, o.Encantado da para a guarda dos cozinha. Casa que Casa de
família. Antigo. quarto. objetos familiares. Casa de
não. faz Do.na
principal de Dona Dona Elma.
parte da Olga,
Conceição. -------f configura-
ção.
Disposição das
Assentos dos Orixás
oferendas: centro
das casas membros da
Xangô; laterais
configuração vivendo
outros Orixás das
ou não-em-Cachoeira;
casas da configu-
em Salvador otr outros
ração.
estados do. Brasil.
Destaques: Xangô,
Oxume Oxóssi. ----1-1.....11 I I _ t t 1

Leste/Oeste simbólico.
onde são. marcadas as
portas de entrada e os
fundos da casa com as Assento principal de Xangõ, O Encantado da familia que toma forma, segundo 'a ienda
armas de Ogum, o. familiar, de uma cobra o.u de uma lagarta de coral; ela circula na sala saboreando. as
guerreiro. oferendas depositadas diante de seu assento. Ele se manifesta sobretudo durante os mo-
mentos graves da família: fome, doença, morte, catástrofes, enfim, tudo. o.que toca a vida
dos agentes. Segundo. os agentes, a cobra se abriga num buraco. do. qual é impossível ao.
homem medir a profundidade. São.também depositados, o.Axé, as relíquias da família e os
amuletos. Sala proibida às crianças e aos não. descendentes, salvo com acompanhamento.

Página seguinte: Chiché #1 dois vasos em cerâmica servindo. exclusivamente para cozinhar o. alimento. do.
Xangô familiar. Esses dois vasos; segundo- os descendentes da família, teriam mais de um século de existência.
Dona Conceição o.teria recebido. como herança de sua mãe, no. momento em que esta a entronizava em seu cargo.
de responsável pela organização da festa familiar. Hoje, eles estão bem guardados entre os outros objetos e
relíquias da família na antiga casa de Dona Conceição.

Cliché #2 representando. um membro. da família encarnando seu Orixá familiar: Oxum.


/ISV.Jfj 'V!l(Vfj Vp OI1.1KJUQ;Ja(Jop sO.JJJaNso zuiu» apvpP!1saUlOa a O;JSalua.Jve! 'V!l!UlV!l
VLZ
275
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

2. A festa familiar como uma celebração da troca.

Todo grupo social, em toda cultura, destaca da rotina de sua existência os sinais distintivos

que valham, a seus olhos, um motivo de celebração. A celebração consiste na ruptura, cíclica ou

não, da rotina, para marcar um lugar social de troca e de festividade, entre agentes dispersos em

torno de um conjunto de símbolos ou objetos rituais, cujas múltiplas traduções constróem, aos olhos

dos celebrantes, um lugar social e cultural de reconhecimento. O fato de celebração procede portanto

1) de um posicionamento com relação às disposições temporais - já que ele se inscreve num

continuum da experiência vivida e partilhada, certamente, em diversos graus, entre os agentes. 2) da

construção de um lugar social a partir do qual articula-se a linguagem das formas da celebração. O

tempo e o espaço social são dois paradigmas em função dos quais os celebrantes dramatizam a

continuidade e a ruptura, a vitalidade e a expectativa. O fato de celebrar aciona mecanismos sociais

de aproximação das forças, dos elementos ou dos agentes dispersos na estrutura social, para

reconstruir um "nós", assim como ele reúne os mitos, os símbolos ou objetos rituais, dispersos na

cultura, para construir os signos distintivos desse "nós". Pelas festas, ritualizadas ou não, os agentes

dramatizam os riscos do caos pela afirmação da ordem e, inversamente, dramatizam a ordem pela

afirmação dos perigos do caos potencial que a ordem social encerra: as celebrações criam uma zona

"safe" (Turner 1982), na qual os agentes sentem-se senhores deles mesmos enquanto lugar, num

"relaxamento" dos rigores da hierarquia onipresente e, paradoxalmente, na celebração da ordem

social. As formas que as celebrações podem tomar são múltiplas. Poderia-se tentar agrupá-Ias em

certos domínios da vida social: segundo elas exprimam o conjunto dos laços partilhados por uma

nação (as festas carnavalescas, as festas patrióticas analisadas por DaMatta 1990), um grupo (festa

da Boa Morte em Cachoeira, etc), uma religião (festas religiosas, ritos de passagem), uma família ou

um conjunto de famílias (as festas de família - que constituem o objeto deste capítulo), enfim,

segundo elas se mantenham sobre bases claramente individuais.

Eu abordo os símbolos das celebrações como sendo veículos de comunicação entre os agentes
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

do campo familiar e entre esse campo e a estrutura social. Essas mensagens são contextualizadas no

tipo de celebração, depois analisadas como sendo códigos de acesso a um universo simbólico

específico. Se os símbolos são colocados como veículos de comunicação, quer dizer, como expressão

de uma condição sócio-cultural, os sentidos dessa expressão, dessa linguagem, não são auto-evidentes.

Os símbolos não dizem necessariamente uma palavra de mesmo valor para todos os agentes ou

grupos de agentes familiares, tomados numa configuração de casas, ou em diferentes constelações

de relações sociais. Os símbolos de celebração da família não constituem urna voz, mas sim várias

vozes. Do campo sócio-cultural especificamente estudado, aos contextos regionais e globais nos

quais estão inseridos os agentes, o mesmo símbolo pode ser posicionado para exprimir maneiras

variadas de dizer, sejam as mesmas coisas, sejam coisas diferentes. Do mesmo modo, os valores

subjacentes ao mesmo símbolo de celebração, tanto no espaço sócio-cultural do grupo familiar,

quanto da sociedade regional ou global, podem variar de um contexto a outro, ou podem ser múltiplos

no mesmo contexto de celebração. E, finalmente, estou consciente do fato que um símbolo, além de

representar várias coisas e exprimir vários valores ao mesmo tempo, pode dizer várias coisas ao

mesmo tempo; eles podem significar vários objetos, várias palavras, na mesma unidade de lugar e de

tempo.

Eu trato as celebrações não somente como códigos de acesso à experiência da família entre

os agentes, mas também como manifestação codificada da ordem social, moral e política em curso

na sociedade. Nas celebrações, a estrutura social é representada (pela reprodução da hierarquia

social na disposição dos agentes familiares e na escolha e posição dos convidados), tanto quanto a

inversão dessa mesma estrutura: sua ante-estrutura (pela ritualização da inversão das posições e a

comemoração da passagem - do pior ao melhor, etc). Pela composição das pessoas convidadas na

celebração, pela densidade da presença dos celebrantes membros das configurações familiares, pela

disposição física dos participantes, pela organização e os usos simbólicos do espaço interior e exterior,

pela disposição dos objetos ritualizados e não ritualizados, etc., os agentes colocam o sistema dos

símbolos da celebração num lugar ancorado no sistema social, político e moral da sociedade dominante.
277
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Resulta desses arranjos e rearrumações uma dinâmica semântica dos símbolos de celebração,

na qual os objetos passam a tomar significações geralmente insuspeitáveis na rotina da vida cotidiana.

A celebração oferece um momento privilegiado pelo qual pode-se observar o que os grupos fazem

dos símbolos e de seus lugares na ideologia da família, para além do que eles podem dizer a respeito.

o acontecimento e o cotidiano

A Festa de Família, tal como descrita neste capítulo, apresenta-se como um acontecimento

que rompe com o tempo comum, inscrevendo-se num continuum de um tempo familiar. Uma das

características principais deste acontecimento, consiste no fato dele auto-glorificar e auto-imortalizar

a "linhagem", a família. No decorrer da festa, os descendentes de Dona Conceição manifestavam

um sentimento de orgulho ao encarregarem-se das tarefas, ao receberem os visitantes, os vizinhos,

os amigos. O encarregar-se de domínios de atividades traduz um encarregar-se de si e do nós. Essa

auto-glorificação e auto-imortalização demonstravam-se primeiramente na exibição de certos sinais

da identidade familiar: a escolha das cores das vestimentas dos agentes os submetia ao mesmo

regime mítico e místico - o do Xangô familiar; os objetos rituais familiares espalhados por espaços

mitologizados (a casa de Dona Conceição); a ritualização da festa; a escolha dos cantos que

acompanhavam os rituais - esses cantos eram completamente voltados para a família, para suas

raízes e seus fundamentos, para suas dimensões e seus lugares de referência no imaginário coletivo

e individual, etc. Esses sinais reinventavam o lugar dessa família, na sociedade local e regional. Eles

convidavam a efetuar um certo retorno sobre si, sobre a existência individual e coletiva.

O segundo aspecto desse acontecimento auto-glorificador e auto-imortalizador consiste no

reconhecimento, bastante claro e imediato, da parte dos agentes, da diversidade da construção do

nós e do lugar no qual esse nós se manifesta. Durante os três dias de festa, os agentes se voltam para

as raízes africanas míticas, perdidas num tempo imemorial que, nesse momento presente, são

construí das como possuindo características particulares, qualquer coisa que produz um "nós" diferente

que esse "nós" possa invocar, de modo a infletir o curso das coisas vividas no cotidiano. A força

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278
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

com a qual os agentes acentuavam os mitos familiares, sobre a linhagem, revelava que um lugar de

pertencimento individual e coletivo havia sido assinalado; um lugar no qual eles localizavam uma

fonte particular de energia, um certo capital psicológico e emocional que punha os agentes, subtamente,

em pé de igualdade com todo mundo. Um lugar no qual o construto "negro" é desvinculado das

representações convencionais dominantes. O lugar havia sido assim invertido, reapropriado,

reconstruído, assinalado e reconhecido. Os agentes tinham consciência, nesses momentos de festa,

que os cantos, os gritos da nação, os trechos de canções entoadas numa lingua desconhecida dos

próprios agentes, a ênfase dada à linhagem bio-social, a herança simbólica familiar sinal símbolo

distintivo supremo é lido na própria festa, participavam de um lugar coletivo onde o indivíduo e o

coletivo se reconheciam e se reconstruiam. Esse nós era construído em sua igualdade com os outros,

um nós circunstancialmente realizado em sua diferença.

Acima de tudo, a festa familiar era a festa de uma linhagem bio-social cuja ascendência

remonta sempre à mitologia familiar, mesmo quando essa linhagem, base do parentesco bio-social,

se reconfigurava na linguagem do parentesco espiritual nos terreiros estudados. A festa consiste

num momento de sacralização da família, em sua configuração e suas relações de poderes concretos.

Jamais, para os agentes, um momento de unidade, quer dizer, a consciencia de um nós forte, solidário

e sólido manifestou-se com tanta clareza quanto no momento da festa de família. Inversamente,

jamais, aos olhos dos agentes, os momentos de conflito foram tão claros e definidos quanto no

momento da festa. A festa se produzia numa dinâmica ambígua de confiança no nós e de desconfiança

nos elementos pertubadores internos ou externos; a festa se realizava num equilíbrio frágil entre a

abertura ao mundo e o fechamento, entre a demonstração da força (social, mística) da família e sua

exposição à ataques temíveis; entre a sublimação dos ódios e dos eternos conflitos entre agentes de

uma mesma casa, entre casas de uma mesma configuração, entre parentes de sangue e família por

consideração, entre parentes/família e aliados, etc. Jamais a noção de herança simbólica que constitui

a casa de Dona Conceição - os mitos familiares, o São Benedito e o Xangô familiar, a linhagem

simbólica - foi tão claramente legada, venerada, manifesta, reapropriada e legitimada pelos agentes
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

quanto no momento da festa. É que a herança funciona. como princípio classificador. A herança

simbólica constrói o nós e os outros: entre o nós, os próximos e os afastados; entre os próximos" os

piedosos e os invejosos; entre os piedosos, os merecedores e os impostores; entre os merecedores,

os legítimos e os ilegítimos, etc.

A herança que a festa realça e celebra consiste em referências às quais os agentes se apegam

e se reconstróem, na necessidade. A herança comporta um valor de troca somente quando a sociedade

das coisas objetivas força os agentes a se redobrarem em si mesmos, quer dizer, em situação de

exclusão social. Essa herança pode ser abandonada ou posta entre parêntes, em contextos específicos.

A herança familiar é uma moeda condicional. A festa constrói e constitui uma situação de troca na

qual a herança simbólica familiar é o valor absoluto de troca. É porque ela organiza os espaços

interiores das casas (Elma e Conceição), reorganizando os direitos de uso da esquerda como da

direita, da frente como de trás. É porque ela paga 0- direito de troca, com a linguagem hermética que

são as canções cantadas em línguas só compreendidas pelos "iniciados" nos segredos da família. A

herança constrói os detentores do poder simbólico e econômico no interior das casas e da configuração

de casas, e os aspirantes à esse poder; ela legitimiza a hierarquia, renovando-a e traduzindo-a

publicamente no acontecimento que é a festa familiar. A herança simbólica familiar reorganiza espaços

de negociação entre o cotidiano e o acontecimento.

A quarta característica do acontecimento é a de ser uma pantomina da estrutura social local,

regional. Aos olhos dos agentes, uma festa de família - a família como representação bio-social.ou

espiritual (família de santo) - é importante apenas na medida em que ela apresenta, aos olhos dos

expectadores 'e participantes, suas conexões no interior da classe média, sempre simbolizada pelos

brancos. Uma festa de família que não exiba o seu branco, bem à vista, não é satisfatória. A permanente

procura de integração de brancos das classes médias nas festas de família, traduz a consciência dos

agentes quanto à hierarquia sócio-racial em curso na sociedade brasileira. Sabe-se que na comunidade,

como por todo o Brasil, os negros não podem se colocar como relativamente iguais aos brancos,

somente através de espaços públicos populares, não privatizados: alguns bares, praças públicas,
280
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

certos espaços nas festas e manifestações públicas. Fazer entrar um branco na família é,

simbolicamente, "rebaixá-lo", até que ele seja um igual do agente, uma forma simbólica de nivelamento

da sociedade. Mas é também elevar-se, até ser seu igual; é, simbolicamente, fazer "explodir" o gueto

negro e entrar vitoriosamente como sujeito social, ou seja, simplesmente como cidadão, no mundo.

É entrar no espaço exclusivo e privado do branco, não pelo elevador de serviço ou pela porta dos

fundos, da cozinha, mas pela frente, pela sala, dando-lhe uma posição de destaque em seu próprio salão.

o alimento e a celebração da troca

Todo grupo social realça a importância da celebração pelo alimento. Pela manipulação do

alimento, os agentes constróem um domínio de afirmação simbólica que o situa na ordem social.

Desde a preparação da festa, nós vimos o quanto o alimento consistia numa preocupação central dos

agentes. A seleção dos alimentos, os procedimentos utilizados para adquiri-l os, a maneira de prepará-

10s, a forma pela qual o alimento fora distribuído e consumido, são os diversos momentos a serem

analisados em vista de apreender a natureza e o valor deste acontecimento.

A seleção dos alimentos, visando a realização da festa de família, responde a regras que fogem

à modalidade cotidiana. Os alimentos são escolhidos por dizerem algo simbólico do nós coletivo que

é a família. Como mencionei na seção 1, o procedimento que dá conta da seleção de certos alimentos,

esclarece o permanente trabalho de seleção do parentesco bio-social entre os agentes. Não seleciona
. .
simplesmente quem quer. E os parentes que fazem parte daqueles que selecionam, são eles próprios

selecionados. Eles compõem as posições centrais - traduzi das entre os agentes em termos de

"confiança" - da configuração de casas; eles são depositários de uma certa tradição, de um certo

saber da família sobre a família. Há uma espécie de convergência entre os selecionadores e os alimentos

selecionados; entre o saber comunicável dos mais velhos sobre o que é preciso selecionar e o poder de

comunicação dos alimentos selecionados, o que eles dizem sobre o nós familiar.
281
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

A seleção dos alimentos pode ser melhor apreendida, se a relacionarmos com o modo de

aquisição dos alimentos. A seleção do modo de aquisição dos alimentos da festa não é determinada

pelas regras do acaso. Os alimentos selecionados são adquiridos ou diretamente em lugares

especificos, nas feiras livres (mercados públicos), ou nos jardins, ou no quintal das casas. De fato,

por razões evidentes, a maior parte dos alimentos é adquirida nas feiras e nos mercados apropriados.

Entretanto, não podemos tomarfar granted o fato da escolha dasfeiras como modo privilegiado de

aquisição .Na observação atenta, destaca -se uma relação interessante, não sistematizada neste trabalho,

entre a constituição dos espaços nas feiras livres e a das casas. De fato, etnografias localizadas das

feiras livres, revelariam em que medida uma leitura literal das feiras não diria tanto sobre as casas

quanto as casas sobre asfeiras. Não há no Brasil uma literatura detalhada, baseada numa etnografia

das feiras, seu modo de constituição, sua relação com as cosmologias locais, a constituição e a

distribuição de seus espaços interiores, assim como os princípios hierárquicos que os modelam.

Sabe-se muito pouco, por exemplo, em que, certos espaços interiores dasfeiras>-tais como organizados

pelos agentes, são constitutivos da cosmologia doméstica nas classes populares. No entanto, o

estudo do modo de aquisição dos alimentos rituais - e de seus ingredientes - mostra que os

agentes não selecionam afeira apenas com finalidades estritamente utilitárias. Se colocamos entre

parênteses as redes sociais e familiares que constróem os espaços dasfeiras, a frequência dasfeiras

com fmalidades propriamente metafisicas, tais como a seleção de ingredientes rituais para a realização

das festas ritualizadas, exige, da parte do agente, um conhecimento a respeito da orientação simbólica

dos lugares de venda desses produtos, uma divisão do alto e do baixo, da direita e da esquerda, do

quente e do frio, ... que correspondem, de fato, à sua própria divisão do mundo. Na compra dos

produtos, o agente aciona saberes simbólicos cujo único objetivo é proteger ou reproduzir o universo

simbólico de uma coletividade. Quando Dona Elma e Dona Clice escolhem "pessoas de confiança",

entre os parentes, para comprar determinados produtos, elas apelam a esses saberes dos quais é feita

a tradição familiar. Se não é qualquer um que pode selecionar os alimentos e seus modos de aquisição

para a festa, é porque não se compra de qualquer modo nem em qualquer lugar.
282
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

No decorrer da estação precedente à preparação da festa, o espaço do quintal das casas,

principalmente o de Seu Pedro, de Dona Elma e de Dona Clice, foi preparado para produzir

determinados tipos de legumes, necessários à preparação do caruru e outros pratos típicos; plantas

utilizadas na fabricação dos licores especiais, destinados ao consumo dos Orixás; plantas especiais,

cujas virtudes benéficas para as casas e para a família - particularmente para afastar a má sorte -

não são, de acordo com os agentes, para se mostrar. As folhas do limoeiro, assim como o fruto,

utilizados no tempero da carne, do frango ou dos frutos do mar, constituem, para os agentes, um

trunfo temível que não deve ser manipulado por mãos inimigas. O fruto do limoeiro (assim como a

árvore) é considerado pelos agentes como uma faca de dois gumes. Nos quintais, o limão tem um

papel determinante na cosmologia que representa a casa. A árvore "repele" os espíritos maus e

temíveis para os limites do quintal com a mata, e os usos de seus frutos são multiplos e variados, do

uso metafisico aos usos utilitários cotidianos. A tradição familiar determina que certos ingredientes

que entram na composição dos pratos sejam, mesmo simbolicamente, tirados do quintal. De fato, o

quintal, como descrevi no capítulo lI, prolonga a família. No quintal são enterrados (enraizados) os

objetos rituais individuais e coletivos. O quintal é um lugar de passagem da natureza à humanidade;

ele liga os agentes a profundezas insondáveis. Ele é uma dimensão da casa, portanto da família.

Apresentar como oferenda, aos Orixás familiares, um alimento oriundo do quintal, é oferecer,

simbolicamente, o que entra na própria essência da família. Pode-se perguntar em que medida,

comer os produtos do quintal, num contexto de auto-glorificação e auto-imortalização da família,

não é comer de si mesmo, em família.

A afirmação simbólica d!!família se dá também na preparação dos pratos. O rito de sacrificio

dos animais, operado na aurora da manhã de sexta-feira (ver matança na seção I), inaugurava um

sistema de classificação no qual são posicionados a instituição imaginária da sociedade (a família) e

a ordem metafisica, prolongamento da primeira. A essa divisão em duas ordens, correspondia uma

classificação dos alimentos entre o sagrado (consagrado aos Orixás) e o profano (consagrado ao

público); em torno desta classificação, operava-se uma estrutura de oposição na divisão dos alimentos
283
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

a partir dei cru e do cozido, do quente e do frio, do alto e do baixo, do dia e da noite (os alimentos

destinados ao consumo durante o dia e aqueles a serem consumidos durante a noite), o comestível

(alimentos destinados ao público) e o não comestível (alimentos destinados aos Orixás, que serão

jogados no rio Paraguassú depois dos três dias de festa) etc. Por exemplo, o alimento preparado para

Xangô, havia sido feito sobre três pilares elevados a cerca de um metro de altura, enquanto que o dos

espíritos "escravos", havia sido preparado sobre três pedras instaladas na altura do solo; os pratos

destinados ao grande público haviam sido preparados segundo o ritmo normal, no fomo ou sobre

braseiros. Assim, esta divisão e esta classificação conferiram estatutos aos alimentos. Os alimentos

consagrados dividiam-se entre os alimentos dos escravos (representados no imaginário dos agentes

como negros muito pouco evoluídos e que só podem atuar sob o controle dos Orixás) e os alimentos

consagrados aos Orixás, que eram melhor preparados, com o maior respeito possível. Os alimentos

consagrados ao grande público eram divididos entre os alimentos preparados ao fomo e aqueles

preparados sobre braseiros; havia alimentos nobres a serem distribuídos, primeiro, aos convidados de

marca, e, em seguida, caso ainda restasse, ao grande público, do conhecido ao desconhecido. Através

da classificação dos alimentos operava-se uma classificação das pessoas, uma hierarquia social que

era, na verdade, a repetição da hierarquia dominante. Nessa hierarquia, encontrávamos sempre brancos

ou mulatos importantes no topo, à exceção dos negros que detinham certos poderes simbólicos -

pais de santos, mães de santo, etc. A "naturalidade" com a qual os agentes, através do alimento, se

auto-constróem e constróem aos outros, pela hierarquização, era de uma eficácia formidável. Tudo se

passava como se aquilo fosse constitutivo da vida cotidiana dos agentes; como se, no cotidiano, a

classificação constituisse a operação fundamental e permanente de auto-construção e de sobrevivência.

O processo se dissolve numa espécie de segunda natureza dos indivíduos e dos grupos; é a mais

digerida expressão do habitus social (ver também capítulo IV sobre a naturalização das hierarquias dos

lugares nas representações dos agentes e na prática matrimonial).

Entre os alimentos consagrados, os alimentos ritualizados, o acarajé ocupa uma posição

central. O acarajé era o único alimento que transcendia a todas as oposições acima mencionadas.
284
Familia, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Era encontrado tanto nos pratos de Xangô e dos outros Orixás, como nos pratos dos escravos; ele

acompanhava tanto os pratos preparados ao forno, como aqueles preparados sobre braseiros; ele

unificava o público, transformando-o simbolicamente em uma família só. Para compreender a

importância do acarajé no sistema simbólico - e também no sistema de alimentação - dos agentes,

é preciso situá-lo na vida cotidiana destes. Na vida cotidiana dos agentes no Recôncavo, a produção

do acarajé situa-se no encontro do religioso com o social. Fazer acarajé, no sentido da aquisição de

seus ingredientes, do modo de aquisição destes, de sua preparação e de sua cornercialização, é uma

passagem obrigatória nos ritos de passagem dos candomblés. Nessa perspectiva, a vendedora ou o

vendedor de acarajé, raramente um branco, mas certamente um negro ou um mulato, investe

provisoriamente num espaço, na rua, a fim de cumprir sua obrigação, que consiste na comercialização

do produto. Mais de 50% do dinheiro coletado - refiro-me estritamente aos casos específicos por

mim observados - retomam ao terreiro no qual o agente pretende ser feito (iniciar-se). O trabalho

do acarajé exige um investimento coletivo nas redes de parentesco espiritual e social, ele constrói

lugares de referência e pertencimento para os novos iniciados. Alguns agentes, após sua iniciação,

podem decidir continuar o trabalho do acarajé em suas horas livres; outros continuarão através de

pessoas intermediárias - domésticas, crianças adotadas, etc - constituindo uma fonte relativamente

certa de reforço da economia familiar. Assim, nas representações locais e mesmo regionais, o acarajé

é, certamente, um dos produtos nacionais mais relacionados aos negros e às religiões afro-brasileiras.

A identificação é tal que a conversão de um(a) vendedor(a) de acarajé a uma igreja protestante,

implica numa separação das práticas de venda do acarajé - em certos casos, os pastores chegam a

proibir o seu consumo, considerando o acarajé como algo de Satã, um alimento altamente sujo

(Douglas 1971). Mas, além de sua circunscrição no religioso, o acarajé constitui uma verdadeira

economia familiar dos negros mais pobres da população. E aqui, mais uma vez, os mecanismos

familiares são necessários tendo em vista a manutenção de sua comercialização. Nas famílias pobres,

o acarajé é produzido em colaboração entre casas ou agentes de uma mesma casa. A compra de um

moinho para moer o feijão exige um capital significativo para os agentes (entre 35 e 50 dólares). Nos
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

casos por mim estudados, a compra de um moinho é, muito frequentemente, um investimento coletivo,

e quando não é, a compra do feijão, dos camarões, dos ingredientes para o vatapá e o carurú é feita

por um terceiro. A produção do acarajé é uma produção familiar, que põe em ação o princípio de

cooperação entre os agentes. No caso das famílias estudas, o acarajé é uma herança familiar, um

bem transmitido, através da aprendizagem, de mães para filhos. Os espaços públicos que formam os

pontos de venda, entram na constituição dessa herança. Quando uma casa se divide em torno do

controle da produção do acarajé, os conflitos ocorrem diretamente na rua, pelo controle desses

micro-espaços públicos, os pontos de venda, herdados de geração em geração.

Não há referência histórica 00 acarajé como. alimento sagrado nos. cultos. afio-brasileiros. É

o sentido de sua preparação que o torna sagrado ou não. A separação de seu caráter sagrado, ou

não, não é radical. Como código simbólico, o acarajé é um alimento altamente ritualizado.

A preparação dos alimentos lá modelava as formas de sua distribuição. Após depositarem as

oferendas dos respectivos Orixás nos lugares consagrados, os agentes distribuiram os pratos através

das sub-redes pessoais; os pratos julgados nobres foram distribuidos entre as personalidades nobres,

mas outros critérios pessoais entravam em jogo: as sub-redes de amigos, os contatos pessoais para

obtenção das bebidas de sua preferência, os sub-grupos de influência que dela se aproveitam para se

imporperante aos seus próximos (amigos ou vizinhos), enfim, a distribuição do alimento durante a

festa consistia num momento privilegiado para a observação dos patterns de classificação dos agentes,

os grupos de influência no interior da família, as lutas de poder entre os grupos, o modo de controle

e utilização de recursos tão estratégicos quanto é o alimento; enfim, pela distribuição, é possível

constatar como funcionam e com quem funcionam as redes e sub-redes domésticas em suas conexões

com as.redes. sociais.

No final da festa, os agentes apanham todos os excedentes consagrados aos Orixás, os

embrulham num pano branco e os jogam no rio Paraguassú. Segundo os agentes, aquilo que é

jogado no mar ou na água seguirá seu curso, e, como o rio, chegará a um tempo de abundância, o
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

tempo da cheia. O que é jogado na água, é, ao mesmo tempo, uma semente que não deveria ser

consumi da, senão como ela iria trazer o fruto? Mas também o que foi consagrado aos Orixás e

proibido aos humanos, e os excessos da despesa confirmam o quanto a parte que lhes foi consagrada

foi maldita (G. Bataille). Desde o momento de sua acumulação.

Para concLuir. ..

As celebrações festivas, assim como os objetos de celebração, são polissêmicas. Os sentidos

que podemos lhes atribuir depende do nível da análise, do grupo enfocado e dos usos que delas

fazem. Num primeiro nível, as celebrações podem circunscrever-se em domínios bem específicos da

vida social, tais como o trabalho (o ciclo do trabalho no mundo rural, por exemplo), as festas de

estação (o carnaval, as festas de fim de ano, a micareta, etc), as festas religiosas (as procissões que

acompanham as festas dos Santos Padroeiros, as festas das Confrarias Religiosas, etc) ou as festas

comunitárias, que magnificam conjuntos de crenças e valores partilhados numa comunidade (a festa

de São João, de São Pedro, etc). Num outro nível elas podem exprimir o conjunto dos laços partilhados

por uma nação (as festas carnavalescas, as festas patrióticas analisadas por DaMatta,1990),. de um

grupo étnico (festa da Boa Morte em Cachoeira, etc), uma família ou um conjunto de famílias

situadas num contexto social específico e diferenciado, ocupando uma determinada posição - seja

de inclusão ou exclusão - na configuração social (as festas de família que fazem o objeto deste

capítulo), enfim, elas podem exprimir-se sobre bases claramente individuais. Existem diversos níveis

de uso, portanto de análise, das celebrações. Ainda que esses níveis estabelecidos pela literatura

especializada sejam tão arbitrários. Pois em qual nível pode-se classificar uma festa religiosa que

traduz a experiência e os valores partilhados por uma comunidade, sendo apropriada por uma família,

a exemplo de São Benedito, que a institui como sendo a sua festa de legitimação, a de suas raízes e

de seus ancestrais? Os níveis articulam-se uns com os outros, recortando-se em diferentes pontos. E

como toda prática humana, as celebrações são - usando a linguagem de Turner (1982) -

multivocais, no sentido em que elas dizem várias coisas ao mesmo tempo. Em que, por exemplo, a
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

análise das reuniões de família das classes médias ou de uma cerimônia em honra de um Santo

Padroeiro numa casa das classes populares, diferem de uma festa de família tal como a dos

descendentes de Conceição? Em que é que suas linguagens se cruzam e se distanciam para dizer

outras coisas? Por quais meios podemos esperar traduzir plenamente as relações, as expectativas e

as questões que elas acionam? Quais tratamentos elas dão, nesses diferentes meios, a essas relações?

Em que tal celebração diria o específico, simplesmente usando uma linguagem cujos termos têm

suas definições antecipadamente fixadas? Em que elas diriam valores particulares? Até onde podemos

afirmar que as festas de família, tais como aqui diferenciadas, dizem alguma coisa? Nós tocamos,

através destas questões, num terceiro problema, inerente à interpretação das festas, dos objetos

rituais e dos símbolos: as celebrações postulam diversos valores, não necessariamente coerentes, ao

mesmo tempo. Elas são multivalentes.

As festas elaboram os lugares sociais e fazem eco à memória do tempo, assim como à

experiência das práticas do passado. Através dos símbolos que elas glorificam, ocultam ou mistificam,

as festas de família magnificam e manipulam complexos de significações que situam os próprios

símbolos na dinâmica das determinações históricas. A operação que é acionada no ato de celebrar a

família é profundamente ambivalente: por um lado, ela magnifica a história das relações entre os

grupos ou entre as pessoas, dando-lhe um tratamento diferente daquele que lhe conferia a experiência

dessas relações, como se essas relações fossem calçadas apenas por um humanismo transcendental,

segundo o qual, todos os seres humanos, independentemente das estruturas sócio-econômicas, seriam

iguais. Essa glorificação da história, nas festas junto aos dominados ou entre os dominantes, procede

pelo apagamento de traços, que é, na verdade, um apagamento da própria história. Na fraternização

da celebração, os agentes gostariam que o mundo se inaugurasse naquele instante e que surgisse um

novo dia, com a humanidade que os filósofos dizem existir em todos os homens. Essa glorificação

da história, nós podemos constatá-Ia na produção do acontecimento familiar dos descendentes de

Dona Conceição. Os emblemas familiares, os objetos rituais, expressam a linguagem da unidade, de

um provável êxito, tanto para o dominante quanto para o dominado. Como se o destino de um se
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

encontrasse no do outro. No entanto, e é este o lado oposto da operação, a história dos objetos

rituais, dos emblemas e ainda a das relações formuladas nas práticas de dominação sócio-culturais,

traduz-se em experiência de lugares (o negro), em relação de trabalho, etc. A celebração, mesmo

quando ela não sanciona um rito de passagem propriamente dito, magnifica uma vontade de passagem.

Uma vontade de passagem das heranças do passado à construção de um presente libertado destas

últimas; uma vontade de passagem dos mortos aos vivos, da vida à morte, do mito à realidade, da

realidade ao imaginário, da pobreza à riqueza, da rotina à expectativa, da condição marginal à

"consideração", da exclusão social à integração. Toda celebração é a recusa de uma condição em

proveito de uma outra. Ela é, metaforicamente, a celebração de uma passagem. Nesse contexto

particular, independente de ser uma passagem, a celebração da família instala relações que elegem a

negociação da identidade como valor cardial, quase transcendente. E o desafio de toda etnografia de

celebrações é o de poder traduzir a natureza dessa recusa e os sentidos (significações e orientações)

implícitos a essa vontade de passagem, assim como os valores simbólicos e sociais das relações que

os celebrantes instalam, com essa finalidade.

Na celebração da passagem, tal como observada e estudada entre os agentes por ocasião da

festa de família dos descendentes de Dona Conceição, havia uma vontade de celebrar, através dos

agentes convidados, "a" sociedade como uma grande família (uma família só); essa celebração é a

manifestação de uma tradução, da passagem de um mito à realidade: a do João ninguém a João

alguém. Todas as festas de família das periferias estudadas manifestaram a importância crucial,

tanto para os organizadores quanto para os participantes, que eles dão ao fato "de ter seu branco" da

classe média local, "seu homem importante", bem acomodado e bem à vista, em meio a sua cerimônia.

Pela presença do homem importante, os agentes têm a impressão de inverter o mundo, de inaugurar

novas relações na sociedade exclusiva. Pelo fato que, aos olhos dos agentes, o "branco" (o branco

não é aqui apenas uma cor social, mas também, literalmente, um não-negro) simboliza a sociedade,

a riqueza, a civilidade e todas as virtudes, a seus olhos, positivas, os agentes nos conduzem à penetração

da importância atuante do mito da democracia racial. A democracia racial, expressa sob a dinâmica
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

da miscigenação e do branqueamento, como mito fundador da sociedade brasileira, é um mito

poderoso que postula e que se apaga diante da realidade. Uma antropologia dessa vontade de passagem

deve revelar os meios locais nos quais os agentes marginais investem, a fim de integrar a dinâmica do

universal, da cidadania, da integração social, etc. A análise dessa eterna transição, dessa vontade de

passagem, é também a análise dos mecanismos de bloqueio instalados pela sociedade dominante, em

vista de manter seus excluidos em seus devidos lugares, em suas condições; é desmascarar o trabalho

e o modo de operação das estruturas mistificadoras, inerentes a esses mecanismos, de modo a

conservar e garantir a permanência e a reprodução dos habitus sócio-étnicos.

A invocação das práticas festivas tradicionais nas festas de família em honra aos Orixás, na

periferia, consiste hoje numa reminiscência de um passado que se recusa a objetivar. A festa pode ser

lida num continuum do passado no presente, do presente no futuro. A festa descontextualiza os

ancestrais, ela lhes retira sua condição de escravos, transformando-os em seres míticos, etéricos,

transespaciais e atemporais; ela os veste e ornamenta com as vestimentas da humanidade, colocando-

os em diálogo com o nascimento e a morte. É pela festa, em seus momentos ritualizados ou não, que

os agentes reinventam seu cotidiano. Para os negros das cidades estudadas, a festa constitui um

médium de celebração da continuidade da família - através da magnificência dos ancestrais míticos,

da continuidade da vida, mesmo sob suas mais absurdas e injustas expressões.


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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Notas do capítulo V

1. No capítulo lI, eu assinalei as categorias de oposição nas quais os agentes estruturam seus usos
dos espaços interiores das casas, tais como: hierarquia: autonomia:: coletividade: individualidade
.: sedentalidade : mobilidade:: sagrado: não sagrado:: privado: comunitário:: direita: esquerda::
interior : exterior :: masculino : feminino :: aberto : fechado :: intimidade : público :: secreto :
profano:: natureza: cultura:: etc. Eu também formulei o caráter contextual da operacionalidade e
da eficácia dessas oposições, quer dizer que algumas entre elas não se manifestam na rotina cotidiana;
elas remetem a uma dimensão da cosmologia dos agentes que só é perceptível, aos olhos do analista
ou conscientemente (?) manifesta aos olhos dos próprios agentes, em contextos excepcionais, nesse
caso etnográfico, por ocasião das celebrações da família pela família. Algumas dessas categorias de
oposição que não foram analisadas no capítulo II o serão nesta capítulo.

2. As celebrações da família podem ser situadas no continuum da sociedade das festividades,


característica da sociedade colonial na Bahia. A historiografia da sociedade baiana destacou
admiravelmente a importância das celebrações na vida cotidiana, durante a época escravagista. No
cem e da estrutura social gerada pelas plantations coloniais - cujas estruturas profundas ainda
resistem, com tenacidade, às transformações sócio-econômicas modernas - as celebrações
constituiam a forma privilegiada pela qual o baiano da época manifestava a vida (Reis 1991: 70). Na
sociedade rural e nas cidades interiores da região, as festas religiosas e profanas ritmavam a encenação
da vida cotidiana das famílias:

If farming established the routines of these families, religious tradition determined their
rituaIs. The cycles of religious festivities and observances, rather than calendar time, marked
of! their weeks and years. the harvest festival, or botada, for the sugar crop, which at its
most complete included a mass with a blessing of the mil! and field, a banquet, and dancing,
brought the agricultural years and sacred rituaIs together. It sanctified and celebrated the
community of the plantation with the master at its head. .The liturgical cycle and folks
festivals intersected im other rituals, too. Saint's days formed a major part of religious
practice in rural Brasil, and chief among them was São João, Midsummer's Day. Not only
sugar plantations but also smaller households in Bahia celebrated São João with a bonfire,
special sweets and genopap wine, and a table that sat the entire clan together. (Borges
1992:54)

Nas cidades, o catolicismo ibérico modelava as práticas festivas e religiosas da sociedade baiana e
transformava-se em celebração pública da fé religiosa. O barroco havia tomado conta da rua e nela
se instalado nas procissões em homenagem aos Santos Padroeiros, nos ritos mortuários, nas
festividades meio religiosas meio profanas [Sobre a importância do catolicismo popular - através
das confrarias (Irmandades) ligadas a congregações religiosas - na canalização das celebrações na
sociedade baiana durante os séculos XVIII e XIX brasileiros. Durante a época colonial, a religião
havia constituido o eixo determinante em torno do qual articulavam-se os outros domínios da vida
social no Recôncavo (entre outros, sobre Pernambuco Freyre 1977; sobre o Recôncavo, Hutchinston
1957). Nas cidades, as hierarquias sociais podiam ser lidas através da hierarquia das igrejas: as
igrejas matrizes destinadas às elites brancas locais e suas irmandades, articuladas em torno dos
conventos das ordens religiosas da época - principalmente os conventos ligados à ordem dos
Franciscanos; as igrejas secundárias eram destinadas às pessoas médias e suas confrarias, e, na
periferia, onde habitavam principalmente os negros e os mestiços, as capelas destinadas aos pretos
assim como a suas associações religiosas (Reis 1991). No mundo rural, cadaplantation tinha sua
própria capela com seu próprio capelão. Os ricos senhores mandavam construir, às suas custas,
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

esplêndidos templos, cuja beleza e magnificência somente se igualava à extravagância da manifestação


de sua fé. A cidade de Cachoeira traz ainda, em nossos dias, as marcas profundas da articulação do
social e do religioso, fundadas sobre as hierarquias sócio-étnicas da época. No centro da cidade, a
igreja Matriz e a igreja do Convento, contígua ao Convento franciscano, o Convento do Carmo ( o
qual tornou-se hoje o principal hotel da cidade); as outras igrejas de segunda ordem eram distribuídas
nos cinco bairros residenciais da época, enfim, as igrejas dos pretos, tais como a Nossa Senhora do
Rosário dos Pretos, a capela Cosme e Damião, as quais, a exemplo das outras igrejas, assentavam as
irmandades dos negros.

3_Segundo os descendentes da casa de Dona Conceição, as cerimônias consagradas a São Benedito


e a Xangô constituem dois momentos de um mesmo processo. O primeiro momento consiste numa
cerimônia de ação de graça, inspirada no catolicismo popular, em homenagem a São Benedito pelas
proteções concedidas à família. Esse tipo de celebração é muito divulgada entre as famílias de
diversas camadas sociais em Cachoeira. Esse primeiro momento é essencialmente público, na medida
em que ele reúne, em torno do Altar, devotos católicos, parentes ou não. Esse lado católico dessa
manifestação familiar assume o aspecto público da posição da família no mundo social no qual ela
está inserida. Veremos mais à frente, que para realçar este aspecto público, os agentes solicitaram a
participação (cotização) dos vizinhos - a esmola - especialmente de todos os devotos de São
Benedito. A cotização dos habitantes do bairro garante o investimento destes na organização e na
realização da festa como sendo, ao mesmo tempo, uma festa familiar e pública.
Nos bairros estudados, as festas de família organizadas em torno dos Santos da Igreja Católica
- São Pedro, São Cosme e Damião, São Jerônimo, Santo Antônio; etc - e em torno dos Orixás
familiares, mobilizam as pequenas casas ou os grupos familiares economicamente pobres em torno
dos grupos familiares relativamente importantes (casas ou configuração de casas) aos quais elas são
estruturalmente subordinadas. Suas contribuições financeiras, por menores que elas sejam, acrescidas
de sua efetiva participação na organização e realização das festas, são traduzidas pelos agentes em
termos de devoção ao Santo em questão. Não é dado a toda família realizar a festa de seus sonhos
em honra de seu Santo protetor e de seus Orixás; pela sua participação, as famílias mais pobres dão
uma procuração àquelas que são melhor posicionadas na configuração social local. A divisão entre
.o aspecto aberto (público) e o aspecto oculto (secreto) por mim descrita no caso dos descendentes
de Dona Conceição é comum a todas as cerimônias das festas de família nos bairros estudados.
Insistindo sobre as variações significativas dessas práticas festivas entre os agentes, eu tento aqui
recuperar um modelo de organização das festas de família (o dos descendentes de Dona Conceição)
que, segundo as entrevistas e as repetidas observações que fiz no decorrer dos anos 1993 - 1995,
pareceu-me ser o mais englobante e o mais comum entre os agentes.

4. Como foi mencionado no capítulo 11,'em cada casa há um Oratório, assento dos Orixás e dos
Santos dos agentes, na ocasião da festa de São Benedito/Xangô, os agentes o decoram com flores e
outros sinais decorativos, segundo o gosto e o tom dos Orixás venerados. Desde o primeiro dia da
novena - 9 dias precedentes aos três dias de festividade - os agentes mantêm nele uma lâmpada
constantemente acesa; durante os três dias festivos nele são depositadas as oferendas .

5. Foram reservados lugares particulares para esses personagens. Trata-se de cadeiras
significativamente altas, tiradas da sala de jantar e colocadas à esquerda e à direita, imediatamente
após a posição de Dona Elma e de Dona Clice. Bem em frente deles, é fixado um ventilador muito
barulhento, que se recusava a fazer circular o vento em outros sentidos.

6. Os pais e mães de santo, dignitários do candomblé, jamais presidiram as cerimônias de Xangô ou


de São Benedito, na família de Dona Elma. Para os descendentes de Dona Conceição, a festa de
292
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Xangô/São Benedito, não é considerada como uma festa católica ou de candomblé. Ela é uma festa
dos protetores da família, e os rituais são feitos em família, segundo a tradição familiar. Por outro
lado, durante a cerimônia secreta, somente os iniciados nos segredos da família podem presidir aos
rituais. Pode acontecer que um dos membros da família seja um pai ou mãe de santo. Se lhe acontecer
então de dirigir a cerimônia, ele o fará segundo o ritual estabelecido pela tradição da família e não
por seu terreiro ou por aquele ao qual ele é filiado.

7. Essa sobrinha de Dona Elma é uma filha de Santo que obtém regularmente a autorização de seu
patrão para ir prestar homenagem a seu dono de cabeça, seu Orixá, num dos mais importantes
terreiros de candomblé de Cachoeira, situado num bairro vizinho ao bairro #3. Essa mulher, cujos
dois filhos vivem na casa de Dona Elma, se considera como sendo o "fer de lance" de seu patrão: ela
se ocupa ativamente de organizar as "sorties" (ou consultas de búzios) para seu patrão junto a seu
terreiro ou fora; ela é responsável pelo assento dos Orixás de seu patrão, ela organiza os "serviços"
- recepção ao dono de cabeça de seu patrão - enfim, ela serve como traço de união entre o
universo de seu patrão e o universo da magia dos negros, não somente em Cachoeira, mas também
no Recôncavo. Por outro lado, ela é um personagem chave para seu próprio terreiro, pois uma boa
parte da receita (contribuições) de seu terreiro vem de sua parte.

8. Seu Paulo é o mais velho entre os filhos, ainda vivos, de Dona Conceição. Mas sua posição nessa
cerimônia é subordinada às de Elma e Clice. Clice é subordinada a Elma nos aspectos "católicos",
portanto públicos, das cerimônias, e Elma, por sua vez, é subordinada a Clice nos aspectos mágicos
ou secretos da cerimônia, como veremos mais à frente.

9. Eu nomeio "equipe" ou "grupo" de trabalho, um grupo informal (de 3 ou 4 pessoas), designado


para efetuar determinadas tarefas domésticas. Eu discuto o modo de recrutamento dessas pessoas
mais à frente.

10. Dona Conceição era parteira. Entre 1957 e 1981, data de sua morte, ela foi a principal enfermeira,
.médica e parteira do bairro.

11. Cativeiro remete ao tempo da escravatura ou da semi-escravatura que perdurou por muito
tempo, cerca de meio século após a abolição oficial da escravatura.

12. Uma lei brasileira de 1871 concedia a liberdade aos filhos nascidos a partir deste período. Fora
algumas raras excessões, esta lei, de fato, por diversas razões, nunca foi executada .

. 13. A exemplo da herança de Nossa Senhora da Boa Morte.

14. Uma das vantagens insubstituíveis do estudo das relações familiares pelas celebrações, é que
estas últimas constituem um meio privilegiado de observar a encenação dos mitos e símbolos familiares
em-plena-transformação no processo de sua reapropriação individual. Resulta deste procedimento,
uma concepção situationnelle dos símbolos e das celebrações segundo a qual, os sentidos só podem
ser restituídos aos objetos e aos agentes na situação na qual eles se constróem ou se reconstróem.
Além disso, o estudo da celebração permite redimensionar a construção da vida cotidiana
entre os agentes numa determinada configuração. Pela celebração, pode-se abordar o processo pelo :
qual os agentes verbalizam suas experiências individualizadas da celebração. Pela formulação posterior
da experiência da celebração, os agentes reorganizam suas posições na configuração e manifestam
os níveis conflituais que a organização da festa, ou a própria festa, tentara dissimular, em nome da
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Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

união, da família, da comunidade, etc. Turner (1982: 19) chama "meta-experiência", a esse processo
de verbalização da experiência da celebração: "1 call it 'meta-experience' because celebration distills
ali other kinds of experience to draw out the part that is essential to each of them".

15. Do século passado ao início deste século, os alemães que habitaram o município de Cachoeira
haviam investido muito nas plantations e nas fábricas de tabaco. Cachoeira, por causa do declínio
do açúcar, havia entrado em cheio na economia do tabaco, que empregava mais de 80% de
descendentes de escravos. As fábricas Danneman, Suerdick e Dacoin - espalhadas em outros
municípios do Recôncavo - especializaram-se na produção de charutos. As empresas alemães
atingiram seu apogeu entre 19~0 e 1940, quando o Brasil, pressionado pelos Estados Unidos e
Inglaterra, foi forçado a romper suas relações diplomáticas com a Alemanha nazista. Sabe-se que
essas plantations seriam, em seguida, substituídas, no decorrer dos anos 50,. depois reconduzidas e
substituídas de novo, em virtude das conjunturas do mercado internacional (ver capítulo I).

16. O encontro de parentelas (eu uso aqui o termo parentela como conceito analítico, a exemplo de
Lewin 1987 ou Wagley 1968) entre cachoeiranos tradicionais e das classes médias durante as festas
ciclicas; tal como a de São João, traduz-se numa regularidade ritual. Eu tive a oportunidade de
participar, durante 3 anos seguidos, de encontros de duas famílias importantes de classe média -
meu status de estrangeiro havia me valido o direito de observador-convidado. Esses encontros
ocorriam principalmente entre parentes, amigos íntimos e convidados especiais. Eles reuniam "ramos"
(os agentes das classes médias pensam a família sob a forma de uma árvore, a exemplo das famílias
estudadas por Hellen K. Woortmann no sul do Brasil; Woortmann, s/d) de toda a região e mesmo do
Rio e de São Paulo. Por ocasião destas celebrações, encontrava-se personalidades (convidados
especiais) muito importantes da cidade. Era a ocasião para essas autoridades renovarem seus laços
com famílias julgadas importantes e que habitam as cidades consideradas como centros de decisões
econômicas e políticas; para os agentes familiares, tratava-se de verificar em que medida suas bases
locais são mantidas firmes e consolidadas. Há diversas leituras possíveis desses tipos de celebração
entre os membros de uma mesma família de classe média ou da elite, que não tinham nada de
religiosas,. mas totalmente sociais. Trata-se de uma celebração da família enquanto força sócio-
econômica, enquanto arma de negociações poderosas aos olhos dos aliados locais. A disposição dos
objetos rituais em torno da própria festa, parecia ser arranjada para "seu" (a cidade, o público, os
vizinhos) "en mettre plein Ia vue": as famílias que vêm do Rio e de São Paulo, alugam seu carro em
Salvador,. cada uma por sua conta; os amigos convidados de Salvador, de Cachoeira ou São Félix,
vêm também de carro, e o resultado é um engarrafamento de carros estacionados por todo o bairro.
As ruas podem ficar parcialmente bloqueadas durante toda uma noite, sem que ninguém (autoridade
policial ou outras) venha perturbar a ordem da festa. Poder obstruir toda uma rua é um sinal de
poder da família em questão, é um motivo de admiração para quem passa pelo local. No interior da
casa, os anfitriões se apressam em vos dizer que fique à vontade, mas a etiqueta das vestimentas, as
decorações minuciosas e a auto-censura sugerem que acabamos de penetrar numa casa - leia
família - tradicional. Então toda uma história é contada, recontada pela enésima vez: sobre os
Viscondes do século passado que moraram no bairro ou na casa, sobre um membro da família que
era muito conhecido da corte da princesa Isabel, sobre os antepassados que fizeram seus estudos na
Europa, sobre as condecorações obtidas pelos membros da família nas academias exteriores, ou
após a guerra contra os colonos holandeses, sobre os objetos rituais familiares, discretamente -
mas evidentemente - expostos para captar a vista e a imaginação, enfim,. tudo aquilo que ajuda a
confirmar, aos olhos dos visitantes, e convencer, aos próprios agentes, da legitimidade da posição da
família na configuração social da cidade. Mas ainda, os agentes familiares têm em conta, com uma
delicadeza e uma modéstia bastante afirmada, de seus títulos acadêmicos, pelas designações acidentais
e recíprocas; do mesmo modo, a importância das alianças que eles realizaram era posta em evidência:
294
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

as famílias dos aliados que moram em São Paulo e Rio de Janeiro, "saltavam" de uma posição social
à outra. Os agentes invocavam com uma ternura -lembrando uma infància que eles não viveram -
as pequenas histórias dos bairros residenciais onde eles habitam há uma dezena de anos; eles contavam
entre si, sobre os olhares ávidos dos convidados, as fofocas sobre as personalidades importantes -
geralmente prefeitos, deputados federais, governadores ou secretários de estado ... enfim, o mundo
político - das quais seria impossível ler nas colunas sociais dos jornais. Depois vinham as brincadeiras
das turmas, da vida cotidiana de seus filhos pequenos ou seus bebês; em seguida, eram as "lições"
sobre os restaurantes, os pratos deliciosos que podia-se saborear, digamos no restaurante X, os
chopinhos na Garota de Ipanema, da moda, dos carros e outros objetos de consumo ... Todas essas
conversas, esses arranjos de objetos familiares, essas recomposições da história e histórias, essas
experiências reconstruídas, essas discrições evidentes, constituem um conjunto de símbolos, uma
linguagem codificada que disputa ou mantém posições hieráquicas na comunidade, na família.
O encontro entre parentela nas classes médias, é também uma celebração da aliança entre "a"
família que a organiza e as forças sociais simbolizadas pelas personalidades importantes que são
convidadas. Durante esses encontros, os agentes familiares "trabalham" gentilmente seus contatos,
suas "defesas" ou, em certos casos, seus "peões" no tabuleiros sócio-político e econômico da região.
Se,.na sociedade do século XVIll e XIX, a demonstração da posição social passava pela demonstração
e pela manipulação da fé através das irmandades, através das festas em honra aos Santos Padroeiros,
para os agentes das classes dominantes locais, hoje em dia, a festa de São João constitui um pretexto
para a reinvenção dos laços sociais e da negociação das posições na sociedade dominante, pela
invocação e exibição dos sinais modernos de pertencimento a uma posição social superior (exibição
de carros, invocação das relações políticas, menção aos diplomas acadêmicos, elogios ao bairro de
residência, manifestação de intimidade com personalidades importantes das grandes cidades, exposição
de conhecimento da moda e dos objetos de consumo, distinção do modo de vida dos filhos, etc). A
festa apresenta-se então aos olhos dos agentes como um momento flutuante, frágil, de
reposicionamento das relações de força: um momento de trégua (que, nesse contexto, é de fato o
pior momento da guerra).

17. Tomei como ilustração etnográfica, nesse capítulo, dos grupos familiares situados ao centro da
configuração de casas dos descendentes de Dona Conceição. Em contrapartida, eu descrevo nessa
nota, paralelamente a essa leitura e conforme a divisão arbitrária mencionada na nota anterior, um
outro modo de organização da festa familiar, que revela, no fundo, um outro modo de agrupamento
dos agentes em torno da ideologia familiar, tomando como exemplo grupos familiares agrupados em
configurações em torno de um terreiro de candomblé.
O terreiro de mãe Linha é um dos mais importantes de Cachoeira. Seu lugar, no centro do
bairro #3 é tão central que constitui, a partir da configuração de casas das quais ele é o centro, a
principal referência pela qual os habitantes do bairro constróem suas percepções, constratantes
entre o povo da mãe Linha e os outros. A disposição topográfica das casas forma duas filas paralelas,
estreitamente alinhadas umas ao lado das outras, ocupando toda uma ruela do bairro #3. Essas
casas, a exemplo do bairro # 1, são habitadas por parentes/família de sangue de Dona Linha (76), da
qual Zr(51) Z?;(47)ZIC- casa C, -lhBt (63), lhBtW, lhBtc - casa C:)-lhBz(?) lhB?;W,Y2Bzc-
casa C, - (ver ilustração) oupor consideração - aliados (Cb), adotados, as mulheres dos filhos de
seus irmãos e seus filhos (Ca, Cc}, A composição dos integrantes da casa de Dona Linha, casa
central da configuração, se apresenta da seguinte forma: (Mãe Linha = Ego; A = Afilhada de Ego, f
ou m = sexo) Ego Zls Bzs BLD B1Ds B1Dc lAf 2Af:

C1 C2 C3 Ca Cb Cc

A casa de Dona Linha, que faz parte do complexo do terreiro de candomblé, situa-se num
espaço quadrado, similar àquele da casa de Dona Elma, descrito no capítulo II: os três quartos de

-
295
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

dormir são justapostos uns aos outros, à esquerda, estando a sala de jantar, à direita. Atrás da casa
principal situam-se os quartos dos outros Orixás, a casa dos caboclos, o quintal e a mata. O quarto
contíguo ao principal é consagrado exclusivamente ao assento de Iemanjá, o Orixá da família da
qual mãe Linha é guardiã da tradição. Com sua morte, segundo sua própria afirmação, virá aquela
ou aquele que Iemanjá escolher (fala-se de sua irmã Zi) para perpetuar a tradição. Em conjunto com
as casas de suas irmãs (C e de seus meio-irmãos (C2 C), a casa de Mãe Linha constitui o cerme da
j
)

configuração familiar. Ela- & uma espécie- de- easa- piv& {sobre- esse- conceito, ver capítulo IV) na
configuração que cristaliza, ao mesmo tempo, a memória familiar, a perpetuação da tradição, a
convergência dos lugares de referência dos agentes na qual Mãe Linha é a expressão incontestável
da autoridade da linha. Em torno desse lugar central agrupam-se, a distâncias iguais (de consideração)
com relação à Mãe Linha, e em posições conflituais com relação às casas CI' C2 e C3, as casas Ca, b
e c.
Num terceiro nível, a configuração de casas de Mãe Linha agrupa também, pela iniciação e
integração no cotidiano do terreiro, agentes e grupos familiares (8 casas) economicamente muito
desprovidos. Nas representações desses agentes, eles se consideram como sendo membros, de caráter
permanente, da configuração. Eles constituem, junto com o grupo de parentesco bio-social de Mãe
Linha, um parentesco espiritual dos irmãos de santo, (Silverstein 1978). Nesse nível de agrupamento,
os agentes são hierarquizados, em função das regras rituais e do princípio da antecedência, mas
também em função de suas posições na configuração do poder no terreiro. O estudo detalhado dos
mecanismos de funcionamento dessa configuração, permite ter uma idéia sobre a construção das
posições de poder ao seio do terreiro e, sobretudo, sobre o papel central da linha bio-social no
.controle dos recursos, o das posições chaves do sistema ritual, da importância das alianças entre
"espiritualmente próximos" (entre descendentes de Mãe Linha e filha de santo) de modo que a
transmissão do poder religioso se confunde com a transmissão da herança familiar.
A configuração de casas na base do terreiro de Mãe Linha apoiar-se numa representação bio-
social do parentesco e da descendência. Ela constitui o núcleo, cujos componentes são
hierarquicamente distribuídos e estruturalmente contidos, a partir do qual se contrói o grupo de
parentesco espiritual. A integração dos indivíduos ou dos grupos familiares na configuração significa
para estes últimos uma ruptura em dois movimentos: L) a redefinição de suas representações e de
suas relações com seu parentesco bio-social; 2) a reconstrução de si, através da reapropriação do
parentesco espiritual. O primeiro movimento implica numa redefinição completa de seus próprios
mitos e lendas familiares, de seu parentesco bio-social; o segundo movimento consiste na reinvenção
da família pela apropriação dos mitos familiares fundadores do parentesco espiritual no terreiro que
é, de fato, uma reconstrução do parentesco bio-social de Mãe Linha.
A família de Mãe Linha veio também ao mundo pela mulher. O antepassado fundador da
família (MMM) seria uma grande dignitária de sua "nação", venci da pelo tráfico e pela travessia, ela
seria transportada ao inferno colonial, pois, desde sua chegada, fugira com um fugitivo que habitava
a casa dos caboclos. Na casa dos caboclos, ela teria dado a luz sua filha única (MM) que também
não teria conhecido a escravatura. Ela teria recebido e transmitido os segredos da família e de seus
ascendentes à mãe de Mãe Linha. Sua mãe teria lhe transmitido então a guarda de Iemanjá, e os
caboclos, Orixás da família, que ela deverá,por sua vez, transmitir à geração seguinte. Eu voltarei,
no decorrer deste capítulo, sobre o poder dos mitos familiares na constituição da família como lugar
de reconhecimento e de reinvenção de si e do nós.
No Oratório de cada uma das casas participantes da configuração de casas de Mãe Linha, os
agentes consagram um espaço hierarquicamente imponente à Iemanjá, o Orixá da família e a seus
Orixás particulares. Enquanto que, aos olhos dos agentes parentes/familia de sangue, a festa de
Iemanjá, celebrada anualmente no terreiro, corresponde a uma festa da família, representada como
linha de descendência bio-social, para os adeptos do terreiro, os membros dafamília de santo, é a
festa dafamília como comunidade espiritual. Na diferença das celebrações abertamente articuladas
296
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

em tomo do parentesco bio-social, as celebrações de Iemanjá do terreiro são anualmente programadas,


graças aos suportes econômicos das redes sociais articuladas em tomo do parentesco espiritual, e
aos membros que fazem parte, em diversos graus de proximidade, dafamília de santo e suas redes.

18. A memória dos agentes relata muitos incidentes do tipo "envenenamento", "intoxicação"
intencional do alimento, "excesso" de condimentos (sal, pimenta, pimentão) de modo que as comidas
sejam completamente incomíveis. Esses incidentes trazem com eles lutas de família no interior de
uma configuração, entre as casas e mesmo dentro das casas; eles trazem também lutas entre vizinhos,
próximos e afastados. A festa, em princípio aberta a todos aqueles que são considerados como
parentes ou não, pelo que ela representa. aos olhos dos agentes, pelos enjeux dos quais resulta sua
organização perfeita, é percebida por estes últimos como sendo, ao mesmo tempo, um momento de
demonstração de força e um momento de abertura ao mundo, extremamente frágil. A festa inverte a
ordem cotidiana da casa e da divisão do mundo dos agentes entre o aberto e o fechado, o público e
o privado, o próximo e o afastado, a mata e a casa, a casa e a rua, o conhecido e o desconhecido. Em
princípio, a festa é uma porta aberta para o mundo; ela é a celebração da troca, e a cozinha, o
alimento, é o elemento principal graças ao qual o acontecimento é realçado, e, ao mesmo tempo, a
própria matéria de reificação da troca. A cozinha constitui um meio excelente pelo qual as lutas
familiares podem encontrar suas mais trágicas expressões.

19. No momento de depositar os pratos de oferendadiante do assento do Encantado, o agente, após


ter aberto a porta, avança, recuando, até cerca de 1 metro de distância do lugar sagrado, depois, ele
as deposita dizendo bem alto que esses pratos são oferecidos ao Encantado como agradecimento
pelos beneficios concedidos aos membros da família; em seguida, sem olhar para trás, ele retoma
por onde ele entrou.
Em baixo da árvore consagrada a Xangô e a seus escravos - espíritos pouco evoluídos a
serviço das forças benéficas e maléficas - os agentes depositam a mesma oferenda, mas disposta de
maneira diferente, com cachaça e champagne. O lugar é bem guardado, durante os três dias e as três
noites, para que as crianças e os animais não se aproximem.

20. Foi às 4 horas da manhã que a matança começou. Três animais foram simbolicamente colocados
no ritual: um carneiro, um galo, uma galinha. Os animais estavam todos amarrados sob a árvore
repositória de Xangô e seus escravos. Foi lá, sob a árvore repositória, que Dona Clice, vestida de
vermelho como os outros membros adultos da família, iniciou os ritos que anunciavam o sacrificio
dos animais. Após ter traçado sinais no próprio solo com um punhado de cinzas e efetuado os ritos
apropriados, ela ordenou ao matador que lhe apresentasse os animais a abater, um após o outro;
sobre cada um deles, ela traçou, com cinzas, os sinais que consagram o animal como oferenda;
depois ordenou ao matador que lhes abatesse, segundo o ritual apropriado. As aves e a cabeça do
carneiro foram depositadas sob a árvore repositória, aguardando que Dona Clice fizesse delas os
pratos consagrados às divindades.

21. Segundo a tradição, tudo aquilo que é consagrado à festa; alimento e bebida, só pode ser servido
ao grande público, incluindo os membros da família, após ter sido servido o Encantado da família-
Xangô - e após ter sido liberada a roda.

22. E iara raé, o grito da nação.


297
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Observações conclusivas

Seria o discurso sobre a cultura inevitavelmente marcado de perversão? A perversão intrínseca

ao enunciado, ou ao silêncio, a respeito da especificidade dos sistemas de sentidos e práticas familiares

associados a uma categoria de pessoas determinadas (os negros nas Américas), vem do fato de que

a diferença e a identidade participam da .diversidade das configurações de relações de dominação

sócio-étnica nas sociedades pós-escravagistas das Américas. Vista sob este ângulo, a abordagem

cultural da família levou, em grande parte (senão necessariamente), a uma forma de essencialismo e

de estereotipia. Construir as relações familiares entre os "negros" ou "mestiços de negros" das

Américas nas ciências sociais, fora das fronteiras do Brasil, consistiu, por muito tempo, numa

elaboração erudita sobre as especificidades que sancionariam os atributos de um grupo historicamente

instituido nas fronteiras da natureza e da cultura. Essa construção da família afro-americana foi

tributária de uma visão antropológica da cultura como sistema unificado e estável, cujos valores

seriam partilhados por todos os agentes que nela estão imersos. As marcas culturais determinariam,

segundo esta visão, os tipos individuais, a exemplo das marcas biológicas: seria suficiente ser "negro"

das Américas e casar "negro", para que a família resultante dessa união participasse de um sistema

sócio-cultural típico da "família negra". Mas a perversão não é própria apenas ao enunciado. Ela é

também constitutiva do "silêncio", quando este ( ...). A partir do contexto estudado no Recôncavo

da Bahia, é possível afirmar que o enunciado e o silêncio constituem as duas faces de uma mesma

moeda. Eles circunscrevem representações particulares (contextuais) da problemática do igual e do

diferente, numa ordem de dominação sócio-étnica e racial. A questão da, família negra, em sua

formulação (fora do Brasil) e sua negação (no interior do Brasil), participa do contexto de relações

no qual o negro é definido. A família negra é relacional.

Criticando, ao longo deste texto, o conceito de família negra - tal como traduzido na

literatura sobre as práticas familires dos "negros" nas Américas - posicionei-me contra esta reificação,

inevitável a toda pesquisa antropológica cuja finalidade encontra-se na diversidade cultural per se.
298
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Propondo urna abordagem concreta de uma configuração da posição dos negros na hierarquia sócio-

étnica local e regional (o Recôncavo da Bahia), e mostrando as lógicas que sustentam a produção e

os usos sócio-culturais dos laços familiares e de parentesco entre os agentes do meio estudado,

apliquei-me em demonstrar o quanto o silêncio sobre os modos locais de produção da diferença,

obstruiu os efeitos concretos dos mecanismos sociais e políticos que reproduzem e mantém a exclusão

de uma categoria de pessoas, definidas em termos de estigmas sociais.

A fim de produzir uma análise das significações sociais e culturais desse contexto hierárquico

particular, no qual os agentes em questão produzem seu cotidiano familiar, apliquei-me a elaborar

um sistema de questões articulado em torno de três níveis. 1) Um nível conceitual, no qual discuti a

constituição do tema da família das classes populares nas ciências sociais brasileiras, assim como os

enjeux da ausência de discussão sobre as práticas familiares dos negros no mundo acadêmico brasileiro

(introdução e capítulo lII). 2) Num nível propriamente empírico, propus um estudo concreto das

práticas familiares entre os negros e mestiços de negros do Recôncavo; na perspectiva de por em

diálogo, por um lado, fatos empíricos com as representações dos agentes, as contradições e as

articulações entre as idéias dominantes de família e de parentesco, e os sistemas de práticas, nesses

dominios de relações sociais, e, por outro lado, as construções analíticas da literatura clássica e

regional sobre o tema (capítulos II, fi e IV). 3) O terceiro nível é implícito aos dois níveis anteriores:

ele consiste no questionamento dos meios de evitar as duas formas de reificação que marcam a

discussão sobre as práticas familiares em meio popular: a reificação pela classe e a reificação pela

etnicidade. Em outras palavras, sugeri que uma abordagem construtivista conduz melhor à construção

universalista da idéia de família que as démarches essencialistas criticadas neste texto.

A construção analítica desse objeto de pesquisa, segundo a perspectiva por mim endossada

neste trabalho, foi elabotada adotando-se uma postura dialógica', relacionando as categorias

intelectuais da sociologia/antropologia com as categorias dos próprios agentes em questão. Em

termos "harrisianos", eu pus em diálogo o que, epistemologicamente, pode ser traduzido na oposição

(arbitrária) entre emic et etic category (Barris 1968; Harris et Pikes in Headland 1990) entre o

cognitivo e o operacional; entre os pontos de vista generalizantes de fora e os pontos de vista


299
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

particulares e de dentro; entre a objetividade conceitual e a subjetividade das experiências; entre

valores/normas e comportamentos'. No contexto estudado, parti da tese segundo a qual os patterns

sócio-culturais que informaram e geraram a ordem sócio-racial no Brasil (o branqueamento e a

democracia racial) configuram, em sua performativité, as lógicas implícitas à produção e aos usos

dos laços familiares ede parentesco. A partir desta tese, a postura metodológica apropriada a essa

pesquisa consistiu em tomar como premissa a necessidade de uma etnografia da construção social e

cultural das formas de organização social, assim como das relações sociais que as criam e as situam,

como ponto de partida de toda a análise da experiência familiar no meio estudado.

Para ilustrar minha tese, parti da categoria cultural de casa como lugar de construção, de

reinvenção dos modos de relações sócio-étnicas em curso na comunidade. A casa, como mostrei a

partir do trabalho etnográfico.apropriada como categoria de análise social e cultural, e como categoria

nativa, dá conta das interrelações entre as pessoas que a habitam e que são por ela habitadas. Ela dá

conta das idéias das quais essas pessoas se apropriam, assim como do mundo concreto no qual elas

interagem. A casa, tal como a construí neste trabalho, traduz e relaciona o umwelt dos agentes e as

relações sociais que o criam e o recriam (capítulos 11,IV e V).

Partindo deste conceito, e, ao mesmo tempo, como categoria emic et etic central na produção

dos corpos e do imaginário, no contexto da sociedade local, foi possível avançar com a questão

central que atravessou toda a tese: como, num contexto de dominação sócio-racial- contexto que

qualifiquei como "situação extrema" - os agentes interiorizam suas condições no espaço familiar

(através da construção de seus corpos como lugar de confrontação, de auto-negação e de negociações

de si), e transmitem, enquanto corpos estigmatizados pela sociedade dominante, suas heranças, por

práticas familiares, através e afora seus estigmas? Com efeito, a etnografia mostrou o quanto o

espaço familiar é atravessado pela ideologia pública do branqueamento, da democracia racial e da

mestiçagem por um lado, e, por outro lado, pela constância das práticas discriminatórias. Como

mostrei nos capítulos IV e V, os domínios da família e do parentesco constituem eixos centrais

graças aos quais os agentes confrontam, regularmente, o sonho da sociedade igualitária (postulado

pela retórica da democracia racial) e os enjeux sociais da descendência no momento das negociações
300
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

matrimoniais.

Assim, a partir da categoria cultural de casa, eu pude, analiticamente, dar conta das práticas.

familiares e do parentesco (assim como das relações e representações que elas implicam) como

processos sociais e culturais, quer dizer, das relações captadas numa configuração de lugares sócio-

etnicos, num sistema de relações hierarquizadas, inscrito numa continuidade cultural que tem sua

matriz social inaugurada nas plantations de açúcar (Drummond 198.2}. É nesse sistema complexo,

marcado pela história, que são produzidos e jogados os enjeux (complexos) das relações familiares

e de parentesco no cotidiano entre os negros no nordeste do Brasil, dos sistemas das plantations aos

bairros periféricos das cidades.

A diferença e a identidade são relacionais. Elas supõem mecanismos de absorção, de

marginalização, de adiamentos e de rejeição social. A diferença e a identidade se definem sempre em

contextos especificas de relações de dominação, mediatizadas por instituições sociais e culturais,

por sistemas de valores veiculados pela sociedade global enquanto entidade historicamente construída

e concretamente diversificada. Pelo estudo das práticas sócio-culturais diversificadas em meio às

classes dominadas, pela consideração dos contextos" sócio-étnicos do funcionamento dessas

instituições e desses sistemas de práticas, torna-se cada vez mais possível se desfazer da ambivalência

e da perversão próprias aos usos da cultura e da etnicidade nas práticas sociais, culturais e políticas

dentro de uma sociedade.

Partir do diálogo entre o emic e o etic tomando como foco a casa, remete a rupturas

necessárias e a tomadas de posição inevitáveis. Escolhendo trabalhar a partir das articulações entre:

casa, família, parentesco, aliança, descendência ..., endossei debates sobre a construção social dos

modos de construção intelectual da família das classes populares. A formação da família dos pobres

no discurso das ciências sociais no Brasil, corno em todos os lugares, não é isenta de determinações

sócio-históricas. A palavra família, como observaram Gubrium e Holstein (1990) constitui uma

"configuration of concerns". Na linguagem deste texto, coloquei-a como uma configuração de

enjeux. Ela prefigura, desde sua enunciação, uma representação do público e do privado. Ela configura

uma relação determinada entre o público e o privado: a família é um enjeux de sociedade; ela é
301
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

também um enjeux político (Barret and McIntosh 1990).

Como prefiguração na representação pública da família - enquanto patterns coletivos - a

palavrafamília veicula com ela um poder prescritivo. Quer dizer, um conjunto de idéias, sentimentos

e práticas coletivamente reconhecidas como necessariamente participando dos sinais distintivos daquilo

que a instituição é. Em suaperformance prescritiva, falarfamília (Zonabend 1980), estudarfamília,

consistem muito frequentemente em operações que representam o estabelecimento das margens da

norma e a performance do desvio, diante de uma realidade familiar concreta. Esse poder prescritivo

das representações sociais da família, não somente guia o pesquisador, mas, muito frequentemente,

determina o tratamento por ele dado às práticas familiares concretas: ele mede, avalia, distancia-se,

sanciona, interpreta ... tendo a norma como referência.

Foi mostrado, na introdução e nos capítulos 111e IV, como a antropologia/sociologia local

encontrou-se sob a influência da norma patriarcal brasileira em torno da célula nuclear. Esta visão da

família, como mostrei, é constitutiva de uma visão inaugural da "sociedade", da "nação" no Brasil.

A esta visão da sociedade se imbrica uma concepção jurídica, que impedia de construir as práticas

familiares dos negros e de seus descendentes, como dignas da atenção antropológica e sociológica.

Ela impedia ainda de pensá-los como agentes capazes de habitar um mundo simbólico. De fato, essa

visão espalhou-se por toda a "periferia" da "sociedade", sobre as classes populares em geral.

No decorrer deste trabalho, tomei a precaução de não construir os conceitos de familia,

parentesco e domesticidade, separados de seus usos simbólicos e práticos. Eu os construí, ao mesmo

tempo, como domínios de relações sociais e como meios de organização da vida social entre os

agentes implicados em seu contexto. Como tais, as práticas familiares, domésticas e de parentesco

não podem ser tratadas, nem como puras expressões das relações próprias à organização social,

separadas da cultura na qual são imbricadas, nem como domínios culturais puros (Schneider), cujos

símbolos sejam passíveis de análise independentemente de seu contexto de localização social'. É

pensando as práticas sociais em seus próprios termos, que podemos pretender pensar o universal

das instituições humanas, das práticas e dos usos da diferença.


302
Família, Parentesco e Domesticidade entre os Negros do Recôncavo da Bahia, Brasil

Notas da conclusão

1. As características dessa ordem de relações sócio-étnicas são traduzidas na ambivalência própria


aos contextos latino-americanos em geral e ao contexto brasileiro em particular. Para Peter Wade
(1993) a coexistência e a interdependência dinâmicas da mestiçagem e da discriminação dos negros,
constituem os traços distintivos desses contextos: enquanto que, por um lado, as ideologias do
branqueamento privilegia a "branquitude", desqualificando o negro da escala dos valores positivos,
por outro lado, os ideais "de homogeneidade nacional" incluem, retoricamente, o negro como igual
ao não negro (branco ou mulato), negando a este último a especificidade de seu estatuto.
"Discrimination against blacks, and indeed blacks themselves, thus recede into background"
(1993:37).

2. Refiro-me aqui às sugestões metodológicas de Bakhtine sem no entanto negar os limites do


exercício do diálogo no contexto etnográfico. Para uma discussão sobre o tema, ver Vincent
Crapanzano "On Dialogue" em Crapanzano, 1990.

3. Uma discussão recapituladora sobre os valores epistemológicos e heurísticos das categorias emic
e etic podem encontrar-se em T. N. Headland ed. (1990).

4. Eu não ignoro as dificuldades colocadas pelos trabalhos "contextuais" no que concerne a seus
valores universais. Estou também a par dos debates epistemológicos em torno do "contextualismo"
e das implicações relativistas que ele coloca. Entretanto, é de seu uso empírico que podemos tirar
uma conclusão universalizante. É preciso primeiro situar localmente os. processos sócio-culturais
que confirmam e reproduzem os modos de dominação sócio-étnico, para poder se liberar da influência
da classe e da etnicidade. Essa viagem aos modos e mecanismos contextuais de práticas sociais é a
única possibilidade no sentido de pretender a uma certa liberação do agente. (sobre os debates
relativos aos temas de contexto e relativismo cultural, ver por exemplo Scharfstein 1989).

5. Tributária a esta discussão, como foi observado na Introdução e no capítulo Ill, seções 1 e 2, a
pesada herança do funcionalismo parsoniano às abordagens culturais (entre outros Schneider 1968;
1969; Gertz 1979) e do estruturo-funcionalismo próprio aos trabalhos latino-americanos de tradição
marxista. No primeiro caso a cultura detem sua autonomia das relações sociais, e no segundo, ela é
apenas um epifenômeno destas (mas ver discussão nos capítulos acima mencionados).
l!SV.lf! 'vIlfvf! vp 0tl1KJu9;;aiJ op sO.lJJaNso eaue epopumsetuot] a oosetutuo.] 'v!/Jwv,d
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