Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
1
Professora de Literatura Brasileira (UFPA). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras
(UFPA).
Lavo está situado no fim-começo do livro/círculo narrativo, e as palavras do
amigo compõem o interstício que traz de volta as cinzas que restaram do seu mundo. A
palavra epistolar de Mundo evoca uma abertura para o passado. Lavo é um homem
comum, aparentemente pouco empenhado, mas a aflitiva e fantasmagórica
impossibilidade da palavra que pulsa na carta de Mundo provocaria nele uma vontade
nova:
Pensei em reescrever minha vida de trás para frente, de ponta-cabeça, mas não
posso, mal consigo rabiscar, as palavras são manchas no papel, e escrever é quase
um milagre... Sinto no corpo o suor da agonia (HATOUM, 2010, p.7).
2
Entende-se sagrado na perspectiva de Giorgio Agamben, segundo a qual sagrado é aquilo que
historicamente foi subtraído ao uso comum (dos homens) através da sacralização (separação). O sagrado
como ato segregador, anti-libertador. Sobre o assunto, indica-se o texto Profanações, de Giorgio Agamben.
coragem, pois se trata de dar-se conta de que se está preso em um labirinto espaço-
temporal que se cristalizou pela certeza racional de que tudo está (e precisa continuar)
sacramentado, ordenado e hierarquizado. O beco das Cancelas é, portanto, o signo do
labirinto no qual Lavo se dá conta de que está: “Li a carta de Mundo num bar do beco das
Cancelas, onde encontrei refúgio contra o rebuliço do centro do Rio e as discussões sobre
o destino do país” (HATOUM, 2010, p.07). Mas, para sair dessa verdadeira meada de
Dédalo, Lavo precisa de estratégias alternativas, por isso faz a parada e, em seguida, o
movimento de retorno, para após disponibilizar as experiências humanas do passado para
si e para os leitores, tornando a não-história de livre uso, para que todos possam
experimentá-la, jogar com ela, apropriar-se dela, nas palavras de Agamben, profaná-la.
Assim, é precisamente pela desconexão com seu tempo e pela busca do
entendimento dos fatos fora de um racionalismo progressista militar e totalitário que Lavo
e as demais vozes por ele invocadas propõem o retorno a um tempo-espaço de
experiências humanas e socioculturais únicas. Lavo parece ter a percepção da obscuridade
de seu tempo e do retorno necessário a um tempo que tenta nos alcançar, mas que ainda
não o fez. Para fugir da captura de suas subjetividades, mergulha profundo nas
obscuridades íntimas das personagens num gesto que Giorgio Agamben denomina de
contemporâneo, um movimento simultâneo, de mirada para os dois polos do tempo, o
passado e o presente fraturado.
É algo do gênero que devia ter em mente (...) Walter Benjamin, que o índice
histórico contido nas imagens do passado mostra que estas só alcançarão sua
legibilidade somente num determinado momento da sua história. E da nossa
capacidade de dar ouvidos a essa exigência e àquela sombra, de ser
contemporâneo não apenas do nosso século e do “agora” (AGAMBEN, 2009,
p.72).
Assim, a relação com o tempo que se estabelece no romance é ambígua, uma vez
que, para construir um entendimento do presente, a narrativa volta-se para as
particularidades do passado, tomando distância, num movimento anacrônico e lento, de
se voltar para o que ficou ofuscado pelas luzes do agora, como quem faz o movimento de
pôr a mão em frente à luz intensa para poder ver melhor o que há além dela, “perceber o
escuro”, nas palavras de Agamben (2009, p.62). Assim, há no passado de Cinzas do Norte
muito do contemporâneo: os fatos geradores, o entendimento de como tudo aconteceu,
como se deu a grandeza e a decadência das pessoas daquele lugar. Pelas vozes frouxas de
Olavo, Ranulfo e Raimundo, reabilita-se, portanto, qualquer coisa que foge, a não-história
dos habitantes de Manaus, homens e mulheres latino-americanos da Amazônia, uma
história não contada, encoberta e sacramentada pelos poderes emanados dos processos
civilizatórios e globalizantes.
II
Do tempo-espaço arcaico exposto pela fenda narrativo-ficcional, estruturam-se
vozes pregressas, atraídas pela luz e pelo calor do fogo, relatam suas histórias espectrais,
demônios do passado que atravessam o portal da memória e tomam a palavra,
configurando-se como alegorias da condição humana latino-americana, pautada na
violência, na experiência histórica de cerceamento político de liberdades individuais e
dos povos, na falta de autonomia em relação a sua cultura e a sua terra, no crescimento
desordenado das cidades, nas atrocidades cometidas em nome do progresso e da
civilização, heranças mal fadadas de regimes militares totalitários.
Desse modo, para narrar a não-história encoberta pelas cinzas do passado, são
necessários três narradores: Olavo, o agregador, que para o ato da rememoração precisa
aditar ao seu discurso a vitalidade desesperada de Raimundo e a picardia de Ranulfo. No
presente texto, a abordagem centra-se sobretudo em Raimundo.
Em Cinzas do Norte, é a partir da relação desacordada do narrador Raimundo
(Mundo) com seu pai, Trajano (Jano), magnata da juta em Manaus, que se configura o
conflito central, tendo repercussão em todas as outras conexões do romance.
Assim, a relação entre Jano – que nega desde o princípio a alteridade do filho – e
Mundo pauta-se, sobretudo, em atos de tirania, intolerância e violência. Jano, como
agente centralizador e autoritário, tenta docilizar o corpo de Mundo, por meio de forte
coerção manifestada pelos comandos, pelas leis domésticas impostas (sem nenhum
interesse da parte dos demais membros da família), pelas surras, pelo cativeiro no porão.
Tua mãe percebeu que tua maior diversão era perambular na chuva e teu maior
prazer era desenhar. E tu querias ficar sozinho para fazer as duas coisas. Então
Jano te proibiu de sair na chuva, te trancava no porão e às vezes demorava a ir ao
trabalho, queria te vigiar e também vigiar tua mãe, que te libertava logo que ele
saía. Ela dizia a Jano que não havia problema em brincar na rua em dias chuvosos,
as crianças adoravam, mas Jano não a ouvia: durante os meses de inverno daquele
ano mandava um funcionário ao palacete para ver se ainda estavas no porão, e
tua mãe o expulsava aos berros: “Diz pro teu patrão que meu filho não é um
bicho”; então ele mesmo, Jano, voltava pra te vigiar, e, enquanto teus pais
discutiam, tu fugias, e tua mãe cachinava de tanto nervosismo, e o idiota do Jano
pensava que ela fazia pouco dele. Aí Macau ia atrás de ti, e teu pai te confinava
de novo no porão. Perguntavas a tua mãe por que tudo era tão escuro e por que
agora só escutavas o barulho da chuva e das trovoadas, e por que tinhas que comer
sozinho e só podias sair à noite pra ir dormir no quarto, e ela, tua mãe, não sabia
o que dizer (HATOUM, 2010, p.187).
Foi em janeiro de 1958. Antes de sair para o escritório, teu pai ordenou que Macau
e Naiá te vigiassem. Ele voltou pra almoçar e te chamou para comer à mesa;
durante o almoço tu lhe mostraste os desenhos, e teu pai, sem olhar para as folhas
de papel nem para o teu rosto, perguntou: “É só isso que ele sabe fazer?
E naquele mesmo dia (...) “Mundo quebrou a janela do porão e fugiu”. (...)
ao cruzar a Marechal Deodoro, vi uma roda de homens e mulheres e pensei:
algum vendedor ambulante, um bêbado arriado ou um acidente. Perguntei o que
estava acontecendo, um homem disse: “Um menino perdido... diz que quer
mostrar os desenhos para o pai”. Tu choravas no meio da roda e seguravas uma
folha de papel, e um talho na tua mão direita ainda sangrava, e manchava o papel
(HATOUM, 2010, p.188).
Pelas mãos do grande Patriarca, o filho deve aprender que seus projetos para o
futuro, sua vida, sua liberdade, toda sua individualidade, enfim, pertencem ao pai:
Contudo, Jano não passa de uma colagem de retalhos de outros textos sobre
homens, histórica ou miticamente destacados. Milton Hatoum não o faz um pastiche, Jano
é ele mesmo, essencialmente um pastiche, uma vez que tem no nome Trajano uma
referência ao imperador romano Marco Úlpio Nerva Trajano, que governou expandindo
o império romano e conquistando inúmeras vitórias militares, do ano 98 ao 117 d.C.,
sendo glorificado pelo florescimento do comércio e da agricultura, além do diálogo com
outras culturas. Trajano, o romano, portanto, é signo de prosperidade, força, virilidade e
sucesso, considerado por alguns historiadores como o melhor dos imperadores romanos,
enquanto que o Trajano de Manaus tem como centralidade o signo da esterilidade. Jano
não tem boa saúde, está em decadência nos negócios, não é amado ou desejado por Alícia,
sua esposa; não consegue dialogar com o filho e é enganado por Macau, seu motorista.
Por essas razões a impotência de Jano se espraia da vida profissional à social e das
relações interpessoais familiares à sua própria sexualidade, esta última, norteada, em certa
medida, pela esdrúxula relação entre o patriarca e seu cachorro de nome ambíguo, Fogo:
Fogo dormia perto da cama do casal, e Alícia não suportava isso. Quando o cão
trazia carrapatos para a cama, ela o enxotava, Jano protestava, o bicho soltava
ganidos, ninguém dormia. Então Fogo voltava, quieto e mudo, e se aninhava no
cantinho dele, forrado com uma pele de jaguatirica. Ela ia dormir no quarto do
filho. Nos últimos meses da vida de Jano foi assim: Fogo e seu dono num quarto,
e a mulher, sozinha, no quarto do filho ausente (HATOUM, 2010, p.8).
Tarde demais para tudo... mas eu tinha de contar a alguém essa história... o fim
de uma história antes do fim. A vida pelo avesso, Lavo... Ontem foi um dia
escuro, sono e exaustão, dia de olhos fechados. Hoje acordei com pouca dor, vi o
sorriso da enfermeira e lembrei de um pesadelo... mas não tenho tempo pra falar
de sonhos. Dia ensolarado, minha mão menos pesada, agora posso escrever
(HATOUM, 2010, p.226).
3
A partir da leitura de Giorgio Agamben (O que é contemporâneo e outros ensaios, 2009), compreendemos
dispositivo como qualquer objeto que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar,
interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos. Para os
interessados, indicamos a leitura dos seguintes textos: Microfísica do poder, de Michel Foucault (1979), e
O que é um dispositivo, de Giorgio Agamben (2007).
A modernidade biológica nivela tudo aos campos de concentração, o primado da
vida natural, como denomina Hanna Arendt, em A condição humana (1993), consolidado
pela decadência do espaço público e do ambiente natural:
III
Para Mundo, desde cedo fica claro que só há uma forma de se proteger contra o
emaranhado anárquico dos dispositivos de poder que tentam enredá-lo e capturar sua
liberdade individual: jogar violentamente com eles, profaná-los com seus gestos e sua
arte. Profanar, para Mundo, significa tentar recuperar o que lhe foi retirado pelo pai, pela
escola, pela política, pela economia e pela mundialização sua dignidade, suas escolhas
particulares, a liberdade profissional, a concepção estética, sua sexualidade, a
possibilidade de uma existência mais humana e menos biológica, dimensões da vida
capturadas e separadas do indivíduo, por isso tornadas sagradas colocadas no fanum
(templo) à disposição dos deuses (capital / regime totalitário). A vida se torna, portanto,
mero palimpsesto de alheias e evanescentes escrituras.
Por meio da arte, Mundo tenta ser mais forte que um mundo onde tudo é
inevitável, vertigem. Onde tudo o que é sólido desmancha no ar4, tudo é indispensável, e
nada é admissível. O artista tornado “refugo humano”5, ante às organizações burocráticas
4
Frase tomada do livro Tudo que e solido desmancha no ar: a aventura da modernidade, de Marshall
Berman (1997).
5
Em Vidas desperdiçadas, Zygmunt Bauman (2005) categoriza os seres humanos eliminados pelo processo
de globalização como “refugo humano”. Com a expansão do processo, a produção de toda a sorte de dejetos
do poder, emerge do não-pensamento e da invisibilidade, pela produção estética. Mundo
está, ao mesmo tempo, aberto às novas possibilidades estéticas de seu tempo e perdido
num imenso vazio em que se transformam sua existência e seu papel como artista, na
expectativa de criar algo de revolucionário e/ou preservar algo autêntico de sua cultura,
enquanto tudo em torno de si se torna sagrado ou se desfaz.
Não obstante o arrojo de Mundo, “a profanação não permite que o uso antigo do
objeto possa ser recuperado na íntegra, como se pudéssemos apagar impunemente o
tempo durante o qual o ele esteve retirado do seu uso comum” (AGAMBEN, 2007, p.08).
Mundo sobrevive aos “solavancos”, com o que resta de sua tessitura identitária, tentando
conferir novo sentido a sua experiência, “na vida à deriva a que se lançou sem medo”
(HATOUM, 2010, p.07). “Ou a obediência estúpida, ou a revolta”, escreve, situando-se
entre a morte (a obediência estúpida) e a liberdade (a revolta) semelhante à representação
do jovem no quadro de Jaen-Batiste Regnault, La Liberté ou La Mort, o Genius da
Liberdade, utilizada por Giorgio Agamben, no seu Profanações. Sobre a cabeça do
mancebo alado há uma intensa língua de fogo, insígnia da potência criativa, da fluência
do pensamento. Possivelmente, o fogo que alcançara Lavo, no início da narrativa, o fogo
da potência criativa de Mundo: “Uns vinte anos depois, a história de Mundo me vem a
memória com a força de um fogo escondido pela infância e pela juventude” (HATOUM,
2010, p.07). A chama também presente no campo de cruzes:
e de lixo humano ocorre em tempo real, de modo incomplacente, gerando a saturação do espaço e profunda
exclusão social.
Para Agamben, o dispositivo pode ser
Era véspera do Natal. Entrei em casa chutando a porta e dei meu esporro, falei
alto. De homem pra homem, como ele sempre quis. Toquei no medo dele, ouviu
o que não esperava: que era um impotente de corpo e alma... a Vila Amazônia
estava falida, só ele não enxergava (HATOUM, 2010, p.65).
“Receber ordens?”, repetiu Mundo, exaltado. Apontou o dedo para o pai: “Tu
podes dar ordens para o teu cachorro e para os teus empregados. Eu não recebo
ordens” (HATOUM, 2010, p.54).
Nesse sentido, sua arte é a atividade lúdica pela qual faz uso particular da imagem
arrogante do pai. Um exemplo disso é a obra intitulada História de uma decomposição –
Memórias de um filho querido. Na narrativa, este trabalho é uma composição que transita
entre o grotesco6 e a ironia, na qual o artista utiliza roupas e objetos do pai dispostos de
tal forma a fazer desaparecer a figura mítica paterna:
Não tem amigos no bairro, nem fez amizade na escola. Sei por que ele quis sair
do Pedro II. Tirava notas boas, mas a disciplina atrapalhava a mania dele. Queria
passar o tempo todo desenhando. É um vício, uma doença... (...) Quero que
Mundo ande por aí e largue essa mania de desenhar, desenhar... “Nenhum livro
de matemática nas estantes. Só arte, poesia... Pior ainda: nenhuma fotografia de
mulher, a não ser a da mãe. Meu filho não pode continuar assim.” (HATOUM,
2010, p.16).
Meu amigo ria sozinho, e já cambaleava quando largou a moça e agarrou outra,
depois duas, uma de cada lado, apontando a barriga do coronel e gargalhando. O
tenente Galvo segurou com força os braços de Mundo: “Não é assim que se
brinca, rapaz”. “As putas gostam”, gritou Mundo, arrotando na cara dele. (...)
6
Para investigação mais precisa sobre o elemento grotesco em Cinzas do Norte, indica-se o texto Efeitos
do grotesco em Cinzas do Norte, de Milton Hatoum, da professora Tânia Sarmento-Pantoja (UFPA).
Ainda babando, esticou os braços e deu um cotoco com as mãos apontadas para
a cabeça de Zanda. O coronel deteve o ajudante de ordens e cravou um olhar sério
em Jano (HATOUM, 2010, p.32).
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo,
2007.
AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro
Honesco. Chapecó: Argos, 2009.
ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária 1993.
AVELAR, Idelber. Alegorias da derrota: a ficção pós-ditatorial e o trabalho de luto na
América Latina. Trad. Saulo Gouveia. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
BACHELARD, Gaston. A Psicanálise do Fogo. Trad. Maria Isabel Braga. Lisboa: Litoral
Edições, 1989.
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
BERMAN, Marshall. Tudo que e solido desmancha no ar: a aventura da modernidade.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
CASTILO, Luís Heleno Montoril del. Milton Hatoum: técnicas de retorno e alegorias da
história pós-ditatorial. In: ERIK SCHØLLHAMMER, Karl e SARMENTO-PANTOJA,
Tânia (Org.). Memórias do presente. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2012.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 2013.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
LEVI, Primo. É isto um homem?. Trad. Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
MOTTA, Sérgio Vicente. O engenho da narrativa e sua árvore genealógica: das origens
de Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. São Paulo: EDUNESP, 200.
SARMENTO-PANTOJA, Tânia. Efeitos do grotesco em Cinzas do Norte, de Milton
Hatoum. In: Anais do SILEL. Volume 2, Número 2. Uberlândia: EDUFU, 2011.