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) QUALIDADE EM SAÚDE
Helena Gonçalves'
Ivo Domingues"
Sistemas de Saúde
o desenvolvimento de uma sociedade mede-se pela atenção que lhe merece o bem-estar dos
seus cidadãos. A saúde, no seu entendimento lato de equilibrio nas dimensões biológica,
afectiva e social, é ponto nevrálgico de aferição dessa plena realização de bem-estar humano.
Qualquer sociedade que mereça o epíteto de desenvolvida ou em desenvolvimento precisa,
por isso, de organizar recursos e meios de acção de modo a constituir diversos sistemas,
progressivamente mais complexos e mais interligados, redes de segurança onde se acolham
as práticas humanas e sociais. O sistemas de saúde expressam uma dessas redes, das mais
importantes e vitais. Na sua idealização e concepção, os sistemas de saúde são hoje
compostos de numerosos elementos sectoriais e inter-sectoriais, constituindo conjuntos de
regras e normas para a utilização dos recursos reunidos com a finalidade de conseguir mais
saúde para a população e lutar mais eficazmente contra a doença.
O que é a qualidade
Esta é questão muito simples mas não tem resposta fácil. Propomos começar pela análise de
algumas definições da qualidade para depois ensaiarmos um sentido para a qualidade nos
serviços públicos da saúde.
A qualidade pode ser concebida como "aptidão (adquirida) para o uso", considerando as
características de produto que satisfazem as necessidades dos clientes e ausência de
deficiências (Juran, 1990:16-17). Esta perspectiva focaliza os processos internos da
organização e assenta na clarificação das competências e responsabilidades de operadores e
supervisores, os quais têm de conhecer organigramas, procedimentos e instruções de trabalho,
mas não necessitam de conhecer profundamente as necessidades dos clientes externos e
internos. Procura a definição de responsabilidades dos participantes na organização, mas não
a responsabilidade da organização para com os seus clientes, o mercado e a sociedade.
Privilegia a elevada produção com poucos desperdícios, a correcta rotulagem e identificação, a
protecção dos produtos armazenados contra a degradação, a facilidade de manuseamento e
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deslocação. Destina-se a organizações industriais e comerciais e, à primeira vista, parece dizer
pouco às organizações de serviços públicos.
A qualidade pode ser definida como "conformidade com os requisitos. devidamente
esclarecidos e continuamente medidos (Cosby, 1980:15). Esta é perspectiva muito virada para
o interior da organização e seus processos, desvalorizando os clientes como fontes de
requisitos. Estes são vistos apenas como consumidores que devem ser informados e educados
para fazerem bom uso de produtos e serviços, que devem poder apresentar os seus problemas
através de meios de contacto rápido, reduzindo a sua insatisfação, e a quem se deve satisfazer
corrigindo os problemas tão depressa quanto possível.
Outra definição coloca no centro da qualidade os consumidores, defendendo que "o
consumidor é a parte mais importante da linha de produção" (Deming, 1988:5), que "o modo
de deleitar o cliente é determinar as suas necessidades e depois trabalhar duro para criar os
requisitos necessários para ir de encontro àquelas necessidades" (Crosby, 1996:42) e que
"explicitar até onde for possível a identificação de todos os requisitos dos consumidores é um
ponto de partida fundamental para o efectivo controlo da qualidade" (Feigenbaum, 1991:8).
Entre os diferentes objectos que podem ser tomados como pontos de partida para a definição
da qualidade de uma organização - produto, produção, valor acrescentado e consumidor -
esta perspectiva prefere tomar o consumidor como fonte de orientações normativas para a
qualidade, propondo que as suas necessidades, desejos e expectativas sejam tomadas como
fontes de especificação dos requisitos dos produtos e da definição da política operacional da
qualidade. Na medida em que coloca o ponto de partida para pensar a qualidade nos clientes,
cujas necessidades são a razão de ser de toda a organização, ela pode servir a todo o tipo de
organizações, independentemente da sua dimensão ou natureza.
As organizações de serviços públicos podem beneficiar em proporções diferentes de todas as
definições aqui apresentadas, mas não podem adoptar nenhuma destas definições em
exclusivo, porque elas não contemplam algumas importantes peculiaridades: os centros de
formulação estratégica do serviço estão localizados fora dos centros de saúde e estes
exercem a sua actividade em regime de quase monopólio. Estas condições reduzem as
possibilidades de adaptação criativa daqueles que melhor conhecem as necessidades dos
utentes e tornam menos necessária a satisfação dos clientes como condição da sobrevivência
organizacional. Não contemplam, ainda, alguns aspectos que são específicos das
organizações de serviço. Nestas, o factor humano é ainda mais importante do que nas
organizações doutra natureza, tornando muito importantes para a qualidade factores difíceis
de gerir, como a motivação para o desempenho das tarefas e a satisfação com o trabalho
realizado. Razões pelas quais uma definição da qualidade adequada aos serviços públicos da
saúde deve contemplar a satisfação das pessoas responsáveis pelo sistema e integradas em
organismos do poder central e das pessoas responsáveis pela gestão e prestação local do
serviço, mantendo sempre na linha do horizonte as aspirações dos utentes - clientes.
Poderíamos representar esta articulação de interesses através de círculos que se interceptam,
desenhando os espaços de encontro e desencontro:
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Os responsáveis pelo sistema da saúde assentam a sua satisfação na rendibilidade dos
serviços, na obtenção de taxas desejadas de salubridade e morbilidade, na prestação de
cuidados de saúde geradores de satisfação aos utentes. Os profissionais da saúde recolhem a
sua satisfação da avaliação positiva do seu desempenho, sobretudo por parte dos superiores
hierárquicos, da aproximação dos doentes ao perfil ideal de paciente, do reconhecimento do
seu empenho por parte dos utentes, dos vencimentos auferidos, das condições materiais dos
centros de saúde, do prestígio social atribuído à sua profissão. Os utentes criam a sua
satisfação a partir da marcação desejada e atempada de consultas, da realização das
consultas no período previsto, da atenção que merecem a todo o pessoal da saúde, das
condições materiais dos centros.
Estes critérios não são comuns, pois eles são escolhidos segundo racionalidades distintas: a
racionalidade política, no caso do poder central, a racionalidade operativa, no caso dos centros
de saúde, e a racionalidade de consumo, no caso dos utentes. Existem critérios partilhados: as
taxas desejadas de salubridade e morbalidade podem ser comuns ao estado e aos centros de
saúde; as condições materiais das instalações serão comuns ao pessoal da saúde e aos
utentes. Mas também existem critérios aparentemente inconciliáveis: os vencimentos separam
os profissionais da saúde dos responsáveis pelo sistema da saúde; as formas de tratamento
separam os utentes dos administrativos e o horário das consultas separa-os dos médicos.
É nesta desencontrada trama de critérios que se tecem as definições sociais da qualidade.
Dizemo-Ias sociais porque são construídas através dele nas conversas com outros e porque
recorrem a sinais recolhidos a partir da experiência pessoal e aos quais atribuem significados.
Os factores recenseados e outros que ficaram por recensear são organizados segundo uma
hierarquia pessoal de preferências, mas todos são importantes na medida em que um requisito
intensamente avaliado carreia para outros o sentido positivo ou negativo da sua avaliação
(efeito de pigmaleão).
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líderes partidários, deputados, presidentes de câmara), e têm diferente natureza, variando
entre juízos políticos, juízos económicos, juízos técnicos e juízos morais. Cada qual aprecia a
realidade de acordo com as suas habilidades e susceptibilidades e o resultado da avaliação da
qualidade surge da conjugação destas diferentes perspectivas que tanto podem ser próximas
ou convergentes como distantes ou divergentes.
Todos gozam de poder para produzir e emitir esses juízos e usam diferentes canais para os
comunicar. Alguns circulam nos jornais, outros nos canais de comunicação organizacionais,
uns são vertidos em discurso escrito, outros andam de boca em boca. Embora todos sejam
importantes, na medida em que emprestam à qualidade do serviço leituras sociais possíveis,
integradas nos processos sociais de construção de opinião pública, eles têm de ser tratados
em escalas diferentes. Aqui, a opinião das pessoas que integram o corpo profissional,
prestadores do serviço, a opinião dos utentes, seus destinatários e consumidores, e a opinião
dos responsáveis pelo sistema nacional de saúde gozam de maior importância.
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não cumprimento de horários cria muita incerteza no serviço, o que nem sempre é possível
antecipar ou resolver, mesmo quando o médico avisa que faltará às consultas, pois nem
sempre é possível avisar os doentes por telefone. Aos que chegam, responde-se com a
possibilidade de emissão de documento para poderem ser consultados no SAP para escapar à
expressão de vivos descontentamentos.
Outro aspecto que igualmente provoca insatisfação é o tratamento concedido pelos
administrativos. A relação entre utentes e administrativos é frequentemente mais tensa porque
aqueles Ihes atribuem um status social menor, podendo dar lugar a interacções sociais mais
agressivas, porque os administrativos não sabem ou não podem entrincheirar-se por detrás de
uma estratégia de proximidade distante, simultaneamente atenta e focalizada nos problemas
dos utentes que procuram compreender e resolver, e marcadamente segura e distante para
não permitir incursões injustas ou ilegítimas. Há casos em que os administrativos precisam de
lembrar aos utentes que também necessitam de um intervalo para comer e descansar tal como
eles nos seus postos de trabalho e quando se fecham no quarto de banho para beneficiar
desse tempo há quem Ihes chegue a bater à porta, solicitando informações ou o regresso ao
guichet. As queixas sobre as suas práticas sobem de intensidade quando não marcam a
consulta para a hora pretendida, sendo frequentemente acusados de guardar as melhores
horas para os "amigos".
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perfeita que dispensa a actualização do seu exercício e é independente de quem o exerce,
fazer com que a vigilância seja permanente nos seus efeitos mesmo quando é descontínua na
sua prática (Foucault, 1986:177). Todavia, a sua eficácia é muito limitada porque os utentes
não reclamam sempre que se sentem insatisfeitos e as suas reclamações são muito limitadas
no conteúdo.
As reclamações produzidas, por via oral e escrita, dizem respeito à actuação de todos mas são
os médicos quem mais reclamações colhe, sobretudo por causa do não cumprimento de
horários, mas também a recusa em passar aspirada baixa ou prescrever a desejada receita, ou
seja, as reclamações dirigem-se mais para os comportamentos de relação do que para os
comportamentos de tarefa, constituindo limitado indicador da qualidade do serviço. E, aqui, um
bom atendimento administrativo contribui extraordinariamente para a satisfação dos utentes e
redução do seu descontentamento. Aqueles valorizam muito a disponibilidade dos médicos
para os atender sempre que necessário e que os administrativos sejam seus aliados na
concretização desse objectivo. Nos guichets ouve-se frequentemente dizer "Ainda morro antes
de ter a consulta". Os utentes vêem os administrativos como sujeitos dotados de significativo
poder, pois são eles quem marca e ainda podem informar sobre os locais onde fazer os
exames e sobre isenções da taxa moderadora. Por isso, quando eles vivem na povoação os
presenteiam com 'mimos da terra' para Ihes franquearem a passagem e permitirem a desejada
consulta.
A maior parte dos utentes não efectuou reclamação escrita. Alegam, sobretudo, que não
valeria a pena, pois ninguém Ihes iria dar continuidade, mas também admitem que receavam
aborrecimentos devido à reacção das pessoas visadas, materializadas em atendimentos
menos simpáticos, dificuldade na marcação de consultas, resistência em prescrever os
medicamentos ou exames desejados. Ainda alegam que não saberiam como fazer a
reclamação, revelando a pouca familiaridade com os registos escritos e o desconhecimento do
procedimento relativo às reclamações. Na verdade, eles reclamam mas fazem-no oralmente e
junto dos funcionários administrativos, mais acessíveis ao diálogo e menos distantes
socialmente. A ausência de reclamações escritas não reflecte a satisfação dos utentes com o
serviço. De resto, confrontadas com a crença de que, na generalidade, os utentes estão
satisfeitos com o serviço de saúde prestado, a opinião concordante tem apenas ligeira
preferência face à opinião discordante.
Frequência do recurso a testes, exames e receitas. Esta pode ser tomada como indicador
do investimento público nos cuidados de saúde, seja para prevenir a doença, para
complementar diagnósticos ou para curar. Todavia, também pode reflectir estratégias de
médicos: a necessidade de defesa face à possibilidade de virem a ser acusados de negligência
médica; a demissão no esclarecimento aos utentes da inutilidade ou mesmo inoportunidade
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daquilo que solicitam, permitindo evitar interacções mais conflituosas e acelerar o tempo
aplicado na execução das consultas. É possível que os médicos que exercem clínica privada
tenham maior tendência para a prescrição de receitas e exames solicitados pelos utentes,
melhorando a sua identidade social e colhendo a estima dos utentes. O investimento em meios
de prevenção, diagnóstico e terapia tanto podem revelar a actuação de acordo com
procedimentos como práticas não conformes.
Frequência dos centros pelos pacientes. A população de doentes sob observação médica,
distribuída por sexo, idade, residência, estilos de vida e frequência dos serviços revela a
capacidade instalada para prestar cuidados de saúde e a procura social dos mesmos. Contudo,
estas variáveis tanto podem reflectir os cuidados preventivos da saúde praticados pelas
populações como a eficiência dos cuidados curativos prestados nos centros, sendo difícil
atribuir a cada um a importância que tem nesse fenómeno. É opinião partilhada entre os
profissionais de saúde que também aqui se verifica o princípio de Pareto: 80% dos cuidados
são solicitados por 20% dos utentes.
Mudança de médico. A opção por outro médico de família pode ter diversas causas: mudança
de serviço por parte do médico, mudança de residência por parte do utente, substituição de
consulta não realizada por falta do médico, realização de consulta não programada nem
marcada mas considerada urgente, desagrado com o atendimento prestado pelo médico. A
análise destas mudanças pode constituir interessante indicador da qualidade do serviço desde
que as suas causas sejam bem determinadas. Todavia, a sua interpretação exige sempre a
complementaridade de outros dados porque se há utentes que mudam de médico devido a
insatisfação provocada pela sua irregular assiduidade ou atendimentos julgados ineficientes,
também é verdade que alguns são capazes de mudar porque aquele não prescreveu o que
pretendia, considerando a pretensão injustificada.
4. OBSTÁCULOS À QUALIDADE
A filosofia da medicina preventiva e da promoção da saúde assume que a saúde das pessoas
depende de equilíbrios determinados por factores físicos, psíquicos e sociais. Os cidadãos
tardam em adaptar práticas de medicina preventiva através da alteração de hábitos alimentares
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considerados menos adequados, adopção de práticas de actividade física. As acções de
sensibilização revelam-se insuficientes e de limitado sucesso, as regras formais são pouco
flexíveis e dificultam a adaptação dos meios e mensagens às especificidades locais, enquanto
médicos e enfermeiros não dão a este assunto a merecida importância nas suas práticas
diárias, agindo como prescritores e pedagogos.
A maior parte dos profissionais de saúde defende que os utentes são tão responsáveis pela
sua saúde quanto o serviço público de saúde, mas esta representação não se reflecte nas
práticas dos cidadãos. A desejada alteração de comportamentos é muito difícil e os
profissionais da saúde consideram mesmo que educar os utentes para a saúde e ensinar
medidas preventivas da doença é a tarefa mais difícil de concretizar pelos médicos e
enfermeiros no seu trabalho quotidiano. A maior parte do pessoal da saúde considera que os
utentes recorrem excessivamente aos serviços dos centos de saúde, agravando as condições
de prestação do serviço. Fala-se mesmo de consumismo, com a carga de desvalorização do
serviço que essa atitude denuncia e também constrói.
A maioria dos utentes considera que não se deve ir ao médico por tudo e por nada, apenas
quando a razão é consistente e justificada, mas esta opinião nem sempre influencia as suas
práticas. A exagerada procura dos serviços médicos dever-se-á a factores físicos mas também
afectivos. Para os mais velhos e desocupados, a deslocação ao centro permite-Ihes alterar a
contextualidade das suas práticas quotidianas, estabelecer conversas com outros pacientes e
com os profissionais da saúde, dissipar incómodos medos despertados quando um vizinho vai
fazer adoece ou morre, restabelecer equilíbrios psicossomáticos, reforçar os sentimentos de
segurança ontológica. Talvez isso permita explicar as razões pelas quais, muitas vezes, não
levantam os exames solicitados nem respeitam a prescrição proposta.
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daqueles. Fica claro para toda a gente que foram movidas influências e que a improcedência
do processo assenta em justificações fraudulentas. Mas há figuras em que se não pode "tocar"
e fala-se em "falta de tacto" e inoportunidade de actuação. Há práticas de comunicação
desconexas que aumentam a incerteza das tecnologias e enfraquecem a eficácia dos serviços.
Boa parte dos profissionais da saúde reconhece haver problemas na comunicação interna
entre médicos e enfermeiros, entre médicos e administrativos e entre estes e os enfermeiros.
Um bom sistema da qualidade é, essencialmente, um bom sistema de comunicação e falhar na
produção e disponibilização de dados é planear não comunicar. Há médicos que não fazem
cuidados registos clínicos, que menosprezam todo esse campo de recolha e arquivo de dados,
não construindo a informação com a sua equipa, desvalorizando claramente essa dimensão da
sua actividade. Alguns chegam mesmo a não fazer um único registo ao longo de toda a sua
carreira e quando instados por superiores para preencher fichas estatísticas resistem,
desvalorizando essa actividade, acusando-a de fazer perder tempo face à sua verdadeira
função, a de acompanhar os doentes. Os enfermeiros sofrem a falta de reconhecimento do seu
estatuto por parte dos utentes e, nalguns casos, por parte dos próprios médicos. A falta de
reconhecimento cria algum desentendimento e desmotivação, afectando o seu envolvimento e
enfraquecendo o seu contributo para o desejável trabalho de equipa. Há administrativos que se
demitem das suas funções. Constituindo o primeiro e decisivo degrau de acessibilidade dos
centros de saúde dão o tom à permanência e passagem dos utentes pelo centro, sendo
reconhecido por todos que um bom atendimento administrativo resolve grande parte dos
problemas. Eles são pedra de toque no bom funcionamento do serviço. Porém, muito expostos
aos utentes, nalguns casos objecto de críticas, incapazes perante incumprimentos de outros
profissionais, demitem-se das suas responsabilidades e desvalorizam a sua própria função,
não dialogando com os utentes, franqueando as portas de consultórios e salas de tratamento.
Deixando passar os utentes a barreira onde deveria ocorrer o acolhimento e encaminhamento,
dão lugar aos atropelos junto dos enfermeiros e dos médicos, a situações de equidade
duvidosa e a ambientes de desconforto e a não conformidades com o funcionamento do
serviço.
A ausência de uma missão organizacional comum que oriente e estruture as práticas diárias da
saúde afecta negativamente a qualidade dos serviços. A sua existência permitiria suportar a
consequente definição da estratégia organizacional dos centros de saúde, organizadora e
subordinadora das práticas individuais. Ela permitiria articular os objectivos políticos para a
saúde com as necessidades locais das populações e as capacidades humanas e recursos
normativos e técnicos existentes nos centros. Sem esse sentido de missão que define e
oferece os fins à acção não pode haver sucesso da qualidade nos serviços de saúde. Esta
alteração não se instituirá por decreto mas por alteração das contextualidades da acção e pela
reinvenção das práticas da qualidade e da gestão organizacional. Nas organizações sem
estratégia de serviço proliferam e dominam as estratégias individuais.
É muito mais fácil alterar procedimentos, formas previstas de agir, do que alterar
comportamentos rotinizados, recursivamente reproduzidos na actividade diária. Por isso, a
mudança de comportamentos tem de ser tratada com muita consistência, ao nível das atitudes,
e a melhoria das práticas da qualidade tem de ser reforçada pela formação, formação e
formação. Contudo, a maior parte do pessoal da saúde admite que há pessoas que só
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participam nas acções de formação quando são obrigadas e outras que só participam para
serem bem vistas pelos superiores hierárquicos. A criação de mecanismos da melhoria
permanente da qualidade do serviço beneficia da mudança da representação social acerca da
formação e da substituição de critérios de satisfação acerca do profissionalismo. Esta desejável
mudança terá nos mecanismos de promoção na carreira, mais assentes em critérios
burocráticos que privilegiam o tempo de exercício profissional do que em critérios de
desempenho profissional, obstáculo a contornar.
Individualismo profissional
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sociais. O serviço deve ser concebido como processo e cada processo deve ser visto como
sequência de fases articuladas pela relação entre clientes e fornecedores, pois cada fase tem
um consumidor situado na fase seguinte que vai acrescentar valor ao produto recebido. Nas
cadeias de valor assim definidas, os médicos continuarão a ter a maior importância, mas os
demais profissionais vêem acrescida a sua importância nos processos de prestação de
cuidados de saúde.
As práticas da qualidade também são influenciadas pelas hierarquias de status que introduzem
critérios de conduta socialmente aceites, mas não considerados na gestão do sistema da
qualidade. O tempo de desempenho da profissão e o tempo de permanência no serviço são
mais importantes do que a competência na organização das interacções sociais entre
profissionais. A importância das hierarquias de status na estruturação da ordem social dificulta
a implementação de relações de trabalho assentes no princIpio de que todos são fornecedores
e clientes internos e deixa pouco espaço para a eficiente execução do controlo da qualidade.
Este individualismo profissional parece ser maior entre os médicos do que entre os
enfermeiros, os administrativos e os auxiliares, onde a atenção ao trabalho dos colegas é
maior. Agindo em tempos-espaços onde gozam de maior autonomia, os médicos também
parecem ser aqueles que menos cumprem os procedimentos previstos e menos se envolvem
na melhoria da qualidade. Na perspectiva acima defendida, os comportamentos de operação
são integrados em processos e, por isso, também são comportamentos de relação. Não se
defende aqui o incondicional respeito pelos procedimentos formais porque estes às vezes
existem para as organizações parecerem ser o que não são e porque outras vezes não são os
melhores guias de decisão em situações de incerteza, mas sim que todos os requisitos
essenciais devem ser formalizados e controlados e todas as e operações fundamentais
formalizadas e auditadas.
Os consumidores dos serviços de saúde são mais vistos como utentes de um serviço público
que Ihes é gratuitamente disponibilizado do que como clientes de um serviço público que prévia
e indirectamente pagam. Por isso, os atrasos ou faltas cometidas por alguns médicos não são
por estes vistas como prejudiciais aos utentes ou, pelo menos, não receiam ser por isso
penalizados, e a pouca atenção posta pelos administrativos na prestação de informações e no
tratamento verbal concedido aos utentes pode também ser lida nesta perspectiva. A melhoria
das práticas da qualidade exige esta mudança de representação, permitindo aos centros
focalizarem-se nas necessidades das populações que servem, filtradas por critérios de
necessidade, adequação e exequibilidade.
Igual representação partilham os utentes, muitas vezes traduzida em múltiplas exigências
suportadas em todos os direitos, mas que não reconhece deveres. A desvalorização que
impera relativamente ao serviço nacional de saúde é, em larga medida, devida ao facto de este
ser gratuito, desencadeando um consumismo desenfreado por parte de uns tantos, impeditivo
da fruição pela grande maioria. Resulta de muita desinformação, facto a que os media não são
alheios, na sua preocupação com o sensacionalismo do insólito e a manifesta indiferença pelo
quotidiano, sem estória, que não cumpre os critérios de noticiabilidade. É assim que são
largamente noticiados os conflitos laborais, ou as espectaculares intervenções cirúrgicas, e
completamente ignorada a actividade diária de bons serviços de saúde que se prestam às
comunidades.
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Frágil controlo da qualidade
A imagem actual do serviço público de saúde não é de modo nenhum a pretendida e reina
grande confusão quanto aos valores e características que hão-de pautar as práticas de
qualidade do serviço de saúde, para satisfação de todos. É frequentemente comentada a
desinformação, a desmotivação e alguma desconfiança que se vive no seu seio, o sistema
nacional que envolve toda a sociedade. Muito criticada e mal amada por todos, profissionais e
utentes.
No que diz respeito aos utentes, é consensual o diagnóstico que aponta para a sua deficiente
informação e, consequentemente, ausência de educação no que concerne à gestão da própria
saúde, à valorização dos serviços públicos de saúde, à sua correcta utilização. A "má
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Frágil controlo da qualidade
A imagem actual do serviço público de saúde não é de modo nenhum a pretendida e reina
grande confusão quanto aos valores e características que hão-de pautar as práticas de
qualidade do serviço de saúde, para satisfação de todos. É frequentemente comentada a
desinformação, a desmotivação e alguma desconfiança que se vive no seu seio, o sistema
nacional que envolve toda a sociedade. Muito criticada e mal amada por todos, profissionais e
utentes.
No que diz respeito aos utentes, é consensual o diagnóstico que aponta para a sua deficiente
informação e, consequentemente, ausência de educação no que concerne à gestão da própria
saúde, à valorização dos serviços públicos de saúde, à sua correcta utilização. A "má
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.
,
,,
informação" é responsável pelo relacionamento com os serviços onde impera a cultura de
todos os direitos, num clima de exigência que ignora esferas de competência e não conhece
deveres.
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Bibliografia