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Niterói
2018
RESUMO: O presente trabalho de pesquisa pretende trabalhar a relação entre museu,
arte e narrativa de vida. Partindo de uma exposição artística, aqui a exposição “A
Pequena África e o MAR de Tia Lúcia”, da artista Lúcia Maria dos Santos, presente no
Museu de Arte do Rio, na Zona Portuária do Rio de Janeiro. Pretendemos esboçar e
apresentar uma etnobiografia da artista realizada através dos objetos artísticos presentes
em sua exposição. Fazemos dos objetos de arte nossos interlocutores e dialogamos com
eles para a criação de uma história de vida da personagem aqui elencada. Não visamos
construir uma narrativa cronológica ou linear da vida de Tia Lúcia, o que pretendemos
com “Narrativa da Alma das Cousas: Quando a Imaginação Museal Encontra a
Etnobiografia” é relevar o real e o descontínuo, como fala Bordieu, em uma história de
vida e cremos que os objetos carregam uma agência necessária que pode dar conta de ir
ao encontro desse real narrativo que cada história de vida apresenta.
1. INTRODUÇÃO
O curioso é que nas duas idas ao campo – a primeira fora no Instituto dos Pretos
Novos e a segunda em ateliês de artistas do Morro da Conceição -, o Museu de Arte do
Rio fora ponto de encontro entre discentes e docentes da disciplina de Antropologia V,
ele nunca fora, de fato um objeto de pesquisa, eu que, por meio das minhas escolhas
como pesquisador de Antropologia da Arte, em específico a Arte Contemporânea,
resolvi eleger o mesmo como o local a ser realizada a minha pesquisa.
As duas visitas ao campo foram muito interessantes para o meu conhecimento
tanto sobre a história da cidade do Rio de Janeiro, sua população, seus patrimônios
materiais e imateriais, mas nenhuma das duas me mobilizou em questão alguma que
pudesse ser pesquisada. A segunda pesquisa até motivou-me mais, nessa fizemos um
percurso pelo Morro da Conceição visitando ateliês de vários artistas residentes do
local. Conhecemos o ateliê-casa de Paulo Dallier, um pintor nascido na primeira noite
da revolução de 1932, segundo o mesmo. Sua casa, localizada no alto do Morro da
Conceição fora comprada pelo seu avô em 1904. É um pintor autodidata, mas seu sonho
sempre foi o teatro: foi ator, diretor e dramaturgo. Embora a narrativa de vida do Dallier
e sua pintura - que caracterizo com um estilo primitivo, naif, fauvista, remetendo em
alguns quadros a estética de Matisse -, tenha me sido muito interessante e enriquecedora
não consegui encontrar um recorte específico para utilizá-lo como meu interlocutor, até
vislumbrei falar da relação dele com o Morro da Conceição, mas não foi algo que
ganhou um corpo de curiosidade, não consegui estabelecer conexão suficiente com o
local para isso.
Com as duas idas ao campo e nenhum tema verdadeiramente que me
mobilizasse voltei a concentrar minhas atenções no Museu de Arte do Rio e suas
exposições. A ideia inicial do trabalho seria de criar uma investigação com alguma
exposição do MAR (a partir daqui o Museu de Arte do Rio será chamado pela sua sigla,
MAR) com questões pertencentes a Antropologia da Arte – campo esse que me insiro.
A sugestão da professora Renata foi explorar a exposição fixa por um ano no MAR,
intitulada “O Rio do samba: resistência e reinvenção”, mas fazendo uma rápida
pesquisa no site o que me atraiu fora uma outra exposição, que creio dialogar mais com
o que fora proposto para ser trabalhado na disciplina. Resolvi então focar minhas
atenções para a exposição “A Pequena África e o MAR de Tia Lúcia” aberta ao público
no dia 16 de novembro do ano de 2018. De início relutei um pouco com a ideia, mas
resolvi investigar mais sobre a exposição e antes de me deslocar para vislumbrar a
mesma debruçei-me sobre o primeiro documento desse projeto de pesquisa: o texto
institucional sobre a mesma presente no site do MAR.
O texto é um release apresentado pela gestão de relacionamento com a imprensa
do MAR. No texto fica claro que Lúcia Maria dos Santos, a Tia Lúcia, sempre
“participou ativamente das atividades e festejos nas ruas e nas instituições da zona
portuária, local que vivia desde que chegou ao Rio de Janeiro, ainda criança”. Segundo
o texto Tia Lúcia instaura e subverte os modos de ser e estar.
Com uma pequena biografia dela na mão de um lado e a vontade de me
aventurar por caminhos até então ainda não desbravados por mim dentro da pesquisa
antropológica resolvi elencar a narrativa de vida de Tia Lúcia como minha interlocutora,
utilizando a exposição da mesma para criar uma narrativa de vida para a mesma, a partir
de sua exposição solo no MAR. Relacionamos aqui questões museológicas com
narrativa de vida, criando assim um campo outro de análise para a Antropologia da
Arte.
1.3 Objeto
Decidi trabalhar com a vida da artista que fora Tia Lúcia através de seus objetos
artísticos expostos no MAR, pois indo ao encontro de Chagas “as imagens e as coisas
concretas podem ser instrumentos de mediação ou âncoras de memórias, emoções,
sensações, pensamentos e intuições” (CHAGAS, 2003. p. 14).
As coisas assim selecionadas, reunidas e expostas ao olhar (no
sentido metafórico do termo) adquiririam novos significados e
funções, anteriormente não previstos. Essa inflexão é uma das
características marcantes do denominado processo de
musealização que, grosso modo, é dispositivo de caráter seletivo
e político, impregnado de subjetividades, vinculado a uma
intencionalidade representacional e a um jogo de atribuição de
valores socioculturais (GHAGAS, 2003, p. 18).
Além desse caráter colecionista Tia Lúcia era artesã e pintora – diversos quadros
e estandartes estão expostos na galeria. Um me pareceu ter um destaque central (imagen
4), sua pintura revela o caráter devocional de sua vida, diversas imagens apresentam
fortes relações com as religiões de matriz africana e com o catolicismo, também
presente em suas bonecas, expostas em um ponto central da galeria/biblioteca, como se
fossem pequenas esculturas, me fazendo criar uma ligação com as esculturas
neoclassicistas que revelavam um forte caráter da cultura grega; as “esculturas” de Tia
Lúcia revelam seu lado artesã de um lado e o aspecto religioso de sua vida, nesse
sincretismo religioso que o vídeo também nos revela: em dado momento do mesmo
alguém fala que a mesma percorria um longo caminho todos os dias para ir rezar e era
sempre fiel a sua novena.
Imagem 2
Há uma fala de uma das curadoras que me fizeram observar a importância da
exposição solo em homenagem a Tia Lúcia. Citando o rapper e músico Criolo a
curadora profere a máxima: “Oiticica e Frida Kahlo tem o mesmo valor que a
benzedeira do bairro”. A partir dessa frase passei a observar a exposição com outros
olhos e perceber, de fato, que havia um cuidado institucional de fazer com que a figura
de Lúcia Maria dos Santos fosse, de fato, considerada uma apropriação plena do Museu.
No vídeo o filho de Tia Lúcia também relata isso, que sua mãe disse que “aos poucos
eles iriam chegar lá”.
Imagem 3
II. Justificativa
Existe uma relevância dessa pesquisa dentro do meu processo como antropólogo
que me fez amadurecer enquanto pesquisador. Todo o meu trajeto acadêmico dentro do
curso de Antropologia tem uma única visada: permitir a criação de uma Antropologia
Cênica partindo da Antropologia da Arte e Antropologia da Performance, fora isso que
eu investiguei e investigo no meu trabalho final monográfico, em disciplinas onde eu
consiga inserir o teatro e a arte como meus objetos e etc. Na disciplina de Antropologia
V, Métodos, eu pensava de, alguma forma, me manter no meu campo de pesquisa.
Logo na primeira aula a professora Renata frustrou um pouco minhas
expectativas falando que nosso trabalho de campo deveria ser feito na Zona Portuária da
cidade do Rio de Janeiro. Desde que isso foi nos passado fiquei me perguntando o que
poderia eu pesquisar ali. Fui a campo com a mente aberta e nada de achar um tema que
minimamente me fosse caro, até que encontrei a temática pela qual escolhi me arriscar.
Justifico a decisão de optar por esse caminho, pois aquim, de certa forma estou
juntando duas áreas de conhecimento que me são caras: o universo da arte (e toda a
visão museológica e institucional) com a criação de narrativas
biográficas/autobiográficas, algo que sempre almejei fazer no curso de Antropologia,
mas nunca conseguia encontrar um escopo necessário para tal.
Bordieu em “A Ilusão Biográfica” fala que a reprodução de uma história de vida
na maioria das vezes é
Tratar a vida como urna história, isto é, como o relato coerente de
urna seqüencia de acontecimentos com significado e direção, talvez
seja conformar-se com urna ilusão retórica, urna representação
comum da existencia que toda urna tradição literária não deixou e não
deixa de reforçar (BORDIEU, 2006, p. 184).
Tudo que fiz até o momento com esse projeto de pesquisa foi ir atrás de uma
hipótese “como objetos artísticos podem narrar a vida de seu criador?” Penso nesse
trabalho como uma primeira experimentação de construir uma resposta minimamente
palpável para essa pergunta.
Creio que os objetos artísticos expostos em uma galeria de arte, por mais que
passem pelo olhar de uma curadoria que está em consonância com uma museologia
instituonalizada, possam sim construir uma narrativa sobre o artista, já que tanto a
autonarrativa quanto a criação artística estão veiculadas a uma situação essencialmente
criativa (GONÇALVES, 2018).
Pensando na criação de uma etnobiografia a partir de objetos artísticos também
trabalhamos com a hipótese de que sobre esses objetos advém uma possibilidade de se
pensar uma cultura, já que “do mesmo modo que o indivíduo na vida real, o personagem
de ficção jamais se separa dos contextos em que é produzido e nos quais se produz”
(GONÇALVES, 2018, p. 25), os objetos, que criam um recorte para uma narrativa,
também não se descolam do sujeito cultural que é o artista e nem da história do mesmo
– podemos enfatizar essa hipótese com uma obra presente primeira exposição solo em
terras nacionais do artista chinês Ai Weiwei intitulada “Raíz Weiwei”, presente na Oca
do parque Ibirapuera e tive o prazer de visitar. A obra é a “Florescer” (imagem 5) que
narra um episódio após uma detenção que o artista sofreu pelo governo chinês. Após ser
solto Weiwei teve seu passaporte confiscado e seu direito de viajar livremente detido.
Seu estúdio era vigiado vinte e quatro horas por câmeras instaladas pelo governo. Em
30 novembro de 2013 o artista anunciou que começaria uma prátia diária de colocar um
buquê de rosas frescas na cesta de sua bicicleta do lado de fora do estúdio, até que seu
passaporte fosse liberado pelo governo. A prátics chegou ao fim em 22 de julho de
2015, quando o passaporte do artista fora liberado – com base nessa experiência de sua
vida Weiwei cria uma instalação com trinta e cinco painéis de flores de porcelana.
Observando essa hipótese creio que tomar objetos artísticos para construir uma
narrativa de vida não passa por apreender um ponto de vista nativo, como fala
Guimarães em seu artigo, mas sim definir a forma complexa de que pode ser realizada a
representação do outro – no caso aqui a leitura que faço é como o trabalho das
curadoras representam a narrativa de vida de Tia Lúcia? Como os objetos artísticos
expostos pensam o artista como um indivídio em potência de individuação e não em
extrema oposição à sociedade? É na tentativa de responder algumas dessas perguntas
que seguimos com essa pesquisa.
V. Metodologia
VI. Cronograma
Creio que os três primeiros meses (janeiro, fevereiro e março) de 2019 pudessem
ser utilizados para um melhor levantamento teórico e uma melhor leitura na bibliografia
que cruza o tema de pesquisa. Os meses de abril, maio, junho e julho poderiam ser
usados para idas ao campo, realização de entrevistas, visita a outras exposições que
pudessem contribuir com a ideia de “narrativa das cousas”, isso sem deixar de lado as
leituras e apontamentos teóricos que forem se desdobrando conforme o andamento da
pesquisa. Os meses de agosto, setembro e outubro poderiam ser utilizados para a
primeira escritura da pesquisa – criando uma base forte entre o que fora vislumbrado em
campo e o que fora sendo consumido de literatura sobre o tema. O mês seguinte,
novembro, poderia ser usado para repensar estratégias e abordagens e reler o que fora
anteriormente escrito, tomando certa distância do material para que ele possa ser
utilizado sobre um outro viés. E nos meses de dezembro e janeiro a finalização do
projeto com, provavelmente uma última visita ao campo, leituras de última hora e
revisão do material escrito.
A Pequena África e o MAR de Tia Lúcia, Museu de Arte do Rio, Rio de Janeiro:
2018 (release).
GELL, Alfred. Arte e Agência. Tradução de Jamile Pinheiro Dias. São Paulo: Editora
Ubu, 2018.