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ABADE
FARIA
na Hist6ria do Hipnotismo
"
capa vega/estudlo
Editorial Vega
EDITORIAL
Rua Jor-ge Fer-r-eir-a de Vasconceloa , 8
Llsboa 2 vesa
I
PREAMBULO
8 PREAMBULO PREAMBULO 9
0 sucesso foi notavel. De novo voltou a tela a questäo do mesmo que apresentasse alguma mem6ria justificando a sua can-
sonambulismo e os jornais franceses, a partir de Agosto de 1813, didatura a um titulo que so a medicos pertencia. Näo hä., porem,
encheram colunas sobre o misterioso fen6meno com apreciagöes vestigio algum desse trabalho. D. G. Delgado, a quem se deve
mais ou menos severas, por vezes jocosas e ate insultantes para o um precioso estudo sobre o nosso biografado e a reedigäo do livro
padre Faria, que ousara afrontar a opiniäo parisiense, ainda re- -De la cause du sommeil lucide ou etude sur la nature de l'homme
cordada das exibiQöes e da falencia de Mesmer. par L'ABBE FARIA -primacial subsidio de que nos utilizämos para
Pretendemos fazer a hist6ria desse periodo da evoluäo do levar a termo esta obra, näo conseguiu descobrir os motivos
hipnotismo e, consequentemente, divulgar o nome do padre Faria, justificativos da sua eleiäo.
cuja vida romanesca e agitada e quase ignorada e cujo nome Tambem foram inf rutiferas as investigaöes a que neste
apenas soou aos ouvidos do grande piiblico como sendo o do sentido procedeu, a nosso pedido, o professor Roger, de Marselha.
atraente prisioneiro do Conde de Monte Cristo, em que Alexandre 0 que se pode garantir e que a Sociedade de Medicina dessa ci-
Dumas lhe atribui naturalidade italiana. Obra de justiga e de dade näo aceitou Faria no seu gremio somente por ser padre e
interesse cientifico duplamente grata a quem, sendo portugues, professor de :fülosofia. Ja devia dedicar-se nessa epoca a assuntos
tem consumido a sua actividade em estudos neurol6gicos. medicos e dentre estes s6 um lhe prendeu a atengäo e lhe absorveu
Acresce que OS trabalhos do celebre magnetizador foram, por a actividade intelectual: o sonambulismo.
muito tempo, esquecidos, sendo ainda hoje mal compreendidos e 0 padre Faria foi quem defendeu, pela primeira vez, a ver-
apreciados, mesmo pelos que se dedicam ao estudo das doengas dadeira doutrina sobre a interpretagäo dos fen6menos sonam-
nervosas. E como se tudo isto näo fosse bastante para justificar biilicos, fulcro em torno do qual voltejam todas as suas doutrinas
esta tentativa, hä. a acrescentar a circunstäncia de ele juntar a filos6ficas.
sua qualidade de clerigo, a de professor de Filosofia em Marselha Foi ele quem ensinou que o sono hipn6tico näo deriva de
c em Nancy . Ja nesse tempo se dedicava ao estudo sobre o magne- quaisquer fluidos ou forgas especiais das magnetizadores, como
tismo, porquanto em 1812 foi eleito membro da Sociedade Medica ate ai se supunha, mas simplesmente da susceptibilidade dos
de Marselha (1) , o que s6 pode ser devido a esse facto. :E passive! individuos sobre que operava.
Por outro lado, desprezando a injustificada condenagäo dos
altos poderes eclesiä.sticos, foi ainda o padre Faria, com isengäo e
. (1)_ O professor Roger, de Marselha, que quis ter a grande amabilidade audä.cia dignas de registo, quem afirmou que nas praticas sonam-
de mvestigar este ponto, näo encontrou o nome do padre Faria entre os dos
embros da Sociedade de 1810 a 1815. Aqui lhe consignamos os nossos mais bulicas tudo dependia de causas naturais, sem intervenäo dessas
smceros agradecimentos. Contudo, no livro de Faria vl!m enumerados os
seguintes titulos por baixo do seu nome: «Brahmine, Docteur en Theologie
et en Philosophie, MEMBRE DE LA .SOCIETE MEDICALE DE MARSEILLE Ex-Pro- sobre o padre Faria e que e um resumo da obra de Dalgado, a quem dedica
fesseur de Philosophie a l'Universite de France, -etc.:o. ' justos louvores.
Seria o seu nome ellminado apös o desastre que sofreu em Paris? Tambem me enviou um pequeno relatörio do actual Bibliotecärio mu-
Näo e crivel que ele se atribuisse um titulo que näo possuia. E se tal nicipal de •Marselha, D'Arnaud, que igualmente näo conseguiu encontrar
fizesse no passaria sem protesto, pois o seu livro foi publicado em 1819, ref.erencia alguma ao padre Faria nos documentos arquivados.
quando amda todos se recordavam da campanha que lhe foi movida em Dessa exposigäo infere-se que em 1811 existia em Marselha uma
Paris. :E nos:m convencimento 'que ele pert enceu ä Sociedade de Medicina Societ6 de Medecine (aquela a que deve ter pertencido o padre Faria) e
de Marselha, embora näo ficasse raste da sua pa ssagem.
0 professor Roger enviou-nos uma comunicaäo do Dr. Livon feita em que em 1813 se fundou uma outra com a designagäo de Societe Academique.
Estas duas sociedades fundiram-se em 1848 sob a designagäo de Societe de
1906-1907 ä. Academia de Marselha , de qu e e m·embro da classe de ciencias, Medecine de Marseille.
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PREAMBULO
PREAMBUL
O
de Cirurgia de Lisboa e, embora näo haja relaQäo algum ntre
sua actividade e a nossa Escola, hoje Faculdade de. e1cm, .fo1
forgas misteriosas que fizeram carreira ate os nossos dias e a
alguem que, nas vesperas da sua fundagäo, fe oa c1en1a med1ca,
que algumas religiöes däo ainda credito: a magia e a feitigaria. dando justa interpretagäo as praticas magneticas, orientando-as
Parecerä. estranho que, hä. pouco mais de um seculo, fasse no bom sentido, classificando factos, mostrando aspectos novos
preciso fazer-se tal declaragäo; mas ainda hoje as crendices sobre do problema .
as inf luencias dos espiritos malfazejos correm sob vä.rias rubricas.
0 sobrenatural tem apaixonado os pr6prios medicos e, na hora
presente, uma das maiores individualidades do professorado fran-
ces, o professor Charles Richet, incluiu sob a etiqueta de fen6-
menos metapsiquicos alguns factos que, a serem verdadeiros,
parecem estar em contradigäo com as leis fisicas, quimicas e
fisiol6gicas que conhecemos.
A ciencia, na sua marcha, conseguira esclarecer esses mal-
-entendidos cientificos, ou averiguando a inexactidäo dos fen6-
menos descritos, e que infelizmente ningu em consegue repetir a
seu bel-prazer, ou reduzindo-os a obedecerem as leis estabelecidas
ou que cientificamente vierem a ser descobertas.
0 padre Faria proclamou uma verdade quando ainda ninguem
ousara encarar o problema do sonambulismo terra-a-terr a, sem
interveng6es de fluidos ou de forgas sobrenaturais. So mais tarde,
quando as escolas de Nancy e deParis chamaram a atengäo sobre
o assunto, e Charcot, com o poder da sua autoridade e o fulgor
do seu talento, o trouxe para o ensino oficial sem receio das
criticas em que o enredavam, vieram a confirmar-se as doutrinas
do desditoso e incompreendido padre portugues. E e s6 ultima- mente
que os neurologistas lhe citam o nome, prestando justiga a
sua clarividencia.
Sirva este intr6ito de justificaQao ao trabalho biografico que
vai seguir-se e ao estudo das doutrinas do esquecido padre goense,
que estabeleceu a verdadeira doutrina sobre o sono hipn6tico.
E gl6ria bastante para o nosso pais, que no campo cientifico nem
sempre marcou de maneira täo saliente como noutros ramos da
sua actividade.
E näo parega desprop6sito o recorda-lo neste periodo cente-
nä.do: Faria morreu seis anos antes da fundagäo da Regia Escola
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II
DE PARACELSO A MESMER
III
0 SONAMBULISMO
fazer xercicios a maneira dos sonämbulos naturais Mas toda thodica; mas essas observagöes passar am despercebidas e delas
esta smt mato:ogia escapou a observagäo de Mesm r ou pelo näo teve conhecimento o Marques de Puysegur.
mnod s, nao a Julgou merit6ria no campo terapeutico para' onde Era coronel de artilharia da guarnigäo de Strasburgo quando,
qms eslocar as suas präticas. em 1784, durante um perfodo de färias, comegou a praticar o
Näo vale a pena segu· l t, · . magnetismo. Fora discipulo de Mesm er, mas näo lhe copiara os
e em . Ir o re a orio de Ba1lly, apenso ao oficial,
d t que adver1a o governo dos perigos dos passes magneticos defeitos, embora ficasse convencido, mesmo depois da sua fa-
os oques prahcados sobre värias partes d eo , lencia, da verdade dos fen6menos observados e das efeitos tera-
t6rios dos bons costumes. o rpo, como aten- peuticos que os doentes podiam auf erir, Desinteressado, visando
b Talv z houve_sse exagero na sua interpretagäo, embora a apenas a alcangar o bem dos enfermos, impulsionaram-no esti- mulos
G servagao fasse Justa em alguns casos. muito diverses do interesse e exibicionismo que condicio- navam
Mesmer.
Por agora basta que constatemos que a grande maioria das
f:equentad?res _das sessöes mesmerianas se agitava em contor- 0 marques praticava o magnetismo na sua terra, em Buzancy,
soes. Por ISo Junto a sala onde operava instalou um com arti- arredores de Soissons. Um dia, observou que um velho aldeäo,
m nto espec1al para onde eram deslocados os mais furiosa ente que ele pretendia curar de uma af ecgäo toracica, tinha adorme-
aItados, une chambre aux crises a que algumas das suas vitimas cido sossegadamente. Contudo, respondia as pergunt as que lhe
c amaram Z 'enfer aux convulsions. fazia, cantava as cangöes que lhe ordenava e caminhava como se
Contudo o suplicio näo parecia insuportavel pois h . estivesse acordado.
pediss lt , av1a quem 0 Marques de Puysegur ficou maravilhado e, preso as dou-
. e pa:a vo ar no dia imediato, o que par ece dar razäo a
mterpr etagao de Bailly · · trinas do Mestre, julgou-se possuidor de um fluido de qualidade
1s.
. , que via, em algumas cnses ' equivalentes superior. Divulgou-se o facto, passou a categoria de milagre e o
sexua
solar encheu-se de doentes vindos de toda a parte, Corno näo
.A obra de Mesmer deixou vestigios. Näo Ihe ficaram na
pudesse atender täo elevado nfuner o de clientes, e para que todos
esteira apenas os. -dmiradores; tambem criou discipulos e alguns
pudessem beneficiar do fluido de que se julgava possuidor, magne-
conservaram -se f1e1s, repetindo as suas prä.ticas.
tizou uma arvore, a cuja sombra os doentes podiam esperar as
i:ara äo alongarmos excessivamente esta hist6ria pregressa vantagens do misterioso fluido.
do h1pnot1smo, destacaremos, entre todos o nome d M Este expediente näo era original. Mesmer ja o tinha empre-
Ch t d , , o arques
a enet e Puysegur, que constatou a existencia de factos novos gado. Quando chegou a Paris, comegou as suas experiencias numa
e ,fo1 o precursor e o mestre do padre portugues . Deve-se a Puy- espagosa sala de um predi o da praga Vendöme. A breve trecho
s:_gur o ter n tado, pela primeira vez, a sintomatolog ia embora verificou que ela näo podia conter a multidäo, todos os dias cres-
nao pormenonzada do sona b I ' , . ' cente, de curiosos e enfermos que acorriam as sessöes. Comprou,
men"" ' m u ismo magnehco, ou artificial-
ï l provocado, em que descobriu certas manifesta..,ö es da por isso, o palacio Bullion, na praga da Bolsa, onde instalou, em
achv1dade cerebral. vez duma, quatro tinas cheias das mesmos ingredientes e de
Estes factos tinham sido averiguados, alguns anos antes gnrrafas de ä.gua, umas com os gargalos convergindo para o
Sauvages numa comunicagäo feita em 174 a Ac d . d ' por centro e outras em sentido inverso, Ora Mesmer garantia que
d· · d p a em1a e Me-
1cma e aris e mais tarde, em 1769, 2 na sua N osograph ia me- e.ssa agua estava magnetizada e dela derivavam as virtudes que
·-
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se transmitiam aos doentes. A sua varinha mägica adicion.ava fasse um charlatäo. Foi-o sob outros aspectos; mas näo na base
11ovos fluidos e os passes manuais impunham ainda com mais fundamental da sua doutrina.
seguranga a forga mist eriosa de que dispunha. Era a magneti- Voltemos as sessöes de Puysegur, que abandonämos por um
zagäc que denominou a grarules correntes, no que era auxiliado momento para mostrar que a ideia da magnetizagäo dos vegetais
pE>lo seu discipulo Deslon. Mas, em geral, näo era precisa tanta pertencia ao medico vienense.
minucia de tratamento: bastavam os fluidos da caixa ou tina Corno nas sessöes de Mesmer, alguns doentes de Puysegur
magnetica, podendo, assim, tratar ao mesmo tempo toda a casta caiam em crise, outros entravam em estado sonambulico. Estes
de pa.cientes que se comprimiam em torno das quatro fontes de adquiriam mesmo propriedades inesperadas: reconheciam, tocando
magnetismo instaladas no paläcio. os doentes, os males de que sofriam, a natureza do mal e o re-
medio que lhes convinha. Esta ilus6ria virtude deslumbrou Puy-
A magnetiza äo da ägua ou de qualquer outra substäncia era segur, que nunca tendo estudado medicina, deu inteiro credito
simples: Mesmer passava com a batuta no sentido dos pontos as declaragöes dos seus sonämbulos. Sentia-se mesmo deslumbrado
ca,rdeais: primeiro norte-sul, depois este-oeste . com a fora de que julgava dispor. Revela-o bem na frase duma
E como a multidäo continuasse a afluir na primeira fase do carta, em que transparecem ao mesmo tempo as suas belas inten-
seu sucesso terapeutico, e para dar uma satisfagäo a todos os göes, dirigida em 8 de Marge de 1784, a um dos seus amigos;
que pretendiam lucrar com a sua influencia, magnetizou, por sis- «la tete me tourne de plais ir en voyant le bien que je fais autour
tema identico, uma arvore da rua Bondy, a cuja sombra se aco- <1e moil»
lhiam centenas de doentes, numa peregrinagäo constante, ävidos Tres anos mais tarde, um medico de Lyon, Petetin, vem afir-
de cura, cheios da fä que as vezes se traduzia em resultatlos mar que reconhecera nos seus sonämbulos factos ainda mais ex-
beneficos iguais aos que hoje se constatam nos lugares santos e traordinär ios. Apesar de insensiveis as excitagöes exteriores, viam,
nas fontes milagrosas. ouviam e gostavam atraves do epigästrico e dos dedos dos pes e
Puysegur, numa grande änsia de fazer o bem, iluminado por das mäos . E confirmava os factos apontados pelo Marques de
uma certeza que factos novos dia a dia lhe avigoravam, recorreu Puysegur : liam no pröprio corpo e nos doentes que lhes eram
ao mesmo sistema da ärvore magnetica, a qual julgou transrnitir apresentados!
o fluido que possuia. E, assim, o seu filantropismo pöde sossegar a Todos resvalavam, e de cada vez mais, no dominio do ma-
sombra da ideia de que todos os doentes que ele näo conseguia ravilhoso.
atender individualmente podiam aproveitar dos beneficios do Estas investigagöeös, deficientemente conduzidas e, cumpre
magnetisrno redentor s6 porque tocavam a ärvore sagrada de dize-lo, erigadas de erros, väo encontrar uma explicagäo muito
Buzancy. mais simples nas doutrinas do padre Faria. Recordando as pas-
E por näo pormos em duvida a sinceridade das opm1oes de sagens mais importantes da hist6ria do hipnotismo, quisemos
Puysegur que julgamos injustas muitas das acusagöes feitas a mostrar o ambiente em que se desenvolveu a sua obra de reacgäo
Mesmer. Este tambem acreditava -e era fäcil ter a ilusäo -em contra as concepgöes dos que, acreditando nos fenömenos magne-
que possuia qualidades fluidicas capazes de produzir os estranhos ticos, as impunham como dogmas insofismäveis.
fen6rnenos que observava. Neste ponto , pelo menos durante um A sua voz perdeu-se por muito tempo entre os cepticos que
largo periodo da sua vida ae magnetizador, näo cremos que ele näo quiseram dar-se ao trabalho de verificar os fenömenos sonam-
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PAI E FILHO
I
Nasceu o padre Jose Cust6dio de Faria em Candolim, aldeia
de Bardes, Goa, em 30 de Maio de 1756. Seu pai, Caetano Vitorino
de Faria, natural de Colvale, tambem do concelho de Bardes, de-
0 padre Faria era, pois, filho Iegitimo do padre Caetano se fala de «um clerigo, natural da fndia, chamado o padre Cae-
Vitorino de Faria e da freira Rosa Maria, o que levou alguns tano. Este sujeito foi casado nesse Estado, e ajustando-se com
dos seus bi6grafos a considerarem-no como filho natural. sua mulher a ser ela religiosa e ele sacerdote, entrou ela no
Caetano Vitorino de Faria decidiu-se entäo a partir para Mosteiro de Santa M6nica de Goa, onde se acha, e ele tomando
Lisboa. Acompanhou-o seu filho, que ao tempo tinha 15 anos. Ordens Sacras, veio com o filho parar a Roma.».
Sairam da 1ndia em 21ou 22 de Fevereiro, no navio s. Jose que Tratando, a seguir, a referida Mongäo, da acäo que desem-
chegou ao nosso porto em 23 de Novembro. penhou em Lisboa no ano de 1799, nada diz da sua estada nesta
De todo o passado do padre Faria na 1ndia resta ainda a cidade no ano de 1772.
casa de sua mae em Candolim, mas a casa de seu pai e a grande Pelo menos nessa primeira passagem näo preocupou os go-
capela que Ihe pertencia cairam em ruina, passando mais tarde a vernos, nem deixou vestigio apreciavel da sua actividade. Contudo,
posse da familia de Jose Nicolau da Fonseca, autor de The His- conseguiu entrar no Pago e alcangar as boas gragas de D. Jose I
tory of Goa. Nesta epoca, diremos de passagem, em que as lapides que, como se vera adiante, auxiliou a educaQäO, em Italia, do que
superabundam, bom seria que, por iniciativa do Governo da Me- mais tarde havia de ser o celebre padre Faria.
tropole ou da 1ndia, se recordasse o nome do Padre Faria ao Pai e filho seguiram, por Genova, para Roma, em 1772, com
menos na casa onde nasceu. cartas de recomendagao do Nuncio e de outras personagens de
Chegado a Lisboa, o padre Caetano Vitorino, servindo-se de valia. Pretendia o padre Cust6dio educar o filho e alcangar para
cartas de apresentagao que trouxe de Goa, cultivou relagöes com ele o grau de doutor em teologia, o que facilitaria a realizagäo
pessoas altamente colocadas, tendo feito amizade com 0 Nuncio das suas ambigöes.
Apost6lico, arcebispo de Tiro, ao qual apresentou uma mem6ria Alcangado o pretendido titulo, regressou a Lisboa em 1777,
sobre as missöes da 1ndia (1) . sendo recebido na corte de D. Maria I, Continuou a insinuar-se
no convivio do Nuncio e de membros do governo, obtendo uma
certa inf luencia que, por firn, acabou por ser suspeita.
(1 Fora ela copiada pelo filho, ao tempo com 16 anos, e devia ter boa Servia de procurador as pretensöes que OS seus patricios
Ie_tra, pms em crta que o padre Custödio Vitorino dlrigiu ao padre Pascoal tinham na corte, alcangava do Nlincio ou directamente de Roma
Pr;ito: de C_andoh1?• em 2 de Fevereiro de 1772, relata o facto, dizendo que o
Nunc10 murto -estimara saber quem fora o copista, breves indulgencias, capelas, etc., e a ele se chegavam, segundo
11: certo que o Nuncio manifestou por ele uma certa estima e tanto
que lhe of:receu tres eontinhas, uma para o filho, outra para ele e outra
para a frerra que fora sua mulher, .com as verönicas de prata e com indul-
gencia plenä.ria na hora da morte. dores o importe le verönicas, cruzes, campainhas do Loreto e outras cousas
Mais tarde e, segundo diz, com autorizac;äo do mesmo Nuncio de as de que tudo vai um caixote cheio com o Ietreiro: senhor Inä.cio Pinto. Rogo
poder dar a quem lhe aprouvesse, ofereceu-as ao padre Pascoal Pinto como a V. M. disponha dessas cousas e do seu produto remeta pe<;as de lenc;os,
consta da mesma carta. ' cobertores de cama e outras cousas que ele pede por uma lista que me
A sua ac<;äo estendia-se aos criados da nunciatura. entregou hoje, ·prometendo-me pa;gar o que lä. custar de mais, sobre o que
escrevo tambem ao Padre Jose para ver se pode suprir.»
Diz ainda ao padre Pascoal Pinto: «Hum criado secular do Senhor (z) Devemos esta e outras c6pias ao professor Germano Correia, da
Nuncio me intercede a que Ihe fa<;a produzir pelos meus senhores procura-
Escola de Nova Goa, a quem aqui patenteamos os nossos agradecimentos.
32 PAI E FILHO PAI E FILHO 33
informa Cunha Rivara, os que iam de Goa a Lisboa a buscar Näo devia andar lange da verdade o ministro Martinho de
fortuna ou a tentar neg6cios. Melo e Castro, embora se näo possa incriminar esta au aquela
Estä, porem, provado que näo foi confessor da Rainha, como Congregagäo. No livro das Mongöes do Reino existe uma carta
se tem dito. do pröprio padre Cust6dio em que recomenda aos seus amigos
de Goa dois missionarios da Congregaäo de S, Vicente de Paula
que podiam muito bem ser indicados por aqueles que dirigiam os
seus passos em Lisboa. Somente -e isso se depreende da referida
carta -ao lado do interesse religioso transparecia a aspiragäo
0 padre Cust6dio näo tinha grande simpatia pela dominaäo nativista. Talvez se servisse dos primeiros como meio para o firn
portuguesa na :tndia e tanto que, mais tarde, foi considerado como da redengäo da sua raa, causa a que votava o maior entusiasmo.
implicado na celebre conjuragäo de 1787. No documento a que 0 ministro informava ainda D. Frederico Guilherme de Sousa,
nos vimos reportando, que e de 1779 e assinado pelo ministro governador das lndias, que «ficasse de sobreaviso por ser pos- sivel
Martinho de Melo e Castro, diz-se «que ele clamava contra as que o padre Cust6dio alardeasse das boas relaöes que man- tinha
ordens religiosas por causa da relaxagäo em que todas se encon- em Lisboa com ministros e personalidades importantes a firn
travam, contra os Ministros e Militar es e enfim contra tudo o de se inculcar como pessoa consultada sobre Neg6cios da lndia».
que e portugues na India, por conta das vexagöes e o abatimento E concluia:
com que tratam os naturais, maltratando-os com dispendios e «Näo obstante, porern, tudo quanto ai se poderä dizer sobre
violencias e extorquindo-lhes tudo quanto tem ». o mencionado clerigo ou que ele tenha sugerido aos seus nacionais,
Estamos convencidos, a face da hist6ria, que abusos houve tenha V, Sria. a certeza de que o conceito que aqui se faz dele e
e graves, o que resgata em grande parte aos nossos olhos a ten- de um eclesiästico na realidade bem procedido e muito desinte-
dencia nativista do padre Cust6dio. ressado quanto ao seu pessoal, mas ao rnesrno tempo louco e
Notava o ministro da mesma Mongäo que «este clerigo pa- muito falto de sinceridade, com grande propensäo ao seu valor
recia, a principio, muito extraordinario, porque, sendo da privanga de enganos para conseguir com eles os seus fins. E nesta in teli-
dos ministros, näo constava que ele pedisse ou procurasse para si gencia, sem que V. Sria. faga caso algum do que o mesmo clerigo
coisa que pudesse ser-lhe util, ainda que padecesse, como se en- podera ter mandado dizer, principalrnente sobre o irnportante
tende que padecia, algumas necessidades». artigo das Reclutas, deve V. Sria, mandar executar inviolavel-
Corno pretensa explicagao deste desinteresse, acrescentava a mente o que a este respeito lhe vai determinado ern outra carta».
referida Mongäo: «Observou-se, porem, que nas ocasiües de se Um das pontos que merecia mais acerbas criticas ao padre
expedirem os navios para a India, sugeria nas Secretarias do Cust6dio era a forma porque era feita a chamada dos mancebos
Estado diferentes planos de Reforma, todos dirigidos principal- para a tropa e em especial em 1775 e anos imediatos. Ousava
mente a favor da Congregagäo de Säo Felipe Neri; ate que, en- trando- afirmar que o «Pai que tinha dinheiro e que dava alguns centos
se em mais alguma averiguagao a respeito deste clerigo, se de xerafins, tinha infalivelmente o filho isento do servigo e que
descobriram bastantes indicios de que ele era assistido pelos mesmos s6 o miserävel e o pobre se prendia para ele».
Neris, para procurar nesta Corte tudo o que fasse van- tagem sua.». E näo devia andar longe da verdade ...
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34 PAI E FILHO PAI E FILHO
Pelo que aträ.s fica dito, ve-se que a sua situagäo em Lisboa Logo que ern Roma terminou os seus estudos, regressou a
se tornara insustentä.vel a partir de 1779. Entrara em desgraQa e Lisboa , onde criou uma boa situagäo no meio aristocrätico. Des-
as suas pretensöes, como se pod e ver do tom da carta do gover- pertou uma certa curiosidade, näo s6 pela situaQäo que seu pai, o
nador da India em resposta a Mongäo citada ( 1) , eram sistema- padre Cust6dio, tinha alcanQado na capital, mas ate pela cir-
ticamente arredadas. cunstäncia de ser filho legitimo de um padre e de uma freira.
Esta resenha hist6rica sobre a vida do pai do padre Faria Conseguiu ser bem acolhido no meio eclesiastico e parece
vem apenas demonstrar que, tendo embora um fundo de justiga, que chegou a pregar na Corte. A este prop6sito conta Dalgado,
havia nos seus prop6sitos uma bem marcada ambigao de prepon- na sua interessante monografia, que quando, pela primeira vez,
deräncia e de direcgao sobre os seus patricios . subiu ao plilpito, rodeado por elevadas personagens, sentiu var-
Falemos agora do f ilho, que ficara em Roma no colegio da rer-se todo o discurso, dispondo-se a descer por lhe ser impossivel
Pr'opaganda Fide. Concluiu o seu doutorado e ordenou-se padre continuar . 0 pai, que näo estava longe, disse-lhe em tarn bas- tante
em 12 de Margo de 1780. alto de forma que ele ouvisse distintamente: Hi sogli bhagi, que
A sua tese: -De existenctia Dei. D eo uno et Divina Revela- quer dizer : «Säo todos cabeQas de palha», o que o acalmou por
tione -e dedicada a rainha D. Maria I e ao rei D. Pedro III, visto forma a poder prosseguir o seu sermäo.
ter ja falecido o rei D. Jose, a quem se confessa devedor de uma Este facto, sobre que alias hä fundament adas duvidas, e
protecgäo que lhe perrnitiu continuar os seus estudos. Era, por especialmente o que informam os jornais da epoca acerca das
isso, a sua filha, a rainha D. Maria I, que rendia agora as suas suas conferencias de Paris, mostram que o näo f adara a natureza
homenagens . para sugestionar as multidoes com rasgos de eloquencia.
Foi preside nte do jliri Frei Tomä.s Maria Carboni e parece Outros destinos lhe reservavam as suas notäveis qualid ades
que a defesa näo foi brilhante. Nos livros do colegio encontra-se de observador, de que em breve nos ocuparemos.
a seguinte noticia a respeito do padre Faria: Ohe ehe sia ora, Tanto seu pai era apegado aos neg6cios da f ndia quanto ele
quando fu in Oollegio si port6 bene> e sebbene in occasione di se mostrava desinteressado. Näo mantinha relaQ6es com antigos
publica Oonclusione mostr6 dell'orgoglio non intorno il Dottrinale companheiros, visto que no inicio da adolescencia o deslocaram
ma intorno all'ortermenla com impegno> e con quase forzatamente para longinquas paragens. Das cartas que escreveu para a terra
dedicarla. natal apenas ha noticia de uma dirigida a seu prima Antonio
A referencia, que näo esta datada, näo foi escrita quando Joäo de Sousa, recomendando-lhe uma rapariga, Catarina, filhri,
Faria saiu do colegio, mas mais tarde, quando ele comegou a adoptiva de sua mäe e companheira de infä.ncia, a quem enviou
sair do anonimato. E tanto assirn e que acrescenta: «Faria vive um orat6rio com imagens, que parece ainda hoje existir . Esta
em Lisboa ou oculta-se num outro pais do Continente por causa nota af ectiva do padre Faria representa uma evocaQäo da vida
de quaisquer influencias da Corte.» Esta informagäo deriva evi- de familia desf eita para sempre adentro da grade de um convento
dentemente de noticias idas de Portugal. Deve ter sido exarada e no afastamento voluntario do pai para a vida eclesiästica.
no livro das alunos quando Faria ja residia em Paris. Demorou-se o padre Faria em Lisboa dez anos, de 1777 a
1788, tendo lutado durante esse tempo por alcangar uma mitra.
Os seus argumentos näo foram atendidos. Entre eles havia um
(1) Livro das Mon!<öes do Reino, n.• 159 de 1779, fls, 163 e 164. em que se reflectia a ideia nativista, preocupagäo constante de
36 PAI E FILHO
(1) Alguns deles conseguiram mitras nos seculos :X:VII e XVIII. (1) Nababo de Misore.
A CONJURAQAO DE GOA DE 1787 A CONJURA<;.AO DE GOA DE 1787 39
38
Vinha de longe a conspirata (1) . Cunha Rivara, na hist6ria Os referidos clerigos ambicionavam mitras, pecha antiga dos
do celebre acontecimento, refere que värios eclesiä.sticos goenses e padres indianos, que viram sempre os naturais preferidos pelos
outros naturais da 1ndia tinham, anos antes, emigrado para Lis- continentais nos lugares do episcopado.
boa. Entre eles o mais antigo fora o padre Caetano Vitorino Faria, 0 padre Caetano Vitorino de Faria alimentava as ambigöes
que «soubera grangear boa aceitaäo entre a fidalguia e ainda dos colegas, dando-lhes conta dos seus primeiros passos em Lisboa,
no pago ; e que por isso era o patriarca e patrono daquela col6nia logo a chegada, em 1772, contando-lhes a boa aceitagäo que ti-
indiana ». vera junto do Nuncio, Arcebispo de Tiro, devido a apresenta äo
De facto, quando o Secretärio de Estado (Martinho de Melo do beneditino Fr. Joäo Baptista de S. Caetano, que lhe parecia
e Castro) respondia ao governador da fndia sobre a sedigäo, infor- muito amigo dos naturais de Goa.
mava que tinha suficiente conhecimento dos que se diziam seus Mais tarde, depois de regressar de Roma, chegou a escrever
principais autores: «dois clerigos que vieram a este reino com que «näo descansaria enquanto näo entregasse a mitra e o bago
pretensöes de serem empregados na fndia». aos seus colegas, a imitaäo de S. Paulo e mais ap6stolos. Jul-
Esses padres, porem, tinham regressado a Goa por lhes ter gava o padre, ou disso se jactava, que o seu poderio e influencia
dito 0 Ministro, para se descartar deles, que o Arcebispo os ocupa- eram grandes näo s6 junto do Ministerio e da Mesa Cens6ria,
ria conforme os seus merecim entos. Eram eles Jose Antonio Gon- mas tambem do Cardeal da Cunha, fidalgos da corte, e da pr6pria
galves e Caetano Francisco do Couto, conspiradores categorizados. Rainha. Tinha uma certa razao para o pensar , pois chegou a ser
O governador tinha jä a ferros este ultimo. Pelo seu lao, consultado nas coisas da lndia, especialmente nas eclesiästicas .
Melo e Castro recomendava que «seria, da mesma sorte, mmto
Nas notas ou glosas que, por determinaäo regia, fez sobre a
acertado que se desse busca aos papeis dos capturados, para ver
informaäo do bispo de Cochim, governador do arcebispado de
se tinham alguma correspondencia com os potentados vizinhos
Goa, no ano de 1781, e em que colaborou tambem o padre Caetano
desse Estado, particularmente com Tipu Sultäo, devendo ser este Francisco Couto, de novo chegado a capital, pöde dar largas a
o ponto mais essencial do seu cuidado para se a-cautelar», sua veia nativista.
Martinho de Melo e Castro correlacionou, e bem, o movi-
Dizia o bispo de Cochim, no § 10. da sua carta ou informagäo,
0
que lhe resultaria a maior conveniencia de entrar ao servigo de cria.do o Arcebispado de Goa ! Näo contente com isto, da a fndia
Tipli.» por patria a S, Tome e acrescenta num prop6sito messianico: «Eu
Os referidos fugitivos, entre os quais seguia o padre Jose vou baptisar todos os gentios, näo somente de Goa, mas de toda
Cnst6dio de Faria, puderam escapar-se a tempo. 0 terem sido a f ndia, e a dar a minha vida por eles, para que sejam felizes
avisados evitou-lhes a prisäo. 0 mesmo näo sucedeu ao padre eternamente».
Caetano Vitorino que, ou por confiar excessivamente nas suas Um novo Cristo, que a custa da pr6pria vida daria ventura
antigas relaQöes, ou por quaisquer outros motivos, arrostou com perene a sua raga!
as consequencias, tendo sido internado no convento dos Paulistas, Diz Cunha Rivara que se näo visse esta carta escrita pelo
onde assistia. pr6prio punho do padre Caetano Vitorino a julgaria falsificada
Ignora-se o tempo que esteve preso. Näo se sabem mesmo por algum dos seus inimigos. A explicaQäo e fä.cil. 0 desditoso
noticias suas ate ao ano de 1779, em que escreveu com a data padre estava nessa epoca em avangada idade. 0 seu cerebro en-
de 4 de Abril a um gentio de Goa, de nome Rama Custan Naique, trara naquele periodo da involugäo senil que arrasta aos desvairos
sobre neg6cios e contas, divagando em maximas religiosas intei- mentais de que esse ultimo documento e prova flagrante.
ramente despropositadas, a mis'Eura com confusos arrazoados: Essa carta foi depois apanhada pelos seus amigos Pintos
«... e espero assegurar outra felicidade muito maior e sem corn- (que deram o nome a conjuragäo de 1787) e guardada entre os
paraQao alguma, pela qual estou contendendo ja ha vinte e dois papeis da casa, no bom prop6sito de evitarem apreciagöes desa-
e mais anos com esta Europa toda, que se gloria da desgraQa de gradaveis para o infeliz defensor da independencia da raga indiana.
V. M.cs e f azem nela a sua felicidade pr6pria com verem a lamen- Pouco tempo devia sobreviver o padre Caetano Vitorino ao
tavel ruina de V. M.ces que eu, como e verdadeiro patricio solicito ano de 1799, em que a escreveu, mas näo pudemos averiguar a
sem que V. M .ces me tenham dado comissäo para o procurar, e o data do seu f alecimento.
faQo apesar de arriscar a minha pr6pria vida, somente para que
meus patricios sejam verdadeiramente felizes, ja que o nosso
Criador me fez conhecer a desgraQa da patria que esta precipi-
tada em sua cegueira digna de compaixäo e esta näo se acha
na Europa.»
Alem da emaranhada exposiQäo, mais de estranhar num padre
que se dirige a um gentio com quem tem apenas contas a regu-
larizar, ha a notar o esbogo de ideias nativistas em prol da patria
distante.
E ainda curiosa a seguinte passagem: «Eu tenho trabalhado
para tirar das mäos dos europeus o nosso Arcebispado de Goa e
india que o nosso Criador e Redentor nos deu hä. mil e oitocentos
anos pelo seu Ap6stolo S. Tome...»
A carta foi escrita em 1799, Pelo que fica transcrito, um ano
antes de ter nascido Jesus Cristo ja o ap6stolo S. Tome teria
VI
0 PROFESSOR DE FILOSOFIA
em 13 de Agosto de 1788, nao obteve o sucesso a que aspirava do _Dir ect6ri e a sua sombra deve ter criado relagöes e influencias
e a questäo indiana acabou por ceder lugar no seu espirito ao CUJ extensao e valor näo conseguimos esquadrinhar. Servern,
desejo de uma situagäo que lhe permitisse viver em Franga e que P?rem, para explicar o desenrolar de factos subsequentes da sua
lhe desse alguma celebridade, pois ja tinha demonstrado que am- v1da aventurosa por terras de Franga.
bicionava posigöes de destaque. Dev_e ter con?ecido por essa epoca, e como consequencia da
Desde 1788, em que ele chegou a Paris, ate 1792, nada consta sua ntitude anti-convencionalista, o Marques de Chastenet de
da sua passagem pela grande capital; mas neste ano apareceu, Puysegur, um dos discipulos de Mesmer a que ja nos referimos.
pela primeira vez, o seu nome em documento do Registo das A bra de Fri sobre as Oausas do sono luci<Io, publicada muito
denuncia96es. rr:1s tare, ultimo brado da sua actividade de hipnotizador e de
Habitava o padre Faria uma pensäo instalada no predio n. 49
0
fllosofo, e dedicada ao Marques e a ele se dirige nestes termos.
da rua Ponceau que, segundo as investigagöes de Dalgado, deve «Il vou est du de ma part avec d'autant plus de justice que j ;
corresponder ao n. 7 actual, e de que era proprietä.ria Madame
0
reconnais dans vos sages avis et dans vos bienveillantes instruc-
Chibler. A sua cor bronzeada, a alta estatura, que a magreza tions le germe de mes meditations et de 7,a perseverance de mes
mais acentuava, e especialmente as suas opiniöes politicas que ef forts. »
nao guardava, chamaram sobre si a ate11gäo dos vizinhos. Duas Näo e fäcil precisar a data exacta sobre o inicio das suas
testemunhas vieram depor contra ele: Caurel, sapateiro, que o pä.ticas magneticas . 0 padre Faria foi levado a elas por curio-
classificou de refractario e incendiä.rio; e Pirou, pintor, secretario sdade do seu espirito, pela leitura da obra de Mesmer e espe-
da Assembleia primä.ria, que declarou ter ouvido dizer a Mme. calente pelas sugestöes de Puysegur e ate, quem sabe? no pro-
Chibler e a sua cozinheira que ele mostrava desejos de ter no pos1to de melhorar a sua situagäo financeira a sombra da clientela
Champ-de-M ars tantos postes como guardas nacionais e patriotas, que, apesar do insucesso de Mesmer, era passive!obter.
f!, firn de os poder mandar enforcar. Tarnbern o acusaram de jogador
0 misterioso atrai sempre as multidöes ä.vidas de tratamentos
e frequentador do Palais Royal. ineditos, e o padre Faria convencera-se, de facto, das vantagens
Estes depoimentos, prestados perante os comissarios Galliet que o sono hipn6tico podia trazer aos doentes. Eie nunca foi um
e Pothier, encarregados do recenseamento da Secgäo de Ponceau interesseiro; näo o deslumbrou a riqueza nem a considerou como
no ano IV da Liberdade e I da Igualdade, näo determinaram, que um firn a alcangar; mas as suas conferencias foram pagas, 0 que
se saiba, qualquer inc6modo ou vexame para o padre Faria, A_s mostra que, carecendo de viver, este aspecto do problema näo
suas prä.ticas de magnetizador näo säo evocadas nesses dep01- lhe foi de todo indiferente.
mentos, o que mostra que ele ainda näo tinha enveredado por ls autores que se referem ao padre Faria a prop6sito
esse caminho, pois näo e crivel que tivessem escapado aos seus
cla h1storia do hipnotismo, salientam a circunstancia de ser in-
denunciantes .
diano, .chegando alguns a insinuar que trouxera da sua pä.tria
Nas acusagöes feitas devia haver alguma verdade pelo que c?vhec1mentos especiais sobre o assunto. A f ndia foi sempre con-
respeita as suas opiniöes politicas, pois em 5 de Outubro de 1795 tder a terra ?.e misterios, do encanfamento das serpentes e da
(VIII do Vendimä.rio do ano IV) colocou-se a frente de um dos
imoh11Idade estmca dos faquires. Nessa epoca o desconhecido des-
batalhöes revolucionä.rios da sua secgäo, tomando parte activa na
pertava ainda mais atractivos, o sobrenatural era mais verosimil
queda da Convengäo. Este gesto devia colocä.-lo nas boas graas porque a sugestionabilidade da sociedade francesa, acostumada
48 0 PROFESSOR DE 0 PROFESSOR DE FILOSOFIA 49
FILOSOFIA
espiritos maus. Por outro lado Faria näo podia merecer-lhe con-
desventuras de toda a sorte, estava mais prop1c1a a aceitar as sideraäo, pois sendo padre, mais criminosas devia considerar as
conclusöes de doutrinas mais ou menos impressionantes. Estamos suas prä.ticas.
certos de que para o sucesso do padre Faria näo deixou de con- Ao relancearmos a vista pela hist6ria da ciencia, vemos
tribuir a sua figura ascetica, a cor bronzeada e a qualidade de muitas vezes as ideias religiosas entravarem a marcha aos seus
indiano; mas e positivo que ele saiu de Goa com quinze anos progressos. Mas os prejuizos passam e a verdade vence.
incompletos e nunca mais voltou a terras de seu pais. Nem sequer
De positivo sabemos que o padre portugues continuou os seus
o prendiam relaQÖes escritas, continuadas, aos conterrä.neos.
trabalhos e investigaQöes ate 1811, em que foi nomeado professor
Os seus conhecimentos sobre o magnetismo datam de Paris e
de Filosofia na Academia de Marselha.
depois de ter travado relaQÖes com Puysegur, a quem dedicou a
0 que determinou essa nomeagäo ?
sua obra.
A primeira noticia que se conhece sobre a actividade de Conta-se que o padre Faria conhecera, numa casa de jogo,
magnetizador do padre Farla e de 1802, sete anos depois da uma personagem altamente colocada, que lhe conseguiu a no-
jmplantaQäo do Direct6rio, nas M em6rias de azem-tumulo, de meaäo. Diz-se ate que com o seu misterioso poder magnetico se
Chateaubriand, publicadas em 1843, ap6s a sua morte. Refere-se tornara täo temido nessa casa que os proprietarios lhe davam
ac padre Faria, com quem jantara em casa de Mme. la Marquise uma pensäo diaria para ele näo jogar. E o que se Ie no M oniteur
de Custine, em termos pouco agradäveis. 0 padre afirmou que Unive:rsel , de 5 de Outubro de 1919.
conseguia matar um canario magnetizando-o. Posto a prova, falhou Todos sabem, porem, que nem OS magnetizadores dessa epoca
a experiencia, o que levou Chateaubriand a concluir: «Chretien, nem os hipnotizadores de hoje conseguem forar a sorte. Podia
ma seule presence avait rendu Ze trepied impuissanb. Desta vez ser -os jogadores sä:.o sempre suversticiosos -que se arreceas-
ambos estavam em erro: nem um era capaz de matar o inofensivo sem das suas präticas magneticas, mas näo parece muito crivel
passarito, magrn:tizando-o; nem o outro poderia impedir as prä- que fasse um companheiro de jogo que o conseguisse despachar
ticas entäo chamadas magneticas s6 porque professava a religiäo professor e especialmente determinado pelo receio de arruinar os
cristä. proprietarios da casa de tavotagem onde se encontravam . As re- laöes
Esta passagem mostra que Faria sabia cultivar rela öes, que obteve ap6s a acQäo revolucionäria contra a ConvenQäo, a
frequentando salöes do maior renome de Paris. Antes dessa epoca divulgaQao das suas ideias sobre o magnetismo, que haviam de
ja ele devia ter praticado, e muito, o magneti smo para se apre- comear a espalhar-se entre os amigos, e ainda a circunstä.ncia
sentar perante um publico selecto e fazer afirmaQÖes täo ousadas. de manifestar uma certa cultura filos6fica, deviam ser as causas
E possivel que em 1802 estivesse ainda dominado pela teoria das determinntes da escolha do seu nome para o liC€u ffiarselhes, que
fluidos e que s6 mais tarde, aprof undando e praticando o sonam- ao tempo se chamava Academia.
bulismo, chegasse as verdadeiras conclusöes em que assenta a sua Consta do Almanaque Imperial de 1811que Faria se manteve
doutrina. 0 insucesso de casa de Mme. de Custine deve ter-lhe em Marselha durante um ano. E nessa epoca que, segundo parece,
dado mais um argumento no sentido da boa orienta äo. foi eleito membro da Sociedade medica dessa cidade, o que s6
Esta nota de Chateaubriand, espirito de alta cultura, mas pode ser atribuido as suas präticas de magnetizador. Näo sendo
algemado aos principios da Igreja, revela a sua animosidade pelo medico, devia o seu ingresso representar uma distinä:.o excepcional.
magnetismo, que Roma condenava como sendo influenciado por
0 A.F. -
r
bulismo e o padre Faria e e uma reportagem e uma critica as estrangeiro, seria interrompida as gargalhadas ». Deve haver exa-
gero nesta apreciaQäo. 0 padre Faria näo conhecia a fundo a
cenas presenciadas.
Cornega o articulista por se insurgir contra os charlatäes es- lingua francesa, mas praticava-a de hä muito e escrevi-a com uma
trangeiros, que encontram sempre audit6rio em Paris no prop6sito certa facilidad e.
de fazer fortuna, imputagäo injusta pelo que respeita ao padre Näo tinba elegancia na exposigäo, por vezes era obscuro,
porfugues. E recorda o escoces Law, Willars, Bletton, Mesmer ... como pode reconhecer-se no seu livro; contudo, o seu estilo estran-
E enfileira a seu lado o norne de Faria. geirado näo chegava a ser ridiculo. Era, porem, pouco agradävel
Trata primeiro da assistencia, que «era brilhante, numerosa, na sua exposiQäo. Näo interessava, näo conseguia prender 0 audi-
composta, na rnaior parte, de mulheres na flor da idade, A rnaioria t6rio. Este näo o acompanhava nas suas divagagöes filos6ficas.
delas trazia as mais favoräveis disposigöes a nova doutrina». 0 jornalista faz, todavia, uma apreciagäo inexacta das suas
«Sentei-rne ao lado de Mme. Maur » -continua o jornalista -«e d.outrinas, atribuindo-lhe a afirmagäo de que considerava o magne-
pude ver atraves da sua atraente fisionomia as dif erentes modi- t1smo a base de toda a instruQiio, o fundamento de todas as
ficagöes que lhe imprimiam a credulidade, a confiana e a per- ciencias, a chave de todos os conhecimentos humanes.
suasao. O padre Faria, acompanhado de cinco ou seis raparigas, E acrescenta : «Antes de ter ouvido este fil6sofo da Costa
aparecia no recinto que lhe era reservado, numa das extremidades do Malabar, quem poderia imaginar que o magnetismo näo s6
da sala.» nos pode revelar os segredos da medicina, a causa, a sede e o
Depois, descrevendo o magnetizador, diz que a sua tez, es- remedio de todas as doengas, mas ainda fazer-nos conhecer a
curecida pelo sol de Goa, näo prejudicava a regularidade dos tragos configuraQäo, a materia, o movimento dos astros e a natureza
fision6micos e, querende fazer espirito e insinuar razöes ocultas dos seus habitantes? Devemos, por isso, ficar tranquilos sobre os
do seu sucesso sobre a assistencia feminina, chega a afirmar que «as progressos futuros da medicina e da astronomia. Mais: a moral
suas ouvintes näo tinham mais prejuizos que a doce Desdemona». e, por sua vez, esclarecida pelo magnetismo: todas as virtudes e
Nada consta, porem, na vida do padre Faria, no capitulo das todas as verdades dele derivam ; a pr6pria politica estä submetida
tentagöes amorosas. Se foi dado a devaneios, näo deram tanto a sua acäO.»
nas vistas que deles ficassem vestigios. A sua cor estranha, a Esta apreciagäo estä em desacordo com a maioria das opiniöes
expressäo fision6mica, os poderes ocultos que lhe atribuiam podiam expendidas por Faria na sua obra. Alguns erros e exageros devia
ter impressionado favoravelm ente as frequentadoras da rue Clichy ; apregoar ; mas a seu tempo demonstraremos que näo eram tantos
mas, ou por apego a principios religiosos ou ainda pelo peso dos quantos lhes säo atribuidos neste artige, e que havia mais o
sessenta, que se avizinhavam, näo esquadrinhämos na sua vida prop6sito de fazer espirito do que critica. Assim, conta que 0 padre
epis6dio que o coloque mal em materia pecadora. dissera, a respeito duma das suas alunas: El le a Ze don tout par -
A referencia vaga do eremita da Chaussee-d'Antin e a iinica ticulier de Zire en dormant, par cette partie du corps humain que
que enconträmos nos documentos compulsados le premier homme et 7,a pr emiere f emme ont du, seuls, ne pas
Que ao menos a mem6ria de Faria fique isenta de culpa, ou apporter au mond e. Infelizmente, acrescenta, a prova näo era de
pelo menos afastada da critica, sob este aspecto particular. molde a fazer-se em publico.
A sessiio principiava por uma conferencia em que, no dizer Mesmer tinha deixado aträs de si a descrenga dos fen6menos
do articulista, «era täo grotesco pelo estilo que, se näo viesse duro chamados magneticos; näo admira, por isso, que o padre Faria,
AS SESSOES DA RUA AS SESSOES DA RUA CLICHY 57
CLICHY
(1) Segundo informa Dalgado, essa casa .corresponde hoje a.o n.• 9 (1) Adiante nos ocuparemos mais pormenorizadamente deste assunto.
da Avenida da Opera, onde estä. instalado o Je sais tout .
58 AS SESSOES DA RUA AS SESSOES DA RUA CLICHY 59
CLICHY
Depois disserta sobre a imaginaQäo, citando a definiäo im- outra ärvore. Afirmou-lhes que estava magnetizada, sem o estar,
perfeita de Wolf. e a maior parte dos observados caiu em sonambulismo ,
Para o padre Faria, «a mem6ria pode existir sem a imagina- Estas concludentes experiencias jugulavam de vez a teoria
äo, mas nunca a imaginagäo sem a mem6ria», o que, näo en- fluidica.
trando em consideragäo com a interdependencia de todo o apa- 0 padre portugues viu o problema da hipnose nos seus fun-
lho psiquico, se näo afasta muito da realidade das factos. damentos com toda a precisäo e clareza. Foi ele quem primeiro
Referindo-se as quimeras e aos fantasmas, considera as pri- lh marcou os limites naturais. A sua opiniäo e firme e inabalä.vel:
meiras ficgöes inanimadas e os segundos fiC<;(Öes animadas. Junta- Nada se desenvolve no sono lucido que saia fora da esfera
-lhes os espectros, que para ele säo as ideias das imagens dos natural.»
mortos. E, em critica a este prop6sito, acrescenta : cOs antigos E, querendo ir mais longe, sentindo-se bem na passe da as-
fizeram da quimera um ser natural e feroz combatido pelo Bele- sunto, afora um ou outro pequeno exagero, escreve: «Faremos
rofon. 0 vulgo faz dos fantasmas seres reais, e os fisicos do ver que nada hä. neste fen6meno que ultrapasse os limites da
espectro (1) uma imagem corada que projecta m sobre uma parede razäo humana e que tudo e concebivel por pouco que a homem
quando cortam os raios solares por meio do prisma.» queira dar-se, de boa-fä, a investigagäo da verdade.»
Esta passagem e acompanhada de uma enfadonha dissertagäo,
Faria näo s6 observou bem os factos: procurou indagar as
com hist6ria de fantasmas a mistura, para combater a doutrina da
causas e perscrutar as razöes da diferenga de canduta dos indi-
imaginagäo. Destacamos as frases que constituem o seu principal
viduos em face das präticas hipn6ticas: uns adarmecendo logo,
argumento: «Guarda-se a mem6ria do que se imagina ; mas du-
outros sendo completamente refractärios.
rante o sono lucido, especialmente quando ele e profundo, näo se
guarda mem6ria de tudo o que se passou. Dai se conclui que o A obra de Faria näo passou alem de um volume, tendo pro-
sonambulismo provocado näo pode ser devido a imaginagäo.» metido mais dois ou tres (1) . Devia , ao iniciar o seu trabalho,
Faria afirma que o concentradar ou hignatizador näo tem d.;.vidir os assuntas pelos diversos tomos. Muito do que escreveu
fluido ou poder algum especial. 0 concentrado ou o hipnotizado e nebuloso e pouco preciso. Tinha sempre a preocupagäa filos6fica
e o linica agente activo. «Näo se fazem epoptas sempre que se e prendia-se em conjecturas metafisicas e religiosas sem impar-
queira, mas somente quando se encontrem epaptas naturais.» Par tancia e par vezes quase estranhas ao objectivo em vista. Mas
outras palavras: s6 se podem hipnotiz ar as pessaas predispastas assim como no primeiro valume publicado ha muito de aprovei-
a se-lo. tä.vel, assim nos que se lhe seguissem devia respigar-se materia
O concentrador e, para Faria, uma causa meramente ocasional. interessante derivada de uma observaäo persistente e bem orien-
Demonstrou nas suas sessöes que «Criangas padiam adormecer tada. 0 general Noizet, discipulo de Faria, dirigiu em 1820 a
adultos com a simples apresentagäa da mäo». Academia real de Berlim uma Mem6ria sobre o sonambulismo e
Colocou um certa nU:.rnero de epoptas debaixo de uma arvore magnetismo animal, que foi, mais tarde, publicada, em 1854 ( 2) , e
que previamente tinha magnetizado segundo os pracessos de Mes- em que as ideias do mestre säo claramente expostas.
mer e Puysegur. Nada sentiram. Ern seguida levou-os junto de
(1) Dalgado informa que a obra seria dividida em quatro volum es.
(1) :E curioso este trocadilho de significado a prop6sito da palavra (2)M em.oire sur Zes somnambulisme et le magnetisme animal, adresst>
<espectro . en 1820 ä. l'Academie royale de Berlim. Paris, 1854.
0 A.F. -5
66 AS DOUTRINAS DO ABADE FARIA 67
AS DOUTRINAS DO ABADE FARIA
Do renome do padre portugues, da gl6ria e triunf os passados, Noutra passagem do seu livro afirma que a f luidez do sague
s6 ficou este trabalho a recerdä.-ne nes primeiros 50 anes que se contribui näe somente para e sone ser mais profunde, mas amda
seguiram a sua morte. Fei este discipulo o unico que, cem uma para aumentar a receptivid ade hipn6tica. _ .
rara honestidade, faleu da obra do mestre. Embora numa ou neutra passagem da sua ebra expnma op1-
Seguinda-o de perto nas experiencias e na exposiäo das suas niöes vagas, mesmo para essa epeca, sebre a circulagäo do sa_ngue,
deutrinas, escrevendo com uma probidade que o honra, cita sem- e certe que a sua ebservagäa e perf eita. Notara a anem1a na
pre Faria a prop6Slto das doutrinas que defendia. De algumas maier parte dos seus sanämbules; e sangue cem mens hemagl -
delas s6 tomamos cenhecimento atraves da sua expesigäo. A sua bina era, na sua frase, mais fluido do que o sangue rio em glo-
Mem6ria e, em parte, como que um resumo, embora muito sucinto, bulos rubros dos individuas robustos, e que leveu G1lles de la
do que Faria pensava explanar nes volumes que näo vieram a lume. Tourette a dizer que Faria nao andava!enge da verdade desde
Assim teremes de nos socerrer de testemunho insuspeite de que näo se de a sua frase uma interp etagäo_ liteal.
Noizet para fazer uma ideia exacta das causas a que Faria atribuia Este aspecte organicista do hipnotisme nae fo1 reomade por
o hipnetisme. nenhum dos seus continuadores. E parece-nos bem d1gno de sr
Dividia-as em predispanentes, imediatas e ecasionais. considerade por poder trazer aspectes noves a selugäa do compll-
Entre as primeiras, dä. Faria o primeire lugar a fluidez de cado problema. .
Teda esta expasigäo de padre Faria leva-nos amda ae con-
sangue ( 1), mas tambem considera causa predisponente impor- tante
a impressienabilidade psiquica, designagäo vaga, mas que vencimento de que ele sangrou alguns das seus observades. Näo
ainda haje pade transitar em julgado sem oposigäo dos que se de- foi roedico; mas foi, pelo menes, um sangrador. _ _
Pena e que, a prop6sito da exposigäe da doutrma da flmez
dicam a estes assuntos.
do sangue, se emaranhe em complexas hip6tses sobre as _relagoes
Noizet atribui a Faria as seguintes conclusöes tiradas da sua da alma com as diversas partes do orgamsma e parec1das co-
experiencia:
gitagöes. _, .
«Todas as pessoas cujo sono e fä.cil, que transpiram muito e Outro facto pesto em destaque por Faria, e que Ja dev:a ser
que säo muito impressienä.veis, säe ordinariamente susceptiveis do conhecimento dos primitivos magnetizadores, era a particular
de senambulismo.» tendencia das mulheres para a hipnose. .
Faria apartava, portante, uma classe de impressienä.veis aptos Isso mesmo devia radicar no seu espirito a hip6t se. da flmdez
as prä.ticas sonambulicas. do sangue per haver entre elas maier numere de anem1cas.
A fluidez do sangue era, perem, a causa a que ligava maior Tarnbern foi Faria quem pös em evidencia o facto da educa-
importancia e julgava-a fundamentada em factos: cagäo da epaptas. Todos n6s sabemos que e, e eral, mais fäcil
«A experiencia fez-me ver» -diz o padre Faria -«que a hipnotizar as pessoas ja habituadas a _essas praticas., .
extracgäo duma certa quantidade de sangue tornava apoptas em Considera Faria como causa imed1ata do seno luc1do a con-
24 horas pesseas que näe tinham disposigäo algum a anterior (2) .» centrar;;äo dos sentidos, e que ele exprime nestas palavra,s '. ,
«Nae se consegue o sonambulismo quando o esp1nto esta
(1) «La liquidite du sangue». preecupado quer pela agitagäo do sangue, quer por inquietagöes
(2) Abbe de Faria -De la cause du sommeii lucide, 2.a ed. 1919 - eu preocupagöes. »
-Paris, Henri Gouve, edlteur, pä.g. 35.
68 AS DOUTRINAS DO ABADE FARIA AS DOUTRINAS DO ABADE FARIA 69
Ainda hoje todos os que hipnotizam reconhecem o valor desta e muitas vezes caia logo em sono h'.icido. Se näo dava resultado,
indicagäo . repetia a operagäo umas quatro vezes e, no caso de insucesso,
0 abandono de si pr6prio, no desejo de ser hipnotizado, e con- declarava-a refractaria ou ensaiava outros processos ,
digäo a exigir aqueles que näo caiem imediatamente a intimagao Umas vezes, quando nao obtinha o resultado desejado, mos- trava-
clä.ssica: durma! lhes a mäo aberta a distäncia, pedindo que a olhassem
Corno causa ocasional classifica Faria a ordern dada pelos f ixamente; depois aproximava-a lentamente a alguns dedos dos
concentradores, pois para ele, sem haver a causa real, a predisp o- olhos. Por vezes os seus observados entravam em sono lucido.
si-<;äo, o individuo näo cai em sonambulismo . Ainda recorria a um outro metodo: tocava ligeiramente as
Todas estas interpretagöes patenteiam a sua pe r spi ca c i a pessoas nas duas fontes, na raiz do nariz, na regiäo precordial,
analitica. a altura do diafragma, nos dois joelhos ou nos dois pes.
0 seu livro, tirando a parte filos6fica, e ainda hoje um com- «A experiencia demonstrou-me » -diz o padre Faria -«que
pendio de preciosas indicagöes sobre o hipnotismo. E näo se cri- uma ligeira pressäo destas partes provoca sempre uma concen-
tique o padre por tanto divagar sobre teorias mais ou menos tragäo suficiente a abstracgäo <los sentidos. »
nebulosas. Era o produto da sua educagäo teol6gica , Quando entra Ern todos estes processos e a sugestäo que ocupa o primeiro
rnsse campo torna-se excessivamente obscuro; mas esta falta de lugar.
clareza e pecha dos fil6sofos de todas as epocas; como 0 caducarem Juntava-lhe, num ou noutro caso, pressöes com o prop6sito
rapidamente as suas doutrinas, e sestro de todas as filosofias. de lhes prender a atengäo ou auxiliar a sonolencia. Säo praticas
Alem disso era padre e, atraves da sua obra, ha, como dis- ainda hoje usadas, com pequenas variantes.
semos, o desejo de se defender do clero intolerante que o acoimava Faria tinha assim descoberto a sugestäo hipn6tica . Abria
de pactuar com o diabo. novos horizontes. 0 chamado sono magnet ico, a que ele deu a
Ao apreciarmos as experiencias e os factos por ele descobertos, designagäo de 'sono lucido, desembaragava-se de todas as influen-
näo devemos esquecer que as correntes dominantes arrastavam os cias a que o julgavam submetido, para ser um fen6meno natural,
rnagnetizadores para a concepQäo das f or{;as-fluidicas, o que lison- apenas dependente das qualidades do concentrado, cuja classifi-
jeava a sua vaidade tornando-os seres raros e excepcionais. Por cagäo havia de vir a ser feita no campo patol6gico.
isso o padre Faria teve ainda que contar com a oposigäo dos co- E o momento de fazermos justig a a grande rnaioria dos au-
legas. A nova doutrina, francamente demolidora, vinha atingi-los tores franceses contemporäneos, que dao hoje a Faria o lugar
nas suas prosapias e pretendidas virtudes. Eie era categ6rico e que ele merece como criador da doutrina da sugestäo no hipno-
formal: s6 havia a contar com as qualidades dos epoptas, de tismo que todos hoje professamos. Jä. assim näo proced em os au-
nada servindo as pretensas qualidades que atribuiam aos hipno- tores ingleses e americanos, que atribuem a Braid a descoberta
tizadores. Por isso os seus processos de provocar o sono lucido que pertence ao padre portugues.
eram simples. Nem a tina de Mesmer, nem os passes e a acQäo da Braid publicou em 1843 o seu tratado sobre Neury pnologia:
vontade externa de Puysegur e de Deleuze ! Tratado do sonambulismo nervoso e hipn6tico, onde descreve o
Faria sentava comodamente a pessoa que queria adormecer, seu processo de hipnotizagäo por meio de um objecto brilhante
pedia-lhe para fechar os olhos e concentrar a atengao, pensando colocado de 25 a 45 centimetros dos olhos, numa posigäo tal, acirna
que ia dormir. Quando a julgava bem tranquila, dizia-lhe: durma!, da fronte, que a pessoa tenha de f azer 0 maximo esforgo dos rnus-
70 AS DOUTR INAS DO ABADE FARIA AS DOUTRINAS D0 ABADE FARIA 71
culos <los olhos e das palpebras para o fixar. Insiste com 0 obser- e da Salpetriere, que se degladiaram numa arrastada controversia
vad para _que prend a atenQäo ao objecto. «Em pouco tempo » de que todos ainda se recordam.
-d1z Bra1d -«as palpebras fecham-se involuntariamente com A escola da Salpetriere, com Charcot, liga o hipnotismo
movimentos vibrat6rios (1) e cai em sono hipn6tico.» sempre a histeria; a de Nancy, com Liebault, Bernheim e outros
Corno se ve, este processo fisico, como o designa Pitres, em- considera-o um fen6meno fisiol6gico. Nao sabemos se, ainda hoje,
bora o näo seja inteiramente, pois Braid impöe ao observado o a escola de Nancy tem muitos aaeptos; a interpretaäo de Charcot,
fixar a sua atenQäo num objecto, pouco difere do processo da que julgamo s firmada em factos incontroversos, e, por certo, a
mäo, que Faria descrevera e executara trinta anos antes, Mais: mais seguida.
Braid adoptou, por firn, o processo da simples sugestäo, ao co- Faria relacionava mais particularmente o sono lucido com o
mando, tal como o descreveu Faria. sonambulismo natural. Ja em epocas anteriores este tomara um
Inquestionavelm ente, deve-se ao padre portugues a descoberta Iugar especial na interpretagao dos fen6menos psiquicos pelo seu
do processo sugestivo da hipnose. Cabe-lhe ainda a gl6ria de des- aspecto maravilhoso. Basta recordar a cena da Macbeth, de Sha-
crever manobras ffsicas adjuvantes, que depois dele foram em- kespeare, em que o sonambulismo natural e relegado para uma
pregadas com pequenas alteraQÖes. esfera superior a ciencia da epoca. Lady Macbeth fala, dormindo.
Para acordar os seus sonambulos, servia-se Faria do mesmo O medico comenta: «Esta doenQa esta acima da minha arte.»
processo sugestivo. Ä VOZ de «desperte!», OS seus epoptas acor- Nao admira que Faria aproximasse os dois estados. E mais
davarn. Outras vezes passava a mäo diante dos olhos, com o mesmo uma demonstraQao da sua perspicä.cia de observador cuidadoso.
f irn. Braid dava-lhes uma palmada, o que tambem näo foi des- Ultimam ente, em 1910, Babinski veio lanar o pregäo de uma
conhecido do padre portugues. duvida (1) : «Se o hipnotismo constitui bem uma realidade.»
Pode dizer-se com inteira verdade que a pratica hipn6tica estä Num trabalho (2) que publicamos a esse respeito, enfileirämos
hoje onde Faria a deixou. ao lado dos que o consideram como uma realidade insofismävel.
Faria aproxima, no seu trabalho, o sono hipn6tico (sono lu- cido)
do sono natural. Vai mesmo ate a afirmaQäo de que todas I O argumento de que a hipnose pode ser simulada, nada depöe
contra 0 facto em si. Foi uma dessas mistificaöes que levou o
as observaQÖes depöem em favor de serem «o sono lucido e o t padre Faria ao tablado do teatro, numa troa escandalosa. As
doutrinas de Babinski, que alias nao säo inteiramente categ6ricas,
sono natural prof undo uma e a mesma coisa».
Näo mantem constantemente esta maneira de ver. Noutra
} e em que transparece o seu cauteloso espirito analitico, que poucos
passagem da sua obra, escreve: «Ainda que o sono liicido seja excederam no campo da patologia medica, nao criaram adeptos.
uma doenga (como a catalepsia) , todavia e uma doenQa que entra Seria mais uma escola, a negativista, a colocar o lado das orien-
na categoria das que säo inseparäveis da condiQäo humana .» taQÖes da Salpetriere e de Nancy.
Faria, nestas passagens, deambula entre as duas interpreta- Deixemos as teorias de Faria sobre a natureza intima da hi-
göes que mais tarde foram os estandartes das escolas de Nancy pnose. Corno espiritualista, toda a sua doutrina se apoia nas rela-
öes da alma com a materia, Durant e tres longos capitulos , disserta
. (1) Ja Faria_ notara esses movimentos vibrat6rios das palpebras. Noizet
diz, na sua M em6ria: «Un autre caractere qui semble commum ci tous Zes (1) Bemaine med.icale, 27 juillet 1910.
somnambules, est un battement rapide et continu dans les paupieres Zorsque
Zes yeux sont legerement fermes. » (2) Egas Moniz -As novas ideias sobre o hipnotismo -Aspectos me-
Esta observaäo vinha da prätica adquirida nas sessöes da rua Clichy. dico-legais -Lisboa, 1914, pä.g. 16.
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72 AS DOUTRINAS DO ABADE FARIA
(1) A. Pitres -Lei;ons clf niques sur l'hysteri e et l'hypnoti sme faites d
l'höpital Saint Andr e de Bordeaux -Ouvrage preced e d'une Lettre -Preface
de M. le Prof esseur J. M. Charcot, Paris 1809, voL II, päg. 114.
74 A SINTOMATOLOGIA DO A SINTOMATOLOGIA DO SONAMBULISMO 75
SONAMBULISMO
A escola clässica, e com ela os experimentadores que se lhe mente, nos dias imediatos as sessöes e chamando a atengäo do
seguiram, considera a amnesia do hipnotizado como um facto o)Servado para os factos mais importantes decorridos durante a
inquestionävel. Faria pöe, porem, algumas restrigöes. Assim, diz: lnpnose. Mas devo acentuar que nunca obtive, a näo ser em sonos
«Todas as vezes que se grava na mem6ria dos epoptas o que muito ligeiros, verdadeiros estados pre-hipn6ticos, a confissäo
se passa no sono, eles referem-no ao despertar como um sonho exacta de tudo o que ocorreu durante o sono. O que tenho conse-
que Ihes represent asse uma cena.» guido e a demonstragäo cabal de que alguma coisa permanece na
Ern outra altura do livro, escreve: mem6ria do observado e que revela facilmente por qualquer pro-
«Durante o sono lucido, especialmente quando ele e profundo, cesso habilidoso .
näo se guarda mem6ria de tudo o que se passou.» «Babinski serve-se muitas vezes do seguinte artificio: diz ao
E noutra passagem: hipnotizado a tradugäo de uma palavra da sua Ungua numa lingua
«Üs sonä.mbulos guardam a memona de tudo o que se lhes estrangeira, desconhecida para ele. Ao acordar cita-lhe essa pala- r,
irnpöe durante o sono desde que se chame a sua atenr;äo para que edndo- he o significado, e a experiencia, depois de larga
disso se recordem ao despertar.» E acrescenta: «estas experien- ms1stenc1a, da quase sempre resultado positivo, o que eu tambem
cias, em geral, näo säo positivas com os novos epoptas.» tenho verificado.
Estas transcrigöeös, que denotam um raro poder de obser- «Ern resumo, o hipnotizado näo sofre, durante a hipnose uma
vagäo, cairarn no olvido. Ninguem as foi rebuscar no esquecido amnesia total e completa; mas tambem näo pode fazer um elato
trabalho do padre goense, tanto mais que as escolas onde se p rfe,ito do que se passou durante o sono. Ha uma nubilagäo que
praticava o hipnotismo tinham como facto assente a amnesia nao e total, e aquilo que mais o feriu na imposiäo sugestiva do
hipn6tica, com exclusäo das sugestöes post-hipn6ticas em que, hipnotizador, ou o que mais facilmente pode ser recordado por
ainda assim,nem todos acreditavam. palavras ou actos subsequentes, e, por ele, confessado .»
Babinski retomou a questäo num sentido mais amplo, sinte- Esta doutrina, que vem abalar a velha concepgäo da amnesia
tizando-a nesta pergunta: «Ü hipnotizado esquece, ao acordar, hipn6tica, pelo menos no rigor etimol6gico da expressäo, foi pre-
tudo o que se passou durante o sono?» v1sta pelo padre Faria nas suas investigagöes.
Era um grito de revolta contra a crenga geral, afirmando, Ele notara que alguns hipnotizados, ao despertarem, conti-
em resposta, que o hipnotizado näo esquece completamente os nuavam, por algum tempo, com as sugestöes sensoriais impostas
factos ocorridos durante a hipnose. que, a breve trecho, se desvaneciam. Notau ainda que os factos
«Se lhe sugerirmos» -diz Babinski -«que esquega tudo o que se lhes gravavam na mem6ria persistiam como um sonho. Näo
qw se passou na sessäo hipn6tica, o sonä.mbulo defende-se de lhe ci ceitou sem restrigöes a amnesia total e completa das epoptas, 0
fazer referencias, mesmo que seja interrogado minuciosamente; que concorda com as observaöes de BabinskL Ao menos na maioria
mas, procedendo com perspicacia, a maneira de um habil juiz de dos hipnotizados, desde que se proceda a rigorosas investiga!;Öes,
instrugäo, verifica-se que a amnesia näo foi total.» e especialmente a distancia, pode descobrir-se uma ou outra re-
A este prop6sito escrevemos, em 1914, no nosso trabalho As miniscencia.
novas ideias sobre o hipnotismo: Faria, como meticuloso observador, viu o problema da su-
«Por um Iado, tendo realizado estas investigagöes, verifiquei gestäo sob os mais variados aspectos, procurando os seus efeitos
sei· absolutamente exacto este modo de ver, f azendo-as, especial- näC1 s6 em epoptas adormecidos, mas ainda no estado de vigilia.
L
80 A SINTOMATOLOGIA DO A SINTOMATOLOGIA DO SONAMBULISMO 81
SONAMBULISMO
PROCESSOS TERAPEUTICOS
E ERROS DE INTERPRETAQÄO
Faria, que teve uma experiencia de mais de cinco mil casos, O padre Faria adoptou designagöes que revelam a su: a-
procurou obter resultados terapeuticos e alguns alcanou; mas neira de pensar, ao menos quando comegou as suas conferencias.
caiu em excessos, como daqui a pouco relataremos, por näo con- Sono lucido, epo ptas (iniciados) , säo palavras que o comprometem.
seguir desempoeirar-se, por completo, das ideias dominantes do A principio ele devia pretender ver nos sonambulos qualdades
seu tempo. iguais as que erradamente lhes atribuiu Puysegur. A reflexao e a
Mesmer proclam ava o valor do fluido magnetico como elemento observac;tä.o trouxeram-lhe, anos depois, duvidas, que transparecem
de cura, dispensando-o Iargamente a humanidade enferma. E se e claramente da sua obra.
certo que alguns neuropatas se curaram sob a suposta influencia Concorda ainda que os sonambulos säo admiräv·eis p_elos co-
dessa hipotetica acgäo, outros, a grande maioria dos que frequen- nhecimentos profundes que revelam em todos os ramos do _sab:r
tavam as suas sessöes, ficaram doentes como eram. humano, sem nunca os terem adquirido pelo estudo GU medltac;tao
0 magnetismo conquistara a numerosa clientela que ainda hoje Eles Ieem com os olhos fechados, eles revelam os pensamentos
corre aträs do maravilhoso. estranhos, etc. Mas acrescenta, como ja dissemos, dirigindo-se aos
A seguir a Mesmer, o seu discipulo Puysegur descobre, como credulos sem reservas: aqueles que «esperam encontr'ar nos seus
dissemos, o sonambulismo, a que atribui virtudes ainda mais anuncios uma certeza sem mistura de erros, embalam-se numa
extraordinärias. Convenceu-se de que os hipnotizados eram dota- esperan9a vä que nunca se realiza».
dos de uma lucidez especial que os levava a ver nos 6rgäos ocultos Esta passagem e mais que duvida: e quase um grito de
do pr6prio corpo e nos das outras pessoas as lesöes e desordens revolta. Por isso insistimos mais uma vez em que, se a sua
de que enf ermavam. observaäo fasse mais longa, era provavel que a hesitagä.o se
Acompanhando-os na mesma esteira terapeutica, escreveram transformasse em negativa formal.
Dupotet, Teste, etc. Medicos de valor, como o citado Foissac, para Faria escrevia isto em 1819, e todos os continuador es das
apenas darmos um exemplo, partilhavam da mesma crena, Numa präticas magneticas def enderam durante muitos ao äo_ s6 a
mem6ria que ele dirigiu a Academia de Medicina, em 1825, es- teoria dos fluidos mas a doutrina da absoluta clariv1denc1a dos
crevia estas palavras: sonambulos, da vracidade das suas profecias, do seu mister ioso
«Colocand o sucessivamente a mäo sobre a cabea, o peito e o engenho medico.
abd6men de um desconhecido, os meus sonambulo s descobrem A obra do padre portugues caira, em risos e troga s, no tablado
logu as doenas, as dores e as diversas alteragöes que ocasionam. do teatro das Varietes. Ninguem o lera, ninguem estudara as suas
Indicam, alem disso, se a cura e possivel, f äcil ou afastada, e hesitagöes nos pontos mais delicados, ninguem apreciara as uas
qmds os meios que devem ser empregados para atingir este resul- precisas observagoes, que marcaram os limites exactos da smto-
tado pela via mais pronta e mais segura. Neste exame eles nunca matologia da hipnose.
se afastam dos bon s principios medicos e as suas inspiraoes Vem agora a prop6sito perguntar: porque dominaram por
possuem o genio que animava Hip6crates.»
tanto tempo estes preconceitos?
Deleuze näo e menos concludente . . E que estas ideias absurdas tinham um f undo de verdae.
Se assim escreviam medicos ilustres, näo seria Nem de outra maneira se concebe que elas perdurassem por tao
extraordinario qu os leigos se deixassem vencer pela corrente largo periodo. Sä.o, como diz Pitres, a interpr etagäo errada de
dominante,
86 PROCESSOS TERAPEUTICOS E ERROS DE INTER PRETAQ.AO PROCESSOS TERAP:t!JUTICOS E ERROS DE INTERPRETA<;.AO 87
factos reais, de que e fäcil compreender hoje 0 verdadeiro signi- Os casos que mais impressionaram os antigos magnetiz adores
ficado. estäo todos ligados a histeria. Nem vale a pena exuma-los do me-
Apreciemos, de perto, alguns fen6menos que nessa epoca recido esquecimento em que os deixaram os patologistas modernos,
foram considerados como atingindo os limites do sobrenatural. para quem esta neurose se apresenta hoje sob um aspecto inteira-
Assim, a chamada dupla-vista magnetica, que foi o facto cul- mente diverso do que tinha nessa epoca e sem a importancia
minante da .ilusäo da lucidez sonambulica, e apenas a consequencia excessiva que lhe deu Charcot.
de alucinagöeös sugeridas. Por isso, se dissermos a um hipnotizado Babinski conseguiu reduzi-la, como ja dissemos, a justas pro-
que estä numa igreja, ele coloca-se dentro dum templo do seu porgöes. Os que nao caminham nas äguas do emerito neurologist a,
conhecimento. Näo faz uma abstracgäo: sente-se em Iugar conhe- ou se afastam apenas em gradaQöes do valor dado a sugestäo, ou
cido, de que descreve todas as particularidades: os altares, os pensam em lesöes anat6micas. A admitirem-se estas, tem de con-
larnpadärios, as imagens, os azulejos, etc. Exterioriza a alucinagäo siderar-se bem fugazes e variäveis, pois säo quase sempre efämeras
sugerida muito sinceramente, tal como a ve. as suas exteriorizaQöes mais ruidosas e rnais graves. Alem disso,
desenvolvem-se nos departamentos mais diversos da vida organica
Mas se dissermos a um sonämbulo que ele se encontra numa
e psiquica, devendo portanto ter as mais variadas localizagöes.
rua de Constantinopla, onde nunca esteve, descreve-a com as cores
que lhe da uma representagäo sensorial alucinat6ria que se repre- Um outro grupo de fen6menos que podemos designar de pre-
senta atraves dos conhecimentos anteriormente adquiridos. Por visöes exteriores, a que todos os magnetizadores deram um credito
menos nogöes que tenha dos costumes turcos e da vida oriental, exagerado, s6 o aceitou Faria, como dissemos, com grandes res-
ele descreverä como estäo vestidas as pessoas nas ruas, se ha trigöes. Era a doutrina, especialmente proclamada por Puysegur,
igrejas ou mesquitas, aproveitando o que sabe a tal respeito. Mas dos sonambulos poderem descrever, com uma certeza surpr een-
se o hipnotizado desce a maiores minucias, fala de acontecimentos dente, as doengas das pessoas que os cercavam, indicando o tra-
que nunca existiram, deslocando-os de outras reminiscencias alte- tamento e anunciando as crises. Por vezes algumas destas per-
rando-os mesmo. 0 observador pouco prevenido pode supor 'que o turbagöes se produziam , Eram ainda a consequencia de sugestöes
hipnotizado ve efectivamente o que descreve. Dai a crenga da impostas inconscientemente .
dupla visäo. Por um mecanismo anä.logo, os medicamentos receitados pelos
A chamada intuigäo, que daria aos sonambulos a faculdade sonambulos conseguiam resultatlos inesperados. Este instinto dos
epoptas, que o pr6prio padre Faria admitiu, embora sem lhe dar
de poderem ver os 6rgäos internos e descobrir-lhes as lesöes, per-
tence ainda a serie das alucinagöes sugeridas. Se dissermos a um foros de inf alibilidade, como lhe concederam os seus antecessores
hipnotizado que observe, que veja o seu estömago, descrevera e muitos dos continuadores, näo passava ainda de um fen6meno
este 6rgäo, näo como o ve na realidade, mas tal como imagina que de sugestäo operado pelos sonambulos sobre certos neur6ticos.
ele deve ser, ou antes tal como a alucinagäo provocada lho mostra E por um mecanismo identico, como nota Pitres, que se curam
em imagem. alguns histericos «com pilulas de mica pan is ou com a agua de
A previsäo interior, isto e, a faculdade que teriam OS sonam- Lourdes».
bulos de prever as crises das doengas, e ainda a consequencia de O padre goense sentiu-se dominado pelos sucessos alcangados
sugestöes inconscientes sobre que eles firmam as suas divagagöes e embora, como vai ver-se, os fizesse depender de acgöes suges-
alucinat6rias. tivas, caiu em excessos dando algum credito a clarividencia dos
88 PROCESSOS TERAPli:UTICOS E ERROS DE INTERPRE'l AQAO PROCESSOS TERAPEUTICOS E ERROS DE INTERPRETAQAO 89
epoptas e exagerando o valor das suas indicagöes terapeuticas . A doena de que se trata e sempre a mesma, a histeria; e, em
«Eu vi » -dizo general Noizet -«em casa da padre Faria vigilia, obteve o padre Faria parecidos resultatlos, como aträ.s
varios doentes ordenarem a Si pr6prios tratamentos, seguirem-nos dissemos.
e curarem-se. Um deles, M. B.... capitäo de cavalaria, tinha sido Andou ele em torno da verdade. Por vezes surpreendeu-a em
condenado por varios medicos, que 0 diziam atacado de uma ulcera acertos que ainda hoje säo de perfeita actualidade; mas resvalou
no pulmäo. Vi-o muito doente. Seguiu um tratamento que ele de quando em vez nos prejuizos do seu tempo.
pr6prio tinha prescrito e, em menos de tres semanas, ficou curado». Exagerou, por exemplo, o resultado das sugestöes medica-
Corno se deduz desta exposigäo, era ainda a acgäo sugestiva mentosas.
que dava aos medicamentos, por certo inofensivos, todo o valor e «Assim» -diz Faria -«um copo de agua tomada na ideia
pod er curativo. de ser um purgativo provoca os mesmos resultatlos como se o
Faria conhecia estes efeitos. Expöe-nos de uma maneira clara fora ; na ideia de um emetico, determina vomitos sem esforo e
e positiva: sem sofrimento.»
«Muitas vezes, diz ele, simples indiferentes, mas tomados com Ora nem sempre se alcangam tais resultatlos.
confiana, produzem efeitos mais salutares do que simples reco- Vem aqui a prop6sito dizer que foi Faria o primeiro que reco-
nhecidos como sendo os mais eficazes. » nheceu a importancia do sonambulismo nas operaöes cirlirgicas.
E acrescenta, precisando ainda mais a sua doutrina:
<i::Alguns epoptas» -diz ele -«säo inacessiveis as mais li-
«E que a convicgäo intima, que cria a mais alta conf ianga,
regula os sucos internos, em virtude da grande fluidez do sangue, geiras sensagöes nas graves incisöes, feridas e amputagöes (1) .
Mas estes defeitos tornam-se gerais e comuns a todos os epoptas
do que todos os meios farmaceuticos . E o imperio da natureza
desde que se tarne a preocupagäo de paralisar o membro ou a
individual quando a maquina esta disposta a obedecer-lhe sem
parte do corpo que vai ser sujeita a uma operagäo dolorosa. Esta
resistencia (1) .))
medida torna-os inteiramente insensiveis e afasta-os, por vezes,
Vai, porem, longe de mais e chega ao exagero, defendido pelos
depois de despertarem, da ideia da operagäo sofrida.»
magnetizadores do seu tempo, quando diz que «nenhum epopta,
por rnais grave que seja a sua doena, tem precisäo de medica- Ha verdade nesta doutrina. Infelizmente näo pöde generali-
mentos ou receitas». Basta que ele prescreva a si pr6prio, quer zar-se a pratica. Daqui a pouco voltaremos ao assunto.
dura.nte o sono, quer nas suas «disposi öes para o sono», tudo o Pelo que respeita a sugestöes post-hipn6ticas e mesmo no
que e necessario ao seu restabelecimento. estado de vigilia, ja dissemos o bastante para se concluir qu.:l Faria
0 padre deixara-se deslumbrar por alguns resultatlos obtidos as notou e aproveitou. Umas e outras se podem orientar num
e fez uma falsa generalizaäo. sentido terapeutico.
0 hipnotismo pode, como dissemos, servir de elemento tera- A psicoterapia assenta sobre a base da sugestäo em vjgilia e
peutico por colocar o individuo em condiöes de bem receber as todos sabem, quando bem praticada, os beneficios que traz aos
sugestöes impostas. Faria define-o numa frase perfeita: doentes.
«A urna unica palavra» -escreve ele -«podem tornar-se
doentes os epoptas sadios e tornar-se sadios os epoptas doentes.» (1) :g possivel que alguma opera!<äo ou tentativa operat6ria se fizesse
nessa epoca, tal e a certeza desta afirma!<äO. Mas nada pudemos averiguar,
(1) Obra citada, pag. 276. de positlvo, sobr-e o assunto.
90 PROCESSOS TERAP1':UTICOS E ERROS DE PROCESSOS TERAP:E:UTICOS E ERROS DE INTERPRETAQAO 91
INTERPRETAQAO
sionado com tal orientagäo, proibiu, honra lhe seja, a continuagäo . Faria, na descrigäo das processos da hipnose, coloca-se, como
das experiencias . . vimos, dentro desta doutrina, que quinze anos depois pretendem
A Academia de Medicina e a Academia das Ciencias de Paris apresentar como novidade.
voltaram, em 1825, a ser assediadas pela questäo da magnetism . «Ern certos individuos» -continua o relat6rio -«Os efeitos
O nosso conhecido dr. Foissac dirigiu-lhe uma nota, de que Ja säo insignificantes, fugazes, e bastaria para os explicar reporta-los
transcrevemos uma parte, em que se mostra dominado pelo as- a imaginagäo; noutros, operam-se nas percepgöes e faculdades mu-
pecto inexacto e rnaravilhoso do sonambulisrno. .. . dangas mais ou menos notaveis.»
Ern face desta exposigäo, a Academia de Med1cma de Paris, Faria foi mais claro e explfcito. Näo s6 definiu o sonambu-
apegando-se a doutrina do seu relat6rio de 1784, a que fizemos lismo pelos sintomas observados, da maneira mais perfeita e com-
referencia noutra passagem deste trabalho, näo lhe deu resposta pleta, inas constatou que havia individuos näo susceptiveis de
alguma. . entrar em sonambulismo mesmo fugaz e passageiro, 0 que cor-
A Academia das Ciencias procedeu rna1s generosarnente. responde a realidade das factos.
Cuvier, em seu nome, acusou a recepgäo, mas näo deu andamento Enquanto dura o sonambulismo, diz ainda o relator, os
a exposigäo apresentada. . . . magnetizados säo insensiveis aos ruidos, a luz, ao cheiro e as
Foissac näo desanimou e, meses depois, voltou a ms1sbr, pe- excitagöes da pele e mucosas. Enfim uma das sonämbulas foi
dindo que recomegasse o exame do magn,etimo aima. E 28 submetida a uma dolorosa operagäo de cirurgia sem que a mimica,
de Fevereiro de 1826 foi o assunto posto a d1scussao, d1vergmo o pulso e a respiragäo denotassem a. menor emogäo.
as opini6es . Depois de um acalorado debate, ecidiu-se a nomeagao Faz-se alusäo a ablagäo de um cancro do seio, praticada em
de uma comissäo que o estudasse. Dela flzeram parte Leroux, 1829 pelo cirurgiäo Cloquet, que a pöde levar a termo sem reacgäo
Double, Bourdois, Magendie, Guersant, Laennec, Tillaye, rc dolorosa por parte da doente.
Fourquier, Gueneau de Mussy, Itard e :S:ssn, aquele ed1co Esta analgesia sonambulica tinha ja sido posta em evidencia
que abriu as portas da Hotel Dieu as expenenrns sonambulic_as e pelo padre portugues, como demonstramos a face do texto da
que foi escolhido para relator. S6 e 1 31, cmco no_s depo1s, o sua obra.
relat6rio foi apresentado; mas a ma10na das com1ssonados re- Outro facto a que o relat6rio da importäncia e que Faria
jeitou a sua doutrina e conclusöes, recusando-lhe mesmAo as hoas tinha descrito com precisäo, e ate com restrigöes que pusemos
de impressäo. Alguns das seus trinta paragrafos contem doutna em destaque, refere-se a mem6ria dos hipnotizados, Os sonäm-
exacta mas outros sobem as regiöes da mais exaltada fantas1a. bulos conservariam as faculdades que possuem em estado de vi-
Etre os primeiros repetem-se algumas das esquecidas dou- trinas gilia. A sua mem6ria seria ate mais fiel e mais extensa, pois
de Faria. Assim conclui o relat6rio que as fricgöes, gestos e recordariam o que se passou durante todo o tempo da hipnose e
passes näo säo sempre necessarios a produgäo do sonambulimo. todas as vezes que entraram ern sonambulismo. Ao despertar,
Faria tinha-o reconhecido e P.roclamado na sua obra amda porem, continua o relator, esqueceriam por completo os factos
com maior precisäo. decorridos no estado sonambulico, para nunca mais deles se re-
«A vontade e a fixidez do olhar» -diz o relator -«chegam cordarem.
muitas vezes a produzir o sonambulismo depois de um tempo va- Ao lado destas constatagöes, o relat6rio, indo muito alem da
riavel, que vai de um rninuto a uma meia hora.» que afirma Faria, que, como fizemos notar, em varias passagens
1.
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da sua abra pöe restriQöes as previsöes das sanambulas, dizendo qualquer näo o vendo nem o tocando . Na-o faltaram pretenden-
que «Se eles dizem verdades », tambem caiem em erras, insiste nas tes; mas e inutil dizer que ninguem conseguiu ganhar 0 premio
seguintes conclusöes: os sanambulos padem ler atraves das carpos prometido.
opacas, prever acontecimentos futuros, descobrir a sede das doen- A .Academi das Ciencias obtinha um triunfo; mas exagerando
Qas e indicar os remedios que lhes säo necessärios. e segmndo as p1sadas da sua congenere de Medicina, decidiu, em
Foi devida a estas afirmaQÖes que a camissäo se pös em defesa, 1 de Outubro de 1840, que nunca mais respond eria as comuni-
näa admitindo sequer a canclusäo geral de Husson, gue bem poderia cagöes relativas a tal assunto.
ser considerada : «A Academia deveria encorajar as investigagoes A obra de Faria, que ninguem citara nestas contendas tinha
sobre o mag:o.etismo como um ramo muita curioso da filosofia e ffoado ignorada ou foi propositadamente esquecida. '
da hist6ria natural.» Nessa epoca, ao mesmo tempo que a Academia de Ciencias
Pouco depois, em 14 de Fevereira de 1837, um outro magneti- de aris lanQava o seu anätema sobre as experiencias da sonam-
zador, a dr. Berna, pös a disposigäo da Academia dais individuos bu11sm,. um modes.t_o rätico .de Manchester, o dr. Braid, inicia
em que era fäcil provocar a sonambulismo e que considerava em uma ser1e de exper1encias ma1s ou menos identicas as realizadas
excelentes condi<;öes para o prosseguimento do estudo da magne- par Fara, levantando de novo a questäo e marcando-lhe 0 Iugar
tisma. Uma nava comissäo foi nameada. que dev1a ocupar no campo cientifico.
Dubais (d'Amiens) , um dos medicas incumbidas de seguir . A obra de Braid e a reproduQäo da de Faria, salvo pequenas
as experiencias, declarou em seu nome que elas näa tinham for- d1ferengas, que convem assinalar. Braid tambem näo era claro na
necido resultados perempt6rias e que o hipnatisma näo passa de exposigäo. Sofreu-lhe portanto as consequencias: a sua obra per-
uma quimera. Dubais insistiu na verificagaa das factas que se maneceu esquecida durante uns vinte anos. Depois foi elevada a
ref eriam a cura das doengas, a dupla visäa, etc., e cama eram uma altura imerecida e o 1Yraidismo proclamado como a doutrina
pura fantasia, cancluiu que todas os outras fen6menos referentes da sugestäo na hipnose.
aa sonambulisma eram igualmente falsos. Nada mais injusto, e ainda bem que os autores franceses
Hussen, sempre apegado as suas doutrinas, contestou as con- desse tempo, aceitando embora na sua maioria a designagäo re-
clusöes de Dubais, mas a Academia adoptou-as sem discussäo . cordaram pela primeira vez o nome do padre portugues. '
0 assunto continuava a interessar o publico e as decisöes da
Liebault, um dos mais altos representant es da escola de
Academia eram ob ecto de crfficas mais ou menos apaixonadas . Nancy, foi mais lange, criando a palavra f ariisme para substituir
Os f actos que uns negavam e outros apregoavam como certos, e a de 1Yraidisme. Merece o nosso respeito este rasgo de imparciali-
que pairavam na dominio do profetismo, eram a grande preocupa- dade, este preito de justiga . Born e que o neologismo se näo es-
Qäo dos que ao tempo se dedicavam a estes estudos. Tudo aquilo qega _e que ele subsista, significando a doutrina da 'sugestao no
que se referia ao sonambulismo na sua sintomatologia real pas- h1nohsmo, que Faria proclamau muito antes de Braid . Ja Brown-
sara a um segundo plano. Derrubado o maravilhoso atribuido ao -Sequard o notara , citando-lhe o nome no prefäcio da tradugäo da
sono hipn6tico, tudo o mais caia com ele. Eram aspectos secun- Neurypnologia de Braid.
därios sabre que ninguem insistia. Foi assim que, em 1840, Burdin E nem se diga que Faria se prendeu por vezes ao maravi-
aine, membro da Academia decidiu entregar do seu bolso 3000 Iosa. Quanta esforgo, talento, videncia e cuidadosa observagäo
francos a quem em sono hipn6tico conseguisse ler um escrito nao representa a luta que ele empenhou contra as ideias correntes
0 A.F.-7
98 0 HIPNOTISMO APOS A MORTE DE FARIA O HIPNOTISMO APOS A MORTE DE FARIA 99
do seu tempo, restringindo e lanQando a duvida sobre o valor hipnotismo. A primeira comeQa com Paracelso, ern 1529, e terrnina
profätico, presciencia e dupla visäo dos seus epoptas ! Näo teve a em 1513 com os trabalhos do padre Faria; a segunda comeQa com
1
audacia de uma renuncia completa ; mas marcou decididamente a o padre Faria e näo parece que venha a terrninar täo cedo () .»
sua posiQao de desconfianQa perante o atributo de iluminados Se nos socorrermos, neste estudo, de continuadas citaQöes, e
concedido aos sonambulos. Corno insistentemente pusemos em re- para que se näo diga que um exagerado patriotismo nos leva a
levo, Faria fez uma. marcada evoluQäo neste sentido desde as conclusöes ern excesso f avoraveis ao padre portugues. Säo estran-
primeiras experiencias ate a epoca em que publicou 0 seu livro. geiros que connosco tem procurado reabilitar o nome do esquecido
Depois dele medicos de nome incorreram em bem maiores culpas, hipnotizador, que no advento do seculo passado proclamou dou-
fazendo do maravilhoso a sintomatologia fundamental da hipnose. trinas que ainda hoje, na sua parte essencial, säo adrnitidas por
As ideias dominantes quando passam a categoria de verdades todos os neurologistas .
incontestaveis -e entre os magnetizadores do alvorecer do se- Ern 1860 a questäo do hipnotisrno e de novo levantada pelo
culo XIX corriam como averiguadas muitas inexactidöes -carecem professor Azam, As experiencias de Braid, que tinham sido divul-
de demolidores geniais. Faria deitou a terra a teoria do fluido gadas ern Franga, onde a obra de Faria havia sido esqu cida, foram
magnetico. Por isso concitou contra si a oposiQäo daqueles que se conf irrnadas pelo insigne professor . Dirigiu-as no sentldo de obter
julgavam portadores de forQas misteriosas que s6 eles possuiam, a anestesia ciriirgica. Procurou encontrar um metodo susceptivel
que s6 eles podiam manejar, tirando os proveitos perante a clien- de substituir a cloroformizaQäo, ja ao tempo em voga. Velpeau,
tela sempre crente e submissa. Broca, Follin, Verneuil, Dernarquay e Girot-Teulon, Gigot-Suad,
Proclamou uma doutrina nova, fez a descriQäo minuciosa da Philips, interessaram-se pelo assunto,mas a.cab,aam por reunc1ar
sintomatologia observada; e s6 resvalou, embora com reservas, as esperangas concebidas, pois o sono h1pnotico, produzmdo a
no campo do misterioso. anestesia necessaria (fase sonambUlica), s6 se provoca em raros
0 medico ingles, com uma cultura especializada, escrevendo individuos.
muito mais tarde, tambem näo conseguiu fugir a essas influencias. Contudo, algumas operagöes ciriirgicas puderam ser praticadas
Somente as dirigiu noutro sentido. Com efeito, Braid pretendeu em hipnotizados, em diverses serviQOS hospitalares, o que charnou
demonstrar pelo hipnotismo a exactidäo das teorias de Gall sobre definitivamente a atenQäo de todos os medicos para o assunto.
as localizaQöes funcionais do encefalo ! Mesmo neste campo, Faria Aparecem entäo os trabalhos de Mesnet sobre o sonambulismo
e Braid podem ser acusados da mesma pecha: ambos decairam patol6gico, o livro de Liebault (de Nancy) acerca do sono e dos
em considerar o hipnotismo capaz de desvendar segredos que estados anä.logos, o artigo de Mathias Duval a propösito do hipno-
nunca poderia decifrar. tismo e a rnem6ria do celebre fisiologista Charles Richet sobre o
Ern resumo, o fariism o veio substituir o mesmerismo. sonambulismo provocado. Alem destes, säo dignos de nota, menos
0 br'aidismo, näo sendo mais do que as doutrinas do padre como indicaQäo bibliogrä.fica, de que damos uma resenha no final
portugues, näo tem razäo de subsistir sob essa designaQäo. 0 seu da obra, do que como documentaQäo do interesse que o hipnotisrno
a seu dono.
0 medico Crocq, de Bruxelas, coloca a questäo nos devidos (1) Consulte-se sobre este assunto um artigo de ,D. G. J?algado: Bra-
termos: -«A histöria cientifica do hipnotismo divide-se em dois disme et fariisme ou la doctrine du Docteur B'.and :rnrl hypnotisme co;npar ee
avec celle de l'Abbe de Faria sur le sommeil lttcide, na Revue de 1hy pno -
periodos bem distintos: a era do magnetismo anirnal e a era do tisme, de 1907 e publicado em separata, Paris, Bonvalot-Jouve, 1907.
L
100 0 HIPNOTISMO APöS A MORTE DE FARIA
seu aspecto fisico, o jogo fision6mico e a certeza que ele dava a enviado o primeiro, a que faz alusäo directa. A obra de Faria u
sua palavras deviam actuar nos individuos sobre que operava, im- a luz da publicidade depois da sua morte. Dos segundo e terceiro
pondo-lhes a necessäria convicQä.O.» volumes anunciados pelo editor, nada sabemos. Teriam sido publi-
Noizet retomou, em seguida, o seu servigo no exercito e näo cados? Teria Bailliere abandonado os originais, ap6s a morte do
tornou a ver o padre Faria que, acrescenta, morreu esquecido, padre, por julgar a obra de dificil colocaQäo e näo ter quem se
alguns anos depois. responsabilizass e pelos prejuizos da ediQäO ? .
Na segunda parte da mesma exposigäo, refere-se a sua Me- Dalgado, que deu a estas investigaQöes um grane.cmdado,
m6ria sobre o hipnotismo, que värias vezes temos citado. E conclui näo se poupando a canseiras e trabalhos, näo teve noticrns deles.
que, tempos depois da sua publicaQäo, a livraria Bailliere, da rua Seria surpresa que aparecessem. Mas se os volumes näo foram
da Escola de Medicina, lhe pefüra um exemplar, para a colecgäo publicados, como tudo Ieva a crer, e muito pr.ovävel qe os seus
de livros que tinha sobre o mesmo assunto, oferecendo-se ao originais, anunciados por Bailliere a Noizet, estivessem Ja na posse
mesmo tempo para lhe dar, em troca, a obra, em tres volumes, da casa editora.
do padre Faria. A morte prejudicou a divulgaQäo da anunciada tarefa. 0 que
Dalgado informou-se junto dos proprietärios da livraria Bail- Faria nos legou e ja bastante para bem aquilatarmos da sua obra,
liere, que ainda hoje continua com a especialidade de livros de do valor das concepQöes apresentadas, do seu alto merito ; mas a
medicina, sobre a publica äo do segundo e terceiro volumes. Dis- leitura dos outros volumes poderia dar-nos a decifraQäo de mais
seram-lhe que s6 tinham conhecimento do primeiro, nada sabendo alguns pontos e, quem sabe ? noQöes mais exctas prp6sito de
dos outros. casos que provavelmente viria a relatar, refer1ndo mmuc10samente
A este prop6sito convem notar que se fala, por vezes, na as previsöes epoptas, de que ele näo pöde, por c.ompleto, .desen-
obra de Faria em quatro volumes, como refere Dalgado, e outras vencilhar-se, enredado nos preconceitos e nas doutrmas dommantes
vezes em tres volumes, como informa Noizet.. Embora seja assunto do seu tempo.
de somenos importancia, näo sei decidir-me por nenhuma das No retiro onde a indigencia o levou, a sombra hospitaleira do
versöes. E certo que Faria pretendia publicar mais de um volume, recolhimento em que viveu nos ultimos anos da sua amargurada
e tanto que, no final do seu livro, hä esta nota: N. B. -Le seconde existencia, recebendo, como informa Figuier, casa e alimento em
volume doit paraitre incessament. troca dos seus serviQos eclesiasticos, devia ter sofrido horas de
Noizet, ao terminar a sua carta, acrescenta: decepgäo, apegado a certeza de estar na esteira da verdade, o a
«Näo tinha acabado de ler o primeiro volume (o autor encon- consciencia tranquila de näo ter mentido, pois a sua obra e sm-
traria um revisor para os outros ?) (1) , quando agradeci a M. Bail- cera, e de näo ter cultivado o sonambulismo para fazer fortuna.
liere. Näo tinha tempo para me ocupar de outras coisas alem do Outros a adquiriram, antes e depois; ele näo. Morreu pobre, numa
meu serviQo e, se lhe falo do assunto, e para que, se assim o conformaQäo filos6fica que se resume na ja citada frase : «Hä.
desejar, possa encontrar a obra de Faria.» males que por vezes fazem muito bem aos que sabem conhecer a
Näo Se pode deduzir desta exposiQäo que Noiz et houvesse as sua utilidade».
mäos os tres anunciados volumes, Podiam ter sido prometidos por LanQou-se entäo ao trabalho. Carecia de defender o seu nome
Bailliere a medida que OS fasse publicando, tendo-lhe apenas sido e a verdade das doutrinas expendidas, E na nostalgia da cela foi
(1) Lembrava-se das dificuldades que tivera com a revisäo do prtmeiro. tracejando as päginas do livro que nos legou.
108 OS OLTIMOS ANOS DO ABADE FARIA OS OLTIMOS ANOS DO ABADE FARIA 109
Redenäo para o seu nome, que nlio passou a posteridade como Tarnbern isso pouco importa. 0 que e indispensä.vel e levantar
o de um vulgar charlatäo, apesar de assim o terem denominado ; a. sua mem6ria do esquecimento a que foi votada em Portugal, a
mas fraca reparaäo para a sua desventura, pois nem sequer con- luz das doutrinas que defendeu, criando a sugestäo hipn6tica, que
seguiu ler, impresso, o primeiro volume do trabalho que levara ainda, na hora presente, passado mais de um seculo, se mantem
a cabo. integra, tal como a descreveu.
Uma apoplexia fulminante subjugou-o, para sempre, aos 63
anos de idade, a 20 de Setembro de 1819.
Le-se nos registos dos enterramentos da igreja de Saint Roch:
«A 21 de Setemhro de 1819, enterro n. 6 do sr. Jose Cust6dio de
0
OS DETRACTORES DE FARIA
0 prestigio do diabo sobe alto no cerebro destes doutos de- Os te6logos desse tempo teimavam em que os magnetizadores
fensores da Igreja, näo admitindo sequer o exame da doutrina e pactuavam com o diabo nas suas experiencias; o padre portugues
das prä.ticas magneticas para se pronunciarem. Perante o desco- insistia em que eles condenavam o magnetismo sem base para o
nhecido, a Igreja pös muitas vezes o seu veto, para mais tarde o fazer porque näo conheciam os fen6menos naturais.
ilibar de culpas. :m o velho sestro que, em tempos de maior do- Faria era cat61ico e quis sempre permanecer no gremio da
minagäo, arrastou a fogueira e ao patibulo säbios e reformadores religiäo que professava. Lutava contra a ignoräncia da teologia da
dos mais ilustres. epoca com inaudita coragem. Sem esta a sua obra teria naufragado.
Mais tarde, Bouvier, nas suas Institutione s theologicae (1834) , Combateu preconceitos religiosos com a mesma audä.cia com que
mostra-se ja bastante reservado . «Se os efeitos do magnetismo demoliu as doutrinas do fluido magnetico, principio admitido por
säo inteiramente desproporcionados, se näo podem ter conexäo todos os hipnotizadores daquele tempo. Para bem avaliarmos das
alguma com as causas naturais , ou esses efeitos säo inanes ou meritos que possuia, e necessario seguir a sua personalidade atra-
vem do dem6nio por um pacto implicito.» Recorre ao dilema como ves dos lances de uma acidentada vida.
que a estabelecer uma fase de transigäo. Dentre todas as diatribes com que o procuraram ferir ne-
Ultimamente os te6logos entraram no dominio da toleräncia. nhuma o atingiu täo profundamente como a que o arrastou pelo
0 hipnotismo deixou de ser diab6lico , pelo menos o que deno- minam tablado das Varietes de Paris. Nem as criticas dos te6logos, nem
o hipnotismo franco (o que serä. o outro ?) e passaram mesmo a os ataques asperos <los jornais, em que as palavras azedas eram
consentir as suas prä.ticas. entrecortadas ae chocarrices e gracejos, nem a caricatura que lhe
Foi precisamente o padre Faria quem marcou os limites na- vulgarizou a efigie em ridiculos contundentes, conseguiram feri-lo
turais ao magnetismo, envolto, ate entäo, nas trevas de um sobre- täo fundo como essa comedia-opereta em que o fizeram exibir
natural grosseiro ou na dependencia de misteriosas forgas ocultas. num papel de magnetizador charlatäo.
Por isso sentiu os ataques mais ou menos directos do clero into- Logo em 1813, no advento dos seus triunfos, quando apareceu
lerante. Jä. fizemos referencia a altivez e desassombro das suas a primeira caricatura de que ja demos noticia, Madame Victorine
respostas. Acrescentaremos mais duas passagens da citada obra: Maugirard publicou nas Soir'ees de Societe, dedicadas a rainha
«Quando um efeito natural extraordinä.rio provem de urna Hortense, uma pequena pega, La M esmeromanie, classificada de
causa complicada» -diz Faria -«OS sä.bios que pretendem des- proverbio em um acta e em prosa, e em que visava a demonstrar
este adagio: «tantas vezes vai o cäntaro a fonte que uma vez
vendar as causas näo devem ignorar que a marcha da natureza e
lä fica.»
sempre simples e todas as suas produgöes s6 deixam de ser ma-
Nessa pega näo ha alusöes pessoais ao padre Faria. A sua
ravilhosas aos olhos do homem quando se tornam correntes e figura näo passa dos bastidores. Ha uma ou outra critica que lhe
usuais.» diz respeito, mas näo se descobre ataque directo que o atinja.
Deixando o campo dos conceitos filos6ficos, responde a in- E mais tarde, em 1816, que um actor de merito, ao tempo
justiga dos anä.temas que lhe säo dirigidos com uma frase mais muito conhecido em Paris, Potier, comegou a frequentar as con-
contundente: ferencias da rua de Olichy,, captando em breve a confianga de
«Ü Evangelho» -diz ele textualmente -«näo tem certamente Faria, fazendo-se passar por discipulo e adepto. 0 padre, homem
por firn instruir os homens nas ciencias naturais.» de boa-fä, acreditou na sua sinceridade. Um dia fez-se hipnotizar
0 A.F. -8
lH OS DETRACTORES DE OS DETRACTORES DE FARIA
FARIA
Polier; mas ele dec!inou essa honra, numa carta que foi publicada.
A distribuigao dos principais papeis foi confiada a Potier, «De que sofre ?
Fleury, Leonard e M esd emoisel"Zes Lafond e Cuisot.
A cena passava-se em Saint-M aur, no hotel da Gra9a de Deus. «LEON
Potier tinha estudado com meticuloso cuidado as maneiras do in-
feliz hipnotizador. V.estiu-se como ele costumava apresentar-se e cDo coraäo.
caracterizou-se de cor bronzeada, de f orma a dar em cena a im-
pressäo do padre, que muitos dos frequentadores do teatro conhe- «SOPORITO
ciam das conferencias.
Foi um sucesso ! Todos riram a custa do magnetizador , menos «Estava certo disso. E tu, minha sonambula ?
pelo entrecho simples da pega e pelos raros ditos de espfrito de
que a polvilharam, do que pela semelhanga que Potier conseguiu
exibir em publico na apresentagäo da personagem do padre Faria.
Ern poucas palavras se resume o entrecho: Leon, estudante
de medicina, e filho dum medico da regiiio, o doutor Lafosse, que «Do coraä.o.
dirige uma casa de saude. Apaixona-se por Cecilia, filha de So- porito,
«SOPORITO
o grande magnetizad or, homem de parcos haveres, mas de
grande reputagäo. Leon, para se aproximar de Cecilia, finge-se
atacado de ins6nia e vem consultar Soporito. Este, por näo ter a «Chut! !! (A Leon) Ve os meios para se curar?
(1) A pe!;a, inteiramente esquecida, foi de novo publicada por Dalgado , «LEON
na lllem6ria dedicada ao padre Faria .
116 OS DETRACTORES DE FARIA OS DETRACTORES DE FARIA
«Vejo apenas wn. «E preciso täo pquco para isso! Corno faze-los calar ? Vou
paralisä.-los.
( Segue-se uma dria. Dois cora<;öes presos pelo amor r eclamam um n6
Paralisados !!!...
auave que os enlace para sempr e.)
Leon e Cecilia f ingem-se paralisados; mas logo que Sopor ito vozta as
costas, f azem-se sinais que ele compreende, depois de ter informado o audi-
«SOPORITO torio que conseguiu o Jim d esejado. :B pelo silencio de Leon, em troca da
mao da filha, que Soporito se salva da dificil situat;ä.o .
«Estou certo que hä. apenas um meio. Diga qual e? Em seguida apar ece o dr. Laf osse, pai de Leon. Estabelece uma /orte
discussäo cO'm o filho, por o ver em casa do magnetizador e especialmente
por saber que os seus doentes o abandonam para vir em procurar Soporito .
:B curioso o didlogo desta passagem:
«E eu, que de boa-fe os pus em relaäo !... Mas isto näo pode «JUSTINA (A Lafdsse )
sei·. (Alto) Nada de brincadeiras . Toda a assistencia segue o meu
trabalho . «Pela amizade que tem ao seu filho !
«CECfLIA
«Uma s6 palavra vossa e a minha cura serä. brilhante e dar- «Pela sua dignidade !
-vos-ä. grande fama.
« SOPORITO
«LABRIE (A Soporito)
«ÜSnossos filhos tem razäo . E comprometer-se a si pr6prio.
«J!: capaz de vos fazer perder a reputa äo. 0 senhor questiona sem motivo.
«Sem motivo ! Sem motivo ! E isto quando e 0 Senhor que me «Vamos, vamos, tudo esta bem, tudo estä regulado.»
arruina! (Muito baixo) Sabe täo bem como eu que os doentes säo
o nosso rendimento. Säo eles que nos fazem viver. E termina por uma äria que näo resistimos a transcrever
do original:
«SOPORITO
«A quem o diz ? Mas para que tanta bulha? Tudo se pode Pour terminer nos differents
arranjar amigavelmente. Pelo que me diz respeito, estou pronto a Ensemble unissons nos enfants;
fazer sacrificios .._ Vos eures valent bien les nötres.
«LAFOSSE (Mais razoavel) Et quand nous nous connaitrons mieux,
Vous ne serez plus envieux.
«Sacrificios ! Posso saber quais quer fazer? Pourtant, soyono mysterieux.
Je poursuivrai mes travaux, vous les vötres
Qu'ils reussissent mal ou bien ...
«SOPORITO
Taissons-nous: chacun son moyen ;
Que le public n'en sache rien.
«Nada mais fäcil. Näo sou um espoliador. Escute. Eu entre-
go-lhe, inteiramente, o seu fundo de incuräveis. Para provar o
meu desinteresse, cederei mesmo e completamente, uma grande
quantidade de doentes que comecei a tratar pelo meu processo e Corno se ve do dialogo acima transcrito, ha uma alusao directa
que o senhor acabara de tratar pelo seu. ao padre Faria quando Soporito se ref ere a sua cor escura; mas
a troga atinge tanto o magnetizador como os medicos, eternos
«LAFOSSE jograis da farsa desde Moliere e do nosso Mestre Gil ate a troga
deliciosa do Knack, de Jules Romain. 0 autor da Magnetismo-
«Üra muito bem! E por palavras que os homens se entendem. manie näo pöde fugir a pecha de ridicularizar a Medicina. Mas
os medicos sabem que quando os autores e actores carecem de
«SOPORITO servigos clinicos langam ao esquecimento todos os escarneos ! Por
isso toleram bem pegas desta natureza; näo säo visados pessoal-
«Ve bem, tudo esta em nos entendermos. E agora nao diga mente; dilui-se a troga sobre a numerosa colectividade. Alem disso
que sou täo mau como sou negro. nenhum se sente atingido em cena. Todos divisam nas alusöes
feitas os colegas menos simpäticos ... Sintomas de boa camara-
«LA.FOSSE dagem!
0 caso do padre Faria näo era, porem, o mesmo.
«Eu niio digo agora que... Embora a critica atingisse as praticas magneticas, feria-o a
ele principalmente. Sentiu-se nao s6 pela caricatura de S oporito,
«SOPORITO mas tambem por lhe recordarem na comedia o logro em que caiu
120 OS DETRACTORES DE FARIA OS DETRACTORES DE FARIA 121
ä.s mäos do actor que se fingiu hipnotizado. Digamos, em paren- tese, As academias ja nessa epoca näo tinham mais sorte do que
que, de facto, e dificil, se näo impossivel, distinguir 0 sonam- OS medicos nas trogas teatrais !
bulo verdadeiro do que queira fingir-se adormecido. Corno disse- Deixemos o vaudeville, e talvez nem merecesse täo larga
mos atras, Babinski insistiu ultimarnente e, com razäo, sobre o apreciagäo, para darmos a palavra a Faria, que a ele se refere
assunto, o que näo importa a negagäo dos fen6menos, nestes termos:
Mas vcltemos a pega. Contem ela algumas frases rnaliciosas : «Näo sei se o autor da celeberrima Magnetismomanie publicou
caracteristica saliente das obras teatrais francesas. Assim, quando
a produgäo para exprimir a sua opiniäo de incredulidade ou para
o medico Laf osse acusa o filho, indignado, por vir a casa de um
aproveitar o ensejo de uma especulagäo lucrativa. Fosse qual fasse
magnetizador, seu inimigo pessoal, diz-lhe:
a razäo, devo preveni-lo, assim como ao director do teatro e aos
«Deixa-me ! Infeliz Lafosse ! Devias assim pagar a ingratidäo
actores que especularam com 0 meu trabalho, que aquilo que e
do unico ser que neste rnundo te deve a vida! !!»
intrinsecamente assunto de importancia näo pode ser objecto de
Infeliz medico a quem näo concedem a esrnola de uma unica
divertimento publico .
cura!
«A prop6sito da Magnetismomanie, näo posso perguntar aqui
E tambem curiosa esta outra frase:
«Soporito ja deu a vida a Saint-Maur.» quais säo as leis que autorizam este moderno Terencio a expor
Saint-Maur era o local onde se passava a comedia e pronun- um estrangeiro desconhecido a gargalhada publica. Julgo que OS
cia-se como cinq marts. 0 calembur foi sempre muito apreciado pr6prios selvagens se teriam envergonhado de insultar comica-
em Franga, especialmente nessa epoca, e a lingua presta-se admi- mente um particular que nada tem de comum com actores de
ravelmente a este jogo de palavras. teatro.
Plara terminar. Ha em oena um f auteuil maravilhoso, com «E pel"mitido em Franga especular impunemente com a re-
uma virtude narc6tica irresistivel. E, dizem, um fauteuil da putagao de quem quer que seja ? S6 as leis de circunstancia e
Academia! que variam; as que säo organicas säo sempre e invariavelmente
obrigat6rias em todas as nagöes do globo.
Ce talisman, long-temps cherche, «Lembro ao autor da pega que, em identicas condigöes, a farsa
Avec une esperance vaine, Oalicot, que afinal apenas atacava uma classe de cidadäos, sem
Par moi, fut enfin deniche, assinalar nenhum individuo em especial, transformou, durante a
Sur l'autre rive de la Seine (1) . representagäo, o seu titulo c6mico em tragico. Condeno sincera-
A l'epreuve, je fus surpris; mente os perturbadores; mas sinto-me satisfeito por saber que
Car dans ce meuble magnetique, um contratempo grave deu uma ligäo util aos directores de teatro,
Quarante (2) se sont endormis; aos actores e empresarios de farsas. Ha males que, por vezes,
Pour le sommeil il est sans prix ; fazem muito bem aos que sabem reconhecer-lhe a utilidade . Os
C'est un fauteuil academique ( bis). übstinados, esses s6 se corrigem com punigöes legais.
«Longe de mim pretender perturbar o curso dos prazeres do
(1) Onde fica a sede da Academia das Ciencias. p5blico ; mas teria adicionado a Magnetismomanie uma nova cena
(2) Referencia aos quarenta söcios ef ectivos da Academia, os chamados extremamente picante se o meu estado me näo tivesse impedido
irnortais.
122 OS DETRACTORES DE FARIA OS DETRACTORES DE FARIA 123
de faze-lo e se a minha aversäo por esta especie de divertimentos pretavarn mal e ao sabor do seu fanatismo, no prop6sit o de o
näo me tivesse afastado dos teatros. expulsarem do gremio da Igreja, onde sempre quis viver.
«Contudo, estou certo que poderia divertir o piiblico a valer , Alguns anos antes haveria pago bem caro a sua ousadia. No
derrotar o autor da peQa e semear nos c6rnicos urn a confusao seculo xrx, e depois da grande revoluQäo, näo tinha que arrecear-se
inexplicavel. Era adorrnecer na pr6pria cena alguns actores que, da fogueira. Por isso näo passaram de palavras as iras do clero.
por experiencia, conhecessem ja o peso e o valor da palavra durma
e acompanhar esse sono de uma violenta convulsäo que os teria
feito rolar sobre o tablado, completamente desorientados,
«Este sono teria entäo deixado de ser c6mico, embora se pres-
tasse a provocar o riso, e este espectaculo inedito teria bastado
para corrigir a insipidez da peQa. 0 publico, avido de conhecer
os proce ssos da arte de adormeoer, näo faltaria em razäo da no-
vidade do titulo e tomaria interesse pela obra em que o autor
contou rnais corn a natureza do assunto do que com a suficiencia
das suas forQaS.»
Faria manifesta, em todo este arrazoado, o desgosto que
sentiu ao saber-se exposto ao disfruto a que o levaram no palco
das Varietes. A todas as outras criticas e apreciaQöes respondeu
corn aprurno e com desprezo ; esta, porern, contundiu roais funda-
mente a sua sensibilidade. 0 ridiculo da cena mexeu-lhe com os
nervos. Dai a resposta acrimoniosa, descendo mesrno a arneaQaS
-diga-se de passagem -bastante inanes.
Para o resto, para as apreciaQÖes violentas das gazetas, para
o läpis cruel dos caricaturistas, rnostrou-se sobranceiro.
«Pouco cioso -diz ele -«da aprovagäo dos hornens, sempre
inconstante e versatil nos principios que a regulam, s6 procurarei
(na exposigäo da minha doutrina) ficar a bem corn a minha cons-
ciencia. Ela somente me dirigira a conduta.»
Noutra passagem da sua obra, declara que responde corn o
silencio as agressöes pessoais que lhe dirigem. A excepgäo foi
apenas para os c6micos e para os padres que o acoimavam de
id6latra e o davam em entendimento secreto com o dem6nio. Fo-
ram as injustigas mais flagrantes. Uns lanQando-o a irrisäo piiblica
como charlatäo; outros servindo-se das suas crengas, que inter-
XIV
Alexandre Dumas descreve-o no seguimento deste relato: 0 inspector e o governador entreolharam-se, sorrindo.
«No meio do carcere -escreve o romancista -«num circulo « -Meu amigo, diz o inspector, as suas noticias de Italia
tragado no chäo com um peda o de cal tirado do muro estava näo säo frescas.
deitado um homem quase nu, de tal maneira o seu vestuario caia « -;Datam do dia em que fui preso, diz o padre Faria, e
aos pedaos. Desenhava nesse circulo linhas geometricas muito como S. M. o Jmperador criou a realeza de Roma para o filho
nitidas e parecia täo ocupado em resolver o seu problema como que o ceu lhe enviou, presumo que, prosseguindo nas suas conquis-
Arquimedes quando foi morto por um soldado de Marcello. tas. realizasse o sonho de Maquiavel e de cesar Borgia: fazer de
«Näo se mexeu ao ruido que fez ao abrir-se a porta da prisäo toda. a ltalia um s6 e unico reino.
e s6 pareceu sair da sua abstracäo quando a luz das tochas ilu- « -AProvidencia, diz o inspector, impös, felizmente, alguma
minou com um brilho desusado o solo humido em que trabalhava. mudanga a esse plano gigantesco de que me parece ser grande
Entäo voltou-se e viu, com surpresa, a numerosa comitiva que partidario.
vinha vlsitä-lo. « -E a linica maneira de fazer da Itä.lia um Estado forte,
«Levantou-se rapidamente, tomou uma coberta que estava aos independente e feliz, disse o padre.
pes do catre miseravel e embrulhou-se nela precipitadamente para « -Talvez seja possivel, respondeu o inspector, mas eu näo
parecer mais decente aos seus improvisados h6spedes. estou aqui para seguir um curso de politica ultramontana, mas
« -Tem alguma coisa a reclamar? perguntou o inspector, para lhe perguntar, como ja disse, se tem alguma reclamagäo a
repetindo a f6rmula habitual. fazer sobre alimentaäo ou alojamento.
« -Eu? -diz o padre com ar de surpresa. Eu näo pego nada. « -A alimentaäo e a que costumam dar nas prisöes, diz o
padre, muito ma; 0 carcere e, como ve, hlimido e sujo, mas con-
« -O S'enhor compreende, continua o inspector, eu sou agente
tudo toleravel para o firn a que e destinado. Agora näo e disso
do governo, tenho por obrigaäo visitar as prisoes e escutar as que se trata, mas de revelagöes da maior importäncia que desejo
reclamagoes dos presos. fazer ao governo.»
« -Ah ! Isso entäo e outra coisa, exclamou vivamente o padre , O padre Faria pretende expor, em seguida, a hist6ria do seu
e espero que possamos entender-nos. tesouro. Atalha o governador, que diz conhece-la em todas as
« -Corno ve, diz baixo 0 governador, as coisas comeam suas particularidades por estar f arto de a ouvir, podendo, portanto,
como eu lhe tinha anunciado. informar o inspector, se assim o desejar, o que merece ao padre
« -Senhor, continuou o prisioneiro, eu sou o padre Faria, esta apreciaQäo :
nascido em Roma. Fui 20 anos secretario do cardeal Rospigliosi e « -lsto prova que O Senhor governador e COIDO aqueles de
fui preso, näo sei porque, no principio do ano de 1811. Desde entao quem f ala a Escritura, que tem OS olhos e nao veem; ouvidos e
reclamo a minha liberdade as autoridades italianas e francesas. näo ouvem.
« -Porque o f az junto das autoddades francesas ? -inda- « -Palavra, diz o inspector a meia voz, se näo soubesse que
gou o governador. se trata de um louco, convencer-me-ia da verdade das suas afir-
maQoes, tal e a certeza que lhes imprime.
« -Porque fui preso em Piomino e presumo que, como su-
« -Eu näo sau louco, senhor ; s6 digo a verdade, replicou
cedeu a MiläO" e a Floren a, Piombino se tenha tornado a capital
de algum departamento frances. Faria. Este tesouro de que lhe falo existe de facto; estou pronto a
0 A.'F.-9
130 0 AB.ADE FARIA NA 0 ABADE FARIA NA LENDA 131
LENDA
Mas ja a epoca da sua morte, no romance, näo e a mesma. Dumas poe em relevo os conhecimentos hist6ricos e filos6ficos
Dumas prolonga-lhe a vida por mais dez anos. E possivel que do Faria-prisioneiro. De facto, o padre Faria foi professor de Fi-
ignorasse a data do seu falecimento , ou isso o näo preocupou. losofia em Marselha.
« -Sabe, pergunta Faria a Edmond Dantes, que do choque
Dalgado pretende demonstrar que o tesouro de que fala o
das nuvens sai. .. a luz?»
romance näo e mais do que uma alusäo directa as suas doutrinas « -Näo ...» responde Edmond.
sobre o sonambulismo, tesouro de que todos se riram e que os Tarnbern o publico näo conhecia a verdade do magnetismo.
homens de ciencia, algumas decadas de anos depois, sintetizados Näo vamos täo lange nesta interpretaäo, alias bem arqui-
no Dantes do romance, vieram a confirmar. tectada. Ficamos na identifica äo da personagem real com a per-
Dumas näo podia conhecer nessa epoca o movim ento cientifico sonagem do romance . Dumas afastou-o por eompleto do martirio-
da reabilita äo da obra do padre portugues, Seria uma previsäo, I6gio sofrido em Paris para lhe criar um outro, inteiramente fan-
pouco provä.vel, da verdade das doutrinas de Faria. Alem disso tasista, adentro do hist6rico presidio de If.
teriamos de atribuir a Dumas um simbolismo exagerado, nada Dumas levou-o da vida real para o romance . Apresentou-o
habitual na sua maneira de escrever. como crente, que sempre foi, e como homem de bem a quem, por
A termos de enveredar por esse caminho, deveriamos inter- exemplo, repugnava o assassinio dos guardas da prisäo, pois
pretar a referencia ao sistema de N ewton, que, na frase de Dumas, Dantes chegou a propor-lho para conseguirem a fuga. Marcou-lhe
as teorias matemä.ticas do Faria do romance viriam a modificar, as datas mais notä.veis da vida, assinalou-lhe uma cultura invulgar .
como representando a inutiliza äo das doutrinas fluidicas de Mes- Mas as descrigües de Dumas s6 raras vezes se ajustam ao
mer, ponto culminante das doutrinas defendidas no seu livro. original. Assim, diz o romancista que:
O Tratado da poss ibilidade d e uma monarquia geral em Italia, «Era uma personagem de pequena estatura, de cabelos em-
que ele teria conseguido escrever na prisäo, seria um disfarce para branquecidos antes pelo desgosto do que pela idade, de olhar pe-
netrante escondido sob espessas sobrancelhas e uma barba ainda
ocultar as Causas do sono lucido, que o verdadeiro padre Faria
preta que lhe descia ate ao peito. A magreza do seu rosto » -con-
escreveu e a que fizemos largo comentä.rio.
tinua Dumas -«Sulcado de rugas profundas, a linha geral dos
Dalgado aponta ainda outras passagens com que pretende tragos caracteristicos, revelavam um homem mais habituado a
demonstr ar a sua tese. Citamos algumas: exercer as faculdades morais do que as foras fisicas.»
Faria, no romance, leva quatro anos a fazer os utensilios de Desta exposiäo deduz-se um ou outro trao fision6mico
que se serviu para esburacar o tunel no muro da prisäo, e dois a exacto; mas apresenta-o como um homem baixo, quando era exac-
tres anos a cavar a argamassa dura. 0 padre Faria fez confe- tamente o conträrio ; fala de uma barba que ele näo usou, mas
rencis quatro anos e levou dois a tres a escrever a sua obra. que era indispensävel a indumentä.ria do prisioneiro e nada diz
Edmond Dantes, o companheiro de prisäo de Faria no Castelo da caracteristica fision6mica fundamental: a cor bronzeada, a que
de If , achava que as faculdades do seu amigo e mestre eram quase nenhum dos seus criticos deixou de se referir por ser a que mais
sobrenaturais. Os frequentadores das suas sessöes da rua de impressionava, especialmente em pais onde näo era vulgar.
Clichy, em Paris, tambem o consideravam possuidor de poderes Dumas näo quis reproduzir Faria, pelo menos com a preocupa-
ocultos extraordinä.rios. äc de uma c6pia. Nero era essa a sua orientaäo artistica.
0 ABADE FARIA NA LENDA I 0 ABADE FARIA NA LENDA 135
134
I Se assim foi, conseguiu-o de uma maneira brilhante. Foi
O brilhante romancista tinha uma grande predilecQäo pelas
coisas extraordinarias. E passive !, por isso, que acompanhasse, J Dumas, inquestionavelmente; quem lanou o nome do padre Faria,
ainda na sua terra natal, as discussöes originadas em torno do quem o tornou conhecido, quem o divulgou.
sonambulismo e dos magnetizadores . E tudo leva a crer que, ao Esse grande servigo se deve ao imortal romancista.
chegar a Paris, em 1823, tres anos e meio depois da morte de 0 Conde de Monte-Cristo teve um grande sucesso e, como
Faria, nao s6 ouvisse falar repetidas vezes da seu nome e do firn a contece aos romances que alcangam uma notavel celebridade, foi
que teve, ap6stolo de doutrinas, escarnecido e desprezado, mas trasladado para a cena. E a maneira fä.cil de os tornar, sem maior
ate e crivel que frequentasse canferencias sobre o sonambulismo, canseira, acessiveis ao grande publico.
como as de Bertrand, que sao do seu tempo . Teria mesmo passado Foi dramatizado e representado pela primeira vez em 3 de
a vista pela obra de Faria, aparecida, como dissemos, em 1819? Fevereiro de 1848 no Theatre Historiq_ue de Paris, onde obteve um
Nao sabemos responder, mas ha um f acto sobre que nao grande sucesso (1) .
podem restar duvidas: Alexandre Dumas acreditava no magne- 0 drama, embora oculte pormenores que o romance contem,
tismo animal e teve sessöes de sonambulismo em sua casa. Delas nao altera em nada a cena da prisäo. E no acto Ill -Sexto quadro
da conta G. A. Gentil, num trabalho publicado em Paris, em 1849, -A prisäo de Edmond no Castelo de lf -que se desenrola a
conversa entre os dois prisioneiros.
e que subordinou a este titulo: Initiations aux myster es de la theo- rie
du rmagnetisme animal, suivi d'experiences faites a Monte- A cena IV representa Edmond Dantes no cä.rcere quando
sente o ruido de alguem que trabalha num dos muros. Na imediata
-Christo, chez Alexandre Dumas. o carcereiro traz-lhe a alimentaao e na cena VI estabelece-se o
O romancista publicou mesmo, pouco tempo depofs de ter-
diälogo entre Edmond e uma voz atraves do muro. Um pouco
minar o Conde de M onte-Cristo, As Mem6rias dum medico-Jose de trabalho mais e aparece Faria, que consegue estabelecer mna
Bälsamo -o que denuncia a sua predilecgaa por estudos similares. comunicaao entre o seu cärcere e o deste prisioneiro , por um
Seja como for, Dumas nao se preocupou, no seu romance, com erro de calculo, pois contava alcangar lugar asado para a fuga.
as doutrinas de Faria. Nao o interessou a obra; fascinou-o o Conta a Edmond os seus trabalhos e o seu desanimo. Era o
homem e a sua vida. Soube que foi um sacrificado por uma ideia esforgo de seis anos de luta! Era a perda da ll.nica esperanga que
que considerava exacta, pois acreditava nos resultatlos das pra- lhe restava !
ticas hipn6ticas. Por isso utilizou a personagem cujo nome ainda E nessa cena, trazida fielmente do romance, que Faria ma-
devia ecoar nos meios em que se praticava o magnetismo quando nifesta o seu alto valor mora:l.
comegou a escrever o Conde de Monte-Cristo.
(1) Os papeis de Edmond Dantes e Faria foram confiados aos actores
Par outro lado, dava-se a coincidencia de desenvolver a acgao M ligne e Bonnet.
do romance em torno de 1815, epoca em que viveu 'F'aria. Apro- Ern 1862 foi de novo levado ä. cena no Ambigu, sendo o papel de Faria
interpretado por Rouvier, e em 1880 no Gaite, em que o actor Talieu se
yeitou-o no prop6sito de dar um nome verdadeiro, mas sob um encarregou de exibir o padre portugues.
disfarce romanesco, a epoca, inteiramente afastado da realidade Houve uma nova representa!;äO do drama em 1 de Novembro de 1883
neste Ultimo teatro, cuja receita foi destinada a aumentar a subscri!;äo para'.
da personagem, que possivelmente quis ressuscitar de um injus- a estätua de Alexandre Dumas, !naugurada, tres dias depois, na praC(a de
tificado esquecimento. Malesherbes.
136 0 ABADE FARIA NA LENDA 0 ABADE FARIA NA LENDA
Dumas näo prejudicou Faria; pös-lhe em realce algumas das Uma posteridade imediata näo conseguiu resgatar a sua me
qualidades e ocultou outras. Sobretudo dif undiu o seu nome. Houve m6ria das acusagöes com que o amortalharam.
uma epoca em que todos se relacionaram com a lendäria figura Ern Portugal ficau pouca menas que esquecido. Apenas o
do Abbe Faria. canheciam do ramance de Dumas, sem que a gente desatenta se
Conta Dalgado, na sua Mem6ria, que, quando foi ver a casa lembrasse da obscura persanagem portuguesa que deu origem ao
n.1 7 da rua Ponceau, disse a porteira, que amavelmente lhe mos- prisioneiro do Castelo de If.
trou algumas salas: Tentamos hoje contribuir para resgatar mais de um seculo
« -Sabe a razäo da minha visita ? de quase campleto esquecimento, mostrando a visäo esclarecida
da padre portugues na apreciagäo de fen6menos de intrincada
-Näo, senhor.
textura psiquica.
-1!: que estou convencido de que o padre Faria habitou Sirva o nossa desejo de desculpa as deficiencias do estuda e
esta casa em 1792. que o seu name se perpetue na hist6ria das ciencias em Portugal,
-Issa pade lä ser -diz a porteira. -0 padre Faria nunca onde bem mereee ser inscrito cam as honras a que tem jus.
existiu. 0 senhor estä a divertir-se comigo.» 0 padre Faria foi bem maior na realidade da que na lenda.
Dalgado acabau por assegurar-lhe a verdade da afirmativa Acompanhamos a presente monagrafia de uma extensa bi-
e a sua obra foi, decerto, a primeira reabilitagäo seria do nosso bliografia ate 1890. Dessa epoca para cä. e menos numerasa e
biografado. menas interessante. S6 um ou outra trabalha merece ser referido.
A porteira conhecia apenas o padre Faria da romance de Destinamos esses esclarecimentos näo s6 aas que pretendem
Dumas. 0 mesmo sucede, ainda hoje, a grande maioria dos par- aprof undar um ou outro ssunto do nosso trabalho sabre o padre
tugueses. Contuda, a obra cientifica do infeliz padre goense foi Faria, mas tambem para mastrar que ainda hä poucos anas alguns
notabilissima, pois colocou o prablema do hipnotisma no lugar medicas caiam em erras grosseiros a prop6sito da importäncia
donde nunca mais puderam deslocä-lo. As novas investigagöes s6 dada a hipnose coma meio terapeutico. Bastam alguns enunciados
vieram canfirmar a quase totalidade das suas observagöes e para evidenciarem deficiencias de diagn6stica e de interpretagäo.
doutrinas. Näo admira, pois, que o padre portugues, näa senda medico,
Faria, atormentado desde a infä.ncia por desavengas familiares, tres quartos de seculo antes incorresse tambem em exageras e
sacrificado pelo exilia, que veio a ser perpetuo, lange da pätria em prejuizos.
distante, perdido na meio turbulento de Paris, numa epoca de A hipnase perturbou, durante um largo perioda da medicina, o
tormentosa palitica, desfeitas todas as esperangas de alcangar sensa critica dos observadores, o mesmo sucedendo a histeria, irma
triunfos na carreira eclesiästica, divagou, apegado ao bordäo da gemea, com o seu lado espectaculoso e mistificadar,
filosofia que cursara na Universidade Cat6lica de Roma, na ansia Esta neurose s6 ficou com os limites bem marcadas depois
de alcangar a verdade no campo em que veio a consumir a sua dos notabilissimos trabalhas de Babinski.
actividade. 0 hipnotisma, desde essa epaca, reduziu tambem a sua es-
A carreira de honesto e minucioso abservador alcangou o fera de acgäo aa perimetro do pitiatismo, näo passando alem das
firn desejado. Somente foi incompreendido e como recompensa do barreiras sugestivas com que o balizaram. Decaiu da alta conceito
seu esforgo cobriram-no de doestas e levaram-no a miseria. em que o tiveram os magnetizadores das fins da seculo xvm e
138 0 ABADE FARIA NA LENDA
I
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IX -A Sintomatologia do Sonambulismo 73