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ISSN 1806-9142

Qualis “B2” na tabela CAPES

1994 – 2012
18 anos de produção
Caderno Seminal

o
Caderno Seminal Digital – Vol. 18 – N 18 – (Jul / Dez – 2012). Rio de Janeiro: Dialogarts,
2012.

ISSN 1806-9142

Semestral

1. Linguística Aplicada – Periódicos. 2. Linguagem – Periódicos. 3. Literatura - Periódicos. I.


Titulo: Caderno Seminal Digital. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

CONSELHO CONSULTIVO EDITORA


André Valente (UERJ / FACHA) Darcilia Simões
Aira Suzana Ribeiro Martins (CPII) COEDITOR
Claudio Cezar Henriques (UERJ / UNESA) Flavio Garcia
Claudio Manoel de Carvalho Correia (UFAM) ASSESSOR EXECUTIVO
Darcilia Marindir Pinto Simões (UERJ/CNPq) Claudio Cezar Henriques
Denilson Pereira de Matos (UFPB) DIAGRAMAÇÃO
Flavio Garcia (UERJ / UNISUAM) Marcos da Rocha Vieira
Jose Luís Jobim (UERJ / UFF) (Bolsista PROATEC)
Magnólia B. B. do Nascimento (UFF) PROJETO DE CAPA
Maria Geralda de Miranda (UNISUAM / UNESA) Carlos Henrique de Souza Pereira
Maria Suzett Biembengut Santade (FMPFM E FIMI-SP) (Bolsista PROATEC)
Maria Teresa Gonçalves Pereira (UERJ)
Regina Michelli (UERJ / UNISUAM) LOGOTIPO
Rui Ramos (Universidade do Minho, Portugal) Gisela Abad
Sílvio Ribeiro da Silva (UFG) Contato:
Vilson José Leffa (UCPel-RS) caderno.seminal@gmail.com
publicacoes.dialogarts@gmail.com

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Caderno Seminal Digital Ano 18, n 18, V. 18 (Jul-Dez/2012) – ISSN 1806-9142

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Caderno Seminal

APRESENTAÇÃO

É com orgulho que apresento aos leitores a 18ª edição do Caderno Seminal
Digital, agora em um formato experimental proposto pelo coeditor Flavio García
quando produziu o número anterior.
Sigo sua proposta e reúno no Dossiê Temático um conjunto de artigos relevantes
sobre o Ensino de Línguas — L1, L2, Le, L2E, Libras e linguagens
complementares. Trata-se de relatos de estudos e pesquisas concluídas ou em
desenvolvimento, que se debruçam sobre questões de natureza sociopedagógica e
didática, trazendo à discussão uma variedade de questões que há muito povoam as
salas de aula e as academias.
Os trabalhos são subscritos em sua maioria por professores pesquisadores de
Universidades brasileiras e estrangeiras. Todavia, alguns artigos abrem a
oportunidade de jovens pesquisadores mostrarem seu potencial, uma vez que seus
orientadores abraçam a causa de incentivá-los à produção técnico-científica.
A iniciativa das Publicações Dialogarts é embalada pelo espirito extensionista,
cuja meta é abrir as portas da academia e levar, aos mais diversos rincões, a
produção de ciência, subsidiada por órgãos públicos e privados, portanto com a
obrigação de ser mostrada ao grande público e, possivelmente, servir-lhe de base
para redimensionamento de suas práticas ou de inspiração para novas invenções.
A criação do novo modelo para o Caderno Seminal Digital ensejou a edição de
número 18, que na Parte II – Miscelânea — conta com a participação de
pesquisadores europeus que aceitaram nosso convite e remeteram seus textos para
esta edição.
Seguindo o objetivo de nosso projeto editorial, buscamos reunir textos de qualidade
e autoridade acadêmica que possam dar suporte ao ensino na graduação e na pós-
graduação, consolidando o tripé em que devem assentar-se as Universidades:
Ensino, Pesquisa e Extensão.

Darcilia Simões
UERJ/CNPq/SELEPROT

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APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ TEMÁTICO

O diálogo sobre o tema Ensino de Línguas — L1, L2, Le, L2E, Libras e linguagens
complementares teve início em um encontro acadêmico. Os debates realizados
naquela ocasião, além das significativas consequências técnico-teóricas, ensejou a
continuação das trocas do que ora resulta esta publicação acolhida pelo Dossiê
Temático do Caderno Seminal Digital.
O desenvolvimento de estudos e pesquisas nas universidades de origem dos
signatários dos artigos então reunidos distribuem-se nas mais variadas rubricas:
Iniciação Científica, Iniciação à Docência, Produtividade em Pesquisa (PQ),
Prociência, PIBID etc. Esse leque de atividades possibilita um enfoque também
diversificado uma vez que são relevantes as seguintes variáveis: nível do
pesquisador (docente ou discente), modalidade da rubrica e consequentes metas,
tempo de desenvolvimento, clientela-alvo etc. Por isso, os relatos constantes desse
volume apresentam farto material adaptável aos diversos níveis de atuação docente:
do Ensino Básico à Pós-graduação.
Outra marca de nossos textos é a linguagem. Os autores constroem seus textos em
linguagem objetiva, sem rebuscamentos exóticos, uma vez que nossa meta é
comunicar em amplo espectro. Assim sendo, a leitura está aberta a estudantes,
docentes e investigadores seniores, uma vez que o apoio teórico é seguro e
confiável. Vale dizer que o conteúdo dos textos é de inteira responsabilidade de seus
signatários. Vamos ao perfil dos artigos.
Aline Deosti analisa atividades referentes ao trabalho com textos de Livro Didático
do Ensino Médio do Programa Nacional do Livro Didático (2009/2011 e
2012/2014). Em seguida aplica conceitos teóricos da Análise do Discurso de linha
francesa, em específico as noções de Foucault, a questões ligadas ao ensino e
aprendizagem de leitura.
Darcilia Simões & Rosane R. de Oliveira falam da produtividade do texto
clássico em sala de aula e, partindo de pesquisa em desenvolvimento com contos de
Eça de Queirós, trabalham palavras transparentes e opacas, semas componenciais,
campos semânticos e léxicos, expressividade e impressividade, adequação lexical e
analisam semântica e estilisticamente os itens léxicos eleitos como produtores da
ironia no córpus eciano. Na prática didática, as autoras propõem aos discentes a
produção de textos com o emprego imediato dos itens léxicos estudados. O foco é
no uso formal do Português do Brasil.
Gabriel Nascimento dos Santos, sob a orientação de Maria D’ajuda Alomba
Ribeiro, analisa as possibilidades de produção escrita na Internet através do gênero
“blog” com alunos de Língua Estrangeira/Português como Língua Estrangeira.

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Investigam ferramentas tecnológicas que facilitam o aprendizado de PLE e analisam


a produção escrita dos estudantes de PLE participantes da pesquisa, tendo como
fundamentação teórica os pressupostos da Sociolinguística e Linguística Aplicada.
Da linguagem escrita para o gênero textual “blog” até às comparações dos usos
semânticos, sintáticos, morfológicos, entre outros, analisam o que levou o estudante
a optar por um uso em detrimento de outros. Nesta pesquisa o estudante é
estimulado a escrever em registro formal, e o mecanismo de postagem-revisão
auxilia o estudante a aperfeiçoar sua expressão nos usos formais do Português
Brasileiro.
Juliana Ormastroni de Carvalho Santos, orientada por Maria Suzett
Biembengut Santade, em seu artigo discute a produção escrita como prática social.
Pesquisa estratégias didáticas que levem o aluno do 1º ano do Ensino Médio a
desenvolver sua produção escrita como um movimento enunciativo, enunciativo
discursivo e enunciativo linguístico na compreensão e escrita de textos que se
organizem pela argumentação. Inspira-se em Vygotsky, Leontiev e Engeström na
análise e organização de aulas que possibilitem aos alunos a produção escrita dos
gêneros que se organizam pela argumentação.
Liliane Santos, pesquisadora brasileira radicada em Lille (França), ocupa-se das
expressões idiomáticas que, segundo nossa percepção, parecem ser o “calcanhar de
Aquiles", no ensino de qualquer língua, em especial quando se trata de tradução. A
autora aborda a cristalização das formas e a impossibilidade de decomposição
destas, uma vez que abrigam sentido e emprego determinados socioculturalmente
Tratam-se, portanto, de conglomerados verbais cuja significação não corresponde à
soma dos significados individuais dos seus constituintes. Trata-se de artigo muito
oportuno, considerado o grande apelo ao domínio de línguas estrangeiras no atual
modelo globalizado de sociedade.
Maria D´Ajuda Alomba Ribeiro focaliza em seu artigo dificuldades discentes na
aprendizagem de língua portuguesa como língua estrangeira, partindo da ideia de
que os alunos trazem hipóteses que tanto podem ajudar quanto atrapalhar o
processo de aprendizagem. Parte para um ensino multimodal em que música, filmes,
diálogos, representação da realidade, entre outros se transformam em estratégias
didático-pedagógicas para o ensino de Língua Portuguesa como Língua Estrangeira.
É indiscutível e importância desse trabalho, uma vez que atualmente o português
tem sido objeto de interesse mundial, e o Brasil vem-se tornando única opção
socioeconômica para muitos povos em decorrência da crise econômica mundial.
Maria Clara M. A. Ribeiro propõe uma reflexão sobre as possibilidades do uso e
aplicação de Tecnologias da Informação e Comunicação no processo de ensino-
aprendizagem de português (escrito) como segunda língua para alunos surdos. Traz
propostas de atividades por meio de interfaces tecnológicas. Seu trabalho contempla
o objetivo de inclusão não apenas para os surdos, mas também quanto à inserção no
mundo digital.

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Sueli Gedoz & Terezinha da Conceição Costa-Hübes apresentam um projeto de


pesquisa e extensão com ações voltadas para a alfabetização. Desenvolvido na
região oeste do Paraná e financiado pela CAPES/INEP, oferece formação
continuada a docentes, para aprofundamento teórico e orientações sobre a prática
pedagógica de Língua Portuguesa.
Kleber Aparecido da Silva aborda em seu artigo a urgência na capacitação docente
quanto aos (trans) (multi) letramentos digitais. Focaliza a demanda desproporcional
à mão de obra especializada disponível e destaca a relevância de oferta de cursos ou
programas que utilizem interfaces tecnológicas em situação de ensino-aprendizagem
e de (trans) formação inicial e/ou contínua de professores de línguas. Como os
artigos anteriores, o trabalho de Kleber é de altíssima relevância no contexto em que
se enquadra a escola brasileira.
Assim sendo, esse conjunto de artigos que compõe o Dossiê Temático deverá
propiciar momentos de saudável e produtiva reflexão ao nosso público leitor.
Bom trabalho.
Darcilia Marindir Pinto Simões (UERJ/CNPq),
Maria Suzett Biembengut Santade (FIMI/FMPFM) e
Kleber Aparecido da Silva (UNB)
Organizadores do Volume

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................... 3

APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ TEMÁTICO ................................................................................. 5

PARTE I: DOSSIÊ TEMÁTICO ....................................................................... 10

A LEITURA PELO VIÉS FOUCAULTIANO DE ANÁLISE DOS DISCURSOS: QUESTÕES


SOBRE LEITURA (EM LÍNGUA MATERNA) NO LIVRO DIDÁTICO .......................................... 11

Aline Deosti ................................................................................................................................. 11

SERIA VOLTAR NO TEMPO OU REMAR CONTRA A MARÉ? .................................................. 24

Darcilia Marindir Pinto Simões & Rosane Reis de Oliveira ......................................................... 24

O GÊNERO “BLOG” E A PRODUÇÃO ESCRITA NA INTERNET: POSSIBILIDADES PARA A AULA DE


LÍNGUA ESTRANGEIRA/PORTUGUÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA.................................................... 41

Gabriel Nascimento dos Santos& Maria D’Ajuda Alomba Ribeiro .............................................. 41

A TEORIA DA ATIVIDADE SÓCIO-HISTÓRICO-CULTURAL: UMA PROPOSTA PARA A


PRÁTICA DE PRODUÇÃO DE TEXTOS ESCRITOS PELA ARGUMENTAÇÃO ....................... 53

Juliana Ormastroni de Carvalho Santos & Maria Suzett Biembengut Santade .......................... 53

SOBRE O ENSINO DA TRADUÇÃO DAS EXPRESSÕES IDIOMÁTICAS: ALGUMAS


REFLEXÕES ............................................................................................................................... 64

Liliane Santos .............................................................................................................................. 64

MANUAL DE PLE/PL2: DIÁLOGO EM PERSPECTIVA ............................................................. 82

Maria D´Ajuda Alomba Ribeiro .................................................................................................... 82

LÍNGUA PORTUGUESA COMO SEGUNDA LÍNGUA PARA ALUNOS SURDOS: PROPOSTAS


DE ATIVIDADES A PARTIR DE INTERFACES TECNOLÓGICAS ............................................. 91

Maria Clara M. A. Ribeiro ............................................................................................................ 91

FORMAÇÃO DOCENTE E O ENSINO DA LINGUA PORTUGUESA: ARTICULAÇÃO ENTRE A


TEORIA QUE FUNDAMENTA A PRÁTICA ............................................................................... 105

Sueli Gedoz & Terezinha da Conceição Costa-Hübes ............................................................. 105

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RADIOGRAFANDO AS COMPETÊNCIAS DO PROFESSOR EM (TRANS) FORMAÇÃO


INICIAL DE PROFESSORES DE LÍNGUAS NO PROJETO “TELETANDEM BRASIL: LÍNGUAS
ESTRANGEIRAS PARA TODOS” ............................................................................................. 117

Kleber Aparecido da Silva ......................................................................................................... 117

PARTE II – MISCELÂNEA............................................................................. 148

LITERATURA TIMORENSE: DA EMERGÊNCIA À LEGITIMAÇÃO ........................................ 149

Ana Margarida Ramos .............................................................................................................. 149

TECENDO A CULTURA GREGA NO MITO ARACNE: SOB UM OLHAR SEMIÓTICO ........... 161

Claudio Artur O. Rei& Marta dos Santos Lima ......................................................................... 161

A PALAVRA E O RISO NAS CRÔNICAS DE JOÃO UBALDO RIBEIRO .................................. 174

Denise Salim Santos ................................................................................................................. 174

EDITORIAIS DE EDIÇÕES ESPECIAIS “VERDES” NA IMPRENSA PERIÓDICA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA.


O CASO DA REVISTA “VISÃO” ........................................................................................................ 186

Rui Ramos ................................................................................................................................. 186

TOPONÍMIA MARANHENSE: UM PERCURSO SEMIÓTICO DO TEXTO AO CONTEXTO


SÓCIO-HISTÓRICO .................................................................................................................. 202

Maria Célia Dias de Castro & Sebastião Elias Milani................................................................ 202

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PARTE I: DOSSIÊ TEMÁTICO

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A LEITURA PELO VIÉS FOUCAULTIANO DE ANÁLISE DOS


DISCURSOS: QUESTÕES SOBRE LEITURA (EM LÍNGUA MATERNA)
NO LIVRO DIDÁTICO
DISCOURSE ANALYSIS BY FOUCAULT AS READING THEORY: READING ISSUES (IN
MOTHER LANGUAGE) IN THE TEXTBOOK

Aline Deosti 1

Resumo
No Brasil, os exames oficiais de aprendizagem têm demonstrado que estudantes concluintes do
nível médio têm dificuldades em interpretar texto de média complexidade. Tendo isso em vista, este
estudo tem o propósito de analisar atividades referentes ao trabalho com textos presentes no Livro
Didático do Ensino Médio (Cereja & Magalhães, 2005) do Programa Nacional do Livro Didático
(2009/2011 e 2012/2014). E a partir da análise, propor aplicar os conceitos teóricos da Análise do
Discurso de linha francesa, em específico as noções de Foucault, às questões ligadas ao ensino e
aprendizagem de leitura.
Palavras-chave: Livro didático, Leitura, Análise do Discurso Foucaultiana.

Abstract
In Brazil, the nationals learning tests has shown that students about to finish high school have
problems to interpret complex texts. Having this in mind, this paper aims to analyze text activities
in a Brazilian mother language textbook for Secondary Education (Cereja & Magalhães, 2005) from
the National Program of the textbook (2009/2011 e 2012/2014). And I also propose to apply the
Foucault’s concept of discursive formation to develop text comprehension questions.
Key words: Mother language; Reading; Education; Discursive formation

Introdução
O livro didático é, em grande parte, a única fonte de informação científica para o
estudante das escolas públicas brasileiras, ademais, ele é um ou, se não, o material
educativo mais utilizado na escola atualmente, além de auxiliar a prática pedagógica
do professor (Carmagnani, 1999; Souza, 1999). Assim, ele funciona como meio de
contribuir para o letramento crítico docente e como suporte para o
desenvolvimento da autonomia do estudante.
Considerando os desempenhos dos estudantes concluintes do ensino médio em
exames oficiais de avaliação da aprendizagem quanto a atividades de leitura e tendo
em vista o papel fundamental do livro didático no processo de ensino e
aprendizagem de língua materna, este estudo tem, a princípio, o propósito de refletir
sobre as questões que envolvem o ensino e aprendizagem de leitura frente à
educação regular do ensino médio em escolas públicas. Para tanto traz reflexões

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UFPR/CNPq Mestrado - deosti@gmail.com

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analíticas de atividades referentes ao trabalho com textos presentes no Livro


Didático para o Ensino Médio (LDEM), (Cereja & Magalhães, 2005), aprovado pelo
Ministério da Educação e adotado no triênio 2009-2011 e (re)adotado recentemente
em 2012 por algumas escolas do estado do Paraná. Uma vez que dentre as
atividades propostas por esse livro didático é parco o trabalho voltado para a leitura
textual, tenho um segundo objetivo, apresentar atividades de leitura que possam
auxiliar o processo de construção de sentidos pelos estudantes por intermédio de
um professor.
A proposição dessas atividades tem como base teórico-metodológica a fase
arqueológica de Michel Foucault (1926/1984) circunscrita à análise do discurso
francesa, especificamente as categorias que constituem a Formação discursiva (FD),
entendida, nesse trabalho, como unidade determinada pela regularidade do sistema
enunciativo geral ao qual está submetido um grupo de enunciados, e a Função
enunciativa (FE), função que propícia a descrição dos enunciados como
acontecimentos discursivos únicos.
Primeiramente, traço algumas considerações sobre o método arqueológico de
Foucault demonstrando porque ele pode ser um dispositivo de leitura. Na
sequência, descrevo as particularidades da formação discursiva segundo Foucault
(FD), depois faço a análise de exercícios propostos para trabalho com o gênero
discursivo notícia do LDEM (Cereja & Magalhães, 2005) e finalizo com a proposta
de atividades complementares de interpretação.

A arqueologia de Foucault: noções para interpretação dos discursos


Para Gregolin (2003), o livro Arqueologia do saber, no qual estão presentes as
noções de Formação discursiva de Foucault, é um livro de caráter teórico-
metodológico, em que o autor sistematiza uma série de conceitos basilares para a
abordagem do discurso. Esse aporte teórico trata o texto na sua articulação com a
exterioridade, tendo em vista que, a produção de sentidos não está somente na
constituição interna da palavra ou no texto como uma unidade, mas na relação com
as regras históricas que determinaram e possibilitaram a emergência desse texto, e
não de outros em seu lugar.
Sob esse horizonte, a análise e a interpretação de um texto têm como principio de
observação a circunstância da enunciação do mesmo, além de considerar sua
constituição estrutural linguística. O campo enunciativo de um texto é determinado,
em parte, pela linguagem e, em parte, por determinantes histórico-discursivos. De
um lado, há as possibilidades e escolhas linguísticas e, de outro, há regras históricas
que estabelecem as condições de emergência e existência do fato enunciado. Essas
condições são primordiais para a materialização dos enunciados, uma vez que não se
pode falar de tudo em qualquer circunstância ou em qualquer período, “qualquer
um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (Foucault, 2008b, p.9), assim como,

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“não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta abrir os olhos, prestar atenção, ou
tomar consciência”, para se discorrer sobre novos assuntos (Foucault, 2008a, p.50).
Desse modo, um texto carrega traços distintivos fundamentais ou resquícios do
tempo em que foi enunciado. Para Maingueneau (1996), todo enunciado é o
produto de um acontecimento discursivo único, que define uma situação. A partir
desse princípio, um texto apresenta certas particularidades que o caracteriza como
um acontecimento discursivo exclusivo, do qual só ocorre um. Nesse trabalho,
portanto, o texto é compreendido como enunciado seja ele verbal, visual ou
multimodal.
Tendo em vista a singularidade de qualquer enunciado, devido ao campo particular
de sua produção, a descrição de um contexto enunciativo permite estudar o texto a
partir de sua constituição estrutural linguística e também a partir das regras de
enunciação extralinguística do discurso. Tal perspectiva diferencia-se da linguística
imanente, que estuda a língua unicamente a partir do princípio de suas regularidades
estruturais internas, “o que permite apreendê-la na sua totalidade, já que as
influências externas geradoras de irregularidades, não afetam o sistema por não
serem consideradas como parte da estrutura” (Mussalim, 2001, p. 103).
Compreendida como um dispositivo de leitura e interpretação de texto, a AD é uma
ciência que trabalha “como” o texto funciona e produz sentidos e não com a
posição tradicional de análise de conteúdo que busca compreender “o que” o texto
quer dizer. Na perspectiva foucaultiana, a análise enunciativa é, pois, uma análise
histórica: aos enunciados pergunta-se “de que modo existem, o que significa para
eles o fato de se terem manifestado, de terem deixado rastros e, talvez, de
permanecerem para uma reutilização eventual”; o que é para eles o fato de terem
aparecido – e nenhum outro em seu lugar (Foucault, 2008a, p. 124).
Essa linha de estudos apresenta uma concepção especial sobre o sentido, para
Análise do Discurso (AD) o sentido não é universal ou convencional, uma vez que
não é necessariamente expresso em sua totalidade (Orlandi, 2001). Para a AD um
enunciado, um discurso ou uma palavra não têm um só sentido, visto que a
produção de efeitos de sentidos não está apenas nas palavras ou nos textos, mas na
sua relação com a exterioridade e a memória e nas condições histórica em que eles
são produzidos. Desse modo, a interpretação textual se pauta nos processos e nas
condições de produção da linguagem, por meio da relação estabelecida entre língua
e os sujeitos que a falam e as situações em que se produz o dizer. A partir dessa
perspectiva, o estudo e interpretação discursiva têm o enunciado como objeto de
observação e descrição.

O enunciado foucaultiano: objeto de análise e interpretação discursiva


O enunciado, objeto de análise e interpretação discursiva, não apresenta uma forma
única, nem é fácil de descrever. Definir um enunciado, materialidade de análise do

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discurso, é uma tarefa bastante complexa, ele não tem limites precisos, não se
mostra numa unidade atômica ou elementar e nem apresenta independência.
A dificuldade de delimitá-lo está nos fatos de que há enunciados sem estrutura
proposicional fidedigna, ou seja, o enunciado não é a proposição dos estudos da
lógica; há enunciados sem os elementos essenciais de uma frase; há enunciado que
sozinho constitui um ato ilocucionário, por outro lado, há atos ilocucionários que
“só podem ser considerados acabados em sua unidade singular se vários enunciados
tiverem sido articulados, cada um no lugar que lhe convém” (Foucault, 2008a, p.
94). Desse modo, em que nível situar os enunciados? Que método usar para abordá-
los?
O enunciado não é uma unidade fácil de ser estabelecida, contudo “o campo de
exercício da função enunciativa e as condições segundo as quais aparecem unidades
diversas” constituem as condições de possibilidade para descrevê-lo (Foucault,
2008a, p.120-121).
Na perspectiva foucaultiana, o enunciado exerce o papel de uma função de
existência, e que pertence, exclusivamente, aos signos; ele é definido pelos quatro
conjuntos de regras que caracterizam a formação discursiva: formação das
modalidades enunciativas, formação dos objetos, formação do conceito e formação
das estratégias ou tema. Ele é um corpo visível de uma sequência decorrente de um
processo de enunciação; é constituído, portanto, de uma materialidade de signo(s)
que foi efetivamente produzida, moldada, delineada, fabricada, traçada, articulada,
no tempo e no espaço.
Para os estudos gramaticais uma unidade elementar pode ser isolada em uma frase
ou em uma proposição, descrever essas unidades significa isolá-las e caracterizá-las
gramatical e estruturalmente. Entretanto, nos estudos discursivos, descrever um
enunciado significa definir as condições pelas quais uma série de elementos sígnicos
apresentou uma existência específica.
A função enunciativa, ao por em jogo unidades diversas, não atribui um “sentido”
para a unidade do enunciado, mas o coloca em relação com um campo de objetos;
ela também abre ao enunciado um conjunto de posições subjetivas possíveis ao
invés de lhes conferir um sujeito único; não lhe coloca limites, mas o insere em um
domínio de coordenação e de coexistência; não lhe atribui uma identidade, mas o
aloja em um lugar em que é utilizado e repetido.
Conforme descrito, é a análise dos quatro elementos da formação discursiva que
baliza as demarcações próprias do enunciado em sua especificidade.

A formação discursiva segundo Foucault


É relevante destacar, nesse momento, que as quatro direções em que se analisa a
FD: a formação dos objetos, a formação das modalidades enunciativas, a formação
dos conceitos e a formação das estratégias, correspondem, de maneira recíproca, aos

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domínios em que se exerce a FE: o referencial, o sujeito, o domínio associado e a


materialidade do enunciado. Desse modo, descrever os enunciados e a função
enunciativa de que são portadores é tentar revelar uma formação discursiva
individualizada, ou na direção inversa, demarcar a FD revela o nível específico
enunciativo de um conjunto de enunciados.
Os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos e as escolhas estratégicas, ou seja,
as quatro regras de formações da FD, não são independentes umas em relação às
outras. Há sempre um quadro de relações operante. Assim,
no caso em que se puder descrever, entre um certo número de
enunciados, semelhante sistema de dispersão e, no caso em que entre os
objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se
puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e
funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata
de uma formação discursiva (FOUCAULT, 2008a, p. 43).

A formação discursiva é, portanto, a unidade que se constata nas regularidades entre


objeto, conceito, teoria e sujeito, numa série de enunciados, o que permite definir, por
exemplo, o discurso sobre a educação. Tal unidade não pode ser delimitada “por outras
fronteiras senão aquelas estabelecidas pelo pesquisador; e elas devem ser especificadas
historicamente. Os corpora aos quais elas correspondem podem conter um conjunto
aberto de tipo e de gêneros do discurso, de campos e de aparelhos, de registro”
(Maingueneau, 2006, p. 16).
Corrobora, nesse sentido, destacar o termo “formação” em “formação discursiva”,
cujo caráter dinâmico e ativo se opõe ao caráter estático e pronto, uma vez que as
regras de formação não preexistem à análise. Em vez de considerar o termo
formação “em uma perspectiva puramente estática como se referindo a uma
entidade já existente, o analista, em função de sua pesquisa, dá forma a uma
configuração original” (Maingueneau, 2006, p.19). O dinamismo de cada regra de
formação, com suas falhas e trocas, é o que torna possível conceber as regularidades
de uma unidade discursiva num sistema de dispersão de enunciados. Assim, “se há
unidade, ela não está na coerência visível e horizontal dos elementos formados;
reside, muito antes, no sistema que torna possível e rege sua formação” (Foucault,
2008a, p. 80).

Do livro didático à constituição de um dispositivo de leitura


O livro didático (LD) é o material educativo mais utilizado na escola brasileira
atualmente, uma vez que, além de auxiliar a prática pedagógica do professor, ele
representa, na maioria das vezes, a única fonte de informação científica para o
estudante das escolas públicas brasileiras (Carmagnani, 1999; Souza, 1999). O LD é
um instrumento pedagógico adotado pela escola e destinado ao ensino; é um livro
cujo conteúdo expõe total ou parcialmente a matéria das disciplinas dos programas

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Caderno Seminal

escolares e sua proposta deve estar de acordo com os parâmetros divulgados nos
documentos oficiais, tais como os Parâmetros curriculares nacionais (PCN).
Em sala de aula, esse material dispõe ao professor e aos alunos um conjunto de
textos e exercícios com base nos quais o ensino e o aprendizado podem tomar
direcionamento. Para o estudante, o LD também se constitui num dispositivo de
apoio ao estudo autônomo fora de sala de aula e para muitos ele é o único material
escrito de base letrada que poderão ter em casa.
No livro didático de Cereja & Magalhães (2005), as atividades referentes ao estudo
do texto estão voltadas para a identificação, reconhecimento e a produção de
gêneros discursivos, além de buscar reconhecer o padrão linguístico presente no
texto. Por sua vez, a leitura não tem prioridade nas atividades propostas.
Tomo como exemplo o capítulo 27 do livro para o 2º ano do ensino médio que
trata do gênero discursivo notícia. A proposta de trabalho com esse gênero articula
atividades que versam sobre a identificação da estrutura composicional da notícia,
figura 1, e sobre as características peculiares desse gênero, figura 2.

FIGURA 1
EXERCÍCIOS RETIRADOS DO LIVRO DIDÁTICO PARA O 2º ANO DO ENSINO MÉDIO DE PORTUGUÊS (CEREJA &
MAGALHÃES, 2005), DO TRIÊNIO 2009/2011.

Como é possível observar nesses exercícios, os estudos com texto primam pela
identificação dos elementos essenciais do gênero discursivo e o reconhecimento
dessas partes no interior do texto, mas não propõe ao aluno refletir a respeito do
acontecimento discursivo.

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FIGURA 2
EXERCÍCIOS RETIRADOS DO LIVRO DIDÁTICO PARA O 2º ANO DO ENSINO MÉDIO DE PORTUGUÊS (CEREJA &
MAGALHÃES, 2005), DO TRIÊNIO 2009/2011.

Os exercícios, na sua maioria, relacionam-se às qualidades fundamentais do gênero


notícia e primam pelo reconhecimento da estrutura interna do gênero. Dentre as
atividades com texto, destacam-se também aquelas que trabalham com a linguagem
verbal, nesses exercícios, quer-se reconhecer o padrão e as características da
linguagem usada no gênero discursivo, figura 3, mas não se propõe pensar em seus
sentidos.

FIGURA 3
EXERCÍCIOS RETIRADOS DO LIVRO DIDÁTICO PARA O 2º ANO DO ENSINO MÉDIO DE PORTUGUÊS (CEREJA &
MAGALHÃES, 2005), DO TRIÊNIO 2009/2011.

Todas essas atividades têm relevância no processo de ensino e aprendizagem da


língua, no entanto, há lacunas quanto a uma questão muito relevante nesse processo,
a interpretação. A leitura aparece, apenas uma vez no capítulo, como uma atividade
individual de coleta de informações para produção escrita,
Ao escrever sua notícia, siga as instruções:
Faça um planejamento. Leia jornais e revistas, depois converse com seus
pais, professores, colegas e vizinhos sobre o assunto escolhido,
procurando obter o maior número possível de informações (CEREJA &
MAGALHÃES, 2005, p.243).

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Reúna-se com seus colegas de grupo para, juntos, escreverem um


anúncio publicitário. Antes, porém, leiam o texto a seguir [...] (CEREJA
& MAGALHÃES, 2005, p.344).

Entretanto, a leitura de gêneros discursivos na escola por meio da mediação de um


professor pode conduzir a diferentes efeitos de sentido, permitindo ao aluno seu
posicionamento enquanto sujeito ativo. A atividade de leitura no trabalho com os
gêneros discursivos precisa ser a primeira entre todas as outras. Por meio da
interpretação os alunos podem ser levados a refletir sobre a linguagem e a aprender
a língua.
Contrariamente, nas aulas de línguas, o texto é, na maioria das vezes, usado como
pretexto para o estudo das características do gênero discursivo, da gramática, ou de
outro aspecto da linguagem que o professor (ou o livro didático)
reputam como importante ensinar. Assim, o texto, parte do material
didático, perde a sua função essencial de provocar efeitos de sentido no
leitor-aluno, para ser apenas o lugar de reconhecimento de unidades e
estruturas linguísticas cuja funcionalidade parece prescindir dos sujeitos
(CORACINI, 1999, p.18)

No modo como o livro didático de Cereja & Magalhães concebe o trabalho com o
gênero discursivo não há uma relação entre as atividades de leitura, de gramática e
de produção da escrita. Ademais, na totalidade do capítulo analisado não há
preocupação em formar um “conjunto de referências” sobre o objeto do discurso
como apoio à produção textual solicitada. Desse modo, a proposta dos autores do
livro didático é lacunar quanto à formação do aluno como sujeito-leitor de textos na
escola e na sociedade.
Sob tais condições, propõe-se, nesse texto, um complemento para o
encaminhamento das atividades com o gênero discursivo, sugere-se um dispositivo
de leitura que se constitui num espaço no qual o aluno se coloca como sujeito.

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FIGURA 4
EXERCÍCIOS RETIRADOS DO LIVRO DIDÁTICO PARA O 2º ANO DO ENSINO MÉDIO DE PORTUGUÊS (CEREJA &
MAGALHÃES, 2005), DO TRIÊNIO 2009/2011.

Tendo em vista os enunciados da figura 5, proponho um dispositivo teórico-


analítico de interpretação do discurso com base na noção de Formação discursiva de
Foucault, que leva em consideração a descrição do campo enunciativo do
enunciado. Desse modo, convém questionar sobre as quatro regras de formação de
uma FD, com vistas a delimitar o quadro enunciativo. Os exemplos dados na tabela
1 se constituem em uma possibilidade de efeito de sentidos, no entanto, outros
sentidos podem ser construídos. O objeto do discurso, por exemplo, pode ser a
múmia, o Egito, a cultura egípcia, a morte, o corpo humano entre outros.

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TABELA 1
FUNÇÃO ENUNCIATIVA/FORMAÇÃO DISCURSIVA –QUADRO TEÓRICO-METODOLÓGICO PARA INTERPRETAÇÃO
DOS DISCURSOS

Desse modo, a partir das definições dessas quatro noções que se revezam, podemos
descrever regularidades em certos conjuntos de enunciados. Contudo, além de
determinar essas quatro unidades, o estudante pode ser levado a refletir sobre outras
possibilidades discursivas sobre esses elementos e inventariar porque apareceu esse
enunciado e não outro em seu lugar. Sob essa perspectiva, professor e estudantes
podem ser movidos a pensar:

em que tipo de gênero discursivo é possível encontrar conteúdo sobre o mesmo objeto? Ex.: Artigo
científico, notícia, reportagem;
por que quem que fala sobre tal objeto é o sujeito X? Poderia outro sujeito falar sobre o mesmo
objeto?;
o objeto em estudo tem outro conceito? Qual? Por que esse(s) outro(s) conceito(s) não apareceram
no texto estudado? Em quais gêneros discursivos esse(s) outro(s) conceito(s) poderiam aparecer?;
poderia esse objeto ser tratado por outra teoria ou área de conhecimento? Qual? Afinal, vale
questionar: porque apareceu esse enunciado e nenhum outro em seu lugar?

Ao determinar essas regularidades referentes ao enunciado estudado, delimita-se de


onde ele vem e porque ele apareceu em detrimento às outras possibilidades
temáticas. Tendo isso em vista, após interpretar o enunciado primeiro, propõe-se
realizar ainda outras pesquisas leitoras que envolvam os elementos da formação
discursiva estudada:

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procurar outra notícia que trate do mesmo objeto sob a mesma perspectiva conceitual;
pesquisar outro gênero discursivo cujo sujeito-enunciador seja o mesmo do gênero estudado (ex. o
arqueólogo ou o historiador);
procurar um texto que trate da mesma ciência, a arqueologia.

Desse modo, procura-se evidenciar o modo como o discurso funciona. Para


Foucault, “os discursos são uma dispersão, ou seja, são formados por elementos que
não estão ligados por nenhum princípio de unidade a priori, cabendo à análise do
Discurso, descrever essa dispersão, buscando as ‘regras de formação’ que regem
uma FD”. Assim, as formações discursivas são, pois, essa regularidade que pode ser
descrita no caso em que, entre os enunciados, vislumbre-se o funcionamento de um
sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os
conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade, ordem,
correlações, posições, funcionamentos e transformações. Esta descrição de
regularidades se propõe a estudar as formas de repartição e os sistemas de dispersão
dos acontecimentos enunciativos, possibilitando a passagem da dispersão para a
regularidade (Grangeiro, s/d, p. 02-03). Desse modo, a partir das definições dessas
quatro noções que se revezam podemos descrever regularidades em certos
conjuntos de enunciados.

Considerações finais
Tendo em vista o objetivo desse texto, a análise dos exercícios do capítulo 27,
Cereja & Magalhães (2005), demonstrou que as atividades primam pelo trabalho
exclusivo com as singularidades linguísticas, organização, disposição e ordem dos
elementos do gênero discursivo em detrimento do exercício de leitura do texto.
Ademais, as atividades não problematizam o porquê do estudo do gênero discursivo
em questão e nem o porquê da escolha do mesmo. O texto visual e o multimodal,
presentes na página inicial – fotografia e fotolegenda – não são percebidos como
textos e, parecem funcionar apenas figurativamente, uma vez que não há atividades
que os envolvam. Portanto, o capítulo todo aponta mais para a estrutura do gênero
discursivo e não apresenta atividade de compreensão.
Considera-se, portanto, que a escolha do livro didático é relevante, uma vez que
nem todas as referências bibliográficas aprovadas pelo PNLD ou de acordo com os
PCN asseguram coerência entre pressupostos teóricos e práticas metodológicas do
LD.
Há muitos materiais que, por exemplo, usam o texto como pretexto, embora os
Parâmetros Curriculares Nacionais, desde 1998, difundam a orientação discursiva
para o ensino de língua portuguesa, a qual se fundamenta em parte na teoria dos
gêneros discursivos de Bakhtin (1992) e, por outro lado, requer uma orientação
discursiva de texto (Brasil, 1998). Perceber o texto como discurso é compreender
que ele não encerra um sentido único. Nessa perspectiva, os diferentes modos de

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interpretação do texto e a produção de diferentes sentidos são aceitos como


possibilidades.
Sob essa perspectiva, proposta metodológico-analítica, pelo viés da Análise do
Discurso francesa (Foucault, 2008a), de interpretação textual pode ser incluída entre
as atividades propostas pelos autores do livro didático e deve contribuir para que os
alunos possam melhorar suas habilidades de leitura.
Os alunos-leitores podem ser levados a realizar, a princípio, uma leitura global do
texto por meio da ativação de conhecimento prévio sobre o tema. E,
posteriormente, fazer uma leitura detalhada do texto verbal e não verbal por meio
da descrição das quatro unidades da formação discursiva, levando-se em
consideração o gênero discursivo a que pertence o texto e as características da
linguagem.
Determinar os quatro domínios do método arqueológico que constitui a identidade
de uma formação discursiva juntamente com os aspectos estruturais linguísticos
pode conduzir a leitura do texto e a diferentes efeitos de sentido, permitindo ao
aluno se posicionar como sujeito ativo. As regras que constituem uma formação
discursiva possibilitam ao leitor perceber o texto como discurso e que ele se
relaciona a um exterior; permite compreender a singularidade da situação do
enunciado, evidenciando por que não poderia ser outro; mostra como ele exclui
qualquer outro, como ocupa, no meio dos outros enunciados e relacionados a eles,
um lugar que nenhum outro poderia ocupar; estabelece também suas correlações
com os outros enunciados a que pode estar ligado.

Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermanita G. G. Pereira. São Paulo:
Martins fontes, 1992.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua
portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.
CARMAGNANI, A concepção de professor e de aluno no livro didático e o ensino de
redação em LM e LE. In: Interpretação, autoria e legitimação do livro didático. CORACINI, M. J.
(org.) Campinas SP: Pontes. Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1999.
CEREJA, W. R.; MAGALHÃES, T. C. Português: linguagens. Vol. 2: ensino médio. 5 ed.
São Paulo: Atual, 2005.
CORACINI, M. Leitura: decodificação, processo discursivo...? In: O jogo discursivo na aula
de leitura: língua materna e língua estrangeira. CORACINI, M. J. (org.) Campinas, SP:
Pontes. Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1999.
GRANJEIRO, C. R. P. A propósito do conceito de formação discursiva em Michel Foucault e Michel
Pêcheux. Disponível em < http: //www.discurso.ufrgs.br/sead2/doc/claudiagrangeiro.pdf>
Acesso em 16/08/2011.

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Caderno Seminal

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7 ed. Trad. Luiz F. B. Neves. Rio de Janeiro:


Forense Universitária, 2008a.
_____. A ordem do discurso. 16 ed. Trad. Laura Fraga de Almeida. São Paulo: Loyola, 2008b.
MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso. 3 ed. Trad. Freda Indursky:
Campinas SP: Pontes. Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1996.
MAINGUENEAU, D. Unidades tópicas e não tópicas. In: POSSENTI; S SOUZA-E-
SILVA, M. C. P. (org.) Cenas da enunciação. Campinas, pp. 9-24, Criar, 2006.
MUSSALIM, F. Análise do Discurso. In: MUSSALIM, F. (org.) e BENTES, A. C. (org.)
Introdução à linguística: domínios e fronteiras, V. 2, 2 ed., São Paulo: Cortez, 2001.
ORLANDI, E. P. Discurso e texto: formulação e circulação de sentidos. Campinas SP: Pontes.
Editora da Universidade Estadual de Campinas, 2001.
SOUZA, D. Livro didático: arma pedagógica? In: CORACINI, M. J. (org.) Interpretação,
autoria e legitimação do livro didático. Campinas SP: Pontes. Editora da Universidade Estadual
de Campinas, 1999.

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SERIA VOLTAR NO TEMPO OU REMAR CONTRA A MARÉ?


GOING BACK IN TIME OR AGAINST THE WALL?

Darcilia Marindir Pinto Simões2 & Rosane Reis de Oliveira3

Resumo:
Apesar do “boom” da velocidade de informação com o advento da Internet e do uso dos sites de
relacionamento, a escrita do estudante do ensino médio em diante mostra-se, no mínimo, imprecisa.
Com pouco domínio lexical, o estudante não consegue produzir parágrafos coerentes, coesos e que
demonstrem progressão temática.
Essa dificuldade de produção textual é também demonstrada nas atividades de tomar notas, o
que sugere problemas de manutenção da atenção, já que o vocabulário dos textos não lhes é
familiar. A leitura, então, é prejudicada. Surgem o desinteresse e a busca de alguém que conte,
resumidamente, do que trata o texto. Então nascem os resumos de segunda ou terceira mão,
inclusive com recortes de textos da Internet. Constata-se assim a necessidade de se trabalhar os
clássicos em sala de aula, para capacitar esses discentes para a expressão escrita.
A produtividade do clássico (discutível para alguns) vem sendo testada em pesquisa com contos de
Eça de Queirós. Confirmada a aceitação deste córpus (a ironia de Eça cativou os estudantes), parte-
se para o levantamento do vocabulário que constrói a ironia nos contos. Trabalham-se os
conteúdos: palavras transparentes e opacas, semas componenciais, campos semânticos e
léxicos, expressividade e impressividade, adequação lexical. Com isso, tentamos produzir uma teoria da
iconicidade lexical, que busca descrever os componentes do signo que orientam a opção por uma
forma em detrimento de outra. Por fim, analisam-se semântica e estilisticamente os itens léxicos
eleitos como produtores da ironia no córpus e propõe-se aos discentes a produção de textos com o
emprego imediato dos itens léxicos estudados.
Palavras-chave: Domínio do Léxico; Leitura do Clássico; Iconicidade e Adequação.

Abstract
Although there was a huge increase to the speed of information exchange, due to the rise of
internet and social-networking websites, the handwriting skills of students from high school on are,
at least, inaccurate. With little lexical domain, the students cannot produce coherent paragraphs,
without thematic progression.
This difficulty in text production is also observed in the process of taking notes, indicating attention
problems, once the vocabulary of the texts is not familiar to them. Reading, thus, is affected. They
are no longer interested in Reading these texts, and search for someone to give a summarized
explanation on the subject, and finally, poor summaries are produced, including quotations from
internet texts. It is therefore observed the need of having the classical texts given in classrooms, in
order to improve the handwriting skills of such students.
The classical texts productivity (doubtful for some) has been tested in researches on stories by Eça
de Queirós. Having this córpus accepted (Eça’s irony captured students’ attention) the next step is

2
Procientista e Bolsista PQ2 – CNPQ. Doutora em Letras Vernáculas (UFRJ), Pós-doutora em Comunicação &
Semiótica (PUCSP) e Linguística (UFC). Professor Associado, Líder do Grupo de Pesquisa Semiótica, Leitura e
Produção de Textos – SELEPROT/UERJ. http://www.darciliasimoes.pro.br e http://darciliasimoes.blogspot.com/
3
Doutoranda de Língua Portuguesa (ILE-UERJ), Membro do SELEPROT/UERJ, Diretora do Programa Redação
Corrigida www.redacaocorrigida.com.br/

o
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the assessment of the vocabulary considered as source for this irony. The following subjects are
analyzed: transparent and dimmer words, minimal units of semantic signification, semantic and lexical
fields, expression and impression, lexical adequacy. It aims at elaborating a lexical iconicity theory, which could
describe the components of the linguistic sign that guide the option for one instead of
another. Finally, the semantic is analyzed, as well as, in a stylistic basis the lexical items considered
to create the córpus irony, suggesting to the students the immediate employment of the lexical
items analyzed in the production of texts.
Keywords: lexical domain; classical texts reading; iconicity and adequacy

Preliminares.
A transformação tecnológica opera sobre o mundo. Segundo Castells (1999), essa
expansão é exponencial em decorrência de sua interface entre campos tecnológicos
pela mediação de uma linguagem digital comum geradora da informação. Esta, por
sua vez, é armazenada, recuperada, processada e transmitida em alta velocidade e em
larga escala. Assim, é possível afirmar que interagimos em um mundo que se tornou
digital. Essa evolução/revolução da tecnologia da informação é objeto de interesse
de diversos autores, dentre os quais destacamos Castells (1999) e Lévy (1999). Estes
abordam as transformações sociais, culturais e econômicas em todos os campos da
atividade humana, por força da propagação e do uso das novas tecnologias de
informação pelos indivíduos.
Para acompanhar tal modificação no cenário da sociedade, o homem precisa ajustar
sua capacidade e suas habilidades de leitura e compreensão. Caso contrário, acabará
sendo engolido por uma enxurrada de dados diante dos quais se sente impotente. O
reflexo dessa impotência pode se traduzir em inércia ou em rebeldia e de uma e
outra reação parece nascer a crise cultural contemporânea que faz surgir uma
geração ansiosa, aflita, disposta ao desentendimento e, por conseguinte, violenta. No
âmbito escolar, vamos focalizar o problema do desinteresse pela leitura, pela escrita,
pela aprendizagem da língua em sua variedade padrão.

Importância da variedade padrão para o acesso à informação


Há um grave equívoco emoldurando as discussões sobre aprendizagem da língua
nacional. Em vez de ser proposta como a língua com que se ganha acesso ao
conteúdo de todas as disciplinas e a tudo o que circula documentalmente na
sociedade, vê-se circular um discurso didático-pedagógico que dispensa (ou mesmo
proíbe) o ensino da variedade padrão da língua portuguesa do/no Brasil, sob a égide
de um movimento contra o preconceito e a discriminação. Ora, não há atitude mais
preconceituosa do que impedir o acesso dos escolares à variedade usada nos
documentos. Desse bloqueio na aprendizagem, resulta a marginalização, seja pela
fala diferenciada e, frequentemente, impediente do atendimento dos sujeitos em
seus direitos de cidadão seja na sub-reptícia classificação/divisão da sociedade em
estratos marcados pela fala diferenciada. Lembrem-se antonomásias como paraíba,
caipira, roceiro, entre outras. Portanto, o domínio da língua padrão deve ser direito
de todos, independentemente de origem geográfica, social, cultural etc.

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Veja-se o que diz Gnerre (1994, p. 6),


[...] "uma variedade linguística ‘vale’ o que ‘valem’ na sociedade os seus
falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da autoridade que eles têm
nas relações econômicas e sociais.” Essa variedade própria dos falantes
das classes dominantes é alçada à posição de modelo de todas as outras,
a chamada variedade padrão.

Quando falamos em linguagem dos documentos, atinamos ao fato de a sociedade


ser legislada, e essa legislação deve estar acessível aos cidadãos. Ademais, pensando-
se na vida cotidiana, quantos atravessam problemas de ordem comercial ou mesmo
jurídica por assinar documentos cujo texto não fora lido ou, se lido, não
compreendido pelo signatário. Daí se impõe a importância da escola em levar ao
conhecimento dos alunos a variedade padrão como meio de acesso às informações
de ordem política, social, econômica, jurídica e toda sorte de gêneros dependentes
diretos do entendimento da língua em sua utilização formal.

Desprestígio dessa variedade na escola


Em boa parte das escolas, no entanto, o que se vê, nas aulas de Língua Portuguesa,
são instruções gramaticais isoladas do contexto social e dos gêneros textuais e pouco
ou nenhum trabalho com textos clássicos com o objetivo de ampliar a aquisição do
vocabulário. Quando o professor leva ao conhecimento do aluno o texto clássico, o
faz com fundamentos literários, ensinando estilos de época e fazendo perguntas
sobre o enredo, as personagens, enfim, teoria literária.
Destacamos aqui, portanto, a necessidade iminente de se adequar o ensino da língua
vernácula, nas escolas de ensinos fundamental e médio, para a realidade do mundo
cibernético atual, sem se afastar do uso clássico da linguagem, a fim de não reduzir o
vocabulário dos discentes a uma mera comunicação digital com seu léxico próprio.
Não estamos dizendo que se deve isolar a escola do mundo tecnológico, mas não
devemos deixar os estudantes com um repertório lexical restrito ao mundo dos
computadores. A melhor forma de ampliar esse repertório é mostrar aos estudantes
que, para cada forma de comunicação, há uma de organização específica dos
elementos linguísticos e de escolhas lexicais. Em cada caso, o enunciador ou leitor
devem estar cônscios do propósito comunicativo e das formas de comunicação,
bem como do uso adequado do vocabulário e das estruturas gramaticais. Esta
proposta de ensino deve ser cuidadosamente avaliada para não haver desvio do que
a escola deve realmente ensinar. Há muitas polêmicas sobre o que se deve ensinar
nas aulas de Língua Portuguesa. Primeiro se deve lembrar que nenhuma atividade
linguística existe fora da produção e interpretação de textos verbais, ademais, saber
que a escola deve capacitar os alunos a produzir e interpretar textos de variados
gêneros. É para isso que se aprende uma língua. Então, faz-se mister que o novo
ensino da língua considere os gêneros textuais, valendo-se das convenções de cada
um para a correta e exata compreensão. A produção de textos e o ensino da redação

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também devem beneficiar-se da classificação dos gêneros, já que o que é virtude em


um dado gênero pode ser defeito em outro. A adequação do vocabulário deve ser
perseguida pelos mestres em suas aulas, a fim de preparar os sujeitos a produzirem
seus textos com as escolhas lexicais adequadas. Para isso, no entanto, é preciso que
haja um bom repertório linguístico, que é condição indispensável para que haja
seleção.
Avaliando-se o modelo atual do ensino da língua aos nativos, pode-se entrever um
dos maiores problemas por que passa a universidade brasileira: o pouco ou nenhum
domínio da norma padrão, associado à precariedade do vocabulário, interferindo
diretamente na aprendizagem, pela dificuldade de compreensão/interpretação dos
textos acadêmicos; consequentemente concorre para uma formação prejudicada.
Quando se trata da faculdade de Letras, a preocupação aumenta, já que estes jovens
universitários vão tornar-se futuros professores de Língua Portuguesa. Vê-se logo
que a falta de leitura e o pouco conhecimento das estruturas linguísticas são o
principal motivo que leva a maioria dos novos docentes em afirmar categóricos que
ensinar a gramática e trabalhar o vocabulário dos textos clássicos está fora de
propósito na escola atual. Equivocadamente, a norma padrão é negligenciada A
partir de uma filiação precipitada e equívoca a teorias do discurso, há quem afirme
que o que importa é a análise do conteúdo do texto. Logo, emerge uma pergunta:
como ensinar a compreender e interpretar sem o apoio do léxico e da gramática?

Do léxico e do conhecimento de mundo


Nessa ótica, vimos considerar a aquisição do vocabulário clássico como mais uma
forma de ampliar a capacidade redatora e leitora de nossos discentes. Trazemos
palavras de Tania Câmara, para reforçar o que pensamos sobre léxico.
Numa perspectiva cognitivo-representativa, o léxico constitui a
codificação da realidade extralinguística interiorizada de uma
comunidade linguística. Quanto maior for o domínio lexical do usuário,
maior será sua capacidade de interação com o outro. (In Revista
Philologus, Ano 16, N° 46. jan./abr.2010)

Somando a essa ideia a ótica sistêmico-funcional, infere-se que as metafunções


ideacional e interpessoal atingirão graus de maior eficiência tanto maior seja o
repertório do falante. A função textual dispensa comentários, uma vez que é
obviamente construída com palavras. Veja-se que repertório pode ser definido como
o conjunto de vocábulos de uma língua ou como o domínio vocabular de um
sujeito. Em um e outro caso, verifica-se a relevância da competência lexical como
sendo base para uma expressão eficiente.
Assim sendo, cumpre que a prática pedagógica de uma língua promova o exercício
da leitura como fonte de aquisição de itens léxicos. Ainda que a leitura dos textos
clássicos não mais seja o foco das aulas de língua portuguesa no Brasil, cumpre

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Caderno Seminal

lembrar que tais textos são verdadeiro manancial de informações lexicais, sem
contar com o volume de dados enciclopédicos ali existentes. Se hoje se constata
certa indigência verbal nos alunos do Ensino Médio e da graduação, pode-se atribuir
esse problema à falta de leitura em geral e da literatura clássica, em especial.
Dizer-se que o estudante não gosta de ler por força de um modelo de sociedade que
não prioriza a leitura, não mais é suficiente, pois a sociedade digital vem trazer mil e
um recursos que, de alguma forma, facilitam o acesso ao texto literário e, se
provocado, o estudante entrará em contato com essa literatura e, se bem orientado,
descobrirá nesse material um universo fascinante, como comprovam os relatórios
dos acadêmicos4 de Iniciação Científica que participam do projeto em questão.
Segundo eles, aproximar-se da obra de Eça de Queirós e realizar as leituras
correlatas tem resultado imediato na melhoria de seu desempenho nas avaliações das
disciplinas em curso. Logo, o jovem estudante gostará de ler o clássico quando este
lhe for apresentado de modo adequado e oportuno.
Um dos grandes ganhos com a leitura dos contos-córpus de nossa pesquisa é o
conhecimento de outra época, outros usos e costumes e tudo isso materializado em
itens léxicos novos para os leitores. Portanto, cada página lida se mostra como uma
aventura, e o mundo do leitor vai-se alargando na proporção em que a leitura
avança.

O vocabulário e o desempenho na leitura


Partimos da crença de que o domínio da língua é
proporcional ao número de itens lexicais apreendidos pelo
falante, de modo que lhe seja possível reutilizá-los em
enunciados eficientes. Estes seriam produções textuais
mínimas capazes de expressar ideias e que possam ser
compreendidos por outrem. (SIMÕES, 2009)

Iniciamos a pesquisa do léxico discente em 2002, em turma de graduação em Letras


(UERJ). Pudemos concluir que as dificuldades de leitura e produção de textos são
consequência da pouca leitura ou do convívio com textos curtos e de pouca (ou
nenhuma) complexidade vocabular.
Após o exercício continuado da produção de paráfrases de textos técnicos (eleitos
não apenas pela adequação temática às disciplinas em curso, mas principalmente
pela qualidade do texto em si), percebemos sensível melhoria no desempenho
discente. Então decidimos avançar na investigação, então, a partir do trabalho com
textos clássicos.
Como nossa pesquisa tem-se baseado em preceitos semióticos, vimos perseguindo a
iconicidade lexical, no intuito de demonstrar-lhe a existência e a validade como

4
Duas bolsistas e um voluntário.

o
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estratégia de leitura e compreensão de textos, ao mesmo tempo que


instrumentalizaria o falante a produzir textos compreensíveis.
Trazemos um excerto de “Peircean semiotics in the study of iconicity in language”
para dar início às considerações sobre iconicidade
A comunicação bem sucedida de um falante para um ouvinte envolve três níveis de
produção de ícones. O primeiro e segundo níveis estão nas mentes dos falantes e
ouvintes, onde “imagens familiares” são evocadas. O terceiro se deve ao paralelismo
entre essas duas imagens, o que faz das imagens do ouvinte um ícone das imagens
do falante. Note-se, contudo, que essa iconicidade no paralelismo entre a
interpretação sígnica do falante e do ouvinte não é de modo algum perfeita. Ao
contrário, o falante só pode supor ou talvez ter esperança de que o ouvinte evoque
as mesmas imagens, mas, na realidade, há sempre diferenças que permanecem e dão
origem à dialógica “sequência de interpretações sucessivas” ad infinitum no processo
dialógico de semiose ilimitada. (NÖTH, 1999, p. 618)5
Observe-se que o estudioso inicia mostrando a realização da iconicidade em nível
mental, portanto abstrato. Falante e ouvinte (ou leitor) captam o enunciado e
imagens familiares são chamadas à consciência para propiciar a construção de
sentido. Entretanto, não é possível pressupor uma iconicidade perfeita entre as
imagens evocadas pelos interactantes. Seu conhecimento de mundo e a respectiva
representação verbal são distintos, logo, o produto da interação será sempre, no
máximo, assemelhado, jamais idêntico. Porém, veja-se que o pesquisador fala de
“comunicação bem sucedida”, o que implica a compreensão da mensagem recebida
— construção de sentido válido. Assim sendo, é preciso de fato haver um equilíbrio
entre os repertórios de falante e ouvinte (ou leitor) para que se torne possível a
compreensão do conteúdo semioticamente representado em um dado texto (seja ele
verbal ou não).

A produtividade da leitura do texto clássico


A melhor hipótese para a escolha do texto clássico como forma de melhorar o
repertório lexical dos estudantes partiu da pressuposição de que o texto literário é a
leitura exemplar, privilegiada da sociedade de prestígio. Uma consequência
importante dessa hipótese está na margem que ela abre para discussões em nível
acadêmico sobre a força da literatura como criadora de padrões de legibilidade, com
poder de absorver e moldar o perfil cultural de uma sociedade. A literatura
documenta a língua vernácula, e os textos clássicos não podem desaparecer. Ao
contrário, devem ser relidos, ressuscitados em sentidos possíveis na modernidade.
Eles são a obra de aproximação entre o mundo real e o mundo ficcional.
Gostaríamos de ressaltar que o trabalho com as obras clássicas pode suscitar novas

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Tradução livre, de nossa inteira responsabilidade.

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compreensões capazes de instrumentalizar os jovens leitores com novas


possibilidades linguístico-semânticas, aumentando-lhe a produtividade de leitura e
de produção textual. Os sentidos inscritos nos textos clássicos, quando ressuscitados
de modo adequado, não abafam nem silenciam a modernidade, antes a preenchem
de novas possibilidades.
Segundo Godêncio6 (2011),
...o enfoque dado estará direcionado ao trabalho com os textos clássicos, pois pelo
tipo de discurso que esses textos abarcam, o literário, é possível construir uma
proposta de leitura que não valorize tanto os fragmentos e adaptações e traga a tona
os textos originais.
O trabalho de Godêncio é mais uma iniciativa de promoção da volta do texto
clássico (cf. CALVINO, 1993) à sala de aula.
Por que escolhemos iniciar com Eça de Queirós?
O melhor Eça é o da palavra, pois o escritor, como observou Óscar
Lopes (1999: 119), “pertence ao número de grandes artistas que mais
modelaram a língua literária portuguesa, [...]”. Interrogado, no centenário
da morte do escritor, sobre o que faz a actualidade de Eça de Queirós,
Carlos Reis2 escreve: “A questão é, naturalmente, de linguagem, numa
acepção muito ampla, que inclui, é claro, a vivacidade da língua literária
propriamente dita, […].”

Campos semânticos e léxicos, expressividade e impressividade:


adequação lexical.
No âmbito linguístico, as unidades lexicais tomadas como objeto de uma
investigação relativa à forma e ao conteúdo fazem emergir valores de natureza
semiótica e semântica. Esta vai cuidar das significações construídas e correntes no
universo de um sistema linguístico; aquela vai tratar do processo de produção de
sentido a partir da análise das funções-valores que os signos eleitos pelo produtor do
texto adquirem na trama textual. A função lexicológica-semiótica faz das palavras
(signos atualizados em contextos frasais) signos evocadores de imagens, impregna-as
de conceitos (emergentes da cultura em que se inserem) por meio dos quais o
redator tenta estimular a imaginação do leitor. A mente interpretadora se tornará
tanto mais capaz de produzir imagens sob o estímulo do texto, quanto mais icônicos
ou indiciais sejam os signos com que seja tecido o texto, pois, a semiose é um
processo de produção de significados. O sentido é a resultante da interpretação de
um significado emergente da estrutura textual e contextual de que participa, e o
leitor (ou intérprete) procura desvelar um sentido que estabeleça a comunicação
entre ele (leitor, coautor) e o autor primeiro do texto.

6
Doutoranda em Literatura pela Universidade de São Paulo (USP); Professora de Literatura da Faculdade Eça de Queirós (FACEQ).

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Assim sendo, o que se quer é dar instrumentos com que o enunciador tenha mais
habilidade na produção de seu texto, e o leitor seja competente para enfrentar a
trama textual de outrem, buscando-lhe as pistas necessárias para a produção do
sentido.
A iconicidade é uma categoria fundada na plasticidade, a qual consiste na faculdade
de um signo poder re(a)presentar “figurativa ou pictoricamente” o objeto tomado
como referente. Assim sendo, a iconicidade tem uma origem na similaridade, já que
funciona como signo de algo que ali não está, mas o representa por suas qualidades
formais, como: cor, posição, localização, forma, proporção etc.
Ainda que pareça estranho falar de iconicidade em signos (verbais) — convencionais
por origem, na qual a arbitrariedade é condição de existência — há estudos da
iconicidade verbal não só em Nöth (1999), mas também em Givón (1995), embora
neste a iconicidade tenha outras características. Assim sendo, não há originalidade
total na proposta de um estudo da iconicidade no léxico. Contudo, a contribuição
pretendida se projeta na intenção de, demonstrando o potencial icônico (e o indicial)
de signos em dado texto, tornar possível estimular o estudante a ampliar sua leitura,
por conseguinte, seu repertório, do que resultaria aquisição de proficiência na língua
objeto, no caso, a língua portuguesa.
Pretende-se, então, avançar na construção teórica acerca da iconicidade lexical,
buscando na lexicologia argumentos técnico-científicos que ajudem a responder as
seguintes questões:
1 O córpus7 eleito (contos de Eça de Queirós) oferece amostra significativa de
formas lexicais icônicas?
2 Signos indiciais levantados no córpus podem ser usados como material icônico?
3 Os signos tidos como icônicos e indiciais podem auxiliar o recorte isotópico,
orientando assim a interpretação do texto?
4 A atenção para o léxico e a respectiva força icônica pode servir de estímulo à
leitura e à ampliação de repertório do estudante?

O funcionalismo defende o princípio da iconicidade, que seria a existência de


alguma relação entre expressão e conteúdo, partindo da premissa de que a língua
reflete, de alguma forma, a estrutura da experiência. Esse princípio pode ser
combinado com a iconicidade peirciana (fundada na plasticidade), pois uma e outra
buscam explicar relações entre o que se pensa e o como se exprime o pensado. O
que se quer é mostrar que os signos verbais representam modos de pensar o mundo
e que seu potencial icônico se reflete não apenas nas relações sintáticas, mas antes
na própria designação mesma dos fenômenos (v. phaneron em Peirce), uma vez que

7
Optamos pelo aportuguesamento do vocábulo córpus (lat.), uma vez que apresenta estrutura silábica compatível com a
portuguesa.

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a ilusão da objetividade (clareza, transparência) é uma meta perseguida por qualquer


falante.
Quanto ao enfoque sistêmico-funcional, focalizamos nessa análise a função textual,
que é a materialização do discurso, portanto, a corporificação da mensagem. A
Função textual − ou ‘modo’ do discurso − trata da organização do texto,
observando-lhe o eixo temático e seus mecanismos de coesão (HALLIDAY &
MATTHIESSEN, 2004).
O tema e a construção do sentido nos enunciados são analisados por suas relações
microestruturais, entre enunciado e situação, a partir do que se codifica a mensagem
do discurso (MOURA NEVES, 1997). No nível do texto, processos, relações e
argumentos devem ter uma organização dirigida à coesão, tecendo assim a teia do
texto (CUNHA e SOUZA, 2007). Essa teia se forma, segundo Halliday & Hasan
(1989), por uma relação semântica na qual a interpretação de um item depende da
compreensão de um outro que integra o mesmo texto. Nessa ótica, entende-se a
seleção lexical como suporte para a coesão textual.
Elegemos neste estudo a ironia como tema para observação do léxico.

A ironia no conto de Eça


Seguindo Hutcheon (2000), vemos a ironia como um processo semanticamente
complexo, cuja “aresta avaliadora” possibilita relacionar, diferenciar, combinar
significados ditos e não ditos. A ironia envolve ainda as particularidades temporais,
espaciais, sociais e culturais que a envolvem.
A partir das escolhas lexicais, Eça de Queirós atinge em seu conto a “política
transideológica da ironia” (cf. HUTCHEON, 2000, p. 27); ou seja, ele construiu
uma ironia altamente elaborada, foi além das fronteiras de um simples tropo retórico
ou de um modo de vida (ironia romântica); tratou-a como estratégia discursiva que
opera no nível da iconicidade textual, sem descurar, portanto, das dimensões sociais
e interativas da ironia.
Em Ironia e humor na literatura (DUARTE, 2006) afirma que a ironia de Eça se
constroi nos moldes retóricos, uma vez que contém mensagens duplas que bifurcam
a interpretação. Em decorrência, suas narrativas permitem que se leia personagens
como leitor ingênuo, enamorado romântico, crédulo e desatento etc. Estes são nada
mais que presas de armadilhas irônicas que encobrem outros sentidos (mordazes,
perversos etc.) subjacentes ao posto.
SIMÕES e ASSIS (2012) afirmam que:
Notamos que a iconicidade do léxico também permite ao intérprete
perceber que a destreza ímpar da ironia eciana, envolvida pelo “manto
diáfano da fantasia” (DUARTE, 2006), vale-se de recursos textuais sutis
para lançar farpas ao seu tempo. As imagens icônicas presentes na
arquitetura textual conduzem o intérprete ao pensamento conservador e

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dogmático que determina a soberania do rei sobre seus súditos, do nobre


sobre o plebeu. Da análise do plano linguístico do conto, notamos que o
contexto histórico ali retratado traz à tona as crises e fissuras da ordem
colonialista no final do Século XIX.

Logo, professor e aluno não podem perder a oportunidade de ler e conhecer não só
a língua, mas um retrato mordaz sobre personagens e fatos de um outro tempo .

A produtividade da leitura dos clássicos no ensino da redação


Vimos trabalhando, então, a produtividade da leitura do clássico, como forma de
enriquecimento do léxico e, portanto, dos componentes dos signos linguísticos que
orientam a opção de uma forma em detrimento da outra. Para testar nossa hipótese,
elegemos uma turma de 3º ano do Ensino Médio, em uma escola de Petrópolis,
Itaipava, Dinâmico Centro de Ensino. Separamos, dos 22 alunos, cinquenta por
cento como turma experimental e os outros cinquenta por cento como turma de
controle. Chamamos aqui de turma A e turma B, respectivamente, a fim de
identificarmos os resultados obtidos com a experiência.
Durante seis meses de trabalho contínuo, vimos preparando a turma A com
estratégias de leitura dos clássicos de Eça de Queirós, criando um ambiente propício
ao entendimento dos contos. Usamos várias técnicas de leitura e interpretação,
desde a leitura orientada até a pesquisa em dicionários e enciclopédias. Entendemos
que as estratégias mais bem sucedidas foram as que privilegiavam a interação do
grupo com a professora que realizou a experiência. Sabemos que grandes estudiosos
da Linguística contemporânea concebem a interação como um fenômeno
sociocultural e discursivo, representado pela relação entre os sujeitos envolvidos na
comunicação: o destinador-professor que, por meio da linguagem, exerce um fazer
persuasivo e o destinatário-aluno, um fazer interpretativo (Barros, 2002; Bronckart,
1999; Van Dijk, 1977). Primeiro, partimos do pressuposto de que a interação na sala
de aula constitui elemento primordial no processo de ensino e aprendizagem e pode
determinar a importância do enriquecimento do léxico e, portanto, da linguagem na
construção do conhecimento linguístico. A interação melhora a motivação do aluno
e atitude diante do processo de compreensão do texto. É na sala de aula que
professores e alunos constroem o sentido de mundo mediados pela linguagem.
Assim, buscamos trabalhar os clássicos de Queirós, sempre fazendo o aluno
interagir e nunca deixando a leitura silenciosa ser aborrecedora e tediosa.
Dito isso, entendemos que houve o primeiro esclarecimento necessário para que o
leitor compreenda a eficácia do trabalho desenvolvido. Sem essa premissa, talvez
não alcançássemos sucesso no resultado. Essa forma de agir levou em conta a
utilização da linguagem como forma estratégica, visando a produzir sentidos e a
propiciar o envolvimento do estudante em seu processo de aprendizagem. O que
objetivamos analisar e provar é o quanto a interação entre docente e discentes e
algumas ações linguísticas podem gerar, no discurso do aprendiz, uma evolução

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acima da média alcançada apenas com aulas tradicionais de Redação, em que o aluno
se sente mero expectador do ato de produção textual. Os aprendizes devem ser
encorajados a participar o máximo possível de seu próprio conhecimento e
experiência e o professor deve estimular o pensamento, em vez de se limitar a dar
aulas teóricas, com “dicas” de “como escrever um bom texto” ou, ainda pior, tentar
imprimir um esboço semipronto de redação na mente do aluno, fazendo-o mero
repetidor de frases prontas e modelos ultrapassados, sem nenhuma originalidade.
Isso é o que se tem visto nas aulas de Redação, mormente em cursinhos
preparatórios para concurso. Esse modelo de aula além de não ajudar o aluno a se
tornar um redator competente, tira dele a natural criatividade, própria dos jovens
nessa idade. O que buscamos incessantemente são meios mais eficazes do ensino de
Redação, que propiciem os estudantes a adquirir competência redacional com a
qualidade exigida nos concursos vestibulares e, principalmente, que se tornem
universitários com aptidão para produzir textos acadêmicos no padrão que se espera
de um discente de curso superior.
Ao apresentar nossas justificativas para um trabalho mais específico com
vocabulário, passamos a descrever o modo como cada uma das turmas, A e B,
reagiram às aulas de Redação e, consequentemente, o modo como seus textos
evoluíram após as intervenções na correção.
Como, na turma A, utilizamos ricas estratégias de leitura e estudo do léxico em Eça
de Queirós, os resultados das intervenções e correções dos textos discentes foram
ainda mais satisfatórios que na turma B, cujo trabalho não passou de aulas
tradicionais de Redação, com ensino de técnicas redacionais e de correções e
intervenções tradicionalmente rígidas, sem muitas explicações dos desvios
cometidos.
Na turma A, a professora incentivou os estudantes a participarem ativamente do
processo de leitura e compreensão dos textos escolhidos, com estudo minucioso do
vocabulário clássico, a fim de aumentar o repertório linguístico dos alunos e,
portanto, de sua capacidade redatora. Depois do estudo do texto e de seus signos
icônicos e indiciais, mapeando as possibilidades de entendimento pelo léxico, a
professora propunha um tema de redação. Os alunos, então, punham-se a escrever e
entregavam seus textos à professora para correção.
Na turma B, a professora ensinava estratégias de escrita, regras gramaticais,
exercícios de argumentação e técnicas redacionais, sem nenhum apoio de texto
motivador. Depois, da mesma forma, passava um tema para que os alunos
produzissem suas redações e as recolhia para correção.
Na devolutiva, tanto na turma A quanto na B, a professora propunha um diálogo
com os alunos, visando à reflexão sobre os desvios gramaticais e sobre as escolhas
lexicais. Logo, todos os participantes tiveram a mesma chance de interagir com a
professora depois da correção, reescrevendo seus textos e reapresentando para nova

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avaliação de sua produção escrita. Foi nesse segundo momento que percebemos que
as intervenções da professora surtiram maior efeito na turma A que na B. A
consciência da permuta de uma palavra ou expressão por outra, foi mais consciente
na turma A. Alunos da turma B trocavam suas palavras em uso inadequado ao
contexto por outras de igual inadequação. A maneira como foram conduzidas as
atividades de reescrita e revisão informou-nos o quanto foram levados em
consideração ou não o estilo de escrita. A produção dos textos da turma A foi
retomada como um momento de reforço do vocabulário adquirido nas aulas de
estudo dos textos clássicos.
É importante destacar que todos os textos apresentaram uma determinada
orientação de conteúdo comunicativo e, consequentemente, uma seleção lexical
convertida em vocabulário do falante, que, na turma A, foi enviesada pelo trabalho
realizado com os textos. Entretanto, é importante considerar o léxico comum,
entendendo por esse elemento as unidades lexemáticas empregadas em coincidência
no vocabulário de todos os alunos dos dois grupos, já que levamos em conta o fator
sociolinguístico da região serrana de Petrópolis. São, em geral, jovens advindos de
famílias escolarizadas, de classe média alta e com bom conhecimento de mundo, por
conta das viagens e dos lugares onde frequentam. Adquire aqui notável importância
o fato de que a seleção lexical muitas vezes é imposta pela necessidade de o aluno
desenvolver uma redação “artificial” instaurada pelo momento enunciativo de sala
de aula.
Nos textos selecionados para este trabalho, relacionamos o vocabulário adquirido
socialmente ao repertório que foi desenvolvido em sala de aula. Cabe destacar que a
observação e a análise do desenvolvimento dos textos revela que, em sua
construção, além de fazer uso de palavras inadequadas ao contexto, os estudantes
do grupo B fazem uso de vocabulário que não partem do seu conhecimento de
mundo e, portanto, acabam apresentando “disfluência” na seleção lexical. Com certa
frequência, fazem uso de termo inadequado, inviabilizando a compreensão de seus
textos e o processo interacional.
Sabemos que o conhecimento lexical constitui-se por meio de informações
regulares, norteadas por regras morfológicas e pela informação idiossincrática que o
homem adquire ao longo de sua vida e que depende de características como idade,
sexo, nível social e cultural ( Correia e Lemos, 2005). Dessa forma, os enunciadores,
aqui tomados por alunos, fazem suas escolhas de acordo com essas informações
adquiridas, relativizando-as de acordo com o gênero textual, o assunto e a situação
de produção textual. Todo esse conjunto representa seu estilo individual. Em seu
processo de criação, eles optam por um ou outro signo linguístico, pautados no
conjunto de possibilidades que têm, para que a comunicação não seja prejudicada
em detrimento da criatividade. No grupo A, as construções léxicas são próprias do
grau de informatividade que se estabeleceu, na medida em que os alunos receberam
informações semânticas mais ricas que os do grupo B. O que procuramos destacar,

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nesse momento, é a configuração de seus textos, estabelecidas as diferenças de


tratamento entre os grupos. A tabela a seguir resume as ocorrências de escolhas
lexicais equivocadas e suas respectivas substituições após estudo das devolutivas e as
respectivas reescrituras, confirmando a teoria e a proposta aqui apresentadas. As
ocorrências foram divididas de acordo com os grupos A e B.
GRUPO A GRUPO B

TEXTO ORIGINAL DO NOVAS


NOVAS ESCOLHAS NA
ALUNO COM TEXTO ORIGINAL DO ESCOLHAS NA
REESCRITURA
DESTAQUE DA ALUNO COM DESTAQUE REESCRITURA
DEPOIS DA
ESCOLHA LEXICAL DA ESCOLHA LEXICAL DEPOIS DA
DEVOLUTIVA
DISCENTE DISCENTE DEVOLUTIVA

"e não ficar "era bondade da princesa,


DEPENDENTE daqueles MESMO PORQUE os
À MERCÊ JÁ QUE
que tentam manipular escravos não passaram a
informações" gozar de liberdade"

"mesmo não sabendo


"o bullying é difícil de ser
exatamente como eram
INTERVENIÊNCIAS DIAGNOSTICADO pelos IDENTIFICADO
as INTERVENÇÕES do
professores"
Governo"

"buscando esclarecer o
"o bullying é ALGO UMA AÇÃO
que teria PROVOCADO DESENCADEADO
SÉRIO" PERIGOSA
a Lei Áurea"

"podemos DAR a cada


"os bullies costumam
um a responsabilidade
INCUMBIR LEVAR como TER
de praticar e conceder a
característica marcante"
liberdade de expressão"

"a escola que se tornaria


"o problema COLOCADO
um local de UIÃO entre HARMONIA APRESENTADO
EM DISCUSSÃO"
os diferentes"

"os alunos são afetados "mas ABRANGERIA uma


DISTÚRBIOS
por DOENÇAS real mudança de OBJETIVARIA
COMPORTAMENTAIS
PSIQUIÁTRICAS" comportamento"

"o Brasil teria uma SUSCETÍVEL À "devido a tudo que foi


sociedade menos PRÁTICA DO COLOCADO EM APRESENTADO
PRECONCEITUOSA" BULLYING DISCUSSÃO"

"a pessoa pode ATÉ ter "o bullying PRECISA da


VIR A MERECE A
problemas" atuação do Governo"

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"ficou tão abalada com a


"os pais POSSUEM um
brincadeira que FEZ um COMETEU TÊM
papel fundamental"
crime"

"o sistema de ensino à


"serviriam de exemplo
distância vem
PERMITINDO / para aqueles que se
POSSIBILITANDO que o POSICIONASSEM
MELHORE COLOCASSEM contra a
aluno AUMENTE sua
violência moral"
qualificação profissional"

"É preciso que haja uma "e até mesmo com


HARMONIA entre pais e INTERAÇÃO grandes problemas COM PSICOLÓGICOS
professores" SUA MENTALIDADE"

"com o projeto de
"pois o errôneo uso da
COLOCAR psicólogo na CONTAR COM LIBERDADE
LIVRE CENSURA"
escola"

"ATRIBUINDO à escola "os pais devem estar


a responsabilidade e da DELEGANDO atentos aos sinais que os APRESENTAM
educação integral" filhos DÃO"

Após o estudo de correções – devolutivas e reescrituras-, procedemos a


um minucioso levantamento do vocabulário adequadamente empregado
pelos dois grupos em assuntos idênticos e chegamos à conclusão de que
realmente há uma notável diferença de vocabulário nos textos de cada
grupo. Notou-se também que houve menos desvios gramaticais no
grupo A do que no B. Isso demonstra que além de melhorar o
vocabulário, os alunos leitores de textos literários aprendem melhor as
regras gramaticais por exemplaridade8. Com esse procedimento,
percebemos que os alunos foram construindo um saber linguístico
evolutivo, conforme liam e estudavam o texto literário, o que possibilitou
a ampliação de escolhas além de ir reduzindo as restrições9. O ensino da
gramática deve pautar-se também no estudo de textos de autores
consagrados, observando usos e desvios, respeitando a evolução e as
variantes da língua. Integrando gramática normativa, variantes
linguísticas e vocabulário, o professor terá um acervo em favor de uma
aprendizagem mais concreta e objetiva.

Também compactua deste modelo didático o professor Bechara (2000, p.16):

8
Conceito do Prof. Bechara para o registro culto. Ele aponta a exemplaridade como a modalidade eleita pela
tradição literária, pelas pessoas escolarizadas e trabalhada nas escolas, nas academias e preservada por agências de
cultura. (2000, p. 15).
9
A dicotomia entre restrições e escolhas foi invocada a partir do suporte teórico do grupo da “Gramática do
Português Falado” (GPF), sob coordenação da Professora Maria Helena de Moura Neves. A equipe de Sintaxe I da
GPF tem definido como seu objeto mais amplo de estudo a competência comunicativa dos falantes da língua e está
revelada em um produto disponível para análise – o córpus do NURC (Norma Urbana Culta).

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A escola não pode ─ isso todo mundo já sabe ─ ficar no dogmatismo de


uma gramática intransigente nem tampouco no populismo onde tudo se
aceita. É preciso que haja uma integração dessas duas atitudes em
benefício não só da educação linguística do aluno, mas também da sua
adequada preparação para ocasiões em que ele precise bater à porta da
sociedade.

Portanto, este trabalho deve servir como motivação para professores que pretendam
conduzir seus alunos pelos caminhos das letras, para que comecem a elaborar seus
discursos com maior adequação a cada situação comunicativa. E saber, também, que
o texto é uma situação real de demonstração dos saberes idiomático, elocutivo e
expressivo. Ampliar o universo de escolhas dos sujeitos é o primeiro passo para a
apreensão da língua no seu registro padrão. Os professores devem compreender que
a exemplaridade é também um componente da educação linguística do discente
dentro da sua trajetória na escola.
Dentro desse pensamento, Neves (2002, p. 231) diz que
Não existe, simplesmente, uma escolha entre norma culta padrão e
registro (popular) do aluno. De um lado, não há dúvida de que é um
papel da escola prover para seus alunos a formação necessária para que
eles sejam usuários da língua no padrão necessário à ocupação de
posições minimamente situadas na escala social. De outro, não há dúvida
de que uma enorme parte da clientela de ensino fundamental e médio
entra na escola com uma apropriação apenas de padrões linguísticos
extremamente distantes dos que a sociedade aceita e respeita.

Torna-se, pois, necessário e urgente que os textos literários sejam lidos e trabalhados
na escola para que sirvam de roteiro aos estudantes e para que não se dê sequência à
falha cultural de transpor a língua falada, com seus desvios e giros de linguagem
popular, para a língua escrita e para que tenham a seu dispor um vasto repertório
lexical e saibam, a seu tempo, usá-lo nas diferentes situações comunicativas.
Chamamos Simões e Oliveira para concluir o trabalho de pesquisa:
Partindo dos pressupostos que o domínio da língua é o esqueleto
sistêmico para a estruturação textual e que o repertório amplo é condição
para disponibilização de itens léxicos suficientes à expressão das ideias de
forma icônica, entendemos que a representação do pensamento será tão
mais icônica quanto mais proficiente for o enunciador.

Conclusão
A transformação da escola em um lócus em que os textos literários também sejam
objeto de estudo implica que o professor opte pelos textos originais em lugar das
adaptações e fragmentos. Isso fará com que o docente se torne de fato um leitor e
possa “contagiar” os estudantes com o prazer da leitura. Os clássicos deixam
conteúdos importantes na bagagem cultural e afetiva do leitor.

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Quando desde as primeiras leituras, opera-se com textos originais, o docente deve
ter em conta que a compreensão tem relação direta com a maturidade do leitor, por
isso é preciso criar um ambiente propício ao entendimento da obra, realizando um
trabalho especial com o vocabulário do texto, para preparar a base aperceptiva e
facilitar a leitura. Para tanto, tragam-se excertos, preferencialmente de passagens
humorísticas, para discussão de palavras e expressões que são alheias à experiência
do leitor. Segundo GALDOLFI (2005, p. 34), “O professor não deve se privar nem
privar seus alunos deste prazer: o prazer do texto como uma totalidade, o prazer do
ler um texto e ler, com ele, um mundo”.
Dessa forma, crê-se promover a oportunidade de um encontro atraente entre texto
e leitor, ao mesmo tempo que poderá apagar a imagem de que o texto clássico seja
uma leitura enfadonha.
Finalizando, cumpre ressaltar que o prazer da leitura de um texto como os clássicos
decorre de uma troca interativa, um verdadeiro jogo. Para MACHADO (2002, p.
22), “Quando lemos um clássico, ele também nos lê, vai-nos revelando nosso
próprio sentido, o significado do que vivemos.” Assim sendo, a leitura do clássico
possibilita a reflexão não apenas sobre a língua (a forma), mas principalmente sobre
o conteúdo ético, filosófico, sócio-histórico presente nessas obras.

Referências
BARROS, D. L. P. Interação em anúncios publicitários. In: PREDI, D. (org.). Interação na
fala e na escrita. São Paulo: Humanistas/FFLCH/USP, p. 17-44, 2002.
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O GÊNERO “BLOG” E A PRODUÇÃO ESCRITA NA INTERNET:


POSSIBILIDADES PARA A AULA DE LÍNGUA
ESTRANGEIRA/PORTUGUÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA10
THE GENDER "BLOG" AND PRODUCTION WRITTEN ON THE INTERNET: POSSIBILITIES
FOR FOREIGN LANGUAGE LESSON / PORTUGUESE AS A FOREIGN LANGUAGE
11 12
Gabriel Nascimento dos Santos & Maria D’Ajuda Alomba Ribeiro

Resumo
Pretende-se analisar as possibilidades de produção escrita na Internet através do gênero “blog” com
alunos de Língua Estrangeira/Português como Língua Estrangeira (doravante LE/PLE). O
presente trabalho traz resultados e apontamentos analíticos de um projeto de Iniciação Científica
concluído e de outro em andamento que se propõem investigar as ferramentas tecnológicas que
permitem o aprendizado de PLE. Para tanto, tenciona-se analisar a produção escrita dos estudantes
de PLE participantes da pesquisa supracitada, tendo como fundamentação teórica os pressupostos
da Sociolinguística e Linguística Aplicada, além de outras áreas afins. As análises deste trabalho
serão feitas através da coleta de dados dos textos em desenvolvimento pelos estudantes
pesquisados, tendo em vista o aprimoramento do aprendizado de Português como Língua
Estrangeira. Nesse sentido, pode-se pensar o aluno de PLE a partir das pesquisas recentes em
Linguística Aplicada com ferramentas tecnológicas e múltiplas linguagens. A produção escrita dos
estudantes de PLE permite descrições linguísticas dos fenômenos e recursos de escrita, desde a
linguagem escrita para o gênero textual “blog” até às comparações dos usos semânticos, sintáticos,
morfológicos, entre outros, e da escolha que levou o estudante a optar por um uso em detrimento
de outros. No caso da pesquisa desenvolvida o estudante é estimulado a escrever em registro
formal, devendo o professor de LE/PLE atentar-se para tais usos e tentar aperfeiçoá-los através de
uma postagem-revisão e levando o estudante a aprimorar usos formais da linguagem no Português
Brasileiro.
Palavras-chave: Linguística Textual; LE/PLE; aprendizado.

Abstract
This paper aims at analyzing the possibilities of the written production on the Internet through the
genre blog with students of Foreign Language (hence FL) and Portuguese as a Foreign Language
(PFL). This current study brings results and analysis of a project of Scholar Initiation finished and
another ongoing which aimed at investigating technologic tools which enable the learning of

10
Trabalho resultante dos Projetos de Iniciação Científica: “Multiculturalismo na rede: os blogs e redes sociais como mecanismos
de comunicação intercultural e a interface Português como Língua Estrangeira” e “O Ensino de Português como Língua Estrangeira
(PLE) e as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs): a busca de subsídios tecnológicos e a sua importância enquanto
difusores da cultura brasileira”, sendo o último em andamento e financiado pelo CNPq. -
(UESC/CNPq). gabrielnasciment.eagle@hotmail.com
11
Discente da graduação em Letras da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Departamento de Letras e Artes (DLA) e
Bolsista CNPq de Iniciação Científica. Atua ainda como Coordenador-geral do Centro Acadêmico de Letras e membro da Executiva
Nacional dos Estudantes de Letras. (UESC)
12
Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade de Alcalá de Henares-Espanha e professora adjunta do Departamento de
Letras e Artes (DLA), docente e coordenadora do programa de Mestrado em Letras: Linguagens e Representações e do projeto de
extensão “Português como Língua Estrangeira” da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). dajudaalomba@hotmail.com

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FL/PFL. Thus, the objective is to analyze the written production of the students of PFL
participants of the research which has said earlier which the assumptions of the Sociolinguistics and
Applied Linguistics. The analysis of this paper will be made through the data collection of the texts
written by the students, aiming the learning of PFL. By this way, it is possible to think of the
student of PFL through some current researches on Applied Linguistics. The written production of
the students of PFL enables linguistic descriptions of phenomenon, and resources for writing, from
the written language on the textual genre blog, until comparisons by reviewing syntactic, semantic,
morphologic uses, and so on, and the choice which took the student to use some structure by
replacing some others. On the researches ongoing and finished the student is stimulated to write in
a formal pattern of language, and the teacher of FL/PLF must be mindful and the responsible to
check those uses and try to make those perfect by a reviewing-post on the blog taking the student
to improve formal pattern of language in the Brazilian Portuguese (BP).
Keywords: Textual Linguistics; FL/PFL; Learning.

Introdução
A Linguística Textual e a Linguística Aplicada, nos últimos anos, têm se
interessado em explicar e entender o funcionamento de um dispositivo eloquente e
oportuno no ensino/aprendizagem de LP e LE: a produção escrita na Internet.
Marcuschi (2004) ao definir o que é gênero, o insere na esfera da materialização do
discurso, e como o formato para a produção deste. Sendo assim, os gêneros são
diversos e podem ser trabalhados em sala de aula, ainda sob o aspecto da
diversidade de gêneros existentes (ANTUNES, 2004).
O papel da Linguística Aplicada, nesse contexto, é ultrapassar as barreiras
teóricas e desenvolver uma teoria a partir e dentro da prática (MOITA LOPES,
2006). Nos últimos tempos, o gênero blog tem sido um dos mais explorados na rede
mundial de computadores. Santos & Alomba (2011) analisam a importância desse
dispositivo ao concentrar as atenções sobre os blogs corporativos. Por outro lado,
Marcuschi (2005) situa a discussão ao pensar alguns gêneros não como novos, mas
como a materialização de alguns já existentes no mundo real.
O blog como gênero permite fomentar uma série de discussões. Entre elas, a
possibilidade de usar o blog como um espaço que complementa a sala de aula e leva
os resultados dela para além do espaço. Portanto, ao discutir o aspecto do blog
pretendemos entender a influência das Tecnologias da Informação e Comunicação
(TICs) no ensino de Língua Estrangeira (doravante LE), e, mais especificamente, no
que concerne ao objetivo da pesquisa geradora deste trabalho, Português como
Língua Estrangeira (doravante PLE).

O blog: espaço de Hipertexto


O blog, definido como texto, tem características históricas e linguísticas, dentre as
infinitas que lhe podem ser atribuídas. Dentre elas, é possível destacar o tipo de
linguagem utilizada. Ou melhor, o formato para ser formato necessita de uma
configuração. Em tal configuração, destaca-se o Hipertexto. Linguisticamente, ele
pode ser classificado como um tipo de linguagem, mas

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tecnicamente, um hipertexto é um conjunto de nós ligados por


conexões. Os nós podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos ou
partes de gráficos, sequências sonoras, documentos complexos que
podem eles mesmos ser hipertextos. Os itens da informação não são
ligados linearmente, como em uma corda com nós, mas cada um deles,
ou a maioria, estende suas conexões em estrela, de modo reticular.
Navegar em um hipertexto significa portanto desenhar um percurso em
uma rede que pode ser tão complicada quanto possível. Porque cada nó
pode, por sua vez, conter uma rede inteira (LÉVY, 1993, p. 33).

Assim, o hipertexto liga e permite a realização de uma gama de opções. No caso do


blog, desde um link colocado em uma postagem que aponta para novos links (e que
contam com a opção do leitor) até para dispositivos com linguagem eletrônica
JAVA, JAVASCRITP13, etc. que, por sua vez, possibilitam uma página direcionar a
outras tantas quantas se queira. Tais propriedades dão ao texto virtual caráter de não
apenas marcado por fatores internos ao texto e à linguagem, mas lócus de inúmeras
possibilidades, dentre as quais veiculação de material imagético, chat, fórum,
comentários, etc. Assim:
o “hipertexto”, organiza a informação em estrutura não linear ao texto e
possibilita alternativas de leitura que, de certa forma, podem reconduzir a
múltiplas interpretações do documento. Além de constituir, por si só,
nova forma de representação do saber, o hipertexto está incorporado
pela rede informática, que lhe empresta nova condição lógica de
organização e acesso. Isso significa que os documentos construídos e
armazenados em locais completamente diferentes interagem em tempo
real, permitindo que o leitor faça sua organização própria do documento.
(COSTA & PAIM, 2004, p. 30)

Ao dizer que o hipertexto permite múltiplas opções que vão além do estudo interno
ao texto, questionamos o mesmo que questiona a Linguística Aplicada ao criticar a
postura da Linguística teórica. Segundo Rajagopalan (2006) e Fabrício (2006) a
distância entre teoria e prática deve colocada em cheque, pois
[...] está em operação um campo de forças plurais que entrelaça uma série
de novos significados, modos de produção de sentido, práticas, técnicas,
instituições, procedimentos de subjetivação e relações discursivas,
tornando problemática a adoção de pontos de vista e explicações causais
simplistas a respeito dos fenômenos sociais. O reconhecimento da
complexidade dessa “trama movente” que caracteriza os nossos dias vem
afetando parte da produção de conhecimento na área de LA [...] Esses
estudos abordam a linguagem conectada a um conjunto de relações em
permanente flutuação, por entender que ela é inseparável das práticas
sociais e discursivas que constroem, sustentam ou modificam as

13
A quantidade de linguagens disponíveis hoje cria uma diversidade de opções para o internauta, e, por
conseguinte, para o leitor.

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capacidades produtivas, cognitivas e desejantes dos atores sociais. Assim,


a tendência de muitos estudos contemporâneos em LA é focalizar a
linguagem como prática social e observá-la em uso, imbricada em ampla
amalgamação de fatores contextuais (FABRÍCIO, 2006, p. 47).

Assim, reafirma-se a importância em trabalhar o suporte virtual e os gêneros lá


materializados nas aulas de LE/PLE.

O Blog- Leitura e produção textual


O Blog como gênero a ser trabalhado nas aulas de LE/PLE abre múltiplas
possibilidades, como foi discutido anteriormente. O método para trabalhá-lo,
entretanto, deve estimular a leitura e produção textual. Sugere-se tanto que o
estudante seja estimulado a ler, quanto a escrever sobre o que leu.
Desse modo, pode-se atentar que o uso das tecnologias emergentes envolve o aluno
numa realidade que vai além da sala de aula, sendo a aula lugar de orientação,
aprendizado e discussão do conteúdo a ser aprendido. (ALMEIDA FILHO, 1999).
O professor, no que concerne ao uso das tecnologias, e, mais especificamente, ao
uso do blog deve agir como um mediador.
Considera-se, assim, que as pessoas sejam, ao mesmo tempo, sujeitos
individuais e, como tais, possuem diferentes habilidades de
aprendizagem, diferentes estratégias de tratamento da informação, como
também sujeitos coletivos que vivenciam constantes processos de
interações sociais e culturais. O ambiente de aprendizagem adequado e,
naturalmente, a ação mediadora do professor, nessa perspectiva, são
elementos que podem favorecer o processo de construção do
conhecimento. [...] (COSTA & PAIM, 2004, p. 21)

Isso também comporta o que Silveira (1998) nomeou de professor interculturalista.


O professor de LE/PLE tem no blog a opção de montar atividades de leitura e
retextualização, partindo de algumas sugestões de Marcuschi (2004).
Das atividades que podem ser propostas ao utilizar o blog pode-se destacar:
 Leitura e retextualização- o aluno de LE/PLE é convidado a ler um texto na língua-
alvo e, após isso, ele deve refletir sobre o que leu e discutir com professor em sala
de aula. Posto isso, deverá o aluno postar um texto no blog. A postagem será
corrigida e trabalhada pelo professor nas aulas seguintes;
 Pesquisa em blogs- o professor pode incentivar no aluno a leitura em blogs
diversos e trabalhar o fenômeno da variação no Português Brasileiro (doravante
PB), diversas formas de falar a mesma coisa etc. seguindo pressupostos da
Linguística Aplicada e Sociolinguística Variacionista (MOITA LOPES, 2006;
BAGNO, 2001, 2004; BORTONI-RICARDO, 2004);
 Imagens no blog– o professor também pode propor o uso de imagens no blog. A
atividade pode permitir ao aluno se inserir na cultura da língua em que está

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aprendendo ao mesmo tempo em que o mesmo pode postar um comentário na


língua-alvo e poder perceber diferenças entre L1 e L2;
 O blog como Diário- Para essa atividade, encaminha-se a partir da concepção de
Marcuschi (2005) de que alguns espaços virtuais funcionam como suporte, e o blog,
em muitos aspectos parece ser a materialização do gênero diário no âmbito virtual.
Assim, o professor pode pedir aos alunos que façam um diário das atividades que
estejam cumprindo como intercambistas, ou turistas etc. O professor, nesse
contexto, tem a oportunidade de trabalhar a ortografia, mas também os aspectos de
coesão e coerência textuais.
 Conexão entre blog, redes sociais e bate-papo- Atualmente, já são comuns
ferramentas que fazem integração entre contas. Dentre elas, os códigos
JAVASCRIPT, mencionados anteriormente, têm o poder de colocar opções de
conexão no Hipertexto do blog . (e.g. a opção comentário e curtir do Facebook
podem ser implementados no blog através do embed14)
 Estimular o comentário em blogs- ao estimular o comentário em blogs, o professor
pode formular ideias para a criação e de diferentes blogs numa sala de PLE/LE e
verificar os registros de linguagem, conforme utilização definida em sala de aula
(monitoração padrão, não padrão) de acordo com a tipologia textual e gênero
escolhido. (e.g. o aluno pode colocar, como comentário, o gênero receita dentro do
gênero virtual blog).
Assim, refletir sobre as atividades acima pode direcionar o olhar do pesquisador
sobre atitudes de aluno e professor no ensino/aprendizagem de LE/PLE.

Leitura e retextualização- o blog como suporte


Acreditamos que a atividade de retextualização é necessária no
ensino/aprendizagem de LE/PLE nas aulas de leitura e produção textual (escrita e
oral). Entretanto, ao usar o blog é preciso ver opções que contribuam para a eficácia
da aula.
Advoga-se aqui para uma aula de LE/PLE que não de deixe de enfocar os aspectos
culturais (SILVEIRA, 1998), mas sem se esquecer dos aspectos internos à língua. As
atividades de retextualização dão conta dessa necessidade ao pedir que o aluno
interprete signos sociais e os transforme em outros textos.
Desse modo, o aluno é convidado a interferir na camada do social, sem deixar de
praticar a leitura, mas não só a leitura inocente do texto em si que nada tem a ver
com a materialidade, mas com uma realidade modificadora que Fabrício (2006)
cobra no pesquisador em Linguística Aplicada.
Ao propor atividades de retextualização, o estudante lerá textos na Internet, em
outros blogs ou em suportes externos, e, logo após, posta um texto no blog, que será

14
Do inglês “embutir”, é uma Tag HTML que permite levar a extensão de um arquivo de uma página (Música,
vídeo, imagem, etc.) para outra no Hipertexto.

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lido pelo professor. Essa atividade deve trazer ao professor o ensejo para descobrir
as lacunas do aluno, em que situações a L1 do aluno interfere na L2 (ELLIS, 1997).
‘Transfer’ is yet another metaphor for explaining L2 acquisition. In some
ways it is an inappropriate one. When we transfer money we move it out
of one account and into another, so one account gains and the other
loses. However, when language transfer takes place there is usually no
loss of L1 knowledge. This obvious fact has led to the suggestion that a
better term for referring to the effects of the L1 might be ‘cross-
linguistic influence’ (ELLIS, 1997, p. 54).15

O processo complexo da aquisição/aprendizagem dá lugar a uma série de


questionamentos que devem ser feitos para guiar uma prática que produza teorias, e
que as teorias não sejam deslocadas da prática, mas indagadoras dela, traçando
pontos de articulação entre teoria e prática. É preciso recriar o espaço da prática
dentro da teoria e, epistemologicamente, repensar nas barreiras entre o idealizar o
que será e refletir sobre o que foi. (MOITA LOPES, 2006).
Nesse sentido, o fenômeno da interferência pode ser trabalhado nas aulas de leitura,
utilizando o blog como o suporte. Ao pedir ao aluno que leia e produza textos,
trabalha-se com uma escrita legislada, estabelecida por lei, pela nomenclatura oficial
do país, mas também com gêneros textuais que permitem a variabilidade linguística.
Desse modo, entendemos, a partir de Dolz & Schneuwly (2004), que a variação não
ocorre somente na linguagem oral, mas também na escrita.
Dessa maneira, não se escreve um artigo jornalístico do mesmo modo que se
escreve um anúncio de publicidade. Cabe ao professor, selecionar junto com os
alunos o registro de linguagem adequado. E, seguindo o proposto por Antunes
(2004) no que diz respeito ao ensino de LP, pode-se também utilizar uma variedade
de gêneros no ensino de LE/PLE. O ensino/aprendizado, nesse caso, dá conta da
estilística, da sociolinguística, da pragmática, e da própria psicolinguística quanto ao
aprendizado inconsciente da sistematização gramatical da língua-alvo.
Another problem is that the research treats acquisition as if it is a process
of accumulating linguistic structures. Acquisition is seen as analogous to
building a wall, with one brick set in place before another is placed on
top. Such a view is, in fact, seriously mistaken, as studies of individual
grammatical structures have made clear. Even the simplest structure is
subject to a process of gradual development, manifesting clear stages. To

15
“Transferir” [‘transfer’] é ainda uma outra metáfora para explicar aquisição de L2. Em muitos sentidos trata-se de uma definição
inapropriada. Quando transferimos dinheiro nós movemos de uma conta para outra, e uma conta ganha enquanto a outra perde.
Entretanto, quando a “transferência” ocorre na linguagem não há nenhuma perda, geralmente, no conhecimento da L1. Esse fato
óbvio nos leva a sugestão de um termo melhor para se referir aos efeitos que a L1 podia ser “influência fora da fronteira
linguística” (Tradução feita por Gabriel Nascimento).

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investigate this we need to consider the sequence of acquisition (ELLIS,


1997, p. 22). 16

Portanto, as aulas de leitura e produção textual, com o blog e demais interfaces


virtuais, permitem a aquisição inconsciente de certas estruturas gramaticais,
pragmáticas etc. e podem ser valiosas no ensino/aprendizagem/aquisição de
LE/PLE.

O Blog em uso- um estudo de caso


Os textos que analisaremos aqui fazem parte do projeto de Iniciação Científica e do
projeto de extensão com temática de ensino/aprendizagem de Português por
estrangeiros da Universidade Estadual de Santa Cruz. Respeitando-se a taxonomia
existente, tomamos por estrangeiros e ensino de Português como Língua
Estrangeira, porque entendemos que, quanto à terminologia da diferença entre os
termos Português como Língua Estrangeira (PLE) e Português como Segunda que
Língua (PL2), as diferenças devam ser destacadas quando se tratar de Políticas
Linguísticas (MOITA LOPES, 1996).
Quanto à pesquisa, esta teve como objetivo investigar o funcionamento das
Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) no ensino/aprendizagem de
PLE. Um dos dispositivos tecnológicos pesquisados foi o gênero virtual blog,
suporte para gêneros textuais existentes e para outros que podem passar a existir em
meio virtual.
A estudante pesquisada é uma norte-americana do programa Capes-Fulbright, em
que profissionais estrangeiros são enviados ao Brasil a fim de serem assistentes do
ensino da Língua Inglesa, e que brasileiros têm atividade similar financiada nos
Estados Unidos. Como a estudante já estava se despedindo da universidade à época
da realização do projeto, a pesquisada, por ter nível intermediário de Português,
preferiu trabalhar a escrita formal, pois tinha preferência por continuar no Brasil e
tentar conseguir um emprego.
Durante o projeto, desenvolvemos um blog o qual não divulgaremos pela ética
desenvolvida no processo de pesquisa e que nos impele a não exposição do
pesquisado. Porém, os textos produzidos são de nossa importância. No primeiro,
ela narra um pouco da sua história:
Eu acabo de voltar aos estados unidos depois de completar uma bolsa do
Fulbright-CAPES na Universidade Estadual de Santa Cruz em Ilhéus,
Bahia. Com a bolsa, lecionei inglês para alunos do departamento de

16
Outro problema é que a pesquisa trata a aquisição como se ela fosse um processo de acúmulo linguístico de estruturas. A
aquisição é vista como análoga à construção de um muro, com um tijolo colocado em um lugar antes de outro que é colocado no
topo da construção. Essa visão é, na realidade, um sério engano, tal como estudos de estruturas gramaticais individuais deixaram
claro. Mesmo a estrutura mais simples é sujeita a um processo de desenvolvimento gradual, manifestando claros estágios. Para
investigar tal, precisamos analisar a sequência da aquisição (Tradução feita por Gabriel Nascimento).

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Letras durante um ano acadêmico. Gostei muito do trabalho e agora


estou procurando outro emprego na área acadêmica no Brasil.17

Ao ler o trecho acima, percebe-se na estudante certo grau de fluência, um dos


fatores que lhe permite produzir textos em LP. No processo do projeto, após a
postagem no blog o revisor devia postar um texto alertando sobre o que deveria ser
melhorado, como:
Eu acabo de voltar aos Estados Unidos [LETRA MAIÚSCULA NAS
LETRAS INICIAIS] depois de completar uma bolsa do convênio.

Assim, a intervenção do professor no texto reforçou a escrita da estudante. Também


foi sugerida a ela que lesse um texto e que escrevesse sobre o assunto. Esse teste
serviu para provocar a leitura da mesma. O próximo texto escrito foi resultado dessa
atividade:
Estou voltando ao meu blog, escrevendo de um país diferente, uma
cidade nova, uma mentalidade aberta. Às vezes escrever aqui no blog
parece uma perdida de tempo – quem vai ler isso? Provavelmente poucas
pessoas (o que significa que posso escrever muitas besteiras!) mas não
vou tentar justificar meu desejo de escrever. Cidade actual? Nashville,
Tennessee: casa de musica country e bluegrass, onde as botas de caubói
nunca morreram, a ioga é quente, o sol brilha em janeiro e a segregação
racial é uma realidade social. Bem-vindo ao coração dos estados unidos.
As pessoas gostam de conversar sobre a tecnologia- "olha o meu
produto novinho de Apple" - e dirigem carros que são bem mais grandes
(sic) do que o necessário. Eles curtem sentar nos cafés - "Vou querer
uma café com leite de soja, eu sei que causa o câncer mais eu
simplesmente adoro o sabor de aspartame"- e usar os seus notebooks (o
que eles estão fazendo de qualquer jeito)?

Atentando-se a tal questão, houve um encontro via Facebook para a discussão do


texto, e, após isso houve a postagem-revisão:
Estou voltando ao meu blog, escrevendo de um país diferente, uma
cidade nova, uma mentalidade aberta. As (Às) vezes escrever aqui no
blog parece uma perdida de tempo – quem vai ler isso? Provavelmente
poucas pessoas (o que significa que posso escrever muitas besteiras!) mas
não vou tentar justificar meu desejo de escrever. Cidade actual (atual)?
Nashville, Tennessee: casa de musica (música) country e bluegrass, onde
as botas de caubói nunca morreram, a ioga é quente, o sol brilha em
janeiro e a segregação racial é uma realidade social.

A estudante, no texto acima, não usa a crase antes de vezes, algo muito comum
inclusive entre brasileiros, seguindo um fenômeno amplamente estudado por

17
O link do projeto não será divulgado. Coleta de dados- UESC/CNPq 2011-2012.

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pesquisadores brasileiros. A palavra “actual”, escrita por ela, deixa claro que o
Português de Portugal tem conseguido efetivar com mais força sua política de
internacionalização do que o Português do Brasil (PB). Mais partes passaram pela
análise do professor como em:
"olha o meu produto novinho de (da) Apple"- e dirigem carros que são
bem mais grandes (sic) do que o necessário. Eles curtem sentar nos cafés
-"Vou querer uma (um) cafe (café) com leite de soja, eu sei que causa o
câncer, mais (mas) eu simplesmente adoro o sabor de aspartame"- e usar
os seus notebooks (o que eles estão fazendo de qualquer jeito)?

Entretanto, entendemos que não somente aspectos gramaticais podem ser tratados
no ensino/aprendizagem, mas até o andamento presente, devido à demanda não foi
possível testar atividades com usos culturais, pragmáticos etc.
Percebam que no texto acima, a estudante coloca a preposição “de” antes de nome
de marca no gênero feminino. O gênero aí é dado por conta do pressuposto de que
Apple é uma empresa, e de que empresa é gênero feminino. Logo, na produção ao
dizer o nome de estrangeirismos, quando se trata de empresas, utilizamos o artigo
que define o gênero do substantivo representante da categoria. O mesmo não se dá,
em geral, com cidades (e.g.18 A São Paulo), mas com alguns estados raros (e.g. A
Bahia, O Paraná etc.).
Assim, na pesquisa realizada não foi possível estender os exercícios a outros muitos
que compreendiam além da questão gramatical, outras de ordem cultural e
discursiva. Essa opção está em andamento.
A seguir, veja uma imagem do blog desenvolvido:

18
E.g. Exemplia Gratia, do Latim “Por exemplo”.

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Caderno Seminal

IMAGEM 1
IMAGEM DO BLOG DESENVOLVIDO EM PESQUISA DE IC

A imagem do blog acima representa possibilidades do uso das ferramentas virtuais


para o ensino de LE/PLE. Porém, não somente pela tautologia do termo
possibilidades que, vazio, pode representar um misto de positividade com evolução
e que pode nos fazer retornar ao discurso do Positivismo e que Lévy (1993) chama
de uma nova configuração da técnica na história da humanidade.

Considerações Finais
Assim, as análises contidas neste trabalho têm o intuito de contribuir para as
discussões sobre o papel das tecnologias no aprendizado de línguas, sendo que a
preferência por Português como Língua Estrangeira se torna viável a partir da
solidez da economia brasileira e a visibilidade do país em tratados internacionais e
nos blocos de poder.

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Caderno Seminal

Este estudo tentou enfocar a ferramenta virtual blog e discutir as possibilidades de


trabalhá-lo na sala de aula de LE/PLE, seguindo pressupostos que vão desde a
Sociolinguística até a Linguística Aplicada no que concerne à observação e
preocupação quanto ao ensino/aprendizagem de LE/PLE. Desse modo,
entendemos que este trabalho apenas apresenta possibilidades, a partir de uma
pesquisa de Iniciação Científica, mas que há inúmeras outras possibilidades a serem
estudadas, e que são viváveis e condizentes com um espaço de aprendizado que se
apropria dos meios eletrônicos e/ou virtuais para construir conhecimento.

Referências
ALMEIDA FILHO, Jose Carlos Paes de. O professor de língua estrangeira em
formação. Campinas: Pontes, 1999.
ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro e interação. 2. ed. São Paulo:
Parábola, 2004.
BAGNO, Marcos. Dramática da língua portuguesa: tradição gramatical, mídia e
exclusão social. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2001.
________. Português ou Brasileiro: um convite à pesquisa. 4ed. São Paulo: Parábola
Editorial, 2004.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística
na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
COSTA, J. W. da. ; PAIM, Isis. Informação e conhecimento no processo educativo. In:
COSTA, José Wilson da; OLIVEIRA, Maria Auxiliadora Monteiro. (orgs.) Novas
linguagens e novas tecnologias: Educação e sociabilidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.
DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola.
Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.
ELLIS, Rod. Second Language Acquisition. New York: Oxford University Press, 1997.
FABRÍCIO, Branca Falabella. Linguística aplicada como espaço de “desaprendizagem”:
redescrições em curso. In: MOITA LOPES, L. P. da (org.); Por uma Linguística
Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: O Futuro do Pensamento da Era da
Informática. Trad. Carlos Irineu da Costa. 7 ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 5. ed.
São Paulo Cortez, 2004.
_______. Gêneros textuais emergentes no contexto da tecnologia digital. In:
MARCUSCHI, L.A. ; XAVIER, A.C (orgs.) Hipertexto e gêneros digitais: novas
formas de construção de sentido. 2ed. Rio de Janeiro: Lucerna. 2005.
MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Uma linguística aplicada mestiça e ideológica:
interrogando o campo como linguista aplicado. In: ________.; Por uma Linguística
Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.

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51
Caderno Seminal

________. Oficina de linguística aplicada: a natureza social e educacional dos


processos de ensino/aprendizagem de línguas. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1996.
SILVEIRA, Regina Célia P. da. Aspectos da identidade cultural brasileira para uma
perspectiva interculturalista no ensino/aprendizagem de Português Língua Estrangeira. In:
SILVEIRA, Regina Célia P. da. (Org.) Português Língua Estrangeira: Perspectivas. São
Paulo: Cortez, 1998.

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A TEORIA DA ATIVIDADE SÓCIO-HISTÓRICO-CULTURAL: UMA


PROPOSTA PARA A PRÁTICA DE PRODUÇÃO DE TEXTOS
ESCRITOS PELA ARGUMENTAÇÃO
ACTIVITY THEORY SOCIO-CULTURAL-HISTORICAL: A PROPOSAL FOR THE PRACTICAL
PRODUCTION OF WRITTEN TEXTS BY ARGUMENT

Juliana Ormastroni de Carvalho Santos19 & Maria Suzett Biembengut Santade20

Resumo:
Este artigo discute a produção escrita como prática social numa pesquisa organizada para
compreender e transformar modos sobre como criar contextos (zpds) em que o aluno do 1º ano do
Ensino Médio, nas relações colaborativo-críticas da sala de aula, aproprie-se da produção escrita
como um movimento enunciativo, enunciativo discursivo e enunciativo linguístico na compreensão
e escrita de textos que se organizem pela argumentação. Discute também a Teoria da Atividade
Sócio-Histórica-Cultural (TASHC), fruto dos trabalhos de Vygotsky (1934/1991, 1934/2001) e
Leontiev (1934/2001) e Engeström (1999, 2002, 2011), teoria que parte da perspectiva sócio-
histórico-cultural em que o sujeito e a dimensão social são considerados na elaboração da
consciência (funções psicológicas superiores) e do desenvolvimento humano. A TASHC possui
função transformadora na medida em que reconhece e assegura, por meio diálogo e da colaboração,
a relação entre o sujeito, sua historicidade e sua realidade. Nesse processo, os instrumentos
psicológicos, definidos por Vygotsky como dispositivos para dominar processos mentais, são meios
pelos quais os sujeitos organizam uma atividade conforme suas necessidades, além de
transformarem e produzirem novos comportamentos. Assim, tendo em vista nosso objeto de
pesquisa, isto é, o domínio dos alunos quanto aos processos da produção escrita dos gêneros que se
organizam pela argumentação, reconhecemos os gêneros como instrumentos psicológicos da
atividade, uma vez que eles medeiam a relação entre os sujeitos da pesquisa e o objeto que
pretendemos desenvolver.
Palavras-chave: Atividade Sócio-Histórico-Cultural; Produção de Textos Escritos; Argumentação.

Abstract:

19
PUCSP / FIMI-Mogi Guaçu / SELEPROT-UERJ. Professora de Língua Portuguesa da FIMI (Faculdades Integradas Maria Imaculada).
Doutoranda em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela PUC-SP. juocs@bol.com.br
20
FIMI e FMPFM-Mogi Guaçu / SELEPROT-UERJ. Pós-doutora em Educação (2008) em Metodologia do Ensino do Português, no
Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho-IEP-UMINHO, Braga-Portugal, com o projeto “Aspectos da Formação
de Professor de Português em Portugal e no Brasil”, sob a supervisão do Prof. Catedrático Doutor Rui Manuel Costa Vieira de
Castro. Pós-doutora em Letras (2006) na Linha de Pesquisa: Ensino da língua portuguesa: história, políticas, sentido social,
metodologias e pesquisa, no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ-Brasil, com o projeto “A
PALAVRA E O DESENHO: uma interação da semântica e da semiótica na aprendizagem da língua”, sob a supervisão da Profª
Doutora Darcilia Simões. Doutora em Educação. Mestre em Educação. Graduada em Letras Vernáculas - Francês e Inglês em
Línguas e Literaturas. Coordenadora e Professora Titular do Curso de Letras na Graduação & Pós-Graduação Lato Sensu das
Faculdades Integradas Maria Imaculada-FIMI e Professora Titular da Faculdade Municipal Professor Franco Montoro-FMPFM de
Mogi Guaçu-SP-Brasil. Pesquisadora e participante dos Grupos de Pesquisa Semiótica, leitura e produção de textos (SELEPROT-
UERJ-CNPq) e Crítica Textual e Edição de Textos (UERJ-CNPq). suzett.santade@gmail.com

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This article discusses the writing as social practice in an organized search for understanding and
transforming ways about creating contexts (zpds) in which the student on 1st year of high school,
in relationship with a collaborative-critical classroom, takes ownership of production written as a
movement of enunciation, of enunciation and discursive enunciation in language comprehension
and writing texts that are organized by argument. It also discusses the Activity Theory Socio-
Historical-Cultural (TASHC) result of the work of Vygotsky (1934/1991, 1934/2001) and Leontiev
(1934/2001) and Engeström (1999, 2002, 2011), part of prospect theory socio-cultural-historical in
which the subject and the social dimension are considered in the development of consciousness
(higher psychological functions) and human development. The TASHC transformative function in
that it recognizes and ensures, through dialogue and cooperation, the relationship between the
subject, its historicity and its reality. In this process, the psychological instruments, defined by
Vygotsky as devices for restraining mental processes are the means by which individuals organize
an activity to suit their needs, and transform and produce new behaviors. Thus, in view of our
research object, i.e., the domain of students in the processes of production genres of writing that
are organized by argument, we recognize the genders as an instrument of psychological activity
since they mediate the relationship between the research subjects and the object that we want to
develop.
Key-words: Activity Theory Socio-Cultural-Historical; production of written texts; argumentation.

Introdução
Este artigo discute a fase inicial de um projeto de pesquisa que está sendo
desenvolvida no curso de pós-graduação em Linguística Aplicada e Estudos da
Linguagem na PUC-SP. Valendo-se da dificuldade enfrentada pelos alunos do
Ensino Médio que se apropriam da organização argumentativa na produção escrita
como prática social, este trabalho enfoca a produção escrita como prática social,
com base nas discussões de Rojo (2009), Dolz e Schneuwly (2004) e Liberali (2009).
Está organizado para compreender e transformar modos sobre como criar
contextos (zpds) em que os alunos do 1º ano do Ensino Médio, nas relações
colaborativo-críticas da sala de aula, apropriem-se da produção escrita como um
movimento (i) enunciativo, (ii) enunciativo discursivo e (iii) enunciativo linguístico
na compreensão e escrita dos textos que se organizem pela argumentação, com base
nas discussões de Bakhtin (1959/2011), Bakhtin/Voloschinov, (1929/1992) e
outros pesquisadores que avançaram estas discussões (e.g., Schneuwly e Dolz; Dolz
e Schneuwly, Rojo). São objetivos específicos de a pesquisa criar contextos para: (1)
compreensão da organização de textos diversos que se organizem pela
argumentação; (2) discussão do contexto enunciativo, enunciativo discursivo e
enunciativo linguístico de gêneros orais e escritos; (3) estabelecimento de momentos
de elaboração dos textos escritos e revisões individuais e coletivas dos mesmos; (4)
desenvolvimento de um blog da sala para que os alunos da mesma e de outras séries
possam ler e comentar a produção dos colegas e apontar possíveis orientações ao
trabalho com textos argumentativos escritos no Ensino Médio. A pesquisa está
embasada no quadro da Teoria da Atividade Sócio-Histórica-Cultural (TASHC),
fruto dos trabalhos de Vygotsky (1934/1991, 1934/2001) e Leontiev (1934/2001) e
Engeström (1999, 2002, 2011) e na compreensão de leitura e escrita como práticas

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sociais e propõe um olhar para a argumentação que abandona a visão de


convencimento e dá lugar à negociação.
Este texto organiza-se de modo a apresentar os pressupostos teóricos sobre a Teoria
da Atividade Sócio-Histórico-Cultural, os conceitos e o papel da mediação e a
importância dos gêneros como instrumento mediador da Atividade.

A Teoria da Atividade Sócio-Histórico-Cultural


Em consonância com a visão de que o ser humano age e constrói a história em
contextos específicos, o presente trabalho segue os pressupostos teóricos Vygotsky
(1934/2001), o qual parte da perspectiva sócio-histórico-cultural em que o sujeito e
a dimensão social são considerados na elaboração da consciência (funções
psicológico- superiores) e do desenvolvimento humano. Baseado no materialismo
histórico-dialético (Marx, 1844/2004), Vygotsky compreende que a construção da
consciência ocorre por meio das relações sociais mediadas por artefatos culturais, ou
seja, a aprendizagem acontece por meio da relação do indivíduo com o ambiente e
com outros sujeitos, de modo que
as origens das formas superiores de comportamento conscientes
deveriam ser achadas nas relações sociais que o indivíduo mantém com o
mundo exterior. Mas o homem não é apenas um produto de seu
ambiente, é também um agente ativo no processo de criação deste meio
(p. 25).

Como se observa, Vygotsky, em sua teoria do desenvolvimento, considerou as


implicações psicológicas das questões sociais, culturais e históricas e colocou o ser
humano como protagonista da própria aprendizagem. Por isso, este trabalho segue a
proposta Vygotskyana segundo a qual desenvolvimento e aprendizagem não são
produtos cognitivos individuais (Stetsenko, 2011), mas contemplam os aspectos
culturais, compreendidos como “os meios socialmente estruturados”, e históricos,
definidos como instrumentos culturais “que o homem usa para dominar seu
ambiente e seu próprio comportamento” (Vygotsky 1934/2001, p. 26). Assim,
segundo Stetsenko (2011), Vygotsky focaliza o desenvolvimento psicológico dos
homens como processo em constante transformação, numa relação aberta e
dinâmica entre organismos e seus ambientes, sob uma abordagem teórica que
privilegia a mudança, como esclarecem John-Steiner e Souberman (1991) sobre o
autor russo:
Ele jamais identifica o desenvolvimento histórico da humanidade com os
estágios do desenvolvimento individual [...]. Na verdade, sua
preocupação está voltada para as consequências da atividade humana na
medida em que esta transforma tanto a natureza como a sociedade.
Embora o trabalho dos homens e das mulheres no sentido de melhorar
o seu mundo esteja vinculado às condições materiais de sua época, é

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também afetado pela capacidade humana de aprender com o passado,


imaginar e planejar o futuro (p.85).

Nessa perspectiva que retoma os pressupostos marxistas de condições materiais e de


transformação social, toma-se como base para o processo ensino-aprendizagem a
Teoria da Atividade Sócio-Histórico-Cultural (TASHC), cuja origem remonta à
filosofia alemã (de Kant a Hegel), ao marxismo, à psicologia histórico-cultural de
Vygotsky, Leontiev e às contribuições de Engeström (1999), a fim de analisar o
desenvolvimento da mente humana em situações de atividade social prática,
enfatizando os impactos psicológicos da atividade organizada e as condições e
sistemas sociais produzidos em e por tal atividade. A TASHC possui função
transformadora na medida em que reconhece e assegura, por meio diálogo e da
colaboração, a relação entre o sujeito, sua historicidade e sua realidade, numa rede
de relações culturais (Schettini, 2009). O potencial transformador da TASHC, com
base na retomada da ideia de prática revolucionária de Marx, não se restringe em
analisar e explicar a realidade, mas pode também gerar novas práticas e promover
mudanças devido a seu caráter intervencionista (Sannino, 2011). Ainda segundo
Sannino (op. cit.), a TASHC, por meio do uso de ferramentas e de intervenções,
constitui um movimento dialético realizado pela ação transformadora do sujeito que
altera um objeto por meio do instrumento. Mais uma vez, o foco desta pesquisa, a
transformação de práticas de escrita e fracassos cristalizados no contexto escolar,
encontra respaldo na TASHC, porque considera a atividade em um processo cultural,
isto é, inserido “num determinado espaço-tempo, marcado por interesses, valores,
necessidades, formas de agir que são peculiares e estão circunscritos a uma cultura”
e histórico, “pois os sujeitos dessa atividade se constituíram ao longo de uma História
com identidades peculiares forjadas no processo histórico” (Liberali, 2011, p. 44).
Os diversos modos como o conceito de Atividade foi sendo expandido para
construir a TASHC é discutido por inúmeros pesquisadores, como Daniels (2003,
2008), Engeström (1999, 2002, 2008, 2011), Kozulin (2002), Magalhães (2009,
2011), Sanino (2011) e Stetsenko (2011). Iniciada por Vygotsky, o conceito de
atividade enfocava a discussão de mediação por artefatos e instrumentos culturais e
superava a ideia de que o ato humano é a resposta a um estímulo, pois se constitui
uma ação mediada por um componente cultural. Atividade era entendida como um
princípio explicativo da constituição da consciência, que seria construída por meio
das relações sociais (Kozulin, 2002).
Leontiev retoma essa discussão e enfatiza a mediação por instrumentos na produção
do objeto na atividade (Engeström, 1999). Enquanto Vygotsky defendia a mediação
por ferramentas culturais com foco na palavra como recurso mediador central,
Leontiev enfatizava as relações sociais e regras de conduta governadas por
instituições culturais, políticas e econômicas e, por isso, inclui ao contexto da
atividade as regras, a comunidade e a divisão de trabalho e expande a unidade de
análise de ação individual para atividade coletiva. Conforme Leontiev (1978), o que

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distingue uma atividade de outra é o seu objeto. Toda atividade parte de uma
necessidade que só pode ser satisfeita quando há um objeto, ou seja, um motivo
para isso. O motivo impulsiona a atividade, na medida em que articula uma
necessidade a um objeto, portanto, a atividade só existe se há um motivo.
Engeström (1999) retoma a discussão de Vygotsky e Leontiev e propõe a atividade
como uma formação coletiva e sistêmica, em que a comunidade, as regras e divisão
de trabalho são analisadas, bem como suas interações recíprocas em “sistemas que
produzem eventos e ações e evoluem ao longo de períodos do tempo sócio-
histórico” (Engeström, 2008, p. 5). Nesses sistemas de atividade, as ações orientadas
ao objeto são sempre ambíguas, caracterizadas pela surpresa e pela interpretação e,
por isso, essas ações geram conflitos e provocam o movimento de negociação, fato
que tornam as ações potencialmente transformadoras. Ao incorporar a ideia de
redes ao sistema de atividade sempre em expansão e a natureza conflitual da prática
social, a contradição passa a ser considerada como fator de desenvolvimento e de
transformação. É importante ressaltar que contradição não deve ser entendida
como problemas ou conflitos, mas como “tensões estruturais historicamente
acumuladas em e entre sistemas de atividade [...] [que] geram distúrbios e conflitos,
mas também tentativas inovadoras para mudar a atividade” (Engeström, 2011, p.
609).
Engeström (1999, apud Daniels 2008) sugere cinco princípios da TASHC. O
primeiro deles considera o sistema de atividade mediado por um instrumento e
orientado por objeto como unidade de análise. O segundo refere-se à multiplicidade
de vozes, entendidas como os diversos pontos de vista dos participantes que fazem
da atividade uma fonte de tensão e de negociação. A historicidade dos sujeitos, da
atividade, dos objetos, das ideias e das ferramentas teóricas que moldaram a
atividade constitui o terceiro princípio. O quarto princípio reconhece o papel das
contradições como fonte de mudança e desenvolvimento e, como último princípio
consta a transformação expansiva, realizada quando o objeto e o motivo do objeto
são novamente conceituados e ampliam o objeto da atividade anterior.
O desenvolvimento de atividades sócio-histórico-culturais visa desenvolver
ferramentas conceituais para a compreensão de diálogos, de múltiplas perspectivas e
de interações que, a partir de pontos de vista contraditórios, geram tensão,
necessidade de tradução e negociação de modo a chegar a um novo conhecimento.
Mais especificamente, vemos na TASHC o potencial de mudança nas práticas de
escrita no Ensino Médio, num processo em que o aluno é visto como um sujeito
cultural, histórico, ativo e agente de seu desenvolvimento. Por meio da TASHC,
temos a possibilidade de dar protagonismo aos discentes, seja nas relações que
mantêm entre si ou na ação orientada ao objeto (Engeström, 2011).
O interesse pelo ensino por meio de Atividades Sociais justifica-se também por se
relacionarem intrinsecamente à vida, pois “enfatiza o conjunto de ações mobilizadas

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por um grupo para alcançar um determinado motivo/ objetivo, satisfazendo


necessidades dos sujeitos” (LIBERALI, 2009, p. 11).
No quadro teórico da TASHC constam ainda conceitos fundamentais de Vygotsky,
como a Mediação e a zpd, que têm relevância central neste trabalho e, por isso,
serão desenvolvidos nos subitens seguintes.

As questões de Vygotsky nas construções colaborativas mediadas por


artefatos culturais
A TA, desenvolvida a partir do conceito de mediação, proposto por Vygotsky
(DANIELS, 2003), descreve a relação mediada entre os seres humanos e o ambiente
pelo uso de instrumentos. Vygotsky retoma as concepções de Engels sobre o uso de
instrumentos como meio de transformar a natureza conforme a necessidade
humana e, assim, dominá-la (Cole e Scribner, 1991, apud Daniels, op. cit.).
O conceito de mediação é fundamental para o entendimento da psicologia cultural
de Vygotsky, cuja abordagem histórico-cultural salienta a ação mediada num
contexto, busca a análise da vida cotidiana, pressupõe que a mente é co-construída
com outras pessoas na atividade mediada e que os indivíduos são seres ativos de seu
desenvolvimento (Cole, 1996, apud Daniels, 2003). Portanto, para o estudioso russo,
aprendizagem e desenvolvimento são processos compartilhados, mediados, sendo a
mediação um dos conceitos mais relevantes para a prática pedagógica por criar um
conjunto de possibilidades individuais de compreensão. A mediação foi proposta
por Vygotsky a partir da tríade sujeito, ferramentas culturais e objeto, sobre a qual
“a estrutura e o desenvolvimento de processos psicológicos humanos surgem
através de atividade prática culturalmente mediada, historicamente desenvolvida”
(Cole, 1996, p. 108, apud Daniels, 2008, p. 165).
O foco na mediação cultural proposto por Vygotsky foi contestado por Leontiev
que introduziu e enfatizou as relações sociais, ou seja, a comunidade, e as regras de
conduta que são entendidas como as normas governadas por instituições culturais,
políticas e econômicas (Cole e Engeström, 1993, apud Daniels, 2008). Para
Leontiev, a atividade envolve a noção de objeto e de motivação, ou seja, diferentes
possibilidades motivadoras estão embutidas no objeto que podem criar uma
necessidade coletiva. Dessa forma, a necessidade de um grupo motiva-o a planejar e
executar uma atividade com vistas a um objeto que solucionará ou trará superação
do problema inicial.
No contexto em que ocorre a mediação, o sujeito é o agente cujo comportamento se
pretende analisar; os artefatos mediadores são objetos (materiais ou ideais) utilizados
pelo sujeito para atingir seu resultado; e o objeto refere-se ao material bruto sobre o
qual o sujeito vai agir mediado pelas ferramentas, em interações com outras pessoas,
como confirma Liberali (2009):

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Atividade Social é constituída por agentes (sujeito) que percebem suas


necessidades, são motivados por um propósito (objeto), o qual é
mediado por artefatos (instrumentos) por meio de uma relação entre
indivíduos (comunidade), que se constitui por regras e por divisão de
trabalho (p.19).

Nesse sentido, a proposta e o interesse de pensar a realidade e transformá-la a fim


de se alcançar melhor participação social por meio do desenvolvimento do domínio
dos alunos quanto aos processos de produção escrita dos gêneros que se organizam
pela argumentação é possível por meio da Teoria da Atividade Sócio-Histórico-
Cultural (TASHC), que focaliza o
estudo das atividades em que os sujeitos estão em interação com outros em
contextos culturais determinados e historicamente dependentes. (...) Para que
esse conjunto de ações possa ser compreendido como uma atividade, é
preciso que os sujeitos nela atuantes estejam dirigidos a um fim
específico, definido a partir de uma necessidade percebida. Em outras
palavras, uma atividade é realizada por sujeitos que se propõem a atuar
coletivamente para o alcance de objetos compartilhados que satisfaçam,
mesmo que parcialmente, suas necessidades particulares (LIBERALI,
2009, p. 12).

Os componentes de uma atividade podem ser compreendidos conforme o quadro


abaixo:
Quadro 1: Componente da Atividade (LIBERALI, 2099, p. 12)

Sujeitos São aqueles que agem em relação ao motivo e realizam a atividade.


Comunidade É aquela que compartilha o objeto da atividade por meio da divisão de
trabalho e das regras.

Divisão de trabalho É aquela que as ações intermediárias são realizadas pela participação
individual na atividade, mas que não alcançam independentemente a
satisfação da necessidade dos participantes. São as tarefas e funções de
cada um dos sujeitos envolvidos na mesma atividade.
Objeto É aquilo que satisfará a necessidade, o objeto desejado.
Tem caráter dinâmico, transformando-se com o desenvolvimento da
atividade. Tratou-se da articulação entre o idealizado, o sonhado, o desejado
que se transformam no objeto final ou no produto.
Regras Normas explícitas ou implícitas da comunidade.
Artefatos/ instrumentos/ Meios de modificar a natureza para alcançar o objeto idealizado, passíveis de
ferramentas serem controlados pelo seu usuário revelam a decisão tomada pelo sujeito;
usados para o alcance de fim predefinido (instrumento para o resultado) ou
constituído no processo da atividade (instrumento e resultado).

Tomamos como instrumento, na conceituação da TASHC, “meios pelos quais o


indivíduo age sobre fatores sociais, culturais e sofre a ação deles” (Daniels, 2003, pp.

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24- 25), para o trabalho com produção de textos escritos, os gêneros do discurso
(Bakhtin, 1929/ 1992), que devido a sua relevância, serão tratados na seguinte
sessão.

Os gêneros como instrumentos na TASHC


Por volta de 1997, os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa
adotaram o conceito de gênero, em detrimento a tipo, para o ensino de leitura e
produção de textos orais e escritos. As propostas oficiais passaram a dar importância
considerável às situações de produção e de circulação dos textos, à significação delas
e à noção de gêneros como um instrumento para favorecer o ensino de leitura e de
produção de textos escritos e orais (Rojo e Cordeiro, 2010).
Como vimos, as atividades sociais envolvem comunidade, regras e divisão de
trabalho e sujeitos que, numa relação mediada por instrumentos, agem
coletivamente em busca da construção de um objeto compartilhado. Nesse
processo, os instrumentos psicológicos definidos por Vygotsky como dispositivos
para dominar processos mentais (Daniels, 2003) têm grande relevância já que esses
artefatos culturais são meios pelos quais os sujeitos organizam uma atividade
conforme suas necessidades, além de transformarem e produzirem novos
comportamentos. A ideia de mediação traz uma implicação política, já que “os
humanos dominam a si mesmos por sistemas culturais simbólicos externos, ao invés
de serem subjugados por eles e neles” (Daniels, op. cit., p. 26).
Assim, tendo em vista nosso objeto de pesquisa, isto é, o domínio dos alunos
quanto aos processos da produção escrita dos gêneros que se organizam pela
argumentação, reconhecemos o gênero como instrumento psicológico da atividade,
com base em Schneuwly (2010), que apresenta duas justificativas para essa premissa.
A primeira retoma os conceitos vygotskyanos de instrumentos como ferramentas
elaboradas a partir de experiências de gerações passadas, que permitem a
transmissão de experiências e a execução de outras novas. Tais instrumentos
encontram-se entre os indivíduos e orientam, de certo modo, a ação deles e, por
isso, dão forma à atividade. Assim, as atividades não existem somente na sua
execução, mas nos instrumentos que as representam, de modo que esses podem
transformar os comportamentos na medida em que o ato de explorá-los e
transformá-los altera também a atividade a que estão ligados.
A segunda explicação diz respeito às duas faces do instrumento: de um lado, o
artefato material ou simbólico, que se encontra fora do sujeito e, de outro, os
esquemas de utilização do objeto que articulam suas possibilidades de ação, no
interior do sujeito, ou seja, para que o instrumento configure-se como mediador e
transformador da atividade, é preciso que o sujeito tenha desenvolvido esquemas de
sua utilização.

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Portanto, os gêneros podem ser considerados instrumentos porque medeiam a


relação entre os sujeitos da pesquisa e o objeto que pretendemos desenvolver. Em
outras palavras, os diversos gêneros a serem trabalhados na pesquisa (propaganda,
carta do leitor, carta de reclamação e artigo de opinião) trazem em si a organização
comunicativa, discursiva e linguístico-discursiva que desejamos que os alunos
observem, interpretem e desenvolvam. Nesta pesquisa, os gêneros serão
instrumentos para que os alunos entrem em contato, leiam, interpretem,
reconheçam as características dos gêneros que fazem parte do objeto da atividade:
aqueles que se organizam pela argumentação.
O conceito de gênero, com base nos estudos de Bakhtin (1979/ 2003), também nos
auxilia a compreendê-lo como instrumento:
o emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos)
concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo
da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas
e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo
(temático) e pelo estilo de linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos
lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua
construção composicional. Todos esses três elementos- o conteúdo
temático, o estilo, a construção composicional- estão indissociavelmente
ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela
especificidade de um determinado campo da comunicação.
Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo
de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, aos quais denominamos gêneros do discurso (p. 261-262).

Para Schneuwly (2012), há três elementos centrais nessa definição: o primeiro refere-
se à escolha de um gênero conforme a situação, ou seja, finalidade, destinatário e
conteúdo; o segundo diz respeito a essa escolha diante de uma esfera e de um lugar
social que definem um conjunto possível de gêneros e, finalmente, a relativa
estabilidade dos gêneros que determinam o que é dizível, a composição
(estruturação), um plano comunicacional (Dolz e Schneuwly, 1987) e um estilo, que
deve ser visto como elemento do gênero e não como individualidade do locutor.
Como observamos pelas suas características comunicativas voltadas às práticas
sociais, o gênero possibilita ao homem expressar-se, mais uma razão pela qual
Schneuwly (2010) defende que “o gênero é um instrumento”, já que sua escolha “se
faz em função da definição dos parâmetros da situação que guiam a ação. Há,
portanto, aqui, uma relação entre meio-fim” (p. 24) a que poderíamos relacionar ao
termo instrumento-e-resultado (Holzman, 2002, Newman e Holzman, 2003, apud
Magalhães, 2009). Em outras palavras, propomos usar os gêneros como instrumento
para que o estudante aproprie-se e internalize suas características na atividade de
construí-los, ou melhor, de produzi-los e percebê-los no uso em contexto,
considerando as condições de produção, finalidade e organização.

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SOBRE O ENSINO DA TRADUÇÃO DAS EXPRESSÕES


IDIOMÁTICAS: ALGUMAS REFLEXÕES21
ON TEACHING THE TRANSLATION OF IDIOMATIC EXPRESSIONS: SOME REFLECTIONS

Liliane Santos22

Resumo
Enquanto expressões convencionais, cristalizadas tanto linguística como culturalmente, os
idiomatismos constituem formas cujos significado e sentido não podem ser calculados pela simples
conjunção do léxico com a gramática. Esse fator, somado ao fato de o seu uso estar estreitamente
ligado à situação de enunciação, explica por que essas expressões representam uma das maiores
dificuldades que enfrentam professores e aprendizes de uma língua estrangeira. Neste trabalho,
apresentamos algumas observações a respeito da elaboração de uma metodologia de ensino para a
tradução das expressões idiomáticas, classificando-as em quatro categorias: (i) idênticas, (ii)
parafraseáveis, (iii) reconhecíveis e (iv) intraduzíveis. Essas categorias determinarão quatro
diferentes estratégias de tradução.
Palavras-chave: Expressões idiomáticas, ensino de línguas, tradução.

Abstract
Being conventional and frozen expressions, both from linguistic and cultural points of view, idioms
constitute a whole whose sense and meaning do not be constructed from the conjunction of
lexicon and grammar. Coupled with the fact that their use is closely linked to the situation of
enunciation, this factor explains why those expressions represent a major difficulty to teachers and
learners of a foreign language. In this work, we present some observations on the development of a
teaching methodology for the translation of these expressions, suggesting their classification into
four categories: (i) identical, (ii) paraphrasable, (iii) recognizable, and (iv) untranslatable. We
suggest, moreover, that these four categories correspond to four different translation strategies.
Key-Words: Idioms, language teaching, translation.

Introdução
Entre as maiores dificuldades com as quais se confrontam professores e aprendizes
de uma língua estrangeira – e mais especificamente no caso do
ensino/aprendizagem da tradução –, encontram-se as expressões idiomáticas (EI).
Cristalizadas e indecomponíveis, com sentido e emprego determinados cultural e
convencionalmente, as EI não somente estão estreitamente vinculadas à situação de
enunciação, como também apresentam uma significação que não corresponde à
soma dos significados individuais dos seus constituintes (ou seja, uma significação
que não pode ser calculada simplesmente pela conjunção do léxico com a
gramática). Neste sentido, é importante observar que

21
Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada em Santos (2011).
22
Université Charles-de-Gaulle – Lille 3 - UMR 8163 “Savoirs, Textes, Langage” (CNRS). liliane.santos@univ-lille3.fr

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a aquisição da maioria das combinações idiomáticas se faz de forma não


sistemática, em leituras ou conversas, desde que o falante esteja atento a
elas. Além disso, esse indivíduo só perceberá que se trata de uma
expressão consagrada quando a ouvir repetidas vezes. Então, poderá
memorizá-las e utilizá-las quando a situação e o contexto as
transformarem num fator específico de eficácia comunicacional
(XATARA, 1995, p. 200).

Uma vez que o nosso objetivo é apresentar algumas observações sobre os elementos
que consideramos necessários à elaboração de uma metodologia de trabalho no
ensino da tradução das EI, convém observar que não nos ocuparemos da questão da
sua aquisição. Apenas desejamos chamar a atenção para o fato de que o conjunto
dos elementos acima delineados permite perceber por que razão o domínio das EI
representa um capítulo à parte no ensino da tradução.
Iniciaremos nossa discussão por uma breve revisão da literatura a respeito dos
idiomatismos23, de modo a estabelecer uma definição mais precisa do que a que
acabamos de esboçar. Em segundo lugar, trataremos de questões ligadas à sua
tradução e ao seu tratamento pelos estudos lexicográficos. Em terceiro lugar,
discutiremos a problemática do lugar ocupado pelo estudo das EI no ensino de
línguas, examinando, em quarto lugar, uma proposta de análise morfossintática e de
classificação das EI numa perspectiva contrastiva. Em seguida, apresentaremos o
nosso ponto de vista sobre a questão do ensino da tradução dessas expressões,
apresentando também elementos que julgamos importante levar em conta quando
da elaboração de uma metodologia de ensino para a tradução das EI. Nas nossas
considerações finais, destacaremos os pontos mais importantes da nossa
argumentação e abriremos a possibilidade de utilizar uma metodologia semelhante à
que sugerimos para o ensino da tradução das EI para o ensino da tradução dos
provérbios.
Tendo em vista o escopo deste trabalho, não aprofundaremos a discussão sobre os
critérios de reconhecimento das EI, que daremos, em larga medida, por conhecidos.
Também não trataremos dos critérios que permitem identificar e distinguir as
diferentes unidades fraseológicas (colocação, locução, refrão, provérbio, expressão
idiomática). Para uma discussão em profundidade sobre o assunto, remetemos aos
trabalhos de Matias (2008) e Reis (2008), que apresentam, cada um, uma longa
discussão a respeito dos critérios que permitem identificar e caracterizar uma
expressão idiomática, assim como as demais unidades fraseológicas. Remetemos
também a Xatara (2001), que apresenta o conjunto das sete “delimitações” às quais
obedeceu a elaboração do seu Dictionnaire d’expressions idiomatiques Français-Portugais-
Français24.

23
Neste trabalho, expressões idiomáticas e idiomatismos serão utilizados como sinônimos.
24
Publicado on-line, o Dictionnaire d’expressions idiomatiques Français-Portugais-Français de Xatara (2007) comporta 2.459

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Por último, gostaríamos de fazer observar que, embora a maioria dos autores não se
preocupe em estabelecer essa diferença ao tratar do estudo contrastivo de EI
pertencentes a duas línguas, preferimos o termo correspondência ao termo equivalência,
uma vez que, como indicam Riva & Rios (2002, p. 7), este último “traz em sua
etimologia a ideia de uma ‘igualdade de valor’, [o] que não (...) [corresponde ao]
nosso objetivo”.

Expressões Idiomáticas: Definição


Se durante muito tempo o estudo das expressões idiomáticas esteve excluído dos
estudos linguísticos25, é em trabalhos mais recentes, interessados por questões
semânticas, pragmáticas e discursivas, que vamos encontrar as primeiras tentativas
de definição dessas lexias complexas. É o caso, por exemplo, de Chafe (1970), para
quem os idiomatismos são estruturas que representam combinações de morfemas
que não constituem unidades semânticas por si sós mas que, em conjunto,
constituem uma nova unidade semântica. Nesse mesmo sentido, Caramori (2006, p.
49) sublinha o fato de que uma EI “não possui autonomia frástica completa”,
sublinhando também que a “a somatória do significado de cada palavra não
corresponde ao sentido do todo”.
De modo semelhante, ao discutir o problema da segmentação das unidades lexicais
no discurso, Biderman (1978, p. 133) define os idiomatismos como “combinatórias
de lexemas que o uso consagrou numa determinada sequência e cujo significado não
é a somatória das suas partes” e, nessa mesma linha de pensamento, Tagnin (1988,
p. 44) define como idiomáticas “aquelas expressões que não podem ser
decodificadas literalmente, ou seja, cujo significado é convencionado, não resultando
da somatória do significado de seus elementos”. Em outro trabalho, e com o
objetivo distinguir idiomaticidade de convencionalidade, essa mesma autora afirma que
“uma expressão é idiomática apenas quando seu significado não é transparente, isto é,
quando o significado da expressão toda não corresponde à somatória do significado
de cada um de seus elementos” (Tagnin, 1989, p. 13, sublinhado pela autora) 26.
Por sua parte, Reis (2008, pp. 20-21), acentuando a cristalização como característica
definidora das EI, sublinha que “são expressões fixas, isso quer dizer que são

expressões em francês (França) e 1.459 em português (Brasil). Ver


www.cnrtl.fr/dictionnaires/expressions_idiomatiques/index_pf.php, para a versão em português e
www.cnrtl.fr/dictionnaires/expressions_idiomatiques, para a versão em francês (acesso99
em 4.dez.2009).
25
De acordo com Xatara (1995, p. 196), isso se deve ao fato de que “tendo a língua (langue) permanecido por muito tempo o
objeto da linguística, os idiomatismos foram automaticamente excluídos por pertencerem, a priori, à fala (parole)”. Além disso,
“por muito tempo a semântica e a pragmática foram marginalizadas, ciências essas imprescindíveis para o estudo das [expressões
idiomáticas]”.
26
Para a autora, “toda expressão idiomática é também convencional, mas nem toda expressão convencional é
idiomática. (...) Feliz Natal é convencional, porém não idiomática, pois seu sentido é transparente” (id., ibid.).

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unidades lexicais que não admitem inserção, nem substituição por outros itens
lexicais” e que “uma vez cristalizada, a EI não admite substituição de qualquer de
suas palavras componentes”.
Como se vê, essas definições destacam três traços característicos das EI:
(i) no plano lexical, o fato de constituírem uma unidade estável (fixa, cristalizada),
pela combinação de morfemas/lexemas;
(ii) no plano sintático, o seu caráter indecomponível, aliado ao fato de não
constituírem uma unidade frástica independente;
(iii) no plano semântico, uma significação opaca e que não corresponde à soma dos
significados dos seus elementos constituintes.
A esse conjunto acrescentaremos dois outros traços característicos, apresentados de
modo subjacente nas definições acima:
(iv) no plano pragmático, a relação estreita que entretêm com a situação de
enunciação; e
(v) no plano cultural, a sua fixação e consagração pelo uso, além do fato de
revelarem a visão de mundo própria a uma dada cultura.
E é justamente esse conjunto de cinco traços que Xatara & Oliveira (2002, p. 57)
utilizam para definir expressão idiomática:
toda lexia complexa indecomponível, conotativa e cristalizada em um
idioma pela tradição cultural. Por isso, é uma unidade locucional ou
frasal que constitui uma combinatória fechada, de distribuição única ou
bastante restrita, e, desse modo, seus componentes não podem mais ser
dissociados significando uma outra coisa, ou seja, sua interpretação
semântica não pode ser calculada a partir da soma dos significados
individuais de seus elementos.

Observe-se que é igualmente possível depreender dessa definição que o processo de


cristalização das EI é o fator responsável pela sua estabilidade semântica, a qual, por
sua vez, não somente possibilita a sua transmissão de geração em geração, mas
permite justamente a sua consagração pela tradição cultural.
Tendo em vista as características linguístico-culturais das EI, acima apresentadas, o
seu estudo constitui um problema de grande interesse para a tradução e, mais ainda,
para o seu ensino. São esses os pontos que abordaremos a seguir, começando pelas
questões ligadas à tradução.

A Tradução das EI: Estratégias E Lexicografia


Sendo, como já indicamos, expressões cristalizadas, cujo sentido não é depreensível
da soma dos sentidos dos elementos que as compõem, as EI representam o mais
das vezes um sério problema para o tradutor, sendo, por esta razão, objeto da
atenção de alguns estudiosos da área. Tagnin (1988, p. 44), por exemplo, ao analisar

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os idiomatismos culturais27, afirma que lhe “parece ser consenso que uma tradução
deve perder o mínimo possível de informação do texto original”. Ela propõe, então,
seis estratégias para a tradução dos idiomatismos culturais, indo da tradução literal
ao uso de um “equivalente pragmático” (pp. 44-45, sublinhado pela autora):
1. manter a expressão na forma original;
2. manter a expressão na forma original acrescida de nota
explicativa;
3. traduzir literalmente;
4. traduzir literalmente, acrescentando nota explicativa;
5. explicar a expressão no texto;
6. empregar um equivalente pragmático. (...)
Manter a expressão na forma original significa apenas transcrevê-la, como
no caso de Halloween, por exemplo. O acréscimo, ou não, de uma nota
explicativa dependerá do público a que se destina o texto. (...).
A tradução literal é uma tradução lexical, ou seja, cada item é traduzido
pelo seu equivalente lexical na língua de chegada. Assim, “Labor Day” é
traduzido por “Dia do Trabalho”. No caso de não haver uma
equivalência pragmática, far-se-á uma nota explicativa esclarecendo a
diferença entre as duas culturas.
A explicitação se dá quando, ao invés de se traduzir uma expressão, sua
explicação é incorporada ao texto.
O equivalente pragmático é aquele que é empregado numa mesma situação
em culturas diferentes. Por exemplo, “Muito prazer” é o equivalente
pragmático do inglês “How do you do?”.

Xatara (1998), por sua vez, propõe que a tradução de uma EI inclua, além de uma
definição (uma explicação da sua significação), a recuperação do seu valor
metafórico. Trabalhando nesse sentido, Gonçalves & Sabino (2001, p. 65), propõem
traduções como as exemplificadas abaixo:

(1) Mettere il carro davanti ai buoi Colocar o carro/a carroça na frente dos
bois (equivalente); precipitar-se
(explicação).
(2) Fare il diavolo a quattro Fazer o diabo/fazer o diabo a quatro
(equivalente); fazer grande balbúrdia,
desordem (explicação).

O tratamento lexicográfico das EI consiste num outro domínio para o qual a


questão da sua tradução é de extrema importância. De fato, diferentes questões
colocam-se aos dicionaristas, entre as quais podemos, com Xatara (1995, p. 197),
citar as seguintes:

27
Segundo Tagnin (id., ibid., sublinhado pela autora) “são idiomatismos exatamente por não poderem ser
decodificados literalmente e culturais por transmitirem um dado cultural”

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as EI são grupos de lexias indecomponíveis, salvo numa perspectiva


etimológica ou histórica. Em sincronia, pela análise distribucional ou
funcional, tais grupos formam uma unidade lexical (unidade à qual
corresponde um só significado). Deveriam, portanto, constituir entradas
específicas nos dicionários, o que, infelizmente, não ocorre.
Por outro lado, há outro inconveniente para se localizar num dicionário
uma EI: qual o critério, seguro e único, para distinguir um termo de uma
expressão e não outro como palavra-chave e, então, no verbete referente
a esse termo, encontrar tal idiomatismo?

Uma constatação semelhante é feita por Caramori (2006, pp. 50 e 53):


constatou-se em tais obras, principalmente nas de língua portuguesa,
uma grande irregularidade nos critérios de seleção das expressões.
Câmara Cascudo, por exemplo, inicia o prefácio da 1ª edição de 1970 de
Locuções Tradicionais no Brasil com a seguinte frase: “Todas as locuções
reunidas neste livro foram ouvidas por mim”. Os dicionários bilíngues
de língua geral apresentam as expressões distribuídas de maneira não
uniforme (alguns verbetes apresentam muitas, outros, muito poucas). (...)
[Além disso,] uma breve análise dos dicionários bilíngues mais
prestigiados e utilizados no Brasil comprova como as expressões
possuem, nessas obras tratamento irregular.

Partindo de observações similares, Rodrigues (2009, p. 3) argumenta em favor da


elaboração de dicionários especializados, como meio de “proporcionar ao estudante
o desenvolvimento de competências que, muitas vezes, o próprio dicionário geral
não pode [proporcionar]”.
A resposta a essas questões é dada por Xatara (2001, p. 2), ao decidir utilizar, no seu
Dicionário de expressões idiomáticas francês-português/português-francês uma
classificação alfabético-semasiológica das EIs, desconsiderando a
classificação que repousa na noção de palavra-chave, para que o usuário
não tenha que adivinhar ou se prender à lógica do dicionarista, o qual
pode atribuir à palavra-chave o componente mais raro ou menos
frequente ou determiná-la segundo uma hierarquia de categorias
gramaticais (primeiramente o substantivo, depois o adjetivo, o advérbio e
o verbo).

Embora tais questões sejam extremamente interessantes e relevantes, não


estenderemos aqui nossos comentários sobre o tratamento das expressões
idiomáticas pela lexicografia, na medida em que o aprofundamento dessa
problemática foge ao escopo deste trabalho. Consideramos importante assinalar,
todavia, que a quase inexistência e/ou a insuficiência de dicionários especializados28

28
Exceção feita, evidentemente, do Dictionnaire de Xatara, que, como indicado, contempla unicamente o Português
do Brasil e o Francês da França.

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– sejam unilíngues, bilíngues, ou multilíngues –, aliadas ao tratamento geralmente


precário da questão pelos dicionários gerais, incitam o tradutor a lançar mão de
estratégias como as sugeridas por Tagnin, baseado no seu conhecimento das línguas
e das culturas de partida e de chegada e na sua intimidade com elas (ver mais
adiante). É por esta razão que, no que segue, trataremos mais especificamente de
questões relacionadas ao ensino.

O Lugar das EI no Ensino de Línguas


Como se poderia esperar, é possível observar que o ensino do léxico em geral – e
das EI em particular – acompanhou e refletiu a evolução das concepções teóricas
sobre o ensino de línguas e, mais especificamente, sobre o ensino de línguas
estrangeiras, os progressos da linguística geral, da psicolinguística e da
sociolinguística tendo uma repercussão bastante tênue e lenta sobre os métodos e
concepções de ensino. Sendo assim, para os primeiros métodos de ensino de língua
(materna ou estrangeira), que adotavam uma perspectiva eminentemente normativa,
as EI não constituíam um objeto de atenção, na medida em que, como indicado
acima, eram consideradas fenômenos marginais, pertencentes à fala (parole), e na
medida em que, ao mesmo tempo, os fatos semânticos, discursivos e pragmáticos se
encontravam igualmente marginalizados. Como se sabe, o ensino e a aprendizagem
das línguas privilegiavam o estudo dos clássicos literários.
A partir dos anos 40 e até os anos 60, prevalecem as concepções behavioristas: os
métodos de ensino são, portanto, predominantemente (i) comportamentalistas, do
ponto de vista psicológico; (ii) audiolinguais, do ponto de vista pedagógico; e (iii)
estruturalistas, do ponto de vista linguístico. É nesse contexto que os computadores
e os laboratórios de línguas são introduzidos como instrumentos de
ensino/aprendizagem, tendo o seu uso orientado pela repetição, imitação e
aquisição de hábitos desejáveis. Também nessa concepção de ensino de línguas não
há muito espaço para o tratamento das EI, uma vez que o processo de
ensino/aprendizagem é tratado a partir de uma perspectiva mecanicista e
comportamental.
Os anos 70-80 vêem a prevalência da abordagem comunicativa, isto é, a linguagem
passa a ser vista como um instrumento de comunicação. Embora nessa abordagem
do ensino/aprendizagem de línguas os conteúdos programáticos se baseiem numa
concepção nocional-funcional, e o próprio processo de ensino/aprendizagem seja
visto de maneira mentalista-cognitivista,
a competência estratégica dos falantes-ouvintes continua tropeçando
num dogmatismo doutrinário que deixa várias lacunas no ensino do
léxico.
São problemas fundamentais, relativos à compatibilização da visão de
língua (a ser ensinada/aprendida) como discurso, à seleção do material
lexical pertencente a cada fase de aquisição dessa língua, e aos meios

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adequados para permitir aos alunos a interiorização das coerções


semântico-sintáticas em língua e em discurso. Dentre esses problemas,
aparece a questão dos idiomatismos (Xatara, 1995, p. 199).

Apesar de o estudo da semântica ter deixado de ocupar a posição secundária que até
então ocupava, este ainda não é o caso do estudo das EI, mesmo se este constitui
uma das maiores dificuldades no domínio de uma língua estrangeira, por ser o meio
pelo qual se tem acesso à visão de mundo própria a cada cultura: é por essa razão
que as EI levam mais tempo a ser adquiridas do que o restante do léxico.
Lembremos, ainda, que, para dominar as EI, um aprendiz deve “memorizar um
grande repertório de formas cristalizadas, conhecer o seu significado metafórico e
saber adequá-las a contextos específicos” (id., ibid.).
A abordagem comunicativa do ensino de línguas deu origem à concepção
interacionista, segundo a qual as bases da aprendizagem de uma língua são a
interação com outros falantes e a negociação dos significados em situações reais de
comunicação. Na abordagem interacionista, o erro deixa de ser visto como um
empecilho a ser evitado a todo custo, passando a ser concebido como parte
integrante e essencial da aprendizagem. Podemos notar, a partir daí, uma mudança
de paradigma no ensino/aprendizagem de línguas, pois o seu objetivo passa a ser a
aquisição da competência interativa, isto é, da capacidade de utilizar a língua de maneira
autônoma e apropriada às diferentes situações de interação, com falantes reais. Do
nosso ponto de vista, essa é a perspectiva que permite o tratamento adequado das
EI no ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras.
Antes, no entanto, de apresentar a nossa proposta de tratamento das EI no
ensino/aprendizagem da tradução, faremos um exame da proposta de análise e
classificação dessas expressões de Gonçalves & Sabino (2001), que utilizam uma
perspectiva contrastiva português-italiano.

A Proposta de Gonçalves & Sabino (2001)


Ao tratar das EI em português e em italiano, Gonçalves & Sabino (2001, pp. 68-73)
propõem que sejam classificadas com base nos critérios de identidade, semelhança e
diferença29 dos signos motivadores das metáforas, o que resulta em quatro grandes
grupos, como resumido e exemplificado na Tabela 1, a seguir:

29
Para tanto, baseiam-se nos critérios propostos por Steinberg (1985) para os provérbios.

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EI cujos signos motivadores EI cujos signos motivadores EI cujos signos motivadores


das metáforas são idênticos das metáforas são das metáforas são diferentes
semelhantes
30
EI morfossintaticamente idênticas

Mostrate i denti Mangiare quanto un grillo Prendere fischi per fiaschi

↓ ↓ ↓

Mostrar os dentes Comer como um passarinho Confundir alhos com bugalhos


31
EI morfossintaticamente semelhantes

Non aprir becco Esserci quattro gatti Imbarcare in un brutto affare

↓ ↓ ↓

Não abrir o bico Ter meia dúzia de gatos Entrar/embarcar num (a)
pingados barco/ canoa furado (a)
32
EI morfossintaticamente diferentes

Far rizzare i capelli Giocare a carte scoperte Fare l’indiano

↓ ↓ ↓

Deixar o cabelo em pé/ Pôr as cartas na mesa Dar uma de João-sem-braço

Ficar com o cabelo em pé

EI sem um equivalente preciso na língua de chegada

TABELA 1: CLASSIFICAÇÃO DAS EI SEGUNDO GONÇALVES & SABINO (2001)

Embora interessante, essa proposta apresenta pelo menos dois inconvenientes. O


primeiro deles é a não definição do conceito de signo motivador da metáfora e a não
definição de critérios seguros para a sua determinação. Por exemplo, voltando aos
exemplos da Tabela 1, podemos perguntar-nos por que o par Giocare a carte
scoperte/Pôr as cartas na mesa pertence à segunda categoria (“EI cujos signos
motivadores das metáforas são semelhantes”) e não à primeira (“EI cujos signos
motivadores das metáforas são idênticos”). Dito de outro modo: qual é “signo
motivador da metáfora” escolhido pelas autoras, e que critérios determinam essa
escolha? As mesmas perguntas podem ser feitas com relação ao par Mangiare quanto

30
“Aquelas que possuem morfologia e sintaxe idêntica em ambas as línguas” (op. cit., p. 68).
31
“Aquelas que possuem morfologia e sintaxe parecidas (semelhantes) em ambas as línguas” (op. cit., p. 70).
32
“Aquelas que possuem morfologia e sintaxe diferentes, em ambas as línguas” (op. cit., p. 71).

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un grillo/Comer como um passarinho: tendo em vista a sua classificação na segunda


categoria, podemos deduzir que o “signo motivador da metáfora” é o substantivo
(grillo/passarinho). Mas por que razão não poderia ser o verbo (mangiare/comer)? Se
fosse o caso, essa EI seria classificada como pertencente à primeira categoria. O
problema da utilização desse tipo de critério, portanto, é que ele deixa margem a
dúvidas que não podem ser resolvidas, bem como a interpretações sobre as quais
não se pode afirmar com segurança que são corretas. Nesse sentido, o conceito de
signo motivador da metáfora parece ser bastante semelhante à noção (utilizada por
muitos autores) de palavra-chave, noção esta que provoca os problemas apontados
por Xatara (2001, p. 2) com relação à inclusão das EI em dicionários:
Por exemplo, para localizarmos laisser passer l’eau sous le pont (deixar correr
o marfim), poderíamos procurá-la sob a entrada de um substantivo (eau
ou pont?) ou sob a entrada do componente de menor frequência (seria
sous?). Mas qual consideração impõe ao lexicógrafo a escolha segura
dessa ou daquela palavra-chave?

O segundo inconveniente da proposta de Gonçalves & Sabino está relacionado à


própria ideia de utilizar critérios morfossintáticos para a classificação das EI: não
somente esses critérios levam a uma descrição pouco elegante, já que extremamente
extensa e “pesada”, mas, principalmente, essa classificação não nos ensina muita
coisa a respeito da correspondência ou não das EI entre as duas línguas – embora o
critério semântico-discursivo esteja subjacente à noção de signo motivador da metáfora e
à noção de equivalência, que se mostra, afinal, ser o critério utilizado para os
agrupamentos propostos (veja-se o quarto grupo: “EI sem equivalente”).
No entanto, a eleição do critério morfossintático como determinante para a
categorização proposta leva as autoras a examinar minúcias que não são úteis nem à
descrição nem à aprendizagem das EI nas línguas estudadas. Isso fica mais claro
quando da análise das EI semelhantes e das EI diferentes do ponto de vista
morfossintático, que resumimos na Tabela 233:
EI morfossintaticamente semelhantes

EI cujos signos motivadores são idênticos

Far venire - l’ acqua/acquolina in bocca

Dar - - - água na boca

Fazer ficar com - água na boca

EI cujos signos motivadores são semelhantes

33
Exemplos extraídos das pp. 70-73.

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Dare/fare una lavata di capo/testa a qualcuno

Dar uma lavada - - em alguém

Passar um sabão - - em alguém

EI cujos signos motivadores são diferentes

Essere fatto con l’ accetta

Ser feito com - cuspe

EI morfossintaticamente diferentes

EI cujos signos motivadores são idênticos

Non torcere - un - capello a qualcuno

Não tocar em um fio de cabelo de alguém

EI cujos signos motivadores são semelhantes

Avere la bocca che puzza di latte

Estar (ainda) - - - cheirando a leite

EI cujos signos motivadores são diferentes

Essere come mamma l’ ha fatto

Estar como veio ao mundo

Estar como nasceu

TABELA 2: ANÁLISE DAS EI MORFOSSINTATICAMENTE SEMELHANTES E MORFOSSINTATICAMENTE DIFERENTES


SEGUNDO GONÇALVES & SABINO (2001)

Indo um pouco mais longe, podemos dizer que a escolha do critério morfossintático
para a descrição e a análise das EI provoca efeitos indesejáveis, na medida em que
dá a entender que categorias gramaticais diferentes são comparáveis ou equivalentes.
Observe-se, para tanto, o par Essere come mamma l’ha fatto/Estar como veio ao
mundo/nasceu, além do par abaixo (op. cit., p. 73):
(3)

Sapere qualcosa come l’ avemaria

Saber algo de cor e salteado

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De modo semelhante, esse tipo de critério não permite observar – em todo o caso,
as autoras não chamam a atenção para – o fato de que, em certos casos, o que se
tem é uma simples troca de posição dos constituintes, como exemplificado pelo par
abaixo (idem, p. 71):
(4)

Mettere fuori le unghie - -

Pôr - as garras de fora

De acordo com as autoras,


obviamente não estamos pensando, e muito menos sugerindo, que [estas
quatro relações possíveis, presentes na análise contrastiva das expressões]
fossem fielmente memorizadas pelos aprendizes e, depois, rigorosamente
acionadas pela memória de cada um, na tentativa de encaixar, cada
expressão, em uma das relações apontadas. Se fosse assim, essa
estratégia, ao invés de simplificar a difícil tarefa daqueles que almejam
obter o domínio das expressões idiomáticas, acabaria, indubitavelmente,
tornando-a muito mais árdua e penosa.
Assim sendo, o objetivo desta análise contrastiva foi alertar o aprendiz
sobre as igualdades, semelhanças, diferenças e falta de equivalência
entre unidades lexicais (simples ou) complexas de duas (ou mais) línguas,
de modo que, de posse desses instrumentos e baseado em suas
experiências de aprender, o aprendiz consiga se valer de estratégias
próprias que possam minimizar seus esforços, quando sua meta é obter o
domínio das expressões idiomáticas da língua estrangeira (op. cit., p. 74,
sublinhado pelas autoras).

No entanto, a sua análise, assim como a sua proposta de classificação, constitui, na


realidade, uma demonstração de que tratamento das EI por qualquer método que as
decomponha é um equívoco, já que se trata, por definição, de expressões indecomponíveis
e cristalizadas – como, aliás, as próprias autoras indicam na introdução do seu
trabalho (p. 62). É por essa razão que apresentaremos, a seguir, uma proposta de
classificação das EI que se concentra nas suas condições de utilização,
considerando-as na sua globalidade.

EI, Tradução e Ensino: Nosso Ponto de Vista


Partindo do princípio de que o trabalho com as EI deve privilegiar, por um lado, os
seus aspectos semânticos, pragmáticos e discursivos e, por outro, o ponto de vista
do aprendiz, sugerimos que sejam sistematicamente postas em relação com as suas
situações e condições de uso. Em outros termos, a pergunta a fazer não é tanto “o
que significa a EI x?” ou “como se constitui a EI x?”, mas, antes, “em que situações
se utiliza a EI x?”.

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Evidentemente, também é importante levar em consideração a modalidade


oral/escrita da língua, o registro, formal ou informal (assim como as diferentes
combinações possíveis entre modalidade e registro), além, no caso da língua
portuguesa, da variante, europeia ou brasileira34 – quer o português seja a língua de
partida, quer seja a língua de chegada.
Com relação aos fatores modalidade e registro, cumpre observar, com Xatara (1995,
p. 195), que as EI “fazem parte da linguagem comum de registro informal” e que
elas
[se] encontram, em sua grande maioria, no nível coloquial (linguagem
informal, que usa palavras novas, imagens pitorescas, sentidas como
“anormalidades”, sem que a frequência de seus desvios constitua uma
deformação que torne “inaceitáveis” as mensagens dadas (…)
(XATARA, 2001, p. 2).

Evidentemente, na medida em que os dois fatores em questão constituem contínuos e


não domínios estanques, não se trata de classificar de maneira definitiva as EI, mas
de indicar a sua esfera de atuação ou as suas tendências de utilização. Assim,
podemos fazer observar, com relação à modalidade da língua e ao registro 35, (i) que
algumas são mais utilizadas em discursos orais informais – como, por exemplo, estar
num mato sem cachorro ou avoir la dalle36 –, ao passo que (ii) outras podem ser neutras
ou não marcadas – como ser cabeça-de-vento ou donner un coup de main37 –, (iii) outras,
ainda, podendo pertencer a um registro vulgar ou chulo – como ter fogo no rabo ou
péter plus haut que son cul38 –, e que (iv) algumas poucas – como virar a casaca/tourner
casaque ou prometer mundos e fundos/promettre monts et merveilles – podem ser utilizadas
em discursos escritos formais. Com esses elementos em mãos, propomos que as EI
sejam classificadas em quatro tipos:

34
O fato de mencionarmos unicamente as variantes europeia e brasileira do português não significa que sugerimos
que as demais variantes sejam ignoradas. Evidentemente, na medida em que o professor domine outras variantes
do português, esse conhecimento somente poderá enriquecer o trabalho com os alunos.
35
A utilização da língua francesa a par da portuguesa, nos nossos exemplos, deve-se ao fato de a primeira ser a
língua do país no qual trabalhamos e que utilizamos, portanto, quando se trata de comparar/contrastar estruturas
com os nossos alunos.
36
“Morrer de fome”.
37
“Dar uma mãozinha”.
38
Literalmente, “peidar mais alto do que o [seu] cu”, isto é, “ser arrogante”.

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(i) EI “idênticas”, isto é, aquelas que têm mesma forma, mesmo sentido e, principalmente, mesmo uso
(são utilizadas nas mesmas situações):
39
(5) Quand les poules auront des dents ↔ Quando as galinhas tiverem dentes (PT)
(6) Ser um homem feito ↔ Être un homme fait
(7) Passar um sabão ↔ Passer un savon
(8) Envoyer promener ↔ Mandar passear
(9) Fourrer son nez ↔ Meter o nariz
(10) La main droite ne sait pas ce que fait la main gauche ↔ A mão direita não sabe o que a
mão esquerda faz (BR)
(ii) EI “parafraseáveis”, isto é, diferentes quanto à forma, mas com mesmo sentido e, principalmente,
mesmo uso (utilizadas nas mesmas situações):
(11) Château(x) en Espagne ↔ Castelo(s) no ar
(12) Bater as botas/Esticar as canelas ↔ Passer l’arme à gauche/Casser sa pipe
40
(13) Sant(inh)a do pau oco ↔ Sainte-nitouche
(14) Sair de fininho ↔ Filer à l’anglaise
(15) Abrir o jogo ↔ Jouer cartes sur table
(16) Quand les poules auront des dents ↔ No dia de São Nunca
(17) Mettre son grain de sel ↔ Meter o nariz
(18) Comer o pão que o diabo amassou → Manger de la vache enragée
(iii) EI “reconhecíveis”, isto é, que não têm um correspondente exato ou idêntico na outra língua, mas cujo
41
sentido pode ser recuperado quando traduzidas ou adaptadas :
(19) Meter a colher → Mettre sa petite cuillère (cp. Mettre son grain de sel)
42
(20) Jogar merda no ventilador → Foutre la merde au ventilo (cp. Foutre la merde)
(21) La main droite ne sait pas ce que fait la main gauche → A mão direita não sabe o que faz
a mão esquerda (PT)
(22) Filer un mauvais coton → Fiar um algodão ruim
(23) Ter pavio curto → Avoir la mèche courte (cp. Partir au quart de tour)
(iv) EI “intradutíveis”, isto é, que necessitam uma explicação ou explicitação:

39
Nos exemplos, PT: norma portuguesa; BR: norma brasileira.
40
Note-se que a expressão francesa tem uma conotação eminentemente sexual, ao passo que a EI em língua
portuguesa pode ser utilizada em contextos em que essa conotação não está presente (indicando somente uma
atitude/um comportamento considerado hipócrita). Mais precisamente, quando utilizada no masculino e sem o
diminuitivo (santo do pau oco), essa EI não apresenta conotações sexuais – que só aparecem, portanto, quando
utilizada no feminino, o diminutivo parecendo reforçar essa conotação ou trazer uma nuance pejorativa. No
entanto, mesmo no feminino acompanhado do diminutivo, a EI em questão pode ser utilizada sem conotações
sexuais: é o contexto mais amplo em que é utilizada, portanto, que permitirá decidir o valor a ser atribuído a
sant(inh)a do pau oco.
41
Observe-se que algumas dessas EI poderiam ser incluídas na classe das “parafraseáveis”.
42
Ventilo é a forma familiar do termo ventilateur (“ventilador”).

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(24) Pôr uma pá de cal (BR) → Mettre une fin définitive


(25) Long comme un jour sans pain → Extremamente demorado
(26) Couler de source → Ocorrer naturalmente/logicamente
(27) Tirar o caval(inh)o da chuva → Abandonner ses illusions
(28) Broyer du noir → Ter pensamentos sombrios

Essa classificação das EI, feita principalmente em função das suas condições de
utilização, permite pensar numa metodologia de ensino da sua tradução em quatro
etapas: em primeiro lugar, é possível trabalhar, desde os níveis iniciais (A1-A2 do
QECR43, por exemplo), as EI “idênticas” (aquelas que têm uma correspondência
exata). Como observa Xatara (1995, p. 199), “ao menos em relação às línguas
europeias, muitas EI se traduzem literalmente com o mesmo significado”. Em
segundo lugar, nos níveis “intermediários inferiores” (A2-B1 do QECR), é possível
trabalhar as EI “parafraseáveis” (aquelas que compartilham as condições de uso).
Em terceiro lugar, é possível trabalhar, nos níveis “intermediários superiores” (B1-
C1 do QECR), as EI “recuperáveis” (aquelas que podem ser traduzidas ou
adaptadas), deixando para os últimos níveis (C1-C2 do QECR) o trabalho com as EI
“intradutíveis” (aquelas que não têm correspondência). Cumpre observar que, a
partir do segundo tipo (EI “parafraseáveis”), o professor começará a trabalhar sobre
a utilização de estratégias de tradução, trabalho este que se acentuará à medida que
aumentem o domínio e a autonomia da língua de chegada pelos alunos.

Considerações Finais
Como vimos, o estudo contrastivo das EI, fundamental para o ensino da tradução,
deve pautar-se pelo estudo das suas condições de utilização nas línguas estudadas.
Em outros termos, professores e alunos têm muito mais a ganhar ao dirigir o foco
da sua atenção às situações que podem desencadear o emprego de uma EI do que ao
estudar os seus constituintes. Evidentemente, um estudo morfossintático das EI é
sempre possível, mas somente na medida em que permita observar que a
morfossintaxe das EI não é diferente da morfossintaxe das formas livres.
No que diz respeito à sua aquisição, chamamos a atenção, com Fillmore (1979), para
o fato de que esta se dá pela sua associação com as situações em que o seu uso é
adequado, o que significa que, para a produção e a compreensão dessas expressões,
embora necessária, a vinculação do léxico com a gramática – procedimento no qual
se baseia mais comumente o ensino de línguas – não é suficiente, pois a sua
interpretação, assim como o conhecimento do seu funcionamento e das suas
funções “não são previsíveis por pessoas que apenas conhecem a gramática e o
vocabulário de uma língua” (Xatara, 1995, p. 201). Como dissemos, o ensino da

43
Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas. Ver Alves (2001).

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tradução das EI deve privilegiar (i) o ponto de vista do aprendiz e (ii) os aspectos
semânticos, pragmáticos e discursivos envolvidos no seu uso.
Evidentemente, embora o tratamento dessas expressões pelos dicionários –
especializados ou gerais – ainda seja precário, não propomos que sejam
abandonados. Como sublinha Reis (2008, p. 29), “os dicionários bilíngues trazem
uma enumeração de equivalências que muitas vezes não satisfazem o consulente,
principalmente na sua atividade de produção ou tradução. Isso se deve ao fato de
que os equivalentes são dispostos fora de seus contextos de uso”. No entanto, como
essa mesma autora argumenta, “é impossível encontrar todas as traduções de todos
os itens lexicais apropriados a determinado contexto de uso indicadas nos
dicionários” (id., ibid.). Esta é mais uma razão para advogarmos em favor de um
ensino que auxilie o aprendiz a se tornar um utilizador autônomo: pela percepção
da correspondência entre as situações de enunciação, muito mais do que pela
focalização da sua atenção nos elementos constituintes das EI.
Ao apresentar um sistema automático de ajuda à tradução, Wehrli (2004, p. 8, nossa
tradução) sublinha a importância da “capacidade de reconhecer que um termo (...)
pertence a uma expressão cristalizada ou a uma colocação, independentemente da
ordem relativa ou da distância dos constituintes da expressão”: desenvolver a
autonomia dos alunos, futuros tradutores, significa, entre outras coisas, desenvolver
justamente essa mesma capacidade.
Para concluir, cabe observar que a metodologia de ensino que preconizamos para as
EI também pode ser empregada no trabalho com os provérbios, uma vez que estes
também constituem um conjunto de formas (semi)cristalizadas – pelo menos do
ponto de vista sincrônico – e que pertencem a um fundo cultural compartilhado
pela comunidade dos falantes de uma dada língua (cf. Rocha, 1995). Cabe ressaltar,
no entanto, como indica Caramori (2006, p. 49), que, diferentemente das EI, os
provérbios têm “autonomia frástica completa”.
Mas este é um tema para um outro trabalho.

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XATARA, C. M. & OLIVEIRA, W. L. de (2002). Provérbios, idiomatismos e palavrões francês-
português e português-francês. São Paulo: Cultura Editores Associados.

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Caderno Seminal

MANUAL DE PLE/PL2: DIÁLOGO EM PERSPECTIVA


MANUAL PLE/PL2: DIALOGUE IN PERSPECTIVE

Maria D´Ajuda Alomba Ribeiro44

Resumo
O objetivo deste trabalho é apresentar algumas dificuldades encontradas pelos alunos na
aprendizagem de língua portuguesa como língua estrangeira (doravante PLE), partindo da ideia de
que os alunos possuem algumas crenças quanto ao processo de ensino/aprendizagem. Os alunos
acreditam no manual didático utilizado pelo professor, como ferramenta norteadora que ajuda
expor os conteúdos e outras técnicas nas aulas. Dentre essas estratégias metodológicas podemos
destacar: música, filmes, diálogos, representação da realidade, entre outros. Com essa diversidade
os alunos se sentirão mais motivados e aprendizagem poderá ter mais resultados.
Palavras chave: Ensino de línguas. Manual. TICs

Abstract
This paper aims at presenting some difficulties found by the students in the learning of
portuguese as a foreign language (henceforth PFL), from the conception that the students have
some beliefs about the process of teaching/learning. The students believe in the teaching
manual used by the teacher, as a guidance tool which helps on showing the contents and other
techniques in the classes. Among these methodological strategies we can highlight: music,
movies, dialogs, representation of the reality, and so on. With that diversity the students will feel
more motivated and the learning will be able to be successful.

Keywords: Language teaching. Manual. TICs.

Introdução
Atualmente, temos no Brasil muitas universidades que trabalham o ensino de PLE e
fazem convênio com universidades estrangeiras, estimulando os intercâmbios para a
ampliação do quadro de falantes da língua portuguesa e conhecedores da língua
portuguesa e cultura brasileira. Contudo, a busca por materiais eficientes no ensino
de PLE nos remete a um problema que decorre desde os primórdios dessa prática
de ensino no Brasil. Os primeiros manuais que foram elaborados para o ensino de
PLE mostram uma visão diferenciada do ensino de uma língua estrangeira que se
tem atualmente. O primeiro manual didático do ensino de PLE no Brasil, segundo
Pacheco (2006, p. 72) foi criado em 1957, “advindo do empreendedorismo de
professores e de linguistas”.
Nesse período, os materiais e métodos eram muito diferentes dos que se têm hoje,
pois o ensino de PLE ainda não tinha formulação de ensino de uma língua

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estrangeira, nesse momento e porque não dizer até hoje em alguns cursos, o ensino
de PLE é ensinado da mesma maneira que se ensina o Português como Língua
materna. Entre as décadas de 70 e 80 o ensino de uma língua estrangeira era baseado
na repetição de diálogos que aproximariam os falantes estrangeiros da língua em
estudo.
A discussão acerca do manual para falantes de outras línguas tem se mostrado mais
recorrente, à medida que são dotados novos olhares, mais diversificados e outra
forma de representação que buscaram incorporar questões voltadas para novas
reflexões pedagógicas. Essa perspectiva enfatiza a importância de observar o manual
didático mais recente levando em consideração o aluno como sujeito no processo
ensino-aprendizagem.
Assim, pensar em uma abordagem feita nos manuais, de modo geral, torna-se
insuficiente, uma vez que esse é o único material de que dispõe o professor na sala
de aula. Todavia, grande parte do conteúdo proposto para o ensino de PLE/PL2
ainda segue a orientação tradicional, voltando-se para estruturas gramaticais e
vocabulário e sem haver uma preocupação com as necessidades que levaram o
indivíduo a querer aprender outra língua.
Como analisam Abrahão e Barcelos (2006), o ensino é uma atividade pessoal e
coletiva, pois cada professor possui diferentes crenças, e agem de acordo com elas.
A partir do momento em que passam a acreditar em determinadas coisas,
automaticamente agirá de forma com o que acredita. Sendo assim, deve ser crítico o
suficiente para observar se essa crença é adequada, para o ensino de seus alunos, e
nem sempre uma boa técnica de ensino é a melhor para o processo de
aprendizagem.
Pensando de outra forma, o manual deve servir não só de apoio, mas como veículo
de uma abordagem produtiva permeando o implícito cultural entre os discursos e as
várias linguagens. Dessa maneira, muito bem salienta O’ Neill (Apud MORITA,
1990) quando corrobora em dizer que nenhum livro é tão hermético que não
permita que o professor faça suas adaptações e crie alternativas para outras
atividades necessárias. Por outro lado, o manual alivia a tarefa planejada pelo
professor de PLE/PL2, pois os que são apresentados implicitamente têm noção de
pressupostos teóricos sobre língua, linguagem, ensinar e aprender uma língua
estrangeira.
Nessa ótica, a depender dos motivos que levaram o aluno a optar por aprender
aquela língua estrangeira, o professor será guiado a instrumentalizar uma
metodologia voltada para o aluno-alvo, como também, entender a relação da prática,
da intencionalidade do sujeito e do que se pode falar a depender de com que se fala
(RODRIGUES, 2005).

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As novas tecnologias e ensino de línguas: o manual em questão


O manual é fundamental no processo de ensino/aprendizagem de uma língua
estrangeira. Manual, do latim manus, significa algo que se pode manusear. Como se
refere Tormenta (Apud TAVARES, 2008, p. 09), “se considerarmos a etimologia da
palavra, verificamos tratar-se de algo que pode ser manuseável facilmente”.
Podemos considerar o manual como um material com uma estrutura definida e com
objetivo de dar eficácia ao processo de ensino-aprendizagem. Segundo Choppin
(Apud TAVARES, 2008, p.09), os manuais são os transmissores do saber de uma
disciplina, veiculando um programa previamente estabelecido e com uma progressão
bem definida.
Com o advento das tecnologias vivemos a uma verdadeira explosão de suportes de
ensino informatizados que achávamos que o manual seria indispensável, é ao
contrário, o manual continua sendo o suporte de aprendizagem mais utilizado, esse
resiste a todas as inovações tecnológicas que estão aparecendo. O mercado de
trabalho exige do indivíduo o mínimo de conhecimento no requisito informática,
ligar e desligar um computador, saber reconhecer as mídias digitais, ou seja, ter
domínio sobre a máquina. Não distante do tempo presente, o sujeito histórico por
vezes fora dominado por ideologias disseminadas em seu contexto social.
Atualmente, esse mesmo sujeito se vê dominado por um avanço tecnológico. Não
descartamos a hipótese de que o manual em certos casos utiliza dessas novas
tecnologias para manter-se no auge da modernidade, fazendo-se acompanhar de
outros suportes, sejam informatizados, áudio ou vídeo. (FUENTE Apud
TAVARES).
Nesse novo momento histórico-social, o espaço escolar não deve e, nem mesmo,
pode estar distante de tais mudanças. A aproximação com as tecnologias reforça a
garantia de uma qualidade educacional mais interativa. A escola tem por necessidade
integrar o uso das TICs a esse novo momento de inovação social, que requer uma
efetiva mudança ligada à construção do processo/aprendizagem.
A natureza de incorporação às mídias digitais de linguagens e meios
convencionais de comunicação (áudio, vídeo, animação, material
impresso...), de uso consolidado antes do advento e da disseminação dos
computadores, evidencia a necessidade de um planejamento que
considere as características específicas de suas linguagens e
potencialidades tecnológicas, propiciando a criação de uma sinergia para
a concepção e realização de ações educacionais inovadoras (SCHÖN
1997, p. 87).

Nesse panorama, o professor/mediador que usa as TICs tende a fomentar práticas


pedagógicas mais acessíveis, partindo de aulas mais interativas. Porém essa inovação
nem sempre é favorável para o processo. O professor que está habituado aos
manuais que muitas deles são atividades meramente reprodutoras de práticas
engessadas, permeadas pelo medo de reconfigurar a própria prática e se aventurar

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em um universo desconhecido, sem, por vezes, favorecer o desempenho de atitudes


motivacionais. E isso muitas vezes é perceptível não só nos manuais de português
como língua estrangeira, como também nos manuais de língua materna.
Assim, os vários setores sociais têm buscado se adaptar às mudanças pelas quais
passam o mundo contemporâneo. E nesse momento, emerge o processo de
construção identitária em interface com as novas tecnologias, “recontextualizando o
papel político da escola (...) numa perspectiva de construção do conhecimento de
forma dialética e multidimensional” (MOTA, 2004, p. 41). Dessa forma, com as
mudanças paradigmáticas, todo o sujeito passa pelo caminho da assimilação e
acomodação desta nova experiência, a qual permeia a descoberta dos novos
modelos e consequentemente os manuais, sobretudo de PLE/PL2. É refletindo
sobre essas mudanças que o professor assegura o direito de línguas de desenvolver o
mais possível sua capacidade criativa (GOMES DE MATOS, 1994).
Entretanto, para muitos professores é mais fácil usar o manual impresso. As TICs
são vistas como instrumentos irrelevantes, porque o uso destes recursos pode causar
certo desconforto advindo do medo, sobretudo no que concerne à substituição do
professor por uma “máquina”. Ressaltamos que de forma alguma as TICs vão tirar
o valor dos meios tradicionais. (HUOT, 1989, p.14). Mesmo com toda essa
tecnologia não se pode imaginar um aluno sem manuais. Esses devem ser
produzidos e usados de forma criativa, coerente e coesa com a realidade de cada
região.

A interface do manual no ensino de PLE


No percurso dos tempos verifica-se que o manual não se limita à sua função de
meio facilitador de transmissão de conhecimentos dentro do âmbito científico. O
manual pode refletir um sistema político ao “veicular a ideologia dominante”
(BRITO Apud TAVARES, 2008: 09), uma visão do mundo e da sociedade, uma
situação econômica, refletindo a realidade da época. Para tanto, os manuais têm que
dar respostas a outras necessidades. Não devemos pensar como um mero
transmissor de conhecimento e sim com o objetivo de desenvolver capacidades e
competências. A garantia do manual visa um maior sucesso do processo de
ensino/aprendizagem, de modo que não podemos deixar de lado alguma reflexão
sobre os diferentes tipos de manuais, as suas funções e o papel num processo de
interação e interlocução do português como língua estrangeira.
Cunningsworth (Apud RAMOS & ROSELLI, 2008) defendem que o material bom é
aquele que pode ser usado com a classe toda, com pequenos grupos e também
individualmente, pois os alunos precisam ser atendidos tanto como indivíduos
quanto como membros de um grupo. Sendo assim, a sala deve privilegiar momentos
de aprendizagem individual e outros grupos. Isso porque em alguns momentos em
as explicações e os atendimentos podem ser generalizados, e outros estritamente
individualmente, e outras de preferência em pares ou em grupos. E por essa razão,

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que o professor ao usar o manual tem de estar atento a essas idiossincrasias da aula
de PLE.
O autor ressalta a importância do curso, as necessidades e as expectativas devem ser
bem definidas, levando em consideração a idade e a língua materna do aluno.
Na concepção desse autor, ao escolher o manual em relação ao conteúdo linguístico,
devemos examiná-lo acerca do tema. Os temas têm relevância e significação para
um aprendiz privilegiando o seu crescimento intelectual. Almeida Filho (1992)
discute a importância em atender as fantasias do aprendiz. Para isso o material deve
tratar de assuntos que os estimulam e interage com sua vida.
Outro elemento importante é a função. Muitos livros não conseguem desvincular as
funções da gradação gramatical, esquecendo-se de que na comunicação real as
necessidades são outras. Contudo, não devemos esquecer os aspectos linguísticos
servem para a compreensão, discussão e relatos orais e escritos e como estes se
sistematizam. As habilidades linguísticas devem ser analisadas se estão de acordo
com os objetivos do curso e determinar se alguma habilidade deva ser privilegiada
em detrimento de outra. Claro é que essas divisões são contempladas pelas questões
pedagógicas. Entretanto, precisamos esclarecer que as atividades comunicativas que
envolvem mais de uma habilidade devem receber uma atenção especial, pois a
comunicação na vida real é feita utilizando-se de varias habilidades simultaneamente.
É importante que a sala de aula, na medida do possível, enfatize atividades que
interagem diversas habilidades simultaneamente e não as trabalhe isoladamente.
Vários estudos têm-nos demonstrado que as quatro habilidades linguísticas não
precisam ser ensinadas linearmente e tampouco se desenvolvem de maneira
homogênea.

Analisar o manual ou buscar alternativa para mudança?


Há várias formas de abordar a avaliação do manual didático, Cunningsworth (Apud
MORITA, 1998) ressalta que a melhor forma de analisar o manual é folhear e
formar ideia geral das possibilidades, ou seja, observar os pontos fortes e fracos e,
ao mesmo tempo, perceber características que se sobressaiam. Na concepção desse
autor, essa é a prova mais coerente usada pelos professores quando se defrontam
com novos manuais e a única que governa a escolha dos livros a serem usados em
sala de aula. Outra forma de avaliação seria o que ele chama de avaliação em
profundidade, ou seja, aquela que além de permitir ver o que é óbvio em um livro
didático possibilita verificar, como item específico é trabalhado, em especial, aqueles
que se relacionam às necessidades dos alunos, como diferentes aspectos da
linguagem são trabalhados.
Contudo, ao analisar o manual devemos observar alguns critérios, primeiro deve-se
observar se o público-alvo condiz com o material apresentado. Nesse item deve-se

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considerar: faixa etária, sexo, conhecimento de língua estrangeira e nível de


formação.
Em segundo lugar, é preciso observar os objetivos que estão propostos no livro e se
esses são alcançáveis ao longo das unidades do manual em questão. A linguagem é
outro critério importante na análise, pois elas fundamentam as formas de ver e
definir a linguagem e como são apresentados os conteúdos. A análise do conteúdo
diz respeito não só à informação, mas à forma como ele é apresentado aos alunos e,
também, aos tipos de conhecimento exigidos. É por meio dessa análise que
observamos se as instruções são escritas de forma coerente, se os textos são
adequados à faixa etária, interesse e nível de conhecimento dos alunos, se os tipos
de atividade condizem com os demais elementos propostos.
Finalmente, o processo de análise de manuais termina com a implementação do
curso. Ao usar um livro didático, deve-se pensar quais as adaptações precisam ser
feitas, para o desenvolvimento do curso proposto.

Avaliação dos livros didáticos


Ramos (Apud RAMOS e ROSELI, 2003) apresenta alguns critérios para analisar o
livro didático e direciona avaliando primeiro o público-alvo e se esse está adequado
com o material apresentado. Para o autor, não se pode deixar de lado a idade, faixa
etária, sexo, conhecimento de língua estrangeira e o nível de formação.
O outro critério é a adequação dos objetivos propostos apresentados no livro,
observar se esses são executáveis e alcançados através dos textos, conteúdos e
atividades apresentadas no decorrer das unidades do manual didático em questão.
Nessa linha de análise de critérios, acreditamos que as visões de linguagem são
muito importantes, pois elas fundamentam as formas de ver e definir a linguagem e
de que forma o conteúdo será apresentado nas unidades. Para nosso conforto,
apoiamos nas três perspectivas de linguagem identificáveis em alguns livros
didáticos citados por Cunningsworth (Apud MORITTA, 1998): 1) a perspectiva
comunicativa - que a língua é vista como meio de comunicação entre as pessoas; 2) a
perspectiva estrutural – não vê a língua como uma interação e sim, um sistema de
gramática e vocabulário; 3) a perspectiva de habilidades - enfatiza as quatro
habilidades: ouvir, falar, ler e escrever e finalmente acrescenta a perspectiva
sociointeracionista que está contemplada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais
de Língua Estrangeira (Brasil, 1998, p.8), doravante PCN-LE, que novos olhares
surgiram para o professor de línguas estrangeiras, com objetivos de ampliar o
ensino da Língua Estrangeira e ao mesmo tempo oferecer teorias que contemplam a
análise e seleção de materiais didáticos, de recursos tecnológicos e aporte
contribuições para a formação profissional dos professores.
O desenvolvimento do ser humano se dá primeiro no nível social (interpessoal e
depois no nível individual intrapessoal). Nessa linha de pensamento, podemos dizer

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que aprender é uma forma de estar no contexto social interagindo com alguém em
um contexto cultural, histórico e social. E isso se dá pela interação dialógica e pela
ação do indivíduo.
Contudo, a aprendizagem de uma língua estrangeira vai muito mais além da
aquisição e das habilidades linguísticas, pois “os indivíduos passam de meros
consumidores passivos de cultura e de conhecimento a criadores ativos: o uso de
uma língua estrangeira é uma forma de agir no mundo e transformá-lo” (BRASIL,
1998, p. 66).

Observação dos livros didáticos


Nessas observações acerca dos livros analisados faremos algumas abordagens e
análise de dois livros para o ensino de Português como Língua Estrangeira: Avenida
Brasil curso básico de Português para estrangeiros e o Bem- Vindo! A Língua Portuguesa no
Mundo da Comunicação Editora SBS. Foram escolhidos esses livros por ser os mais
trabalhados na trajetória do ensino de PLE na UESC45.
O livro Avenida Brasil é organizado em doze lições que variam entre quatro a seis
páginas cada lição reflete sobre temas relacionados a conhecer pessoas, encontros,
comer e beber, hotel, cidade, moradia, corpo, trabalho, roupa, vida e família turismo
e ecologia. Porém, os temas sejam diversificados carece de ser complementado por
outros comandos no final das lições. Não consta material complementar para
melhor auxiliar o que está posto nas lições. No final do livro consta um apêndice
gramatical, uma tabela de conjugação de verbos regulares e irregulares, quadro geral
do emprego dos tempos verbais e uma lista de vocabulário alfabético. Essa lista
apresenta todas as palavras contidas nos diálogos, exercícios, textos e explicações
gramaticais. Entretanto, a estrutura didática do livro não contempla o vocabulário
dos textos de audição e leitura.
Ressaltamos que embora tenha uma visão estruturalista, o livro tem ajudado no
decorrer das aulas, mas precisa de apoio didático e material complementar, seguida
da estrutura das unidades e algumas sugestões para o roteiro de aula.
O segundo livro é Bem-Vindo! A língua portuguesa no mundo da comunicação, Português
para Estrangeiros, edição atualizada distribuída em vinte unidades, cada unidade divida
em subárea envolvendo temas do dia-a-dia. Esse livro traz temas mais envolventes,
mais organizados em cerca de cinco páginas por unidade. Após cada unidade há
uma revisão que as autoras denominaram Psiu! Diferente dos outros livros que
existem no mercado brasileiro, existe material de apoio como: CD, livros para
alunos de diferentes nacionalidades, o que complementa as atividades do aprendiz.
As últimas unidades são referente a capoeira, carnaval, música popular e o folclore

45
O programa de ensino de Português como Língua Estrangeira na Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus-BA é reforçado
por seminários, minicursos, além das pesquisas realizadas nas categorias Iniciação Científica e Mestrado.

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brasileiro, mas não há nada especificamente mais sobre a Bahia, lugar em que a
pesquisa norteadora deste trabalho foi feita. Há também apêndice alfabético,
gramatical e um apêndice de vocabulário enfatizando algumas profissões e algumas
nacionalidades. A estrutura segue a teoria estruturalista, mas orienta com bastante
clareza o professor na sala de aula, principalmente aquele que não tem muita
experiência.
Para Cunningsworth (Apud MORITA, 1998), todos apresentam a mesma estrutura
em relação ao número de unidades, à extensão das unidades, à organização por
temas e por tipos de atividades. O quê falta nesses manuais é explicitar os objetivos
de cada unidade, contextualizar o vocabulário, pois se percebe a descontextualizarão
nos dois livros analisados que não apresentam nenhum contexto discursivo.
Particularmente, em situações sociais, o que se observa da metodologia utilizada,
principalmente na Avenida Brasil, é o exercício de repetição, memorização e fixação
que visam à aquisição principalmente de vocabulário descontextualizado. Aqui
presenciamos a visão tradicionalista de aprendizagem, pela qual se acredita que é
possível modelar o indivíduo, utilizando os estímulos adequados. Urge a necessidade
de ampliar os exercícios que trabalhem músicas, jogos, internet para que essas
diversidades possam complementar as atividades dos alunos

Algumas considerações
No decorrer da análise ficou latente a pouca interação entre os alunos e o manual
didático. Se considerarmos a interação social a interface do desenvolvimento e
aprendizagem, nesses manuais avaliados sugerimos ao professor que ao adotar um
dos materiais acima mencionados, complemente com atividades que permitam essa
experiência. O processo de aprendizagem mediado pela interação é o que leva à
construção de um conhecimento conjunto entre os pares dessa interação. Nos
manuais analisados, observa-se uma prática mecanicista e descontextualizada de
vocabulário e estruturas gramaticais.
Contudo, devemos ressaltar que o manual é um recurso imprescindível no contexto
escolar. Sendo assim, é considerado por alguns professores como ferramenta
principal e por alguns alunos principalmente os estrangeiros quando esses não estão
no contexto de imersão. Entretanto, os questionamentos apresentados nesse
trabalho mostram que o manual não é o único caminho. Aqui não consideramos
nada no plano superior do que a interação aluno/professor na contraposição ao
conhecimento. A sugestão de apresentar situações cotidianas o mais próximo do real
para que o processo ensino-aprendizagem se efetive de forma agradável e que
possibilite ao aprendiz a vivenciar em língua estrangeira situações de aprendizagem
que sejam significativas e que, principalmente a situem no contexto em que vive,
visando um desenvolvimento no processo de ensino aprendizagem.

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PACHECO, Denise Gomes Leal Cruz. Português para estrangeiros e os matérias didáticos: um
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TAVARES, Ana. Ensino/Aprendizagem do Português como Língua Estrangeira. In: GROSSO,
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LÍNGUA PORTUGUESA COMO SEGUNDA LÍNGUA PARA ALUNOS


SURDOS: PROPOSTAS DE ATIVIDADES A PARTIR DE
INTERFACES TECNOLÓGICAS
PORTUGUESE AS A SECOND LANGUAGE FOR DEAF STUDENTS: PROPOSALS FOR
ACTIVITIES BASED ON TECHNOLOGICAL INTERFACES
46
Maria Clara M. A. Ribeiro

Resumo
Este trabalho objetiva refletir sobre as possibilidades do uso e aplicação de Tecnologias da
Informação e Comunicação no processo de ensino-aprendizagem de português (escrito) como
segunda língua para alunos surdos. Apresentaremos propostas de atividades que privilegiam a
interação surdo/surdo em português escrito por meio de interfaces tecnológicas. Os resultados
indicam que o uso de tecnologias nas aulas de línguas torna as aulas mais dinâmicas e motivadoras e
possibilitam o exercício do letramento de maneira efetiva, através da interação escrita, de surdo para
surdo.
Palavras-chave: Tecnologia; Ensino de Língua Portuguesa; Surdos.

Abstract
This work aims to reflect on the possibilities of the use and application of Information and
Communication Technologies in teaching Portuguese as a second language for deaf students. The
activities presented emphasize the interaction deaf to deaf in written Portuguese based in
technological interfaces. The results indicate that the use of technology makes the lessons more
dynamic and motivating, enabling the exercise of literacy effectively through deaf to deaf written
interaction.
Key word: Technology; Language Teaching; Deaf.

Considerações Iniciais
O objetivo deste estudo é refletir sobre os usos e possibilidades da aplicação de
Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) no ensino da língua portuguesa
(LP) a alunos surdos. Apresentaremos, primeiramente, o panorama linguístico-social
em que os surdos se inserem atualmente, uma vez que para se preservar a identidade
linguístico-cultural de alunos bilíngues e para propor atividades que a tomem como
aliada, é preciso, antes de tudo, conhecê-la. Em seguida, refletiremos sobre o uso de
TICs na educação, evidenciando a nossa perspectiva de trabalho nesse campo. Por
fim, serão apresentadas propostas de atividades que visem o exercício do letramento
em LP.

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Doutoranda no programa de pós-graduação em Estudos Linguísticos pela UFMG. UFMG/FAPEMIG – mclaramaciel@hotmail.com

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Os discursos sobre a surdez vêm se movimentando e alterando ao longo do tempo.


Certamente, falar de sujeitos surdos, hoje, não é o mesmo que falar deles há quinze,
dez ou cinco anos passados.
Atualmente, em vários lugares do mundo, surgem Movimentos político-sociais,
liderados e constituídos por surdos – e por representantes da academia – em prol do
reconhecimento das línguas de modalidade vísuo-espacial e da cultura surda, assim
como dos valores e direitos dessa população. E enquanto muitos surdos se esforçam
para serem “normais”, fazendo uso de próteses auditivas, terapias fonoaudiológicas
e convivendo apenas com ouvintes, o grupo que se organiza em torno do chamado
Movimento Surdo se descobre mantenedor se uma organização linguístico-cultural
minoritária, que questiona a norma ao sentir orgulho da surdez, rejeitando de vez o
estigma da “deficiência” (RIBEIRO; LARA, 2010).
Enquanto isso, na academia, assistimos ao surgimento de um novo campo teórico:
os Estudos Surdos47, área a partir da qual os surdos são compreendidos nas ciências
humanas, onde, diferentemente do campo da saúde, o valor da diferença sobrepuja
o da deficiência.
Toda essa movimentação social e teórica produz efeitos na forma de ensinar e de
aprender. Hoje, sabemos: para se educar sujeitos surdos, a abordagem deve ser
distinta da abordagem assistencialista da educação especial, por um lado, e também
distinta do efeito placebo da educação dita inclusiva, por outro (SOUZA; GÓES,
1999; CAMPELO, 2009). A abordagem desejada parte da possibilidade de uma
educação bilíngue, que leve em consideração as especificidades históricas,
linguísticas, culturais e identitárias do povo surdo. Em outras palavras: atualmente,
espera-se uma abordagem própria, específica e exclusiva ao público surdo, que parta
de uma chamada pedagogia surda.
Diante de tudo isso, os surdos são considerados, na contemporaneidade, uma
minoria linguística culturalmente estabelecida, não mais sujeitos portadores de uma
necessidade especial (SKLIAR, 1999; SOUZA; GOES, 1999; MOURA, 2000; SÁ,
2006). Avanços acadêmico-científicos contribuíram sobremaneira para essa
mudança de paradigma, ao constatarem que: (a) os surdos se utilizam de uma língua
genuína, natural e multiarticulada, com gramática própria, equiparável às línguas
orais em complexidade, como relatam Quadros; Karnopp (2004) e Lodi (2004); (b) a
surdez, em si mesma, não acarreta déficit linguístico ou cognitivo. É possível ao ser
humano desenvolver-se com plenitude em um mundo alheio a audição, conforme
indicam Souza (1998) e Bernardino (1999), uma vez que a faculdade da linguagem
pode ser exercida por diferentes modalidades de línguas (tanto oral-auditiva, quanto

47
Os Estudos Surdos são compreendidos como uma área interdisciplinar de estudos que tem como grande área os Estudos
Culturais e a Educação. Skliar (1998, p. 5) o define como “um programa de pesquisa em educação, onde as identidades, as línguas,
os projetos educacionais, a história, a arte, as comunidades e as culturas surdas são focalizados e entendidos a partir da diferença,
a partir de seu reconhecimento político”.

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vísuo-espacial); (c) as línguas de sinais, no caso do Brasil, a Língua Brasileira de


Sinais (Libras), devem ser consideradas línguas maternas (L1) para os surdos48,
conforme explica Quadros (1998); (d) a língua oral majoritária no país, no caso do
Brasil, a língua portuguesa, deve ser considerada a segunda língua (L2) dos surdos,
devendo ser ensinada a partir de metodologias de ensino de segunda língua e
recebendo o status de língua estrangeira49, como defende Brochado (2006); e) na
escola, é preciso abordar exclusivamente habilidades de leitura e escrita, uma vez
que habilidades como compreensão ou fala não são nem necessárias nem bem-
quistas, como informa Capovilla (2000).
Partimos dos princípios acima para refletir, neste estudo, sobre o uso de tecnologias
no ensino de línguas para surdos. Como se pôde perceber, surdos são cidadãos
brasileiros, usuários “nativos” da Libras e aprendizes de português como segunda
língua – uma minoria linguística ainda não completamente compreendida em suas
especificidades e direitos linguísticos. Portanto, o ensino de português para essa
população se restringirá ao ensino da leitura e da escrita da língua, o que aumenta a
complexidade do processo.
Para ilustrar, imaginemo-nos aprendendo a língua russa, por exemplo, apenas a
partir da leitura e da escrita dessa língua. No caso dos estudantes surdos, há
agravantes adicionais, uma vez que nós, ouvintes, temos internalizadas hipóteses
sobre o funcionamento de línguas orais e partimos de uma base de alguma maneira
semelhante para realizar transferências de habilidades linguísticas da língua fonte
(português) para a língua alvo (no caso, russo). Surdos, no entanto, partem
cognitivamente do funcionamento de línguas visuais, que apesar de certamente
compartilharem de universais linguísticos comuns, estabelecem relações (espaciais)
bastante distintas das ocorridas nas línguas orais (fonoarticulatórias).
O resultado de toda essa complexidade transparece na escrita desses sujeitos, que
costuma ser compreendida como atípica, errônea ou peculiar. Góes (1996), por
exemplo, relata que mesmo após anos de escolarização, surdos continuam
apresentando dificuldades no uso da escrita da Língua Portuguesa (LP).
Referindo-se a surdos usuários da Língua Inglesa, Koutsoubou (2000) aponta um
quadro semelhante, destacando que a maioria dos estudantes surdos sai da escola
com um grau de letramento equivalente ao terceiro ou quarto ano de educação
escolar (TURNER, 2000 apud KOUTSOUBOU, 2000). De acordo com os padrões
ingleses de avaliação de letramento, habilidades inferiores aos níveis estabelecidos

48
Justificando: a Libras é a língua possível e natural aos surdos. É ela que possibilita aos sujeitos organizarem pensamentos
completos e elaborados. Será através dela que eles poderão lançar mão de habilidades criativas e recursivas no campo da língua –
e daí resulta o seu estatuto de primeira língua, independente da ordem de aquisição linguística das línguas (libras e português).
49
Neste trabalho, os conceitos de segunda língua e língua estrangeira estão sendo utilizados indistintamente.

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para o quarto ano de educação escolar representam um analfabetismo funcional


(ALBERTINI, 1993 apud KOUTSOUBOU, 2000).
Diante de tudo isso, justifica-se a pertinência de oportunizar a vivência da LP escrita
em situações de interação, de surdo para surdo, a partir da tecnologia.

Sobre o uso de tecnologias na educação


Certamente, a tecnologia modifica algumas dimensões da nossa inter-relação com o
universo social, com o tempo e o espaço e com os objetos cognoscentes. A
tecnologia está em nossas vidas, mas não necessariamente na relação que
estabelecemos com a construção de conhecimentos formais.
No trabalho com a tecnologia na esfera educacional, é tarefa do professor
apresentar aos alunos as possibilidades e limites desse “novo” mundo que desponta.
O professor pode conduzir a inserção de tecnologias na educação de diferentes
maneiras e é justamente o direcionamento dado por ele que irá definir o valor e as
especificidades desse trabalho.
É importante alertar, de início, que a inserção de tecnologias da informação não
deve ser considerada apenas como um instrumento ou uma ferramenta utilizada na
execução de tarefas já conhecidas, como produzir textos, por exemplo, como
defende Marques Neto (2007, p. 61). De maneira análoga, deter o foco no produto
(que se atinge com as tecnologias), deixando o processo desfocado, também não
produz bons resultados e não condiz com a filosofia que deveria alicerçar o trabalho
com tecnologia na educação.
No trabalho com tecnologia, a nosso ver, é preciso privilegiar o processo, a construção,
as interações efetivas e as criações. A máquina não pode silenciar os alunos, tampouco os
professores. Ao contrário, tem de gerar diálogo, debate, interação, criação,
autonomia e emancipação.
Se definirmos “as tecnologias como conjuntos de dispositivos técnicos que
apresentam uma linguagem própria e que estabelecem uma relação pragmática com
seus usuários”, como define Beloni (2003, p. 61), podemos ver, com clareza, em
alguns momentos, o desejo de primazia da técnica sobre outros processos
socioeducacionais. É isso o que queremos? Certamente, não. Lion (2007) nos
lembra de que não criamos inovações pedagógicas na escola somente por incorporar
novos meios (tecnológicos), ferramentas ou instrumentos. A tecnologia, em si
mesma, não é nem boa nem má. A concepção do enfoque apropriado dependerá de
uma mudança de abordagem fundamental, que deve ser priorizada pelo professor:
se os alunos passarem de meros usuários/receptores a gestores/produtores (seja de
tecnologia, de opinião ou de sua própria aprendizagem) começaremos a ter indícios
de um trabalho benéfico, que prioriza a autonomia e a emancipação crítica dos
aprendizes.

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Como se nota, não nos filiamos a uma ideologia tecnocrata, mas vislumbramos, com
criticidade, a riqueza de possibilidades que podem ser atingidas a partir do ensino de
línguas para surdos aliado à tecnologia. Portanto, não é demais lembrar: educativos
e interativos somos nós, máquinas são apenas máquinas. É o direcionamento dado
pelo professor que produzirá (ou não) interatividade e promoção do saber.
De acordo com Vieira e Moura (2009), a aprendizagem colaborativa, proporcionada
pela interação em dada comunidade de aprendizagem virtual, além de produzir
autonomia, potencializa o desempenho dos aprendizes, uma vez que
a colaboração pressupõe uma tarefa mútua na qual os parceiros
trabalham em conjunto para produzir algo que nenhum deles poderia ter
produzido individualmente. Dentro de um ambiente computacional, a
interação entre pares, permeada pela linguagem (humana e da máquina),
potencializa o desempenho intelectual porque força os indivíduos a
reconhecer e coordenar perspectivas conflitantes de um problema,
construindo um novo conhecimento a partir de seu nível de competência
que está sendo desenvolvido dentro e sob a influência de um
determinado contexto histórico-cultural (VIEIRA; MOURA, 2009, p.
15).

No tocante ao uso de interfaces tecnológicas no ensino de português para surdos,


há boas evidências de que o tempo de exposição dos aprendizes à língua alvo
(português) será maximizado, se comparado ao ensino comum, além de estendido
em espaços e tempos distintos dos da sala de aula. Há como hipótese que essas
ferramentas podem aproximar os sujeitos da cultura letrada, possibilitando o
exercício do letramento de maneira efetiva, uma vez que, em sala de aula, a
interlocução se estabelece em Libras e o tempo destinado à leitura e escrita se
mostra reduzido.
Para ilustrar, pensemos em uma sala de aula onde se ensina inglês como língua
estrangeira. Um professor comum procuraria estabelecer, em inglês, o máximo de
interação verbal possível com seus alunos. Comandos, cumprimentos e pequenos
diálogos seriam estabelecidos na língua alvo, como forma de aproximar o ambiente
da sala de aula de um ambiente de imersão linguística propriamente dita. No caso
de professores de português para surdos, no entanto, priorizar a interação na língua
alvo não é possível. Os motivos podem ser facilmente elencados: os alunos
aprendem mais e melhor em Libras; uma gama de significantes do PT é
desconhecida por muitos alunos; a interação escrita não pode ser exaustiva, para não
se tornar monótona ou com excessos de episódios de interincompreensão, que
acabam por desmotivar os alunos. Essa questão será abordada adiante.

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É importante lembrar ainda que a tecnologia parece fazer parte do acervo cultural
da comunidade surda. Desde os antigos aparelhos TDD50 até as campainhas que
acionam luzes, os despertadores vibratórios e os mais recentes softwares de
tradução Libras/português (e vice-versa), observamos a tecnologia aliada à melhoria
de vida desses sujeitos. Curiosamente, a informática tem sido considerada por
muitos professores como uma das áreas de melhor desempenho escolar dos surdos.
Além disso, atualmente, inúmeros surdos brasileiros têm a oportunidade de realizar
cursos de graduação em Letras/Libras (licenciatura e bacharelado), à distância,
ofertados gratuitamente pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Isso nos leva a pensar que cursos de língua de curta duração/atualização/extensão
oferecidos à distância teriam boa receptividade na comunidade surda e isso
aumentaria as chances de êxito educacional dessa população. Ou, mais
especificamente, nos levam a pensar que a escola inclusiva, tão duramente rotulada
de ineficiente no tocante ao ensino de línguas para surdos, pode ter na tecnologia
um aliado de valor.

Tecnologias e estratégias de ensino de línguas para alunos surdos


Qual é o objetivo maior que se espera atingir quando se ensina línguas estrangeiras a
alunos surdos? Os objetivos, em sentido lato, não diferem substancialmente dos
objetivos gerais do ensino de línguas para ouvintes: almeja-se desenvolver nos
aprendizes uma competência comunicativa que os possibilite a interagir na língua
alvo. Em sentido estrito, contudo, podem-se prever objetivos distintos, específicos
ao ensino de línguas para surdos, uma vez que habilidades como “fala e
compreensão” não serão requeridas, por um lado, e que habilidades como leitura e
escrita, por outro, tomarão uma dimensão totalizante.
Pensando no ensino de português para surdos, de forma geral (e sucinta), espera-se:
(i) tornar o aluno apto tanto à leitura (compreensão e interpretação) de diferentes
gêneros textuais, quanto à escrita (também de diferentes gêneros), onde se
priorizarão habilidades de coerência e coesão textual. E de forma específica, espera-
se ainda: (i.i) que ele internalize51 as estruturas morfossintáticas e modo-temporais
da língua portuguesa (i.ii) que seja capaz de perceber as diferenças estruturais entre a
Libras e o português (i.iii) que o aluno se torne letrado em português, isto é, capaz
de realizar com autonomia atividades de leitura e escrita no seu dia-a-dia como mais
uma de suas práticas sociais.

50
TDD (Telecommunications Device for the Deaf) é um sistema de comunicação telefônica digital onde os surdos podem se
comunicar escrevendo mensagens em um teclado e visualizando em uma tela as mensagens que lhe são enviadas e recebidas. O
advento dos celulares com editores de texto, que possibilitam o envio de mensagens (SMS), tem mostrado que o TTD, com o
tempo, se tornará peça de museu.
51
Uma vez que em Libras, de maneira ampla, flexões verbais e marcações modo-temporais não apresentam formas desinenciais,
tais processos se tornam complexos para os aprendizes de PTL2. Não se espera, portanto, um saber consciente, mas um saber
prático, ainda que inconsciente.

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Mas como se deve ensinar uma língua de modalidade oral-auditiva a alunos surdos?
Será através da Libras? Será através exclusivamente do português, para criar um
ambiente de imersão? Ora, a segunda opção, sabemos, não pode ser válida! Não
haveria imersão, uma vez que os surdos perderiam todas as informações orais e
auditivas. E seria possível haver imersão através, exclusivamente, da modalidade
escrita? Também sabemos que não. Como seria possível se, muitos surdos,
desconhecem uma vastidão de significantes em português? Explicamos: ocorre,
muitas vezes, de os significados estarem construídos em Libras, com seus
respectivos significantes e, no entanto, os surdos desconhecerem os significantes
que designam, em português, o significado previamente construído em sinais. É
como se escrevêssemos a palavra respeito, por exemplo, na louça, e os surdos nos
dissessem: “não sei o que é isso!”. Um professor inexperiente poderia, sem
intenção, ser levado a construir ideias preconceituosas e hostis aos surdos diante
desse fato, mas o professor experiente saberia do que trata: ele faria o sinal de
respeito em Libras e mostraria que, e em português, aquele é o significante do
significado respeito.
Dessa maneira, como se vê, não seria nem possível nem proveitoso ensinar
português para surdos por intermédio do próprio português, uma vez que esta
língua nada intermediaria.
O decreto 5.626, de 2005, garante aos surdos brasileiros a possibilidade de
receberem uma educação bilíngue, onde o conteúdo escolar esteja acessível também
em Libras, por meio da inserção de professores bilíngues ou de Tradutores-
intérpretes de línguas de sinais no ambiente escolar (opção mais comum no Brasil).
O que se mostra apropriado e grandemente proveitoso, então, é: ter a Libras como
língua de instrução, tanto nas aulas de português, quanto de inglês, matemática ou
história. As razões são tão óbvias que evitaremos delongas.
O que fazer, diante disso, para ensinar português para surdos, através da Libras, mas
criando e otimizando ao máximo o tempo de exposição do aluno ao português?
Como vimos, não é possível que o professor chegue diante de seus alunos e não
sinalize, ou pouco sinalize, apenas enchendo a lousa. Isso não produziria
aprendizagem e deixaria os alunos extremamente tensos e frustrados. Qual seria,
então, uma solução possível? Através do uso de tecnologias, ou para sermos mais
específicos, através da educação à distância e do uso das TICs. Pensaremos, então,
no uso das TICs no ensino de línguas para surdos, tanto na modalidade presencial
quanto na modalidade à distância.

Possibilidades das TICS no ensino presencial e na educação à distância


Temos percebido cada vez mais que educação à distância e ensino presencial não
são polos opostos, mas, ao contrário, contínuos em uma mesma reta. Como
mencionado, o uso de TICs no ensino presencial pode ser visto como uma
ferramenta pedagógica que promove interação e aprendizagem colaborativa. A partir

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daí, as significativas mudanças na forma de se pensar o processo educativo pode ser


observado, pois o que se pretende é construir uma rede de aprendizagem
colaborativa que tire o foco do professor e o coloque nas interações entre os
aprendizes e na autonomia conferida por esse processo.
É possível pensar que o uso das TICS, no ensino presencial, possibilita, com efeito,
a combinação da educação à distância e da educação presencial. Esta possibilidade produz
efeitos muito positivos, visto que a partir dessa mescla as aulas se tornam mais
dinâmicas e, dada à inserção das TICs, no tocante a alunos surdos, vê-se o exercício
do letramento (em português escrito) de maneira efetiva. A vantagem da mescla de
modalidades é que o professor pode mediar, em Libras (pessoalmente ou por
intermédio de um tradutor-intérprete), olho no olho, todas as discussões ou
construções concebidas a partir das TICS – possibilidade que seria reduzida no
ensino exclusivamente à distância. Não se pode negar que as aplicações dessas
ferramentas no ensino presencial são extensas e profícuas.
É possível pensar ainda nas TICS no ensino a distância. Na modalidade
exclusivamente à distância, os sujeitos surdos deverão ter estímulos ou incentivos
extras, uma vez que pouco espaço será reservado à instrução em Libras, fato que
pode não apenas dificultar a comunicação como causar desestímulos aos sujeitos.
Esses estímulos podem ser compreendidos, sobretudo, como estímulos visuais,
como a exploração de imagens e esquemas, uma versão colorida do ambiente,
brilhos e formas inusitadas, por exemplo, etc.
Em segundo lugar, é preciso prever que pouco espaço para a Libras não significa
nenhum espaço! Em um curso de línguas para surdos, na modalidade à distância,
teremos de reservar tempo e espaço para a produção de vídeos didáticos em Libras
ou até mesmo para o desenvolvimento de softwares que possibilitem que, ao clicar
sobre uma palavra desconhecida, um vídeo abra com a imagem do sinal
correspondente em Libras. Isso nos mostra que, certamente, para o
desenvolvimento desses recursos, será preciso algumas “inovações” na forma
padrão de se fazer educação à distância.
A videoconferência, por exemplo, apresentará, certamente, um caráter primordial e
mais usual, se comparado ao padrão dos cursos à distância projetados para ouvintes.
O chat, talvez, poderia virar uma espécie de MSN, com a possibilidade de inserção
de vídeo.
Voltando ao ensino presencial e pensando na sala de aula inclusiva, aliar interfaces
tecnológicas ao ensino de línguas para surdos pode resolver uma parte dos inúmeros
problemas surgidos pela inclusão de alunos surdos (usuários de Libras) em um
ambiente de educação linguística predominantemente ouvintista, ou melhor, voltado
para alunos ouvintes (usuários nativos da língua portuguesa).
Explicando melhor: ouvintes, na escola, aprendem LP como língua materna.
Surdos, no entanto, devem aprender como segunda língua, a partir de conteúdos e

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metodologias de ensino de português como língua estrangeira, pois, como se sabe, a


Libras é a língua materna desses sujeitos. No entanto, não é essa realidade
observada. O que resulta disso é a insatistação e desinteresse da maioria dos alunos e
a descrença do professor no trabalho que desenvolve (SILVA; PEREIRA, 2003;
GONÇALVES, 2012).
Se pensarmos, por exemplo, no currículo do 9º ano do ensino fundamental,
veremos que os professores de LP estarão privilegiando, em algum momento, o
estudo das diversas categorias de orações reduzidas. Ora, certamente, um aluno
surdo comum estará, nessa fase, começando a solidificar suas hipóteses acerca da
ordem básica dos constituintes frasais na língua portuguesa (em Libras, verifica-se
uma organização sintática extremamente maleável) e internalizando um complexo
sistema de conjugações verbais (de certo ponto de vista, inexistente em Libras).
Para equalizar, de alguma maneira, questões problemáticas como essa, podem ser
possível abrir uma “frente de trabalho” outra, on-line, com os alunos surdos, onde a
língua portuguesa fosse ensinada a partir de metodologias de ensino de língua
estrangeira. Isso poderia ser altamente vantajoso para as escolas inclusivas.
A seguir, apresentaremos interfaces e propostas de atividades ainda não testadas
formalmente, mas já projetadas e vislumbradas como possíveis e promissoras. Essas
atividades estão em vias de implementação no Laboratório Experimental de Ensino
de Línguas para Surdos52 e os resultados dessa experiência serão temas de estudos
outros – desenvolvidos por nós ou por demais professores que virem na nossa
proposta um caminho possível. O nosso objetivo, aqui, portanto, é oferecer um
leque de possibilidades para professores de surdos e desencadear uma rede de ação e
reflexão a partir dele. Alertamos que as propostas e atividades a seguir não são os
planos de aula ou receitas a serem seguidas, mas guias conceituais na construção de
atividades que busquem promover o letramento de surdos em português escrito.

Blog: discussões de interesse político-social, que envolvam o


desenvolvimento de uma ética-cidadã.
O blog tem sido definido como uma “página de Internet com características de
diário, atualizada regularmente” 53. Trata-se do registro (de tema delimitado)
postado na internet e organizado de forma cronológica. No caso dos alunos surdos,
o uso do blog coletivo, como ferramenta pedagógica, propicia a exposição e
compartilhamento de ideias na língua alvo a partir da exploração de um tema de
interesse comum. O blog pode ser criado com o objetivo de divulgar ou difundir
dada conquista ou característica do povo surdo, por exemplo. A primeira lição aqui,

52
Projeto de pesquisa e extensão vinculado ao Departamento de Comunicação e Letras da Universidade Estadual de Montes
Claros, cujo objetivo é desenvolver estratégias de ensino de línguas para surdos.
53
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em: http://www.priberam.pt/DLPO/default.aspx?pal=blogue

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para os alunos, é entender que todo texto projeta um leitor modelo, e que eles serão
lidos (e, portanto, necessitam ser compreendidos) por muitos.
Esta atividade propõe a criação de um blog coletivo a ser criado e mantido pelos
alunos. É importante que a temática seja motivadora e, em alguma medida,
polêmica. Sugere-se que o tema envolva discussões de interesse político-social e que
visem o desenvolvimento de uma ética-cidadã. Poder-se-ia tratar de alguma
reivindicação política das comunidades surdas, de questões ecológicas que envolvam
a cidade, ou de algum mote fornecido por uma notícia local.
Nessa atividade, os alunos devem se entender exclusivamente através da leitura e da
escrita, mas tudo será esclarecido e/ou aprofundado na sala de aula presencial, em
sinais. O professor pode, por exemplo, pedir para que cada um explicite, em sinais, a
leitura que fez do texto do colega para poder, assim, corrigir interpretações
equivocadas. Pode, ainda, se utilizar de padrões errôneos repetitivos na escrita dos
alunos para inferir sobre a natureza do erro: trata-se de influência da estrutura da
Libras? Trata-se de desconhecimento de uma estrutura específica do português?
Essas hipóteses seriam construídas pelo professor em parceria com seus alunos. Em
segundo momento, poder-se-ia propor que os alunos postem novos textos no blog,
registrando as discussões estabelecidas em sala de aula e fazendo uso das novas
estruturas linguísticas que aprenderam.
Antes do início dessa atividade, recomenda-se que o professor debata em sinais o
tema a ser abordado com os seus alunos, para prepará-los e motivá-los para a
atividade que virá. Desenvolver um mural sobre o tema, em conjunto com os
alunos, se mostra proveitoso na medida em que fornece suporte visual e temático
para os participantes.

Fórum: debate de textos estéticos ou utilitários.


Uma explicação simplista do fórum o definiria como uma atividade de discussão
assincrônica entre os sujeitos participantes. Nessa atividade, os alunos surdos
interagem em português escrito e devem procurar estabelecer uma espécie de
diálogo ou de continuação responsiva com os posts anteriores: a habilidade de leitura
será, aqui, tanto requerida quanto desenvolvida. Esta atividade desenvolve a
competência comunicativa e responsiva e encoraja os alunos a interagirem uns com
os outros através da LP.
De início, o professor pode postar um texto para leitura (uma notícia curta, por
exemplo), acompanhado de uma questão elementar de compreensão textual. Ele
deve intervir, dando o opinião da questão e apresentando reflexões e outras questões
que fomentem/direcionem o debate. Sugere-se, por exemplo, que o professor
direcione questões a alunos específicos ou aproxime comentários semelhantes e/ou
antagônicos, colocando os alunos em debate.

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Se possibilidade técnica houver, o professor pode, em alguns fóruns, corrigir alguns


textos, inserindo abaixo do texto original o texto corrigido. Tal fazer, contudo,
precisa ser cercado de cuidados e bom senso, pois correções em demasia, além de
desnecessárias, prejudicam a fluidez e espontaneidade dos alunos. O ideal é que se
corrijam poucos posts (de alunos diferentes), que contenham erros significativos e
repetitivos.
Além de trabalhar com textos estéticos (literários) ou utilitários (instrucionais ou
jornalísticos, por exemplo), o professor poderá também trabalhar com textos
metalinguísticos, ou seja, textos que tenham a língua (ou o fazer comunicativo)
como objeto. Assim, discussões seriam travadas sobre a língua a partir do exercício
do uso da língua.
É fundamental que o professor de português para surdos conheça a Libras em
algum grau de profundidade. Isso será importante no momento de interagir em
português escrito com os seus alunos, pois o professor deverá se utilizar de uma
linguagem simples e clara e preferencialmente (pelo menos no início) a partir de um
vocabulário considerado comum em Libras. O conhecimento da Libras será
fundamental ainda no momento de compreensão da escrita dos alunos e na análise
da natureza dos erros.

Wiki: produção de textos coletivos.


Certamente, o exemplo mais conhecido dessa interface é, sem dúvidas, a
enciclopédia virtual Wikipédia, que permite a edição coletiva dos textos que a
compõem. De maneira semelhante, propõe-se que os alunos desenvolvam um texto
a partir de uma escrita coletiva, “zigzagueante”, com possibilidades de edição e
reedição a todo o momento.
Nesta atividade, os alunos desenvolverão a capacidade de explorar e refletir sobre o
texto do outro, além da possibilidade de se posicionar, pelo menos uma vez, como o
sujeito que detém o poder da correção, em uma manifestação de empoderamento.
A sugestão para essa atividade é que os alunos construam coletivamente uma
narrativa ficcional, em Libras, e que aos poucos a registrem e complementem em
português escrito, coletivamente, no wiki. Piadas, estórias de terror ou recontos
literários estão entre os gêneros preferidos pelos alunos. A tarefa do professor, nessa
atividade, é direcionar a produção, alertando para os processos e etapas comuns a
uma narrativa, por exemplo. É importante que o professor não tente “higienizar” o
plano de expressão textual da escrita de seus alunos, com correções em excesso, mas
que permita a manifestação das singularidades e eventuais equívocos da escrita surda
em busca de um bem maior: a riqueza e coerência do plano de conteúdo. Após o
fim da atividade, os alunos terão produzido um texto que, mais adiante, poderá ser
retomado pelo professor, em conjunto com os alunos-produtores, em uma atividade

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de reescrita coordenada pelo mestre, isto é, oportunamente, poderá lançar mão


desse material para corrigi-lo coletivamente, em parceria com os seus alunos.

Legendagem e produção visual: narrativas em Libras e PT


Esta atividade destaca a importância da língua fonte no processo de aprendizagem
da língua alvo e pode ser considerada uma das atividades mais bem recebidas pelos
alunos.
Trata-se da realização de uma produção visual, com diálogos em Libras, e inserção
de legendas em português, criado, dirigido e editado pelos alunos. A produção pode
ser fictícia, como um curta-metragem, com enredo, personagens, tempo e espaço
definidos, ou pode ser um documentário, com debates e opiniões sobre temas da
atualidade ou de interesse comum. A escolha do gênero a ser produzido será
determinada pelo perfil da turma.
Para o desenvolvimento da atividade, o professor deverá gerenciar a divisão de
grupos e a distribuição de papeis em cada um deles: roteiristas, cinegrafista, atores,
diretores e editores estão entre as categorias principais. Sugere-se que a função de
roteirista seja atribuída a mais de um sujeito. O professor deverá orientá-los quanto
à importância do planejamento dessa etapa da produção e encorajá-los a ouvir o
restante do grupo na determinação da temática.
Para a elaboração das legendas, o grupo não poderá ser desmembrado, pois elas
deverão ser debatidas de maneira coletiva (grupal) e realizadas na sala de aula. É
possível dividir o vídeo em tomadas e determinar um editor principal para a inserção
de legendas em cada uma delas, desde que o texto em português nasça da
coletividade e seja fruto de debate.
Para a inserção de legendas, há softwares leves, gratuitos e de fácil acesso
disponíveis na internet. Depois de pronta, é possível convidar um professor surdo
para assistir à produção e comentar a tradução. Esta atividade trás a vantagem de
explicitar aos alunos as diferenças e semelhanças entre a Libras e o Português.

Considerações finais
O trabalho com tecnologias no ensino de línguas para surdos mostra-se promissor.
É difícil pensar, em pleno século XXI, no desenvolvimento de processos de ensino-
aprendizagem totalmente alheios à tecnologia. Se o uso das TICs não acontecer de
maneira formal, sob a orientação de professores qualificados para tal, certamente
acontecerá de maneira descompromissada, pois sabemos da relação que as novas
gerações mantêm com elas. O que propomos, então, é que a educação se aproprie
de algo que já está nas mãos dos alunos, dando um direcionamento pedagógico e
explorando facetas não visadas no uso informal.
Neste estudo, enumeramos algumas possibilidades de utilização das TICs no ensino
de português para alunos surdos. O nosso intuito foi demonstrar que o ensino de

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português para surdos pode e precisa extrapolar o domínio físico da sala de aula.
Principalmente quando nos damos conta de que, na sala de aula inclusiva, os alunos
surdos aprendem o português como a língua materna e que o professor regente da
sala inclusiva ou da sala de recursos deverá lançar mão de estratégias outras para
atingir seus objetivos (ensinar LP como L2).
O futuro dominado por parafernálias tecnológicas parece ter chegado. O
direcionamento e tratamento adequado de tudo isso, no entanto, está em nossas
mãos. Façamos, portanto, boas escolhas.

Referências
BELLONI, M. L. A integração das tecnologias de informação e comunicação aos
processos educacionais. In: BARRETO, R. G (org.). Tecnologias educacionais e educação à
distância: avaliando políticas e práticas. Rio de Janeiro: Quartet, 2a ed. 2003. p. 54 - 73
BERNARDINO, E. L. Absurdo ou Lógica? Os surdos e sua produção linguística. Belo Horizonte,
Editora Profetizando a Vida, 2000.
BROCHADO, S. M. D. A apropriação da escrita por crianças surdas usuárias da língua de sinais
brasileira. 2003. 439 f. Tese de Doutorado (Letras). Faculdade de Letras, UNESP, Assis,
2003.
CAMPELO, A. R. S. A pedagogia visual na educação dos surdos-mudos. 2008. 245 f. Tese de
doutorado (Educação). Faculdade de Educação, UFSC, Santa Catarina.
CAPOVILLA, F. C. Filosofias educacionais em relação ao surdo: do oralismo à
comunicação total e ao bilinguismo. Revista Brasileira de Educação Especial. Marília, SP, v. 6, n.
1, p. 99-116, 2000. Disponível em: http:
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FORMAÇÃO DOCENTE E O ENSINO DA LINGUA PORTUGUESA:


ARTICULAÇÃO ENTRE A TEORIA QUE FUNDAMENTA A PRÁTICA
TEACHER TRAINING AND THE TEACHING OF PORTUGUESE LANGUAGE:
RELATIONSHIP BETWEEN THE THEORY THAT THE PRACTICE BASICS

Sueli Gedoz 54 & Terezinha da Conceição Costa-Hübes 55

Resumo
O objetivo do presente trabalho é a apresentação do projeto de pesquisa e extensão “Formação
continuada para professores da educação básica nos anos iniciais: ações voltadas para a
alfabetização em municípios com baixo IDEB na região oeste do Paraná”, desenvolvido na região
oeste do Paraná, financiado pela CAPES/INEP, conforme Edital 038/2010 do Programa
Observatório da Educação. Tal projeto está se consolidando a partir da oferta de formação
continuada a docentes, processo que proporciona aprofundamento teórico, encaminhamentos
práticos e reflexões sobre o trabalho com a Língua Portuguesa focalizando os gêneros discursivos.
Para este estudo, apresentamos, inicialmente, o projeto em questão, seguido de informações sobre
os trabalhos de formação realizados com a intenção de minimizar o descompasso presente entre a
teoria que perpassa a formação do professor e a sua prática em sala de aula. Tomamos como bases
teóricas os estudos de AMOP (2007), Bakhtin (2000, 2004), Bronckart (2003) e Costa-Hübes
(2008).
PALAVRAS-CHAVE: Língua Portuguesa, Formação Continuada, Observatório Educacional.

Abstract
The aim of this paper is to present the project "Continuing education for teachers of basic
education in the early years: actions for literacy in cities with low IDEB in western Paraná",
supported by CAPES/INEP, as notice 038/2010 - Programa Observatório Educacional, and
developed in western Paraná. This project is consolidating from the provision of continuing
education for teachers, a process that provides deeper theoretical, referrals and practical reflections
on working with the Portuguese language focusing on the speech genres. For this study, we present
initially the project in question, followed by information on the work carried out training with the
intention of minimizing the gap between the present theory that pervades teacher education and
practice in the classroom. We take as theoretical studies AMOP (2007), Bakhtin (2000, 2004),
Bronckart (2003) and Costa Hübes (2008).
KEYWORDS: Portuguese Language, Continuing Education, Observatório Educacional.

Introdução
Elaboramos o presente texto com o intuito de apresentarmos algumas ações que
tem produzido resultados satisfatórios no que tange à relação entre teoria e prática
presente no processo de formação continuada de docentes. Nosso objetivo pauta-se

54
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração em Linguagem e Sociedade,
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE; Profª da Educação Básica SEED/PR. oi_sueli@hotmail.com
Profa Dra do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração em Linguagem e Sociedade, Nível de
55

Mestrado e Doutorado, Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. terecostahubes@yahoo.com.br

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na apresentação de um projeto de pesquisa e extensão que vislumbra esse processo


de formação como um dos fatores responsáveis pela elaboração de um trabalho
mais significativo para o ensino da Língua Portuguesa.
Ao longo do texto, apresentaremos o projeto denominado “Formação continuada
para professores da educação básica nos anos iniciais: ações voltadas para a
alfabetização em municípios com baixo IDEB na região oeste do Paraná”. Trata-se
de um trabalho vinculado ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras,
nível de Mestrado e Doutorado, com área de concentração em Linguagem e
Sociedade, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE, campus de
Cascavel/PR, e financiado pelo Programa Observatório da Educação
(CAPES/INEP). As ações organizadas almejam uma contribuição para o processo
de formação continuada de docentes dos anos iniciais do Ensino Fundamental, na
região oeste do Paraná, por meio de um trabalho sistemático, articulado e contínuo,
estendido a esses profissionais.
Por meio desse projeto temos promovido discussões, que estão contribuindo para a
melhoria da prática de ensino de Língua Portuguesa de diversos docentes, as quais
pretendemos demonstrar neste trabalho. Assim sendo, dedicamos a parte inicial do
estudo à apresentação mais abrangente do Programa Observatório da Educação,
contextualizando o espaço em que se desenvolve o projeto a ele vinculado, e
relatando sobre a elaboração, aprovação e objetivos desse projeto. Em seguida,
fundamentamos o olhar que estabelecemos para o trabalho com a Língua
Portuguesa na sala de aula, apontando aspectos relacionados aos fundamentos
teóricos que embasam a prática docente nos municípios de abrangência do projeto.
Com essa fundamentação, apresentamos, na parte final deste texto, o resultado de
um trabalho de formação contínuo e sistematizado, oferecido a docentes dos anos
iniciais do Ensino Fundamental, indicando ações que mostram a articulação entre a
teoria e a prática de ensino na disciplina de Língua Portuguesa.

O Programa Observatório da Educação: elaboração e aprovação de um


projeto de formação continuada
O projeto mencionado “Formação continuada para professores da educação básica
nos anos iniciais: ações voltadas para a alfabetização em municípios com baixo
IDEB na região oeste do Paraná” foi aprovado em outubro de 2010 pela
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – e pelo
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP.
Sua elaboração deu-se a partir da necessidade de ofertar formação continuada para
professores que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental, em municípios do
oeste paranaense que, em 2009, apresentaram Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica – IDEB – abaixo de 5,0 (cinco).
Em junho de 2010, a CAPES e o INEP lançaram o Edital 038/2010 – Observatório
da Educação, por meio do qual convidavam Instituições de Educação Superior que,

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naquele momento, mantinham programas de pós-graduação stricto sensu com


conceito maior ou igual a 3 (três), a enviarem propostas de estudos e pesquisas de
acordo com a necessidades apresentadas no referido edital. Ao lançar essa
proposição, o Programa Observatório da Educação objetivou o fomento de estudos
e pesquisas sobre os processos de Alfabetização, de domínio da Língua Portuguesa e
da Matemática, bem como a produção acadêmica e a formação de recursos
humanos em educação, em nível de pós-graduação, mestrado e doutorado, para,
com isso, entre outras metas, fortalecer o diálogo entre a comunidade acadêmica, os
gestores das políticas nacionais de educação e os diversos atores envolvidos no
processo educacional.
O Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, nível de Mestrado e
Doutorado, com área de concentração em Linguagem e Sociedade56, da
UNIOESTE, campus de Cascavel/PR, interessou-se pelo Programa Observatório da
Educação e elaborou um projeto que, ao mesmo tempo, atendesse aos objetivos do
Observatório da Educação e às necessidades de formação continuada nas áreas de
Alfabetização, Língua Portuguesa e Matemática em alguns municípios da região
oeste de Paraná. A proposição de um projeto ao Edital 38/2010 CAPES/INEP só
ocorreu porque a equipe57 que constitui e organizou esse projeto acreditou na
possibilidade de articular os objetivos do Programa Observatório da Educação aos
estudos realizados na linha de pesquisa “Linguagem: práticas linguísticas, culturais e
de ensino” do referido Programa de Pós-Graduação. Tais estudos versam, entre
outras concepções, sobre a teoria dos gêneros discursivos/textuais, a concepção
sociointeracionista de linguagem, o referencial apresentado no Currículo Básico para
a Escola Pública Municipal (doravante CBEPM) (AMOP, 2007) e o processo de
formação continuada desenvolvido na região oeste do Paraná.
Foi elaborado, então, o projeto, o qual obteve aprovação junto à CAPES/INEP em
08 de outubro de 2010. Traçou-se, então, como objetivo geral, a necessidade de
implementar um núcleo de pesquisas focalizando os estudos que valorizassem a
alfabetização como um processo essencial ao exercício de práticas sociais de leitura,
numeramento, oralidade e escrita, de forma que, por meio de ações voltadas às
políticas educacionais de cada município e, dentre elas, a formação continuada de
docentes, promovesse o sucesso escolar de municípios da região oeste do Paraná
que apresentaram, no ano de 2009, IDEB abaixo de 5,0. Em termos gerais, as metas
desse projeto era levantar, por meio de pesquisas, as dificuldades dos alunos dos
anos iniciais em leitura e escrita (na área de Língua Portuguesa) e resolução de
problemas (em Matemática) para, a partir de tais dados, articular aprofundamentos

56
Em 2010 o referido Programa de Pós-Graduação contava apenas com o curso de Mestrado. Atualmente oferta Mestrado e
Doutorado com área de concentração em Linguagem e Sociedade.
57
Equipe coordenada pela Profª Drª Terezinha da Conceição Costa-Hübes, docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Letras, Mestrado e Doutorado em Linguagem e Sociedade, UNIOESTE.

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teóricos com os professores em momentos de formação continuada, visando


proporcionar-lhes reflexões em relação ao (não) domínio dos conteúdos das
disciplinas. No que se refere à Língua Portuguesa, as reflexões voltaram-se para a
alfabetização e o letramento a partir de um trabalho pautado nos gêneros
discursivos/textuais, base teórica e metodológica do CBPEM (AMOP, 2007).
Para dar conta do objetivo proposto, configuramos, em 2011, um Núcleo de
Pesquisa formado por 25 pesquisadores, sendo eles: 03 bolsistas CAPES da Pós-
graduação e 01 bolsista Fundação Araucária também da pós-graduação; 06 bolsista
CAPES da graduação em Letras; 06 bolsistas CAPES – Professores da Educação
Básica; 04 bolsistas PIBIC (CNPq, Fundação Araucária e UNIOESTE); e 5
pesquisadores voluntários (professores da Educação Básica).
Uma vez constituído o Núcleo de Pesquisa, lançamos um olhar para o oeste
paranaense, considerando os dados obtidos por Costa-Hübes (2008) em pesquisa
realizada sobre o perfil dos docentes nos diversos municípios dessa região. A
pesquisa revelou que a maioria dos municípios, apesar de administrar uma
quantidade pequena de docentes, não consegue organizar e ofertar uma formação
continuada com carga horária significativa na área de Língua Portuguesa. Tal
situação é assim justificada pela autora:
O resultado pode ser justificado, de certa forma, pelo fato de não ser
apenas a área de Língua Portuguesa que requer formação. [...] os recursos
destinados à formação continuada são distribuídos geralmente entre
cursos de 8 horas em cada área, ou, então, prioriza-se uma disciplina em
detrimento das demais.
Tal realidade justifica o pouco investimento em formação continuada na
área de Língua Portuguesa, e revela também qual é a cultura que persiste
em relação à formação: cursos pontuais (8 horas), direcionados, cada
vez, a uma diferente área, o que parece não garantir as reflexões
necessárias para cada uma delas. (COSTA-HÜBES, 2008, p. 187)

Em observância a essa realidade, acreditamos que o interesse pela formação de


professores da educação básica, especialmente àqueles que atuam nos anos iniciais
do Ensino Fundamental, deve ser o elemento norteador do projeto em questão, pois
partimos da hipótese de que, muitas vezes, as dificuldades dos alunos passam,
também, pelo conhecimento do professor em relação ao conteúdo avaliado. Sendo
assim, a ênfase aos processos de leitura, escrita e numeramento nos anos iniciais do
Ensino Fundamental foi no sentido de ampliar/aprofundar o conhecimento
científico do docente e, consequentemente, propiciar aos alunos maior domínio e
desenvolvimento nos níveis subsequentes do ensino.

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Em termos de avaliação da realidade brasileira, tomamos os dados apresentados nos


resultados do IDEB58. Ao analisarmos esse dados, nossa preocupação recaiu sobre
8 municípios do oeste do Paraná, que apresentaram índice inferior a 5,0 (cinco).
Embora tais municípios façam parte de um contexto regional que tem um histórico
representativo de formação continuada para docentes, os resultados revelaram a
necessidade de uma atenção especial ao processo educativo desenvolvido em cada
realidade municipal.
Dessa forma, considerando que o projeto organiza-se em torno desses municípios,
não podemos deixar de considerar, em nossas ações, estudos relacionados à
organização da Prova Brasil. Sabemos que o IDEB de cada município é calculado
com base nas taxas de aprovação e no desempenho dos alunos em avaliações
desenvolvidas e aplicadas pelo INEP, visando avaliar a qualidade do ensino
oferecido pelo sistema educacional brasileiro a partir de testes padronizados e
questionários socioeconômicos. Verificando que a avaliação aplicada aos estudantes
do 5º ano/4ª série é a Prova Brasil, cujo enfoque, na área de Língua Portuguesa, é a
leitura, nosso olhar voltou-se para a matriz de referência dessa avaliação e,
consequentemente, para os tópicos e descritores que organizam a prova.
Assim, partindo desse contexto, iniciamos, em janeiro de 2011, as ações
programadas no projeto. Dentre as várias ações previstas, diversas estão
intimamente relacionadas ao ensino da Língua Portuguesa. Sobre essas ações,
desenvolvidas ao longo desse período de formação continuada, dedicamos as partes
seguintes deste estudo. Na sequência, apresentamos a fundamentação teórica que
embasa as discussões relacionadas ao ensino da Língua Portuguesa e,
posteriormente, algumas ações empreendidas nos momentos de formação
continuada.

A teoria que fundamenta a prática para o ensino da Língua Portuguesa


Com atividades iniciadas em janeiro de 2011, os pesquisadores envolvidos no
projeto59, mais especificamente os da área de Língua Portuguesa, têm realizado
pesquisas e ações práticas sobre os processos de alfabetização, letramento e domínio
da Língua Portuguesa, com base teórica voltada à interação verbal proposta por
Bakhtin (2000, 2004) e ao interacionismo sócio-discursivo apresentado por
Bronckart (2003). Compreendendo a linguagem sob esse foco, a alfabetização e o
letramento também são tomados a partir dos usos da escrita e da leitura nas práticas
sociais. Trata-se, portanto, de um trabalho que se fundamenta no enfoque que

58
O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) foi criado em 2007 com o objetivo de verificar a qualidade de cada
escola e de cada rede de ensino. O indicador é calculado com base no desempenho do estudante em avaliações do INEP e em
taxas de aprovação.
59
Em 2012, a pedido dos municípios, iniciaram-se as atividades na área de Matemática. Para isso, a composição atual dos bolsistas
da graduação e da Educação Básica é a seguinte: 03 alunos do Curso de Letras e 03 do Curso de Pedagogia; 03 professores da
Educação Básica voltados para a Matemática e os outros 03 dando continuidade às ações em Língua Portuguesa.

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considera os gêneros discursivos/textuais como instrumentos de interação,


mediadores de ações sociais, construídos por sujeitos ativos e participantes das
diferentes esferas sociais. A fundamentação ancora-se também na concepção
teórico-filosófica que fundamenta o CBEPM (AMOP, 2007), documento que
organiza o ensino na região em que esse projeto é desenvolvido.
Há, assim, recorrência constante à interação verbal como condição para o trabalho
com a linguagem. Essa compreensão, pautada numa abordagem dialética de
produção do conhecimento, reconhece a linguagem como social, resultado de uma
construção coletiva e de processos de interação. Tal fundamento sustenta-se em
Bakhtin (2000, 2004) que propõe um olhar dialógico sobre a linguagem,
considerando-a como um ato social que se realiza e se modifica nas relações sociais
e, ao mesmo tempo, é meio para a interação humana e resultado dessa interação, já
que seus sentidos não podem ser desvinculados do contexto de produção. A
linguagem é, portanto, de natureza sócio-ideológica e tudo “[...] que é ideológico
possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo” (BAKHTIN,
2004, p. 31 - grifo do autor).
Essa vertente teórica que também fundamenta o CBEPM (AMOP, 2007) considera
a língua a partir de seu caráter discursivo, pois não a vê separada dos seus falantes e
dos seus atos, tampouco das esferas sociais e dos valores ideológicos.
[...] pensar o ensino de Língua Portuguesa implica pensar na realidade da
linguagem como algo que permeia todo o nosso cotidiano, articulando
nossas relações com o mundo e com o outro, e com os modos como
entendemos e produzimos essas relações. A percepção da natureza
histórica e social da linguagem, estabelecida nos meios de produção,
conduz-nos a compreender seu caráter dialógico, no sentido de que tudo
o que dizemos, fazemo-lo dirigido a alguém, a um interlocutor concreto,
quer dizer, sócio-historicamente situado. (AMOP, 2007, p. 144)

Enfatizando a necessidade de um trabalho com leitura, oralidade e escrita voltado


aos usos sociais da língua, o CBEPM (AMOP, 2007) orienta que esse trabalho pode
ser estruturado a partir do reconhecimento dos gêneros textuais 60, apontando-os
como objeto de ensino. “Os encaminhamentos metodológicos na concepção
sociointeracionista da linguagem implicam a compreensão de que os gêneros são
produzidos em função do uso geral da necessidade social” (AMOP, 2007, p. 147).
Na tentativa de apresentar um encaminhamento prático ao trabalho com os gêneros
discursivos/textuais, o CBEPM (AMOP, 2007) recorre à perspectiva adotada por
pesquisadores da Escola de Genebra, cujos representantes mais expressivos são
Bernard Schneuwly, Joaquim Dolz e Jean-Paul Bronckart. Conceituando os gêneros

60
O CBEPM (AMOP, 2007) adota a denominação “gêneros textuais”, considerando a familiaridade dos interlocutores desse
documento com o referido termo.

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textuais como textos relativamente estáveis, elaborados a partir de determinados


objetivos, Bronckart (2003) informa que:
Na escala sócio-histórica, os textos são produtos da atividade de
linguagem em funcionamento permanente nas formações sociais: em
função de seus objetivos, interesses e questões específicas, essas
formações elaboram diferentes espécies de textos, que apresentam
características relativamente estáveis (justificando-se que sejam chamadas
de gêneros de textos) e que ficam disponíveis no intertexto como
modelos indexados, para os contemporâneos e para as gerações
posteriores. (BRONCKART, 2003, p. 137)

Como proposta para atender ao trabalho com os gêneros, os autores de Genebra


apresentam um encaminhamento didático-metodológico conhecido como Sequência
Didática (SD), o qual é assim apresentado pelo CBEPM:
O encaminhamento didático-metodológico que dá conta desse trabalho
com os gêneros textuais é o da Sequência Didática (SD), proposta por
Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004). Trata-se de pensar e de planejar os
conteúdos, de maneira sistemática, por meio da elaboração de um
conjunto de atividades organizadas em torno de um gênero (oral ou
escrito). (AMOP, 2007, p. 149)

Pautado nesse referencial teórico proposto pelo CBEPM (AMOP, 2007),


recorrendo aos tópicos e descritores apresentados na Prova Brasil e articulando um
processo de formação continuada comprometido com os objetivos do Programa
Observatório da Educação, o projeto que desenvolvemos no oeste paranaense
prevê, ao longo de seus quatro anos de atividades (2011/2014), a execução de
diversas ações práticas, as quais já foram colocadas em prática ao longo do ano de
2011 e continuam em processo de realização no presente ano. A ação mais
expressiva é a oferta de um processo de formação docente contínuo, sistematizado e
organizado em diferentes áreas do conhecimento. No tocante à Língua Portuguesa,
foram planejadas 80 horas de formação para os professores dos anos iniciais do
Ensino Fundamental, em cada município inserido no projeto. O objetivo desse
contato contínuo com os docentes está pautado no aprimoramento de suas práticas
pedagógicas voltadas ao letramento, a fim de que as capacidades e habilidades de
leitura, oralidade, escrita e análise linguística sejam trabalhadas de forma efetiva na
sala de aula.

Teoria e prática para o ensino da Língua Portuguesa: a formação


continuada de docentes dos anos iniciais do Ensino Fundamental
Tomando a concepção de linguagem como forma de interação e considerando a
leitura com foco na interação autor-texto-leitor (KOCH; ELIAS, 2010), iniciamos
os trabalhos previstos no projeto “Formação continuada para professores da educação básica
nos anos iniciais: ações voltadas para a alfabetização em municípios com baixo IDEB na região

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Caderno Seminal

oeste do Paraná”. Após a apresentação desse projeto aos municípios participantes,


deu-se início a uma investigação sobre as políticas educacionais vigentes em cada
município. Para isso, aplicamos questionários às equipes pedagógicas atuantes nas
Secretarias Municipais de Educação e aos professores do Ensino Fundamental –
anos iniciais, na perspectiva de conhecer melhor esses sujeitos quanto à sua
formação, tempo de serviço na área da educação, turma(s) em que atuam,
dificuldades em relação às áreas de ensino, áreas afins à sua formação, hábitos de
leitura etc.
Após, com o intuito de levantar as maiores dificuldades em leitura apresentadas
pelos alunos para, posteriormente planejar as ações de formação continuada que
seriam ofertadas em cada município, a equipe de bolsistas integrantes do projeto
elaborou uma avaliação em Língua Portuguesa, pautada nos descritores da Prova
Brasil, direcionando-a aos alunos do Ensino Fundamental – anos iniciais, das turmas
de 3º, 4º e 5º ano, e 3ª e 4ª série (nos municípios que ainda trabalhavam com o
sistema de séries - Ensino Fundamental de 8 anos). Tal avaliação caracterizou-se
como um simulado, pois atendeu ao formato das provas aplicadas pelo exame da
Prova Brasil. Entretanto, além de respostas às questões objetivas, os alunos também
elaboraram, ao final do simulado, um texto escrito, atendendo a uma situação de
produção de acordo com um dos gêneros que apareceram ao longo da própria
avaliação.
Os dados coletados na aplicação dos questionários e na aplicação dessa
atividade avaliativa foram tabulados e organizados, com o objetivo de serem
utilizados em pesquisas futuras e, especialmente, para indicarem o percurso
necessário ao processo de formação continuada, estendido a cada município. Ou
seja, orientaram as ações de formação que foram organizadas a partir dos problemas
detectados nas respostas dos docentes e na realização da avaliação com os discentes.
A título de exemplificação da forma como se realizou esse trabalho de formação que
ainda está em andamento, optamos por relatar, no presente texto, o trabalho
desenvolvido em um dos municípios envolvidos no projeto. A intenção é mostrar
como organizamos o trabalho com os pressupostos teórico-metodológicos
presentes na proposta curricular, no caso o CBEPM (AMOP, 2007), e indicar a
forma como abordamos as questões relacionadas à Prova Brasil, mostrando como a
matriz de referência que conduz essa avaliação externa faz parte do dia a dia dos
conteúdos indicados para o trabalho com a Língua Portuguesa nos anos iniciais do
Ensino Fundamental. Dessa maneira, as formações aconteceram em forma de
oficinas, envolvendo sempre estudo teórico e reflexões práticas sobre a teoria
estudada, projetando tais reflexões para a produção de atividades direcionadas aos
alunos de 1º ao 5º anos.
No município pesquisado, os trabalhos iniciais de formação continuada tiveram
como objetivo um resgate sobre as concepções de linguagem que já fundamentaram
e a(s) que ainda se manifestam no trabalho com a Língua Portuguesa na sala de aula.

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Os professores participantes dos momentos de formação61 foram convidados a


fazerem uma leitura sistemática do referencial teórico de Língua Portuguesa
presente no CBEPM (AMOP, 2007), a fim de perceberem os objetivos,
encaminhamentos e ações práticas que subsidiam cada concepção de linguagem,
conforme apresentado nesse documento.
Na sequência das ações, as atividades do processo de formação continuada
voltaram-se para um estudo sistematizado da concepção de linguagem como forma
de interação, a qual, entre outros aspectos, prevê o papel do interlocutor na
produção de enunciados. Os professores conseguiram perceber que nessa
concepção,
A compreensão de que ler e escrever significa mergulhar num universo
conceitual que possibilita ao homem realizar processos mentais mais
elaborados, pelo grau de abstração contido na linguagem escrita, exige a
compreensão da totalidade da realidade percebida, e dos conhecimentos
historicamente produzidos. (AMOP, 2007, p. 139)

Assim sendo, houve uma intensificação nos estudos relacionados à interação por
meio da linguagem, fortalecendo os postulados de Bakhtin que defende uma
linguagem na qual “o sentido da palavra é totalmente determinado por seu contexto
e [...] há tantas significações possíveis quanto contextos possíveis” (BAKHTIN,
2004, p. 106).
Com relação à leitura, os encaminhamentos pautaram-se no foco da interação autor-
texto-leitor, considerando o caráter dialógico da língua (BAKHTIN, 2004). Os
docentes realizaram atividades visualizando a importância da presença do
interlocutor no processo de produção e organização de textos que circulam
socialmente, percebendo, novamente, a linguagem como forma de interação. Dessa
forma, reiteramos, junto aos professores, que o trabalho com a escrita e a leitura
deve considerar que o discurso se consolida por meio de enunciados concretos e
situados num determinado campo de atividade humana, pois
[...] cada esfera produz seus próprios gêneros. Todos os diversos campos
da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem. Compreende-se
perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes
quanto os campos da atividade humana, o que, é claro, não contradiz a
unidade nacional de uma língua. O emprego da língua efetua-se em
forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos,
proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade
humana. (BAKHTIN, 2000, p. 261, grifo nosso).

61
Num total aproximado de 40 professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental.

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Partindo desse referencial, os docentes passaram a interagir com a teoria que


fundamenta o trabalho com os gêneros discursivos nas atividades de Língua
Portuguesa. Para isso, entretanto, houve uma retomada conceitual relacionada aos
gêneros, informando sobre os estudos desenvolvidos por Bakhtin (2000, 2004) e
pelos pesquisadores do grupo de Genebra, momento em que discutimos o
encaminhamento didático-metodológico elaborado por esses pesquisadores: a
proposta da Sequência Didática (SD) (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY,
2004), destacada inclusive no CBEPM (AMOP, 2007), no qual se adota a adaptação
conforme Costa-Hübes (2008). Ainda que se apresente como um encaminhamento
presente no referencial curricular que orienta o ensino nessa região, os docentes do
município focalizado (tal como aconteceu também em outros municípios
participantes do projeto), tinham muitas dúvidas para organizar o trabalho
conforme indicado nessa proposta.
Uma sequência didática tem, precisamente, a finalidade de ajudar o aluno
a dominar melhor um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever
ou falar de uma maneira mais adequada numa dada situação de
comunicação (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 97).

Partindo da teoria que informa sobre a prática, os professores passaram a perceber


que, organizada a partir de uma ordem de atividades, essa orientação metodológica,
que no Currículo foi adaptada por Costa-Hübes (apud AMOP, 2007), propõe um
olhar para o texto, considerando-o como a materialização de um gênero discursivo
que apresenta função social, contexto de produção, organização composicional e
marcas linguísticas que definem seu estilo.
Ao falar sobre esses aspectos que caracterizam um gênero discursivo, inserimos, nas
discussões, os resultados da avaliação realizada com os alunos, mostrando aos
docentes que os questionamentos presentes na Prova Brasil fazem parte de uma
matriz de referência que contempla muitas das questões que são trabalhadas
constantemente no ensino da Língua Portuguesa. No momento que abordamos
esses descritores, evidenciamos atividades que envolvem a materialidade de um
gênero discursivo, enfocando os elementos que o constituem de uma forma geral.
Desse modo, os docentes tiveram contato com questões relacionadas a:
procedimentos de leitura, implicações do suporte, do gênero e/ou enunciador na
compreensão do texto, relação entre textos, coerência e coesão no processamento
do texto; relações entre recursos expressivos e efeitos de sentido; variação
linguística, uma vez que são os tópicos que compõem a matriz de referência da
Prova Brasil.
A principal estratégia utilizada, relacionada aos descritores da Prova Brasil, baseou-
se, inicialmente, na compreensão de cada descritor, seguida de elaboração, por parte
dos docentes, de atividades relacionadas a cada descritor. Com isso, houve um
entendimento de que o trabalho com os tópicos e descritores da Prova Brasil

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perpassa todo um encaminhamento comprometido com a leitura e com


compreensão do texto, exigindo que este seja encarado como um enunciado
concreto, situado num determinado campo de atividade humana (BAKHTIN,
2000), produzido com um propósito de interação entre locutor e interlocutor (es).
Com a elaboração de atividades, os professores compreenderam os objetivos da
matriz de referência da Prova Brasil, bem como dos tópicos e descritores que a
compõem. Também tiveram um contato maior com a teoria que fundamenta suas
práticas cotidianas no ensino da Língua Portuguesa, além de interagirem com
diferentes atividades que possibilitam um trabalho voltado à linguagem como forma
de interação.

Considerações finais
Essa breve apresentação teve como objetivo ressaltar alguns encaminhamentos
realizados pelo projeto “Formação continuada para professores da educação básica
nos anos iniciais: ações voltadas para a alfabetização em municípios com baixo
IDEB na região oeste do Paraná” acerca do trabalho com a escrita e a leitura na
formação continuada de docentes, guiado por um referencial curricular que norteia
o trabalho com a Língua Portuguesa e pela matriz de referência da Prova Brasil.
A partir de dados revelados em pesquisa realizada junto aos docentes e por meio de
uma avaliação aplicada aos alunos, encaminhamos conteúdos que pudessem atender,
primeiramente, aos docentes, para em seguida, estenderem-se aos discentes. Houve
um grande empenho por parte dos professores participantes da formação
continuada para interagirem com conteúdos, até então, desconhecidos por muitos.
Ainda que os trabalhos de formação continuada desenvolvidos no projeto estejam
em andamento, é possível verificar que a prática da escrita e da leitura na sala de aula
necessita de consistentes subsídios teóricos e metodológicos que possam amparar os
docentes na elaboração de seus planos de ensino. O intuito de diagnosticar os
problemas relacionados a esses aspectos do ensino da Língua Portuguesa, para,
posteriormente, abordá-los no processo de formação continuada, foi condizente
com os anseios que os docentes depositam nesse processo.
Finalmente, ressaltamos que o fundamento que ampara as ações de formação
baseia-se no pressuposto de que a formação continuada é uma “[...] possibilidade de
trabalho com os conteúdos historicamente acumulados e a busca da autonomia
intelectual e moral através, justamente, da transmissão das formas mais elevadas e
desenvolvidas do conhecimento socialmente existente” (DUARTE, 2001, p. 36).
Por isso, almejamos que esses momentos de formação possam mediar um (re)
direcionamento da prática docente, propondo a inserção dos alunos no âmbito da
escrita e da leitura numa concepção dialógica de linguagem.

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Referências
AMOP – Associação dos Municípios do Oeste do Paraná. Currículo Básico para a Escola
Pública Municipal: Educação Infantil e Ensino Fundamental (anos iniciais). Cascavel:
ASSOESTE, 2007.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
______. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004.
BRONCKART, Jean-Paul. Atividades de linguagem, textos e discursos. São Paulo: Educ, 2003.
COSTA-HÜBES, Terezinha da Conceição. O processo de formação continuada dos professores no
Oeste do Paraná: um resgate histórico-reflexivo da formação em Língua Portuguesa.
Londrina, UEL, 2008 (Tese de Doutorado).
DOLZ, Joaquim; NOVERRAZ, Michele; SCHNEUWLY, Bernard. Sequências didáticas
para o oral e a escrita: apresentação de um procedimento. In: DOLZ, Joaquim;
SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução e organização: Roxane
Rojo e Glaís Sales Cordeiro. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004. p. 95-128.
DUARTE, Newton. Vygotsky e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e
pós-modernas da teoria vigotskyana. Campinas, SP. Autores Associados, 2001.
KOCH, Ingedore Grünfeld Villaça; ELIAS, Vanda Maria. Ler e compreender: os sentidos do
texto. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2010.

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RADIOGRAFANDO AS COMPETÊNCIAS DO PROFESSOR EM


(TRANS) FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES DE LÍNGUAS NO
PROJETO “TELETANDEM BRASIL: LÍNGUAS ESTRANGEIRAS
PARA TODOS”
RADIOGRAPHIC SKILLS TEACHER IN (TRANS) INITIAL TRAINING LANGUAGE TEACHER
IN PROJECT "TELETANDEM BRAZIL: FOREIGN LANGUAGES FOR ALL"

Kleber Aparecido da Silva62

RESUMO
O presente artigo visa investigar se no processo de formação inicial, desenvolvido no Teletandem
Brasil e envolvendo um professor mediador e um par de interagentes (um brasileiro e um
estrangeiro), ocorre legitimação de crenças ou (re) construção de competências. Para o
desenvolvimento desta investigação, temos como norte a seguinte pergunta de pesquisa: “A
professora mediadora legitima as suas próprias crenças e/ou cria condições para a (re) construção de competências?”.
Para responder a esta pergunta, desenvolvemos uma pesquisa de natureza qualitativo-
interpretativista (BROWN, 1988; NUNAN, 1992; MOITA LOPES, 1994), etnográfica virtual
(HINE, 1998; GURIBE & WASSON, 2002). O referencial teórico é baseado em estudos sobre
essas questões realizados em Linguística Aplicada que tiveram como foco o ensino de línguas por
meio de (Tele) tandem, o ensino reflexivo e a aprendizagem reflexiva e as competências do
professor de línguas para o meio presencial e/ou virtual. No que tange aos reflexos das ações
realizadas pela professora mediadora no sistema de crenças do interagente brasileiro, os dados
revelam que a professora, por ter sólida formação em Linguística Aplicada e por estar engajada em
um curso de pós-graduação Stricto Sensu (Doutorado em Estudos Linguísticos), possibilita meios
para que a interagente possa refletir sobre o processo de ensino e aprendizagem de línguas,
mostrando que as ações empreendidas pela mediadora nas sessões de mediação não são formas de
apenas legitimar as crenças, mas de possibilitar condições para que a interagente (re) construa
competências e pense criticamente acerca do seu papel como professora ou como aprendiz de
línguas.
Palavras-Chaves: Formação de professores de línguas; Crenças; Competências; Reflexão;
Teletandem; Linguística Aplicada.

ABSTRACT
This article aims at investigating if in the process of initial teacher education developed in the scope
of the “Teletandem Brasil” project involving a mediator teacher and two interactants (foreigner and
Brazilian) occurs legitimacy of beliefs or (re) construction of competencies. In order to develop this
investigation, our research guiding question is: What reflexes can the actions performed by the
mediator teacher have on the system of beliefs of the Brazilian interagent? For answering this
question it was developed a qualitative-interpretative research (BROWN, 1988; NUNAN, 1992;
MOITA LOPES, 1994) and a virtual ethnographic orientation (HINE, 1998; GURIBE &
WASSON, 2002). The theoretical reference is based on studies related to these questions carried
out in Applied Linguistics whose focuses were the teaching of English through (Tele) tandem,
reflective teaching and reflexive learning and competencies of the language teacher related to the

62
Universidade de Brasília (UnB). kleberunicamp@yahoo.com.br

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virtual and face-to-face environments. Concerning the reflections of the actions performed by the
mediator teacher on the system of beliefs of the Brazilian interactant data reveal that due to her
solid formation in Applied Linguistics and her engagement in a Doctorate in Linguistics Studies this
teacher in question makes possible the reflection of the interagent about learning and
teaching languages, showing that her actions during her mediation sessions are not only ways of
legitimating her own beliefs, but also of creating conditions that enable the interactant to (re)
construct competencies and to think critically about her role as a teacher or language learner.
Key-words: Teachers Educator; Beliefs; Competences; Reflection; Teletandem; Applied
Linguistics.

Introdução
A sociedade brasileira está em processo de digitalização e/ou de (trans) (multi)
letramentos digitais. Por esta razão, a oferta e a procura por cursos ou programas
que utilizem interfaces tecnológicas em situação de ensino-aprendizagem e de (trans)
formação inicial e/ou contínua de professores de línguas têm sido marcadamente
crescentes (cf. FREIRE, 2009; VIEIRA-ABRAHÃO, 2009), sendo necessário que o
profissional de línguas, delimite e atravesse as fronteiras digitais, e isto só será possível
por meio das práticas de letramento(s) digitais múltiplos (cf. ROJO, 2009, 2005).
Para corresponder a esta caracterização do mercado de trabalho, FREIRE (2009, p
53) afirma que “(...) o professor de línguas se vê diante da necessidade de associar a
formação tecnológica a linguística, para que possa incluir/excluir o computador em sua
prática docente, no momento adequado e de forma pertinente” (Ênfase adicionada).
No entanto, conforme enfatizado por diversos estudiosos da Linguística Aplicada
(doravante LA) e/ou áreas afins (TELLES, 2009; VIEIRA-ABRAHÃO, 2009;
SILVA, 2008; ARAÚJO, 2007; TELLES & VASSALLO, 2006; VASSALLO &
TELLES, 2006; dentre outros), em sua (trans) formação inicial, nem sempre os
professores vivenciam atividades instrucionais mediadas pelo computador, e,
mesmo quando isto acontece, conforme corroborado por FREIRE (2009, p. 53),
“poucas são as chances de discutir o potencial dessa ferramenta e de seus contextos de
aplicação, uma vez que seus formadores, em geral, revelam carência de conhecimento na
área de tecnologia educacional ou resistência à utilização da máquina e a reflexão crítica sobre suas
implicações para o ensino-aprendizagem de línguas” (Ênfase adicionada).
A constatação dessa lacuna na formação inicial ou pré-serviço do professor de
línguas contextualiza a proposta deste artigo, que tem por objetivo apresentar e
refletir criticamente sobre as competências que são (re) construídas pelos
participantes da pesquisa dentro do contexto teletandem63. Acreditamos que esta
perspectiva nos propiciará subsídios teóricos e práticos, para que o professor de
línguas atue com maior eficácia no meio virtual, promovendo, por sua vez, de uma

63
Para uma explicitação mais abrangente do referido contexto e dos estudos empíricos realizados na UNESP (São José do Rio
Preto e Assis), veja Telles (2009).

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forma articulada, a (re) construção do conhecimento acoplado com uma formação


mais sólida e condizente com as demandas da sociedade em que estamos inseridos.
Para tanto, o presente artigo se ancorará no seguinte binômio teórico: a) uma
perspectiva de uma (trans) formação inicial de professores de línguas fundamentada
nos pressupostos do ensino-aprendizagem e da formação colaborativa e/ou
cooperativa (VIEIRA-ABRAHÃO, 2009; FIGUEIREDO, 2006); b) uma visão de
(re) construção de conhecimento como processo complexo, contínuo, não
fragmentado, e portanto, transdisciplinar (FREIRE, 2009; PAIVA, 2008; MOITA
LOPES, 2006; BAKHTIN, 1929/1979, 2003).
Orientados pelo entendimento da LA como campo de investigação transdisciplinar,
conforme asseveram CELANI (1998) e ROJO (2006), transgressivo, na perspectiva de
PENNYCOOK (2006) ou indisciplinar, como quer MOITA LOPES (2006),
procuraremos fazer com que os resultados parciais de nossos estudos possam vir a
contribuir e fundamentar nossas ações e teorizações, auxiliando-nos a alcançar a
leveza de pensamento (ROJO, 2006) necessária para o (re) encontro de caminhos e
formas de abordagens mais condizentes com os paradigmas da contemporaneidade.

O contexto “Teletandem” e a nossa pesquisa: Breves reflexões


Para SOUZA (2003a, p. 114) e conforme já apresentado por Benedetti no capítulo I
desta coletânea, a palavra ‘tandem’ é usada em referência à bicicleta de dois assentos64.
Com essa representação pictórica, podemos dizer que a expressão ‘aprendizagem
em regime de tandem’ sugere a cooperação entre dois aprendizes que estarão trabalhando
conjuntamente (acrescentamos, ou seja, colaborativamente) em busca do objetivo de
aprendizagem de uma língua estrangeira, tal como dois ciclistas colocando uma única
bicicleta em movimento” (Ênfase adicionada). Ou seria como quatro pessoas em
um barco e/ou canoa, tendo como objetivo, chegar a determinado lugar. Para tal
intento, é imprescindível cooperação e a colaboração entre todos. Isto implica definir
prioridades e metas; e negociar com o(s) parceiro(s) as maneiras para atingi-la(s).
Este é o contexto teletandem que envolve um ambiente de ensino-aprendizagem que
utiliza webcam, microfone e aplicativos do tipo MSN Messenger, Oovoo ou Skype, a fim
de (re) criar uma atmosfera propícia em que a interação entre os pares de falantes
nativos (e/ou competentes) de línguas possam trabalhar de forma cooperativa e
colaborativa com o intuito de ensinar a sua própria língua e de aprender uma LE (cf.
TELLES, 2009).
Conforme corroborado por VASSALO & TELLES (2006a, p. 190), aprendizagem
de LEs in tandem “envolve pares falantes (nativos ou competentes) com o objetivo
de aprenderem, cada um, a língua do outro, por meio de sessões bilíngues de

64
O maior tandem do mundo foi construído na Austrália em 1984 e tinha a capacidade de 74 ciclistas, segundo o site eletrônico:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bicicleta_Tandem.

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conversação”. Certamente, neste contexto autônomo e ao mesmo tempo


cooperativo e/ou colaborativo de ensino e aprendizagem de línguas, cada um dos
interagentes torna-se aprendiz de uma língua estrangeira e tutor da sua língua
materna65. Para TELLES (2006, p. 8) o Teletandem é uma nova modalidade de ensino,
quando afirma que o Teletandem é
um tandem a distância que faz uso do aspecto oral (ouvir e falar) e do
aspecto escrito (escrever e ler), por meio de conferências em
áudio/vídeo, utilizando o MSN Messenger 7.5, um aplicativo da
Microsoft que dispõe de recursos que permitem que o usuário efetue
interações na língua estrangeira com o seu parceiro, utilizando a voz, o
texto (leitura e escrita) e imagens de vídeo por meio de uma webcam -
em tempo real. Além de ser gratuito, o MSN Messenger é mais rápido do
que usar o e-mail (comunicação assíncrona) e se constitui em uma opção
para conversar (ouvir e falar), para ler e escrever, e para ver o parceiro do
outro lado por meio da vídeo-câmera, tudo de forma simultânea
(comunicação síncrona)”. Diferentemente de amigos que se encontram
para conversar e “corrigir” um ao outro, o teletandem se constitui em
um novo método de ensino e aprendizagem que permite o acesso
democrático e gratuito às línguas estrangeiras (Ênfase adicionada).

Sem dúvida, o Teletandem oferece ferramentas e contextos apropriados para que os


participantes geograficamente distanciados, possam praticar virtualmente a
produção e a compreensão orais, além das habilidades de leitura e escrita (cf.
TELLES, 2009). Dessa forma, tal modalidade (cf. TELLES, 2006), a nosso ver meio
e/ou contexto de ensino-aprendizagem e pesquisa (Ênfase adicionada) pode, ainda,
proporcionar, de modo virtual, a aproximação que caracteriza o processo de ensino-
aprendizagem do modo face a face ou presencial.
No contexto do projeto temático apresentado em TELLES (2009) e em outros
artigos publicados nesta mesma coletânea, três objetivos norteiam o
desenvolvimento das pesquisas do grupo “Teletandem Brasil: Línguas Estrangeiras para
Todos”. São eles: (a) investigar o funcionamento de aplicativos de mensagens
instantâneas via teleconferência (Windows Live Messenger, Skype e Oovoo, por exemplo)
como ferramentas e contextos multimediais para a aprendizagem de línguas
estrangeiras in-tandem a distância; em particular os seus recursos de vídeo e de som
na interação oral e escrita em língua estrangeira; b) verificar os processos de
interação e de aprendizagem entre os pares de jovens, participantes do tandem a
distancia; c) analisar os quesitos necessários à formação inicial e contínua do

65
Estamos conscientes de que o “professor mediador” e/ou “mediador” também seja um “interagente” e “um mediador”. Porém,
quando fizermos menção ao termo “interagente” estamos nos referindo aos “participantes” brasileiro ou estrangeiro, embora
saibamos que o “professor mediador” ou “mediador“ também interage nas sessões de mediação com o interagente brasileiro, e
oposto também é verdadeiro. A nosso ver, é preciso que encontremos na literatura em LA talvez um termo mais adequado para se
referir aos participantes desta pesquisa, sejam eles os “interagentes” e os “professores mediadores”.

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professor e seu papel de professor e mediador da aprendizagem neste novo contexto


interativo de ensino/aprendizagem de línguas estrangeiras em in-tandem a distância.
Desta forma, o presente estudo empírico de doutorado intitulado “O professor
mediador e os interagentes (brasileiro e estrangeiro) no Teletandem Brasil:
Legitimação de crenças e/ou (re) construção de competências?”, se insere no
terceiro objetivo de pesquisa, mais especificamente no subprojeto guarda-chuva
intitulado “O professor mediador: crenças, ações e seus reflexos nas práticas
docentes dos pares envolvidos no tandem à distância”66. Pretende-se investigar se no
processo de formação inicial, desenvolvido no Teletandem Brasil e envolvendo um
professor mediador (que desempenha o papel de formador de professor) e os
interagentes (brasileiro e estrangeiro, mas tendo como participante primário o
interagente brasileiro), que desempenham concomitantemente os papéis de
professor/aluno, ocorre legitimação de crenças e/ou (re) construção de
competências.
Vale ressaltar que há poucos estudos empíricos na LA brasileira que tenham, por
sua vez, investigado as variáveis apresentadas preliminarmente, ou seja, o ensino de
línguas por meio de MSN Messenger integrando, de forma síncrona e/ou
assíncrona, as quatro habilidades e que investiguem especialmente a (trans)
formação inicial do professor e do formador de professores de LE (MENDES,
2009; BEDRAN, 2008; KFOURI-KANEOYA, 2008; MESQUITA, 2008;
SALOMÃO, 2008) para o meio virtual. Este cerne é de suma importância e foi
justamente o foco investigativo do nosso estudo empírico, e neste artigo
apresentaremos um pequeno recorte, contemplando, por sua vez, uma radiografia
parcial das competências do professor mediador que emergiram a partir da análise
dos dados num contexto virtual.

Competências do professor contemporâneo de língua estrangeira:


Reflexões e considerações conceituais e terminológicas
Esta seção tem por objetivo fundamentar a análise de dados, por esta razão,
apresentaremos reflexões e considerações acerca do termo competência sob o olhar da
LA e, a seguir, apresentaremos as competências já elicitadas em estudos empíricos
do referido campo de investigação, tendo como escopo o âmbito presencial e/ou
virtual.
Neste estudo o conceito de competências é entendido como a capacidade de saber
fazer, ser capaz de agir em determinadas situações, fazendo uso de conhecimentos
construídos (cf. BASSO, 2001). Segundo PERRENOUD (2001), a competência
pode ser concebida como a capacidade do indivíduo de agir eficazmente em um
determinado tipo de situação, apoiando-se em conhecimentos, sem, contudo,

66
Este subprojeto de pesquisa é de responsabilidade da Profª Drª Maria Helena Vieira-Abrahão, vice-coordenadora do Projeto
“Teletandem Brasil: Línguas Estrangeiras para Todos” (CNPQ/FAPESP).

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limitar-se a eles. O autor assevera, ainda, que a competência é a faculdade de


mobilizar recursos cognitivos – como saberes, habilidades e informações – para
solucionar, com pertinência e eficácia, uma série de situações.
PERRENOUD (2001, p. 148) prossegue afirmando que podemos definir saberes
como “o conjunto de conhecimentos que apresentam certa unidade em virtude de
suas fontes e objetivos”, sendo que os mesmos, conforme apontam SADALLA et al
(2002), podem reunir-se segundo diferentes categorias e tipologias, tais como
saberes científicos, eruditos, do senso comum, da experiência, entre outros. É
importante ressaltar que o professor se apropria dos saberes de “forma única e
subjetiva”, sendo os mesmos “construídos e desconstruídos na prática” (SADALLA
et al, 2002, p. 59).
De acordo com SADALLA et al (2002, p. 61), é exatamente o caráter reflexivo que
possibilita uma relação adequada entre saberes e competências, uma vez que na
ausência da reflexão, tais conceitos estariam relacionados a habilidades pura e
meramente técnicas. Conforme já explicitado, PERRENOUD (2000, p. 15) afirma
que competência é “uma capacidade de mobilizar diversos recursos cognitivos para
enfrentar um tipo de situação”. Deste modo, segundo SADALLA et al (2002, p. 61),
podemos entender a competência (do professor) não como um saber ou atitude,
mas sim, como “a capacidade de mobilizar determinados saberes, atitudes e esquemas de
pensamento, como recursos para agir numa determinada situação, adaptando-se da
melhor maneira a ela” (Ênfase adicionada).
Dentro desta perspectiva, entendemos que a competência não pode ser relacionada
à imitação de modelos ou ao acúmulo de conhecimentos, uma vez que ela envolve a
ação de resolver problemas e, portanto, fazer escolhas, apoiando-se em
conhecimentos já (re) construídos, ao mesmo tempo em que se buscam e se (re)
constroem novos conhecimentos. É pertinente ressaltar que, na medida em que
pressupõe a (re) construção de saberes e a existência de aprendizagens para que se
possa identificar e encontrar conhecimentos pertinentes a uma dada situação
(BARBOSA, 2001), o conceito de competência abarca a mobilização de conteúdos.
Contudo, é relevante salientarmos que as competências não são conteúdos em si,
sendo este o ponto que distingue uma abordagem embasada na (re) construção de
competências de uma abordagem essencialmente cognitivista, centrada unicamente
na “ampliação de conhecimentos e distinção de conteúdos” (BARBOSA, 2001, p.
102). Ao propor o conceito, PERRENOUD (1999) advoga nessa direção,
enfatizando que a apropriação de uma competência é mais que a simples
internalização de conteúdos factuais ou conceituais e que a mobilização de saberes
não deve ser confundida com conhecimento acumulado.
O processo educativo, destaca o autor, envolve tempo de trabalho e reflexão, o que,
por sua vez, implica a construção de conhecimento através da ação e menor ênfase
nos conteúdos (formais). Conforme salienta BARBOSA (2001, p. 104), para

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PERRENOUD (1999), ao construirmos o processo de ensino-aprendizagem, “há


algo mais em jogo, para além de conteúdos na realização de ações – sejam elas
verbais ou não”.
Desta forma, a ênfase recai na importância do ensino como promotor do
desenvolvimento integral do aluno e na relevância das relações sociais no processo
de construção do conhecimento. Nessa perspectiva, entendemos ser o conceito de
competência compatível com a visão de ensino-aprendizagem como co-construção
de conhecimentos (VYGOTSKY, 1998, 2001), uma vez que, distante de abordagens
assimilativas e conteudistas (gramaticalistas), “ele traz em si uma referência a
situações práticas e sociais” (BARBOSA, 2001, p. 102).
PERRENOUD (2001) enfatiza, ainda, que a associação entre as ideias de
competência e de mobilização de saberes está intimamente ligada à construção da
cidadania e da postura crítica do indivíduo. A este respeito, BARBOSA (2001, p.
101) pontua que o que sustenta uma abordagem apoiada no conceito de
competências é, também, a acepção de que abordagens tradicionais, calcadas no
acúmulo de informações, não preparam o indivíduo “para que ele possa ter
igualdade de oportunidades no mundo atual” ou tampouco são capazes de
promover a reflexão através do processo de ensino-aprendizagem.
Segundo CRISTOVÃO (2005, p. 106), os sentidos dos conceitos de competência,
capacidades, habilidades e conhecimentos “são muito próximos”, o que nos leva a
compreender que o entendimento desses termos depende do posicionamento
teórico e, consequentemente, da visão dos autores que os utilizam para tecerem
considerações sobre o processo educativo. BARBOSA (2001) caminha na mesma
direção, enfatizando que a noção de competência, assim como outras terminologias,
a saber, habilidades, capacidades, estratégias, dentre outras, são complexas, podendo
ser, na maioria das vezes, problemáticas. Na acepção da autora, isto pode ocorrer
porque esses conceitos mostram-se inespecíficos e insuficientes ou, ainda, porque
carregam traços de perspectivas teóricas distintas.
Ressaltamos que, para BRONCKART & DOLZ (1999), na área da Didática de
Línguas, por exemplo, o conceito de competência deve ser abandonado em favor do
conceito de capacidade. De acordo com CRISTOVÃO (2005, p. 107), os autores
citados, ao fazerem “uma retrospectiva histórica das concepções de competência desde
o século XV”, entendem que o referido conceito carrega, ainda, conotações que
acentuam concepções inatistas em relação à aquisição da linguagem.
A autora acrescenta que, na acepção de BRONCKART & DOLZ (1999), o termo
capacidade, por sua vez, “estaria relacionado com a dimensão da aprendizagem,
exigindo do sujeito sua participação prática no processo” (CRISTÓVÃO, 2005, p.
108). Esse posicionamento, contudo, encontra-se em conflito com o pensamento de
outros teóricos da área (BASSO, 2008, 2001; BARBOSA, 2001; ALMEIDA

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FILHO, 1999, 1993; dentre outros), os quais fazem uso do termo competência em seus
trabalhos, distanciando-se de postulações de cunho chomskiano.
No entanto, não temos como objetivo principal neste artigo, aprofundar as questões
terminológicas desses conceitos. Privilegiamos, aqui, a noção de competência
defendida por ALMEIDA FILHO (2006, 2004, 1999, 1993) e BASSO (2008, 2001),
entendendo o termo capacidades como direta e intrinsecamente relacionado ao
primeiro. Convergimos, portanto, com CRISTOVÃO (2005, p. 107) a este respeito,
uma vez que a citada autora afirma que podemos “perceber uma relação bastante
direta entre capacidade e competência, capacidade e habilidade”, na medida em que,
ao serem abordados na Educação (PERRENOUD, 1999, 2000, 2001) ou na LA
(MOITA LOPES, 1996; ALMEIDA FILHO, 1993, DENTRE OUTROS),
geralmente “um conceito é usado para explicar o outro”.
Assim, é importante ressaltar que, em nosso estudo, ancorando-nos em BARBOSA
(2001) e CRISTOVÃO (2005), fazemos uso de ambos os termos indistintamente,
abordando-os como algo (re) construído através das interações sociais e mobilizado
“por redes advindas da apropriação de práticas sociais, discursos e conhecimentos”
(BARBOSA, 2001, p. 105). Desta forma, nosso foco, ao nos referirmos a tais
conceitos, distancia-se dos conflitos terminológicos e recai na importância dos
mesmos em relação à construção de objetivos para o ensino de línguas, os quais, por
sua vez, devem estar, em nosso contexto, vinculados à acepção vygotskyana de que
“é na ação conjunta que a linguagem se torna significativa” (MIRANDA, 2005, p.
15) e na relevância da cultura para o processo.

As competências de um professor de LE no meio presencial e/ou virtual


Nesta parte do artigo tomaremos como referencial o modelo teórico proposto por
ALMEIDA FILHO (2006, 2004, 1999, 1993) e os que tiveram o mesmo por
inspiração (BASSO, 2008, 2001), os quais evidenciam as competências que
consideramos desejáveis ao profissional atuante no processo de ensino e
aprendizagem de LE, conforme ilustrado a seguir.

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FIGURA 1
AS COMPETÊNCIAS DO PROFESSOR DE LE SEGUNDO ALMEIDA FILHO (2006, 2004, 1993)

Segundo Almeida Filho (1993, 2004, 2006), quando um professor se coloca no lugar
e momento de ensinar, um feixe ou “aglomerado de conhecimentos informais
anteriormente construído”, o qual abarca desde percepções, intuições, memórias,
sacadas, imagens e crenças67 até pressupostos teóricos explícitos, tudo sob uma
configuração de atitudes, posta-se a serviço desse ensinar, embasando todas as suas
tomadas de decisões. A “qualidade, natureza ou textura da ação de ensinar,
portanto, vai depender de uma combinação ou nível de uma ou mais de cinco
competências básicas”: linguístico-comunicativa, implícita, teórica, aplicada e profissional.
Segundo Almeida Filho (1993, 2004, 2006), para ensinar, o professor necessita, no
mínimo, das competências linguístico-comunicativa e implícita.
A primeira, a competência linguístico-comunicativa, permitirá ao professor “ensinar
o que sabe sobre a língua em questão e envolver os aprendentes numa teia de
linguagem na língua-alvo”. A segunda, a competência implícita, lhe facultará “agir
espontaneamente para ensinar através de procedimentos tidos como apropriados”
(Almeida Filho, 2004, p. 13).

67
Para maiores informações sobre estas categorias de informalidade, veja os estudos de Bandeira (2003), Silva (2005) e Silva,
Rocha e Sandei (2005).

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Na medida em que o professor avança na sua profissionalização, crescem as chances


desse profissional desenvolver competência teórica sobre os processos de ensinar e
aprender línguas conhecidos em teorizações de autores e pesquisadores. Tal
competência “requer que se saiba e se saiba explicar por meio de termos e
teorizações explícitas e articuladas como se dá o processo de ensinar e aprender
língua(s)” (Almeida Filho, op. cit.: 13).
Essa competência interfaceia com a competência implícita, visando equilibrar o
“saber dizer” com o “saber fazer”, desfazendo a dicotomia teoria-prática que
sempre nos assombra na profissão. Nessa perspectiva, segundo o citado autor,
começa-se fazendo (ensinando e aprendendo) simplesmente e, ao mesmo tempo,
gradualmente aprende-se a explicar satisfatoriamente esse processo.
A competência de ensinar que sintetiza essas duas competências é a competência
aplicada, “um misto de teoria e prática na medida do seu ajuste possível num dado
momento” (Almeida Filho, op. cit. 13). Para balizar o desenvolvimento parcial de
cada competência e sinalizar os horizontes profissionais desejados, insinua-se uma
competência profissional. Nas palavras de Almeida Filho (op. cit.: 13)
“Essa capacidade macro-sistêmica de reconhecer-se profissional, de
reconhecer padrões nas redes sociais em que circulam e de buscar ajuda
no aperfeiçoamento constitui o domínio dessa competência consciência
de si e das outras”.

Basso (2001), inspirada no modelo proposto por Almeida Filho (1993), propõe uma
equação de competências necessárias a um professor de LE constituída de duas
faces, conforme pode ser observado na figura a seguir.

FIGURA 2

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AS COMPETÊNCIAS DO PROFESSOR DE LE SEGUNDO BASSO (2001)

Na primeira face apresenta as competências do professor relativas ao domínio do


uso e da forma da LE: Competência Discursiva, composta pelas Competências Estratégica,
Comunicativa, Linguística e Competência Meta. Na outra face, a autora propõe o conceito
de Competência Profissional, circundada pela Competência de Ensinar; a Competência
Reflexiva, isto é, "a capacidade de refletir e buscar soluções para os problemas que
enfrenta no cotidiano".
Por último, chega-se, de acordo com a autora, à dimensão maior da Competência
Profissional que é de "educar para o futuro, transformando o presente; de ser não
somente o que informa, mas o que forma; não o que repassa somente um código,
mas que aponta caminhos aos alunos para que transformem através dos novos
horizontes de possibilidades abertos pela nova língua" (Basso, 2001).
Basso (2001) optou por não utilizar o conceito "competência aplicada" por dois
motivos fundamentais: primeiro, o mesmo se encontra no conceito proposto pela
referida autora (competência reflexiva); segundo, a palavra "aplicada" poderia ser
facilmente confundido com "aplicações de teorias linguísticas" (cf. Claus, 2005).
Vale salientar que os estudos sobre competências desenvolvidos na LA brasileira
tiveram como escopo o âmbito presencial, e neste estudo analisaremos as
competências do professor de línguas no âmbito virtual.

Metodologia de Pesquisa
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de base etnográfica virtual (André, 2003; Guribe &
Wasson, 2002; Hine, 1998), caracterizada pela descrição e estudo de situações
concretas e singulares; e pela consideração da perspectiva dos participantes da
pesquisa.
A pesquisa foi realizada em um contexto virtual de ensino-aprendizagem e de (trans)
formação inicial e contínua de professores de línguas, e envolveu um professor
mediador (uma aluna de doutorado de um reconhecido programa de pós-graduação
Stricto Sensu em Estudos Linguísticos), um interagente brasileiro (uma aluna do
curso de Letras de uma universidade pública, localizada numa cidade de porte
médio, de um estado do sudeste brasileiro) e um estrangeiro (um aluno do curso de
“Literatura” numa universidade estadunidense).
Para a coleta dos registros foram escolhidas as seguintes técnicas, utilizadas em
pesquisas de base etnográfica: diários de pesquisa por parte da interagente brasileira e
do professor mediador; gravação em áudio e vídeo das interações em pares e das
interações professor mediador e do seu respectivo interagente brasileiro;
autobiografias do professor mediador e do seu respectivo interagente brasileiro com o
objetivo de entender as crenças e as suas possíveis origens; e questionários
semiestruturados e entrevistas com o objetivo de conhecer melhor os participantes de
nossa pesquisa. Estes instrumentos de coleta fizeram parte desta pesquisa, que por

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sua vez, estava subdividida em quatro fases, conforme pode ser observado na tabela
abaixo.

INSTRUMENTOS DE COLETA DE REGISTROS E GERAÇÃO DE DADOS


Participantes Instrumentos Fases da Objetivos
Investigação
Professora Autobiografias e questionários 1ª Fase Levantar as crenças entre
mediadora e a os participantes
interagente
brasileira
Professora Diários de pesquisa por parte da 2ª Fase Analisar as crenças e
Mediadora e a interagente brasileira e do professor quais/como as
interagente mediador; gravação em áudio e competências são (re)
brasileira vídeo das interações em pares e construídas neste novo
das interações professor mediador e contexto de ensino-
do seu respectivo interagente aprendizagem de línguas
brasileiro.
Professora Gravações em áudio e vídeo das 3ª Fase Procuramos analisar os
mediadora e os interações entre a interagente reflexos que as ações
interagentes brasileira e a professora mediadora realizadas pela professora-
(brasileira e e as sessões de interação com o mediadora podem ter no
estrangeiro) interagente estrangeiro. sistema de crenças do
interagente brasileiro.

Análise de Dados
Com o propósito de investigar se no processo de (trans) formação inicial,
desenvolvido no projeto “Teletandem Brasil: Línguas Estrangeiras para Todos” com um
professor mediador e os interagentes (brasileiro e o estrangeiro), ocorre legitimação
de crenças e/ou (re) construção de competências, nos respaldaremos na seguinte
pergunta de pesquisa: “Que reflexos as ações realizadas pela professora mediadora podem ter
no sistema de crenças do interagente brasileiro?”. Para investigar esta questão, focalizaremos
em duas sub-perguntas neste artigo: “O que acontece no trabalho de mediação e/ou
supervisão? A professora mediadora legitima as suas próprias crenças e/ou cria condições para a
(re) construção de competências?.

O acontece no trabalho de mediação?


No processo de mediação, a professora mediadora, sempre possibilitou meios para a
reflexão, conduzindo a interagente brasileira a refletir acerca do processo de
aprender e de ensinar uma LE. O excerto abaixo assevera isto
A diferença, no entanto, creio que tenha sido no nível de reflexão que
procurei promover, uma vez que houve pelo menos dois momentos em
que a percebi que a Cláudia pareceu repensar” alguns eventos das
interações, à luz dos questionamentos. (Excerto 01: Diário da
Mediadora)

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Este repensar, segundo a professora mediadora, está relacionado às estratégias que


poderiam ser utilizadas pela interagente brasileira nas interações tanto em língua
portuguesa quanto em LE (neste caso, Inglês), conforme pode ser observado nos
excertos abaixo.
(...) Um dos momentos foi a respeito das interações em português:
perguntei o que ela pretendia fazer para tentar ajudar o seu par
interagente (doravante PI) a superar essa “dificuldade” que ela diz
perceber durante as interações em português. Sugeri que ela pensasse em
estratégias, ou ações pedagógicas concretas e ela diz que ainda não sabe o que
fazer. Quando surgiu a ideia de proporem-se temas para que eles se
preparassem antes das interações, ela diz que desconfia que seu PI pode
não gostar, visto que em outros momentos em que a interação fica um
pouco previsível, ele parece não gostar muito. Ainda creio que, do ponto
de vista pedagógico, essa seria uma boa alternativa, pois, supõe-se que PI
iria pesquisar, não só o vocabulário, mas outros aspectos linguísticos
para falar sobre os temas definidos, e assim, haveria produção de insumo
e, possivelmente, o feedback a essa produção. Porém, não sei até que
ponto devo insistir nisso. Aliás, não tenho certeza se isso seria realmente
eficaz e, por outro lado, Cláudia não parece ter outras ideias
alternativas... Por esse motivo, sugeri que ela relesse todas as interações
em português, com o objetivo de buscar possíveis alternativas para essa
questão de ensino do português como língua estrangeira. (Excerto 02:
Diário da Mediadora)

(...) O outro momento em que percebi certa reflexão foi quando falávamos
sobre seu processo de aprendizagem e ela disse não ter certeza sobre quais
aspectos ela deveria melhorar e ela afirmou não saber. Além disso, ela
havia feito uma comparação entre a produção de PI em português e sua
própria em inglês e afirmou que achava que PI usava a língua estrangeira
melhor do que ela, pelo pouco tempo que ele diz estar estudando (5
semanas). Eu então perguntei quais aspectos de sua produção PI tem
corrigido e ela disse que também ainda não havia prestado atenção nisso.
Nesse momento ela pareceu perceber que, apesar de observar esses
detalhes durante as interações em português, quando ela é a
”professora”, ela não estava fazendo o mesmo durante as interações em
inglês, quando é aprendiz... Sugeri, então, que ela relesse as interações em
inglês e tentasse perceber em que momentos ocorrem as correções, o
que ela achou uma boa ideia. (Excerto 03: Diário da Mediadora)

Conforme podemos observar nos excertos 02 e 03, esta reflexão envolveria a


utilização de estratégias ou ações pedagógicas concretas e uma reflexão concernente
ao processo de aprender e ensinar línguas em que ambas estavam inseridas.
A abordagem utilizada pela mediadora está em consonância com a proposta por
KORTHAGEN & KESSELS (1999) e intitula-se “realista”. Segundo os referidos
autores e corroborado por Vieira-Abrahão (2009, p. 20), esta abordagem

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(...) prevê a integração teoria e prática de tal maneira que propicie a


integração de ambas no interior do professor. Seu ponto de partida são
problemas reais encontrados na prática de ensinar do professor e o
conhecimento é construído (acrescentamos reconstruídos) por meio da
reflexão sobre os problemas reais encontrados e por meio de teorias que
se fazem necessárias para a compreensão e busca de soluções.

O excerto apresentado a seguir evidencia a (re) construção desta abordagem de


ensino, evidenciando a (re) articulação entre os princípios teóricos advindos das
discussões teóricas antes/durante as mediações e o oferecimento de textos teóricos
para leitura e reflexão, com o intuito de “embasar a discussão e o planejamento de
ações futuras”, bem como aventar possíveis soluções para problemas ou questões
envolvendo a linguagem que possam surgir.
Sueli: Eu não sei se é por ai que você fere o princípio da autonomia. O que eu
entendi, eu vou te falar o que eu entendi durante a sua apresentação. Eu acho que
o fato de você pretender no seu projeto induzir, não negociar, induzir
determinadas...
Cláudia: Ah eu entendi também...
Sueli: Isso entra em conflito com o princípio da autonomia, a ideia de indução.
Cláudia: Hum hum.
Sueli: Que é diferente de negociação.
Cláudia: É, mas se isso é só uma tática que eu estou usando para ensinar para ele,
o que ele já demonstrou estar precisando, entendeu? E não só isso, porque eu não
posso ficar corrigindo todos os erros que ele produz em uma interação, né? Às
vezes eu induzo ele a assim ―ah como diz nananã‖, e eu ―ah como diz nananã?‖,
eu não falo ―ó ta errado é assim‖.
Sueli: É uma reformulação.
Cláudia: Eu repito, não é uma forma de indução. Eu to induzindo ele a ver que
aquilo que produziu é um erro.
Sueli: Ah entendi.
Cláudia: (risos)
Sueli: E você considera isso uma maneira de induzi-lo.
Cláudia: Hum hum. Eu estou induzindo ele a ver o que ele fez ta errado e...
Sueli: Você precisa colocar isso no seu ponto de vista, Cláudia. É uma maneira
diferente de ver a indução.
Cláudia : Humhum.
Sueli: Nesse exemplo específico que você deu, por exemplo...
Cláudia: Porque eu faço muito isso.
Sueli: Porque isso, num sei, seria até interessante você ler, porque dentro das
diferentes maneiras de fazer correção, essa é uma delas, ela chama reformulação.
Cláudia: Humhum.
Sueli: Em que você repete o que o aluno disse eliminando o erro, mas de uma
maneira implícita.
Cláudia: Humhum.
Sueli: Você não está dizendo ―ó, está errado, é assim‖, você simplesmente refaz o
enunciado, eliminando o erro e continua a interação, sem chamar a atenção para
isso.
Cláudia: Humhum.

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Sueli: Então isso se chama reformulação. Eu nunca havia pensado nisso como
uma maneira de indução, nunca. Bom, aliás se eu pensar assim, todas as maneiras
de correção são uma forma de indução. Pensa um pouco.
Cláudia: Todas?
Sueli: Eu não estou induzindo o outro a perceber de forma implícita ou explícita
que tá errado, que eu considero aquilo como um erro? O certo seria uma outra
forma? (mediação 3 entre Cláudia e Sueli). (Excerto 04: Diário da Mediadora)

Neste excerto, é possível observarmos um diálogo crítico-reflexivo entre a Cláudia


(que desempenha o papel de aluna-professora) e Sueli (no papel de professora
mediadora) sobre conceitos amplamente utilizados nas teorias de ensino-
aprendizagem de línguas, a saber: autonomia, negociação, correção e/ou tratamento
de erros de erros, reformulação e indução (Cavalari, 2009). A mediadora traz as
questões da linguagem inseridas nesta prática social real (virtual), à luz dos princípios
teóricos advindos da LA e/ou áreas afins. Por ter desenvolvido um estudo empírico
de mestrado tendo como cerne as questões supracitadas, a professora mediadora
tem um sólido embasamento teórico, procurando, de uma forma reflexiva,
cooperativa e colaborativa, auxiliar a sua interagente a examinar e a refletir sobre
suas ações, visto que a mesma ainda desconhece estes pressupostos teóricos visto
que no momento quando foi coletado os registrados, a interagente brasileira se
encontrava no processo de (trans) formação inicial de professores de línguas.
Algo que nos chamou muito a atenção na releitura e posterior análise dos dados, é a
maneira como Sueli sugere a Cláudia que se (des) envolva nas interações e que
mergulhe nas leituras teóricas da área. Estas ações, propiciarão que a mesma realize
uma prática mais efetiva e possa estar preparada para as futuras interações com o
estrangeiro estadunidense, articulando as teorias advindas da literatura com as suas
próprias e as teorias implícitas do estrangeiro. Neste caminho é possível
depreendermos o desenvolvimento e/ou (re) construção de duas competências: a) a
teórica, que segundo Vieira-Abrahão (1996), envolve saber explicar porque ensina da
forma que ensina, e porque os alunos aprendem da forma que aprendem (estratégias
e estilos de aprendizagem; inteligência múltiplas, dentre outros), ao passo que
fizermos isto estaremos desenvolvendo aquilo que Prabhu (1990) denominada como
senso de plausibilidade68; b) a aplicada, vivenciada e/ou sintética, que envolve, segundo
Almeida Filho (1993), o professor explicar “(...) com plausibilidade por que ensina
como ensina da maneira como ensina e porque obtém os resultados que obtém”.
Sem dúvida, a nosso ver e corroborado por outros excertos extraídos, a professora
mediadora possibilita meios para que a interagente possa refletir sobre o processo de
ensino e aprendizagem de línguas, mostrando que as ações empreendidas pela
mesma nas sessões de mediação não são formas de apenas legitimar as suas próprias
crenças, mas de possibilitar condições para que a interagente (re)construa as

68
Para maiores informações sobre o “senso de plausibilidade” do professor de línguas, veja Sandei (2007).

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competências (teórica e aplicada/sintética e vivenciada) e pense criticamente acerca


do seu papel como professora ou como aprendiz de línguas.

A professora mediadora: Legitima as suas próprias crenças e/ou


(re)constrói competências?
Conforme já apresentado e discutido na seção anterior, a professora cria condições
para a (re) construção de competências para o meio virtual. Por esta razão,
apresentaremos nesta seção algumas competências69 que emergiram ou que foram
(re) construídas nas sessões de mediação e os possíveis reflexos das mesmas nas
interações do interagente brasileiro com o estrangeiro.

A Competência Implícita
Corroboramos com ALMEIDA FILHO (1993) quando afirma que a “competência
implícita” é constituída de “crenças e intuições”, que são geralmente influenciadas
por nossas experiências vividas, assim como pela tradição cultural de seu país ou
etnia. Geralmente esta competência implícita, na maioria das vezes, não é conhecida
pelo professor de língua em (trans) formação inicial e/ou contínua. O (re)
conhecimento desta competência se dá, convergindo com diversos estudiosos da
LA (VIEIRA-ABRAHÃO, 2009, 2004; ALMEIDA FLHO, 2006; SILVA, ROCHA
& SANDEI, 2005; dentre outros), por meio de diários reflexivos, sessões de
visionamento, revisitação vicária e/ou outros procedimentos que poderiam ser
utilizados advindos da prática crítico-reflexiva (SILVA, ROCHA & SANDEI,
2005).
Por se tratar de um estudo empírico de doutorado, realizamos, dentre outras coisas,
o levantamento de quatro categorizas de crenças a partir dos instrumentos de coleta
de registros apresentados preliminarmente (questionários e autobiografias),
incluindo as suas respectivas subcategorias diversas, a saber: a) o contexto de ensino e
aprendizagem de línguas; b) concepções de escola pública/particular; c) experiências de ensino
vivenciadas pelos participantes; d) convergências e/ou divergências das crenças entre os participantes
e suas possíveis origens.
Tendo como escopo teórico os estudos sobre crenças realizados no Brasil e no
exterior (KALAJA, PAIVA & BARCELOS, 2008; BARCELOS, 2007; BARCELOS
& VIEIRA-ABRAHÃO, 2006; KALAJA & BARCELOS, 2005), e principalmente,
o contexto inovador de ensino-aprendizagem e de (trans) formação de professores
de línguas, concebemos crenças, sob um viés bakhtiniano, como os diferentes
modos, axiologicamente (leia-se ideologicamente) constituídos, de se atribuir
sentido(s) ao mundo, refletindo-o e, também, refratando-o. São, portanto,
dialogicamente constituídas pela diversidade e pelos conflitos, assumindo um caráter

69
Por uma questão de espaço, não serão apresentadas todas as competências que emergiram no nosso estudo empírico. Em
outro artigo e na tese, que se encontra em desenvolvimento, serão apresentadas as mesmas.

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multissêmico, em uma sociedade marcada, por sua vez, pelas contradições e


confrontos de interesses e valores (cf. Faraco, 2006).
Neste sentido, as quatro categorias de crenças já identificadas neste estudo podem
ser definidas abaixo, por meio dos aspectos aos quais se relacionam:
a) O contexto de ensino e aprendizagem de línguas: Esta categoria refere-se as primeiras
experiências de escolarização; os primeiros contatos com o ensino de línguas
advindos da experiência da escola pública e/ou particular de ensino, conforme pode
ser observado nos excertos apresentados a seguir:
Eu tinha 5 (quase 6) anos quando fui a escola pela primeira vez - uma
pré-escola da prefeitura, perto de casa. Não fui alfabetizada antes da
primeira série, portando, só aprendi as primeiras letras aos 7 anos de
idade, na Escola Estadual Cenobelino de Barros Serra. (Excerto 05:
Mediadora – Autobiografia)

Minha primeira experiência escolar foi aos 3 anos de idade, em uma


escolinha da prefeitura no bairro em que moro. Estudei neste local por
dois anos e tenho a lembrança de ter sido encarregada de fazer um
desenho sobre o Natal que seria exposto na Biblioteca Municipal, o que
me motivou muito a realizar tal atividade. Quando eu estava com 5 anos,
quase completando 6, meus pais conseguiram uma vaga para que eu
estudasse na pré-escola de uma escola muito bem conceituada na época:
o Centro Educacional SESI 410, onde permaneci até a oitava série.
Lembro-me que tive uma boa relação com a professora do pré, tanto que
o contato com ela continuou por muito tempo depois de eu ter
terminado aquela série. Quando cheguei à primeira série, eu já estava
alfabetizada e, por isso, não encontrei muitas dificuldades. Eu fui uma
boa aluna, tanto por cobrança dos meus pais quanto minha mesmo - eu
adorava quando a professora escrevia um “Parabéns” no meu caderno e
colocava três estrelinhas! Um aspecto muito positivo desta escola era que
desde cedo fui incentivada à leitura. Lembro-me que, na segunda série,
inscrevi-me em um concurso de redação (interno mesmo, só para as
segundas séries) que tinha como prêmio um livro e, para minha
satisfação, acabei vencendo tal concurso. (Excerto 06: Interagente –
Autobiografia)

b) Concepções de escola pública/particular e as experiências vivenciadas pelos participantes nos


referidos contextos: Tanto a professora mediadora quanto a interagente tiveram
experiências no ensino de línguas no contexto da escola pública e particular de
ensino. Porém, conforme pode se observar nos excertos abaixo, as suas visões e
concepções sobre os referidos contextos divergem, e as variáveis que justificam a
referida divergência serão explicitadas nas próximas subseções.
(...) Minha lembrança da escola pública, é de um ambiente de muita
descontração, onde eu me sentia completamente a vontade – às vezes,
fazia os exercícios no colo da professora e, normalmente, no final da
aula, eu e minhas amigas (que vieram da pré-escola) tínhamos permissão

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para cantarmos nossas músicas preferidas na frente da classe. No colégio


particular, por sua vez, a professora da segunda série mais parecia um
general militar, pois tinha uma visão de disciplina extremamente rígida. A
verdade é que eu não conseguia entender certas exigências que ela fazia:
as carteiras deveriam estar sempre rigorosamente alinhadas; os lápis
(todos!, inclusive os de cor) deveriam ser apontados em casa e não
deveríamos trazer o apontador para a sala de aula – e nem usar lapiseira;
não podíamos nos levantar da carteira, nem ir ao banheiro durante a aula
– enfim, havia uma série de novas regras às quais tive que me adaptar a
duras penas, pois foi um período muito difícil. (Excerto 07: Mediadora –
Autobiografia)

As regras de disciplina daquela escola na época para o primeiro ciclo do


Ensino Fundamental (primeira a quarta série) eram muito rígidas: para
sairmos para o recreio tínhamos de fazer fila por ordem de tamanho e
chegar ao pátio em fila; quando dava o sinal para retornarmos à sala de
aula, também deveríamos fazer fila e, antes de entrarmos, cantávamos
algumas músicas (estas que se ensinam às crianças na escola); todos os
alunos deviam estar uniformizados para assistirem aula, tanto que no
começo do ano éramos obrigados a comprar duas trocas do uniforme - o
não cumprimento dessa norma acarretava em, no mínimo, uma carta de
advertência aos pais; todos os cadernos e livros tinham de ser encapados
com papel verniz azul marinho; nossas carteiras deveriam estar sempre
alinhadas e nunca encostadas na parede. Contudo, nunca encontrei
dificuldades em atender a estas exigências, pelo contrário, eu fazia de
tudo para nunca levar uma advertência, pois para mim isso era muito
feio para uma menina. Devo salientar que meus pais nunca foram
autoritários comigo, ou seja, eles cobravam que eu estudasse para ser
alguém na vida, não que eu fosse a melhor aluna da sala. No entanto,
desenvolvi, acredito que por mim mesmo, este comportamento
conservador. (Excerto 08: Interagente – Autobiografia)

Esta incongruência e/ou divergência de visões/concepções sobre o contexto das


escolas da rede (pública e particular) de ensino deve-se a especificidades que
engendram cada contexto. Conforme já corroborado em outros estudos (Coelho,
2005; Silva, 2005; Barcelos, 1995), muitos acreditam que não se aprende inglês na escola
pública (cf. Coelho, 2005). Porém, ainda há alguns nichos públicos de ensino que
ainda gozam de prestígio (escolas técnicas, Sesi, etc.).
Ou seja, muitos acreditam que é possível ensinar-aprender línguas neste contexto, e
não no contexto “tradicional” de ensino público. Certamente há inúmeros fatores
que poderiam dificultar o ensino efetivo de LEs nas escolas públicas de ensino:
salas de aula superlotadas; infraestrutura inadequada; livros didáticos, dentre outros.
Porém, a nosso ver, precisamos pensar em mecanismos para a superação destas
mazelas que certamente dificultam mas não impossibilitam o processo de ensino e de
aprendizagem de LEs.

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Corroboramos com Paiva (1997, p. 9) quando afirma que o professor de línguas


“(...) deveria ter, além de consciência política, bom domínio do idioma (oral e escrito) e
sólida formação pedagógica com aprofundamento em Linguística Aplicada”. Este
“domínio do idioma (oral e escrito)”, envolve aquilo que concebemos como
“competência linguística comunicativa”, experiência na e sobre a língua alvo e a
“formação pedagógica com aprofundamento em LA” seria aquilo que Almeida
Filho (1993) pontuava como “competência teórica”.
Este protótipo prefigurado por Paiva (1997), que deveria fazer parte da nossa
“realidade”, está apenas no âmbito “ideal”, e é reduzido em nossa sociedade. Por
esta razão, a nosso ver, é necessária uma transformação e/ou metamorfose das
políticas de formação de professores de línguas no contexto brasileiro.
c) Convergências e/ou divergências das crenças entre os participantes e suas possíveis origens: Os
participantes de nossa pesquisa em muitos momentos apresentam convergências no
seu sistema de crenças. Hipotetizamos que isto se deve ao processo de (trans)
formação inicial e/ou contínua em que ambas as participantes estão inseridas
(graduação no caso da interangente e de pós-graduação no caso da professora
mediadora) e que se respaldam, por sua vez, nos paradigmas de uma prática crítico-
reflexiva, conforme pode ser observado em Vieira-Abrahão (2006), e no sítio
eletrônico da instituição.
“O trabalho de formação inicial (...) fundamenta-se na perspectiva de
aprendizagem docente como cognição, como construção de
conhecimentos, mais especificamente em uma concepção
sociointeracional, e como prática reflexiva” 70.

“(...) O objetivo principal é formar docentes que atuem no ensino


superior e pesquisadores capazes de contribuir para as áreas de concentração
contempladas” 71.

Por os pesquisadores da linguagem que estão imbricados dentro deste nicho


acadêmico-científico (formação inicial e/ou contínua) e que tem os pressupostos
teóricos e práticos da reflexão, observamos que este discurso não se encontra
apenas no “dizer”, mas também no “fazer” acadêmico.

70
Para maiores informações sobre a filosofia que interfaceia os cursos de formação inicial da UNESP (São José do Rio Preto),
Universidade Estadual de Londrina (UEL), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), veja Vieira-Abrahão,
71
As áreas de concentração do programa Stricto Sensu em “Estudos Linguísticos” (Mestrado e Doutorado), a saber: a) “Análise
Linguística”, com seis linhas de pesquisa (descrição e análise das línguas de especialidade; descrição funcional de língua oral e
escrita; estudos do texto e do discurso; oralidade e letramento; tratamento do léxico da língua geral; variação e mudança
linguística); b) “LA”, com duas linhas de pesquisa (ensino e aprendizagem de Línguas – linha de pesquisa em que a professora
mediadora desenvolveu o seu estudo e nicho aonde esta tese de doutorado se inseriu; e estudos da tradução).

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Quanto às origens das crenças, Vieira-Abrahão (2004, p. 147) assevera que, “mapear
com exatidão as origens das crenças trazidas pelos alunos professores de línguas” é
uma missão “difícil senão impossível”. Levando em consideração esta premissa, o
que pretendemos apresentar nesta subseção são hipóteses baseadas nos fatos,
reflexões das histórias de vida de cada participante para se ter uma visão mais ampla
destas origens.
A análise evidenciou que a professora mediadora, antes de iniciar a sua formação em
LA por meio dos cursos de pós-graduação Stricto Sensu (Mestrado e Doutorado),
tinha a sua prática pedagógica como professora de língua inglesa respalda em: a) sua
experiência como aluna (cultura de aprender); b) treinamentos semestrais dados pela
escola de língua que trabalhava (cultura de terceiros) e; c) pelos congressos da área
que participava; conforme pode ser observado no excerto 09:
“(...) por minha experiência como aluna, especialmente como aluna de
língua estrangeira; pelos treinamentos semestrais dados por essa escola,
onde trabalhei por 6 anos; pelos congressos para professores dos quais
passei a participar periodicamente”. (Excerto 09: Autobiografia da
Professora Mediadora)

A partir deste excerto podemos hipotetizar que grande parte das crenças dessa
professora mediadora teve como gênesis a sua experiência como aprendiz, como
professora de escola de línguas e do processo de formação na pós-graduação que
certamente contribuiu expressivamente para a (re) construção do seu sistema de
crenças.
No que tange a interagente brasileira, as suas crenças sobre o ensino e aprendizagem
de línguas advém da sua experiência como aluna (observe os excertos 10 e 11) e do
processo de (trans) formação inicial de professores que está inserida no momento
(excerto 12), conforme pode ser observado nos excertos abaixo e no diagrama
abaixo.
(...) De maneira geral, acredito que tive uma boa formação no segundo
ciclo do Ensino Fundamental em todas as disciplinas, exceto com
relação ao inglês. As professoras que tive trabalhavam muito
superficialmente o conteúdo e sempre fazendo traduções de tudo que
estava na lousa ou livro, não exploravam todas as habilidades, somente a
escrita e, mesmo assim, apenas fazendo exercícios de lacuna presentes no
livro didático. Acredito que isso contribuiu para que eu não percebesse
uma função prática no que eu estava aprendendo, fazendo com que eu
me desinteressasse completamente por esta disciplina, ou seja, eu
estudava bastante e fazia as atividades pedidas somente para garantir a
minha nota. (Excerto 10: Autobiografia da Interagente Brasileira)

(...) não tive uma boa formação com relação ao inglês e, sendo assim, a
disciplina de Língua Inglesa na faculdade é a que exigiu e ainda exige

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meus maiores esforços para se obter progresso. (Excerto 11:


Autobiografia da Interagente Brasileira)

(...) O estímulo para eu pensar em um projeto de Iniciação Científica


veio quando eu entrei em contato com o Teletandem Brasil, agora no
quarto ano. Com este projeto eu pude esboçar uma pesquisa que tratasse
de algo que sempre me chamou a atenção desde o segundo ano da
graduação, após ter tido um breve contato com tal assunto em uma aula:
o ensino de língua portuguesa para estrangeiros. Sinto que, finalmente,
encontrei o que eu estava procurando, pois estou adorando refletir sobre
as dificuldades encontradas por um estrangeiro (no caso da minha
pesquisa um americano), em aprender a língua portuguesa. Tal
experiência também motivou-me a pensar a respeito de um projeto de
mestrado. Este ano, estou cursando as disciplinas de Prática de Ensino
em Língua Materna e Estrangeira, para as quais tive de fazer estágios de
observação e elaborar minicursos. (Excerto 12: Autobiografia da
Interagente Brasileira)

É digno de nota que, a interagente brasileira teve como possível gênesis de suas
crenças a sua cultura de aprender e a cultura de aprender a ensinar línguas, enquanto
que a professora mediadora teve como gênesis a sua cultura de aprender, cultura de
terceiros e cultura de aprender a ensinar línguas.
A nosso ver, é necessário que os cursos de (trans) formação inicial propiciem aos
futuros professores de línguas subsídios teóricos, práticos e metodológicos
concernentes a como os nossos alunos aprendem uma LE. Em outras palavras, é
necessário que desmistifiquemos a cultura de aprender línguas deles, a partir disto,
de uma forma cooperativa/colaborativa e/ou autônoma, eles poderão desenvolver
uma abordagem crítica-reflexiva.

Teórica e Aplicada/Reflexiva/Vivenciada
Para ALMEIDA FILHO (1993, p. 37) a competência teórica se refere ao
conhecimento que vamos (re) construindo “(...) nos escritos, nos resultados de
pesquisa de outros e que o professor já articula, de maneira que aquilo que ele faz
vai ficando mais próximo daquilo que se sabe, que leu e que já sabe articular”.
Enquanto que, para VIEIRA-ABRAHÃO (1996) a competência teórica é
considerada uma sub-competência aplicada, reflexiva e/ou vivenciada (BASSO,
2001), pois oferece explicações para o saber ensinar e o saber aprender.
A competência aplicada, por sua vez, é concebida como “(...) aquela que
capacita o professor a ensinar de acordo com o que sabe
conscientemente (sub-competência teórica) permitindo a ele explicar
com plausibilidade por que ensina como ensina da maneira como ensina e porque
obtém os resultados que obtém” (ALMEIDA FILHO, 1993, p. 37 – Ênfase
adicionada).

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Tendo estes aportes teóricos como alusão e/ou pano de fundo, apresentaremos a
seguir excertos que mostram possíveis reflexos da competência teórica e o articular
da mesma tendo o meio onde a professora mediadora e a interagente brasileira estão
inseridas e/ou imbricadas. Segundo os registros extraídos de sua autobiografia, a
professora mediadora teve o “despertar” pela docência no ensino de línguas quando
começou a ministrar aulas para crianças e adolescentes. A partir deste momento, ela
decidiu se engajar na docência de línguas e através desta atuação se sentia realizada
(fatores afetivos e/ou motivacionais).
No segundo ano de faculdade, surgiu uma oportunidade para que eu
começasse a dar aulas de inglês: uma de minhas ex-professoras havia
aberto sua própria escola de línguas e me convidou pra fazer um
treinamento seletivo de professores. Comecei a dar aulas para crianças e
adolescentes e, nesse momento, percebi que jamais seria tradutora. O trabalho do
tradutor, apesar de desafiador, é muito solitário e minha experiência
como professora de línguas me mostrou que o contato com as pessoas e
a interação com os alunos eram extremamente importantes para mim - eu
me sentia plenamente realizada na sala de aula. Eu me esforçava muito para
aprender a ensinar e tentava sempre me colocar no lugar do meu aluno,
o que deve ter sido uma boa estratégia – os alunos pareciam gostar das
minhas aulas e, a cada semestre, eu tinha mais turmas, de níveis cada vez
mais avançados. (Excerto 13: Mediadora – Autobiografia)

Agora, tendo como foco o processo de mediação entre a Sueli e Cláudia, fica
evidente a postura não diretiva, colaborativa e autoexploratória da professora
mediadora, visto que ela não impõe, mas sugere procedimentos que poderiam ser
utilizados pela interagente brasileira a fim de lidar com uma questão levantada pelo
interagente estrangeiro.
Suely: E eu percebi que você tem, num é nem questão de você corrigir, é que às
vezes é muito difícil de entender. Eu percebo que você negocia isso com ele assim
né?
Cláudia: Aham.
Suely: Então. E percebendo que isso é um dos problemas, você imagina uma 25
maneira de tentar ajudá-lo com relação a isso?
Cláudia: Primeiro de tudo que eu penso com relação a isso e não falar assim
diretão ―O que que você quis dizer com isso?‖ ou coisa assim direto que eu acho
que inibe muito.
Suely: Hum hum.
Cláudia: Então eu pergunto algo mais sutil, sem perguntar de uma maneira bem
/?/
Suely: Não, eu acho que é uma maneira assim, quando atrapalha a comunicação.
Muitas vezes num tem como você ser sutil.
Cláudia: É que muitas vezes você fala assim ―Que?‖.Né? É uma coisa assim meio
chata.
Suely: Aham.
Cláudia: Eu acho ―O que você quis dizer com tal palavra?‖

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Suely: Exatamente.
Cláudia: Coisa mais./?/
Suely: Aham, eu percebo que você...
Cláudia: Mas com relação a uma estratégia concreta para eu ajudar a ele quanto a
isso eu num sei. Acho que depende mais do momento, num sei.
Suely: Acho que seria interessante você pensar sabe, eu também assim, eu gostaria
que você tentasse levantar algumas possibilidades entendeu? Tentar realmente em
como, que tipo de atividade, ou que tipo de estratégia, enfim, como professora de
língua estrangeira, o que você pode fazer para ajudá-lo a
desenvolver melhor essa questão de adequação. Eu acho que realmente parece ser
um ponto importante...
(Excerto 14: Segunda interação entre a mediadora e a interagente brasileira)

Fica evidenciado neste excerto que a mediadora sugere e conduz a interagente


brasileira a refletir sobre a questão. Este procedimento, a nosso ver, evidencia o
articular dos princípios teóricos que ela já abarca advindo do processo de formação
inicial e contínua e o a prática social real em que esteja inserida. Reiteramos que, na
leitura dos dados, percebe-se em vários momentos que a referida mediadora, por ter
um senso de plausibilidade acoplado com uma competência teórica, sabe explicar
porque ensina da forma que ensina, nos mostrando que já tem desenvolvido uma
competência aplicada (Almeida Filho, 1993) e/ou reflexiva (Basso, 2001).

Competência Intercultural
Para Kramsch (1993), e corroborado por Mendes (2007, p. 120), a competência
intercultural se refere aos
(...) modos de compreender o ‘outro’ e a sua linguagem nacional.

(...) processo de comunicação entre pessoas que falam a mesma língua e


compartilham um mesmo território, mas que participam de diferentes
grupos culturais, como étnicos, sociais, de gênero, sexuais, etc. Então,
pode designar as interações comunicativas entre indivíduos de classes
sociais diferentes, grupos profissionais diferentes, entre gays e
heterossexuais, entre homens e mulheres.

(...) pode também se referir ao diálogo entre culturas minoritárias e culturas


dominantes, sendo também associado com situações de bilingualismo e
biculturalismo. (Ênfase adicionada)

Sob esta perspectiva, analisaremos agora o excerto 15 e vejamos os pressupostos


teóricos apresentados preliminarmente e as sugestões dadas pela professora
mediadora, que na perspectiva da interagente brasileira não seria eficaz, conforme
pode ser observado a seguir
(...) Quando surgiu a ideia de proporem-se temas para que eles se
preparassem antes das interações, ela diz que desconfia que seu par
interagente (doravante PI) pode não gostar, visto que em outros

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momentos em que a interação fica um pouco previsível, ele parece não


gostar muito. Ainda creio que, do ponto de vista pedagógico, essa seria
uma boa alternativa, pois, supõe-se que PI iria pesquisar, não só o
vocabulário, mas outros aspectos linguísticos para falar sobre os temas
definidos, e assim, haveria produção de insumo e, possivelmente, o
feedback a essa produção. Porém, não sei até que ponto devo insistir
nisso. Aliás, não tenho certeza se isso seria realmente eficaz e, por outro
lado, Cláudia não parece ter outras ideias alternativas.
(Excerto 15: Diário da Interagente Brasileira)

Acreditamos que esta desconfiança deve-se a dois fatores. O primeiro, medo de perder
o interagente americano, visto que a referida participante já passara por esta experiência.
E, o segundo, acredita que deva atender as necessidades comunicativas do outro.
No que concerne ao primeiro fator, o medo de perder o interagente brasileiro, observe o
que ocorreu na segunda interação, conforme pode ser observado na interação e no
diário da interagente.
Cody: qual sao os estereotipos das personas estadounidenses?
Cláudia: pessoas
Cody : sim....heha
Cláudia: bom... eu penso que são mais sérias
Cody : NAO!
Cláudia: hahahaha
Cláudia: não quis ofender
Cody entendo.
Cody entendo, pero não estou de acordo
Cody concordo?
Cody não concordo...?
Cláudia pero = mas
Cody haha. mas não concordo.
Cody perfeito?
Cláudia eu não tenho uma opinião formada, pois nunca estive aí e não conheço
nenhum americano pessoalmente.
(Excerto 16: Interação entre a Brasileira e o Estrangeiro)

(...) quando ele me perguntou qual era o estereótipo de uma pessoa


estadunidense. Me senti desconfortável em responder isso, pois o que eu
pensava de uma pessoa estadunidense é que se tratavam de pessoas
sérias, não muito receptivas, ou seja, eu tinha uma imagem negativa. O
melhor termo que encontrei para dizer a ele o que eu pensava sem
ofendê-lo foi “sério”. Mesmo assim, a resposta dele foi um não em letras
maiúsculas, o que me deixou assustada. Entretanto, não ficou um clima
ruim. Eu pedi desculpa, dizendo que não queria tê-lo ofendido; ele
respondeu dizendo que não concordava com esta minha opinião, e
depois continuamos a conversar, já sobre outro assunto muito mais
agradável. (Excerto 17: Diário da Interagente Brasileira)

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O que nos chamou muito a nossa atenção é que na interação seguinte, o interagente
estadunidense retomou a questão dos estereótipos, e veja como a interagente
brasileira lidou com aquela situação, conforme é asseverado no diário da interagente.
(...) ele voltou ao assunto dos estereótipos, dizendo que ele estava
pensando no fato de eu ter dito que ele era sério. Ele me disse ter
chegado à conclusão de que ele deve estar mesmo muito sério, pois está
muito preocupado com o que vai fazer depois da faculdade. Eu disse
somente que tinha entendido o que ele havia dito e procurei não
continuar o assunto, para não virar uma conversa “de divã” ou entre
amigos, por exemplo, um dando conselhos para o outro. Perguntei então
o que ele achava dos brasileiros, qual era o estereótipo do brasileiro pra
ele. Ele se referiu a alguns aspectos de estética e disse que nos fazíamos
festa a todo momento, colocação esta que achei um pouco estranha e
não concordei. Ele continuou a elencar alguns aspectos da cultura e
depois pediu que eu contasse a ele algo que ele havia esquecido de
mencionar. Tal assunto não estava me agradando, então disse que
também não lembrava mais de nada, para que pudéssemos mudar o foco
da nossa conversa. (Excerto 17: Diário da Interagente Brasileira)

Acreditamos que este assunto não estava interessando tanto a interagente brasileira
em detrimento da experiência negativa que vivenciara no qual perdera o seu
interagente estadunidense. Mas o que podemos depreender dos excertos
supracitados são os possíveis reflexos do trabalho de preparação realizado antes do
início das interações e mediação em teletandem. Conforme asseverado por VIEIRA-
ABRAHÃO (2009, p. 13) foram lidos textos teóricos e discutidas questões
importantes questões relacionadas ao processo de aprender e de ensinar línguas no
contexto virtual, dentre elas, a questão de abordagens de diferenças culturais. A
nosso ver e corroborado por outros excertos, a professora propulsiona o
desenvolvimento de uma competência intercultural, estimulando que a interagente
respeite a cultura do outro e a compreenda os possíveis conflitos culturais que
possam surgir.

Outras competências
Na análise dos registros é possível depreender outras competências que emergiram
dentro do contexto teletandem e que serão apresentadas e discutidas em um outro
artigo acadêmico-científico e na tese que se encontra em desenvolvimento, a saber:
a) competência multimodal que envolve, dentre outros fatores, o professor saber quais
seriam os gêneros (primários e/ou secundários) 72 que poderiam ser utilizados em

72
Bakhtin (1979/2003, p. 263) assevera que os gêneros discursivos primários (simples) integram os secundários (complexos), o
que, por sua vez, significa que o desenvolvimento se dá por continuidade e ruptura entre os mesmos, em um “processo de
desenvolvimento e reestruturação do sistema de produção da linguagem” (cf. Schneuwly, 2004, p. 29). Para uma discussão mais
aprofundada sobre gêneros do discurso do círculo de Bakhtin, veja Silva (2008), Silva & Rocha (2006), Rocha, (2006) e Rojo (2005).

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sua sala de aula e saber adequá-los eficazmente neste âmbito pedagógico às


múltiplas linguagens hoje em voga na contemporaneidade.
Em outras palavras, envolve um conjunto de múltiplas formas de representação ou
códigos semióticos que, através de meios próprios e independentes, realizam
sistemas de significados; b) competência linguístico-comunicativa na própria língua materna ou
metalinguagem, que envolve ter o conhecimento do funcionamento e do uso da sua
própria língua materna e dos princípios culturais que a alicerçam. Não basta, a nosso
ver, saber explicar as regras que subjazem a estrutura e o uso da nossa língua, mas as
variáveis culturais que, de uma forma direta ou indireta, se encontram implícitas.

Considerações Finais
“Temos de examinar não somente o papel da tecnologia na
aprendizagem de línguas, mas também o papel da
aprendizagem de línguas em uma sociedade de tecnologia de
informação”. (Braga, 2004, p. 24 – Ênfase adicionada)

Neste artigo apresentamos e refletimos criticamente acerca das competências que


são (re) construídas pelos participantes da pesquisa dentro do teletandem, a saber:
implícita, teórica, aplicada e intercultural. Pretendemos, com isso, suscitar o interesse
de teóricos e profissionais da linguagem para a vertente da (trans) formação de
professores de línguas para o meio virtual sob diferentes olhares, visando que a
mesma continue a se desenvolver no sentido de buscar, com crescente intensidade e
propiciar maneiras efetivas de formar o profissional de LE integralmente.
Isto, por sua vez, implicará inserir os alunos em (trans) formação inicial em práticas
de linguagem historicamente constituídas, oferecendo oportunidades para que eles
possam delas se apropriar. Entendemos que o processo educacional pautado nesta
perspectiva é pertinente dentro do contexto em foco porque: a) gera interações
significativas; b) propicia ação colaborativa e; c) considera as competências já
desenvolvidas para o desenvolvimento de outras.
Para tal intento, é necessário uma mudança até certo paradigmáticas nos nossos
cursos de formação inicial de professores de línguas presenciais (que são mais de
1.100 centros de formação de professores no Brasil) e especialmente os virtuais
(visto que é um contexto inovador de formação de professor de línguas),
incorporarem os paradigmas advindos da prática crítico-reflexiva, tendo como esteio
a teoria bakhtiniana de gêneros, alinhavada aos pressupostos do letramento digital.
Ecoando Paiva (2007, p. 318), esperamos que no futuro próximo, "quando alguém
escutar a banda "Mastruz com Leite" cantar:
The book is on the table, table, table
The dog is on the table, table, table
The cat is on the table, table, table
The chicken is on the table, table, table

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And everybody is on the table, table, table


Table, table, table, table!!!
And everybody is on the table, table, table!!
" (...) não se recorde (...) de suas experiências como aprendiz de inglês",

e acrescentamos, nem de suas experiências advindas dos cursos de formação (inicial


e/ou contínua) de professores, sejam eles presenciais e/ou virtuais. Esperamos que
os cursos de (trans) formação inicial e/ou contínua possam refletir em maneiras
práticas e eficazes de incorporarem as variáveis elicitadas neste artigo em suas
respectivas salas de aula de LEs. É necessário que delimitemos, mas também
atravessemos as fronteiras digitais em e/ou fora dos âmbitos educacionais.

Referências
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Caderno Seminal

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Caderno Seminal

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PARTE II – MISCELÂNEA

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Caderno Seminal

LITERATURA TIMORENSE: DA EMERGÊNCIA À LEGITIMAÇÃO73


EAST-TIMORESE LITERATURE: FROM EMERGENCY TO LEGITIMATION

Ana Margarida Ramos74

RESUMO:
Procedendo a uma caracterização breve da produção literária contemporânea de autoria timorense,
com especial ênfase para a obra literária ficcional e poética, pretende-se refletir sobre as suas
tendências e formas de afirmação. Autores como Luís Cardoso, no âmbito da ficção narrativa, ou
de poetas como Fernando Sylvan, José Alexandre Gusmão, João Aparício, Jorge Barros Duarte,
Jorge Lauten, Francisco Borja da Costa, Afonso Busa Metan, Crisódio T. Araújo, Celso Oliveira,
Abé Barreto Soares, entre outros, exprimem bem a vitalidade crescente de uma literatura
emergente, ainda muitas vezes próxima da referencialidade, procedendo à releitura e reescrita da
História do país nas últimas décadas, a caminho do seu reconhecimento e necessária legitimação.
Em termos práticos, será dada especial atenção à presença da literatura timorense em três contextos
específicos, tendo em vista a sua institucionalização: crítica, a academia e os prémios. Para além de
alguns estudos académicos mais ou menos pontuais e circunscritos, sua entrada recente no novo
currículo do Ensino Secundário Geral de Timor-Leste, nomeadamente na disciplina de Temas de
Literatura e Cultura oferecida aos alunos da Componente de Ciências Sociais e Humanidades, para
além da presença mais pontual na disciplina de Português, afigura-se como um fator decisivo para a
construção da identidade cultural e literária de um povo que também resistiu e combateu tendo por
armas a pena e as letras.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura Emergente; Literatura Timorense; Institucionalização e
Legitimação.

Abstract
It’s our purpose to make a brief characterization of contemporary East-timorese literature, with
particular emphasis on literary fiction and poetry, in order to reflect on the process of recognition
that is occurring in the last few years. Authors such as Luís Cardoso (fiction), or poets like
Fernando Sylvan, José Alexandre Gusmão, João Aparício, Jorge Duarte Barros, Jorge Lauten,
Francisco Borja da Costa, Afonso Busa Metan, Crisódio T. Araújo, Celso Oliveira, Abé Barreto
Soares, among others, express the vitality of an emerging literature struggling for recognition and
legitimacy. In practical terms, particular attention will be given to the presence of Timorese
literature in three specific contexts: critical discourses, academia and prizes. In addition to some
academic studies more or less specific and circumscribed, its recent entry in the new curriculum of
Secondary Education in East Timor, particularly in the discipline of Themes of Literature and
Culture, is analyzed as a decisive factor in the construction of cultural and literary east-timorese
identity and literature.
KEYWORDS: Emerging literature; Timorese literature; institutionalization and legitimization

73
Nota da editora: Manteve-se a grafia lusitana.
74
Ana Margarida Ramos é doutorada em Literatura e professora auxiliar do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade
de Aveiro (Portugal). Tem desenvolvido investigação na área da Literatura para a infância e da promoção da leitura, na qual tem
publicado diversos artigos em revistas e livros. É coautora do programa, manuais e guias da disciplina de Temas de Literatura e
Cultura do curriculum do Ensino Secundário Geral em Timor-Leste. anamargarida@ua.pt

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Caderno Seminal

Introdução
As complexas questões de legitimação literária, decorrentes da combinação da ação
de múltiplos fatores, alguns externos ao próprio texto e à sua validação estética,
estão estreitamente relacionadas com o próprio conceito de cânone e de
institucionalização do fenómeno literário, onde intervêm, por exemplo, a academia,
a escola e o ensino e os prémios literários (Reis, 1997, p. 25-40). A formação do
cânone, decorrente da ação combinada da seletividade (seleção de obras literária e
culturalmente representativas da identidade), continuidade (permanência dos textos
ao longo dos tempo, pluralidade e diversidade de leituras) e formatividade
(perpetuação de valores, ideologias e estilos) (cf. Reis, 1997, p. 72-73), não é,
atualmente, inibidora da afirmação de práticas literárias conotadas quer com a
periferia do sistema literário, quer oriundas de contextos assumidamente
minoritários e emergentes, como acontece com as recentes literaturas pós-coloniais
ou com produções associadas a minorias sexuais e étnicas, por exemplo.
A defesa da gradual e progressiva abertura do cânone “sob a forma de revisão e
abertura do cânone a textos representativos de saberes, classes e minorias
tradicionalmente excluídos” (Duarte, s/d, s/p) surge como resultado da atual
sociedade multicultural e da evolução de perspetivas de estudos que o percepcionam
como “instrumento de repressão e discriminação ao serviço de interesses
dominantes, do poder branco e masculino e de uma ideologia de contornos
patriarcais, racistas e imperialistas” (idem).
Fátima Mendonça (2010) sublinha, para o caso moçambicano, a importância de um
“reconhecimento” posterior e externo aferido pelos fatores que já enumeramos
antes:
Na verdade, o desejo (consciente ou não) de nação vai sedimentando
temas e formas discursivas, como parte de um novo sistema literário,
mas a sua existência só é assegurada por um reconhecimento posterior
pelos diversos elementos de recepção – crítica, reconhecimento nacional
e internacional, prémios, edições nacionais e traduções – e que,
integrados no sistema de ensino – curricula, programas, manuais –
reproduzem conceitos e valores que, atuando em cadeia, convergem para
a instituição do novo cânone, a literatura nacional. (Mendonça, 2010,
s/p)

No caso em apreço, os últimos anos têm configurado um período de especial


atenção para o universo da literatura timorense, quer em termos da academia e da
crítica, com a realização de trabalhos de investigação e de publicações de índole
científica sobre os textos, quer também do ensino, tanto ao nível universitário como
secundário, como este estudo tentará mostrar.

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Caderno Seminal

Literatura Timorense – Retrato Atual


À semelhança das outras literaturas que se revelaram após a independência dos
respetivos países, como aconteceu, diferentemente, é certo, com os países africanos
de língua oficial portuguesa, a literatura timorense vem fazendo, desde há décadas,
um lento caminho de construção e afirmação, pesem embora as inúmeras
vicissitudes do processo político e social e as suas repercussões de índole cultural e,
mais especificamente, literária. No caso timorense, a diferença em relação aos países
africanos acentua-se pelo facto de, face à ocupação indonésia, a língua – e
consequentemente a literatura – ter desempenhado relevante função de resistência e
de intervenção, sendo que a rutura com a herança e o paradigma português não se
realizou de forma efetiva ou total. O conceito de emergência aqui utilizado decorre,
pois, mais do processo de desenvolvimento e afirmação em que se encontra, do que
da influência das teorias pós-coloniais, que procedem à leitura dos fenómenos
literários nascidos no seguimento dos movimentos de independência africanos
iniciados na década de 50 do século XX, como movimentos de rutura com as
literaturas das potências coloniais e a instituição de uma “tendência de autonomia
por intermédio de algumas dominantes temáticas, tendentes a recuperar elementos
históricos forjadores das novas identidades” (Mendonça, 2010, s/p).
De acordo com esta autora, o processo de construção de uma identidade e uma
literatura nacional faz-se com e contra a herança e a memória colonial, revisitando,
recriando e reescrevendo um imaginário que, por força das textualizações 75
sucessivas, se vai tornando cada vez mais específico e individual.
A emergência da literatura timorense realizou-se, sobretudo numa primeira fase, pela
via do texto lírico, sobretudo associado à intervenção, inicialmente de denúncia da
situação colonial e depois de resistência face à invasão e ocupação estrangeira,
percorrendo um caminho em tudo semelhante, apesar das especificidades, às demais
literaturas nacionais dos países africanos de língua oficial portuguesa (Gonçalves,
2010, s/p). Neste domínio, merece especial destaque, pelo reconhecimento e
maturidade, a obra de Fernando Sylvan, a que se seguiram produções desiguais, em
termos de qualidade literária, de outros nomes relevantes, como Jorge Barros
Duarte, Francisco Borja da Costa, Jorge Lauten, Celso Oliveira, Xanana Gusmão,
João Aparício e Abé Barreto Soares, entre outros. Quase todos estão representados
na coletânea Enterrem meu coração no Ramelau (1982), publicada em Luanda pela União
de Escritores Angolanos (UEA). Claramente dominado pelas ideias de resistência
face ao invasor, o volume em questão tem o condão de juntar autores de diferentes
tendências e orientações políticas, assim como dar voz a alguns dos mais notáveis

75
Confrontar com “Este conceito adquire um significado mais amplo, quando associado aos de transculturação e de
transtextualidade, porque possibilita a leitura do córpus literário produzido por/contra os sistemas literários trazidos pela
colonização, como transformações e apropriações das suas formas, com utilização de estratégias específicas que assim respondem
à necessidade de forjar novos sistemas.” (Mendonça, 2010, s/p).

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Caderno Seminal

poetas timorenses da altura, com especial destaque para Fernando Sylvan 76, Xanana
Gusmão e, sobretudo, Jorge Lauten, pseudónimo cuja identidade real se mantém,
até hoje, desconhecida.
Os textos deste último autor aqui publicados, incluindo o que empresta ao volume,
destacam-se pela criação de um conjunto de sugestões emotivas muito fortes, quase
todas evocando o sofrimento por uma pátria ocupada e ferida. A dor da ausência,
em resultado do exílio em Portugal, combina-se com a saudade e o desespero de
saber que, lá longe, há infelicidade. Fortemente metafórica, a sua poesia é a que
melhor consegue superar os constrangimentos contextuais, abrindo possibilidades
de leitura que ultrapassam o elogio dos valores de resistência e os desejos de
liberdade, não ficando circunscrita – apesar das alusões referenciais – a uma leitura
puramente contextual.
Introduzida por um prefácio que sublinha as circunstâncias políticas da edição, a
antologia não deixa de ser apresentar como uma “amostra real no campo da poesia
{timorense} escrita em língua portuguesa” (UEA, 1982, s/p), sublinhando que se
trata de “poesia de combate” e que corresponde apenas a uma parte da produção
existente, uma vez que a produção em tétum não se encontra representada.
Já João Aparício afirmou-se posteriormente através da edições de dois volumes77 de
poesia publicados em Portugal sob a prestigiada chancela da Caminho (coleção
Caminho da Poesia): À Janela de Timor (1999) e Uma Casa e Duas Vacas (2000). Nos
dois volumes em apreço, os seus textos tematizam universos ligados à história de
Timor-Leste, recriando alguns dos acontecimentos mais relevantes das últimas
décadas, com especial atenção para os anos da ocupação indonésia. A exaltação do
espírito e da ação de resistência, assim como alguns dos seus principais mentores,
são eixos centrais de muitos textos percorridos igualmente pelos motivos do
sofrimento e da dor de um povo que, apesar do isolamento, nunca se deixou
subjugar. Assim, é possível encontrar textos que quase escrevem a crónica dos dias
da ocupação, registando – e denunciando – a violência, os massacres, as injustiças,
mas cantando também os combates e as pequenas vitórias, testemunhos da
esperança na singular coragem dos timorenses.
A narrativa de ficção78 é de afirmação mais tardia mas, curiosamente, e apesar de
muito circunscrita à figura de Luís Cardoso, é, seguramente a que conheceu maior

76
Sobre a obra de Fernando Sylvan, em particular sobre dois eixos ideotemáticos centrais – a resistência política e a dimensão
amorosa – aguardamos a publicação de um estudo mais aprofundado que dedicámos ao autor de Tempo Teimoso. Com o objetivo
de ter acesso à sua particular poética, aconselha-se a leitura de um volume que integra parte muito significativa da sua produção
literária (Sylvan, 1993).
77
O poeta, que nasceu em Díli, em 1968, é também autor, sob pseudónimo de Kay Shaly Rakmabean, de Versos do Oprimido,
acessível em http://amrtimor.org/docs/visualizador.php?bd=Documentos&nome_da_pasta=06467.200&numero_da_pagina=1
78
Precedida, quase sempre, pela valorização, através de recolhas, dos textos da tradição oral, ainda com objetivos de legitimação,
através da fixação, de uma cultura oral, assente na memória, que se quer reabilitar e dignificar, concedendo-lhe voz e espaço de
manifestação e intervenção. E se, numa primeira fase, a questão da fidedignidade das fontes é ainda crucial, lentamente os temas,

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Caderno Seminal

divulgação e reconhecimento, também por via das traduções79 e dos estudos80 de


que tem sido alvo, e também do Prémio, em 1998, da Sociedade da Língua
Portuguesa.
No universo ficcional timorense, a obra deste romancista é, possivelmente, aquela
que revela essa construção gradual de um imaginário particular, em diálogo com
múltiplas heranças cruzadas, questionadas e reescritas. Os seus quatro romances,
para além das crónicas e contos dispersos, revelam um percurso sustentado de
problematização de questões de identidade (nacional, cultural, linguística,
religiosa...), situando-se geográfica e culturalmente no espaço timorense, passado e
presente, mas estabelecendo pontes com outras realidades próximas e distantes. A
descoberta da identidade pessoal cruza-se, no romance inaugural do autor, Crónica de
uma travessia – A Época do Ai-Dik-Funam (1997), com o percurso e a deriva do
próprio território timorense, um espaço náufrago e deambulante, construído nas
próprias hesitações da História. Em todos os romances81 de Luís Cardoso é visível
o destaque concedido ao contexto timorense, sobretudo em termos físicos, com a
paisagem, a peculiar geografia, a fauna e a flora e os indivíduos, e também
simbólicos, como acontece com as múltiplas línguas e culturas, incluindo tradições,
imaginários e mitos), convergindo num exíguo espaço onde se manifestam múltiplas
e multifacetadas identidades, a que se juntam miscigenações várias. A perspetiva
narrativa, muito pessoal, também ela em processo gradual de construção e de
afirmação, sublinha as singularidades locais e individuais, mas também procede ao
seu reenquadramento e questionamento em termos globais e universais.
No caso do primeiro romance do escritor, Crónica de uma travessia. A época do Ai-Dik-
Funam (1997), assistimos ao cruzamento de uma linha narrativa de índole referencial,
com referências concretas a factos e a figuras conhecidas, com outra de cariz
autobiográfico em registo memorialista. É desta interseção que se constrói – ou se
procura construir – uma imagem unificadora de Timor-Leste, dando conta da
instabilidade e da transitoriedade que marca o território e, consequentemente, as
suas gentes, vivendo uma insularidade particular. A memória e a identidade são,
deste modo, os eixos coesivos de um romance onde as viagens, realizadas em
múltiplas direções e com distintas finalidades, têm lugar de destaque, estruturando a

motivos, registos e símbolos da herança cultural tradicional vão infiltrando a literatura de autor, sendo alvo, de forma gradual, de
um processo subjetivo de apropriação. A literatura timorense oferece exemplos significativos deste processo, nomeadamente ao
nível da reescrita dos mitos e lendas cosmogónicos, pela mão de escritores como Fernando Sylvan, Luís Cardoso ou Xanana
Gusmão cuja análise guardaremos para outro contexto.
79
Nomeadamente em inglês, francês, sueco, italiano e alemão. A edição em tétum, contudo, continua, ao que sabemos, adiada.
80
Atendendo a profusão de estudos já realizados e publicados sobre este autor e a sua obra, com particular incidência no seu
romance inaugural, não é possível proceder, no estreito espaço deste estudo, à sua inventariação. Chamamos a atenção, contudo,
para uma das primeiras leituras de que foi alvo em Portugal, por parte de Maria Alzira Seixo, no JL de 25 de fevereiro de 1998, pela
receção elogiosa que realiza a relevante investigadora.
81
Crónica de uma travessia – A Época do Ai-Dik-Funam (1997), Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo (2001), A Última Morte do
Coronel Santiago (2003) e Requiem para o Navegador Solitário (2007).

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realidade e a própria organização temporal e espacial. É por isso que ao reescrever a


sua história e a da sua família, em particular a do próprio pai, o narrador reflete
sobre a história de Timor-Leste e sobre a forma como ela se confunde com a dos
seus habitantes. As ocupações, as invasões, as guerras, a independência, os exílios e
a diáspora ajudam a construir uma espécie de identidade precária que, um pouco à
semelhança das vagas memórias do velho enfermeiro, corre risco de se perder
enquanto deambula ao sabor de incontroláveis ventos e marés da História. A sua
morte em Portugal, no final do romance, impossibilitando o regresso a casa, pode
ser lida enquanto requiem pela perda de Timor e pelas suas parcas hipóteses de
sobrevivência, mas, também, enquanto esperança renovada numa primavera
redentora, de que a cena final é simbolicamente metafórica.
O último romance, Requiem para o Navegador Solitário, publicado dez anos depois do
primeiro, volta a cruzar as linhas estruturantes da obra de Luís Cardoso, em
particular a questão da identidade, entendida em termos individuais e nacionais, e da
História, ficcionalmente recriada como uma espécie de mola que faz movimentar os
homens, balizando as suas ações.
Protagonizada por Catarina, uma jovem chinesa iludida por sonhos de príncipes
encantados e histórias de amores felizes, que se desloca para Timor onde espera
reunir-se ao seu noivo, a narrativa dará conta do processo de crescimento e de
amadurecimento da personagem, feito à custa de desilusões, desgostos, injustiças e
muito sofrimento, uma espécie de metáfora da história do próprio território que
simultaneamente a acolhe e renega.
Apanhada numa encruzilhada histórica particularmente difícil, mesmo antes do
início da 2ª Guerra Mundial, a protagonista e o território timorense, que com ela se
confunde, parecem sofrer as violentas ondas de choque de todos os conflitos
latentes num mundo cuja ordem e equilíbrio se revelam precários.
A rejeição do noivo seguida da sua violação física abrem as portas para uma
sucessão de pequenas tragédias pessoais que a obrigam a crescer muito rapidamente,
destruindo-lhe os sonhos infantis e a inocência, mas também a submeter-se a vários
homens para sobreviver. O rapto do filho, a ostracização da comunidade e a
perseguição dos habitantes locais destroem-lhe todas as ilusões e obrigam-na a viver
numa nova realidade e a construir uma nova identidade. Mesmo o aparecimento do
navegador solitário, Alain Gerbault, cujo livro a acompanhara desde a casa da
família, uma espécie de derradeira esperança de felicidade pela qual aguardara desde
a chegada a Timor, depressa se desvanece com a morte deste. A ocupação japonesa
e os difíceis anos da guerra vividos num território aparentemente neutral marcarão
indelevelmente a personagem, conduzindo-a a uma espécie de autoexílio voluntário
no barco do navegador.
A partilhar o protagonismo (e o fascínio que a caracteriza) com Catarina está o
próprio território timorense. Complexo e contraditório, personificando várias

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tensões internas e sofrendo consequências das pressões externas, Timor parece uma
embarcação oscilando ao sabor das marés, ora perseguindo os habitantes nativos,
ora se revoltando sucessivamente contra as vagas de ocupadores. Recriado
ficcionalmente como uma espécie de território à deriva, Timor parece determinado
numa demanda difícil pela sua afirmação. Violentado sucessivamente por diferentes
invasores, assemelha-se a Catarina pela forma como parece manter uma dignidade
original, reconstruindo-se sucessivamente, adoptando novas facetas e alguns
disfarces, construindo uma identidade frágil, destinada à sobrevivência mais
imediata.
O motivo do duplo, de presença assídua no romance, é sintomático da centralidade
da reflexão sobre a identidade, verdadeiro fio coesivo da história. Várias
personagens surgem divididas ou assumem posições contraditórias, exprimindo uma
dualidade aparentemente irresolúvel. É o caso do administrador Malisera e do sipaio
Marcelo, duas faces da mesma moeda da resistência ao poder branco; de Catarina, a
Grande…, e a Outra, a gata de jade que também conquista Alberto Sacramento
Monteiro e os outros capitães do porto que vão passando pela sua vida; mas
também de Catarina e Madalena, as duas mães dos filhos de Alberto, duas penélopes
tecedoras de sonhos e colecionadoras de gatos que esperam marinheiros perdidos
no mar; da própria figura do capitão do porto que se desdobra em várias
personagens que, afinal, são variações da mesma; de Alain Gerbault, o navegador
solitário do livro e da imaginação de Catarina e o seu fantasma doente que regressa
para morrer em Díli; dos australianos e dos japoneses, facções rivais da guerra,
ocupantes violentos do território e das gentes; de Diogo e Esperança, o filho
roubado e a filha morta, símbolos do futuro incerto que espera o território
timorense.
A opção de Catarina de abandonar o veleiro e o tesouro, única forma de escapar a
Timor, ao passado e às consequências da guerra, em troca da ténue esperança de
rever o filho, ficando cativa do território que a persegue e critica, revela bem a
mudança operada no íntimo da personagem, uma vez aberta a caixa de Pandora e
revelado o seu destino:
O destino de uma mulher é uma caixa de Pandora. Nunca se sabe o que
tem dentro. A sorte pode ditar um príncipe encantado. Nem sempre o
desejado. Apaixonar-se por um marinheiro pode ser uma aventura sem
retorno, como quando se entra pelo mar, quando as tempestades
recomendam que se fique em terra. Sujeita-se a ser largada ao primeiro
toque de rebate. Depois deambula à espera de ser resgatada por um
coração de manteiga. Que o têm também os marinheiros solitários,
viajantes em busca de outros ares, caçadores de fortunas, olheiros de
mundos mágicos, músicos à procura de novas sonoridades, místicos no
encalço do maravilhoso, escritores de histórias trágico-marítimas e
pintores de paraísos que se vão apagando com o tempo (Cardoso, 2007,
p. 12-13).

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Na sua muito citada – também porque quase única – panorâmica da literatura


timorense, João Paulo Esperança sistematiza, pelos modos lírico e narrativo, um
conjunto de autores e de tendências que espelham bem o estado atual, mais em
termos de produção do que de receção, da literatura produzida por autores oriundos
daquele quadrante geográfico e cultural. As suas conclusões sublinham o facto de,
no momento atual, a literatura timorense ser ainda, “com poucas exceções,
fundamentalmente em língua portuguesa, veículo de afirmação de resistência,
identidade e nacionalidade” (Esperança, 2005, p. 135), aguardando-se a produção
em outras línguas locais, nomeadamente em tétum.

Limitações e Constrangimentos para a Existência de uma Literatura


Timorense
Desde logo, a principal dificuldade para a divulgação e conhecimento da literatura e
dos autores nacionais resulta da inexistência de uma produção editorial sediada em
território timorense que inclua um circuito e uma rede de publicação, distribuição e
venda. A falta de edição própria, estatal ou privada, leva a que todas as publicações
se realizem fora do território nacional, nomeadamente em Portugal, dificultando o
acesso aos livros e à leitura e, até, a formação de uma opinião pública informada e
esclarecida. Catorze mil quilómetros de distância separam as publicações de Luís
Cardoso ou João Aparício dos seus possíveis leitores, destinatários preferenciais dos
livros.
As feiras do livro, entretanto realizadas e a abertura de um ou outro espaço exíguo
de distribuição na capital provam o interesse pela leitura, mas sobretudo a
necessidade de a divulgar de forma mais global e generalizada.
Para além disso, e em consequência de um longo período colonial a que se seguiram
mais de duas décadas de ocupação e luta armada pela autodeterminação, culminando
na destruição praticamente total das infraestruturas públicas, incluindo a aniquilação
completa do sistema de ensino, o país, com dez anos de independência já marcados
por uma ou outra convulsão social, debate-se com elevados níveis de analfabetismo
e iliteracia, decorrentes de uma pobreza asfixiante que fazem com que os livros em
geral e a literatura em particular sejam apenas propriedade das elites sociais e
culturais, muitas delas constituídas por portugueses a residir no território, luso-
descendentes, ou timorenses que fizeram formação no exterior. Para além disso, e
apesar das decisões formalizadas em sede própria, há ainda, do ponto de vista social
e cultural, questões de política linguística por resolver, adiando a estabilização do
tétum e a implementação/consolidação do português.
A investigação sobre literatura timorense é, ainda, realizada de forma largamente
maioritária fora do território nacional, sobretudo em Portugal e no Brasil, na área
dos estudos literários e dos estudos comparados, mas também na Austrália e nos
Estados-Unidos, em contextos ligados às literaturas emergentes, nomeadamente na
linha dos estudos pós-coloniais ou dos estudos culturais.

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Expectativas de Desenvolvimento e Legitimação


Ainda que isolados e circunscritos a Díli e destinados a grupos de elite, como os
alunos universitários, por exemplo, alguns movimentos têm procurado divulgar, no
contexto timorense, a literatura nacional. O caso da Universidade Nacional de
Timor Lorosae é, talvez, o mais relevante, sobretudo com a intervenção e o apoio
do Instituto Camões e do Centro de Língua Portuguesa que desenvolvem, desde há
mais de uma década, relevantes atividades de índole letiva e cultural. Assim, salienta-
se a inclusão, no curso de formação de professores de língua portuguesa, de
unidades curriculares na área da literatura timorense, contribuindo para a sua
divulgação, estudo e ensino. Além disso, com relativa periocidade, manteve um
jornal bilíngue, Várzea de Letras, responsável pela publicação de textos literários
inéditos de novos autores e outros mais conhecidos, para além de estudos e de
traduções de textos com vista à sua divulgação para além das fronteiras do universo
académico. Mesmo se interrompida, a publicação deste jornal constitui ainda hoje,
pela acessibilidade através de plataformas digitais, uma referência obrigatória para os
estudos sobre autores atuais. Foi, igualmente, no contexto do Centro de Língua
Portuguesa de Díli que surgiu a publicação de um volume literário coletivo,
(Con)Textos, onde publicam, para além de alguns autores portugueses, professores a
lecionar em Timor-Leste, um número significativo de timorenses, todos alunos, na
sua maioria finalistas do curso referido anteriormente. Plataforma de lançamento e
de divulgação de jovens talentos, o referido volume integra alguns textos que
merecem atenção, como é o caso dos assinados por Danilio Barros ou Armandina
Maia. Refira-se, aliás, que a proliferação de blogues, páginas pessoais e o relevo das
redes sociais tem permitido a divulgação de textos, em diferentes línguas, sobretudo
de autores jovens, a uma audiência alargada, fomentando o interesse e promovendo
a leitura de textos de cariz diversificado.
Mas o passo mais relevante em termos de ensino resulta da implementação do
projeto de Reestruturação do Ensino Secundário Geral timorense (2009-2012),
apoiado pelo IPAD – Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento, pela
Fundação Calouste Gulbenkian e pelo Fundo da Língua Portuguesa. Trata-se de um
projeto realizado por uma vasta equipa coordenada pela Doutora Isabel P. Martins,
sediado na Universidade de Aveiro, e que tem sido desenvolvido em estreita
colaboração com o Ministério da Educação de Timor-Leste. Incluiu a elaboração de
um Plano Curricular para o Ensino Secundário Geral e Programas, Manuais e Guias
do Professor para as 14 disciplinas (e para os 3 anos de escolaridade) previstas,
incluindo a nova disciplina de Temas de Literatura e Cultura82 que integra a
componente das Ciências Sociais e Humanidades. Estruturada com vista a valorizar

82
Coordenada pela autora deste texto, a equipa que desenvolve o trabalho de produção dos materiais pedagógicos para esta
disciplina integra mais três elementos, dois professores universitários da área da literatura (Paulo Alexandre Pereira e Sara Reis da
Silva) e uma professora do ensino secundário (Ana Paula Almeida), para além do contributo dos professores e interlocutores
timorenses.

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a literatura e cultura timorenses, promovendo a sua gradual legitimação e


canonização através do estudo dos seus autores e respetivas obras literárias, esta
disciplina não esquece a relevante relação com a lusofonia, fomentando o
conhecimento das literaturas e culturas dos vários países de língua oficial
portuguesa. Destaca o contexto contemporâneo e procura basear a seleção de
textos, temas e conteúdos em universos de referência relevantes, próximos dos
alunos e facilmente identificáveis. Apesar de não existir qualquer tradição no ensino
secundário timorense de estudo do texto literário, a introdução desta nova disciplina
revela-se pertinente para a construção da identidade nacional, tanto do ponto de
vista cultural como social, colaborando na legitimação da literatura timorense,
através da constituição de uma seleção de textos que, pelas suas qualidades e
representatividade, são dignos de serem estudados como referências relevantes a par
de textos oriundos de outros quadrantes da lusofonia. Os programas e manuais já
elaborados preveem o estudo de alguns textos da literatura tradicional e das suas
reescritas contemporâneas; da crónica literária e dos géneros intimistas, como o
diário, as memórias, a carta ou a biografia; do texto poético, conto e romance;
terminando com o estudo das relações interartísticas.

Conclusões
O estado atual de evolução da literatura timorense sugere que, durante os próximos
anos, ela tenderá a legitimar-se, em resultado da ação combinada/articulada de
vários fatores e movimentos, alguns externos ao fenómeno literário, como já
procuramos dar conta. O aumento da regularidade editorial e a aproximação ao
universo literário de novas vozes combinados com o estudo dos textos e a sua
divulgação terão seguramente impacto a médio e a longo prazo, permitindo
ultrapassar as dificuldades sentidas pelas primeiras edições oriundas do contexto
timorense. Veja-se como, no caso de Luís Cardoso, Xanana Gusmão ou João
Aparício, as respetivas primeiras obras, todas editadas em Portugal, foram
introduzidas por prefácios que, além de apresentarem a obra e o autor,
reivindicavam a legitimação de vozes literárias ainda não efetivamente reconhecidas.
Respetivamente da responsabilidade José Eduardo Agualusa, Mia Couto e Sophia de
Mello Breyner Andresen os prefácios sublinham a condição emergente da literatura
a que pertencem os textos, mas também o seu pendor combativo e interventivo em
defesa da liberdade, por ação do “resgate da memória” (Agualusa, 1997, p. 5), nas
palavras de Agualusa. Para Sophia, o livro À Janela de Timor constitui uma
manifestação “de revolta moral e intelectual perante o esmagamento de um povo”
(Andresen, 1999, p. 13), enquanto Mia Couto, por seu turno, realça o facto de a
poesia de Xanana reunida em Mar Meu “falar de um povo, uma nação. Há ali não
apenas poesia mas uma epopeia de um povo, um heroísmo que queremos partilhar,
uma utopia que queremos que seja nossa” (Couto, 1998, p. 6). Cumprindo a sua
função de “projeção pública e propósito de pervivência cultural” (Reis, 1997, p.
216), os prefácios favorecem a institucionalização dos textos que acompanham e, no

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caso em análise, constituem elementos cruciais na legitimação e no enquadramento


de toda uma literatura. Neste caso, são unânimes em sublinhar a vinculação da
literatura timorense a um contexto e a uma missão relevantes, mas de alguma forma
estranguladores em termos de autonomia estética e singularização.
No caso dos volumes posteriores, nomeadamente de Luís Cardoso e João Aparício
que deram seguimento à produção literária, respetivamente no romance e na poesia,
este reforço legitimador dos paratextos já não se justificou, evidenciando uma
autonomização gradual dos percursos literários.
A recente instituição de um prémio literário batizado com o nome de Ruy Cinatti,
uma iniciativa da Imprensa Nacional Casa da Moeda, permitiu a edição da obra
distinguida por um júri presidido por Carlos Reis em 2010, Sou nada ou nada sou?
(2012), de Cidália Cruz, lançada na Feira do Livro de Baucau com apresentação de
Joana Ruas. Trata-se de um breve texto de índole intimista, entre o diário e a prosa
poética, devedor da leitura de Clarice Lispector, e constitui um exercício
introspetivo fragmentado, com o qual se cruzam as vivências do quotidiano,
transformadas pela ação reflexiva de um sujeito poético/narrativo e processo de
crescimento, autodescoberta e afirmação identitária. Esta jovem autora também já
foi distinguida num outro concurso em língua tétum, promovido pela Timor Aid e a
Fundação Alola, com a obra Katak Nonook. O Prémio Literário Ruy Cinatti, a que só
podem concorrer cidadãos timorenses, tem como principal missão a descoberta de
novos talentos literários, contribuindo para a sua divulgação através da edição dos
seus livros.
A revista Ellipsis, da American Portuguese Studies Association, prepara neste
momento um número especial dedicado a Timor-Leste, no âmbito das celebrações
dos seus 10 anos de independência que trará, seguramente, novas luzes sobre a
literatura daquele país.
Em crescente afirmação e divulgação, a literatura timorense tem realizado um
percurso interessante, autonomizando-se em relação à referencialidade que, durante
décadas, foi a sua exclusiva razão de ser. Sem deixar de ser interventiva e
questionadora, problematizando, por exemplo, a relação com o passado,
nomeadamente a presença colonial e a ocupação indonésia, tem-se sobretudo
distinguido pela forma como revisita e recria uma herança tradicional muito rica e
diversificada, procedendo à sua reactualização. A necessitar de divulgação, estudo
atento e reconhecimento, a literatura timorense poderá seguir os passos cada vez
mais seguros – e mais inovadores também – das suas irmãs africanas,
nomeadamente a angolana e moçambicana.

Referências
AGUALUSA, José Eduardo. “Como se fosse um prefácio”, in CARDOSO, Luís. Crónica de
uma travessia. A época do Ai-Dik-Funam. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997, pp. 5-6.

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ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. “Prefácio”, in APARÍCIO, João. À Janela de


Timor. Lisboa: Caminho, 1999, pp. 11-17.
APARÍCIO, João. À janela de Timor. Lisboa: Caminho, 1999.
APARÍCIO, João. Uma Casa e Duas Vacas. Lisboa: Caminho, 2000.
CARDOSO, Luís. Crónica de uma travessia. A época do Ai-Dik-Funam. Lisboa: Publicações
Dom Quixote, 1997.
CARDOSO, Luís. Requiem para o Navegador Solitário. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
2007.
COUTO, Mia. “Prefácio. O Verso e o Universo / Preface. Verse and Universe”, in
GUSMÃO, Xanana. Mar Meu. Poemas e Pinturas/ My Sea of Timor. Poems and Paintings. Porto:
Granito/Instituto Camões, 1998, pp. 6-9.
CRUZ, Cidália. Sou nada ou nada sou? Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2012.
DUARTE, João Ferreira, “Cânone” in E-Dicionário de Termos Literários (org. de Carlos Ceia),
sem data http: //www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/C/canone.htm
GONÇALVES, Zetho Cunha. “Prefácio a uma Antologia do Conto Africano” in Buala.
Cultura Contemporânea Africana, 2010 http: //www.buala.org/pt/a-ler/prefacio-a-uma-
antologia-do-conto-angolano
MENDONÇA, Fátima. “Literaturas emergentes, identidades e cânone” in Buala. Cultura
Contemporânea Africana, 2010 http://www.buala.org/pt/a-ler/literaturas-emergentes-
identidades-e-canone
REIS, Carlos. O Conhecimento da Literatura. Introdução aos Estudos Literários. Coimbra:
Almedina, 1997.
SYLVAN, Fernando. A Voz Fagueira de Oan Tímor. Lisboa: Edições Colibri, 1993.
UNIÃO DOS ESCRITORES ANGOLANOS. Enterrem meu coração no Ramelau – Poesia de
Timor-Leste. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1982.

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TECENDO A CULTURA GREGA NO MITO ARACNE: SOB UM


OLHAR SEMIÓTICO
WEAVING A GREEK CULTURE IN MYTH ARACHNE: UNDER A SEMIOTIC VISION

Claudio Artur O. Rei83& Marta dos Santos Lima84

Resumo
Este artigo desenvolve uma análise estilística no poema “A aranha”, de Manuel Bandeira, com os
objetivos de: mostrar a influência da cultura grega na produção literária ocidental, no que tange não
só ao aspecto lírico, mas também filosófico; produzir um quadro estilístico-semântico com
marcações semióticas que orientam a interpretação das escolhas lexicais que caracterizam o poema
eleito para análise; e mostrar a importância da inter-relação entre mito e sociedade, aliados ao valor
semântico das palavras, selecionadas conforme o eixo paradigmático, e combinadas, segundo o eixo
sintagmático, para dar nova significação às palavras, as quais se concretizam em ambiguidade, a seu
turno, fonte de plurissignificação. Os pressupostos das diferentes teorias estilísticas com um apoio
subliminar da Semiótica de Peirce e da Teoria da Iconicidade Verbal, de Darcilia Simões servem de
moldura para nossa leitura, demonstrando-lhes o potencial indicial, simbólico e semântico.
PALAVRAS-CHAVE: Estilística, Manuel Bandeira, Semiótica, Teoria da Iconicidade Verbal.

Abstract
This article develops a stylistic analysis on the poem "A Aranha" by Manuel Bandeira, with the
following objectives: to show the influence of Greek culture in the Western literary production, in
terms handed to the lyrical aspect, but also philosophical; produce a stylistic framework with
semiotic-semantic markup that guide the interpretation of lexical choices that characterize the poem
chosen for analysis, and show the importance of the interrelationship between myth and society,
coupled with the semantic value of words, selected as the paradigmatic axis, and combined
according the syntagmatic axis, to give new meaning to the words, which are realized in ambiguity,
in turn, source multi signification. The assumptions of different theories with a stylistic subliminal
support of Peirce´s Semiotics Theory and of Simões´s Verbal Iconicity Theory serve to frame our
reading, showing them the indexical, symbolic and semantic potential.
Keywords: Stylistics, Manuel Bandeira, Semiotics, Verbal Iconicity Theory.

Palavras iniciais
Este trabalho é fruto de uma discussão, em sala de aula, acerca do clássico anacoluto
existente no poema “A aranha”, de Manuel Bandeira, e as implicações estilístico-
semânticas que esse recurso retórico fomenta no poeta como um todo. Nesse
sentido, pretendemos, por meio de uma análise semiótica, com base nos estudos
apresentados por Darcilia Simões, em sua Teoria da Iconicidade Verbal, sob um viés
estilístico, perpassando pela filosofia, com o objetivo de uma competência

83
UNESA/SELEPROT — arturrei@uol.com.br
84
UNESA — profmartalima@hotmail.com

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pragmática, discorrer acerca do mito Aracne e seu significado representativo


cultural. Para tanto, optamos por utilizar o poema “A Aranha”, retomando, assim, o
mito Aracne, na busca intencional do conceptus nele inscrito, o que procuraremos
demonstrar não só com subsídios enciclopédicos, como também com uma análise
linguístico-literária.
O nosso intuito, no entanto, longe de ser a contestação da importância do legado
greco-romano para a nossa cultura é uma constatação dessa significância que
permeou séculos, tornando-se intrínseco em nossa sociedade. Em acordo com o
que nos diz Darcilia Simões (2009, p.27-28):
A semiotização dos objetos culturais se mostra como condição para o
entendimento das interações sociais e para o aperfeiçoamento das
relações humanas. Quando se fala de descrição e de interpretação do
mundo e da realidade, impõe-se pensar em processos sígnicos por meio
dos quais são construídos os cenários e as práticas sociais;

pelo que nos atreveremos a desvendar por processos significativos, que envolvem
um olhar mais apurado sobre a Língua Portuguesa, as nuances de nossa própria
cultura, transportadas da cultura grega.
Queremos, assim, ressaltar a importância de uma análise estilístico-semiótica como
mecanismo de pesquisa, para a compreensão mais abrangente do que, no ensino da
língua, podemos alcançar em relação à percepção do contexto no texto, em uma
releitura crítico-analítica.
Com um olhar que visa a acrescer, enriquecendo-nos em conhecimento,
pretendemos apresentar a existência do conceito mencionado, sem, no entanto, nos
apossarmos de qualquer outra intenção, senão a de novas leituras que nos levem à
compreensão das ações humanas, cuja observação foi amplamente levantada pelos
gregos e até hoje é objeto de estudo e pesquisa, uma vez que a cultural ocidental tem
seu berço na filosofia clássica.

A Importância da Mitologia.
A imagem é uma criação pura do espírito. Ela
não pode nascer da comparação, mas da
aproximação de duas realidades mais ou
menos remotas. Quanto mais longínquas e
justas forem as afinidades de duas realidades
próximas, tanto mais forte será a imagem —
mais poder emotivo e realidade poética ela
possuirá... (BRETON, 1985, p. 52)

Discorreremos, a princípio, para um maior alcance do que nos propusemos expor


por meio deste artigo e com o objetivo de elucidar os motivos que nos levaram a tal

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abordagem, acerca da cultura grega e sua importância como influência indiscutível


na cultura ocidental, trazendo, assim, assertivas sobre a utilidade dos mitos
entremeados de uma consciência coletiva e identidade cultural.
Sob um olhar desavisado, surgem questionamentos, por carregarem certa carga de
afetividade, rompendo com o racionalismo, para ascender em subjetividade, todavia,
requer-se do mito uma análise mais profunda, a priori, ressarcindo-nos de um
menosprezo à sua importância, por seu destaque ao longo da história, na tarefa
indiscutível de formação de uma consciência coletiva. Como nos aponta Brandão
(1989, p.10): Os mitos são, os depositários de símbolos tradicionais no funcionamento do Self
cultural, cujo principal produto é a formação e a manutenção da identidade de um povo.
Seguindo, então, essa esteira de raciocínio, abordaremos alguns pontos encontrados
sobre Mitologia Greco-romana, para posterior retomada de um signo cujo
significado, explorado com maestria por Manuel Bandeira, vem mostrar a influência
desse conhecimento em nossa própria cultura.
É indiscutível que a mitologia faz parte da nossa Literatura Ocidental, pois
trazemos, em nossas formas de expressão, assim como na arte e na estrutura do
nosso pensamento, toda a sua influência, sendo demonstrada, no nosso cotidiano,
de formas variadas, tão enraizada está no nosso “eu”. Inferimos, ainda, que, no caso
do Brasil, as mitologias são múltiplas, devido à formação de nosso povo, que
incluem tradições e superstições indígenas e africanas. Assim, o valor das mitologias
se reveste nas diversas manifestações artísticas, sendo abordagens da Psicanálise, da
Sociologia, da Filosofia e sempre um ponto de referência para entendimento do
pensar e agir humano. Asseveremo-nos ao que diz Ruth Guimarães:
(...) a forma primordial das manifestações do espírito é o mito.(...) Se o
mito está na origem da poesia, está, por isso mesmo, na origem da
literatura. E, sendo a primeira manifestação da inteligência, é necessário
que a conheçamos bem, para entendermos o que vem depois, mais alto e
mais abstrato.

Mito pode ser descrito, semioticamente, como índice (pela similitude entre
significante e significado), pois a palavra, a imagem, o gesto, que nascem no
inconsciente, transformam-se em narrativa, logo, tornando-se ícone (pela
contiguidade vivida entre significante e significado), modificando-se, então, para a
consciência. A sua força se dá devido à busca de uma organização social em
benefício do coletivo. É o homem em busca de explicações que o satisfaçam,
compartilhando a sua visão de mundo, da realidade, do outro, do indivíduo e do
coletivo, o que vem a tornar o mito um símbolo (pela contiguidade instituída entre
significante e significado).
Aqui, como Édipo, buscaremos uma decifração para mito, visando a um alcance
maior de nossa análise dedutiva, ao nos calçar com a definição de Bronislav
Malinowski: (...) uma narrativa que faz reviver uma realidade primeva, que satisfaz a

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profundas necessidades religiosas, aspirações morais, a pressões e a imperativos de ordem social e


mesmo a exigências práticas.
Assim, por agora, nos deteremos na tessitura do já referido poema de Manuel
Bandeira que, embasado no mito Aracne, provoca uma releitura da realidade;
estabelecendo uma lógica semiótica em que a segunda pressupõe a primeira e a
terceira pressupõe a segunda. Analisaremos no poema “A Aranha”, sob um viés
estilístico-semiótico, buscando, nas escolhas feitas, a intencionalidade do autor: uma
retomada do mito “Aracne”, presente na cultura grega, e suas implicações sociais,
para que, seguindo o rastro da aranha de Manuel Bandeira, chegarmos à percepção
de uma lógica cujo significado teceu uma cultura e ligou-nos a um conceito, como
nos aponta Simões (2009, p.19): O estudo dos signos linguísticos e seus condicionamentos
permite aos linguistas analisar a semiose no plano verbal e com isto projetar suas investigações em
planos mais largos como o da Semiótica das Culturas.

Aracne e Manuel Bandeira.


Para tanto é necessário reconhecer na trama da Aranha o destino de Aracne, por
isso optamos por apresentar-lhes o mito e logo após o poema.
Aracne era uma jovem Lídia, filha de
Ídmon, tintureiro de Cólofon. Bordava e
tecia com tal perícia que até as Ninfas
do Tmolo e do Pactolo abandonavam
as águas e os bosques para lhe admirar
os trabalhos. Sua reputação crescia e
era já conhecida pela beleza dos seus
tecidos de encantadores desenhos em
toda a Grécia. No entanto, entre os
seus dotes não se contavam a
modéstia. Envaidecia-se de quanto
fazia e falava alto e em bom som que
não tinha receio de desafiar a própria
Atena, protetora e padroeira dos
fiadeiros. A deusa soube. Assumiu o
aspecto de uma anciã de cabelos
brancos e procurou a moça,
aconselhando-a a ser mais comedida,
pois que os deuses facilmente se
ofendem e a sua gabolice podia resultar
em algum mal.

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Resumo do mito
A moça insultou a anciã, e disse que a deusa não apareceria, em resposta ao seu desafio,
porque sabia que perderia. Indignada, Atena se revelou em toda a sua imponência de
deusa e declarou aceitar o desafio. Dispuseram-se as linhas e começaram a bordar e a
tecer. Cada uma delas desenhou histórias. Atenas fixou em lindos coloridos a sua
disputa com Poseidon, em torno do nome que deveria ser usado pela cidade de Atenas.
Aracne pôs-se a desenhar histórias maliciosas a respeito dos deuses. Desenhou-lhes as
metamorfoses, as intrigas, os descarados amores; era um trabalho de sutil maledicência e
reprovação. Terminados os trabalhos, a deusa examinou detidamente o trabalho da
moça Lídia. Estava uma perfeição. Não lhe achou a menor irregularidade, nem
desarmonia de tons, era tudo um capricho, uma delicadeza, uma beleza. Vendo-se, senão
vencida, ao menos igualada por um simples mortal, Atena rasgou o delicado trabalho, e
ainda por cima feriu a rival com a agulha. Aracne, insultada enforcou-se. Atena
sustentou-a no ar e não lhe permitiu morrer. Transformou-a em aranha, e disse-lhe que
se queria tecer que tecesse. Seria o seu castigo e de toda a sua descendência. Aracne
tinha um irmão, Falaxia, que fabricava armas. (p. 65) 85
A ARANHA
(Manuel Bandeira)

1 Não te afastes de mim, temendo a minha sanha


E o meu veneno... Escuta a minha triste história:
Aracne foi meu nome e na trama ilusória
Das rendas florescia a minha graça estranha,

Um dia desafiei Minerva. De tamanha


5 Ousadia hoje espio a incomparável glória...
Venci a deusa. Então ficou ciumenta da vitória,
Ela não ma perdoou: vingou-se e fez-me aranha!

Eu que era branca e linda, eis-me medonha e escura.


Inspiro horror... Ó tu que espias a urdidura
Da minha teia, atenta ao que meu palpo fia:
10
Pensa que fui mulher e tive dedos ágeis,
Sob os quais incessante e vária a fantasia
Criava a pala sutil para os teus ombros frágeis...
[grifos nossos]

85
GUIMARÃES, Ruth. Dicionário da Mitologia Grega. São Paulo: Cultrix, 1986.

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Traçaremos, a partir de uma leitura semiótica, um caminho estilístico que nos


proporcione uma compreensão mais abrangente. A semiótica possibilita uma análise
tridimensional do objeto, num vislumbre do que está no signo, por trás do signo e
além do signo. E, assim, em busca de uma imagem que reflete conceitos,
esbarramos, a princípio, na ciência da Aranha cantada por Caetano Veloso — Deu
meia-noite, a lua faz o claro / Eu assubo nos aro, vou brincar no vento leste / A aranha tece
puxando o fio da teia / A ciência da abeia, da aranha e a minha / Muita gente desconhece (”Na
asa do vento”) ou Deixe de manha, deixe de manha, pois / Sem essa aranha, sem essa aranha
/ Sem essa aranha / Nem a sanha arranha o carro / Nem o sarro arranha a Espanha
(“Qualquer coisa”). Tecer seria, então, nessa perspectiva, mais que um
conhecimento, que uma ciência, seria uma arte que lhe fora dada pela força intuitiva
da natureza, como o talento de Lídia que deveria ser agradecida aos deuses por ser
considerada exímia tecelã.
No entanto, é importante observar que a tessitura da aranha precisa sempre ser
refeita, embora pareça construir sua “casa”, na verdade constrói uma armadilha e
armazém. Seu tecer traz, como objetivo, ludibriar o seu “futuro alimento” e com
suas fiadeiras produz um invólucro no qual sua presa é guardada para ser digerida
posteriormente. Nas mitologias antigas, a sua teia, cinco vezes mais forte que o
próprio aço e capaz de esticar-se quatro vezes o seu comprimento sem que os seus
fios arrebentem, é associada ao cosmos e a aranha é vista como criadora do mundo,
responsável em algumas culturas por tecer a realidade, sendo, porém vista em outras
como tecedora da aparência ilusória dessa mesma realidade. No ato de tecer a
realidade, a aranha é também a que faz o destino do homem86.
Manuel Bandeira, utilizando-se dessa imagética, traduz um pensamento, produzindo
um forte apelo visual, auxiliando, assim, na construção do entendimento maior de
um mundo plural cujas diferenças são descartadas, ao aproximarmos épocas, e, sob
um olhar minucioso, averiguarmos os resquícios de um consenso. Como defende
Gaston Bachelard ao conceituar a imaginação: não é, como sugere a etimologia, a
faculdade de formar imagens da realidade, é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a
realidade, que cantam a realidade (2005, p. 18).
O autor do poema revive, em versos, valores estéticos da Antiguidade Clássica,
seguindo, assim, a estrutura do parnasianismo com preciosismo rítmico e vocabular
e ampla descrição visual, trazendo-nos efeitos pela sonoridade das palavras e dos
versos, além de certa melancolia e um sentimento de angústia vivido por Aracne. “A
Aranha” se constrói em dois quartetos e dois tercetos, seguindo uma estrutura fixa,
primando, assim, por uma recuperação desse valor estético clássico.

86
Em “A moça tecelã”, de Marina Colasanti, fica-nos bastante nítida essa visão tecer e destecer o destino dos
homens.

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O eu-lírico pronuncia-se com um apelo dramático chamando o leitor para uma


realidade que retorna no tempo, alcançando, assim, a historicidade greco-romana,
buscando com isso a catarse, uma participação efetiva por parte do leitor/ouvinte
que podemos observar no pedido (...) Não te afastes de mim (...) Escuta a minha triste
história. Ocorre a fusão entre o sujeito e o objeto, tornando-se perceptível a essência
do ser tematizado: Aracne foi meu nome (...) Eu que era...
Destacamos, ainda nesse poema, em um processo de seleção de palavras utilizadas
— Da minha teia (...) na trama ilusória —, componentes de imagens míticas,
percebendo a linguagem mítica com expressivo poder de representação da
experiência humano-existencial, pelo que, no tecer da trama ilusória, encontra-se um
“sobrecódigo” imposto pela primeira. Para Jung, o mito tornava-se uma estrutura
simbólica ao materializar o inconsciente coletivo (Brandão, 1989, p. 37).
As palavras teia & trama, ambas com significados que apontam para um conjunto de
fios: teia, fios produzidos pela aranha e trama fios utilizados pela tecelã, enquanto
trama pode também significar enredo, intriga apontando para mito, passam a
funcionar como ícones-símbolos na trama sígnica. Assim, o autor, em sua seleção e
combinação lexicais, explora as diversas opções, para melhor estabelecer a desejada
intenção literária, repassando a impressão intencional e partindo das escolhas
lexicais para a produção do texto, a princípio, criando o universo da aranha, levando
em conta o contexto, junto aos elementos de situação e interação, o que torna
possível a obtenção de uma interpretação mais equilibrada e que nos leva ao enredo
proposto no qual a tecelã, em um ato de desafio aos deuses — De tamanha ousadia —
, vence a deusa, tornando-se alvo de um castigo.
Dentro da mitologia grega, percebemos os deuses como tecelões sobre o destino
dos homens, intervindo e modificando de acordo com os seus caprichos, como em
a Odisseia, um poema épico da Grécia antiga, do Século VIII a.C. no qual Ulisses
vagueia dezessete anos, por ter desafiado Poseidon, e fica à mercê de Calipso, em
sua ilha, só voltando para Ítaca, quando os deuses assim decidem. Diante de tal
assertiva, voltamo-nos para a intencionalidade contida na composição do texto,
pelas escolhas feitas, reconfigurando e remodelando, a partir de um olhar em busca
de signos preferenciais.
Aproveitando essa linha de pensamento, gostaríamos de fazer um parêntesis sobre a
questão de Ulisses que serve como interseção tanto para a ideia da vontade dos
deuses sobre os homens quanto para a tessitura. Penélope, mulher de Ulisses, herói
do poema Odisseia, viveu a ausência de seu marido por vinte anos, período em que
ela se porta com dignidade e absoluta fidelidade; mas, por um lado, sua formosura,
e, por outro, os bens familiares atraem a cobiça de pretendentes, a quem convinha
julgar morto seu marido. Ela lhes dizia que só escolheria o futuro marido, após tecer
uma mortalha, que, a bem da verdade, não fazia questão de terminar: passava o dia
tecendo e, à noite, às escondidas, desmanchava o trabalho realizado. E, enquanto
seu marido se mantinha ausente, embora por tanto tempo sem notícia, ela se vestia

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de longo, tecia longos bordados, ajoelhava-se, pedia e implorava para a deusa Atena
que providenciasse o retorno de seu amado.
No entanto, é importante notar a forma subentendida com que o autor se refere à
Penélope no poema. Segundo a história de Penélope, na Odisseia, a virtuosa esposa
de Ulisses convence seus pretendentes de que deveria fazer uma túnica, que serviria
de mortalha para cobrir o corpo de Laertes, o venerável pai de Ulisses, que, com a
notícia do casamento de sua nora, morreria de depressão, dado ao avançado da
idade. E como era costume as mulheres tecerem uma mortalha para os entes
queridos que se encontravam prestes a deixar este mundo, Penélope usa desse
artifício para ganhar tempo ante seus pretendentes, que aquiesceram de pronto, por
ser uma proposta justa. Entretanto, ela nunca a terminaria, pois sua intenção era a
de fazer com que seus pretendentes desistissem da ideia de disputar o lugar de
Ulisses, devido à demora na confecção da mortalha. Então, a esposa do aventureiro
Ulisses é conhecida, na mitologia grega, como o símbolo da mulher que tece longos
bordados, enquanto seus maridos se ausentam por períodos delongados.
Ainda em relação ao mito de Penélope, gostaríamos de apresentar um apontamento
de Cafezeiro (1999: 123), quando diz: Penélope tece uma mortalha que significa o
seu desespero entre a esperança e a morte, mas, no texto e no tecido, se incluem
estratégia e astúcia. Ela tece e destece para alongar o tempo e o espaço do texto.
Não seria, então, essa possibilidade de “tecer & destecer” o texto que levou Manuel
Bandeira a criar o anacoluto em seu poema, mostrando que a transformação de
Aracne foi uma “confecção” dela própria, efeito de sua arrogância?
Inferimos essa possibilidade, uma vez que o poema transmite claramente a ideia de
ciúme, vingança e castigo imposto pelo desafio, em paradoxo com a graça concedida
e homenagens cedidas à moça pelo seu talento, no último verso do primeiro
quarteto (...) das rendas florescia a minha graça estranha, pois, segundo o mito, não havia
outra tecelã com tal habilidade. Seria, portanto, o castigo uma consequência da
soberba da jovem, causada pela ousadia demonstrada no “desrespeito aos deuses”,
controladores do destino do homem.
No verso nono, o poeta valendo-se do já comentado anacoluto, refere-se à
metamorfose sofrida pela tecelã, dando ao texto a necessária imagem de surpresa e
transtorno, com uma construção que provoca na mente do leitor um repelão,
percebemos dessa forma o anacoluto não como uma ruptura de linearidade sintática,
mas como uma ruptura da fisionomia: Eu que era branca e linda, eis-me medonha e escura.
Utilizando-se desse recurso estilístico, consegue, assim, retratar com maior clareza o
cunho de retaliação àquela que era visitada pelas Ninfas, seres mitológicos de beleza
extraordinária, que, segundo o mito, vinham admirar o seu trabalho. Seguiria, então,
a partir desse momento, afastada, em sua condição de aracnídeo, da sociedade e
perderia a admiração desses seres por seu desagravo. Podemos destacar, também,
nesse mesmo verso palavras que poderiam ser consideradas antíteses: branca &
escura, linda & medonha, pela ideia visual que transmitem, ressaltando a idealização do

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belo dentro da cultura greco-romana, na descrição da jovem, e a representação do


horror causado pela transformação. A aracnofobia como uma resposta instintiva ou
mesmo um fenômeno cultural. Devido à força léxica empregada, para retratar a
metamorfose, a aranha deixa de ser uma imagem metafórica e surge coexistindo
com a mulher. Vale destacar o valor expressivo do pronome átono me presente
nesse anacoluto, conferindo ao sujeito do discurso a característica de objeto das
ações praticadas pela Deusa. Sousa da Silveira faz um belíssimo comentário
estilístico desse uso pronominal no poema em questão. Resumindo primeiramente o
episódio mitológico retomado por Bandeira, Sousa da Silveira (1983: 272) diz:
Tendo vencido a Minerva numa competição, a exímia tecedeira Aracne
foi transformada pela vingativa deusa em Aranha. [...] A oposição entre
os adjetivos branca e escura, linda e medonha, faz ressaltar a
perversidade da vingança; o anacoluto “eu... eis-me”, com a mudança
abrupta da construção, pinta a mudança operada pela metamorfose. As
formas pronominais eu, sujeito, e me, objeto, salientam os dois estados,
avivando o seu contraste: eu, sujeito, a atividade, a satisfação de ser bela
e hábil; me, objeto, o resultado da ação cruel mostrado na vítima, no
objeto dela: “eis-me medonha e escura”.

É importante notar que as construções paratáticas encontradas no poema, na quebra


de um raciocínio lógico, voltam-se para a transmissão de estados emocionais, o que
possibilita ao leitor/ouvinte, uma carga emocional pelo fato de tornar a linguagem
mais expressiva.
Utilizando-se de palavras pertencentes ao mesmo campo semântico; teia, trama,
urdidura em escolhas que refletem o pensamento do eu-lírico, o poema repassa o mito
sob uma visão diferenciada, com um critério de escolhas, orientado para a
manifestação psíquica e para o apelo em que o drama é exposto de acordo com a
perspectiva da aranha que descreve toda a carga do ato sofrido por ela. Há uma
relação entre os significados e as semelhanças implícitas, além de uma forte
tonalidade afetiva, marcas características do estilo do autor.
Podemos ainda observar, no poema, a utilização de verbos que induzem a um
“presente psicológico” tais como Escuta. Eis-me. Inspiro. Pensa, retirando do texto o
sentido anacrônico e dando-lhe um maior dinamismo, ligando o passado ao
presente, assim como o mito está ligado à nossa cultura. O tempo cronológico,
perceptível por meio dos verbos e das construções frasais é um recurso estilístico
utilizado pelo autor, dando-nos com isso a impressão de vivenciar o fato (...) o tempo
cronológico resulta das mudanças, que se operam constantemente no mundo físico e no mundo
interior de cada um, mudanças essas de que tomamos consciência, colocando-as numa sucessão
(MELO, 1976: 158).
Observamos que, na terceira estrofe, o eu-lírico (Aracne) faz menção à urdidura de
sua teia, como se, naquele exato momento, estivesse tramando, fiando um enredo
que recairia sobre os nossos ombros e, por meio da construção de uma pala sutil,

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revela a fragilidade humana, ligando-nos, assim, a um contexto que nos leva a certas
indagações: o que o mito aponta? Sob que bases se afirma? Que conceito se
entremeia em sua tessitura? De acordo com a análise feita, no intuito de como
interpretá-la, assimilar e decodificar os signos implícitos, percebemos que as relações
indiciais dos signos linguísticos nos levam a vê-los com valores icônicos tão
abrangentes que se tornam símbolos, pois começamos a observar o que está além
do mito e que de maneira metafórica adentrou na cultura ocidental, sob aspecto de
religiosidade, sendo parte da nossa identidade cultural em resposta à fragilidade
humana, mencionada por Manuel Bandeira. Diante de tais assertivas, asseguramo-
nos de que, de acordo com o que nos atesta Simões (2009, p. 83):
A produção imagética se desenrola conforme o projeto de raciocínio.
Pode ser dedutiva ou indutiva.
Esta vai reunindo um a um os signos de que se constitui o texto de
modo a compor o seu significado global; enquanto aquela parte do todo
do texto e tenta decompô-lo em partes menores que possam referendar a
ideia global que lhe fora atribuída.

Nesse sentido, buscando investigar os significados contidos nos signos utilizados e


contribuindo, dessa forma, para uma representação de mundo, optamos pelos
efeitos produzidos no poema eleito e, para tal, levamos em conta sempre o
contexto, junto aos elementos de situação e interação, lembrando que a pragmática
aborda as relações entre os signos e seus usuários desenvolvendo uma “rede de
encadeamentos discursivos” (Ducrot, 1998, p.17). Saussure identifica o significado
como a imagem mental do conceito, ou seja, a ideia que se forma do objeto
representado; já Castelar de Carvalho (1984, p. 41) caracteriza o signo literário e
fundamenta: Fazer literatura implica uma seleção estético-vocabular, havendo, portanto, motivo
da parte do escritor para preferir tais e tais signos e rejeitar outros .
Discorremos nesse ponto, para maior esclarecimento, no intuito de assim transpor
dúvidas que possam surgir acerca do que aqui repassamos, acerca do espaço
simbólico que passa a ser identificado como a realidade, nesse caso, apontado como
a língua falada, na forma de mito, cuja representação expressa o modo comum de
pensar e agir confirmando uma cultura. Como ser socialmente adaptado, o ser
humano, em um espaço de convenção, incorpora os valores instituídos pelos
objetivos e conveniências da cultura o que se torna a sua realidade.
Partimos, então, do plano de expressão, ou do significante para o conteúdo, numa
análise do texto poético em que o ideal da semiose ilimitada pode se realizar mais
plenamente em um certo modo de formar e compreender a realidade inerente à
obra. Seixas (1987, p. 169) observa:
(...) Enquanto o signo linguístico, por seu compromisso pragmático,
atende às necessidades e anseios do espaço de convenção, o signo
poético, formalmente aberto, de estrutura remissiva, se presta mais

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eficientemente a captar e enformar, informando, o não formalizado


espaço de transgressão.

Esbarramos dessa maneira na transubstanciação em o que objetos são ideias, são


valores, e nos signos encontramos razões e inter-relações que preenchem espaços,
lacunas espirituais.
À procura do que está subtendido no texto, e do que está por trás e até mesmo além
do mito, na ânsia de eternidade inclusa no espírito humano, como instinto de
perpetuação de vida, voltamo-nos para os dias atuais e em “A Aranha” deduzimos a
influência que entrelaça a visão religiosa ocidental de relacionamento entre
divindade e humano.
O eu-lírico, no verso onze, do poema em destaque, aponta para trás (...) atenta ao que
meu palpo fia: trazendo a força da noema como um ensinamento, ou seja, a trama
sobrepuja a Paideia. Logo em seguida, há uma retomada do primeiro estado na
menção da figura da mulher, o que observamos em sua importância, pois nela vê-se
o efeito do mito. A questão ideológica da mulher, como objeto de submissão dentro
de uma sociedade, revela-se no fato de serem vistas culpadas de todas as falhas e
males humanos, o que as acompanhou durante todo o contexto histórico, apesar de
Aracne ser castigada por outra mulher, culturalmente, essa metáfora demonstrava o
caráter subserviente a que a mulher estava atrelada, não lhe sendo permitido rebelar-
se, sob qualquer pretexto. A Política, de Aristóteles, justifica tal comportamento
feminino, em virtude de sua não plenitude da parte racional da alma, atestando,
assim, a sua incapacidade para um “bom pensamento”. Hodiernamente, afirma-se o
mito que explicita o pecado original, justificando e conduzindo atitudes e
responsabilizando a mulher como a origem de todos os males. Enquanto o mito
ressalta na mulher o desagrado dos deuses, Manuel Bandeira, na voz do eu-lírico,
enaltece o seu talento, a sua capacidade: e tive dedos ágeis, / Sob os quais incessante e vária
a fantasia / Criava a pala sutil para os teus ombros frágeis... enquanto desmascara a
construção do próprio mito, que, por meio da fantasia, traz uma mudança que se
impõe sobre a fragilidade humana.
Assim, apontamos para a fragilidade mencionada no fim do poema, caracterizando a
raça humana, o que nos induz ao conceito de subserviência ao divino com risco de
um castigo atroz, caso seja a divindade desafiada, pelo que atestamos, dentro da
nossa cultura ocidental, um não questionamento quanto à vontade divina, e uma
total entrega do nosso destino, como pressuposto para a nossa própria existência.
Essa imagética educativa tornou-se parte do nosso contexto, vigorando em um
senso comum que afirma nossa identidade social. Frases como “se Deus quiser”,
“Tudo é como Deus quer”, “Seja como Deus quiser” ou mesmo “Queira Deus!”,
são indícios comprobatórios que nos servem como constatação do que aqui foi
exposto.

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Palavras finais
Procuramos mostrar, assim, por meio deste artigo, a considerável intervenção da
cultura grega na nossa identidade social, o que se tornou possível, mediante os
mecanismos utilizados, ou seja, a Estilística como meio de reflexão acerca do que
encontramos atrás dos textos em um olhar cuidadoso, utilizando recursos com vezo
estilístico e a semiose, sob o olhar de Darcilia Simões, em sua Teoria da Iconicidade
Verbal, que nos levou para além do texto, em um diálogo cultural.
Sob um olhar semiótico, conseguimos resgatar, no tempo e no espaço, a
emblemática cultural que nos rodeia, com o intuito exclusivo de, no respeito ao
outro, entendermos o entrelace das culturas, minimizando, assim, as diferenças e
amenizando os anseios humanos que nos circundam. Conhecer as origens nos torna
iguais e, sendo iguais, embora diferentes como indivíduos, problematizamos menos
e, consequentemente, facilitamos as inter-relações sociais.
No ensino da Língua Portuguesa torna-se viável, por meio de leituras textuais,
promovermos uma releitura de mundo, concebendo questionamentos racionais .Por
meio de um estudo científico, com base na teoria semiótica de Pierce, é possível
incorrer em uma análise coerente buscando preencher lacunas e desvendar
princípios, valores e situações que estão presentes em nossa sociedade.
Convém enfatizar que essas associações só se tornaram possíveis por apresentarem
consistência técnica, porque nossa análise estilística teve um suporte semiótico-
pragmático. Procuramos ler o poema dialogicamente, isto é, consideramos sua
leitura num contexto maior: histórico, cultural, ideológico, etc. do qual pudemos
extrair a noção de que sentido e sentimentos estão a serviço dos propósitos
perseguidos na realização e na compreensão do poema.
O outro aspecto foi o cuidado para não nos perdemos dos caminhos traçados
deixando-nos inebriar pela riqueza linguística do texto eleito. Receamos que tal
atitude pudesse conduzir a análise para caminhos tortuosos e mais vulneráveis às
subjetividades (às vezes bastante perigosas!) como as que nos assaltaram nas
inferências, nas relações semióticas, nas incursões históricas e literárias... Enfim,
temíamos fugir do objetivo que nos propusemos: o de reconhecer traços estilísticos
no poema e, a partir do reconhecimento, fazer uma análise estilística (com
fundamentos semióticos e pragmáticos, ainda que sejam subliminares), além de
mostrar a influência da cultura grega no pensamento ocidental hodierno. Por isso,
não foi fácil controlar a emoção e as pulsões provocadas pela riqueza do poema
agravada pelo amor à obra eleita.

Referências:
BACHELARD, Gaston. O Ar e os Sonhos. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira. Rio de Janeiro: Record/Altaya, 1999.

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172
Caderno Seminal

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega volume I. 5 ed. Petrópolis: Vozes, 1989.
CAFEZEIRO, Edwaldo. “O texto e seus teares”. In: VALENTE, André Crim (org.).
Aulas de Português — perspectivas inovadoras. Petrópolis: Vozes,1999.
CARVALHO, Castelar. Para Compreender Saussure. 4ª ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Ed.
Rio, 1984.
CIVITA, Victor. Dicionário de Mitologia Greco-Romana. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1976.
GUIMARÃES, Ruth Dicionário da Mitologia Grega. São Paulo: Cultrix, 1986.
CHAVES DE MELO, Gladstone. Ensaio de Estilística da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Padrão, 1976.
SANTAELLA, Lucia. A Teoria Geral dos Signos — semiose e autogeração. São Paulo: Ática,
1995.
SEIXAS, Cid. "O Espaço da Transgressão". In OLIVEIRA, Ana Claudia de &
SANTAELLA, Lúcia. Semiótica da Literatura. São Paulo: Educ, 1987. Série Cadernos - PUC
28
SILVEIRA, Sousa da. Lições de Português. 9 ed. Rio de Janeiro: Presença, 1983 (Coleção
Linguagem; nº 23).
SIMÕES, Darcilia. Teoria da Iconicidade Verbal Rio de Janeiro: Dialogarts, 2009.

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Caderno Seminal

A PALAVRA E O RISO NAS CRÔNICAS DE JOÃO UBALDO RIBEIRO


THE WORD AND LAUGHING IN JOÃO UBALDO RIBEIRO’S CHRONICLES

Denise Salim Santos87

Resumo
Este artigo apresenta um estudo estilístico-discursivo, a partir dos processos de formação de
palavras recorrentes na crônica jornalística de João Ubaldo Ribeiro que são relevantes na
construção do humor presente nos textos analisados. Destaca o papel da composição e da
derivação como desencadeadores do riso, através do enriquecimento semântico que trazem às
crônicas, a partir da manipulação dos elementos morfológicos existentes no sistema da Língua
Portuguesa.
Palavras-chave: Humor; Processos de Formação de Palavras; Estilística; Discurso

Abstract
This article presents a study of style-discursive, from the processes of word formation in chronic
recurrent journalistic João Ubaldo Ribeiro which are relevant in the construction of the humor in
the texts analyzed. Highlights the role of composition and derivation as triggers of laughter through
semantic enrichment they bring to chronic, from the manipulation of morphological elements in
the system of the Portuguese language.
Keywords: Humour; Processes oh word formation; Estilistic; Discourse.

Preliminares
Desde os primeiros pensamentos filosóficos, o riso vem atrelado à ideia de prazer.
Ao rir, relaxamos dos fardos pesados que a vida nos impõe. Descansamos. Através
do riso podemos enxergar a realidade de outra maneira e chegar à verdade do
mundo pelo caminho autorizado do não sério. O riso também pode ser crítico,
punitivo, instrumento de humilhação, controlador dos excessos sociais. Por isso,
segundo Versiani (1974, p. 23) o homem teme ser ridículo: o riso é como a espuma das
ondas do mar; parte superficial do entrechoque das ondas, ela ferve, chia - é a alegria. Mas ela é
feita à base de sal; quando o filósofo vai prová-la, sentirá, para uma pequena quantidade de
matéria, uma boa dose de amargor.
Rir faz a diferença entre os homens e seus inferiores - os animais e os seres
inanimados. Só o homem tem a capacidade de rir. No entanto, o riso é instrumento
de discriminação entre o Criador e a criatura. Deus não ri, segundo os cânones da
Igreja. O sentimento de superioridade em relação àqueles, os animais, se esvai diante
da inferioridade em relação ao Ser Absoluto, gerando a ambiguidade própria à
condição humana de que o riso é prova por excelência.
Centrado inicialmente no objeto do riso, hoje não se concebe mais o riso sem levar-
se em conta a percepção do que ele significa, emprestada pelo sujeito que ri. O riso

87
Professora de Língua Portuguesa - UERJ /FACHA. d.salim@globo.com

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não é mais incompatível com a atividade humana. Já é viável colocar-se o “boné do


bufão” para se ter uma nova visão do universo, para ir-se além do possível e atingir
o impossível através do não sério. Por isso, talvez, nos dias de hoje se dê tanta
importância àqueles que fazem do humor sua ferramenta de trabalho no combate às
injustiças sociais, ao cerceamento das liberdades e na denúncia do que não está
correto. O riso é uma terapêutica social. Por esse ou aquele viés, os teóricos acabam
quase sempre por concordar com a ideia de que o riso faz bem à saúde mental, física
e social.
As brevíssimas anotações feitas até aqui contextualizam o cômico, o riso e de seu
objeto neste estudo. Em algumas passagens constatamos variações dos tipos de
produção cômica. Uma delas é o humor, citado como uma especialização do
cômico. Segundo Cabral e Nick (1974, p. 174) humor é a expressão verbal ou outra que
retrata uma situação com misto de simpatia e divertimento ou uma tendência para reagir
favoravelmente (bom humor) ou desfavoravelmente (mau humor) a outras pessoas.
Sigmund Freud enriquece a teorização sobre os estudos do humor, acrescentando
que este tipo de cômico é um meio de se obter prazer apesar dos afetos
(sentimentos) dolorosos que nele interferem. Situa-se neste ponto a primeira
distinção entre o cômico e o humor: aquele não consegue existir em presença da
dor, do sofrimento; ao passo que o humor atua exatamente como um substituto da
geração de um sofrimento, ou seja, dando pouca importância a seus infortúnios, o
indivíduo está apto a ver o lado "engraçado" da situação .
Segundo o psicanalista, o humor tem como fonte a economia de sentimento
(compaixão). Aliás, todo processo de geração do riso é fundado no princípio da
economia: o cômico, a partir da economia do pensamento e da representação; o
chiste, a partir da economia da inibição.
Outra característica importante da situação humorística é que se satisfaz
rapidamente, porque completa seu circuito dentro do próprio produtor do humor.
A divulgação da satisfação que o humor produz no indivíduo não carece
necessariamente da participação do outro para se completar88.
Quanto à funcionalidade, à semelhança do cômico, uma das mais evidentes está em
seu papel de controlador social crítico. Como técnica de controle, é usado para as
mais diversas manifestações de aprovação, desaprovação, hostilidade ou rejeição etc.
Não é, no entanto, um recurso unilateral; é usado tanto pelos representantes do
poder e da autoridade, quanto pelos demais grupos sociais, o que é bem mais
frequente, uma vez que o humor pode se tornar instrumento de luta, de oposição.

88
Sugerimos a leitura de Os chistes e sua relação com o inconsciente, de Sigmund Freud (Rio de Janeiro: Imago,
1977) para maior aprofundamento da perspectiva psicanalítica sobre a questão do cômico e do humor.

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Sírio Possenti (1998: 49) concorda com a ideia, mas de forma parcial, denunciando a
existência de um humor reacionário, nada progressista:
A afirmação segundo a qual o humor critica é muito parcial. O humor
nem sempre é progressista. O que caracteriza o humor é muito
provavelmente o fato de que ele permite dizer alguma coisa mais ou
menos proibida, mas não necessariamente crítica, no sentido corrente,
isto é, revolucionária, contrária a costumes arraigados e prejudiciais. O
humor pode ser extremamente reacionário, quando é uma forma de
manifestação do discurso veiculador de preconceitos, caso em que acaba
sendo contrário a costumes que são de alguma forma bons, ou, pelo
menos razoáveis, civilizados como os tendentes ao igualitarismo, sem
dúvida melhores que os seus contrários. Como dizer que o humor é
crítico nesses casos?

Os textos impregnados de humor vêm forjados por situações ambíguas. Embora


suscitem hilaridade, normalmente são motivados por alguma situação que irrita,
inquieta a opinião pública; o que nos leva a crer que, através do humor, tenta-se
destruir a realidade que não agrada. Esses textos têm de ser construídos segundo
técnicas eficientes, uma vez que o discurso humorístico não tem compromisso com
manter relações de significação num mesmo sistema de referência. A justaposição de
planos é fonte frequente desse tipo de efeito de sentido. Até porque as palavras não
têm efeito exclusivo de produzir sentidos. Elas são manipuladas para chegar ao
objetivo humorístico.
A temática explorada não foge à função social que o humor exerce. Dela fazem
parte os assuntos controversos socialmente, na maior parte das vezes – sexo,
política, racismo, instituições em geral, maternidade, a própria língua, loucura,
defeitos físicos. Do discurso humorístico também são alvos fáceis a velhice, a
calvície, a obesidade, o tamanho dos órgãos sexuais. De alguma forma o humorista
descobrirá um artifício de veicular o subterrâneo, o não oficial em seu discurso.
Outro aspecto pertinente ao cômico, e que se mantém no humor, é o caráter lúdico.
Eduardo Diatay Menezes (1974, p. 11-13) afirma que o cômico constitui uma
categoria especial das atividades lúdicas, porquanto só sob o ponto de vista do jogo
é que se pode perceber o objeto do riso. Segundo o autor, assim como o jogo, o
cômico confronta-se com os fatos em favor da fantasia; é a negação do real através
da ficção; é um meio de livrar-se de suas pressões e constrangimentos:
O jogo, como o cômico, está associado à alegria, ao prazer, à surpresa, ao
arrebatamento, farsa, divertimento, realidade (...). À tendência a esquecer
ou desconhecer os dados da vida real, ao desprezo pelo bom-senso, à
concentração nos sonhos de glória e nos empreendimentos heroicos que
compõem o cômico, correspondem o espírito de luta e aventura,
conquista e superação que acompanham o jogo. Por outro lado a
repetição é comum aos dois tipos de fenômenos.

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A citação apresentada recupera as marcas do cômico presentes também nas


características das atividades lúdicas, entre elas a repetição, em Bergson; o prazer,
em Platão, Aristóteles, Quintiliano e Cícero; a superação dos afetos dolorosos, na
perspectiva freudiana.
Eni Puccinelli Orlandi (1996, p. 155), ao apresentar as características do discurso
lúdico, reforça a proposta de aproximação entre o jogo e o cômico e,
consequentemente, o humor, apontando o discurso lúdico como o uso da
linguagem pelo prazer. Ressalta que, assim sendo, as funções da linguagem mais
recorrentes seriam a poética e a fática por causa respectivamente da maneira como se dá a
polissemia e por causa da reversibilidade nesse tipo de discurso A polissemia se instala na
multiplicidade de sentidos, e a dominância de um sentido sob os outros, ecos desse
sentido mesmo, realiza-se de maneira a ser preservado o máximo de ecos.
Considerando a natureza de nosso trabalho podemos sintetizar que o humor resulta
da transformação (ou economia de despesa, no discurso freudiano) de dor em
alegria, satisfação. O aspecto lúdico do humorismo resulta no uso da linguagem pelo
prazer; é a ruptura com o instituído. No lúdico, assim como no humor, a relação
com a referência não importa, não é necessária: há espaço para o nonsense. João
Guimarães Rosa (1979, p. 3-12), no prefácio de “Tutameia”, intitulado “Aletria e
Hermenêutica” trata a questão do suprassenso na construção da comicidade e do
humorismo. Diz ele:
No terreno do Humour, imenso em confins vários, pressentem-se mui
hábeis pontos e caminhos. E que na prática da arte, comicidade e
humorismo atuem como catalisadores ou sensibilizantes ao alegórico
espiritual e ao não prosaico, é verdade que se confere de modo grande.
Risada e meia? Acerte-se nisso em Chaplin e em Cervantes. Não é o
chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque escancha os planos da
lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para mágicos novos
sistemas de pensamento.

De circuito mais simplificado que o cômico, o humor pode iniciar e terminar em um


único indivíduo, mas se comunicado ou compartilhado. Será através da
compreensão da pessoa humorística que chegaremos ao mesmo prazer que ela
irradia - o prazer humorístico.
Partindo-se da distinção proposta por Vladimir Propp entre o cômico e o humor,
em que considera este a “capacidade de perceber e criar o cômico", podemos dividir
a responsabilidade do riso entre aquele que cria o texto e o outro que o recria no
momento da leitura desse produto. Divide-se a responsabilidade da construção do
sentido humorístico entre o sujeito-produtor e o sujeito-leitor. A capacidade criativa
e perceptiva do leitor também entra em ação e, consequentemente, o seu “estado de
humor”. Entretanto, o que faz rir a uns pode não despertar um mínimo de reação
no outro.

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O risível - o objeto que nos faz rir - reside, então, onde? A leitura das crônicas de
João Ubaldo Ribeiro nos aponta um humor mais subjetivo, aquele que tenta superar
as inquietações interiores através do prazer que extrai da brincadeira com as
palavras, construindo sentidos ora claros, ora jogando com a polissemia instaurada a
partir da manipulação das palavras nos enunciados ou dos elementos constitutivos
dessas palavras. Assim como Carlos Drummond de Andrade, o cronista não quer
revirar a sociedade pelo avesso, ao colocar a nu as mazelas sociais ou bulir com o
defeito do outro dolorosamente, mas tenta provocar modificações de ação, através
da reflexão do outro sobre as indignações, os afetos que provocam o escritor.
O humor na crônica não carece ser claro, objetivo, ostensivo. Ao contrário, a
ambiguidade é uma de suas marcas fortes. O tom irônico-humorístico que
detectamos contribui com frequência na construção de efeitos de sentido pincelados
ou derramados de humor. Perscrutamos neste artigo a veia humorística do autor
como uma de suas marcas de estilo, aliada à expressividade que certas formações de
palavras assumem nos textos. Lançando mão dessas estratégias no discurso, João
Ubaldo Ribeiro trata as coisas sérias tentando não macular a leitura prazerosa de
suas crônicas. É o deixar fruir por puro deleite de que nos falou Drummond.
Com frequência, o coloquialismo, outra marca estilística presente nos escritos de
Ubaldo, permite o “bate-papo” com seus poucos e pacientes leitores. O cronista, que gosta
de jogar conversa fora com seus interlocutores, confessa-se deprimido e alarmado com tanta
desgraceira a que somos expostos ou que nos impõem. Matérias pesadelares, como diz o
escritor. Assume que tem a obrigação de produzir textos mais leves: [...] eu devia
procurar um assuntozinho mais ameno, falar de amenidades inofensivas (“Paz, não é mesmo?
– 20/06/1999)89.
Com relação à temática que seleciona, não difere daquelas que são alvo do cômico e
permite ao cronista a exploração das técnicas discursivas na construção de efeitos de
humor. A política em geral, os desacertos que dela advêm e os personagens que nela
atuam, são alvos fáceis da pena do escritor:
Acordei com pendores filosófico-sociológicos, com perdão da má
palavra. É uma bela e ensolarada manhã. Acordei com outona, em que
uma brisazinha fresca balança as folhas dos pinhões roxos que agora
resolveram dominar o terraço aqui de casa (“A gente se acostuma a
tudo” – 18/04/1999)

O adjetivo composto filosófico-sociológicos faz referência às atividades intelectuais do


Presidente da República. A princípio enobrecedor, adquire um caráter
desprestigioso pelo tom irônico da expressão cristalizada empregada a seguir (com
perdão da má palavra). A quebra de continuidade do tom cerimonioso promove o riso

89
As expressões em itálico foram retiradas de algumas crônicas publicadas no jornal “O Globo”, página de opinião
que constituíram o córpus desta pesquisa.

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(ou o sorriso) de quem lê assim como também o jogo entre o nível culto da
linguagem (acordei com pendores filosófico-sociológicos) e o nível coloquial da frase (com
perdão da má palavra) a constrói a distensão do texto.
No geral, o tom das crônicas é casual e descontraído, permitindo, de quando em
vez, ser invadido pelo trágico ou pelo lírico, o que não persiste por muito tempo. A
crônica tende ao prosaico, ao despretensioso. No trecho comentado, é possível
verificar-se que o objeto do riso se localiza no outro que, no caso, é a figura do Ex-
presidente da República, Fernando Henrique Cardoso.
Mudando o foco, o autor transforma-se no objeto risível quando expõe as próprias
precariedades, as suas limitações físicas e estéticas (calvície, obesidade, sexualidade,
precariedade de saúde, vícios, a pouca habilidade em atividades esportivas). Desta
forma dá voz às minorias, abrindo espaço para que outras vozes falem através de
seu texto, instaurando a polifonia discursiva. É bem-humorada a definição que
apresenta para minoria: “[...] qualquer categoria que tenha um denominador comum e
se sinta por alguma coisa oprimida ou discriminada mesmo que seja maioria”
(Política [Quem Manda, Por que Manda, Como Manda]90, 1995).
A definição irônico-humorística do que seja minoria vai ter como ponto alto a
antonímia maioria. O desvio semântico de menor parte de para grupo oprimido também
responde pelo sucesso da trama discursiva.
Recorrentes são os temas que versam sobre os problemas que atingem os vários
segmentos da sociedade, notadamente aqueles causados pela inabilidade ou
arbitrariedade do Poder Público. Explorando o viés cômico, seus textos falam da
corrupção, do clientelismo, da falta de amor ao país, do descuido com a coisa
pública, do desrespeito à cidadania brasileira, como ocorreu no episódio do “kit-
socorro”:
Ninguém está prestando atenção, mas é assim, à sorrelfa que as coisas
pegam, como aconteceu com o kit de pronto-socorros... O otariado
nacional comprou, a turma levou a grana, agora, tá na cara, que era só
brincadeirinha. (“Problemas minoritários” – 07/03/1999)91

O emprego da formação neológica otariado para representar a ideia substantivo-


coletiva dos cidadãos que se preocuparam em cumprir a lei demonstra a posição
ideológica do produtor do texto em relação ao fato apresentado, numa crítica
direcionada aos autores da lei e àqueles que a cumpriram. Mais adiante, ainda no
mesmo texto, o foco crítico recairá somente sobre o “rigor da Justiça brasileira”.
Agora, ironizando às claras projetos de lei estapafúrdios, cede a fala a um de seus

90
RIBEIRO, João Ubaldo. Política (quem Manda, Por que Manda, Como Manda) (crônicas). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
91
http://diariodonordeste.globo.com/1999/03/07/030004.htm

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personagens co-botecanos, o Carlinhos Judeu, que propõe a institucionalização da


piada:
O mesmo pode acontecer daqui a pouco. Você conta uma piada não está
registrado no Conselho Federal de Contadores de Piada e paga multa ou
cana inafiançável, ou as duas coisas, sabemos como o Brasil é com os
crimes hediondos e poucos de nós são canadenses. (“Problemas
minoritários” – 07/03/1999)

A expressão Conselho Federal de Contadores de Piada vai parodiar outros nomes de


instituições federais julgadas “sérias” como o Conselho Federal de Educação,
Conselho Federal de Medicina. Além disso, o emprego hiperbólico dos adjetivos
inafiançáveis e hediondos contrasta com a pequenez do crime de contar uma piada. O
lúdico se faz presente. O jogo de sentidos, o cruzamento de valores, construirá o
verdadeiro sentido do texto, contando com a participação do interlocutor para
arquitetar a mensagem em que a lei é “brincadeirinha” e a piada, "coisa séria", é o
fato relevante aos olhos da Justiça brasileira.
Empregando a estratégia do humor para sinalizar o que destoa das convenções da
sociedade e que precisa ser corrigido, característica funcional do cômico, o cronista
não perde a oportunidade de chamar a atenção para a descaracterização da língua
materna. De tempos em tempos, quando surge oportunidade, recupera o tema e,
com finíssima ironia ou humor escancarado, traz à tona o problema dos modismos
linguísticos, seu uso indiscriminado e muitas vezes desnecessário, principalmente no
que diz respeito aos estrangeirismos adaptados ou não ao sistema da nossa língua.
Vejamos uma passagem da crônica Meu Amarelo Manteigabicho (28/03/1999):
Eu ia escrever como se diz na língua-patroa, my yellow butterfly mas
na qualidade de pioneiro (candango, aliás: pioneiro é o Homem) em
nosso acelerado processo de integração na comunidade norte-americana,
pensei, pensei, pensei e resolvi que seria exagero querer que todo o povo
brasileiro passasse a falar bem inglês, assim de uma hora para outra [...].
Vamos primeiro nos acostumando à rica sintaxe da língua-patroa, que,
ao contrário do nosso tartamudear neandertalesco, raramente admite
adjetivos pospostos aos substantivos (o português admite e até
costumeiramente os aconselha e ensaia para ver nuances de significado
nesse troca-troca indecente de lugar na frase, perda de tempo cretina, o
atraso é um horror).

Dissemos anteriormente, ao tratarmos do cômico de palavras, que, às vezes, o


termo tomado no seu sentido literal, dicionarizado, ou mais popularmente, ao pé-
da-letra, pode ser fonte de riso e propiciar momentos de saudável humor, a começar
pelo título da crônica. O autor, ao fazer a tradução dos constituintes do termo inglês
butterfly, percorre caminhos hilariantes até chegar a algumas formações compostas
em português que, por serem fruto de um trabalho de tradução literal das bases que
formam o vocábulo estrangeiro, resultam em significantes inusitados a que o leitor

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não costuma encontrar. A quebra de continuidade causa surpresa, leva ao riso.


Butterfly, para nós, é borboleta, simplesmente. Percorrendo a significação literal das
bases na língua, Ubaldo chega a construções como mosca-manteiga, bicho-manteiga,
manteigabicho, butterbicho. Nota-se a presença do lúdico na composição dessas
palavras, assim como na oposição língua-patroa / língua materna.
As formações neandertalesco, troca-troca, ao se referirem às práticas linguísticas do
português, tal como caracterizam o sistema, fazem crítica severa ao processo de
aculturação que sofremos por interferência norte-americana, em função da ideologia
da globalização que nos é imposta a todo momento. Ainda nessa crônica, a reflexão
sobre os problemas que atingem a língua materna avançam na direção de outras
áreas do nosso universo linguístico:
Isto não quer dizer nada e vamos perseverar em nosso esforço de
adquirir precisão verbal e escrever “penalizar” em vez desse verbo burro
que é prejudicar e parar com essa mania de que preposições não são
palavras para se acabar sentenças com. Para não falar em muitíssimas
mazelas e muitíssimos defeitos de nosso expressar, com os quais lidar
não tenho paciência de. (“Meu amarelo manteigabicho”- 28/03/1999)
(grifos nossos)

É interessante observar que os trechos sublinhados se tornam humorísticos pela


construção realizada por João Ubaldo, digamos “ao pé da letra”, passando da
abstração conceitual à concretização do fato, dando continuidade ao texto. A leitura
literal do fragmento é suporte para a superposição de outra significação subjacente
que o interlocutor deverá apreender e dessa forma tornar possível o descortinar da
realidade linguística com que nos deparamos hoje. Cabe registrar que, embora seus
textos apresentem várias marcas do nível coloquial da linguagem e registros próprios
da oralidade, o escritor não descuida, no mais das vezes, da linguagem que emprega.
O vocabulário é selecionado e não raro nos defrontamos com o eruditismo próprio
de quem reverencia o idioma como instrumento de soberania e de resistência à
dominação cultural; de quem ainda se orgulha e cuida com desvelo da última flor do
Lácio e nela reconhece a beleza, o colorido e a riqueza de recursos expressivos. Essa
atitude não é inconsciente, pois frequentemente nos intima a recorrer ao dicionário
para buscar a significação de determinadas palavras que, pelo pouco uso, tornaram-
se desconhecidas para o leitor. Preocupa-se, enfim, com a estética dos seus textos,
como veremos a seguir: “É, mas falei tanto que quase não sobrou espaço para
minha borboleta. As borboletas não soem ser seres grandevos (uma aliteraçãozinha
e um pernosticismozinho, só para tirar recalque), mas esta minha é.”
Enveredando pelo campo da estilística como sendo o estudo dos fatos da expressão
da linguagem do ponto de vista de seu conteúdo afetivo, isto é, a expressão da
sensibilidade mediante a linguagem e a ação dos fatos da linguagem sobre a
sensibilidade, nota-se que a forma como João Ubaldo Ribeiro lança mão dos

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processos de formação de palavras é altamente eficiente na construção de efeitos de


humor em seus textos, reconhecendo-os como recurso linguístico-expressivo.
Quando falamos em aproveitamento dos processos de formação de palavras, não
reservamos exclusividade às formações neológicas. A exploração de formas já
consagradas pelo uso linguístico, especialmente os adjetivos e os advérbios, dão ao
texto um ornamento, um colorido grandemente expressivo. As palavras que
aparecem, muitas vezes, atualizam o conceito das variações estilísticas, ou seja, a
pluralidade de formas para exprimir um conceito similar: “Sim, pior seria se pior
fosse, mas o fato é que está difícil pior ficar. Um médico americano, com muito
sucesso, advoga um programa de saúde em que o sofrente deve comer alho e coisas
que os livros sobre alimentação saudável nos dizem que devemos comer.”
Não é muito comum encontrarmos o adjetivo sofrente em textos, uma vez que há a
forma concorrente sofredor. Tanto o sufixo -nte quanto -(d) or são agentivos e
pertencem ao sistema de sufixos da língua portuguesa. Entretanto, o cronista opta
pela forma menos comum, o que ocasiona um acréscimo de expressividade, a ser
percebida pelo leitor.
Outro recurso de geração de expressividade e humor é a construção neológica de
várias palavras, algumas já apresentadas em exemplos citados anteriormente —
otariado, neandertalesco, pesadelares, língua-patroa. Com frequência, encontramos
vocábulos constituídos a partir de processos de formação de palavras previstos pelo
sistema da língua portuguesa. Predominantemente a derivação e a composição
funcionam como gatilhos do riso nas crônicas de João Ubaldo, não só pelo efeito
humorístico-expressivo que o cronista consegue extrair das formações inéditas, mas
também pelo trabalho artesanal em combinar a semântica das bases aos morfemas
prefixais e sufixais, nos casos de derivação, ou na reunião de bases, nas formações
compostas. A necessidade momentânea de registrar uma ideia, nomear um fato, ou
mesmo intensificá-lo expressivamente envolve o cronista nesse trabalho solitário de
buscar insensatamente uma simples palavra ou expressão. O fragmento a seguir confirma
essa ocorrência:
Antes que o prezado amigo ou encantadora senhora peguem da pena
para escrever uma carta fulminando minha ignorância me apresso a
reconhecer que a palavra “passarídeo” não existe, embora eu ache que
devia existir. É como borboletáceo, criação famosa de um vestibulando
de medicina em Salvador [“...] Pode haver quem prefira “lepidóptero”,
mas considero ‘borboletáceo” uma palavra necessária em nossa língua.
Creio de bom alvitre procurar os préstimos do consagrado vate e meu
amigo Geraldo Carneiro para ver se consigo que ele encaixe um
borboletáceo num poema, assim legitimando seu ingresso no vernáculo.

Expressão de afetividade, os sufixos diminutivos são bastante recorrentes, ainda que


assumam valores diferenciados, comprometidos que estão com o contexto onde
aparecem registrados. Em algumas passagens, seu papel é meramente afetivo,

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reflexo da subjetividade própria do estilo do autor e do gênero; em outras, sua


função é a de instaurar efeitos de sentido irônico, não raro carregados de
pejoratividade. Há ocorrências em que a formação diminutiva constrói sentidos
hiperbólicos ou até mesmo superlativos.
Outros sufixos, como os superlativos, os aumentativos e o adverbial -mente também
se prestam a essas variações semânticas, sempre pendentes da trama contextual para
construírem sua significação.

Considerações finais
Como vimos observando até aqui, as crônicas escritas por João Ubaldo Ribeiro
exemplificam com propriedade o gênero textual a que pertencem. Seu compromisso
com o prazer do leitor faz com que, através dos recursos que a língua coloca a seu
dispor, apresente a realidade, às vezes bastante dolorosa, travestida do agradável, da
brincadeira, do lúdico.
À semelhança das teorias contemporâneas sobre o riso, é um outro viés para
reflexão e apreensão do que acontece a nossa volta. A aparente irreverência alterna
com a seriedade; a voz do outro é descontraída e relaxada e permuta com a voz do
produtor do texto, às vezes, tensa e comprometida com a ideologia que subjaz.
Apelando, porém à ironia, aos jogos de palavras, às hipérboles e outros recursos
expressivos, desvia a atenção do interlocutor e consegue levá-lo à ambiência do
humor.
Com relação aos recursos expressivos, são utilizados aqueles que frequentam outros
textos do mesmo autor. Reservamos, porém, à palavra, às várias palavras que se
revigoram expressivamente a cada texto, o mérito de fazer rir - ou sorrir - nos textos
de Ubaldo. Cúmplices umas das outras, constroem os efeitos de sentido humorístico
com que a crônica se caracteriza, sem abrir mão da responsabilidade que trazem em
si de disparar os gatilhos do humor dentro do texto.
A habilidade com que o cronista - alquimista de palavras - manipula os elementos
constitutivos dos vocábulos denota o conhecimento e o pleno domínio do sistema
padrão da língua, sem esquivar-se, no entanto, de transferir para o informal toda a
facilidade que tem para construir palavras novas ou garimpar cuidadosamente entre
os morfemas do sistema aqueles que serão mais eficientes nas soluções expressivas
de que o produtor do texto necessita.
Com esse trabalho artesanal, para o qual nosso olhar se volta com interesse
específico nesta pesquisa, a crônica jornalística que, desavisadamente pode parecer
um texto de fácil elaboração, adquire status literário. Segundo OLIVEIRA (1998:
27): É inegável que a obra de um escritor revelará seu domínio do subcódigo prestigiado pelos

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gramáticos. Quanto maior o conhecimento das regras do jogo linguístico, maior facilidade para se
esquivar e trapacear; para criar, enfim.92
João Ubaldo Ribeiro com suas crônicas dinâmicas, atualizadoras e detentoras de
humor de qualidade corrompe o sofrimento, relaxa a mente e quase sempre provoca
um riso cúmplice nessa subversão do sério em busca do prazer, e de alguma forma,
reforça o pensamento de que rir ainda é o melhor remédio.

Referências
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Fundação Getúlio Vargas, 1999.
BAIÃO, Rosaura de Barros. O discurso do humor. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado
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MENEZES, Eduardo Diatay. “O riso, o cômico e o lúdico”. In Revista de Cultura Vozes,
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OLIVEIRA, Maria Lília Simões de. A língua e o discurso da memória e a semântica da
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ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento. As formas do discurso. 4
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PROPP, Vladimir. Comicidade e riso. Trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de
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92
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ZIRALDO et alii . “Ah! Humorismo a sério”. Revista de Cultura Vozes. Petrópolis, vol. 3/
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EDITORIAIS DE EDIÇÕES ESPECIAIS “VERDES” NA IMPRENSA


PERIÓDICA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA. O CASO DA
REVISTA “VISÃO”93
EDITORIALS OF "GREEN" SPECIAL EDITIONS IN PORTUGUESE CONTEMPORARY
PERIODICAL PRESS. THE CASE OF THE MAGAZINE “VISÃO”

Rui Ramos94

Resumo
O discurso sobre o ambiente percorre múltiplas linhas na esfera pública contemporânea. Trata-se
de um “publicly dominant discourse” (Jung 2001: 271), um tipo de discurso significativo na
configuração das experiências “em segunda mão” mediadas pelos media, com relevante capacidade
de intervenção social.
Uma das manifestações desse discurso pode ser identificada nos editoriais da imprensa escrita.
Textos assumidamente opinativos, constroem-se sobre uma retórica própria e frequentemente
visam à mobilização dos cidadãos, sendo interessante, dos pontos de vista científico e social, a sua
desconstrução e análise.
Assumindo estes pressupostos, o presente texto analisa, no quadro da Análise do Discurso e de um
ponto de vista enunciativo e argumentativo, os editoriais das edições especiais “verdes” da revista
portuguesa Visão, nos seis anos em que esta publicou estes números especiais (2007 a 2012).
Procura identificar as suas linhas de organização textual, a sua orientação pragmática, os quadros
conceptuais sobre os quais se constrói a sua retórica e os jogos enunciativos de que se socorrem.
Palavras-chave: Ambientalismo, Opinião, Enunciação, Editorial, Imprensa.

Abstract
The discourse on the environment runs multiple lines in contemporary public sphere. This is a
"publicly dominant discourse" (Jung 2001: 271), a type of relevant discourse in shaping "second
hand" experiences mediated by the media, with significant capacity of social intervention.
Some of the evidences of this discourse can be found in the press editorials. They are texts
manifesting a personal opinion, built on a specific rhetoric and very often aimed at mobilizing
citizens, and its deconstruction and analysis is interesting from a scientific and social point of view.
On this basis, this paper analyses, within the framework of Discourse Analysis and paying special
attention to enunciation and argumentation, the editorials of the “green” special editions of the
Portuguese magazine “Visão”, during its six years of publication (2007 to 2012). The paper intends
to identify their lines of text organization, its pragmatic orientation, the frames associated to their
rhetoric and the enunciative features that they rely upon.
Keywords: environmentalism, opinion, enunciation, editorial, press

93
Nota da editora: Manteve-se a grafia lusitana.
94
Rui Ramos é doutor em Linguística, professor do Instituto de Educação e investigador do Centro de Investigação em Estudos da
Criança da Universidade do Minho (Portugal). Tem dedicado especial atenção ao estudo do discurso sobre o ambiente, no quadro
da Análise do Discurso. Mais informações em http://ruiramos.do.sapo.pt

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Introdução
Nas modernas sociedades ocidentais, um dos poderes reconhecidamente operantes
no devir social é o dos media. Constituindo-se como instâncias de intervenção
social, estes atraem a atenção dos seus destinatários para mediar, filtrar e dar sentido
aos factos sociais brutos, transformando-os em eventos mediáticos (Charaudeau,
1997), revelando uns e, simultaneamente, esbatendo outros segmentos do real.
Envolvem, na focalização operada, os olhares, as perceções e a ação dos cidadãos,
objetivando a realidade. Desta forma, os meios de comunicação social comportam-
se como atores estratégicos, configuram valores e práticas dos cidadãos, definem
prioridades sociais e agendam a vida social.
Entre os discursos mediáticos de grande impacto, testemunhando o seu lugar de
relevo na esfera pública, conta-se o discurso sobre o ambiente. Este pode mesmo
definido como um “publicly dominant discourse” (Jung 2001, p. 271), um tipo de
discurso significativo na configuração das experiências “em segunda mão” mediadas
pelos media, com relevante capacidade de intervenção social transversal,
influenciando o discurso, a ideologia e as opiniões e ações de cada cidadão.
A análise das manifestações discursivas do ambientalismo nos media, no quadro da
moderna Análise do Discurso e reconhecendo especial relevo às questões
enunciativas e argumentativas, que neste estudo se desenvolve, poderá colaborar na
desconstrução e leitura aprofundada do discurso sobre o ambiente, permitindo
traçar as marcas mais salientes da sua estrutura e do seu funcionamento.

Córpus e Metodologia
O córpus de análise deste estudo compreende seis editoriais das edições “verdes” da
revista Visão, uma publicação semanal de qualidade no panorama jornalístico
português. Esta revista publica, desde outubro de 2007, uma edição especial por ano
dedicada à questão ambiental, designada “edição verde”, com um tema específico
dentro da temática ecológica geral.
Os seis editoriais, presentes nas primeiras páginas de cada edição, fazem a
contextualização preliminar e preparam a leitura, justificam a iniciativa, anunciam o
rumo discursivo geral, traçam expectativas e estabelecem as bases sobre as quais
funcionará a sua dimensão pragmática. O primeiro destes apresenta genericamente a
iniciativa e promete a sua continuidade no tempo:
(1) (…) "uma edição ‘Verde’, a realizar todos os anos, o ponto alto de
uma revista que considera importante acompanhar as questões do

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ambiente e quer participar no esforço global para garantir um planeta


viável” (Visão, 2007, p. 13) 95.

São, então, textos assumidamente opinativos, textos “terceiros” porque construídos


sobre outros discursos, marcados por uma retórica própria e por segmentos
justificativos e de modalidade deôntica, com uma orientação prospetiva
relativamente ao restante material jornalístico (e mesmo publicitário) que cada
edição apresenta, e ainda por uma orientação pragmática específica, já manifestada
no segmento recortado acima.
A metodologia passa pela identificação dos frames e das linhas de desenvolvimento
mais salientes na organização interna dos textos. Em alguns casos, identificar-se-á o
reportório interpretativo mais produtivo na construção do sentido. Recorre-se a
uma perspetiva enunciativa e da pragmática linguística, essencialmente na linha da
chamada “escola francesa da Análise do Discurso”.

AS EVIDÊNCIAS
O estatuto dos textos
Os textos são neste estudo identificados como editoriais, mas eles não se
apresentam explicitamente com esse estatuto. Surgem, como foi referido, nas
páginas iniciais de cada edição (pp. 12-13, 6, 6, 5, 4 e 5 em 2007, 2008, 2009, 2010,
2011 e 2012 respetivamente), numa rubrica designada Linha Direta – a primeira
rubrica editorial, após a capa, a página com o índice e os destaques (títulos e
brevíssimas súmulas) e as páginas com publicidade. Os de 2008 e 2011 não são
assinados, sendo assim “da redação”; os restantes são assinados pelo diretor da
revista. Poderá, portanto, ser-lhes atribuído a todos um valor orientador e
explicitador da política editorial e, portanto, de primeiras chaves de interpretação
dos textos que se seguirão. Neste sentido, e ao nível da organização interna da
publicação, assumem um valor catafórico, explicitado em alguns segmentos, como
exemplifica o extrato seguinte:
(2) Nesta VISÃO Verde, damos-lhe conta do quadro político global (…).
E, aqui, destaque para o esclarecedor texto que o presidente da Comissão
Europeia, Durão Barroso, escreveu especialmente para esta edição. (…)
Nesta edição, mostramos-lhe igualmente o «pano de fundo» que
enquadra os palcos negociais da grande política internacional. (Visão,
2007, p. 12-13)

Além disso, a designação da rubrica (“Linha direta”) evidencia uma dimensão que os
marca fortemente: trata-se de um convite explícito à comunicação “direta” com o
leitor. O jornalista / enunciador simula uma interação verbal próxima, mesmo

95
Todas as citações do córpus viram atualizadas a sua escrita pela norma ortográfica mais recente, decorrente do Acordo
Ortográfico de 1990.

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íntima e individual, com cada leitor / enunciatário, uma sequência preparatória ou


inicial para a realização do macroato ilocutório que se concretizará com a troca
verbal que os restantes textos corporizam. Em (2), acima, a criação da relação de
comunicação direta está bem patente no uso das formas verbais “damos-lhe” e
“mostramos-lhe”, convocando explicitamente o leitor para o jogo dialógico.
Há que assinalar, igualmente, a heterogeneidade formal ou semiótica (Moirand,
1999) dos textos em análise: o primeiro é relativamente longo, prolongando-se por
duas páginas; o segundo é extremamente curto, composto por não mais de dois
breves parágrafos; os dois seguintes ocupam uma página; o penúltimo cerca de meia
página e o último ocupa de novo uma página. Terá havido, portanto, variação na
atribuição da função específica aos textos em causa na economia interna das
publicações, destacando-se a edição de 2008, claramente o mais breve e mais
dificilmente classificável como editorial.

O tema central de cada edição


Em cada ano, a edição respetiva seleciona um “tema” específico dentro da vasta
questão ambiental. Esse tema é anunciado nos textos em análise e concretiza-se nos
vários tipos de artigos de cada edição, nas ilustrações, nos grafismos de capa, etc. A
análise conjunta permite identificar quais as áreas da vida política, social e individual
dominantemente associadas pela publicação às questões ambientais. Assim, em 2007
o tema agregador foi genericamente o das ameaças das alterações climáticas, com
ênfase na floresta, mas em 2008 foi especificamente o dos oceanos em risco, em
2009 a vida urbana, em 2010 a cidadania responsável, em 2011 os recursos agrícolas
e em 2012 a relação entre ecologia e economia.
Estas escolhas não suscitam especial surpresa, pois trata-se de motivos frequentes
no interdiscurso ambiental e nas preocupações coletivas. Estes tópicos são assíduos
na discussão e ocupam lugares de relevo no quadro da problemática ambiental
global.

Reificação e catastrofismo
Os textos em análise organizam-se sobre um topos recorrente: o da reificação dos
estados de coisas não percetíveis pela experiência individual. Os fenómenos
associados às alterações climáticas não são, na sua generalidade, percetíveis pelos
sentidos de forma imediata. A sua escala temporal é muito longa, substancialmente
diferente dos nossos ritmos e limites cronológicos e, em parte por isso, não nos
apercebemos deles com facilidade. Os textos reificam-nos, materializam-nos,
apontando manifestações concretas e percetíveis que associam e enquadram no
fenómeno mais vasto, como se verifica nos segmentos seguintes:
(3) Assistimos, em direto, aos efeitos devastadores causados pelo
tsunami de 2004, numa vasta zona do mundo. E, quase a par e passo, ao

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furacão Katrina, em 2005, e ao caos que se abateu sobre Nova Orleães.


(Visão, 2007, p. 12)
(4) Sob várias formas, das enxurradas às grandes secas, das ondas de frio
aos recordes de calor as manifestações extremas da natureza repetem-se,
com mais violência, a intervalos cada vez mais curtos. (Visão, 2010, p. 5)

Nestes dois segmentos, manifestações concretas de fenómenos naturais são


evocadas para lembrar a força dos elementos e a fragilidade individual e das
estruturas sociais para se lhes opor. A proximidade entre os fenómenos e os
cidadãos é marcada pelo uso do Presente, em (4). No primeiro caso, a modificação
do verbo “assistir” pelo adverbial “em direto” reforça a proximidade temporal e
tende a anular a distância física, ao menos simbolicamente; no segundo caso, a dupla
gradação do aumento da violência e do aumento da frequência potencia o
dramatismo96.
Acresce que esse dramatismo é fortemente intensificado por outros recursos, entre
os quais há que assinalar um reportório interpretativo muito saliente. Só no primeiro
texto da série em análise, a lexemas como “devastadores” ou “caos”, presentes no
segmento (3), há que adicionar um conjunto importante de outros, como
“assustadora”, ”catástrofe”, “horror”, “urgência”, “tragédias”, “colapso”,
“pobreza”, “doença”, “fome”, “migrações em massa” (Visão, 2007, p. 12). Do
semantismo de “abateu”, em (3), decorre igualmente a criação de um frame de
violência.
De entre os lexemas criadores de frames de risco e tragédia, sobressai um grupo
específico: aqueles que, sendo formados pela adição de prefixos de negação /
oposição, colaboram na construção de cenários negativos: “desordens climáticas”,
“danos irreparáveis”, “custos ambientais, económicos e sociais incomportáveis”,
“mudanças (…) impossíveis”, “peso incontornável”, (Visão, 2007, p. 12-13); “o nosso
estilo de vida (…) é incomportável”, “o consumo de recursos naturais (…) exige o
impossível”, “danos irreparáveis”, “um quadro insustentável”, “procura (…) interminável de
aumento da produção e do consumo”, “mundo desigual” (Visão, 2010, p. 5); “esforço
coletivo indispensável”, “futuro incerto” (Visão, 2011, p. 4); “crescimento demográfico
mundial incomportável”, “ainda mais incomportáveis e perigosos” (Visão, 2012, p. 5)97.
Note-se alguma repetição de termos e expressões de edição para edição, o que
sugere a existência de um vocabulário especializado, reiteradamente utilizado no
discurso ambiental, e que vai para além dos termos técnicos tomados ao discurso
técnico-científico.
Estes usos evocam cenários de dissenso e fricção de vozes, de conflito verbal, pela
convocação implícita de outras enunciações, virtuais ou efetivas, de orientação

96
Sobre dramatização e discurso apocalíptico no discurso ambiental, ver Foust e Murphy, 2009 e Ramos, 2011.
97
Todos os itálicos da lista são nossos.

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argumentativa eufórica, suplantadas na leitura dos estados de coisas por cenários


disfóricos. Trata-se do uso de uma forma de negação polémica, testemunhando o
dialogismo primordial98 da língua e o caráter polémico do ambientalismo.

Presença interdiscursiva da ciência


Um outro traço frequente do discurso sobre o ambiente reside na presença
interdiscursiva da ciência99. De uma forma insistente, os dois discursos
interpenetram-se no tratamento de questões ambientais, fornecendo aquela parte do
vocabulário, a tendência para a monossemização, a sintaxe preferencial e os modos
de organização discursiva. Nos artigos em análise, provavelmente por se tratar de
textos jornalísticos pertencentes ao género de enunciação subjetivizada (Moirand,
1999), essa presença não é particularmente forte e o discurso da ciência manifesta-se
de forma discreta em alusões a estudos mas, de forma mais visível, ao recurso a
quantificações exatas e raciocínios matemáticos, como o segmento seguinte ilustra:
(5) O consumo de recursos naturais pelos pouco mais de seis mil
milhões de habitantes do planeta exige o impossível: a existência de uma
Terra e meia. (…) Um quadro insustentável que atingirá um valor
absurdo de 2,8 planetas de 2050, caso se mantenham os padrões de
consumo atuais e a linha de crescimento da população mundial, que
passará para cerca de 9 mil milhões de pessoas dentro de 40 anos. (Visão,
2010, p. 5)

Neste segmento, não só pode identificar-se a presença de quantificações, mas o


próprio raciocínio de proporcionalidade, que dá fundamento à projeção no futuro.
Há que assinalar que o uso de quantificações pode ter um valor específico, como
sublinha van Dijk (1988) e, por exemplo, na sua senda, Koetsenruijter (2008):
podem estar dominantemente ao serviço do reforço de credibilidade e não
corresponderem exatamente a um desejo de informação exaustiva. Neste caso,
contribuem igualmente para a dramatização, ao desenhar frames marcados por
grandezas em alto grau, mas difíceis de apreender no seu efetivo valor.

Projeções
Outro traço fortemente operativo no discurso ambiental e também identificável no
córpus recortado é a presença de calibrações temporais e projeções no futuro 100
(como a que acabou de ser apresentada em (5)). O primeiro artigo da série analisada
abre com uma estratégia deste teor:

98
Cf.: Bakhtine, 1981 (1930); Fonseca, 1994; Moirand, 1999.
99
Cf.: Ramos e Carvalho, 2008; Ramos, 2009.
100
Cf.: Harré, Brockmeier e Mühlhäusler, 1999.

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(6) Desordens climáticas capazes de causar danos irreparáveis no


equilíbrio global do Planeta deixaram de ser tema de filmes de ficção
científica para se aproximarem perigosamente da realidade que nos
espera a breve prazo. (…)
Apesar das nossas limitações para antecipar o horror que nos pode estar
destinado daqui a quatro ou cinco décadas, estamos hoje, mais do que
nunca, conscientes da urgência de mudar o nosso paradigma de
desenvolvimento económico e social, sob pena de termos de começar a
pagar, já «amanhã», custos ambientais, económicos e sociais
incomportáveis. (Visão, 2007, p. 12)

Mas também outros artigos elaboram projeções no futuro, de forma mais ou menos
marcada:
(7) Deve, por isso, servir também de inspiração a todo o tipo de
decisores, (…) que podem, de alguma forma, condicionar o futuro das
nossas cidades – o futuro da nossa economia e do nosso bem-estar.
(Visão, 2009, p. 6)

(8) A Terra já passou por ciclos de grande convulsão climática e sofreu


profundas alterações ambientais, ao longo da sua existência (…). Mas
nunca, como hoje, o planeta esteve em risco, devido ao comportamento
de uma única espécie. O que estamos a fazer, e o que podemos fazer,
para inverter a situação que criámos? (…)
Mesmo que, um dia, o aquecimento global seja controlado, o planeta em
que vivemos não aguentará, entretanto, a pressão que hoje sofre. (Visão,
2010, p. 6)

Nos segmentos selecionados, verifica-se a perspetivação do tempo entre passado-


presente e futuro, sendo que o foco é o de olhar o futuro e mudar de
comportamento no presente. A evocação do passado, identificável em (8),
corresponde a uma estratégia de reforço argumentativo, com uma estrutura escalar,
para dramatizar a situação presente (num grau de risco inscrito num ponto extremo
da escala construída), o que intensifica a orientação para a conclusão sugerida: é
absolutamente obrigatório “inverter a situação que criámos”. Se não for por vontade
própria, será mesmo pela força derradeira das circunstâncias, como se pode ler no
último parágrafo desse segmento – ideia também presente no final de (6).
Neste caso, é identificável alguma gradação no discurso entre 2007 e a atualidade. Se
o texto de 2007 deixa alguma margem de dúvida, inscrevendo os estados de coisas
em períodos temporais futuros mas relativamente próximos (“a breve prazo”,
“daqui a quatro ou cinco décadas”, “«amanhã»” grafado com aspas), e de o assumir
da verdade da asserção acerca dos estados de coisas futuros ser atenuada em “pode
estar destinado”, no texto de 2010 é dado como adquirido que os efeitos do modo
de vida do homem sobre o ambiente são negativos e incontornáveis – note-se que
os estados de coisas disfóricos são inscritos no passado (“criámos”), conferindo-lhes
uma existência real e inegável, e o desenho dos estados de coisas futuros é também

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plenamente assumido, sem atenuação enunciativa. O mesmo pode ser identificado


no mais recente dos textos analisados:
(9) Um crescimento demográfico mundial incomportável, a entrada de camadas cada vez mais largas da
população global nos padrões de consumo das sociedades desenvolvidas e uma procura sempre crescente de
energia tornam a pressão sobre os recursos naturais e os níveis de poluição ainda mais incomportáveis e
perigosos. (…) Tudo isto são razões para que o mundo mude rapidamente de comportamento. Mudará mal,
por força das catástrofes naturais que já sofremos e que continuarão a aumentar de ritmo e intensidade, ou,
desejavelmente, mudará bem, por força de um novo modo de olhar para o mundo. (Visão, 2012, p. 5)

O que este excerto mostra é a certeza quanto ao quadro futuro, realizando um ato
preditivo de cuja veracidade o enunciador se assume plenamente como garante,
manifestada pelo Futuro verbal em “mudará”, repetido, marcando a estrutura
paralelística que assenta na evocação da fórmula “a bem ou a mal”: “mudará mal,
por força das…” ou “mudará bem, por força de…”.
Esta fórmula pode construir dois frames: por um lado, um frame em que o
enunciador se compromete na tentativa de concretização de eventos futuros, se o
estado de coisas configurado estiver dentro das suas possibilidades de ação; por
outro lado, um outro frame caraterizado pela inevitabilidade, pela certeza da
concretização de um determinado estado de coisas, independentemente da vontade
do enunciador. Aliás, pode mesmo afirmar-se que, tipicamente, esse estado de coisas
é contrário aos melhores desejos do enunciador e/ou do enunciatário. Neste último
caso, verifica-se a realização de um ato ilocutório de ameaça.
É o segundo cenário que se configura neste caso: o enunciador dá como certo e
seguro que o mundo mudará “rapidamente de comportamento”, a bem ou a mal. E,
com este artifício argumentativo, o enunciador não só dá como certo que o mundo
mudará, mas dá também força aos argumentos que estão na base dessa mudança,
dada como consabida e indiscutível: há um conjunto incontornável de “razões”,
sumariadas na frase inicial de (9).
Como pode verificar-se, esta posição do enunciador é marcadamente distinta da que
era por ele assumida nos artigos iniciais das edições em análise: o mesmo tipo de
argumento existe (confronte-se com (6)), mas a atenuação enunciativa e a dúvida são
transformadas em reforço e certezas.

A Dimensão Agónica
Sistematicamente presente no discurso ambiental, do mais empenhado ao mais
isento, a ideia de luta e de preservação (sempre uma preservação contra algo ou
alguém) manifesta-se igualmente no córpus. O vocabulário do campo jurídico ou da
guerra está presente, como pode verificar-se nos excertos seguintes:

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(10) Uma realidade que passa por muitas ameaças e atentados ao


ambiente, como os crimes cometidos no coração da Amazónia (…). Mas
também pelos esforços de um crescente grupo de pessoas que (…) se
batem pela adoção de novos comportamentos e regras em prol do
ambiente (…).
A defesa do ambiente é, na verdade, uma guerra de todos. (Visão, 2007,
p. 13)

(11) Numa época marcada pela ameaça das alterações climáticas, a defesa
da vida nos oceanos (…) (Visão, 2008, p. 6)

Apresentado desta forma, ao nível mais ou menos abstrato da defesa de um bem,


sem explicitar e aprofundar ou concretizar as situações e sem apontar alvos
específicos, parece impossível discordar de quem proclama a necessidade de unir
esforços a favor da natureza e contra os que a põem em perigo. A natureza ou, em
geral, o ambiente surgem como vítimas de “ameaças”, “atentados” ou “crimes”, o
que cria um frame com imediata identificação dos papéis, pelo menos do papel da
natureza como vítima. A nossa quase natural propensão para a defesa dos pobres e
oprimidos, das vítimas (e quanto mais indefesa e/ou inocente, melhor) impele o
leitor a colocar-se no lado da tribuna em que se encontra o ameaçado, o agredido, a
vítima, num movimento mais ou menos ideal de busca da justiça e do bem-estar
coletivo. A dimensão agónica do ambientalismo está patente de forma bem visível
no vocabulário, em todos os textos analisados.

Ethos e diretividade
Em estreita relação com o tópico anterior, uma estratégia particularmente saliente na
construção dos artigos em causa é a forte identificação entre jornalista / enunciador
e leitor / enunciatário.
Esta inscreve-se na lógica de um topos igualmente recorrente no discurso ambiental,
o que une todos os ecossistemas e seus habitantes no mesmo destino comum. Aliás,
a expressão “our commom future”, título do também designado Relatório
Bruntland, de 1987, que traçou a definição de desenvolvimento sustentável como
aquele que satisfaz as necessidades das gerações presentes sem comprometer a
capacidade das futuras de suprir suas próprias necessidades, ilustra adequadamente
essa visão global em termos de espaço, unindo todos os elementos integrantes do
ecossistema planetário, e em termos de tempo, alargando a perspetiva para além do
imediato.
Exemplificam este recurso vários dos segmentos acima apresentados: “assistimos”
em (3), ou os vários usos verbais da primeira pessoa do plural e os pronomes com o
mesmo valor em (6), as formas do determinante “nossas” / “nossa” / “nosso” em
(7) e, de novo, os usos da primeira pessoa do plural em (8). Esta é uma estratégia
presente em todos os textos do córpus, mesmo no brevíssimo artigo da edição de

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2008. Mas dois segmentos podem ser mais eloquentes no reforço desta visão de
partilha planetária:
(12) E «nós», cidadãos, elemento decisivo da equação da sustentabilidade
ambiental, económica e social, somos o tema central desta edição. (Visão,
2010, p. 5)

(13) A sustentabilidade ambiental é uma causa que a todos deve unir,


num esforço coletivo indispensável para preservar a «casa» que todos
partilhamos, a Terra. (Visão, 2011, p. 4)

O enunciador coloca-se, desta forma, ao lado do enunciatário, o que constitui não


só uma estratégia de reforço da adesão à leitura, mas também (e sobretudo) uma
estratégia de credibilização do enunciador, que lhe permita construir um ethos mais
favorável à sua argumentação. Sabendo que o discurso a favor do ambiente e da
sustentabilidade é, necessariamente, um discurso intromissivo na vida dos cidadãos,
realizando frequentemente atos ilocutórios diretivos não impositivos, mas de força
ilocutória potenciada por um discurso catastrofista, é fundamental que o seu
enunciador ganhe credibilidade para os fazer legitimamente.
Numa perspetiva aristotélica, o ethos será composto de três dimensões: a
competência / sabedoria, a honestidade / sinceridade e a benquerença / boa
vontade (Amossy, 2010). Neste caso, a primeira decorrerá da autoridade oferecida
pelo interdiscurso da ciência na enunciação do jornalista e pela capacidade por este
demonstrada na sua mediação; a segunda decorrerá da própria organização do
discurso, da sua clareza e conformidade à adequada relação com o leitor e com os
fundamentos do assunto em causa; e a terceira do reconhecimento dos sentimentos
positivos do jornalista, da sua atitude positiva face aos valores em causa. Ora,
colocando-se ao lado do leitor como um seu par, assumindo que sofre com ele os
mesmos riscos e que, como ele, estará disposto a empenhar-se na mesma luta,
passando pelas mesmas dificuldades e adotando os mesmos compromissos, fazendo
com o leitor um “nós”, o seu ethos sairá reforçado e, portanto, a sua argumentação
ganhará credibilidade, ou seja, a relação entre os seus argumentos e as conclusões
para que estes se orientam receberá uma atmosfera favorável e potenciadora da
eficácia.
Há que sublinhar que a feliz realização de atos ilocutórios diretivos não impositivos,
como é o caso, nem sempre decorre de uma argumentação puramente racional
(exclusivamente associada ao logos), mas sobretudo a uma adesão a uma determinada
posição discursiva, que ultrapassa a racionalidade argumentativa pura e envolve
outras dimensões, nomeadamente o ethos do enunciador. Naturalmente, como se

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reconhece, esta conceção de argumentação afasta-se da visão aristotélica da Retórica


e enquadra-se na perspetiva linguística da moderna Análise do Discurso101.
Os referidos atos ilocutórios diretivos têm a sua concretização discursiva em
múltiplos segmentos, identificáveis desde a primeira frase do primeiro artigo
analisado – o seu título:
(14) Por um Portugal Verde (Visão, 2007, p. 12)

Este título de tom panfletário exorta à ação, assumindo o objetivo pragmático de


fazer-fazer, na medida em que sintetiza uma das funções pragmáticas do texto no
seu todo. De facto, a organização textual desenvolve-se em vários momentos e
linhas de força: abre com o retrato catastrófico do ambiente, tornado próximo e
palpável pela evocação de manifestações violentas da natureza; assume que os
cidadãos estão conscientes da necessidade de mudança; e apresenta, em seguida,
como conclusão natural da leitura dos estados de coisas desenhados, um enunciado
que manifesta um dos programas de ação que defende:
(15) Para evitar estes cenários catastróficos são necessários novos
entendimentos entre os Estados, novos acordos políticos que garantam
os patamares de entendimento mínimo para travar a degradação
ambiental. Estamos a falar de várias mudanças em simultâneo, e todas
elas «impossíveis»: nas estruturas industriais, nas fontes de energia, nos
conceitos de soberania, nas regras do comércio internacional, na ajuda ao
Terceiro Mundo, nos grandes interesses económicos e políticos de
pequenos e grandes impérios. (Visão, 2007, p. 12)

De acordo com a organização retórica do texto, não parece que esta sequência se
limite a realizar uma asserção, mais ou menos objetiva e isenta, mas um ato de
incitamento – e exigência – à realização de uma ação, ou seja, verifica-se neste passo
a realização de um ato diretivo, com força ilocutória decorrente da construção de
uma realidade disfórica em alto grau. A este nível, não se tratará de uma ação direta
de cada cidadão, impossibilitado de interferir pessoalmente nas estruturas
industriais, nos acordos entre nações, etc.; mas trata-se de um exercício de
influência, para que os cidadãos exijam dos seus representantes políticos esse rumo
na gestão da coisa pública.
O artigo é, assim, configurado como visando uma polidestinação: se fala
diretamente ao leitor cidadão comum, elegendo-o seu destinatário imediato, não
deixa de escolher um outro destinatário, este já mediado, que é o decisor político,
dependente da escolha coletiva dos cidadãos no exercício democrático. E, desta
forma, incentiva o cidadão a exigir dos decisores políticos uma determinada postura.

101
Cf.: Maingueneau, 1999; Amossy, 2010.

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Há, contudo, no final do artigo, a realização de um ato ilocutório diretivo que


assume como destinatário cada cidadão individual e pessoalmente considerado na
sua ação quotidiana:
(16) (…) possam reforçar a mensagem fundamental desta VISÃO Verde:
O Planeta Terra está mal e precisa de nós, mas nós precisamos ainda
mais dele. (Visão, 2007, p. 13)

Completa-se, desta forma, um dos objetivos pragmáticos deste texto: incentivar à


ação, e à ação individual, acessível a cada um nos grandes e nos pequenos gestos,
objetivo anunciado, como referido acima, desde o título do artigo.
A focalização no indivíduo e sua ação é particularmente visível no texto de 2010,
como é explicitamente assumido em (12), acima. Poderá afirmar-se que o foco
sofreu uma alteração discreta dos grandes problemas vagos, do que os outros, lá
longe, fazem, do que poderá ocorrer um dia, talvez, para se configurar a
problemática das alterações climáticas em torno das ações de cada indivíduo, aqui,
hoje. Tal é igualmente saliente no artigo (e no tema da edição) de 2009, centrado
sobre a vida urbana, e no texto de 2011, que se centra sobre a agricultura, numa
perspetiva muito próxima e de ação prática.
Esta centração no indivíduo não é nova no âmbito do ambientalismo. Contudo,
poderá surgir uma interrogação sobre as possibilidades e os modos de conciliação
entre conceções do mundo que privilegiam a defesa do bem comum, e portanto
tendencialmente mais coletivistas, e aquelas que privilegiam a liberdade e a
responsabilidade individuais, portanto tendencialmente mais individualistas.

Utilitarismo e mercantilização do ambiente


Contrariamente ao que poderia esperar-se de um discurso mais típico da ecologia
profunda, ou de visões mais idealistas, nestes textos a questão ambiental é colocada
em termos muito concretos, em particular nas últimas edições, como foi referido
acima. De forma substancialmente expressiva nas edições de 2011 e 2012, o
ambiente é configurado como recurso. Não é reconhecido à natureza um estatuto
de bem intangível, não se discorre sobre os direitos dos seres vivos ou sobre os
modelos de organização social desgarrados dos valores da mãe-Terra, por exemplo,
mas apela-se muito pragmaticamente ao uso dos recursos como forma de
subsistência. Um uso sustentável, naturalmente, mas ainda assim atribuindo-lhe um
valor comercial, no que poderá ser apontado como uma mercantilização do
ambiente:
(17) É preciso, pois, regressar à terra, para combater o endividamento
externo e o desemprego, para aumentar a nossa capacidade de produzir,
de criar riqueza, de exportar. E é preciso que tomemos à letra a
necessidade de consumir português nesta altura de dificuldades. (Visão,
2011, p. 4)

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(18) E, nesta altura de crise profunda que atravessamos, achámos que


fazia todo o sentido tentar perceber a dimensão desta riqueza que temos
e de que forma a podemos estar a desperdiçar. (Visão, 2012, p. 5)

A perspetiva sobre a relação entre o homem e o meio é claramente antropocêntrica


e este é encarado como meio-recurso. A motivação para a ação decorre mais dos
imperativos económicos do que da adoção de valores de equilíbrio e harmonia com
a natureza – ainda que, assinale-se, o fulcro seja a noção de sustentabilidade.
O artigo de 2012 tem mesmo um início muito expressivo:
(19) Sim, somos ricos

A afirmação, nos dias que correm, pode parecer absurda. Mas Portugal
tem uma enorme riqueza. Ela resulta das condições que a natureza nos
oferece (…), permitindo grande diversidade animal e vegetal e grande
variedade de paisagens e climas, com zonas secas e zonas húmidas, áreas
desérticas e densas florestas, planícies e montanhas, rios e mar. (…)
Portugal tem todas as condições para poder tirar o melhor partido desta
riqueza. (Visão, 2012, p. 5)

Ainda que se trate de um uso metafórico, a identificação entre elementos naturais e


“riqueza” não deixa de contabilizar, inventariar e avaliar financeiramente fauna,
flora, paisagens, água, sol ou vento. Mesmo referentes não contáveis, como o clima
ou o mar, adquirem um valor contável, materializado pela metáfora. Esta é
desenvolvida desde o título, que encerra a estranheza (e, dela decorrente, o poder
atrativo da atenção do leitor) da flagrante contradição com o discurso público
vigente, avassaladoramente marcado pela crise financeira.
A mesma visão do mundo é manifestada nos restantes artigos, ainda que,
eventualmente, de modo menos acentuado. Mas já a edição de 2008 apresentava um
breve texto sob o título “Salvar o mar” que associava esse objetivo a valores
económicos, concretizados nas “potencialidades e riquezas” do mar:
(20) Numa época marcada pela ameaça das mudanças climáticas, a defesa
da vida nos oceanos e, em simultâneo, o aproveitamento sustentado das
potencialidades e riquezas marítimas ganharam uma importância
decisiva. (Visão, 2008, p. 6).

Trata-se, então, do apelo não a uma radical mudança de paradigma de vida, mas a
uma adaptação a novas contingências de organização social e económica. Os
argumentos de preservação por si, de equilíbrio numa escala planetária ou de
comportamento ético independentemente de interesses pessoais parecem ser
suplantados por outros menos universais e mais dependentes do desejo de bem-
estar pessoal.

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Conclusões
Em suma, pode constatar-se que os media generalistas, neste caso representados por
seis edições especiais de uma revista de informação de grande difusão, veiculam o
discurso ambiental, mantêm-no na esfera pública, dão-lhe vida e agendam o devir
social. De alguma forma, dão continuidade ao discurso proveniente dos círculos
especializados e dos ativistas, fazendo-o chegar ao grande público, genericamente
mantendo temas recorrentes.
Este discurso incorpora caraterísticas do campo discursivo típico dos media,
nomeadamente na sua busca do apelativo e do fantástico, recriando cenários
catastróficos e de alto grau de intensidade. Esses cenários são particularmente
visíveis no léxico, nível de superfície de forte poder identificador. A reificação dos
estados de coisas por eles efetuada tem propósitos retóricos, permitindo ao cidadão
interiorizar e operacionalizar realidades dificilmente experienciáveis pelos sentidos,
sem a intervenção edificadora do discurso.
A ciência tem uma presença saliente, assumindo um papel de credibilização
operativo num discurso que se projeta no futuro (e, portanto, necessariamente
sujeito a algum grau de dúvida) e que apresenta uma dimensão pragmática diretiva,
de exortação à ação (e, portanto, a exigir autorização do agente dos atos diretivos).
Essa exortação tem um destinatário individual (cada cidadão, nos seus gestos
quotidianos) e um destinatário institucional, indiretamente afetado (os decisores
políticos, dependentes da eleição dos cidadãos).
A face agónica do discurso sobre o ambiente manifesta-se por um frame genérico
que atribui à natureza o papel de vítima, trazendo traços do campo discursivo
jurídico e da guerra, e reforça a criação de empatia entre o leitor e os elementos
naturais.
O reconhecimento do enunciador como voz credível é igualmente uma estratégia
identificável, pela valorização do ethos do jornalista, que ganha espaço para dar curso
à referida diretividade do discurso ambiental.
Contudo, algum espaço de conflito subsiste, nomeadamente quanto à conceção das
relações entre homem e ambiente, já que o utilitarismo ou a mercantilização do
meio se manifestam de forma muito visível, o que constitui uma perspetiva
polémica no seio do discurso ambiental.
A análise diacrónica do córpus permite afirmar que a reificação dos fenómenos
naturais associada a casos concretos surge em 2007, mas tende a diluir-se ao longo
dos anos. Nos tempos mais recentes, parece não ser tão necessário apontar
fenómenos experienciáveis para convencer as pessoas, o que poderá querer dizer
que houve um progresso no discurso ambiental: já não é preciso evocar o sabido, já
não é preciso convencer ao nível intelectual, porque está assumido o papel do
homem na destruição do equilíbrio ambiental; é só preciso apontar caminhos e

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persuadir (não só argumentar), mover os espíritos e gerar ação concreta, ao nível


coletivo e ao nível individual.
A ideia de desenvolvimento sustentável é basilar neste discurso que, apesar de todo
o catastrofismo, se configura ainda como razoavelmente otimista, um discurso
prospetivo de esperança que vê na adaptação às novas realidades uma resposta
adequada aos problemas ambientais e aos problemas socioeconómicos.

Referências
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Outras fontes:
Maingueneau, D. L’ethos, de la rhétorique à l’analyse du discours, 2002 In
http://dominique.maingueneau.pagesperso-orange.fr/intro_company.html (acedido em
30/9/2012)

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TOPONÍMIA MARANHENSE: UM PERCURSO SEMIÓTICO DO


TEXTO AO CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO
THE TOPONYMY OF MARANHÃO: A SEMIOTIC PATH FROM THE TEXT TO THE SOCIAL-
HISTORICAL CONTEXT

Maria Célia Dias de Castro102 & Sebastião Elias Milani103

Resumo
A intenção deste trabalho é apresentar aspectos semióticos do texto na toponímia dos municípios
maranhenses, com base na teoria greimasiana. Examinamos a organização interna do plano de
expressão do texto, por meio da análise dos elementos que compõem os signos verbais e não
verbais e das relações entre o plano de expressão e o plano de conteúdo para observarmos como se
instaura a enunciação. Observamos que essa enunciação vem pressuposta no discurso por meio das
marcas deixadas no percurso gerativo de sentido, em que percebemos os procedimentos de escolha
dos temas e das figuras nas estruturas fundamentais e o conflito sustentado pelas formações
ideológicas que se instauraram durante toda a construção do texto. Percebemos, por meio da
análise, que as escolhas feitas durante o processo enunciativo imprimem um caráter ideológico
peculiar ao texto, com valores próprios.
PALAVRAS-CHAVE: enunciação, contexto sócio-histórico, toponímia maranhense.

Abstract
The intent of this paper is to present semiotic aspects of the text in the toponymy of the
municipalities of Maranhão, based on the greimasian theory. We examined the internal organization
of the expression plane of the text, through the analysis of the elements that integrate the verbal
and nonverbal signs and the relations between the expression plane and content plane to observe
how enunciation is established. We observed that this enunciation is presupposed in discourse by
means of the marks left on the generative course of sense, in which we noticed the procedures for
selecting the themes and figures in the fundamental structures and the conflict sustained by
ideological formations that are put in place throughout the construction of the text. We realized,
through analysis, that the choices made during the enunciative process imprint a peculiar ideological
character to the text, with its own values.
KEYWORDS: enunciation, social-historical context, toponymy of Maranhão.

Introdução
Pretendemos fazer uma descrição e uma interpretação do mapa político (dos
municípios maranhenses) e toponímico do Estado do Maranhão, a partir do prisma
da Semiótica. A intenção é ultrapassar os limites da análise descritiva para chegar a
uma análise explicativa dos mecanismos que estão implícitos na estrutura do
processo formador do texto-mapa e que fazem deste um texto da história social

102
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística – Área de Estudos Linguísticos – da Universidade Federal de
Goiás, Goiânia-GO. E-mail: celialeitecastro@hotmail.com
103
Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Goiás, Goiânia-GO. E-mail:
sebas@letras.ufg.br

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maranhense. Não se tenciona discutir sobre qual unidade se pauta este estudo, se as
linhas, as cores, o lexema, já que a análise permeia entre umas e outras unidades, o
que lhe dá um caráter multidistribucional.
A análise do texto resulta de uma interpretação dos elementos básicos contidos nos
nomes toponímicos e da relação desses elementos verbais básicos com os visuais e
com outros textos que compõem a história sociocultural maranhense, que está
enfatizada nas marcas linguísticas constituintes do sentido do texto. Dessa forma, é
dada relevância aos fatores visuais plásticos e aos fatores linguísticos formadores da
sintaxe e da semântica discursiva. Queremos dizer, as linhas e às cores do mapa, às
figuras retóricas, à utilização das categorias de nome, como também aos fatores
culturais e históricos constitutivos das experiências que fazem significar os signos
componentes desse texto.
Desse modo, é realizada uma descrição básica do plano de expressão ao qual
relacionamos o plano de conteúdo, no qual se encontram as significações que
retratam a história e a cultura local. Nesse sentido, tenta-se explicar o ponto de vista
estrutural interno de formação do texto e também o ponto de vista de formação
externa, suas implicações sociais, culturais e históricas que são o âmago da formação
de sentido. Esses dois tipos de análise se complementam de forma que o aspecto
objetivo da estrutura, expresso pela função referencial, se associe com o aspecto
subjetivo, o qual explica a referência cultural e a função (talvez) poética presentes no
texto.
As abstrações aqui feitas se pautam nas manifestações verbais e não verbais, em que
são examinadas as características específicas explícitas no plano de expressão e no
plano de conteúdo. Foi L. Hjelmslev quem demonstrou que é possível examinar os
signos a partir desses dois planos, o de conteúdo e o de expressão, de forma
separada (BARROS, 2008). O propósito é percorrer-se, a partir do plano de
expressão dos sintagmas e das unidades visuais, para o plano de conteúdo, por meio
do percurso que gera o sentido.

Sobre o texto-enunciado
Na linguística, como é de conhecimento comum, as mais novas correntes de
estudos se propõem a estudar o nível textual como unidade. Este estudo tem como
elementos básicos o lexema e as unidades mínimas visuais formadoras da unidade
maior: o texto, que é o próprio mapa do Estado. O sentido das unidades
lexemáticas, formadoras do texto, faz o texto entrar em conjunção com um sentido
maior, que gera os temas e as isotopias e que fazem desse um texto semiótico. Há,
pois, nesta análise, a preocupação em perceber o que o conjunto dessas unidades diz
e como fazem para dizer o que dizem (BARROS, 2008, p. 7).
Ao nomear, geramos signos linguísticos que formam um sistema com regras
próprias. A constituição de um mapa também gera outro signo de caráter visual com

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referências que lhe são peculiares. Esses signos são significados de forma metafórica
e metonímica, ao passarem pelo processo de representação simbólica e ao recriarem
as apreensões percebidas, por meio das concepções de mundo do enunciatário, e
legitimam social e civilmente a existência de entidades e de conceitos no mundo real
e conceptual, respectivamente.
No processo de nomeação, grande parte dos nomes é instituída de forma arbitrária,
posto que nem sempre há ligação entre o significante e o significado, o que
postularam Saussure (1995 [1916]) e Whitney (1971 [1871]) como uma das
condições de existência do signo linguístico. No entanto, os nomes próprios se
caracterizam por designar e identificar os seres de existência real ou não, de forma
peculiar. Nesses signos são ressaltados traços sócio-históricos e culturais
representativos do indivíduo ou da comunidade nomeadora. Entre esses nomes
próprios, os topônimos, os quais compõem verbalmente o mapa e lhe fornecem as
referências necessárias de mundo, são exemplos singulares de quão forte se dá o
processo motivador de nomeação do signo, no sistema denominador, inclusive na
própria estrutura deste, caracterizando o objeto nomeado. Ao processo de
significação, aplicado entre o objeto apreendido e o nome que lhe é atribuído, é
dado o nome de “referenciação” e o objeto de mundo apreendido conceptualmente
e denominado é chamado de “referente”.
O texto abaixo, o mapa do Estado do Maranhão, aparece subdividido em suas
unidades municipais e os elementos textuais analisados são o conjunto dos nomes
dos municípios maranhenses e as linhas e cores, que se juntam à parte verbal para
compor o texto aqui denominado “Mapa do Estado do Maranhão” (doravante
MAPEMA). O texto é formado com a plasticidade de caráter cartográfico,
composta dos caracteres que lhe são específicos, e ao conjunto verbal são
acrescentadas algumas classificações de categorização e de referências toponímicas
correspondentes, os quais, juntos, formam um enunciado maior e mais completo
para a análise a que se destina.

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Mapa 1 – Mapa do Estado do Maranhão

A partir deste primeiro texto é reconstruído um segundo, apenas verbal,


denominado Sistema de Classificação Toponímica Maranhense, o qual é organizado
em categorias, conforme maiores semelhanças que formam essas subclasses, como
apresentado em Castro (2010), com base na taxionomia postulada por Dick (1993),
que tem como objetivo servir de instrumento facilitador para a análise discursiva do
mapa.

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Esses são os instrumentos básicos de investigação, a partir da teoria semiótica


aplicada ao texto, desenvolvida por A. J. Greimas (1973) e complementada por J. M.
Flosch (1985). Os postulados deste autor fornecem contributos para a análise visual;
aquele propõe que um texto deve ser analisado levando-se em consideração três
níveis de análise: o “nível fundamental”, o “nível narrativo” e o “nível discursivo”,
os quais se inter-relacionam para fazer sentido. Essas contribuições serão aplicadas
ao tentar descrever e explicar o que revela o texto maior MAPEMA e como esse
texto faz revelar essas significações.
Primeiramente, o MAPEMA sugere que o percurso de suas categorias seja analisado
seguindo do sentido disfórico para o eufórico. Isto se dá porque o percurso linear
passa do estado de extensão, sem os limites estabelecidos, para o estabelecimento
dos limites, até a demarcação desse espaço, o que revela ser esse o percurso
desejado. Essas categorias fundamentais passam de um estado de negatividade para
o de positividade, portanto, do ponto de vista da organização política, a
extensão/liberdade é disfórica e a delimitação/dominação é eufórica.
A semântica fundamental propõe analisar esse nível de relacionamento entre as
oposições básicas que compõem o texto como um todo, na forma de um quadrado
semiótico. Tomando como base essa proposição para o texto em análise, surge a
seguinte figura:

Outras oposições se manifestam no texto não verbal tanto no plano de expressão


quanto no plano de conteúdo, conforme o Quadro 2.

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QUADRO 2
OUTRAS OPOSIÇÕES DO PLANO DE EXPRESSÃO E DO PLANO DE CONTEÚDO.

PE Mar x Terra

Norte x Sul

Leste x Oeste

Linhas x Cores

Superior x Inferior

Difuso x Nítido

Cores Frias x Cores Quentes

Alto x Baixo

Velho x Novo

Formas Simples x Formas Compostas

PC Poder x Não Poder

Governo x Povo

Unidade x Multiplicidade

Natureza Institucional x Natureza Humana

Aqui x Lá

Indivisível x Divisível

Portanto, pode-se dizer que as relações sintáticas básicas do nível fundamental


seguem o seguinte roteiro, a partir do qual se formam as isotopias que permeiam o
texto.

Extensão/  Não Extensão  Delimitação/Propriedade

No que diz respeito à plasticidade, o estilo utilizado no mapa é o linear. A forma


não verbal apreende e expressa os objetos de forma delineada, composta de imagens
representadas em planos, com formas fechadas pelas linhas de contorno, como
apresentado no Quadro 3.

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Quadro 3

CATEGORIAS FORMAIS DO PLANO DE EXPRESSÃO DO TEXTO NÃO VERBAL

Categorias Formais Plano de Expressão

Desenho Linha

Contorno Fechado

Disposição Plano

Totalidade da imagem Multiplicidade

Clareza Absoluta

Movimentação Estática

Cores Quentes

Há a pluralidade de elementos contínuos que são mostrados por meio dos traços, no
mapa, com muita clareza, pela forma da disposição de cada figura de município. O
texto verbal se sobressai por ser ressaltada a intencionalidade primeira de informar,
é um texto primeiramente objetivo. Só em um segundo momento há marcas de
subjetividade nele, por meio da significação dos nomes toponímicos que o
identificam. Essa subjetividade é expressa pelas referências em que esses topônimos
fazem acionar diversos conceitos tais como as formas topográficas; as dimensões de
acidentes geográficos; os animais e as plantas locais; os nomes próprios individuais
de personalidades literárias, políticas e religiosas; elementos da cultura material e
diversas outras referências, as quais enquadramos em um conjunto sugestivo de
taxes (CASTRO, 2010).
Portanto, este é um texto sincrético com características tipicamente informativas no
plano de expressão verbal e não verbal.
Nesse sentido, estamos situando a análise a partir de uma enunciação que se porta a
favor de um enunciador que é o não índio, é o Estado colonizador, em que a
“delimitação” é a “liberdade”. Do ponto de vista do enunciador índio, a euforia é
representada pelo estado daqueles que possuem e dominam a sua própria terra, sem
preocupação com expropriação e ou delimitação, que têm e que usam livremente
sua própria língua e, por isso, são livres. A disforia ocorre a partir do momento em
que os indígenas perdem a sua terra e o seu poder de dominar o que lhes é próprio,
e o que lhes pertence passa a ser dominado por outros que chegam ao Estado para
obterem as terras e o poder, além de serem perseguidos ou escravizados. Ocorre,
nesse momento, a mudança de um estado de liberdade para um estado de
dominação, em que se instaura a opressão, uma nova ordem e uma nova língua que

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208
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conduzem esses enunciadores ao estado de isolamento, de escravidão e ou de


dizimação. Para estes, a delimitação é a dominação, a não liberdade, a opressão.
No nível narrativo é verificado como se estrutura a narrativa, a partir do ponto de
vista de um sujeito enunciatário, e os elementos já apontados como oposições
passam a ser valores que circulam entre os sujeitos, no texto. Na sintaxe narrativa
ocorre a análise em que se considera principalmente o plano de expressão e o
relacionamento de categorias do significante com o significado.
No MAPEMA, o modo de articulação dos elementos não verbais significantes não
parece arbitrário, pois são categorias fixas definidas no plano de expressão. A
estrutura desse mapa segue a forma de um pentágono. Os cinco pontos extremos
que formam a figura são interligados por uma linha que cerca o espaço territorial e
abriga todas as unidades representativas dos municípios. As linhas internas retratam
o que é divisível e se tornou múltiplo, não pela dimensão de pertencer a todos, mas
a um (ao Estado do Maranhão), estrutura imposta pela história da divisão política. A
linha externa retrata a unidade em relação ao múltiplo; o Estado pertence e está em
conjunção com todos os municípios. As cores se referem ao que já foi dividido e, no
tempo do “agora”, é indivisível e é unidade, não pela dimensão de pertencer a um,
mas, teoricamente, a todos (aos munícipes) que ali se instalam.
As linhas são redundantemente lineares, enquanto formas e enquanto marcadores e
as cores não são difusas no limite de seus pares, posto que as linhas as delimitam e
lhe dão linearidade. Essa linearidade dos traços é que sustenta a ideia de domínio e
sugere um paralelo entre as linhas que delimitam um determinado território
municipal e se expandem em um continuum que leva à unidade do território estadual.
As linhas e as cores sustentam tanto o ideal de unidade quanto o de multiplicidade:
um Estado (em forma de pentágono) que se tornou “unidade” em sua estrutura,
inclusive pela formação de forças, mas que é composto por uma “multiplicidade”
que é dependente e dominada.
Na análise, em que se considera o plano de conteúdo, é ressaltado o modo de
articulação, em que este é motivado pela relação entre o plano verbal e o visual. Os
nomes que aparecem no MAPEMA tornam-se parte da história que o mapa conta:
o papel linguístico-ideológico representado a partir de suas conotações sociais,
políticas, históricas e religiosas. O Texto não se resume ao mapa. Este conta o
processo de formação territorial do Estado do Maranhão e a sua divisão geopolítica.
O conteúdo verbal complementa o que é expresso pelo plano visual.
No percurso da ação do esquema narrativo do mapa, conforme a tipologia de
valorizações aplicadas à comunicação e marketing, proposta por J. M. Floch (2008),
o programa é de base por ser descritivo e apelar para uma valorização utópica, com
uma meta final, que é informar acerca da formação do Estado e do Governo que o
representa e da identificação do povo que o instaura. O Estado e o Governo
parecem utópicos, uma vez que eles representam os municípios e o povo muitas

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vezes apenas teórica e abstratamente, podendo até negá-los, na prática, pela falta
devida de assistência em setores que são básicos, tais como educação, saúde e
segurança. Os índices (IDH) que o próprio Governo apresenta atestam essa
realidade.
A parte não verbal dá um estatuto de legalidade para esse estado de coisas, por meio
dos elementos visuais. O programa de uso pode ser representado pelo povo,
elemento que almeja a realização final, que seria a escolha de uma representação
eficiente para o status quo, ou seja, a não opressão ou liberdade, o estado de direito e
de cidadania. Também o povo pode ser considerado como valorização prática, pois
pode possibilitar a si próprio a realização do programa final, que é a liberdade em
sua verdadeira essência. A valorização crítica surge pela interpretação das
significações presentes nas lexias toponímicas que negam a valorização utópica na
correlação entre o Estado, o Governo e o povo.
Na organização semântica narrativa, o enunciatário é manipulado primeiramente
pelo efeito táctil do plano de expressão da figura, em que as imagens lineares dão a
ideia de proximidade do homem com a terra, que no mapa é apresentada. As
representações figurativas não verbais como as cores e as linhas parecem saltar do
papel e chegar até o leitor, por serem mais tangíveis. Também há manipulação da
enunciação com o enunciatário, quando o leitor pode se identificar tanto fora
quanto inserido no enunciado (mapa), além de sentir-se nele navegando.
No que tange à competência, o texto apresenta o Estado como a representação
territorial organizada, social e politicamente, com estrutura própria por meio das
instituições que controlam e administram seus interesses e que lhe dão soberania. O
Governo, como a capacidade de exercer essa representação do e para o povo e com
sabedoria para administrar, a contento, o espaço (Estado) e os recursos dele
(Governo) advindos para seus habitantes. O povo, o conjunto de pessoas com os
mesmos interesses, com costumes, tradições e histórias semelhantes em relação ao
Estado e ao Governo. Esses três elementos têm a competência necessária para
realizar a modificação do estado de dominação daquilo ou daqueles que estão
oprimidos pelos limites que fazem as amarras da falta de saúde, da falta de
conhecimento, pela pobreza, para o estado de liberdade e desenvolvimento. Dessa
forma, a performance pode ser exercida pelo Estado, pelo Governo e,
principalmente, pelo povo, que pode e deve operar uma mudança no estado de
coisas que se encontra no Estado. A mudança seria a grande sanção no e para o
Governo, o Estado e o povo.
No nível discursivo, o sujeito da enunciação assume as estruturas discursivas e, do
ponto de vista enunciativo do plano de conteúdo, no que diz respeito à sintaxe
discursiva, o texto é narrado primeiramente em terceira pessoa. Como o estilo linear
(WÖLFFLIN, 2000, Apud PIETROFORTE, 2004) marcador do plano de expressão
se destaca, isto causa um efeito de sentido na enunciação. O sujeito enunciador é
um destinador-manipulador, a fonte http://www.uema.br, que quer fazer com que

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o enunciatário creia nos dados apresentados. O observador pode ver e perceber o


texto sob determinado prisma interpretativo que não somente o do enunciador e
instaura os elementos extralinguísticos, por meio das marcas, no enunciado, que
ajudam a constituir a enunciação.
O texto é um discurso “enuncivo” que se classifica como a unidade discursiva
“enunciado”, cujas características explícitas são a projeção dos actantes e atores de
terceira pessoa e da objetividade. Enunciador e enunciatários são distanciados do
texto. Há os efeitos causados pela debreagem actancial enunciva, em que a
enunciação projeta o afastamento proposital do enunciador para ressaltar o
enunciado, dando-lhe efeito de objetividade. Esses papéis da instância enunciativa
são instauradores da complexificação apresentada na definição das pessoas: o
enunciador, alguém que anuncia sobre o Estado e os municípios –
http://www.uema.br, e o enunciatário, quem lê as mensagens informadas no mapa.
Há ainda uma relação considerada de suma importância para o propósito desta
análise, que é a relação metonímica entre o enunciado e a enunciação, posto que é a
partir dessa relação que se discorre desde o nível fundamental à semântica
discursiva.
Antes, porém, vale afirmar a respeito da representação temporal, em que o tempo
pressuposto é o do “então”, debreado para o tempo posto do “agora”. Há uma
remota perspectiva de uma debreagem para o tempo do “depois”, desde que haja a
performance, por meio da mudança. A representação espacial é a do “aqui”.
Em relação ao espaço, há um caminho delineado que leva do espaço do
município/estado, representado pelo substantivo “terra”, para o espaço não terra
“mar”. Esse caminho ocorre em forma de contiguidade e se dá geofisicamente
limitado sempre por via fluvial, representado na plasticidade por linhas
características. Essa contiguidade é dinâmica e marca a existência tanto da unidade
como das multiplicidades. A delimitação do espaço se faz plasticamente, com
contornos bem delineados que criam o efeito de sentido da dinâmica espacial
metonímica percorrida pelo município.

Municípios (Estado)  Rio  Mar

O texto MAPESMA apresenta várias figuras que, juntas, sustentam as linhas


temáticas que o tecem, conforme sugere o quadro a seguir.

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QUADRO 4
TEMAS E FIGURAS QUE RECOBREM O TEXTO

TEMAS FIGURAS

Divisão Territorial Mapa Político, as linhas divisórias, os rios.

Multiplicidades A diversidade das cores, os nomes que individualizam os


Municipais municípios

Localização Espacial Os nomes delimitadores do Estado (Estado do Pará, Tocantins e


Piauí), de municípios, e o Oceano Atlântico,

Cultura/História Os nomes toponímicos

As figuras recobrem os percursos temáticos e, por conseguinte, o enunciado as


registra de forma a dar a impressão da real imagem do Estado. Justamente por
passar essa ideia de realidade e de verdade acerca do que enuncia, o texto torna-se
bastante icônico. Ele leva o enunciatário a crer que a figura é o Estado do
Maranhão, ou seja, é um texto bastante referencial, que cria um efeito de realidade.
Os revestimentos figurativos presentes como as linhas divisórias dos municípios,
linhas representativas dos rios, dos estados limítrofes e as cores formulam o
percurso temático da divisão territorial, da limitação dos municípios, da localização
espacial.
No que diz respeito à semântica discursiva, a recorrência de temas e de figuras é
marcadora dos valores disseminados pela enunciação, mediadora da interpretação
do que está implícito no discurso e do que é depreendido a partir do contexto sócio-
histórico, graças às relações intertextuais (BARROS, 2008). Assim procedendo, os
temas vão-se construindo graças à coerência criada por meio das figuras que se
conectam, formando redes de sentido.
Compondo essa rede de significação, os topônimos, por sua vez, retratam a cultura
e a história desse Estado e mostram o entrecruzamento de experiências físicas e
socioculturais do presente e do passado com a língua. Nomes como Bequimão,
Carolina, Cândido Mendes, Coelho Neto, Gonçalves Dias, Imperatriz, e tantos outros
visíveis no MAPEMA, nos fazem ver, na superfície da língua, esses registros de
historicização.
Algumas possibilidades de leitura estão inscritas significativamente no texto e delas
podemos depreender as isotopias que perpassam todo o texto, a partir da
plasticidade do mesmo, como a delimitação territorial, a composição interna
múltipla do Estado, a unicidade dele e o Estado sendo uma unidade de Governo.
Também estão expressos verbalmente muitos valores ideológicos por meio dos

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topônimos, tais como (i) valores de vida psíquica e espiritual, nos animotopônimos
Fortuna, Milagres do Maranhão, Vitória do Mearim; (ii) a identidade e a alteridade
presentes no processo formador desse espaço, com a categorização dos
etnotopônimos Araioses e Timbiras; iii) a questão religiosa transcendendo as relações
territoriais, com os hagiotopônimos Santa Helena, Santa Rita, São José de Ribamar, que
expressam a cultura religiosa portuguesa; iv) a história política, como apontado
anteriormente, com os axiotopônimos (antropotopônimos) Afonso Cunha, Conceição
do Lago-Açu, Fernando Falcão, Godofredo Viana, Tasso Fragoso; v) a cultura indígena
como forma de resistência no processo dominador e denominador com grande
percentual de topônimos trazendo a morfologia indígena; enfim, todas essas
relações constituidoras do polêmico e conflitante jogo de poder nesse sistema léxico
instaurado revelam esses valores ideológicos.
Há diversas metonímias no texto, como a relação de contiguidade que se verifica
entre as linhas e as cores, as quais estabelecem uma relação de proximidade entre as
cidades, o Estado, o mar. O texto verbal é mais complexo quanto às estruturas
conceituais que o formam, tanto metonímica quanto metaforicamente. No entanto,
o texto visual está delimitando as possíveis interpretações polissêmicas do texto
verbal, já que este se relaciona, primeiramente, de modo referencial, ao passar as
informações e, em seguida, expressa bastante subjetividade a partir da significação
dos nomes. Há, pois, função de etapa entre o texto verbal e o visual, pois aquele
complementa as informações emitidas pelo jogo da plasticidade cartográfica, e
juntos apresentam a totalidade da mensagem.
O texto MAPEMA é mais temático do que figurativo (FIORIN, 2008), pelo seu
caráter de cientificidade. A figurativização é formada, em sua maioria, por traços, os
quais representam um “estado de realidade”. Estes traços descrevem simbólica e
iconicamente o Estado. Os temas explicam e interpretam essa realidade por meio de
um percurso a partir do qual são retomadas as figuras que subjazem essa
tematização (BARROS, 2008). Nesse sentido, a forma de expressão está relacionada
com a forma de conteúdo, ou seja, “produz sentido” exatamente por tais
correlações.
O texto verbal é formado pelas legendas e pelos nomes toponímicos, que se
organizam em traços reiterativos de expressão e são signos semióticos que
identificam os espaços por meio de nomes que revelam a substância da identidade
desses espaços: a colina, o igarapé, o capinzal, a cachoeira, o monte, o morro, a
vargem. Estes substantivos vão sendo descritos por meio de sintagmas nominais
com locuções de caráter locativo e genitivo, acionadas pelas estruturas metafóricas e
metonímicas, que formam Colinas, Morros (geomorfotopônimos), Igarapé do Meio,
Capinzal do Norte, Matões do Norte (cardinotopônimos), Cachoeira Grande, Vargem
Grande, Montes Altos (dimensiotopônimos).
Quanto a descrever a realidade geográfica utilizando o nome de pessoas ou de
santos, isso se dá em virtude de uma íntima ligação pessoal e ou espiritual desses

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com o lugar. Essas lexias tão produtivas e, ao mesmo tempo, opostas, estão
presentes nos hagiotopônimos São Pedro dos Crentes, São João dos Patos, São Domingos,
Santa Inês, Santa Rita e revelam quão forte é o sistema religioso no processo
denominador. Outro forte grupo de lexias é o dos antropotopônimos com nomes
como Pedro do Rosário, Zé Doca, Bernardo do Mearim, Ribamar Fiquene. Inserimos como
uma classificação inter-relacionada aos antropotopônimos, os axiotopônimos, taxe
relativa aos títulos e dignidades que acompanham os nomes próprios, como
“governador” e “presidente”, os mais produtivos, além de “senador” Senador
Alexandre Costa, “barão” Barão de Grajaú, “duque” Duque Bacelar, “dom” Dom Pedro e
“imperatriz” Imperatriz. Esses aspectos simbolizam a afetividade do sujeito
nomeador, que interfere no sistema denominador local, representando,
principalmente, a cultura e a história de seus habitantes com os seus espaços, os
quais ajudam a constituir a instância enunciativa do mapa. Essas oposições,
distribuídas nas diversas classificações, sustentam uma história colonizadora
formada por duas vertentes ideológicas “teocentrismo” X “humanismo” e em ideais
de dois períodos diferentes, “medievalismo” X “modernismo”. Outra repetição de
oposição de lexias se dá no campo da formação etimológica das palavras, nos nomes
de origem indígena e nos nomes de origem portuguesa. Essa morfologia ressalta o
processo dialógico da formação desse Estado. A multiplicidade dessas lexias
sincretizadas com a organização da expressão plástica forma o texto enunciado, o
qual é compreendido em sua totalidade.
Desse modo, a representação verbal desse mapa com essas lexias toponímicas,
como também a estrutura plástica desse em forma de pentágono, entrecruzada com
a história do Estado que ele representa, leva a crer que há certo semi-simbolismo
presente no texto. Isto se dá tendo em vista que essas categorias se correlacionam de
forma motivada e possibilitam “uma nova perspectiva de visão e entendimento do
mundo”, como define Barros (2008, p.89).
Outro ponto a ser ressaltado é acerca da instância enunciativa. O texto traz
explícitas as marcas dessa instância e os topônimos são novamente o instrumento
primeiro por meio do qual é possível recuperá-la. O discurso toponímico interno ao
texto é enunciado por sujeitos enunciatários diversos, inscritos em tempos e espaços
diferentes, pois diferentes são esses traços em relação à instituição dos municípios,
do Estado e da feitura do mapa. Essa segmentação histórica esclarece, por exemplo,
por que determinados municípios têm os nomes inspirados no sistema
representativo dos reinos da natureza, no sistema de transplantação cultural, no
sistema religioso, no sistema político ou na genealogia familiar. Esses procedimentos
marcam a relação do discurso enunciado no mapa com outros textos, e as diferentes
figuras que encadeiam esse discurso também revelam as formações ideológicas que
as projetam.
Um município é denominado Alcântara, Axixá, Cândido Mendes, Cantanhede,
Governador Archer, Presidente Sarney ou Santa Rita, não por acaso, mas porque os

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denominadores de uma estância espacial foram motivados a escolherem esse nome.


Alcântara e Cantanhede revelam o processo de transplantação cultural, com base no
fato de que os colonizadores portugueses denominam as povoações além-mar em
que passam a habitar em homenagem a sua terra natal. Axixá conserva, em sua
forma, a estrutura da língua dos primeiros habitantes do lugar.
Essas classificações taxionômicas simbolizam mais fortemente a estrutura ideológica
de poder na qual se formou o Estado, como também representam o reflexo do
comportamento desses denominadores em uma situação sócio-política e das
técnicas de que eles se utilizam para se fazerem representar a seus semelhantes, no
sistema denominador. Dom Pedro, Governador Archer e Presidente Sarney são nomes
reveladores de uma necessidade emancipatória do município, em que houve,
geralmente, apoio do político homenageado para essa normalização, ou mesmo uma
denominação politicamente imposta. Por conseguinte, não é incomum verificar-se a
indignação dos moradores com a imposição de um nome alheio à realidade do lugar.
O primeiro nome do município João Lisboa era Gameleira. Ao passar à condição de
vila essa localidade teve o nome modificado para Vila Simplício Moreira, fato que
sequer ficou conhecido pelos moradores. Ao ser elevado à categoria de município
este foi denominado João Lisboa. Caso mais característico se dá com o município de
Senador La Rocque. A informação acerca desse município é, no sítio do
IBGE/Cidades, sobretudo, uma declaração de repúdio às mudanças toponímicas
que ocorreram no Estado, a 10 de novembro de 1994. Esse fato se estende a alguns
dos oitenta e um municípios emancipados que receberam nomes de políticos, que
exerceram ou estavam exercendo cargos políticos, sem que fosse feita uma consulta
aos habitantes do lugar, não respeitando os nomes de origem desses municípios.
Portanto, muitos conflitos estão subjacentes ao conjunto de sistemas que formam o
índice toponomástico do estado. Todos esses sistemas constituem a instância
enunciativa instauradora do texto verbal, inserido num texto visual maior, os quais,
juntos, formam o discurso tematizador Mapa do Estado do Maranhão.

Considerações finais
Este trabalho focaliza-se na interface da linguística semiótica com outras ciências
humanas, as quais fornecem subsídios complementares a este estudo. Um texto
composto pela parte não verbal, o mapa visual propriamente dito (cartográfico) é
analisado, assim como a parte de seus traços verbais, os topônimos, os quais dão
sentido ao mapa e complementam as informações visuais com o intuito de
encontrar os fios que tecem esse texto e, por conseguinte, a história do Estado.
No item acerca do enunciado, foram apresentadas as unidades textuais em que se
baseia a análise e o texto MAPEMA, a partir do qual surgem as descrições e
interpretações de apoio com algumas classificações toponímicas dos nomes dos
municípios maranhenses.

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A análise do nível fundamental demonstra um percurso eufórico permeado de


oposições facilmente perceptíveis na estrutura superficial do texto. Desse modo é
construído o quadrado semiótico que apresenta duas oposições paradoxais básicas
extensão/dominação e limite/liberdade, visualizadas na plasticidade do mapa, além de
outras oposições e das categorias formais do plano de expressão do texto não
verbal. No entanto, sob o ponto de vista do índio, o percurso segue da disforia para
a euforia e faz significar o processo dominador dos colonizadores portugueses sobre
aqueles que viviam livremente nessas terras.
O nível narrativo apresenta o relacionamento das categorias do significante com o
significado com um programa de base, cujo objetivo principal é informar acerca do
espaço que forma o Estado, apresentação esta feita por meio das legendas e dos
nomes toponímicos. Nesse programa é apresentada a valorização utópica, que visa
informar acerca desse Estado; certa valorização prática, com a possibilidade de fato
de uma melhoria; e a valorização crítica, depreendida com base na leitura dos nomes
toponímicos. Na semântica narrativa, o enunciatário é, de certa forma, manipulado,
e o Governo, o Estado e, principalmente, o povo possuem qualificações necessárias
para atuarem no programa narrativo da competência.
No nível discursivo são discutidos, sobretudo, os possíveis sistemas significativos, a
partir do ponto de vista do sujeito enunciatário, num tempo posto do “agora” e
num espaço do “aqui”. O texto está recoberto de temas e figuras e os revestimentos
figurativos plásticos dão um efeito de realidade, enquanto os verbais retratam a
natureza, o sistema ideológico dos habitantes, por meio da sócio-história do Estado,
enfatizada nas relações de poder que vêm expressas no sistema linguístico, a partir
da classificação desses topônimos.
Finalmente, os passos dados objetivaram conhecer o que revelam implícita ou
explicitamente esses dados da sociedade maranhense, por meio do “Mapa do
Estado do Maranhão” com o seu índice linguístico toponomástico. Estes nomes são
verdadeiras palavras-chave da língua para significar elementos geográficos e
recuperar fatos históricos e socioculturais, como também são signos linguísticos
verbais por excelência.

Referências
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CASTRO, M. C. D. de. “Reflexões preliminares de uma pesquisa linguística e sócio-
histórica acerca dos topônimos dos municípios maranhenses”. In: Anais do ROSAE.
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Cadernos de História de São Paulo. São Paulo: Universidade de São Paulo, v. 2, janeiro-
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FIORIN, J. L. Elementos de análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2008.

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FLOCH, Jean-Marie. Semiótica, Marketing e Comunicazione. Milão: Franco Angeli, 2002.


GREIMÁS, A. J. Semântica Estrutural. São Paulo, Cultrix, 1973.
PIETROFORTE, A. V. Semiótica Visual. São Paulo: Contexto, 2007.
SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. 20. ed. São Paulo-SP: Cultrix, 1995, 1. ed. 1916.
WHITNEY, W. Dwight. Whitney on Language: Selected Writings of William Dwight Whitney.
Cambridge: The MIT Press, 1971, 1. ed. 1871.

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