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POLÍTICAS CULTURAIS
PARA A DIVERSIDADE:
LACUNAS INQUIETANTES
Minorias
tramas e urgências transcontinentais
Semestral.
Produção gráfica
Lilia Góes NÚCLEO DE
INOVAÇÃO /
Imagens OBSERVATÓRIO
Mônica Rubinho
Gerente
Ilustração Marcos Cuzziol
André Toma
Coordenação
Supervisão de revisão Luciana Modé
Polyana Lima
Produção
Revisão (terceirizada) Ediana Borges Lima
Karina Hambra Marcel Fracassi
Rosana Brandão
OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL:
há dez anos exercitando e fomentando um olhar
atento às dinâmicas da cultura
vez mais os processos de gestão e interme- redes de cooperação, bancos... [e que] acen-
diação. Salles trata de outra manifestação tuam a noção de desenvolvimento local e
endemoninhada pelos detentores dos crité- ampliam os horizontes em relação à plura-
rios do patrimônio: o funk carioca, no qual lidade das formas de se organizar as ‘regras
os negros – dizem eles – se afastam das da casa’” fundamentadas em laços recípro-
suas raízes africanas. Longe de ser uma cos. Trata-se de uma proposta de economia
música essencializada, como se acredita criativa que tenta solucionar algumas das
do folklore, o funk é uma música de fusão lacunas apontadas pelos autores do relató-
muito abrangente, que “tem essa capacida- rio da década de avanços da Convenção para
de de não se permitir domesticar ou disci- a Proteção e Promoção da Diversidade das
plinar facilmente”. Expressões Culturais.6 Essa solução passa
menos pelo reconhecimento das expressões
5. Outros rumos para a diversidade culturais – que já existe – que pela parti-
Nesta última seção, Marcus Vinícius cipação nas decisões da gestão dos acer-
Franchi Nogueira e Hiury Correia falam de vos valorizados.
uma diversidade de práticas e traços cul- Jesús Martín-Barbero oferece outra
turais e não culturais que formam parte da visão pautada na atual mutação social –
economia, mas não se trata da economia assistida pelas novas tecnologias –, na
criativa convencional, originada no mundo qual as vozes que têm acesso proliferam
anglo-saxão e adotada com entusiasmo ao e já não formam parte de um programa
redor do mundo, mas com pouca inclusão de de diversidade cultural instrumental (de
populações vulneráveis e poucos resultados reconhecimento de grupos ou cultura de
comprovados. Um exemplo que citam é o grupos para a integração social) como no
Carnaval de Salvador, Bahia, que gera muita modelo da Unesco. Como Gutiérrez, Mar-
riqueza explorando expressões afrodescen- tín-Barbero salienta o novo comum, em que
dentes que não beneficiam as comunidades “o que se sabe o sabemos entre todos”. Ele
que as produzem. Perante essa situação, os argumenta que precisamos prestar atenção
autores propõem “diversificar o repertório nas mediações, interfaces dessas conversas
tecnológico de gestão em busca de ferra- rizomáticas, já que se redesenham os proto-
mentas alternativas que estejam mais pre- colos de interlocução na internet para que
paradas para incorporar as particularidades os usuários tenham a sensação de que fazem
de cada casa [base etimológica em grego da o que querem, ao mesmo tempo que essas
palavra economia]”. Oferecem tecnologias falas tornam possível o negócio que circula
sociais, entre elas a economia solidária, que na rede. É preciso não apenas conhecer as
“compreende uma variedade de soluções interfaces, mas intervir nelas.
sob a forma de cooperativas, associações,
clubes de troca, empresas autogestionárias, George Yúdice
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE 15
Notas
2 RIBEIRO, Gustavo Lins. Diversidade cultural enquanto discurso global. In: Avá -
Revista de Antropologia, n. 15, p. 7-8, dez. 2009. Disponível em: <http://www.
scielo.org.ar/scielo.php?pid=S1851-16942009000200001&script=sci_arttext>.
Acesso em: 5 mar. 2016.
3 Por exemplo, Brasil, 1988; Colômbia, 1991; El Salvador, 1992; Guatemala, 1996;
Venezuela, 1999; Equador, 2008; Bolívia, 2009; Costa Rica, 2015.
1. AS TRAMAS DAS
MINORIAS: A URGÊNCIA DE
2. NOVO CENÁRIO
MIDIÁTICO E A GEOPOLÍTICA
OUTROS PARADIGMAS PARA DA COMPUTAÇÃO: OS DESAFIOS
A DIVERSIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
23. Direitos indígenas e 81. Os desafios do novo cenário
diversidade cultural: em busca midiático para as políticas públicas
de um diálogo transcontinental George Yúdice
Tracy Devine Guzmán
104. A pilha negra
48. (Des)Humanidad(es) Benjamin Bratton
e universidad(es)
Catherine Walsh
5.
134. Mahmoud M. El-Safty
138. Nazan Üstündağ OUTROS RUMOS
PARA A DIVERSIDADE
144. Kostas Latoufis
189. As regras da casa
152. Afetos, performance de em laços recíprocos
gosto e ativismo de fãs nos sites Marcus Vinícius Franchi Nogueira
de redes sociais Hiury Correia
Simone Pereira de Sá
200. A amplitude da fala será
162. Da rede à rua e vice-versa. a realização da diversidade tão
Anotações acerca das dissidências desejada desde os anos 1980?
e outras revoltas George Yúdice e Omar Rincón
Rossana Reguillo entrevistam Jesús Martín-Barbero
As fotografias que ilustram a 20a edição
da Revista Observatório são de autoria da
artista plástica Mônica Rubinho.
Por meio de sobreposições, são criadas narrativas poéticas que revelam uma percepção
simbólica e afetiva. As imagens desta edição fazem parte de três séries: Esconderijos nos
Cantos da Pele (2007), Marco Zero (2006) e Sem Título (2005).
22 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
1.
AS TRAMAS DAS
MINORIAS: A URGÊNCIA
DE OUTROS PARADIGMAS
PARA A DIVERSIDADE
48. (DES)HUMANIDAD(ES)
E UNIVERSIDAD(ES)
Catherine Walsh
DIREITOS INDÍGENAS E
DIVERSIDADE CULTURAL:
EM BUSCA DE UM DIÁLOGO TRANSCONTINENTAL
Tracy Devine Guzmán
Autoria, tradução e introdução: Tracy Devine Guzmán (Universidade de Miami)
Tracy Devine Guzmán
Entrevistas com Juvenal Teodoro da Silva (Payayá), Lorna Munro (Wiradjuri
e Gamilaroi), Ruby Hembrom (Santal) e Gloria Quispe Girón (Quéchua)
O
próprio conceito de direitos indíge- Payayá da Bahia –, as experiências e pers-
nas, individuais ou coletivos é uma pectivas comunicadas por Quispe ressoam
“quimera” em um país que “com poderosamente com as histórias Adivasi, na
orgulho reconhece a Conquista”, explica a Índia, Aborígenes, na Austrália, e Nativas,
ativista intelectual Gloria Quispe Girón, no Brasil (e nas outras Américas), apesar
participante da Organização Ñuqanchik de das óbvias e importantes diferenças repre-
Crianças, Adolescentes e Jovens Indígenas sentadas por suas circunstâncias sociais,
do Peru.1 Ainda com experiência internacio- políticas, históricas e geográficas. E mais:
nal na luta pelo bem-estar do seu povo Qué- o deslocamento forçado – físico, filosófico,
chua,2 Quispe foca seu trabalho principal- emocional, espiritual –, seja pela violência,
mente na região sul do país, onde sua família, seja pela necessidade econômica, ou até
com milhares de outras famílias indígenas pela vontade de alcançar uma educação de
e rurais, viveu uma migração forçada pela qualidade e melhorar a própria condição so-
violência política que dominou o Peru entre cial, é um tema aberto ou latente em todos
1980 e 1992.3 Apesar da alusão evidente às os depoimentos aqui registrados. Porém,
circunstâncias nacionais, porém, a men- a capacidade e prática indígena não só de
sagem histórica e política de Quispe não é “resistir” e “sobreviver”, mas também de se
alheia para muitos outros povos indígenas – adaptar, crescer, criar e prosperar, apesar
sejam de outros países americanos, sejam de dos mais graves impedimentos expostos nas
outros continentes. Como observamos nas experiências de vida aqui compartilhadas,
contribuições a esta compilação da autora é o outro lado da moeda: a calamitosa feti-
e editora Ruby Hembrom, do povo Santal; chização do “desenvolvimento” a todo preço
da artista e poetisa Lorna Munro, dos povos coexiste com a simples realidade de que a
Wiradjuri e Gamilaroi; e do ecologista e es- Conquista, se ainda reconhecida com “or-
critor Juvenal Teodoro da Silva – cacique gulho” por um grande setor das sociedades
24 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
e culturas dominantes, até agora não chegou apesar da Declaração das Nações Unidas
às suas últimas consequências. de 2007; das promessas das constituições
Se a terminologia usada para a identifi- estatais; dos antigos e modernos discursos
cação (e autoidentificação) dos povos indí- “indigenistas” nacionais, regionais e in-
genas muda ao longo do tempo e do espaço, ternacionais; da proliferação de políticas
com as múltiplas configurações de poder públicas que há décadas buscam defender
social e político que infor- o “multiculturalismo”, o
mam seu uso em diferentes A primeira linha de defesa “plurinacionalismo”, a “di-
contextos, um dos propósitos é sempre, talvez por versidade” e a “cidadania
necessidade, um manifesto
da presente coleção de tra- diferenciada”, a maioria
resoluto de vivência. Mas a
balhos é revelar que muitas isso não se limita e não se dos povos nativos vive, ain-
experiências vividas sob o pode limitar nunca da no século XXI, cercada de
poder colonial e colonialista sociedades dominantes que
são compartilhadas apesar das formidáveis “comemoram”, direta ou indiretamente,
especificações de cada manifestação local, a sua (inacabada) dominação e aniquila-
regional ou nacional. A discriminação cul- ção. Contemplando o caso da Índia atual,
tural, étnica e racial; a marginalização social por exemplo, o ativista e escritor Gladson
e econômica; a violência política; a desloca- Dungdung faz eco à crítica de Quispe ao
ção física e epistemológica; a vulnerabilidade observar que “os povos Adivasi não só
jurídica frente às leis nacionais e constitu- dependem dos recursos naturais para se
cionais; a insuficiência do reconhecimento sustentar; sua identidade, dignidade, au-
formal e informal das línguas maternas; a tonomia, cultura e existência também se
falta de apreciação pelas tradições cultu- baseiam neles. De fato, a sociedade Adivasi
rais e educacionais: são um compêndio de não sobreviverá se estão alienados dos re-
exclusões que fazem dos povos indígenas na cursos naturais” (2013, p. 29). Na Austrália
prática, se não necessariamente na teoria, ci- e no Brasil, de forma assemelhada, as ba-
dadãos de segunda classe, ou, na formulação talhas materiais e jurídicas pelos territó-
do filósofo Giorgio Agamben (1998, p. 105), rios protegidos e pela soberania reiteram a
“cidadãos cuja política é questionada na observação feita pelo teórico peruano José
constituição do seu próprio corpo”.4 Taiaia- Carlos Mariátegui (1928, p. 20) há quase
ke Alfred (1996, p. 1), teórico Mohawk, fez um século: “la cuestión indígena tiene sus
há duas décadas uma observação biopolíti- raíces en el régimen de propiedad de la tier-
ca ainda mais abrangente: todo ser indígena ra”. Ao mesmo tempo, é indispensável reco-
nasce na política pelo próprio fato da sua nhecer que a importância da terra desde a
autoidentificação como tal. perspectiva dos distintos povos e protago-
Uma maneira de abordar o reconheci- nistas indígenas, seja no passado, seja no
mento compartilhado desse aglomerado de momento atual, não reflete necessariamen-
experiências excludentes e alienantes, en- te os motivos ponderados por Mariátegui
tão, radica na observação aguda de Quispe: no seu famoso ensaio.
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE TRACY DEVINE GUZMÁN 25
Tanto na produção cultural das socie- de indígenas que hoje formam parte de 90
dades dominantes quanto nos programas estados-nações, além das suas próprias
estatais de “modernização” que buscam su- nações e tribos?7 Após o reconhecimento
perar passados “atrasados”, a implementação formal e legal de direitos, interesses e prio-
prática e retórica da comemoração da anula- ridades indígenas em âmbito nacional e
ção dos povos indígenas existe em todos os internacional durante as últimas três dé-
níveis sociais e em todos os campos políticos. cadas, como entender o fato de que os po-
Como consequência, as lutas pelos direitos vos Quéchua, Adivasi, Aborígenes e Nativos
e bem-estar indígenas não só transpassam (por exemplo) estão muito longe de alcançar
os parâmetros legais das sociedades domi- níveis de bem-estar social e representação
nantes e os estados discriminatórios que política a par das populações dominantes ou
as representam como também respondem maioritárias dos países onde residem como
à incursão dos interesses empresariais que cidadãos e portadores de direitos? Por que
buscam dominar, conter e comercializar o tendem a fracassar os esforços realizados
mundo natural a qualquer custo – ainda através das políticas públicas para gerar as
quando esse custo seja uma vida humana condições de possibilidade a fim de cons-
ou uma forma única e insubstituível de en- truir mais equidade social e poder incorpo-
tender o mundo e existir nele. Frente a tal rar perspectivas e prioridades indígenas nos
ameaça existencial, compartilhada agora por programas de “modernização” e “desenvol-
aproximadamente 350 milhões de pessoas vimento nacional”?
em âmbito mundial,5 Quispe reitera uma Considerando a ampla circulação de
mensagem disseminada por várias gerações uma variedade de respostas a essas pergun-
de indígenas ativistas e autodefensores de tas – fomentadas e formuladas maiormen-
seus próprios povos – começando na época te desde o âmbito privado empresarial e os
colonial e passando pelo nascimento dos es- setores públicos de educação, serviço civil e
tados republicanos, antes de chegar à traição governabilidade8 (e em todos os casos, exceto
das promessas republicanas no passado e no o da Austrália, com pouca ênfase nas popula-
momento atual: “No somos un pasado ine- ções indígenas) –, podemos afirmar que a boa
xistente, sino más bien [...] pueblos e comu- vontade e o simples passar do tempo não são
nidades indígenas que aún estamos, que aún mecanismos suficientes para desfazer cinco
existimos, que resistimos”.6 A primeira linha séculos de heranças coloniais, nem para aca-
de defesa é sempre, talvez por necessidade, bar com as propensões políticas maioritárias
um manifesto resoluto de vivência. Mas a e colonialistas dos nossos dias. Ao mesmo
isso não se limita e não se pode limitar nunca. tempo, se a estratégia de “encher vagas” ti-
Como, então, começar a interpretar o picamente associada aos sistemas de cotas
momento atual desde uma perspectiva com- e outras políticas de “ação afirmativa” talvez
parada, transnacional e transcontinental seja coerente com o já estagnado mandato
sem simplificar ou até encobrir a infinita “multiculturalista” da “diversidade”, pensar
heterogeneidade dos mais de 370 milhões a representação em termos numéricos é só
26 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
das nascentes perenes, antes tão comuns na de garantir a sobrevivência do nosso povo
grande Chapada Diamantina. Esse paradoxo e também do planeta Terra.
ensinou-me a amar e a valorizar o territó- Nos anos 1990, marcou a nossa luta o
rio, os mananciais líquidos da Chapada e os engajamento pelas retomadas e demarca-
demais sobre a Terra. São eles a essência da ções das terras indígenas na Bahia.15 Foi
sobrevivência humana. um rico período. Saíram meus primeiros
Fui retirado ainda na infância do meu livros: Os Tupinikim: Versos de Índios; Fe-
território e levado direto para uma mega- nomenal: História do Primeiro Rio da Terra,
lópole. Ainda jovem, trabalhei no Departa- (uma parceria com Edilene); e depois mais
mento de Águas e Esgotos (DAE) do Estado sete. Na militância indígena, participamos
de São Paulo. Nessa oportuni- da formação das organiza-
dade, tive contato com a visão Aceitar o discurso da ções indígenas modernas,
dos capitalistas sobre a água diversidade cultural nos iniciada no Grupo de Litera-
como produto de interesse moldes em que ela se tura comandado por Eliane
apresenta é renegar a
mercantil, de consumo de Potiguara, Marcos Terena e
“diversidade” autóctone.
mercado, em que as empresas outros.16 Na prática, procu-
É fundamental que os
monopolistas auferem altos povos indígenas não se ramos assessorar várias en-
lucros sobre seus consumido- deixem destruir tidades: Associação Hãhãhãe
res. Isso me assustou. Incen- Indígena de Água Vermelha
tivado pela conjuntura dos anos 1960, fui (Ahiav); Movimento Unido dos Povos e Or-
atrás de ideias revolucionárias e isso me fez ganizações Indígenas da Bahia (Mupoiba);
compreender melhor o mundo. Então voltei Conselho Estadual dos Direitos dos Povos
para perto do meu território tradicional – a Indígenas do Estado da Bahia (Copiba);
cabeceira do rio. Conselho de Educação do Estado da Bahia
Depois de conhecer Edilene, também (CEE). A participação trazia inspiração para
filha da Chapada e, na época, funcionária centenas de diversos versos, contos e livros
da Empresa Baiana de Águas e Saneamen- já publicados, incluindo O Filho da Ditadura
to S.A. (Embasa), apaixonada pela mesma (2010) e 1000 Palavras em Tupy (no prelo).
causa, ampliamos nossos conhecimentos A partir de 2010, o povo Payayá uniu-se na
sobre o assunto. Sua vivência como gestora produção de mudas nativas, e hoje essa é
da empresa solidificou a excelente parceria nossa lida e objetivo.
e nossas convicções sobre o meio ambiente Sem dúvida, a família contribuiu com
ampliavam-se, o que resultou na formação meu trabalho, em favor de nosso povo e dos
do núcleo indígena Movimento Associativo outros povos indígenas, tomando a decisão
Indígena Payayá (Maip). O próximo passo de ir à luta pela causa. Contamos com o
foi a unidade da nação Payayá para pre- apoio dos caciques das etnias da Bahia, das
servar as cabeceiras do Rio Utinga (“rio de organizações estatais e das organizações
águas claras”, na língua dos índios Payayá), indígenas, como Mupoiba e Copiba. A lista
na Chapada Diamantina norte, em busca de literatura indígena também contribuiu
28 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
garantia dos direitos indígenas, nos projetos No longo prazo, a possibilidade de que
de saúde, educação, produção e com relação os interesses indígenas sejam engolidos ou
às terras indígenas, no trato do homem bran- apropriados pelos interesses e paradigmas
co com a biosfera e no desrespeito cultural. do ativismo meio ambiental é visível. As hi-
Alguns antropólogos, etnólogos, indige- drelétricas, as barragens, as estradas e as
nistas, políticos e outros profissionais têm mineradoras escolhem terras indígenas,
deixado importantes contribuições para a por serem elas paradoxalmente as mais ri-
convivência dos povos indígenas. Mas não cas em diversidade. Assim o índio, por ser
há dúvida que os tais se aproximam des- a minoria das minorias, pode ser o grande
ses povos para colher informações. Alguns perdedor. Temos de fazer justiça no Brasil.
se completam, outros, além disso, deixam Tomando como exemplo a Bahia, houve
rastro de destruição, malquerença e doen- avanços; e se não ocorreram mais avanços
ças que não podem ser reparadas. A luta foi por falta de unidade entre as lideranças
pelo território é o grande elo-unidade en- dos diversos povos indígenas. Verbas foram
tre bons indigenistas e índios. A unidade destinadas exclusivamente para projetos
entre os povos parece que não é objeto de indígenas, mas os índios não pautaram os
compreensão [por causa da] interferência agentes governamentais, perdendo o prota-
político-administrativa nas aldeias, da in- gonismo. Essa situação nem sempre foi as-
fluência entre caciques, da falta de objetivi- sim; pelo contrário, item nenhum constava
dade nos propósitos, das tentativas de impor como política pública destinada aos povos
modos de produção, das drogas, do alicia- indígenas do estado.
mento e do partidarismo político. Considero que as prioridades maiori-
O conflito é permanente, mas até as po- tárias dos povos indígenas atuais são: 1) ter-
tências concordam que somos os verdadeiros ritório; 2) soberania; 3) saúde; 4) educação
ecologistas. É de fundamental importância e 5) cidadania diferenciada. As demais são
distinguir a vontade preservacionista dos po- consequências. [Para pensar as priorida-
vos originários e a vontade ecológica do mer- des indígenas], as questões regionais e in-
cado. É completamente possível reflorestar terétnicas são fatores importantes, mesmo
as áreas degradadas pelo homem branco. O porque somos povos – não uma “comuni-
índio deseja seu bem-estar por ser natureza; dade”. Porém, há certo consenso nas ques-
essa combinação pode ser perfeita desde que tões gerais dos povos. Não se pode negar a
a interferência externa não crie embaraços importância das organizações internacio-
na combinação entre homem-índio e na- nais de direitos indígenas e humanos. As
tureza-viva. Quando o índio conserva uma denúncias, a força da divulgação, as contri-
nascente, todos os seres se completam. Se o buições às interferências judiciais, o apoio
índio replanta as matas, provê o bem-estar em projetos impactantes. Enfim, essas
dos pássaros, dos roedores, dos répteis, da parcerias têm exercido fundamental im-
produção de mel, dos frutos nativos e da re- portância para os povos e as organizações
produção de sementes. indígenas no Brasil.
32 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
estão desaparecendo a uma velocidade nunca de forma concreta; são retóricas usadas
vista, por causa de políticas de genocídio cul- para dar a impressão de que estão fazendo
tural e expropriação. O avanço mais radical um bom trabalho. Quando os povos, comu-
neste país é a percepção de que as formas nidades e assuntos Aborígenes estão involu-
antigas de conhecer, comunicar e ser são as crados, as políticas públicas usam a palavra
mais avançadas de qualquer civilização. Amo “consulta”, mas não fazem consulta. Contam
trabalhar com minhas línguas tradicionais, já com as opiniões de Aborígenes escolhidos a
que existe uma forma de pensar arraigada ao dedo, que não têm laço nenhum com o assun-
estado mental dos povos Aborígenes – ainda to ou a área em questão. E então algumas des-
quando não estamos sempre conscientes dis- sas pessoas chegam a ser “especialistas” na
so. Temos a tendência de usar a mesma ideo- Austrália Aborígene, quando não há transpa-
logia e as mesmas matizes quando estamos rência nem consulta nem conexão. Acredito
falando na língua dos colonizadores. Existe que há uma negação das formas corretas [de
uma compreensão inerente da poética das resolver problemas], em existência por mi-
nossas línguas tradicionais que outros não lhares de anos, porque são “difíceis demais”.
conseguem imitar. A cultura e a linguagem na A Austrália Aborígene conta com centenas
Austrália estão passando por um processo de de nações – todas com sua própria língua,
regeneração e recuperação do qual me sinto história de criação, cultura. A existência de
orgulhosa de participar. um grupo de “lideranças Aborígenes” es-
A política “multiculturalista” é uma colhidas a dedo, que servem como a voz da
retórica que se usa para a Austrália não ser Austrália Aborígene para os propósitos dos
percebida como a nação racista que é. Minha decisores políticos, sem a participação dos
opinião é que os processos de entrar neste outros, nem uma votação, acaba solapando
país são racistas e assimilacionistas de for- a soberania de todas as nações.
ma sistemática, o que fomenta ignorância A relação entre os direitos indígenas e
entre os imigrantes não brancos ao chega- os grupos de meio ambiente também é muito
rem – um estado mental bastante parecido patriarcal – é uma relação em que a voz in-
com o dos australianos brancos que se sen- dígena e as formas indígenas de entender o
tem bem confortáveis e sem remorso na sua meio ambiente são ignoradas. Recentemen-
ignorância. Às vezes, os termos “multicul- te, um grupo criticou os povos Aborígenes
turalismo” e “diversidade” não incluem os por caçar: atacou os povos e a nossa prática
povos Aborígenes na prática; podem ser usa- ancestral de sustentar a terra e a nós mes-
dos para cumprir com requisitos, mas não mos. Espero que no futuro os grupos am-
para ocasionar uma diversidade verdadeira. bientais parem de pensar que são grandes
Acabam excluindo os povos Aborígenes e, salvadores brancos e que trabalhem com
mais ainda, silenciando as nossas vozes e diversos grupos indígenas. Afinal de contas,
proporcionando mais força à voz colonial. nós trabalhamos e prosperamos aqui por
Infelizmente, muitas palavras que se muitos milhares de anos sem interferência.
usam nas políticas públicas não se aplicam Essa realidade precisa ser reconhecida e
34 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
onde meu pai lecionava; era um lar – uma de pai e mãe para participar de eventos fa-
colônia bela e multicultural representando o miliares e comunitários. Nossos parentes
comprimento e a largura deste diverso país. e amigos nos visitam na cidade, trazendo
Desde cedo, distinguia as tribos e famílias sonidos e sabores das nossas raízes.
nordestinas – isso quando muitos nem se Alguns diriam que sou uma Adivasi
reconheciam como indianos. Com eles, eu privilegiada, mas eu diria que sou indígena
não tinha que responder a perguntas – ex- de outro jeito. É uma escolha: um ato deli-
plicar, por exemplo, que não morava em uma berado de me manter enraizada. Sempre
árvore, nem em uma caverna; que não vestia me atraíam os assuntos Adivasi, e cresci
folhas, nem comia seres humanos. Estava em uma família em que essas discussões
livre dos estereótipos que existem sobre eram frequentes. Ser Adivasi sempre tem
os Adivasis. Na segunda sido importante para mim;
comunidade, porém – a Nas palavras, na língua, nas me dá orgulho! O medo de
escola –, estava cercada da imagens, nas páginas de que perder nossa identidade –
realidade de como me per- são feitos, os livros são os porque viemos para a cida-
fios de nós mesmos com que
cebiam. Quando tinha seis de e vivemos em situações
cada um contribui para fazer a
anos, um colega me per- diferentes – está sempre
ponte que trará nossos filhos
guntou se eu tinha de polir de volta às suas raízes presente, mas muitos jo-
a minha cara quando polia vens estão desafiando
os sapatos negros que usava na escola. Al- essa ideia. Com mais consciência sobre os
guns riam do meu nariz plano. Na décima direitos Adivasi, velhos e jovens, homens e
série, após uma década estudando juntos, mulheres, crianças nas cidades e nas aldeias
um colega da turma se recusou a sentar-se estão fazendo todo o possível para afirmar
do meu lado por causa da minha pele escura. a sua identidade e difundir seu orgulho de
Cresci pensando, sentindo, sabendo ser indígena. É por isso que os livros são im-
que não era bonita. E não conseguia supe- portantes, as histórias são importantes e a
rar as impressões externas e mostrar que expressão é importante. Os livros mantêm
eu era mais do que uma simples aparência. viva a história, a herança, a identidade. Os
Com frequência me perguntavam se era do livros reinventam, reinterpretam, fazem re-
sul da Índia, e, quando explicava que era levantes as vozes, os pensamentos, as ideias,
Adivasi do Estado de Jharkhand, faziam os sonhos [...]. Nas palavras, na língua, nas
perguntas ainda mais ridículas. Sabia ca- imagens, nas páginas de que são feitos, os
çar? Poderia dar um grito de guerra? Mas livros são os fios de nós mesmos com que
tudo aquilo também foi o início da minha cada um contribui para fazer a ponte que
forma multifacetada de ser. Oscilava entre trará nossos filhos de volta às suas raízes.
distintas formas de ser em distintos luga- A Adivaani [nossa casa editorial] não
res. Sou Adivasi feita na cidade, mas Adivasi diz respeito somente aos livros; é também
de qualquer jeito. Em casa falamos Santali; uma plataforma para a expressão Adivasi
vistamos nossas casas ancestrais por parte em qualquer meio ou em todos os meios
36 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
possíveis. Estamos, por exemplo, começando que definem o ser Adivasi. Nosso primeiro
a trabalhar com documentais, tradições mu- livro foi escrito em Santali, no qual aborda-
sicais, arquitetura indígena e trabalhos aca- mos os Santals como povo, sua história e
dêmicos indígenas. Nossos colaboradores forma de ser. A capa do livro era preta. Uma
são indígenas especialistas nessas áreas – das gráficas que estávamos considerando re-
praticantes tradicionais e modernos que comendou que trocássemos o preto por um
absorveram o conhecimento da experiência amarelo “alegre” ou castanho-avermelhado
vivida ou foram treinados em discursos mais porque “preto é uma cor muito sofisticada
convencionais e estabelecidos. Mas nosso para os Santals, tão atrasados”. Mas ficamos
público não é só o Adivasi; precisamos que com o preto!
outras pessoas também nos conheçam, en- Em 2015, o Coletivo Intelectual Tribal
tendam e apreciem. É por isso que trabalho da Índia (Tici, na sigla em inglês), uma rede
principalmente empregando o inglês. Pre- de estudiosos indígenas que produz revis-
cisamos alcançar o maior público possível, tas eletrônicas, decidiu fundar uma casa
construir todas as pontes possíveis, romper editorial para começar a produzir materiais
todas as barreiras possíveis. As respostas impressos. Souberam primeiro da Adivaani
positivas ao nosso trabalho vêm principal- e entraram em contato conosco. Após uma
mente de acadêmicos, trabalhadores da área breve conversa, ficamos aliados. Percebemos
do desenvolvimento social e estudantes. que não estávamos lidando apenas com co-
Nossos melhores aliados têm sido as li- nhecimento e cosmovisões indígenas; tam-
vrarias pequenas e independentes que nos bém precisávamos começar a formar outras
mantêm em circulação, e os trabalhadores pessoas para discutir os assuntos que ne-
da área do desenvolvimento social e ativistas cessitam ser tratados nos nossos livros. Foi
que não só contribuem com nosso trabalho então que surgiu a ideia de organizar um con-
como autores, mas também carregam nos- gresso anual. O primeiro Congresso Nacio-
sos livros a todos os eventos que organizam. nal do Tici foi em setembro do ano passado,
Mais importante, nossas impressoras (gráfi- quando publicamos também o primeiro livro
cas) nos dão a flexibilidade de pagar quando do coletivo. Depois desse evento, o Tici pediu
nos é possível – sem comprometer a quali- para a Adivaani gerenciar suas revistas tam-
dade –, um arranjo nos garante a produção bém. Essa experiência tem sido um exemplo
contínua do nosso material impresso. A dis- maravilhoso de como podemos compartilhar
tribuição sempre foi uma área dolorosa para a realização de ideias, sonhos e visões!
nós. O conteúdo produzido pela Adivaani pa- Como indígena, sei que com a questão
rece não agradar os grandes distribuidores. dos meios tecnológicos, a minha escolha de
Os distribuidores de um importante portal idioma é crucial. Disseminação já existe em
on-line nos recusaram, porque “os livros nossas línguas, as línguas regionais domi-
Adivasi não são bons” – e isso sem sequer nantes e o Hindi, mas não é suficiente para
verificá-los. Outro desafio que nos preocupa atrair atenção em âmbito nacional ou in-
é a luta contra os estereótipos e preconceitos ternacional. Aprecio muito os esforços que
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE TRACY DEVINE GUZMÁN 37
agora existem, e tenho muito orgulho deles. nos proteger com as habilidades da moder-
Duplicar os mesmos meios não vai nos de- nidade é urgente. Aprender o inglês através
legar mais reconhecimento, e é por isso que das narrativas Adivasi –histórias intelec-
elegi o inglês como o meio principal do meu tuais, criativas, poéticas e emocionantes que
trabalho. Estamos em um estado de emer- suplementam nossas tradições orais – per-
gência e precisamos fazer o maior trabalho mite-nos permanecer enraizados em quem
possível para reclamar o nosso lugar neste somos. Esse método de aprender engendra
país, como os primeiros cidadãos dele. uma vida digna. Nossa aprendizagem do
Como treinadora de comunicação em inglês através de conteúdo Adivasi é um
inglês do setor corporativo, observei a arma- projeto de afirmação, preservação, decolo-
dilha linguística em que caem muitos povos nização e empoderamento. Nossa pedagogia
indígenas ao se assimilarem à sociedade para ensinar o inglês é inédita. A maioria das
dominante. Nosso conhecimento e nossas crianças Adivasi que têm a oportunidade de
línguas são considerados “primitivos”. A estudar, sim, estão aprendendo inglês – de
educação moderna busca nos salvar desse alguma forma, de algum nível. Mas os livros
“atraso”, mas acaba fazendo o contrário. usados para praticar e aprender o idioma são
Somos educados em um idioma que não é de uma cultura e de um tempo alheios aos
nem nossa língua materna nem o inglês de nossos. Nosso projeto permite o uso das nos-
qualidade, o que nos deixa mal preparados sas histórias e dos nossos materiais. Nossos
para alcançar êxito no meio corporativo livros e recursos digitais são mais que con-
ou no meio acadêmico. O inglês se tornou teúdo de leitura. São materiais de aprendiza-
o meio oficial de documentação e comuni- gem e, mais importante ainda, representam
cação na Índia. Estamos empoderados só o nosso esforço para preservar a nós mesmos –
suficiente para ser redundantes na socieda- as raízes profundas e ancestrais que nos
de moderna e na nossa. Nossa capacidade enlaçam à nossa origem e ao nosso futuro.
de lutar por nossos direitos se limita pela Ao começar a escrever, iniciamos um
armadilha linguística, que se converte em movimento de decolonização e, em pouco
falta de oportunidades. tempo, através das minhas leituras das lite-
O inglês dá para os Adivasis uma opor- raturas das Primeiras Nações [do Canadá]
tunidade de nos defender como povo que se e dos povos Aborígenes da Austrália – dos
recusa a ser esquecido. Desconhecer o inglês escritores e ativistas –, começamos a sentir
nos rouba a oportunidade de competir, nos a inspiração para aumentar o nosso próprio
defender, ir adiante. A deslocação das nossas trabalho. Quando descobrimos Leanne Beta-
terras e florestas e a imposição da economia samosake Simpson20 explicando o conceito
de mercado nos negam oportunidades iguais de “ressurgência”, por exemplo, soubemos
para viver bem e nos sustentar. Minimiza-se, que uma versão nossa, da Índia, seria cru-
então, a probabilidade de sobrevivermos e, cial para construir solidariedade entre os
assim, perdemos muito mais – perdemos povos de diversas geografias e comparti-
tradições e conhecimento. A necessidade de lhar conhecimento e experiências com eles.
38 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Ler sobre o movimento zapatista em Chiapas, não significa ser definido somente por carac-
no México, foi para mim uma experiência terísticas físicas, culturais, históricas, geo-
emocionante. Apesar dos poucos contatos gráficas e políticas, mas também por como
e colaborações, esses laços proveitosos nos vivemos coletivamente com a hostilidade, a
motivam a continuar trabalhando. Tem sido exploração e a discriminação.
um processo atraente redescobrir nossas pró- Essa discriminação se manifesta em to-
prias vozes – como a de Ram Dayal Munda – das as instituições educacionais e em todos
21
e tornar disponível seu material para povos os ambientes de trabalho onde os Adivasis
indígenas em vários continentes. Minha têm conseguido vagas através dessas medidas
presença na Feira do Livro em Frankfurt me afirmativas. Por exemplo, a maioria dos edu-
permitiu mostrar nosso trabalho e medir as cadores que conseguem trabalho através de
respostas às vozes indíge- cotas é discriminada na sala
nas da Índia. Não fomos É irônico que haja mais dos professores, é tratada
apreciação por nosso trabalho
decepcionados. É irônico com silêncio, não é promo-
fora da Índia do que aqui
que haja mais apreciação vida etc. Os não Adivasis
na nossa terra natal. Nesse
por nosso trabalho fora da sentido, temos que construir preferem não ser tratados
Índia do que aqui na nossa laços mais fortes. por médicos Adivasi por-
terra natal. Nesse sentido, que pensam que tais pro-
temos que construir laços mais fortes. fissionais se formaram graças a concessões
Quero destacar dois assuntos que especiais e não por mérito. Nada, porém, fica
considero os maiores fracassos das políti- mais longe da verdade do que isso. Primeiro,
cas públicas vis-à-vis os povos indígenas. para entrar na universidade, tem que ser um
O primeiro é a negação do status de “povos Adivasi “elegível”, e aí param as concessões.
indígenas” na Assembleia Constitucional Depois disso, cada Adivasi é aprovado por
que enquadra a nossa Constituição [Na- mérito e nada mais.
cional], apesar de o termo “Aborígene” ter Ser Adivasi tampouco é condição sufi-
sido incluído em uma das primeiras versões ciente para beneficiar-se dos sistemas de co-
do documento. Segundo, o não reconheci- tas. Também há de ser “elegível” – condição
mento por parte do governo de nós como que deixa fora automaticamente uma grande
“povos indígenas” nos foros internacionais, porcentagem de Adivasis que estudam em
como nas Nações Unidas. Temos só o sta- instituições fracas nas suas próprias comu-
tus de “Tribos Programadas”, o que implica nidades natais. Não podem se classificar ape-
pela lei só poder buscar direitos e proteção sar das provisões. Não conseguem passar nos
como povos “atrasados”. Ser beneficiados exames ou nas entrevistas de trabalho no go-
das ações afirmativas ou dos sistemas de verno por causa da disparidade nos padrões
reservas e cotas pode ter dado aos Adivasis educativos entre as áreas rurais e urbanas.
uma oportunidade de sermos “assimilados” Então, [quem costuma passar] é o Adivasi
à cultura dominante, mas também trouxe formado, de segunda ou terceira geração,
mais segregação que inclusão. Ser Adivasi cujos pais vão para a cidade não só para
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE TRACY DEVINE GUZMÁN 39
aproveitar maiores oportunidades de vivên- ativistas ambientais não veem isso; estão
cia, mas também por causa da falta delas no cegos por seus esforços bem-intencionados
lugar de origem, onde os meios tradicionais de proteger o meio ambiente e não enxer-
têm sido destruídos por causa dos programas gam as pessoas que cuidam dele. Ao mesmo
de “desenvolvimento” e deslocação. Nas ci- tempo, enxergam os povos indígenas como
dades vivem Adivasis de várias gerações, ida- um “impedimento” aos projetos modernos,
des e profissões: trabalhadoras domésticas, científicos e especializados de conservação.
oficiais governamentais e estudantes, entre Nunca fazem consulta com os povos indí-
outros. Se nossa educação e nosso sistema de genas sobre tais projetos.
cotas deixassem provisões para os Adivasis Por outro lado, a intervenção da Survi-
trabalharem nas suas cidades natais, muitos val International na luta Niyamgiri contra
não as deixariam nunca. a empresa de mineração Vedanta revela as
Infelizmente, nossas lideranças polí- possíveis vantagens dessas colaborações. O
ticas e nossos decisores políticos têm sido povo Dongria Kondh de Niyamgiri conquis-
convencidos da necessidade do desenvol- tou uma vitória heroica para conservar suas
vimento político a todo preço e até têm in- colinas sagradas contra a poderosa empresa
vestido nessa ideia. Por isso, não apoiam os Vedanta Resources. Sob a Lei dos Direitos
Adivasis nem os seus direitos. Alguns têm Florestais, a Corte Suprema decidiu em
que se sacrificar para o bem maior da nação, 2013 que os Dongria Kondh teriam que de-
e [para muitos] devem ser os povos já mar- cidir, através de uma votação de consenso,
ginalizados. Não somos nada mais que um em 13 dos vilarejos impactados, se deixa-
recurso a ser explorado – sobretudo porque riam a empresa Vedanta prosseguir com a
vivemos em terras ricas em minerais. So- atividade de mineração em Niyamgiri. Os
mos uma verdade inconveniente na exis- Dongria Kondh votaram contra. Somando
tência dessas pessoas. Se nossos sistemas apoio, recursos, consciência e novas formas
de conhecimento e estilos de vida não fossem de visibilidade, a Survival International
considerados “atrasados” ou carentes de “so- conseguiu revigorar uma luta que já levava
fisticação”, não seríamos tratados como algo muitas décadas. Estabeleceram um prece-
menos do que seres humanos – como seres dente. Os direitos ambientais são também
inferiores ou objetos descartáveis. direitos indígenas, e os ativistas não de-
De uma perspectiva indígena, os di- veriam esquecer dos povos que vivem em
reitos indígenas e ambientais são um dia- ecossistemas e com eles.
grama de Venn, solapando-se em alguns Infelizmente, as prioridades dos po-
lugares e completamente separados em vos indígenas e as dos decisores políticos
outros. Os povos indígenas, através das não costumam ser as mesmas. Na Índia, os
experiências vividas e das filosofias que ativistas indígenas estão trabalhando em
emergem delas, compartilham um rela- todos os campos possíveis. O governo mais
cionamento simbiótico e orgânico com a se opõe à agitação e à resistência a favor
natureza e o meio ambiente. Mas muitos dos direitos territoriais. Os povos indígenas
40 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Os Ñuqanchik foram e são uma família para encontramos jovens como eu – indígenas,
mim; abriram a possibilidade de conhecer, andinos e amazônicos de diferentes orga-
de entender melhor minhas raízes, de co- nizações. Nós nos unimos e trabalhamos a
meçar a trabalhar – como falar e como me partir de qualquer ação mínima, pelo res-
expressar – para que jovens iguais a mim peito, pelo conhecimento e pela sobrevi-
se reconheçam e, por que não, sejam par- vência de nossos costumes e de nosso ser.
te do movimento indígena. Como não ser Também agradeço o Enlace Continental de
parte do movimento indígena? Como não Mulheres Indígenas das Américas (Ecmia).
ajudar, se como eu há muitas jovens vivendo Como mães e irmãs mais velhas, elas têm
com medo e vergonha, se nos ajudado a entender
morrem de vergonha de Até recentemente, eu mesma quando oferecem suas
nossos costumes, nossa tinha que me manter em silêncio. próprias experiências e
música e língua? Como Nunca fui de ficar calada, mas por nos ensinam com suas
não participar, se nos- temor ao que diriam, por temor à ferramentas, como os
discriminação latente e estrutural,
sos direitos individuais documentos e tratados
sempre tive medo de difundir, de
e coletivos não são re- internacionais, sobre a
dizer que eu não era desse lugar,
conhecidos, se a possi- que na verdade eu vinha de uma necessidade de que se
bilidade de conseguir comunidade [indígena] cumpram e se respei-
oportunidades iguais e tem nossos direitos; a
nos sentir parte da nação e ser aceitos e re- saber que estes são inatos, e a entender a
conhecidos ainda é uma quimera para um importância do impacto [do trabalho] em
país que com orgulho reconhece a Conquis- diferentes espaços; de nos fazer visíveis e
ta e o período colonial, e que ainda não toma de gerar um movimento indígena. Porém,
consciência e não se solidariza com seus estamos aquém do esperado. Todas as nos-
próprios componentes? sas boas intenções, nossos sentimentos e
Graças aos Ñuqanchik, consegui co- forças não são suficientes para atender às
nhecer outras pessoas, já que não estivemos situações que enfrentamos, como a pobre-
sós, mas com pais, mães, irmãs mais velhas za extrema, a gravidez das adolescentes, a
[...] que sabiam nos guiar. Porque na tarefa de falta de oportunidades, o aceso insuficien-
buscar como mudar nossa realidade, muitas te à justiça e à educação pertinentes. Essas
vezes caíamos em frustrações. Porque até são questões básicas e necessárias que não
nós mesmos perdíamos a esperança. Há mo- dependem de nós. Mas a realidade é que o
mentos em que até nossa própria gente não governo generaliza sem entender que, la-
se reconhece, não nos reconhecemos. Porque mentavelmente, somos nós os povos e as
ainda mantemos a ideia de que, por sermos de comunidades que vivemos essa realidade.
aldeias, de comunidades [indígenas], não so- Para conseguir contato com jovens
mos agentes de desenvolvimento e progresso. do país inteiro, recorremos à tecnologia,
Eu agradeço à Rede de Organizações mas também essa tarefa não é fácil, pois
de Jovens Indígenas do Peru (Reojip), onde os jovens não têm os meios para acessar
44 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Referências bibliográficas
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1995.
______. National indigenous reform agreement (closing the gap). 2012. Disponível em:
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DEVINE GUZMÁN, Tracy. Native and national in Brazil. Chapel Hill: UNC Press, 2013.
FRENCH, Jan Hoffman. Legalizing identities. Chapel Hill: UNC Press, 2009.
GÓMEZ, Francisca Lechaptois. Políticas públicas críticas para y desde América Latina.
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GUPTA, Smita. A life dedicated to preserving tribal cultures. The Hindu. Disponível em:
<http://www.thehindu.com/news/national/article2506981.ece>. Acesso em: 3
out. 2011.
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em: <https://www.hays.com.au/cs/groups/hays_common/@au/@content/
documents/digitalasset/hays_154080.pdf>.
Notas
2 Neste artigo, buscando ser fiel aos textos originais e sabendo que foge das
normas editoriais, adoto o gesto (político) dos colegas entrevistados de nomear
os povos indígenas, seus membros, idiomas e produtos culturais sempre com
letras maiúsculas.
4 [Tradução da autora.]
13 Mulher.
14 Crianças.
15 Para uma visão mais ampla da luta pelos territórios indígenas no sul da Bahia,
veja Tupinambá – O Retorno da Terra (2015), dirigido por Daniela Alarcon e
Fernanda Ligabue. Disponível em: <https://vimeo.com/126566470>.
19 “Scheduled tribe.”
22 Lei n. 29785, que conforme a Convenção 169 da OIT garante aos povos indígenas
e originários o direito de serem consultados sobre medidas legislativas ou
administrativas que afetem seus direitos coletivos, sua existência física,
identidade cultural, qualidade de vida ou seu desenvolvimento. Veja: MAYÉN, G.;
ERAZO, D. e LANEGRA, I. (2014).
Apêndice
1) Você poderia contar um pouco da sua história pessoal/familiar e como ela tem
influenciado o desenvolvimento do seu trabalho? Quais são os assuntos, pessoas
e comunidades que mais inspiraram (ou continuam inspirando) seu ativismo
intelectual e cultural?
2) Quem são os colaboradores mais essenciais no seu trabalho a favor do seu povo e
dos outros povos indígenas? Que grupos, populações e comunidades você busca
alcançar com a sua mensagem? Quem são seus adversários mais poderosos
ou mais difíceis de enfrentar? Há necessidades que só podem ser satisfeitas ou
problemas que só podem ser resolvidos através do trabalho colaborativo?
3) Você usa as redes sociais no seu trabalho? Quais? Como? Que tipo de conexões e
colaborações são possibilitadas ou facilitadas pelas “novas” tecnologias?
7) Como você entende a relação atual e a relação ideal entre os direitos indígenas
e o ativismo ecológico? Na sua experiência, quais são as vantagens e as
desvantagens de identificar o bem-estar dos povos indígenas com o bem-estar
do meio ambiente? Essas conexões servem para promover alianças produtivas
entre os povos indígenas e não indígenas? Ou, contrariamente, facilitam que
os interesses indígenas sejam engolidos (ou apropriados) pelos interesses e
paradigmas do ativismo meio ambiental?
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE TRACY DEVINE GUZMÁN 51
(DES)HUMANIDAD(ES)
E UNIVERSIDAD(ES)
Catherine Walsh
Este texto abre uma reflexão sobre a(s) ciência(s) humana(s) nas universidades cada vez
mais voltadas para uma lógica de empresa científica, profissionalizante e desumanizante, inclu-
sive nos países da chamada “onda rosa” da América do Sul. A partir do caso concreto do Equador,
faz-se uma análise do funcionamento de novos padrões de poder, neodisciplinamento e moder-
nização no ensino superior “pós-neoliberal”, que exaltam a “ciência universal”, promovem a
mercantilização e estabelecem critérios de controle, gestão e valor sobre saberes e seres humanos
E
ste ensaio enfoca a situação atual remetem-nos a paradigmas ideológicos da
da(s) ciência(s) humana(s) e dos esquerda branca e eurocêntrica, ao ethos
estudos culturais-sociais-huma- masculino paternalista (MENDOZA, 2010)
nos latino-americanos em um mundo cada e a uma lógica civilizatória, classificatória,
vez mais desumanizante, um mundo onde desqualificadora e disciplinante – de seres e
também estão incluídos, e em particular, os saberes – sem dúvida de violência colonial.1 É
Estados da chamada “guinada à esquerda” esta conjuntura caracterizada, por um lado (e
ou “onda rosa” da América do Sul. principalmente do olhar de fora), por guina-
De fato, o fascínio quase cego de alguns das “progressistas” de aspecto pós-neoliberal
esquerdistas latino-americanistas (ver, e, por outro lado, por seu esforço de “moder-
por exemplo, BEVERLEY, 2013) por essa nização” e “neodisciplinamento”, inclusive no
“onda”, com seus governos e governantes, âmbito acadêmico-científico, que compõe o
e por um Estado que atua como principal pano de fundo destas minhas reflexões.
agente de mudança das estruturas de poder, Parto de alguns questionamentos gerais:
contribui não só para a subalternização dos o que entendemos hoje por “ciências huma-
atores cuja insurgência político-epistêmica nas” e qual é o lugar que ocupam nas univer-
tornou possível a transformação do projeto sidades cada vez mais voltadas a uma lógica
social-constitucional, mas também para sua da empresa científica, profissionalizante e
desqualificação e eliminação como coletivo desumanizante? O que fazer diante do posi-
pensante humano. Tais posturas, que fazem cionamento dos estudos sociais, culturais e
parte também das estratégias discursivas humanos como “saberes inúteis” e como po-
de “infantilização” de Álvaro García Line- demos questionar, no seu interior, os seres e
ra, na Bolívia, e Rafael Correa, no Equador, saberes – e, portanto, sobre o funcionamento
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE CATHERINE WALSH 53
mais detalhadamente a seguir o caso do Equa- hegemônica e ciência periférica”, tudo sob
dor, um caso que me diz respeito diretamente. uma mentalidade de desconfiança e uma po-
lítica de vigilância, disciplinamento e con-
A UNI-versidade e os saberes úteis da trole (VILLAVICENCIO, 2013a: 219). Para
“Revolução Cidadã” equatoriana Villavicencio, professor e ex-diretor do que
Em repetidas ocasiões, o presidente era o Conselho de Avaliação e Acreditação do
equatoriano Rafael Correa qualificou de “hu- Ensino Superior (Conea), “estamos diante da
manista” seu projeto de governo da chamada criação de uma universidade fragmentada
“Revolução Cidadã”; “humanista, porém com em tipologias absurdas e com espaços aca-
os pés bem firmes no chão”. A contribuição dêmicos limitados e hierarquizados” (2013a:
da nova matriz produtiva – eixo da política 217). A lógica classificatória, a decadência
atual – é “o ser humano acima do capital”, disciplinar e universitária (GORDON, 2013;
diz Correa. É necessário olhar para a base PRADA, 2015) e a inutilidade de estudos so-
produtiva, “mas também com humanismo, ciais, culturais e humanos estão em plena vi-
não como fazia o neoliberalismo: salários li- gência, redesenvolvimento e execução.
vres, competitividade com base na força de A partir da nova Lei Orgânica do Ensi-
trabalho. Não, é preciso fazer coisas novas e no Superior (Loes), de 2010, existem novas
melhores” (LIZARADO, 2014). normas e novas medidas de avaliação que
Uma dessas “coisas novas e melhores” pretendem melhorar as universidades do
tem a ver com conhecimento, ciência e en- país e seu empenho científico-acadêmico,
sino superior. Ao transplantar modelos e estabelecendo um modelo que desacredita
esquemas de “conhecimento científico” de o nacional, reifica o “primeiro mundo” e seu
outras partes (especialmente dos Estados conhecimento “universal” e concretiza a
Unidos, da Europa, da China e da Coreia do função prática e produtiva da universidade,
Sul) e suscitar uma falsa noção de “universa- função que tem sua utilidade ao projeto polí-
lismo do conhecimento” (VILLAVICENCIO, tico modernizante e neodesenvolvimentista
2013a), o sistema de ensino superior está se do governo atual. Como afirma Villavicencio,
distanciando das realidades locais, do pro-
jeto de sociedade e Estado intercultural e Uma falsa ideia de universalismo do
plurinacional previsto na Constituição de conhecimento pareceria ser o princípio
2008 e dos seres e saberes pactuados com que está norteando as políticas do ensino
ancestralidades, territorialidades e postu- superior [...]. Um entusiasmo incomum
ras-perspectivas da Abya Yala e do “sul”. pela pesquisa à beira do conhecimento
Com a modernização, vem o individualis- científico como solução para os problemas
mo e a individualização do ser humano, as do país e a chave para alcançar o bem viver
necessidades do Estado (incluindo a tecno- está configurando mecanismos burocráti-
logia e o extrativismo) sobre as necessida- cos na definição e no controle da agenda de
des comunitárias e coletivas, bem como o pesquisa [...], uma espécie de capitalismo
aprofundamento da “brecha entre ciência acadêmico que nega a universidade como
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE CATHERINE WALSH 55
nacional; seu desenvolvimento e seu estudo a produção dos setores estratégicos nacio-
fora desse marco – inclusive nas esferas edu- nais. Promove o acesso ao conhecimento
cacionais – são implausíveis. São conside- e às tecnologias e a sua geração endógena,
rados contraproducentes para a “Revolução considerados como bens públicos.
Cidadã”, sua política de interculturalidade
funcional e sua meta de erradicar a pobreza Para a Senescyt, o objetivo é:
e levar o país à modernização global.
Até fazer com que os bolsistas retornem Incorporar professores pesquisadores
ao país com seu título (e conhecimento) na e especialistas de alto nível internacional
mão, o plano é promover uma importação para desenvolverem no país atividades de
maciça de PhD estrangei- pesquisa científica, docência,
ros. Uma estratégia – de [...] existem novas normas e difusão e transferência de co-
curto prazo – é o projeto novas medidas de avaliação nhecimento em instituições
Prometeu Velhos Sábios que pretendem melhorar as públicas e universidades que
(Prometeo Viejos Sabios), universidades do país e seu puderem recebê-los. […] Ao
que convida pesquisadores empenho científico-acadêmico, contribuir para áreas estra-
estrangeiros (e equatoria- estabelecendo um modelo tégicas do Equador, como Hi-
nos radicados no exterior) que desacredita o nacional, drologia, Oceanografia, Meio
reifica o “primeiro mundo” e
com PhD para voltarem ao Ambiente/Recursos Natu-
seu conhecimento “universal”
país para uma permanên- rais, Meteorologia, Vulcano-
e concretiza a função prática e
cia de um ou dois anos com produtiva da universidade [...] logia, Petroquímica/Petróleo,
salários que ultrapassam Hidrocarbonetos, Energia,
de longe os dos professores equatorianos. Geociência/Geologia, Minas, Metalurgia,
Morales Ordoñez (2013) revisita a justifica- Geografia, Recursos Hídricos, Recursos Flo-
tiva e a descrição feitas pela Senescyt: restais, Gás Natural; e Prevenção de Riscos/
Catástrofes, […] o Projeto Prometeu Velhos
Com base na referência à mitologia Sábios é a expressão de um dos programas
grega que inspirou o nome do projeto, neste mais lúcidos e visionários. Trata-se, real-
caso coloca-se o conhecimento como o ob- mente, de potencializar a mobilidade acadê-
jeto a recuperar por ser o mecanismo mais mica e científica inversa, ou seja, aquela que
poderoso e direto para alcançar o bem viver recebe talentos em vez de exportá-los, como
ou o “Sumak Kawsay”, que é a aspiração na- tem sido a prática equatoriana (MORALES
cional consagrada na norma fundamental do ORDOÑEZ, 2013).4
Estado do Equador e executada na cotidia-
nidade pública e privada social deste país. O Uma outra estratégia, de duração mais
Projeto Prometeu Velhos Sábios representa longa, é a contratual. Atualmente, o governo
um mecanismo de investimento social para está oferecendo contratos dentro das quatro
gerar conhecimento que fomente o desen- novas universidades – conceitualizadas, pla-
volvimento econômico, a competitividade e nejadas e administradas pelo Estado – abertas
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE CATHERINE WALSH 59
Catherine Walsh
Coordenadora do curso de doutorado em estudos culturais latino-americanos e da
cátedra de estudos afro-andinos. Professora titular da Universidade Andina Simón Bolivar,
sede no Equador, nas áreas de estudos sociais e globais e de letras. Seus interesses na
área da pesquisa incluem: interculturalidade crítica e decolonialidade, tomando como
eixos centrais a geopolítica do conhecimento, a ancestralidade e as filosofias de vida/
existência, a educação, o direito, a refundação do Estado, o pensamento e a pedagogia
decoloniais e as lutas em torno da ideia de gênero e dos direitos da natureza.
O presente artigo é uma reedição e atualização do artigo publicado originalmente
em 2014 na revista eletrônica alter/nativas. Disponível em: <http://alternativas.osu.edu/
es/issues/autumn-2014/essays2/walsh.html>. Acesso em: 15 fev. 2016.
Referências bibliográficas
LIZARAZO, Nelsy. Rafael Correa: Este modelo es humanista pero con los pies bien
puestos sobre la tierra. Pressenza International Press Agency, 2014. Disponível
em: <http://www.pressenza.com/es/2014/01/rafael-correa-este-modelo-es-
humanista-pero-con-los-pies-bien-puestos-sobre-la-tierra/>. Acesso em: 15 set.
2014.
______. Inicia “el boom del conocimiento en Ecuador”. 2014b. Disponível em: <http://
www.yachay.gob.ec/inicia-el-boom-del-conocimiento-en-ecuador/>.
Notas
6 Além disso, é preciso também observar que tanto esse Código quanto as três
emendas constitucionais relacionadas (discutidas na Assembleia Nacional em
janeiro de 2016) destacam a utilidade dos saberes ancestrais nessa economia de
conhecimento, permitindo inclusive sua venda pelos membros das comunidades
como estratégia para superar a pobreza.
64 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
EUROPA E DIVERSIDADE –
O VELHO MUNDO CONFRONTA O NOVO
EM SI MESMO
Toby Miller
A diversidade no mundo moderno vai além da cor da pele. É gênero, idade, deficiência,
orientação sexual, extração social e – mais importante, no que me diz respeito – diversidade
de pensamento
Idris Elba (citado em Martinson, 2016)
• Búlgaro: • Grego:
Единство в многообразието Ενωμένοι στην πολυμορφία
• Croáta: Ujedinjeni u različitosti • Húngaro: Egység a sokféleségben
• Tcheco: • Irlandês: Aontaithe san éagsúlacht
Jednotná v rozmanitosti • Italiano: Uniti nella diversità
• Dinamarquês: • Letão: Vienoti daudzveidībā
Forenet i mangfoldighed • Lituano: Suvienijusi įvairovę
• Holandês: • Maltês: Magħquda fid-diversità
In verscheidenheid verenigd • Polonês:
• Inglês: United in diversity Zjednoczeni w różnorodności
• Estoniano: • Português: Unidade na diversidade
Ühinenud mitmekesisuses • Romeno: Unitate în diversitate
• Finlandês: • Eslovaco: Zjednotení v rozmanitosti
Moninaisuudessaan yhtenäinen • Esloveno: Združeni v različnosti
• Francês: Unie dans la diversité • Espanhol: Unida en la diversidad
• Alemão: In Vielfalt geeint • Sueco: Förenade i mångfalden1
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE TOBY MILLER 65
N
asci em Leicester, uma cidade da
região leste do centro da Inglaterra,
o East Midlands, em 1958. Era uma
cidade industrial, branca e enfadonha, que es-
tava a ponto de perder sua base manufatureira,
concentrada em têxteis, vestuário e calçados,
assim como seu papel de entrepôt para o car-
vão a caminho de Londres. Tinha, no entanto,
permanecido firmemente do lado revolucio-
nário durante a Guerra Civil do século XVII, e
tinha a tradição de abrigar centenas de grupos
religiosos (POPHAM, 2013). Sugestivo.
Com a iminente expulsão dos sul-asiá-
ticos da África Oriental e a emergência da
Grã-Bretanha na Europa no meio dos anos
1970, os preocupados habitantes de Leicester
puseram um anúncio no Uganda Argus em
1972 que dizia o seguinte: “AS CONDIÇÕES
ATUAIS NA CIDADE SÃO MUITO DIFE-
RENTES DAQUELAS ENCONTRADAS PE-
LOS PRIMEIROS MIGRANTES”, e avisaram
sobre condições difíceis quanto ao bem-estar demografia da cidade mudou. Essa migração
social e emprego (In: POPHAM, 2013). coincidiu com a admissão da Grã-Bretanha
Esse anúncio, no entanto, assim como as no que é agora a União Europeia, o que aplicou
histórias ligadas ao desejo da cidade de evi- um golpe adicional ao racismo provinciano
tar uma imigração asiática, teve o efeito pa- e ao monolinguismo do país. Hoje, Leicester
radoxal de atrair essa mesma migração! Eles está oficialmente orgulhosa de ser uma cida-
colocaram Leicester no mapa das possibili- de com maior presença de minorias. Setenta
dades para profissionais e empresários, que idiomas são falados numa população de me-
estavam prontos para comprar e reequipar as nos de 350.000 habitantes. Há centros jain e
fábricas que o capital branco abandonava. A budistas, duas sinagogas, mais de uma dúzia
66 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
de templos hindus, diversos gurdwaras dos exclusiva” (MAHMUD, 1997: 633; ver também
sikh, mais de setenta mesquitas, uma cozinha HINDESS, 1998). Vinculando fluidamen-
extraordinariamente variada – e um time de te nacionalismo a direitos políticos, em sua
futebol que pertence às concessionárias de maioria, essas teorias não renegaram o impe-
duty-free de aeroporto da Tailândia.2 Os mo- rialismo nem declararam como igualmente
toristas de táxi cada vez aprendem mais o legítimas as diferentes culturas, justificando
francês porque adolescentes chinesas, filhas a sujeição extraterritorial em base ao conceito
de executivos, que se encontram em Leicester de que a soberania só era legítima se fosse eco-
para fazer faculdade, os chamam despreocu- nomicamente dinâmica e levasse à autonomia
padamente na rua e lhes pedem para levá-las individual e não à diversidade social (FALK,
para o sul da França (são apenas 1.544 km 2004: 1011; JAGGI, 2000; PAREKH, 2000: 45).
para se chegar a Cannes), e o aeroporto local Muitos liberais filosóficos continuam a
oferece voos semanais para o México.3 insistir num idioma e numa nação comuns
Esse pequeno lugar, antes acometido como pré-requisitos para uma cidadania
por uma redução de sua base econômica e efetiva (LISTER ,1997: 52; ZACHARIAS,
crescentes preconceitos culturais, tornou-se 2001; ABIZADEH, 2002). Eles defendem
uma palavra de ordem para a diferença, a um desenvolvimento histórico de direita
harmonia – e o tédio (ainda). Eu voltarei a que ocorreu em três estágios: uma facção
esse tema no âmbito de uma discussão críti- de oligarcas; o surgimento de partidos polí-
ca da diversidade na Grã-Bretanha e o lugar ticos; e finalmente o estado de direito, agin-
dos latino-americanos lá. No meio tempo, do sem levar em conta afinidades pessoais
procurarei explicar os embates da Europa ou coletivas (SCHUDSON, 1998: 8). Essa
contemporânea no que diz respeito a essas maneira de pensar foi uma extrapolação
questões. Por que a diversidade é tão estra- do conceito de indivíduo como sujeito so-
nha para a Europa, em oposição à sua posição berano e racional, e se baseou no primado
ideológica central na América Latina através da lei, e numa ideologia e numa governan-
da sabedoria herdada do mestizaje? ça transparentes para criar uma socieda-
A história da Europa é caótica, atormen- de justa. O Estado era um dispositivo para
tada e global, forjada pelos encontros belico- arbitrar disputas entre os partidos que não
sos entre norte, sul, leste e oeste. A conquista pudessem ser solucionadas pelo mercado,
colonial foi um “complemento” à “construção ou para retificar problemas nas áreas em
positivista do Estado no próprio país”, com os que os mercados haviam falhado – isto é,
massacres sendo legitimados pelo capitalismo onde havia desigualdade sistemática.
e pelo nacionalismo (ASAD, 2005: 2). Os governos preservaram a liberdade
Os filósofos liberais dos séculos XIX individual, negociando suas próprias neces-
e XX viam, no entanto, a Europa como o re- sidades de controle contra o direito de seus
sultado de “identidades fixas, sentimento cidadãos de serem silenciosos, barulhentos
nacional descomplicado, soberania indi- ou qualquer outra coisa que não interfira com
visível, homogeneidade étnica e cidadania o direito alheio ao mesmo tipo de conduta.
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE TOBY MILLER 67
Dizia-se que a melhor maneira de fazer isso suscetível de causar dificuldades”; solicitar
era fiscalizar o limite que separasse a vida uma nacionalidade significa renunciar à outra
privada do poder público. As responsabilida- (ALEINIKOFF, 2000: 137; BAUBÖCK, 2005:
des e os direitos foram dissociados das iden- 6; KALEKIN-FISHMAN, PITKÄNEN, 2007).
tidades racial, étnica, linguística, religiosa, A ideia de lealdades divididas por iden-
de gênero e de outras identidades coletivas tificações culturais híbridas sempre foi difí-
que foram separadas do domínio público em cil para a teoria e a prática da cidadania, que
nome de “uma justiça neutra e de uma igual- tende a exigir unidade mais do que diversi-
dade formal” (COWAN et al., 2001: 2). dade. As cidadanias múltiplas instituciona-
Esse tipo de filosofia liberal está rela- lizam uma subjetividade dividida. O impacto
cionado aos ideais republicanos de virtude vai mais além do questionamento do voto,
segundo os quais as pessoas se distanciam do serviço militar e do auxílio diplomático,
ou renunciam a suas afiliações originais no atinge o âmago de uma relação afetiva com
interesse de um bem não sectário, secular o Estado soberano e gera contradições até
e nacional que possa tolerar a diversidade mesmo nos países mais chauvinistas, dando
no domínio privado, mas insiste na unidade um indício da fragilidade da cidadania. No
em público, assegurando assim aos cidadãos caso britânico, assim como para outras po-
um tratamento igualitário pelos governos tências imperiais europeias, isso levou a uma
(BARRY, 2001). Assim, nos países baixos, na confusão sobre o status da cidadania das fa-
Eslovênia e em Portugal, a cidadania repousa mílias britânicas constituídas ou transfor-
nas competências linguísticas. Na Suécia, madas nas colônias. Houve uma liberalização
depende de se levar uma “vida respeitável”. gradual por motivos práticos entre meados
O “apego” à cultura local é um critério na dos séculos XIX e XX6 que acabou se tornan-
Croácia, enquanto na Romênia é o conhe- do uma norma da União Europeia (UE).
cimento da cultura e da história (MILLER, As diferenças culturais fazem com que
2007). De acordo com esses ideais de uni- as nações sejam alteradas pelos idiomas, re-
dade, os migrantes devem “distanciar-se ligiões, cozinhas, vestimentas e sentidos de
das características culturais” (CASTLES, identidade de suas populações de migrantes,
DAVIDSON, 2000: 12). especialmente quando estes vêm de países
A Convenção da Haia de 1930 sobre anteriormente escravizados/colonizados;
Determinadas Questões Relativas aos Con- donde o famoso slogan dos anos 1970 foi po-
flitos de Leis sobre a Nacionalidade declara pularizado por ativistas imigrantes no Rei-
que “toda pessoa tem direito a uma nacio- no Unido: “Nós estamos aqui porque vocês
nalidade e não mais do que uma”.4 O que foi estavam lá”. A crescente realidade é que um
endossado pelo Conselho Europeu em 1963, “número cada vez maior de cidadãos [...] não
na convenção sobre a redução dos casos de na- tem o sentimento de pertencimento. Isso, por
cionalidade múltipla e sobre as obrigações mi- sua vez, solapa a base do estado-nação como
litares em casos de nacionalidade múltipla,5 lugar central da democracia” (CASTLES,
que declara que ter mais de uma cidadania “é DAVIDSON, 2000).
68 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
satisfação 25 milhões de russos étnicos per- início deste trabalho em todos os seus idio-
manecerem na área a que se refere como “o mas oficiais (ver nota 1), apoia-se suposta-
exterior próximo” (RICH, 2003). As antigas mente num conjunto de políticas culturais.
repúblicas da União Soviética tiveram duas Contudo, o ideal animador evocado nessa
opções ao lidar com essas minorias conside- frase de efeito não é um indicador confiável
ráveis e frequentemente abastadas: ou pro- dos programas da União, que há tempos vêm
por um nacionalismo cultural retributivo que sendo baseados numa agenda norteada por
marginalizasse o idioma russo e estabeleces- critérios financeiros e de segurança. A po-
se critérios religiosos, raciais e linguísticos lítica cultural foi centrada por 40 anos na
para a cidadania (o que foi Guerra Fria, no terrorismo,
[...] intervindo para lutar
feito pela Estônia e a Letônia, na eficiência econômica, em
contra a discriminação no
que relegaram os russos da Hollywood e na integração
setor privado e instituindo
posição de responsáveis por cotas para a contratação às sociedades de acolhimen-
“estabelecer a agenda cul- de minorias [...] to. Espera-se das mídias que
tural na esfera pública” à de ao mesmo tempo informem
responsáveis por fazê-lo na “esfera privada/ e representem os migrantes, reparem as
comunal”); ou adotar uma pragmática políti- injustiças dos estereótipos, e incentivem a
ca cívica que oferecesse direitos baseados em identificação com a Europa, funcionando
território, lealdade e trabalho (como foi feito também como indústrias eficientes e eficazes.
na Ucrânia e no Cazaquistão). Os primeiros Por seu lado, os migrantes são vistos como um
procuraram, então, apaziguar os conflitos duplo alvo: do Estado, para assegurar a lealda-
resultantes por meio de escolas em idioma de, e do comércio, para assegurar o consumo
russo e grupos culturais. Ao mesmo tempo, (MATTELART, D’HAENENS, 2014).
mudaram sua imagem cultural, renegando os A religião frequentemente ameaçou es-
termos “báltico” e “pós-soviético” em favor ses projetos. Esteve no centro de inúmeros
de “escandinavo” e “pré-União Europeia”. É conflitos europeus ao longo da história, mas
desnecessário dizer que a perspectiva de se pensava-se que estivesse seguramente con-
tornarem membros da UE e terem acesso a finada a um passado obscuro, transcendido,
subsídios mediante adesão à Convenção Eu- que existiu antes que a verdade do secula-
ropeia sobre a Nacionalidade serviu para “in- rismo se estabelecesse. Reconsiderem essa
centivá-los” a incorporar as minorias russas ideia, por favor.
(TIRYAKIAN, 2003: 22; LAITIN, 1999: 314-
17; ZACHARY, 2000; VAN HAM, 2001: 4; Religião
BAUBÖCK, 2005: 2-3, 5; FELDMAN, 2005).8 A desconfiança quanto à religião não se
Embora continuem sendo cidadãos dos limita ao Islã, mas os europeus a consideram
países-membros, espera-se dos europeus que uma ameaça maior às suas culturas nacio-
transcendam suas diferenças e compartilhem nais do que outras crenças e fé (incluindo até
“valores culturais comuns” (CASTLES, DA- mesmo o ateísmo). [...] Os povos europeus
VIDSON, 2000: 12). O lema da UE, citado no superestimam amplamente a porcentagem
70 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
muçulmana de suas populações [...] em mé- do Islã não representa quase nada e provavel-
dia. Os franceses consultados achavam que mente nunca representará. A porcentagem
31% de seus compatriotas eram muçulmanos, total de população muçulmana em toda a
em comparação com um número real que se Europa passou de 4% em 1990 para 6% em
aproxima dos 8% (Islam in Europe, 2015). 2010. Até 2030, calcula-se que os muçulma-
nos representem 8% dos europeus. Em 2010,
Muitas iniciativas europeias recentes havia 4,8 milhões de muçulmanos na Alema-
voltadas para a “diversidade” vão de encon- nha (5,8% da população do país) e 4,7 milhões
tro às políticas de multiculturalismo à me- de muçulmanos na França (7,5%). Na Europa,
dida que seu objetivo explícito é “integrar” como um todo, a maior população muçulma-
as minorias étnicas no mundo pós o Onze de na é a da Rússia, com 14 milhões (10%).9
Setembro – começando com as minorias de A população muçulmana da Alemanha
fé muçulmana, vistas como um perigo cres- é essencialmente turca, mas inclui tam-
cente à coesão nacional. De fato, as políticas bém pessoas nascidas no Marrocos, Iraque,
voltadas para a diversidade cultural podem Kosovo e na Bósnia-Herzegovina. Na França,
sob muitos aspectos ser interpretadas os cerca de três milhões e meio de muçulma-
como sendo parte de uma ampla estratégia nos nascidos no exterior vêm essencialmen-
para melhorar a “integração” das minorias te das antigas colônias: Argélia, Marrocos e
étnicas de modo a aumentar a segurança Tunísia. A maioria das pessoas na França,
na Europa ao reduzir aparentes ameaças Grã-Bretanha e Alemanha vê com bons olhos
(MATTELART, D’HAENENS, 2014: 232). os muçulmanos. A opinião espanhola é mais
ambígua, enquanto opiniões negativas pre-
Na Europa, historicamente, os debates dominam na Polônia e na Itália. Enquanto
sobre a religião centravam-se na comensura- 36% dos alemães de direita não gostam do
bilidade do protestantismo e do catolicismo Islã, apenas 15% da esquerda pensam da
e de seu relacionamento dentro e entre os mesma forma. A diferença entre esquerda e
estados. Hoje, a questão é o Islã, tanto como direita é a mesma na Itália e na França. Na
referência racial quanto como representação França, Bélgica, Alemanha, Grã-Bretanha e
de uma alternativa governamental ao secula- nos países baixos, a preocupação quanto ao
rismo. Jürgen Habermas (2006) explica que crescimento das comunidades muçulmanas
o terror desterritorializado de atores estatais levou a pedidos para restringir a migração. Os
e não estatais foi despertado por uma potente próprios muçulmanos estão em grande parte
mistura de fé, fraude, etnicidade e economia satisfeitos com uma separação entre igreja e
em resposta a violência, provocações e feu- Estado que leva a dissociar fé de lealdade.10
dos ocidentais, principalmente no mundo O sentido de incomensurabilidade e a
árabe e no sul da Ásia, mas também nos pró- impossibilidade de se construir uma ponte
prios países europeus de acolhimento. ou atenuar as diferenças entre os grupos
Do ponto de vista demográfico, a “amea- dominantes da Europa e suas minorias mu-
ça” supostamente levantada pelo crescimento çulmanas é muito forte, apesar dos dados,
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE TOBY MILLER 71
antigos, mas infringindo as leis que um equilíbrio entre o apoio a “uma comu-
se aplicam aos demais; nidade de indivíduos e uma comunidade de
• os ciganos/roma/boêmios/gitanos/ comunidades” (JOHNSON, 2000: 406, 408;
tziganos/rom: insistem que seus fi- RUNNYMEDE COMMISSION, 2000: 176-
lhos passem menos tempo na escola 77, 240; SIAN, 2015).11
do que outros residentes do Reino A retenção das normas culturais pode
Unido por causa das normas peri- impedir que ocorra uma mudança dinâmica
patéticas do grupo; e aprisionar a autonomia individual. Isso leva
• os hindus britânicos: pedem que as a casos complexos de limites, como quando
autoridades os deixem imergir as uma mulher britânica se recusou a aceitar
cinzas de seus mortos nos rios. os planos de seus pais muçulmanos para
um casamento arranjado. Eles pediram a
O Estado, entretanto, tem seus limites: intervenção do Estado em nome da preser-
vação cultural, citando como precedente as
• os médicos que clinicam são obriga- isenções dadas aos sikhs quanto ao uso dos
dos a denunciar os casos suspeitos e capacetes de segurança. Esse é um caso em
reais de mutilação genital feminina, que medidas projetadas para proteger mi-
sob pena de detenção; norias contra o assédio externo na realida-
• as faculdades universitárias devem de as isolam de divergências internas, com
relatar os casos de “radicalização” o Estado policiando a observância religiosa
entre estudantes. e a dinâmica familial do poder. Nesse caso
em particular, o tribunal decidiu em favor
Aqui está o nó do problema: as culturas da mulher, citando a prioridade de proteger
das minorias devem ser protegidas contra direitos individuais e questionando a repre-
a regra externa em todos os casos? Seus sentatividade dos autodesignados porta-vo-
membros devem ser protegidos contra a zes da comunidade (BENHABIB, 2002: 19;
opressão interna quando direitos humanos KYMLICKA, 1995: 2, 35-36).
fundamentais se veem comprometidos em Podemos ver custos e benefícios em
nome da cultura, religião, ou o que quer que pertencer a minorias tão visíveis como os
seja, ou o bem-estar alheio está ameaçado? sikhs e muçulmanos. E quanto àqueles que
O que deve ser feito em relação às insegu- são invisíveis como minorias, evitando assim
ranças econômicas e culturais dos países o opróbrio público, mas não tendo acesso a
de acolhimento, que podem ser projetadas serviços sociais e outros direitos?
sobre os recém-chegados? Quanto da tole-
rância do liberalismo deve ser celebrada ou Os latino-americanos
contrastada com a intolerância devota da na Grã-Bretanha
religião? Quando grandiosas narrativas de Oitenta e cinco por cento dos latino-
coletividade e individualismo colidem uma americanos que vivem na Grã-Bretanha e
com a outra, o Estado precisa encontrar estão capacitados para trabalhar assim o
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE TOBY MILLER 77
vinham nos anos 1970 em busca de asilo; hoje sem os Latinos Seria Imunda”. Setenta e
elas vêm em busca de realização econômi- cinco por cento se queixam de discrimi-
ca. Há poucas crianças ou idosos, e aproxi- nação por parte dos empregadores, das
madamente um terço não sabe falar inglês. pessoas que encontram no dia a dia e dos
Aproximadamente 20% não têm documentos serviços públicos. Vivem numa margina-
ou não têm status jurídico; 25% são cidadãos lidade alienante, especialmente por conta
britânicos; 20% têm passaporte da UE, mui- da limitada oferta de aulas de inglês a um
tas vezes através da Espanha; muitos vieram preço que possam pagar (MUIR, 2012;
de lá por causa da forte recuperação britânica MCILWAINE et al., 2013; MILMO, 2013).
depois da Grande Recessão (MCILWAINE et Vários grupos de defesa dos interesses
al., 2013; CUERVO, 2014). latino-americanos surgiram no terceiro se-
Com 85% de pessoas empregadas, sua tor britânico durante os anos 1980. Levan-
taxa de emprego é a mais alta de qualquer tavam inicialmente questões ligadas aos
grupo étnico em Londres, incluindo a maio- direitos humanos nas ditaduras em busca de
ria anglo-celta. A maioria desses trabalhos solidariedade popular e pressão diplomáti-
é de natureza proletária, com segurança e ca. Houve uma transição ao longo do tempo
salário condizentes. Embora 70% dos lati- da política internacional para a autoajuda
no-americanos tenham instrução superior, coletiva. Assim, o antigo Chile Democra-
sua ida para a Grã-Bretanha leva geralmen- tico é agora a organização Indoamerican
te a uma mobilidade descendente no seu Refugee and Migrant Organization.14 Uma
status em comparação com a que tinham mudança de foco das questões ligadas aos
no local de origem (94% declaram que sua direitos humanos para a sobrevivência no
posição social decaiu depois que chegaram). exterior traduz não somente a democratiza-
Trabalham nos precários setores de servi- ção da América Latina nos últimos quinze
ços ou construção, em dois ou três empre- anos, mas também o aumento da migração
gos efetivamente de meio expediente, cada para o Reino Unido, motivada por espe-
um dos quais paga menos do que o salário ranças econômicas, mas prejudicada pela
mínimo londrino. Entretanto, há também desigualdade e pela pobreza. Assim, a Coa-
migrantes que são estudantes e residen- lition of Latin Americans no Reino Unido
tes temporários e têm expectativas de in- oferece por meio da mídia dicas, auxílios
gresso na esfera profissional e empresarial social e econômico, contatos, ligações e
(MCILWAINE et al., 2013).13 testemunhos.15 A Latin Elephant apresen-
Em termos de diversidade e identifica- ta um discurso contrário à mensagem pre-
ção, 40% aderem à ideologia latino-ameri- dominante dos promotores imobiliários de
cana de mestizaje, e o resto se autodenomina Londres, que desejam transformar bairros
branco ou latino-americano. Alguns la- de Londres, como Seven Sisters e Elephant
tino-americanos se referem a si mesmos & Castle, que têm sido centros de negócios
informalmente como “latinos britânicos” latino-americanos. 16 A Latin American
ou “invisíveis” e aderem ao slogan “Londres Women’s Rights Service é:
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE TOBY MILLER 79
Toby Miller
Cientista social interdisciplinar britânico/australiano/norte-americano. É autor e
editor de mais de 30 livros, publicou ensaios em mais de cem publicações especializadas
e coleções editadas. Atua frequentemente como comentarista convidado em programas
de rádio e televisão. Been There, Done That. An Account of how I Got to Be who I Am
Professionally é sua mais recente publicação.
Suas atividades como professor e pesquisador abrangem as áreas de mídia, esportes,
trabalho, gênero, raça, cidadania, política e política cultural, bem como o sucesso de Hollywood
fora dos Estados Unidos e os efeitos adversos do lixo eletrônico. A obra de Miller já foi tradu-
zida para os seguintes idiomas: chinês, japonês, sueco, alemão, turco, espanhol e português.
É acadêmico de mídia em residência em Sarai, no Centre for the Study of Developing
Societies (Índia); becker lecturer na Universidade de Iowa; bolsista do Queensland Smart
Returns (Austrália); professor honorário do Center for Critical and Cultural Studies, Univer-
sidade de Queensland; bolsista visitante do programa CanWest no Fórum Global de Alberta
(Canadá); e colaborador de pesquisa internacional do Centre for Cultural Research (Austrália).
Atualmente é professor de jornalismo, mídia e estudos culturais na Universidade de Car-
diff e de estudos de políticas culturais na Sir Walter Murdoch School, da Universidade Murdoch.
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2.
NOVO CENÁRIO MIDIÁTICO
E A GEOPOLÍTICA DA
COMPUTAÇÃO: OS DESAFIOS
DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
OS DESAFIOS DO NOVO
CENÁRIO MIDIÁTICO PARA
AS POLÍTICAS PÚBLICAS
George Yúdice
N
Facebook não estimulam os mesmos neurônios
ou as mesmas zonas corticais estimuladas pelo a sua defesa da cultura dos jovens,
uso de um livro, quadro ou caderno. Essas crian- desenvolvida no calor da nova mí-
ças podem manipular várias formas de informa- dia, Michel Serres argumenta que
ção ao mesmo tempo, mas não as compreendem, surgiu outra maneira de pensar (“não tem
nem as integram, nem as sintetizam como nós, a mesma cabeça”), mais conectada à tec-
seus antepassados. nologia digital e às novas práticas que essa
Elas já não têm a mesma cabeça. Com o te- tecnologia torna possível. Esses seriam os
lefone celular, têm acesso a todas as pessoas; com nativos digitais; também tem migrantes di-
88 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
gitais mais velhos bastante assimilados. Mas Brasil, Chile, Colômbia, El Salvador, México,
é preciso salientar que Serres está falando Nicarágua, Peru e Venezuela –, o intervalo é
dos jovens franceses, pertencentes a um país de 30 pontos porcentuais ou mais, um dado
rico, com boa conectividade. Por isso, com que também se explica por diferenças no nível
alto porcentual – mais de 85% dos jovens de educação, renda e conhecimento de inglês
acessam a internet, sobretudo por meio da (PEW, 2015). No Brasil, por exemplo, 72% dos
telefonia móvel (FREIER, 2015; GLOBAL habitantes de 18 a 34 anos de idade acessam
INTERNET REPORT, 2015). a internet ou têm smartphone, em contraste
Poderíamos pensar que, por causa da com 35% dos indivíduos com 35 anos ou mais.
desigualdade acentuada nos países “emer- Segundo o departamento de pesquisa da As-
gentes” ou “em desenvolvimento”, o novo sociação Groupe Sociale Mobile ou da GSMA
habitus seria radicalmente diferente. Po- Intelligence, atualmente existem 7,7 bilhões
rém, segundo a Internet World Stats de 2 de de conexões móveis no mundo e 3,8 bilhões de
fevereiro de 2016, a internet tem 3,3 bilhões assinantes únicos de contas móveis.3
de usuários no mundo, 1 Esses dados também
1,3 bilhões a mais que em Essas funções, disponibilizadas se confirmam ao considerar
2011. Isso equivale a 45% gratuitamente aos usuários o ápice que lograram mun-
(mas, na realidade, em troca
dos 7,4 bilhões de habi- dialmente para o Facebook
da colheita de dados), criam
tantes da Terra. Embora
2
e o Whatsapp: 1,59 bilhões
algo como um simulacro de
o acesso venha crescendo serviço público [...] e 1 bilhão respectivamente
aceleradamente, é evidente ao final de 2015. Essas pla-
que há muita desigualdade entre as regiões taformas são acessadas majoritariamente por
mais ricas (América do Norte tem 88% de co- celular (MARTÍ, 2016), 90,6%, segundo as es-
bertura) e as mais pobres (África tem 29%) tatísticas do Facebook.4 Na América Latina, o
(KEMP, 2015; PEW RESEARCH CENTER, Whatsapp consegue cotas de uso altas, como
2015). A América Latina está na média, com 93% de usuários no Brasil e 84% na Argen-
56%, mas nesse vasto território também exis- tina (SMITH, 2016). É claro que o Facebook
te muita desigualdade tanto entre os países previu o rápido crescimento de acessos no
quanto dentro deles. Whatsapp quando pagou 19 bilhões de dó-
Ainda assim, num futuro próximo ha- lares pelo aplicativo em 2014, embora ele só
verá mais acesso à internet, especialmente tivesse gerado 20 milhões de dólares em 2013.
através do celular. Como descobriram pes- E cada vez mais essas e outras empresas estão
quisadores do Pew Research Center, os jovens expandindo suas funções, não só o chat e as li-
em países “emergentes” ou “em desenvolvi- gações, como também o envio de fotos e, desde
mento” acessam a internet muito mais que dezembro de 2015, a transmissão de vídeos em
as gerações mais velhas. A média do intervalo tempo real (LAVRUSIK, 2016). Essas funções,
etário nos 32 países estudados é de 15 pontos disponibilizadas gratuitamente aos usuários
porcentuais, mas, em todos os países latino-a- (mas, na realidade, em troca da colheita de
mericanos incluídos no estudo – Argentina, dados), criam algo como um simulacro de
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE GEORGE YÚDICE 89
serviço público, fazendo com que essas pla- desde Veblen a Benjamin Barber, embora
taformas negociem e concorram com os Es- o consumismo continue muito forte. O de-
tados, como veremos a seguir. sejo – alguns diriam: a necessidade – de se
Entre as atividades realizadas na inter- comunicar e estabelecer solidariedade ou
net móvel nos países “emergentes” ou “em laços de afeto, como acontece no Facebook,
desenvolvimento” prevalecem: o contato com impulsiona a criação de novos aplicativos,
familiares e os amigos e o uso das redes so- que são monetizados de diversas maneiras
ciais em primeiro lugar e a procura de infor- e não só orientados ao consumo de mer-
mação em segundo lugar (PEW RESEARCH cadorias. Todo tipo de causa e assunto se
CENTER, 2015). Mas também vem aumen- potencializa mediante essas formas de co-
tando o acesso a mídia e entretenimento por municação, inclusive alternativas ao capi-
meio do móvel (EMARKETER, 2016). Até a talismo hegemônico, como nas plataformas
cultura ao vivo, como os concertos e o teatro, de crowdfunding Kickstarter e Catarse, que
tem acompanhamento em aplicativos espe- têm páginas no Facebook. Porém, através
cializados, como o Shazam, que reconhece dessas plataformas, são gerados enormes
qualquer música e fornece informação deta- rastros de dados que encontram todo tipo
lhada sobre o artista, as letras das músicas e de uso, e não só para a venda de produtos.
até o local do próximo concerto na proximi- Cidades inteligentes, a chamada Internet
dade do usuário, possibilitando a compra de das Coisas, pesquisas de saúde e outros in-
ingressos on-line (LÓPEZ, 2015). Os aplica- teresses sociais, como também espionagem
tivos para celulares não só entregam música, governamental ou empresarial, aproveitam
audiovisual, textos e conteúdos criados pelos essa avalanche de informação.
usuários, como também fornecem um acervo Pensadores como Michel Serres, cita-
de ferramentas para selecionar exatamente o do anteriormente, e Jesús Martín-Barbero
que quiserem (BUDDECOMM, 2015). É essa caracterizam esse novo cenário como uma
possibilidade de escolha que oferece vanta- mutação paradigmática da sociedade, em
gem para as tecnologias móveis e as redes que se cria uma crise, um enorme barulho
sociais. Uma análise da mídia, da cultura e composto das conversas e falas dos usuários.
da gestão cultural no novo cenário digital não Como escreve Martín-Barbero: “as falas não
pode focar só os hábitos e costumes dos usuá- são somente idiomas senão narrações, ima-
rios, mas também a economia política desse gens, músicas, experiências contadas pelas
cenário. Ambos – usuários e empreendimen- pessoas e as diversíssimas culturas contan-
tos/tecnologias – coconstroem esse cenário. do-se a vida e dizendo-se coisas” (entrevista
Esse crescimento acelerado das mí- nesta edição da Revista Observatório). Esse
dias sociais é coproduzido pelas grandes barulho é expressão não só da falência das ins-
plataformas que respondem aos interesses tituições do Estado e da sociedade, mas tam-
dos usuários. Não se trata da sociedade de bém expressão da vontade de outros arranjos,
consumo ao estilo do século XX, explica- como se vê nas manifestações dos indignados
da e criticada por sociólogos e politólogos ao redor do mundo. Esse cenário das mídias
90 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
sociais, entretanto, é também aquele do auge serviços mais valiosos, no qual constatamos
dos cercados das nuvens privadas onde se ar- a fusão do provedor da mídia e o desenhador
mazena e processa toda a informação gerada. de experiências. Esses provedores compe-
A complexidade se constata na simultanei- tem na criação de sensações memoráveis
dade do entusiasmo pela comunicação que que provêm não de um espetáculo, mas de
parece ser não conduzida, não instituciona- uma experiência (MULLIGAN, 2014). Po-
lizada e da falta de compreensão de como a deríamos resumir o fenômeno invocando o
comunicação, que agora envolve toda a vida conceito de afeto, que cada vez mais se usa
(como na Internet das Coisas), é administra- para caracterizar o valor no novo cenário
da, analisada e utilizada por grandes empresas “acessista” do uso. Os novos empreendimen-
que cada vez mais desafiam os governos nessa tos digitais, sobretudo aqueles associados às
nova forma de gerir a coisa pública, embora marcas, procuram absorver a expressão de
o conceito do público já não seja tão vigente afeto para atrair ainda mais usuários.
nesta época do usuário. Não é por acaso que as grandes empre-
Cidadão, público, audiência, espectador, sas de telefonia oferecem serviços de strea-
leitor, consumidor... perdem vigor (mas não ming gratuitos (por um tempo limitado)
desaparecem) como conceitos epistêmicos para atrair usuários. Por exemplo, o serviço
e práticos junto com as instituições que de música Deezer tem parceria com a Tim/
sustentaram tais categorias. Tanto o servi- Vivo, que oferece o Vivo Música, expressan-
ço público (incluindo a educação) quanto a do em uma publicidade o princípio do novo
mídia sofrem enfraquecimento perante o que cenário midiático: “A música que você qui-
se comunica e o que se sabe entre todos ser, quando e onde estiver”.6 E sempre existe
(Martín-Barbero).5 A informação já não se a possibilidade de acessar o YouTube para
emite desde um centro a uma circunferência streaming gratuito de músicas e vídeos.
em expansão; os usuários intervêm no que se A combinação telefonia móvel e serviço
produz e emite. É claro que isso é um desafio de streaming torna possível a transformação
para a gestão cultural, acostumada a pesqui- do desfrute cultural, “liberando” o usuário
sar e conhecer públicos aos quais se entrega não só do lugar onde usufruir, mas também
cultura. O que quer dizer a pesquisa de públi- das plataformas tradicionais hegemônicas
cos na época do usuário ou do produsuário? da televisão, que ditam quais programas se
Quanto a essa questão, a transforma- podem ver, em qual ordem e em que horário.
ção da indústria da música é reveladora. Nos Liberar-se dessa estrutura rígida explica
serviços de streaming, que cada vez mais em parte o crescimento rápido do Netflix, o
crescem perante a compra ou o download serviço de filme e televisão por streaming.
de fonogramas (IFPI, 2015), é o uso mesmo – Chamado de Uber da TV (IDGNOW, 2015),
registrado nas bases de dados e processado o Netflix, que acaba de lograr disponibili-
nos softwares de recomendação – que orien- dade em 190 países (CHACÓN JIMÉNEZ,
ta a criação de repertórios para os usuários. 2016), também produz seus próprios seria-
É uma forma de curadoria, que hoje é um dos dos, como o seriado 3% exibido no Brasil,
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE GEORGE YÚDICE 91
público e encenava seu alto status, o moder- – tem suas táticas, que diferem dependendo
no emerge no anonimato e na privacidade do modo como os livros são adquiridos: se
interior. O moderno luta, ademais, com uma em livrarias, catálogos ou leilões. Mas “o
contradição inerente à arte moderna: por um ‘método mais louvável’ para adquirir livros
lado “fetichiza” o objeto e por outro recusa é escrevê-los” (ABBAS, 1988: 230). Nessa
a mercantilização do objeto para transfor- análise, Benjamin parece antecipar o modus
má-lo em arte; mas isso faz com que a arte operandi na internet, onde os parâmetros da
se torne mero objeto de contemplação. Des- propriedade são questionados e se praticam
se jeito, a arte é só uma outras formas não só de
função do gosto, que por Na nova economia-da-informação- adquirir, mas de expe-
sua vez mascara a falta experiência-e-afeto, o conteúdo dos rimentar a produção e
de expertise do coletor produtos – que são intercâmbios, a troca simbólica sem
e sua experiência limi- serviços, comunicações etc. – é se tornar proprietário.
intangível, é isso que circula e
tada, que é investida Poderia se dizer que o
vincula subjetividades e corpos.
nos objetos da coleção. colecionista dos sécu-
Quer dizer que o afeto antes
Ackbar Abbas assinala investido nos objetos acha outros los XIX e XX deve ser o
que, para Baudelaire, circuitos de catexização usuário disseminador no
essa falta de experiência novo cenário midiático,
é a incapacidade de assimilar a experiência embora as leis da propriedade e as estraté-
da modernidade, quer dizer, a experiência gias convencionais do lucro limitem essa
“inóspita e cega do industrialismo de grande tendência.
escala” (BENJAMIN, 1973: 111. In: ABBAS, Para compreender a transformação do
1988: 226-227). colecionismo na nossa era, teríamos que fa-
Benjamin também contrasta a maneira zer o mesmo que fez Benjamin: inseri-lo na
em que o escritor e o colecionista chegam à economia política da produção simbólica,
experiência. Este tira os objetos de circu- que não é mais a industrial do século XIX
lação ao inseri-los no marco onde “se con- nem a consumista de meados do século XX.
vertem em pedra” (1999: 305). Os objetos Na nova economia-da-informação-experiên-
entram em um circuito fechado. O usuário cia-e-afeto, o conteúdo dos produtos – que
da internet é mais como o escritor de Benja- são intercâmbios, serviços, comunicações
min; na sua prática, a informação se abre em etc. – é intangível, é isso que circula e vincu-
conexões rizomáticas, compartilhamentos e la subjetividades e corpos. Quer dizer que o
estabelecimento do comum. Abbas salienta afeto antes investido nos objetos acha outros
a experiência do escritor em Benjamin, re- circuitos de catexização.8 E esse conteúdo
ferindo-se às táticas de aquisição contra o intangível torna-se cada vez mais valioso do
grão, que incluem pedir livros emprestados que as coisas físicas utilizadas para produ-
e não devolvê-los, ou fracassar sistematica- zir esses intercâmbios, serviços e comunica-
mente em lê-los, ou herdá-los. Mesmo a ma- ções. Não é por acaso que na nova era digital
neira mais óbvia de adquiri-los – comprá-los são textos, imagens, sons, comunicações, ou
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE GEORGE YÚDICE 95
seja, tudo aquilo que pode ser recombinado o capitalismo da experiência e dos afetos.
e que não é apropriado, mas suplementado e Numa época em que se lucra menos com os
posto em circulação novamente. O valor que produtos culturais, as novas empresas de-
os usuários dão a esses conteúdos é definiti- senvolveram tecnologias para facilitar a ex-
vamente um valor de uso e, por vezes, um va- pressão do afeto, que é um meio de negócio
lor de circulação, mas não necessariamente e também de controle. A virada afetiva dos
um valor de troca. De todo modo, na atuali- novos estudos culturais neste milênio tende
dade, constatamos uma tensão entre o dese- a não ter uma visão crítica das tecnologias
jo do comum com que operam os usuários e de geração de afeto. A análise dos dados ge-
a tendência das empresas em monetizar e rados pelos softwares de reconhecimento
proprietarizar qualquer ação. O combustí- nos serviços de streaming, das preferências
vel da economia da internet é a própria ação na nova curadoria de música e audiovisual
dos usuários, que na maioria dos casos nem e dos modos de fazer na cocriação, como
percebem que fornecem esse valor.9 no Aplicanciones de Jorge Drexler, cujo
aplicativo foi apelidado de N, são alguns
A biopolítica do exemplos do uso dos afetos. A biopolítica
novo cenário midiático aproveita o mais profundo material do ser
A visão de Benjamin apoiaria a ideia humano: seu afeto.
de que os usuários das redes sociais mani- Poderia se dizer que o afeto é o solvente
festam uma agência, não só em ações dire- intermediário em que subjetividades, corpos
tamente políticas, como os movimentos de e máquinas cibernéticas se catexizam. Pa-
indignados ao redor do mundo,10 mas tam- tricia Clough e colegas, teóricos do afeto em
bém no consumo da mídia, como argumenta relação ao novo estágio capitalista, sugerem
Simone Pereira de Sá sobre os fãs nas redes que “se está dissolvendo a distinção entre a
sociais, sob outra ótica teórica, neste núme- matéria orgânica e não orgânica em relação
ro da Revista Observatório. Mas o uso das à informação”, com o resultado que a matéria
redes sociais tem repercussões biopolíticas. mesma emerge como informacional (2007:
Só tem que pensar na mineiração de dados 62). Essa reflexão os leva a postular que “a
que geram os usuários. O interessante dessa ciência e o capital estão envolvidos em esfor-
biopolítica é que os usuários desejam usar as ços para modular diretamente o pré-indivi-
plataformas que se valem das informações dual ou a potencialidade do indeterminado, a
concedidas por eles. Não são submetidos criatividade emergente do afeto-em-si”, exi-
ou oprimidos. Essa colheita de valor não gindo, portanto, que os pensadores críticos
se experimenta como exploração. A gran- prestem atenção na tensão entre o contro-
de maioria nem sequer lê os termos de uso, le – tema proposto no frequentemente citado
simplesmente os aceita para ter acesso e ensaio de Deleuze (1992) sobre as sociedades
expressar-se e relacionar-se. É justamente de controle – e a emergência indetermina-
esse imperativo de expressar-se, predomi- da ou potência nos termos espinosanos de
nante nas redes sociais, que convém para Hardt e Negri (2005). Essa tensão “constitui
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cérebro enraizados em circuitos neurais pri- que voam continuamente durante meses ou
mários que evoluíram para ajudar os huma- anos, graças à energia solar, emitindo sinais
nos a tomarem decisões” (CROWE, 2013). de banda larga a laser em áreas com baixa
Pela enormidade da IdC é evidente que conectividade na Ásia, África e América
só os estados mais ricos ou as plataformas/ Latina (WAKEFIELD, 2014). Como expli-
empresas maiores do mundo podem fazer ca Yael Maguire, diretor de engenharia da
os investimentos requeridos para criar e ad- Facebook Conectividade Lab, desenhou-se
ministrar esse novo fenômeno. E isso lhes um backbone intermediário entre satélites e
fornece a oportunidade de aproveitar a in- terminais terrestres que receberão em todos
formação e o lucro ou a “inteligência” para a os momentos sinais dos drones que voam a
vigilância que deriva dela. Por exemplo, é por 20 quilômetros de altitude, acima de outras
isso que o Google adquiriu por 3,2 bilhões de aeronaves e até de variações atmosféricas,
dólares a empresa Nest Labs, fabricante de mas suficientemente perto da terra para que
termostatos e detectores de fumaça de alta os sinais sejam fortes, com a qualidade da fi-
tecnologia. O termostato regula a tempera- bra ótica (INTERNET.ORG, 2014).
tura ambiente em relação às preferências do Da mesma forma, o Google iniciou
usuário; desse jeito, o dispositivo vai apren- em 2013 o Projeto Loon, que vai levantar
dendo ao longo do tempo. Esses dispositivos a 20 quilômetros cem balões de hélio que
operam com algoritmos que permitem que transmitirão sinais de internet em áreas
todos os aparelhos do usuário se comu- desconectadas ou malconectadas. O Goo-
niquem entre eles, criando gle também comprou uma
A biopolítica aproveita o
perfis dos usuários para an- mais profundo material empresa que fabrica drones,
tecipar as suas necessidades do ser humano: seu afeto a Titan Aerospace, por um va-
(TREFIS EQUIPE, 2014). lor não revelado, para comple-
Assim, o Google aumenta o alcance da nu- mentar os balões do Projeto Loon. A empresa
vem onde se armazenam os dados e cria um também adquiriu por 1 bilhão de dólares a
sistema de comunicação rizomática entre Skybox Imaging, que tem a sua própria rede
usuários, dispositivos e meios de comuni- de satélites e é especializada em mineração
cação. e análise de dados e produção de vídeos e
imagens detalhadas da Terra, estendendo a
A economia política do novo cenário capacidade do Google Earth para capturar
É verdade que mais da metade da po- imagens do planeta em tempo real, vinculan-
pulação mundial fica fora dessa teia, em- do assim perfis e localização (INAM, 2014).
bora cresça cada vez mais a conectividade Evidentemente, é ingênuo pensar que
através de telefones móveis. Em relação a Facebook e Google estão fornecendo um ser-
essa brecha, empresas como Facebook e viço público humanitário que os governos
Google têm estratégias para se conectar não estão fazendo, embora seja verdade que
aos desconectados. Para conseguir isso, o haverá mais conectividade e que os pobres
Facebook comprou uma frota de drones poderão ter acesso mais barato a operações
98 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
valorizam no mercado. Em 2 de fevereiro apenas o seu negócio. Por outro lado, a Chi-
de 2016, a recém-criada Alphabet, empre- na se refere à soberania chinesa da internet
sa matriz do Google, ultrapassou a Apple (INFORMATION OFFICE, 2010), embora
como a empresa mais valorizada no mundo. alguns analistas vejam essas pretensões so-
Cinco das nove empresas mais valorizadas beranistas como autoritarismo informacio-
no mundo pertencem ao setor da internet: nal e censura (JIANG, 2010).
Alphabet (554,8 bilhões de dólares), Apple
(529,3 bilhões de dólares), Microsoft (425 América Latina
bilhões de dólares), Facebook (334 bilhões Logo após o escândalo das violações de
de dólares) e Amazon (264 bilhões de dó- privacidade reveladas por Edward Snowden,
lares). No início de fevereiro, essas cinco o governo brasileiro acelerou o processo de
empresas tinham um valor combinado de consulta e desenho do Marco Civil da Inter-
2,1 trilhões de dólares (KRANTZ, 2016), o net, que a presidenta Rousseff sancionou em
que equivale ao PIB da Índia, a sétima eco- abril de 2014 (ESTANQUE, 2014). Anteci-
nomia do mundo, ultrapassando o PIB da pando a nova lei, o Google, que colaborou
Itália, do Brasil e do Canadá (STATISTICS com a NSA dos EUA na espionagem de co-
TIMES, 2016). municações dos chefes de Estado de todo o
Não surpreende, portanto, como escre- mundo (IBN LIVE, 2013), trasladou do Brasil
ve Benjamin Bratton neste número da Revis- aos EUA o serviço DNS, que permite visibili-
ta Observatório, que as plataformas cada vez zar o uso que fazem os usuários do serviço na
mais exerçam soberania transnacional e glo- internet. O analista da internet Doug Madory
bal, e algumas nações se adaptem à forma da (2013) argumentou que esse traslado afetou
plataforma (por exemplo, a National Security o serviço – demorou o tempo de transmissão
Agency NSA dos EUA, as novas iniciativas dos dados –, já que, para evitar o monitora-
chinesas, como o site de microblogging Sina mento brasileiro, as operações passaram a
Weibo etc.). A questão da soberania é crucial, se fazer nos EUA.
já que as grandes plataformas administram Outro exemplo do conflito e negocia-
a Internet das Coisas, que, como vimos, visa ção de plataformas e países se constatou na
administrar a vida cotidiana por meio da co- última Cúpula das Américas no Panamá,
nexão de dispositivos, mídia, objetos, cidades em abril de 2015, quando os presidentes de
e comportamentos humanos. Argentina, Brasil, Panamá e Peru se reu-
O poder e o tamanho dessas empresas niram com o chefe executivo do Facebook,
possibilitam que as tais concorram e ne- Mark Zuckerberg, que procurou acordos para
gociem com governos. É muito conhecido estabelecer sua fundação Internet.org nes-
o conflito entre China e Google. A China ses países, adicionando-os aos já acordados,
visa substituir as plataformas ocidentais como Colômbia, Guatemala e Paraguai, este
(GIBBS, 2014), que, por sua vez – como no último tendo sido local de prova da versão
caso do Google –, se comportam como que beta do Facebook Livre. O debate no Brasil
protegendo uma soberania global e não é exemplo da complexidade e do perigo da
100 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
promessa da internet gratuita para os pobres, Civil da Internet, ainda não tinha sido resol-
pelo menos no modelo Internet.org. Zucker- vida. No processo de recomendação à pre-
berg e a presidenta Rousseff assinaram um sidenta para sua preparação da minuta de
acordo que pareceria entrar em conflito com Decreto Presidencial que regulamentará o
o Marco Civil da Internet. Um dos problemas Marco Civil, o Comitê Gestor da Internet
é que o Facebook Livre fornece de graça só conseguiu “chegar em um acordo, sem men-
alguns serviços da internet para os mais po- ção ao zero-rating” (AQUINO, 2015).
bres, criando assim desigualdade de acesso.
Outro problema é que a prática de zero-rating Conclusão
parece violar o princípio da neutralidade da O que tem tudo isto – plataformas glo-
rede, já que “as operadoras [...] e algumas em- balizadas, soberania, Internet das Coisas
presas de tecnologia [...] permitem o acesso etc. – a ver com a gestão cultural? Do meu
de forma ‘gratuita’, ou sem cobrar o tráfego ponto de vista, muito. As políticas públicas
de dados móveis a alguns serviços on-line, – inclusive a falta de políticas, que é uma
como apps de redes sociais e mensagens” política – para o novo cenário midíatico têm
(RIBEIRO, 2015). consequências duplas: por um lado, podem
Carolina Botero, diretora executiva facilitar ou obstaculizar novos empreendi-
da Fundação Karisma na Colômbia e uma mentos e práticas não só de fazer cultura mas
das ativistas mais importantes no que diz de circulá-la e compartilhá-la; por outro lado,
respeito à igualdade de acesso a mídia e in- podem contribuir ou regular a intervenção
ternet, criticou a Internet.org e os governos biopolítica e o crescimento das enormes pla-
que o apoiam: taformas da internet, que por sua vez exer-
cem soberania.
Temos sérias preocupações de que A América Latina é uma região muito
Internet.org é apresentado como uma es- cobiçada por múltiplas razões. É a região
tratégia de política pública para o acesso onde os usuários passam mais tempo ligados
universal à Internet. Estas iniciativas com- à rede (MANDER, 2015). Segundo a comS-
prometem os direitos de todos e turvam a core, empresa de análise de internet, cinco
obrigação do governo para reduzir a brecha dos dez países mais ativos em redes sociais
digital para o acesso dos seus cidadãos a de- estão na América Latina: Brasil, Argentina,
terminadas aplicações. Não importa quão Peru, México e Chile. A América Latina como
interessantes eles são, esses serviços estão região tem quase o dobro da média mundial
associados com um interesse comercial de de horas de conexão de usuários nas redes
uma multinacional que o Estado apoia dire- sociais; e sobressai o Brasil, com 240% so-
tamente (In: BOGADO; RODRÍGUEZ, 2015). bre a média mundial (COMSCORE, 2013:
21). Mas, como no resto do mundo, preva-
Até o final de 2015, essa aparente con- lecem as plataformas norte-americanas,
tradição, que reside na violação ao princípio como Facebook, Google, YouTube e Twitter
de neutralidade que é sustentado pelo Marco (VAUGHN-NICHOLS, 2013), que querem
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE GEORGE YÚDICE 101
de telefonia que oferecem serviços de strea- que costumam ser mencionados (educa-
ming. Além de pensar nos pequenos mer- ção e turismo) em encontros de cultura. O
cados locais, o que é fundamental, também comum, do qual trata o ensaio de Bernardo
deve-se pensar no macromercado regional, Gutiérrez, requer um conjunto de estraté-
já que as empresas dominantes visam cap- gias debatidas e vinculadas entre governos,
turá-lo, nesses termos, como região. empreendimentos, setor jurídico, sociedade
É por isso que, embora as políticas na- civil e redes sociais.
cionais sejam necessárias (por exemplo,
o Marco Civil da Internet), elas não são
suficientemente efetivas; são necessários
acordos nacionais e internacionais que pro-
curem nivelar o campo de jogo. Nesse senti-
do, comento uma iniciativa promissora, mas
que deve incluir uma reflexão séria e acio-
nável do novo cenário midiático, tanto em
termos dos seus efeitos na cultura quanto na
sua política tecno-econômica, que são dois George Yúdice
lados da mesma moeda. Professor titular do Programa de Estudos La-
A iniciativa a que me refiro é o Merca- tino-Americanos e do Departamento de Línguas
do de Indústrias Culturais do Sul (Micsur), e Culturas Modernas da Universidade de Miami. É
cuja primeira edição se celebrou em Mar del diretor do Miami Observatory on Communication
Plata, Argentina, em maio de 2014, e que se and Creative Industries.
reunirá de novo em Bogotá, Manizales e Me- É autor de Política Cultural (Gedisa, 2004); A
dellín, na Colômbia, em agosto e setembro Conveniência da Cultura: Usos da Cultura em uma
de 2016. Sua importância tem a ver com a Era Global (Editora da Universidade Federal de Mi-
aliança regional necessária para enfrentar nas Gerais, 2005); Nuevas Tecnologías, Música y
as desigualdades no comércio cultural lati- Experiencia (Gedisa, 2007) e Culturas Emergentes
no-americano. Como já sabemos, as fontes en el Mundo Hispano de Estados Unidos (Madrid:
e estratégias de financiamento público para Fundación Alternativas, 2009), entre outros. Está
os empreendimentos culturais são bastante preparando Cultura e Valor: Ensaios sobre Literaturas
fracas em todos os países da América Lati- e Culturas Latino-Americanas e Cultura y Política Cul-
na. A criação de um mercado geral tem como tural en América Central: 1990 a 2016. Tem mais de
objetivo aumentar as importações dos países 150 ensaios sobre estudos culturais e literários. Fez
vizinhos, gerando assim renda que fica na re- muitas consultorias para várias organizações interna-
gião e não migra para os Estados Unidos e a cionais, ministérios e secretarias da cultura em vários
Europa. Mas, para isso, deveriam ser incluí- países latino-americanos. Está no comitê editorial
dos outros ministérios e empreendimentos da Revista Z Cultural PACC (da UFRJ); International
de outros setores – operadores telefônicos, Journal of Cultural Policy; Cultural Studies; Found
direito, bancos, engenharia etc. – além dos Object e Topía: Canadian Journal of Cultural Studies.
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE GEORGE YÚDICE 105
Referências bibliográficas
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Notas
5 A referência o que se sabe entre todos requer pelo menos que se faça menção
de várias adaptações do conceito do Intelecto Geral que propõe Marx no
Grundrisse. Aí sugere que, a partir de certo momento de desenvolvimento do
capital, a geração real da riqueza dependerá não só do tempo de trabalho, mas
da expertise científica e da organização. O fator principal da produção serão as
forças produtivas gerais do cérebro social (MARX, 1973). Marx se antecipa à teoria
da economia da informação e do conhecimento, ou do capitalismo cognitivo,
que para alguns anuncia a potencialidade da transformação neocomunista do
mundo a partir da potência constituinte da multidão (Virno, Hardt, Negri) e para
outros é o desenvolvimento decisivo para o resgate da ordem mundial neoliberal,
que introduz mais desigualdade; por exemplo, a informática que faz possível a
terceirização e subcontratação transnacional com consequências precarizadoras
(DEAN, 2005; ŽIŽEK, 2009).
A PILHA NEGRA
Benjamin Bratton
A
computação em escala planetária a imagem de uma totalidade que essa con-
assume diferentes formas em di- cepção proporciona – como as teorias de to-
ferentes escalas: redes de energia talidade de antes – tornasse a composição de
e abastecimento mineral; infraestrutura de novas governamentalidades e novas sobera-
nuvem ctônica; software urbano e privati- nias mais legíveis e mais eficazes.
zação de serviços públicos; sistemas de en- Meu interesse na geopolítica da com-
dereçamento universais maciços; interfaces putação em escala planetária concentra-se
desenhadas pelo aumento da mão, do olho menos nas questões de privacidade pessoal
ou dissolvidas em objetos; usuários tanto e vigilância do Estado e mais em como ela
sobredeterminados por autoquantificação distorce e deforma os modos tradicionais
como desacreditados pela chegada de legiões vestfalianos de geografia política, jurisdição
de usuários não humanos (sensores, carros, e soberania, produzindo novos territórios a
robôs). Em vez de enxergar as várias espécies sua imagem. Ele provém da (e contra a) obra
de tecnologias computacionais contempo- posterior de Carl Schmitt, Os Nomos da Ter-
râneas como tantos gêneros diferentes de ra, e de sua (embora) imperfeita história das
máquinas, aprendendo a operar autonoma- geometrias de arquiteturas geopolíticas.2 O
mente, deveríamos vê-las como parte do cor- nomo refere-se à lógica dominante e essen-
po de uma megaestrutura acidental. Talvez cial às subdivisões políticas da Terra (da
essas peças se alinhem, camada por camada, terra, dos mares e/ou do ar e agora também
para compor algo não muito diferente de uma do domínio que os militares americanos
enorme (e também incompleta), dominante simplesmente chamam de “ciber”) e à ordem
(e também irregular) Pilha de software e har- geopolítica que estabiliza essas subdivisões
dware. Esse modelo é de uma Pilha que tanto conformemente. Hoje, à medida que o nomo
existe e não existe como tal: é uma máquina definido pela geometria horizontal em loop
que serve como um esquema tanto quanto é do moderno sistema do Estado range e geme,
um esquema de máquinas.1 Como tal, talvez e à medida que “Seeing like a State” [Vendo
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE BENJAMIN BRATTON 115
como um Estado] abandona esse ninho ter- que temos, mas a plataforma que poderia ser.
ritorial inicial – com e contra as demandas Essa plataforma seria definida pela produti-
da computação de escala planetária3 –, nós vidade de seus acidentes e pela estratégia pela
lutamos com as abstrações irregulares de qual qualquer coisa que puder parecer no pri-
informações, o tempo e o território e a de- meiro momento a pior opção (até ruim) pode
laminação caótica da soberania (prática) da ser, em última instância, o lugar onde vamos
ocupação do lugar. Para isso, um nomo da procurar a melhor saída. É menos um “futuro
nuvem, por exemplo, evocaria a jurisdição possível” do que uma fuga do presente.
não só de acordo com a subdivisão horizontal
de sites físicos realizada pelos Estados e para Nuvem
eles, mas também de acordo com o empilha- As plataformas da camada da nuvem
mento vertical das camadas interdependen- da Pilha estão estruturadas por geografias
tes umas sobre as outras: duas geometrias densas, plurais e não contíguas, um híbri-
às vezes tramadas, às vezes completamente do de superjurisdição dos EUA e Cidades
diagonais e irreconhecíveis entre si.4 Charter, que entalharam novas políticas
A Pilha, em suma, é esse novo nomo re- parcialmente privatizadas a partir do teci-
presentado agora como uma geografia política do total de terras destituídas de soberania.
aumentada verticalmente. Em minha análise, Porém, talvez haja mais lá.
existem seis camadas para essa Pilha: terra, O drama geográfico imediato da cama-
nuvem, cidade, endereço, interface e usuário. da da nuvem é visto mais diretamente nos
Em vez de demonstrar cada camada da Pilha conflitos do Google na China de 2008 até os
como um todo, vou me deter especificamen- dias de hoje: a China hackeando o Google, o
te nas camadas nuvem e usuário e articular Google saindo da China, a Agência Nacional
alguns desenhos alternativos para essas ca- de Segurança dos EUA (NSA) hackeando a
madas e para a totalidade (ou, melhor ainda, China, a NSA hackeando o Google, o Google
para a próxima totalidade, o futuro nomo). A escrevendo livros creditados ao Departa-
Pilha Negra, então, representa para a Pilha mento de Estado Americano, e o Google –
o que a sombra do futuro representa para a sem palavras – contornando as últimas
forma do presente. A Pilha Negra é menos a instâncias de supervisão do Estado, não as
pilha anarquista, ou a pilha de death metal, ou transgredindo completamente, mas absor-
a pilha completamente opaca, do que a futu- vendo-as em sua oferta de serviço. Enquanto
ra totalidade computacional, definida neste isso, o firmware do roteador chinês espera a
momento pelo que não é, pelos campos de sua hora chegar.
conteúdo vazios de sua estrutura e pela sua As geografias no trabalho muitas ve-
inevitabilidade terrível. Não é a plataforma zes são estranhas. Por exemplo, o Google
116 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
depositou uma série de patentes em centros arcaicos adquiriram sua autoridade com
de dados no exterior para serem construí- base no fornecimento regular de alimento.
dos em águas internacionais em torres que Ao longo da modernização, mais elementos
utilizassem as correntes das marés e a água foram adicionados às intrincadas barganhas
disponível para a refrigeração dos servidores. de Leviatã:5 energia, infraestrutura, identi-
As complexidades de jurisdição sugeridas dade jurídica e permanente, mapas objetivos
por uma nuvem global gerada a partir de es- e abrangentes, moedas críveis e lealdade às
paço não estatal são fantásticas, mas agora marcas das flags. Pouco a pouco, cada um des-
são menos excepcionais do que um exemplo ses – e mais – agora é disponibilizado pelas
de um novo normal. Entre os “hackers” do plataformas na nuvem, não necessariamen-
Exército Popular da Libertação e o Google te como substituto formal para as versões do
existe mais do que um empate entre os re- Estado, mas, como o Google ID, simplesmente
presentantes de dois aparelhos de Estado. mais útil e eficaz para o cotidiano. Para essas
Existe um conflito um tanto funda- plataformas, os termos de participação não
mental em torno da geometria da geografia são obrigatórios e, por isso, seus contratos
política em si, com um lado vinculado pela sociais são mais extrativos do que constitu-
integridade territorial do estado, e o outro, cionais. A Pólis da Nuvem (tradução livre de
pelos fios de uma teia de informações do Cloud Polis) obtém sua receita do capital cog-
mundo exigindo ser “organizadas e trans- nitivo de seus usuários, que negociam atenção
formadas em algo útil”. Essa situação é um e conformidade microeconômica em troca de
confronto entre duas lógicas de governan- serviços globais de infraestrutura, e ela, por
ça, duas geometrias de território: de um lado, sua vez, fornece a cada um deles uma identi-
uma subdivisão do horizontal; do outro, um dade on-line discreta e ativa e a licença para
empilhamento de camadas verticais. De um uso dessa infraestrutura.
lado, um estado; do outro, um para-estado. Dito isso, fica claro que não temos nada
Uma se sobrepondo à outra em qualquer parecido com uma teoria geopolítica ade-
ponto no mapa sem nunca chegar a algum quada dessas transformações. Antes que a
cosmopolitismo consensual, mas sim per- ambição total do aparato de segurança dos
sistindo em seguir na contramão dos planos Estados Unidos ficasse tão evidente, muitos
uns dos outros. Isso caracteriza a geopolítica pensavam que a nuvem fosse um lugar onde
de nosso momento (isso, mais a gravidade os estados não tinham competência supre-
da sucessão generalizada, sendo que ambos, ma, talvez nem mesmo um papel a desempe-
contudo, estão interligados). nhar: lento demais, idiota demais, enganado
Daqui vemos que as plataformas con- facilmente demais usando o navegador certo.
temporâneas da nuvem estão deslocando – Os estados teriam sua parte central retirada,
ou também substituindo – funções básicas componente por componente, até que nada
dos estados, demonstrando, tanto para o bem mais sobrasse além de um programa de se-
quanto para o mal, novos modelos espaciais e guro de saúde bem-armado com seu próprio
temporais da política e dos públicos. Estados time para a Copa do Mundo. No longo prazo,
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE BENJAMIN BRATTON 117
esse ainda pode ser o resultado, com os esta- queremos dizer com “o público” se não for
dos liberais modernos assumindo seu lugar aquilo que é constituído por essas interfa-
ao lado de monarquias cerimoniais e desti- ces, e onde mais a “governança” – aqui com
tuídos de tudo exceto da autoridade simbó- o significado de uma composição exequível,
lica, não necessariamente substituída, mas deliberada e necessária de sujeitos políticos
deslocada e mal-colocada de lado. Agora, duráveis e suas mediações – deveria estar
contudo, estamos ouvindo uma conclusão senão lá? Nem em alguma cadeia obtusa de
oposta e igualmente frágil: que a nuvem é so- representação parlamentar, nem em algu-
mente o Estado, que ela se equipara ao Esta- ma unidade individual monádica delirante,
do e que sua totalidade (figural, potencial) é nem em algum triste consenso de uma pe-
intrinsecamente totalitária. Apesar de tudo, quena comunidade movida à intimidação
eu não entraria nessa aposta. moral, mas sim nas interfaces imanentes,
Olhando para a Pilha Negra, observamos imediatas e exatamente presentes que nos
que as novas formas de governamentalidade dividem e nos unem. Onde a soberania de-
surgem através de uma nova capacidade de veria residir senão naquilo que está entre
taxar os fluxos (nas portas, nos gates, na pro- nós – decorrente não de cada um de nós
priedade, sobre o rendimento, a atenção, os individualmente, mas daquilo que suscita o
cliques, o movimento, os elétrons, o carbono e mundo por meio de nós?
assim por diante). Não está nada claro se, em Para tanto, é extremamente importante
longo prazo, as plataformas da nuvem subju- ressaltar que as plataformas na nuvem (in-
garão o controle do Estado sobre esses fluxos, cluindo às vezes aparelhos do Estado) são
ou se os Estados continuarão a evoluir para exatamente isso: plataformas. É importante
plataformas na nuvem, absorvendo as funções também reconhecer que as plataformas não
deslocadas para si, ou se ambos irão se divi- constituem apenas uma arquitetura técni-
dir ou girar obliquamente um em relação ao ca; elas também são uma forma institucio-
outro, ou com qual profundidade o que agora nal. Elas centralizam (como os Estados),
reconhecemos como o estado de vigilância separando os termos de participação em
(Estados Unidos, China etc.) se tornará um diferentes níveis de acordo com protoco-
solvente universal de transparência obriga- los rígidos, mas universais, mesmo quan-
tória e/ou uma megaestrutura cosmicamente do descentralizam (como os mercados),
opaca de paranoia absoluta, ou todas as alter- coordenando as economias não através da
nativas acima, ou nenhuma delas. sobreposição dos planos fixos, mas da in-
Entre o Estado, o mercado e a platafor- teração interoperável e emergente. Ao lado
ma, qual deles é mais bem concebido para dos Estados e dos mercados, as plataformas
taxar as interfaces do cotidiano e obter a representam uma terceira forma, exercendo
soberania a partir disso? É uma escolha a coordenação por meio de protocolos fixos,
falsa para ter certeza, mas é uma opção que ao mesmo tempo que dispersam os usuários
levanta a questão de onde estabelecer o lo- livres-errantes6 vigiados com graça carinho-
cal adequado de governança como tal. O que sa, ainda que desconcertadamente onisciente.
120 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
autodomínio que em outros âmbitos cha- Um sujeito usuário plural, que é con-
mamos de “sujeito neoliberal”. jugado por um link proxy ou outros meios,
O espaço no qual a formação discur- poderia ser composto de diferentes tipos
siva do sujeito se encontra com a consti- de sujeitos endereçáveis: dois humanos em
tuição técnica do usuário tem horizonte diferentes países, um humano e um sensor,
muito mais vasto do que o definido por es- um sensor e um bot, um humano e um robô
ses tipos de individuação. Considere, por e um sensor, um qualquer e qualquer um. A
exemplo, usuários proxy. O uProxy, projeto princípio, qualquer um desses subcompo-
apoiado pelo Google Ideas, é uma modifi- nentes poderia não apenas fazer parte de
cação do navegador que permite que usuá- múltiplas posições conjugadas, como po-
rios distantes se juntem facilmente para deria nem saber ou precisar saber para que
que alguém em um lugar (preso em Bad meta-usuário contribui, assim como o bioma
Internets) envie informação livre através microbiano no seu intestino não precisa sa-
da posição virtual de outro usuário em ou- ber o seu nome. O spoofing com identidades
tro local (aproveitando o Good Internets). honeypot, entre humanos e não humanos, é
Ao recordar a configuração dos servidores medido contra o espaço teórico para ende-
proxy durante a Primavera Árabe, é patente reçamento do IPv6 (aproximadamente 1023
que o Google Ideas (grupo de Jared Cohen) endereços por pessoa) ou algum outro esque-
pode ter especial interesse em assimilá-lo ma de endereçamento universal maciço. A
ao Chrome. Para a geopolítica Sino-Google, quantidade e o alcance abismais de “coisas”
a plataforma poderia, em tese, ser disponi- que, a princípio, poderiam participar dessas
bilizada em escala de um bilhão de usuários vastas pluralidades inclui pessoas, objetos
aos que vivem na China mesmo se o Google e locais endereçáveis reais e fictícios, e até
não estiver tecnicamente “na China”, por- relações sem massa entre coisas, qualquer
que esses usuários, atuando através de das quais pode ser um sub-usuário nesta
proxies estrangeiros, estão, em termos de Internet das Haecceitas.8
geografia de internet, tanto dentro quan- Assim, a Pilha (e a Pilha Negra) ence-
to fora da China. Os desenvolvedores de na a morte do usuário em certo sentido – o
uProxy acreditam que seriam necessários eclipse de um determinado humanismo re-
dois ataques man-in-the-middle simultâ- soluto –, porque também traz multiplicação
neos e sincronizados para hackear o link; e proliferação de outros tipos de usuários
em escala populacional, isso seria difícil não humanos (como sensores, algoritmos
até para os melhores atores de Estado – por financeiros e robôs, da escala nanométrica
enquanto. Mais desconcertante talvez seja à de paisagem); pode-se entrar em relação
o fato de que um marco assim poderia ser com qualquer combinação desses como
usado com a mesma facilidade para retirar parte de um usuário composto. É aqui que a
dados de um site pareado – um “usuário” pa- mudança de grandes plataformas na nuvem
reado – que, por razões válidas, não deveria para a robótica pode ser especialmente vi-
ser perturbado. tal, porque – como as tartarugas de Darwin
122 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
que se orientam entre as diferentes ilhas de de usuário como liga composta; segundo,
Galápagos – a explosão Cambriana na robóti- porque defende contra essas mesmas exi-
ca vê a especiação ocorrer na vida selvagem, gências em nome da integridade ilusória de
não só no laboratório, e “conosco dentro”, não uma autoidentidade que sofre fratura em
fora. Com a fusão do hardware da robótica e torno de seu cerne existencial. Pergunte-se:
da nuvem de todas as escalas em uma cate- aquele usuário é “anônimo” por estar dis-
goria comum de máquina, na interação geral solvido em uma pluralidade mecânica vital
entre humanos e robôs não ficará claro se o ou porque a identificação pública ameaça
encontro ocorre com uma inteligência total- o autodomínio, o senso de autonomia, a ir-
mente autônoma, parcialmente autônoma responsabilidade social etc. do indivíduo?
ou completamente sintética pilotada por Essas duas políticas são muito diferentes;
humanos. As interações cotidianas segui- no entanto, usam as mesmas máscaras e o
damente refazem o Teste de Turing. Existe mesmo pacote de software. Dada a econo-
uma pessoa por trás dessa máquina? Caso mia esquizofrênica do usuário – primeiro,
afirmativo, até que ponto? Com o tempo, a sobreindividuado; depois, multiplicado e
resposta vai perder importância, e a postu- desdiferenciado –, essa reação realmente
lação do humano (ou mesmo de vida baseada não é inesperada ou neurótica. Ela é, con-
em carbono), como medida limiar de inteli- tudo, frágil e inadequada.
gência e como aferidor que qualifica uma éti- Na construção do usuário como perfil
ca política, pode parecer algo como racismo agregado que tanto é quanto não é especí-
residual insípido, substituído por marcos de fico a entidade alguma, não há identidade a
referência menos antropocêntricos. deduzir além do padrão de interação entre
Assim, a posição do usuário ajusta-se atores parciais. Podemos encontrar, talvez
muito incompletamente a qualquer corpo ironicamente, que a posição de Usuário da
individual. Na perspectiva da plataforma, Pilha na verdade tem muito menos em co-
o que parece ser um é, na verdade, muitos, mum com a forma neoliberal do sujeito do
e o que parece ser muitos pode só ser um. que alguns dos formatos oposicionais de
Elaboradas esquizofrenias já dominaram hoje para a subjetividade política que têm a
nossa primeira negociação dessas posi- esperança (com bastante razão) de desafiar,
ções de usuário composto. A posição de reformar e resistir à Pilha do Estado (State
sujeito neoliberal faz exigências absurdas Stack) tal como hoje ela está configurando a
às pessoas como usuários, como eus quan- si mesma. No entanto, algo como uma Carta
tificados, como administradores de siste- de Direitos Digitais para Usuários, apesar
ma de seu próprio psiquismo; a partir daí, de seu otimismo cosmopolita, torna-se uma
paranoia e narcisismo são dois sintomas da solução muito mais complicada, frágil e li-
mesma disposição, duas funções da mes- mitada quando a identificação discreta de
ma máscara. Primeiro, porque a máscara um usuário é ao mesmo tempo tão heterogê-
trabalha para pluralizar a identidade se- nea e tão fluida. Será que todos os usuários
gundo as exigências subjetivas da posição proxy compostos constituem um usuário?
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE BENJAMIN BRATTON 123
Será que qualquer coisa com um endereço dolorosamente claro, seu conteúdo também
IP é um usuário? Se não, por que não? Se é o conteúdo de nossas comunicações diá-
esse trono é reservado para uma espécie – a rias, agora transformado em arma contra
humana –, quando é que algum animal des- nós. Se o efeito panóptico se dá quando não
sa espécie está sendo um usuário e quando se sabe se está sendo vigiado ou não, e então o
não? É usuário sempre que estiver gerando comportamento é como se estivesse, o efeito
informação? Se for o caso, essa política, na panóptico inverso é quando se sabe que está
prática, se cruzaria com alguns de nossos sendo vigiado mas a atitude é como se não es-
conceitos mais básicos do político e os vio- tivesse. Essa é a cultura da vigilância de hoje:
laria, e só por essa razão já pode ser um bom exibicionismo de má-fé. A emergência de
lugar para começar. plataformas em Pilha não promete solução
Além do fortalecimento do usuário alguma, nem sequer distinções entre amigo e
como sujeito geopolítico, também precisa- inimigo dentro dessa geopolítica óptica. Em
mos de uma redefinição do sujeito político algum dia sombrio do futuro, a NSA, quando
em relação às reais operações do usuário, comparada ao califado Google, pode até vir a
uma redefinição baseada não no homo eco- ser vista por alguns como a “opção pública”.
nomicus, nem no liberalismo parlamentar, “Pelo menos ela tem, a princípio, de respeitar
nem na redução linguística pós-estrutura- alguns limites parlamentares”, dirão eles, “e
lista, nem na vontade de afastar-se para a não apenas a ganância dos acionistas e os
segurança moral da privacidade individual frágeis acordos de usuário”.
e subtrair-se à coerção. Em vez disso, essa Se tomarmos o 11 de Setembro e o
definição deve ser focada na composição e lançamento da Lei Patriota como ano zero
na elevação de sites de governança em rela- da maciça campanha americana de coleta,
ção ao material imediato, de sutura e inter- encapsulamento e digestão de dados (que
face entre sujeitos, nos pontos e traços e nas só agora estamos começando a compreen-
dobras da interação entre corpos e coisas a der, mesmo se, com o tempo, vierem à tona
distância, congelando em redes diferentes projetos paralelos da China, da Rússia e da
que exigem tipos muito diferentes de sobe- Europa), poderemos imaginar a totalidade da
rania de plataforma. comunicação em rede na última década – o
Big Haul – como uma única e vasta simula-
As Pilhas Negras ção digital do mundo (ou de uma parte signi-
Concluirei com algumas reflexões ficativa deste). É um arquivo, uma biblioteca
a respeito da Pilha que temos e da Pilha do real. Sua existência como propriedade –
Negra, a figura genérica para suas totalida- roubada – de um Estado, assim como fato
des alternativas: a Pilha do futuro. A Pilha físico, é quase oculta. Quase.
que temos não é definida só por sua forma, O perfil geofilosófico do Big Haul – da
suas camadas, suas plataformas e suas in- energia necessária para preservá-lo à ins-
ter-relações, mas também por seu conteúdo. trumentalidade que o rege entendida tan-
Como um vazamento depois do outro tornou to como texto (muito longo) quanto como
124 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
máquina com várias utilidades – extrapola camada Terra da Pilha e abaixo dela. Sua cor
a política tradicional de software. Sua his- preta é a superfície de um mundo que não
tória é muito mais Borges do que Lawrence pode mais ser composto por adição porque
Lessig. Assim como o seu destino. Pode ser está tão absolutamente cheio, superescrito
destruído? É possível deletar essa simula- e sobredeterminado que acrescentar algo
ção, e é desejável fazê-lo? Existe uma lata significa apenas mais tinta no oceano. Ao
de lixo grande o bastante para o Big Delete? contrário da tabula rasa, esta tabula plena só
Mesmo se fosse possível impedir toda a fu- permite criatividade e figuração por subtra-
tura aquisição de dados, com certeza deve ção, como a raspagem de tinta de uma tela –
haver um backup em algum lugar, o duplo só uma retirada, por morte, por substituição.
idêntico da simulação, de tal forma que, se A lógica estrutural de qualquer sistema
deletarmos um, o outro afligirá para sempre em Pilha permite a substituição de seja o
a história até ser redescoberto por futuros que for que ocupa uma camada por outra
arqueólogos da IA (Inteligência Artificial) coisa, enquanto o resto da arquitetura con-
interessados em suas próprias origens pa- tinua funcionando sem pausa. Por exemplo,
leolíticas. Se fosse possível, nós o enterra- o conteúdo de qualquer camada – terra, nu-
ríamos? Precisaríamos de sinalização ao vem, cidade, endereço, interface, usuário –
seu redor, como a produzida para o depósito poderia ser substituído (inclusive a ficção
de resíduos radiativos da Montanha Yucca, histérica masoquista do usuário individual,
para evitar futuras escavações desavisadas? tanto neoliberal quanto neo-outras-coisas),
Aqueles que tiverem a “sorte” de estar vivos enquanto as demais camadas continuam
durante esses 15 anos desfrutariam de uma sendo um arcabouço viável para a infraes-
certa imortalidade ilegível, curiosidades trutura global. A Pilha é projetada para ser
para qualquer entidade metacognitiva que refeita. Essa é sua forma técnica, mas subs-
montar o quebra-cabeças do nosso passa- tituir um tipo de usuário por outro é mais
do usando nossas atividades on-line, tanto difícil do que substituir fio de cobre por fibra
públicas quanto privadas, orgulhosas e fur- óptica na camada de transmissão TCP/IP.
tivas, cada um de nós erguendo-se de novo Hoje estamos fazendo isso acrescentando
daqui a séculos, cada de nós um pequeno mais coisas, e de diferentes tipos, à posição
Ozymandias de vídeos de gato e Pornhub. de usuário, como apontamos anteriormen-
À luz disso, a Pilha Negra poderia vir a te. No entanto, também deveríamos permi-
significar coisas muito diferentes. Por um tir deslocamentos mais abrangentes, não
lado, implicaria que essa simulação seja apenas elevando coisas ao status de agentes
opaca e não mapeável – não desaparecida, ortécnicos sujeitos políticos, mas abrin-
mas totalmente obscurecida. Poderia impli- do caminho para posições genuinamente
car que, a partir dos fragmentos arruinados pós-humanas e inumanas.
dessa história, seja possível elaborar outra Com o tempo, talvez no eclipse do
totalidade coerente em sentido oposto, mes- antropoceno, a fase histórica do Google
mo a partir da profunda recombinância na Gosplan ceda lugar a plataformas sem estado
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE BENJAMIN BRATTON 125
para múltiplos estratos de inteligência sinté- não humanista: flora Pré-Cambriana trans-
tica e biocomunicação para assentar-se em formada em petróleo transformado em brin-
novos continentes de simbiose cyborg. Ou, quedo, dinossauros transformados em aves
talvez, pelo menos o apetite por carbono e transformadas em cocares cerimoniais, a
energia dessa ambiciosa ecologia embrioná- própria computação transformada na pró-
ria mate seu hospedeiro. xima metamáquina, seja esta qual for, e Pilha
Para alguns dramas, mas espera-se que em Pilha Negra.
não para a fabricação da Pilha do futuro (Pi-
lha ou outra), um certo humanismo e a figura
do humano como acompanhante ainda su-
põe seu lugar tradicional no centro do qua-
dro. Devemos abandonar a exigência de que
qualquer Inteligência Artificial que atingir a
senciência ou a sapiência deva importar-se
profundamente com a humanidade – co-
nosco, especificamente – como sujeito e
objeto de seu conhecer e desejar. O verda-
deiro pesadelo, pior do que o de uma gran-
de máquina querendo matar você, é aquele
em que ela o vê como irrelevante ou sequer
algo a conhecer. Pior do que ser visto como Uma versão anterior deste texto foi apresen-
inimigo é nem ser visto. Como diz Eliezer tada como palestra de abertura do Transmediale:
Yudkowsky, “A IA não te odeia, também não Afterglow, em 31 de janeiro de 2014 em Berlim. Sua
te ama, mas você é feito de átomos que ela apresentação dividiu o palco com outra palestra do
pode usar para outra coisa”.9 Metahaven (Daniel van der Velden e Vinca Kruk),
Um dos acidentes pertinentes à Pilha tendo sido ministrada a convite curatorial de Ryan
pode ser um trauma antropocida que nos Bishop e Jussi Parikka, em parceria com Kristoffer
desloque de uma carreira de design como au- Gansing e Transmediale. Meus agradecimentos a
tores do Antropoceno para o papel de atores cada um deles. O título, A Pilha Negra, foi cunhado
figurantes na chegada do Pós-Antropoceno. por mim e pelo Metahaven para reunir dois pro-
A Pilha Negra também pode ser preta porque jetos correntes: meu próximo livro, The Stack: On
não conseguimos ver nosso próprio reflexo Software and Sovereignty (MIT Press), e o livro pelo
nela. Em última instância, sua geopolítica Metahaven, Black Transparency (Sternberg Press).
aceleracionista é menos escatológica do que Escolhi tomar a figura da Pilha Negra como uma
química, porque seu balizamento do tempo alternativa ao sistema atual de cálculo global.
se baseia menos na promessa de dialética
histórica do que na podridão da desintegra- O presente artigo é uma reedição e atualiza-
ção de isótopos. É impulsionada, creio, por ção do artigo publicado originalmente em março
uma busca de forma molecular inumana e de 2014 na e-flux journal n. 53.
126 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Benjamin Bratton
Teórico cujo trabalho compreende as áreas de filosofia, arte e design. É professor
associado de artes visuais e diretor do The Center for Design and Geopolitics, na Univer-
sidade da Califórnia (San Diego). É também professor de design digital no The European
Graduate School, em Saas-Fee, Suíça. Sua pesquisa situa-se nas interseções de teoria
política e social, mídia computacional emergente e infraestrutura e metodologias inter-
disciplinares de design.
Seus recentes artigos e apresentações públicas tratam de uma gama de questões,
incluindo geografia política da computação em nuvem; razão algorítmica na arte con-
temporânea, arquitetura e design; soberania contestada nas sociedades de rede; sistemas
de endereçamento universais altamente granulares; realidade aumentada e o projeto de
interface da computação ubíqua; modelos alternativos de governança ecológica e os
desafios geofilosóficos das inteligências das máquinas.
Notas
2 Veja Carl Schmitt, The Nomos of the Earth in the International Law of the Jus
Publicum Europaeum. G. L Ulmen (Trad.). Candor, NY: Telos Press, 2006.
3 A referência é a Seeing Like a State, de James Scott, mas o termo parece ter
ampliado e migrado para além de sua tese antigovernamental. Veja também,
por exemplo, a palestra de Bruno Latour, How to Think Like a State (disponível
em: <http://www.bruno-latour.fr/node/357>). Para este texto, minha intenção
foi de estabelecer uma ligação com a conotação de Scott (como os Estados
veem tudo disponível para seus programas) e outra mais no sentido foucaultiano
das tecnologias ópticas reais que invocam formas de governança a sua própria
imagem. Hoje, esses privilégios também são desfrutados pelas plataformas de
hardware/software que fabricam tais ópticas e se aproveitam delas como base
para suas próprias inovações governamentais exo-Estado.
7 Minha eterna discussão sobre a economia política das plataformas com Benedict
Singleton, Nick Srnicek e Alex Williams fundamenta essas últimas observações.
9 Veja: Artificial Intelligence as a Positive and Negative Factor in Global Risk. In:
Global Catastrophic Risks. Nick Bostrom; Martin Rees (Ed.). Nova York: Oxford
University Press, 2008.
128 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
3.
PARA ALÉM DA
DIVERSIDADE: AS PRÁTICAS
DO COMUM, AS REVOLTAS E
AS EMOÇÕES. DAS REDES ÀS
RUAS E DAS RUAS ÀS REDES
Entrevistas:
DO COMUM ÀS REDES
Bernardo Gutiérrez
A língua portuguesa tem um vácuo sobre o comum. Não existe uma palavra própria para
definir o que é de todos e não é de ninguém, o que não é público nem privado. O paradoxo é duplo
porque o Brasil é especialmente rico nas práticas do comum. O texto aborda as diferentes defi-
nições e marcos teóricos do comum, assim como a relação do comum com as práticas coletivas
e comunitárias da América Latina. Os termos “comunidade” e “rede” também dialogam com
o comum, sem serem sinônimos. Na era da rede, o comum perpassa o digital e o analógico, e
pode enriquecer a diversidade cultural. Porém, o capitalismo cognitivo e as práticas top down
do poder público são os principais inimigos do comum
A
língua portuguesa tem um parado- com o comum. Uma empresa de tecnologia
xo sobre o comum: não existe uma proprietária que se apropria da narrativa
palavra própria para definir o que “hacker” e do “colaborativo” ou um Estado que
é de todos e não é de ninguém, o que não é coopta as dinâmicas autônomas da cidadania
público nem privado. O inglês tem a palavra seria as duas caras da mesma moeda: a tragé-
commons. No espanhol, o termo procomún, dia do comum do século XXI. Além disso, a
que existe há cinco séculos, está na moda. explosão das chamadas redes sociais, termo
O paradoxo é ainda maior porque o Brasil usado incorretamente como sinônimo de pla-
é especialmente rico nas práticas dos com- taformas sociais digitais, esvazia o debate do
mons. O comum bebe de tradições ibéricas comum. Nem toda rede é aberta e colabora-
(faixanais, rossios, propriedades comunais), tiva. Nem toda rede social digital é sinônimo
da cultura africana (quilombos, criação cole- de “comum” ou “bem comum”. Nos últimos
tiva) e indígenas (cosmovisões ameríndias, tempos, a realidade mostra o contrário: as
propriedade coletiva, malokas).1 Do mutirão grandes corporações controlam o ecossistema
ao conceito de comunidade que substitui a tecnológico das redes digitais. Companhias
palavra favela, o Brasil é um celeiro de prá- como Facebook, que tiram benefício do capital
ticas do comum. Na esfera digital, depois de social e dos dados dos usuários, inauguram
anos de apoio público às licenças Creative uma era pós-colonial marcada pelo extrati-
Commons e o software livre, o Brasil também vismo 2.0 das grandes multinacionais.
ganhou certa exuberância do comum. Antes de continuar, seria preciso conhe-
Porém, a lógica do mercado e a inércia cer algumas definições do comum e tentar
do poder público não têm sinergia nenhuma relacioná-las com a cultura de rede. Serve o
130 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
conceito do comum para diferenciar entre terra” – água, montanhas, biosfera). É uma
diversas manifestações de cultura de redes? prática comunitária que encontra expressão
Pode-se dizer que existe uma relação entre organizacional no ayllu’.4
a cultura de redes e as práticas do comum? O ayllu é uma palavra que os povos
Existem relações entre os conceitos “comu- aymara da Bolívia usam como sinônimo de
nidade”, “comunitário” e “comum”? uma comunidade que trabalha com recipro-
cidade e propriedade coletiva. O mecanismo
Do comum à comunidade do bem comum aymara é o ayni, um siste-
e vice-versa? ma de trabalho de reciprocidade familiar
Ana Méndez de Andés, do Observatório entre os membros do ayllu. Se estudarmos
Metropolitano de Madrid e da plataforma as práticas da América pré-colombiana, ve-
cidadã Ahora Madrid que governa a capital remos que todos os indígenas praticavam o
espanhola, faz algumas aclarações na entre- crowdfunding (“vaquinha”), o crowdsourcing
vista realizada para essa edição da Revista Ob- (trabalho aberto à criação da multidão) ou as
servatório: “Na questão dos comunes2 e suas tão celebradas dinâmicas participativas da
políticas, creio que é útil separar os distintos era 2.0. Por isso, para nos aproximar do co-
âmbitos nos quais o conceito se desenvolve. mum de uma forma séria, temos que destacar
São diferentes as práticas comunitárias de algumas das práticas coletivas pré-colombia-
recursos facilmente replicáveis, como o soft- nas do continente, como o já citado ayni, o
ware livre ou conhecimento (o que na Espa- tequio (trabalho a favor do coletivo da cultura
nha estamos nomeando como ‘procomún’), zapoteca do México) ou a minga (mecanismo
das práticas comunitárias da América Latina. quéchua de trabalho coletivo, muito comum
Também é diferente a construção de comuns no Peru, no Equador e na Colômbia).
urbanos a partir de serviços públicos como na É pertinente mencionar as práticas
Europa’.3 Apesar das diferentes abordagens, colaborativas ancestrais latino-americanas
existem pontes fortíssimas entre o comum e porque existe um crescente movimento que
as práticas comunitárias. O boliviano Gustavo está tentando misturar esse legado com a
Soto Santiesteban, especialista em questões cultura digital e hacker. Na América Latina
indígenas, faz uma analogia direta entre o surgiram experiências juntando ambos os
termo inglês commons e o Buen Vivir, o para- mundos, como a Minga Abierta (LabSurLab5),
digma civilizatório quéchua. O Sumak Kaw- o Buen Conocer/FLOK Society6 do Equador
say ou Suma Qamaña (termos indígenas do (que enlaça o Buen Vivir com hacktivismo e
Buen Vivir), transformado no horizonte das conhecimento aberto) ou a Minga Campesina,
políticas públicas dos governos do Equador que conectou os povos indígenas colombianos
e da Bolívia, tem um vínculo intenso com a com o movimento dos estudantes e os ativis-
vida comunitária: “O Suma Qamaña possui tas da cultura digital. Podemos comparar
vários significados que se manifestam na vida então o “comum” e o “comunitário”? Como
da comunidade: os animais, pessoas e safras dialoga o comum com a cultura de rede? Que
vivendo juntos com a Pachamama (“mãe tipos de rede incentivam mais o “comum”?
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE BERNARDO GUTIÉRREZ 131
autor do livro Linked,16 destaca as assime- Lee conseguiu que a propriedade intelectual
trias nas topologias da rede. Todas as redes, da World Wide Web fosse aberta: qualquer
além de nós e links que entram e saem, têm usuário pode “usar, duplicar, modificar e dis-
grupos de nós, os clusters. Também existe tribuir”18 o código fonte da web. Tim Berners
um pequeno número de nós com um enor- Lee, impedindo que alguma empresa privada
me número de links a outros nós: são os cha- pudesse se apropriar do código fonte, demo-
mados hubs. Toda rede tem clusters e hubs. cratizou a web para sempre. O Internet.org faz
Quase nenhuma é totalmente horizontal. o contrário: fecha o horizonte da navegação.
Por isso, apesar de as redes distribuídas Em segundo lugar, a apropriação do
gerarem processos com maior diversidade, comum pode ser entendia estudando-se o
nenhuma topologia de rede garante per se o comportamento do polêmico coletivo Fora
comum. Então, qual é a essência do comum do Eixo e de sua marca Mídia Ninja. A lógica
e que mecanismos incentivam e preservam de funcionamento de dito coletivo resume o
o comum? A orientação ao “bem comum” “cercamento do comum” descrito por Peter
de uma rede – que pode ser assimétrica, que Linebaugh no livro O Manifesto da Carta
pode ter várias comunidades interagindo, Magna.19 Em primeiro lugar, inúmeros ato-
que pode ter clusters e hubs – é a chave. O res culturais20 denunciaram a apropriação de
cuidado da rede por parte dos membros da seu capital simbólico para benefício econô-
mesma, a vontade de preservação da rede, mico próprio (usar capital social alheio para
entender a rede como um corpo coletivo, conseguir recursos financeiros que depois
como um processo aberto, vivo, são cara- não são distribuídos em rede). Em segundo
terísticas das redes orientadas ao comum. lugar, a prática de apropriação de espaços e
Para entender melhor o que significa o lutas comuns é outro dos argumentos mais
comum, vamos ver dois exemplos que vão na repetidos contra o Fora do Eixo/Mídia Ninja.
direção oposta. O primeiro é o Internet.org, O lançamento da República da Cinelândia,
que o Facebook quis lançar no mundo todo durante a Copa do ano 2014, foi denunciada
com a narrativa de uma “internet gratuita”. por múltiplos atores sociais como uma “es-
Internet.org era um aplicativo a partir do tratégia de apropriação dos movimentos au-
qual o usuário poderia acessar gratuitamen- tônomos”.21 A cooptação política e o vínculo
te a algumas plataformas (dados do clima, do coletivo com partidos políticos e o Estado,
saúde, classificados, livrarias, notícias...) e ao nos últimos tempos a partir da marca Mídia
próprio Facebook. Mas o Internet.org, como Ninja, reúnem as características da interfe-
assegurou no mês de abril Carolina Botero, rência do público e do Estado no comum: dito
presidente de Creative Commons Colômbia, mecanismo canaliza o comum para dentro do
“não é internet”.17 É só uma janela que privi- poder, provocando a desaparição do comum
legia o acesso de uns serviços sobre outros. e matando a autonomia da cidadania. O co-
Ele atenta contra o livre fluxo da informação, letivo estaria colocando em prática mecanis-
a liberdade de expressão, o acesso livre à in- mos do capitalismo cognitivo (privado) e do
ternet e a neutralidade da rede. Tim Berners Estado (público) que sequestram o comum.
136 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Notas
1 Texto escrito pelo autor para o projeto Mapeando o Comum do Rio de Janeiro.
Disponível em: <http://mappingthecommons.net/pt/riodejaneiro/>.
4 SOTO G.; HELFRICH S. El Buen Vivir and the commons: a conversation between
Gustavo Soto Santiesteban and Silke Helfrich. 2012. Disponível em:
<http://wealthofthecommons.org/essay/elbuenvivirand-commonsconversation-
betweengustavosotosantiestebanandsilkehelfrich>.
8 STEENSON, M Wright (2010). Urban software, the long view. The Habitar (p. 3).
Disponível em: <www.girlwonder.com/blog/wpcontent/uploads/2010/04/
steensonhabitar.pdf>.
9 O livro Governing the commons: The evolution of institutions for collective action,
publicado no ano 1990, é considerado a Bíblia do comum.
10 HARDIN, Garrett (1968). The tragedy of the commons. Science 162 (3859):
1243–1248. Disponível em: <doi:10.1126/science.162.3859.1243. PMID 5699198>.
14 GABRIEL, Martha (2012). Redes sociais centralizadas vs. distribuídas. Disponível em:
<http://www.martha.com.br/20110211redessociaiscentralizadasvsdistribuidas/>.
COMO FOI A EVOLUÇÃO DAS LUTAS CIDADÃS, crise, do desmantelamento dos serviços públi-
DOS MOVIMENTOS SOCIAIS E, DE MANEIRA cos e do corte de direitos. Percebem-se então,
GERAL, DO ECOSSISTEMA 15M QUE CRITICAVA de maneira especialmente clara, os limites de
A “REPRESENTAÇÃO” EM RELAÇÃO AO CHA- uma mobilização social confrontada com um
MADO “MUNICIPALISMO”? POR QUE NOMES regime bipartidário que pode dar-se ao luxo de
TÃO DÍSPARES, E INCLUSIVE MOVIMENTOS ignorar as reivindicações cidadãs, inclusive as
AUTÔNOMOS, VINCULARAM-SE À CANDIDA- mais consensuais, quase sem consequências,
TURA CIDADÃ DE AHORA MADRID, QUE HOJE e começa a tomar forma a ideia de ocupar as
GOVERNA A CIDADE DE MADRI? instituições (asalto institucional).
Após o 15M e antes das eleições euro- A integração de vários agentes às
peias, sucedem-se quase três anos de lutas plataformas cidadãs foi, de fato, a base do
em distintas frentes [na questão da moradia conceito-chave do projeto municipalista: o
com a Plataforma de Afetados pela Hipoteca consenso. Um consenso que desarticula a
(PAH), nas marés contra a privatização dos luta pela hegemonia com base na ideia de que
serviços públicos, nas lutas tanto contra a pri- só todas juntas e em torno do desejo comum
vatização do espaço urbano quanto contra a de mudança democrática radical poderíamos
exploração de recursos naturais] com vitórias ter força suficiente para arrebatar o poder do
significativas, que, no entanto, são insuficien- partido que havia governado a cidade duran-
tes diante da violência da austeridade tornada te quase um quarto de século.
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE ENTREVISTA COM ANA MÉNDEZ DE ANDÉS 145
AS CHAMADAS REDES SOCIAIS SÃO IMPOR- fornecida pela mídia tradicional, criando
TANTES PARA CONSERVAR A “DIVERSIDADE contextos diferentes de sentido e interpre-
CULTURAL” OU SUA IMPORTÂNCIA RESIDE tação das notícias políticas e contribuindo
MAIS NA “TRANSVERSALIDADE”, NAS CONE- para a identificação com atores políticos,
XÕES GERADAS OU EM OUTRA QUESTÃO? redes de afinidade e comunidades.
Sempre consideramos a tecnopolíti- Por outro lado, o papel de conector e
ca um dos eixos principais desta nova fase agregador social das redes sociais confere
política. O uso das redes sociais foi chave precisão a conteúdos gerados por meio de
no desenvolvimento e fortalecimento do periódicos digitais, blogs de opinião, canais
15M e de muitos dos processos posterio- de vídeos, repositórios de imagens e pela
res e continuará sendo chave na nova fase incansável imaginação coletiva dos memes
institucional por causa da sua capacidade e gifs. A transversalidade e diversidade das
de estabelecer canais de comunicação que redes dependerá da boa saúde do ecossistema
permitem que se contorne a informação de produção digital do qual se alimenta.
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE ENTREVISTA COM ANA MÉNDEZ DE ANDÉS 147
MAHMOUD M. EL-SAFTY
NAZAN ÜSTÜNDAĞ
terreno no sul da Síria, declararam autono- O PARQUE GEZI DEU VISIBILIDADE A DIFE-
mia e depois que o Partido Popular da De- RENTES LUTAS E MOVIMENTOS ACERCA
mocracia, baseado em uma aliança entre DOS COMMONS, SOBRETUDO OS COMMONS
organizações políticas curdas e de esquer- URBANOS. AS REDES (DIGITAIS) DERAM
da, conquistou 13% dos votos. Agora, a paz VISIBILIDADE ÀS LUTAS PELOS COMMONS
voltou a ser nossa questão mais importante, DIGITAIS, PELA CULTURA LIVRE E PELA CUL-
número um na agenda. Na Turquia, contu- TURA COPYLEFT?
do, onde o nacionalismo está em ascensão Não estou muito envolvida com a comu-
e o medo domina a atmosfera, paz tornou- nidade digital. Mas o Twitter e o Facebook
-se uma palavra perigosa. A situação síria são espaços muito importantes de oposição
também tem um papel nisso tudo. Pelo visto, e, portanto, o governo frequentemente os blo-
a Turquia infelizmente se tornou terreno queia ou desativa determinados endereços.
de novas guerras. Mas a Turquia já sofreu Algumas pessoas também criticam as mí-
o suficiente com a guerra entre o Estado e dias eletrônicas e acham que o ativismo via
o Partido dos Trabalhadores do Curdistão. Twitter substitui os protestos reais. Não con-
O Curdistão é uma colônia turca e, embora cordo. Quando, por exemplo, o governo turco
os curdos não reivindiquem um país inde- decreta toque de recolher em cidades curdas,
pendente e sim democracia e autonomia, é só por meio da mídia digital que recebemos
isso é considerado crime na Turquia. Nessa notícias dessas cidades, organizamos pro-
guerra, 40 mil pessoas morreram, milhares testos contra sua situação e chamamos a
desapareceram e milhões foram deslocadas. atenção sobre elas por meio do trending de
Entre julho e dezembro, outras centenas certos tópicos. Como as eleições são injustas
de pessoas foram mortas, muitas das quais em termos do financiamento distribuído aos
eram civis que protestavam contra o Estado. partidos políticos para a campanha, e como
Nesse meio tempo, e por essa razão, tornou- a política pró-curdos nas ruas foi dificultada
-se mais uma vez impossível falar na Tur- pelos ataques em massa organizados pelo go-
quia sobre direitos das mulheres, direitos verno, as campanhas digitais são essenciais
dos trabalhadores etc. Portanto, estabelecer para expressar oposição ao governo. Ainda
um processo de paz democrático, transpa- assim, muitas pessoas são presas por causa
rente e participativo é a questão mais im- de seus tweets e acusadas de insulto ao presi-
portante na Turquia. dente ou ao caráter nacional turco etc.
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE ENTREVISTA COM NAZAN ÜSTÜNDAĞ 159
Nazan Üstündağ
Professora adjunta do Departamento de Sociologia da Universidade Boğaziçi. Seus
interesses acadêmicos são: violência, etnografia do Estado, métodos narrativos, teoria
feminista e pós-colonial. Atualmente trabalha no processo de paz e guerra na Turquia, no
Movimento de Libertação Curda e em como este se redefine no Oriente Médio. Também
é membro fundadora de Mulheres pela Paz, Acadêmicos pela Paz e do Parlamento da
Paz na Turquia. É colunista do jornal Özgür Gündem.
(Seu e-mail é: nazanust@hotmail.com.)
164 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
KOSTAS LATOUFIS
ALÉM DE GOVERNAR O PAÍS, A COLIGAÇÃO Syriza foi absorvida pelas negociações com a
DA ESQUERDA RADICAL, SYRIZA, PARTIDO DE Troika, depois vieram o referendo e o terceiro
ESQUERDA DA GRÉCIA, TAMBÉM GOVERNA memorando em agosto, e a seguir mais uma
ALGUNS MUNICÍPIOS E REGIÕES. ELES ESTÃO vez eleições em setembro. Em razão desses
IMPLEMENTANDO ALGUMA ABORDAGEM acontecimentos, e com certeza também do
DOS COMMONS URBANOS, CULTURA LIVRE fato de a Syriza ter ignorado o resultado do
E CULTURA COPYLEFT? referendo e implementado novas medidas de
Quando a Syriza ganhou algumas prefei- austeridade, os movimentos sociais deixaram
turas nas eleições regionais de maio de 2014, de confiar muito na Syriza. Além disso, a pró-
houve grande expectativa em relação aos pria Syriza perdeu a maioria de seus filiados
novos prefeitos de esquerda, especialmente que participavam de movimentos sociais de
em algumas áreas de Atenas, onde o governo base, precisamente as pessoas que podiam
regional da Ática também foi conquistado introduzir conceitos como commons urbanos,
pela candidata da Syriza, Elena Dourou. Foi cultura livre e a cultura copyleft na agenda po-
só em setembro de 2015 que os eleitos assu- lítica do partido.
miram oficialmente o governo das prefeituras Que eu saiba, os municípios da Syriza em
e, infelizmente, não aconteceu muita coisa Atenas não fizeram esforço algum para abor-
até as eleições nacionais de janeiro de 2015, dar esses tópicos. Ao contrário, há o caso dos
já que o partido estava cuidando da prepa- ocupantes da Villa Zografou,1 em Atenas, que
ração para as eleições. De janeiro a julho, a o prefeito local, da Syriza, quer expulsar.
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE ENTREVISTA COM KOSTAS LATOUFIS 169
Kostas Latoufis
Engenheiro elétrico e eletrônico, trabalha como pesquisador em energia renovável na
Unidade de Pesquisa de Redes Inteligentes (Smart Grid Research Unit – SmartRUE.gr) da
Universidade Técnica Nacional de Atenas (National Technical University of Athens – NTUA,
Grécia) e no Grupo de Pesquisa em Eletrificação Rural (Rural Electrification Research
Group – RurERG.net), que estuda a eletrificação de comunidades situadas em locais
remotos usando tecnologias ambiental e socialmente apropriadas. Desde 2012, está
trabalhando em sua tese de doutorado sobre as pequenas turbinas eólicas fabricadas
localmente e tecnologias de hardware de código aberto para energia renovável.
Desde 2009, atua na Nea Guinea (neaguinea.org), uma organização sem fins lucra-
tivos de Atenas envolvida com a construção de comunidades resilientes, especializada
em questões de autossuficiência em energia renovável, agricultura orgânica, construção
natural e saúde alternativa. Na oficina de energia renovável da Nea Guinea, Kostas organiza
cursos de fabricação de pequenas turbinas eólicas, painéis solares e pico hidro turbinas,
enquanto também executa numerosas instalações isoladas (off-grid) de energia renovável
em projetos rurais de permacultura e vida sustentável na Grécia.
(Seu e-mail é: eaguinea@riseup.net.)
170 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Nota
1 Villa Zografou é um terreno de dois hectares onde há uma antiga mansão; está
situado no bairro densamente povoado de Zografou, em Atenas. Foi caracterizado
como espaço público quarenta anos atrás, mas era só parcialmente de propriedade
do município. Antes dos Jogos Olímpicos de 2004, os beneficiários da Villa
tentaram obter autorização para construir edifícios de apartamentos no terreno,
mas o município rejeitou o pedido e o terreno foi caracterizado como área verde
pública pela prefeitura da Ática. Em 2006, o município chegou a um acordo com
os beneficiários no sentido de comprar o resto do terreno por um determinado
preço e, além disso, dar aos beneficiários o direito de construir um shopping de
15 mil metros quadrados no terreno. Isso suscitou um movimento social no bairro
contra o acordo e a favor de transformar o terreno em parque público, ao que a
justiça deu ganho de causa em 2007. Após sua ocupação pelos cidadãos, jovens,
estudantes e trabalhadores do bairro em 2011, a mansão foi reformada, e o terreno,
transformado em parque público. O centro social é autogerido por uma assembleia
semanal e muitas ações culturais e políticas ocorrem no local da ocupação. Em
2015, as autoridades do município, agora governado pela Syriza, decidiram mudar o
conservatório municipal para a mansão, assim ameaçando indiretamente expulsar
o centro social. Houve uma grande manifestação de apoio ao centro social, e a
prefeitura mudou seus planos por enquanto.
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE ENTREVISTA COM KOSTAS LATOUFIS 171
172 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
O ensaio propõe que a comunicação digital, sobretudo através dos sites de redes sociais,
exacerbou o papel dos afetos na comunicação, transformando o par formado por fãs e haters
nas figuras emblemáticas da atualidade, sobre o qual necessitamos de análises aprofundadas.
Para tanto, aborda perspectivas que incorporam a discussão sobre o lugar dos objetos e afetos na
construção dos coletivos, tanto quanto a discussão em torno do “ativismo dos fãs” nas redes sociais
O
s sites de redes sociais tornaram-se, anos 1990, na aurora da cibercultura? Ou,
indiscutivelmente, um ambiente ao contrário, as incensadas comunidades
central de comunicação e sociabili- virtuais transformaram-se em torcidas de
dade durante a última década, inclusive – ou futebol: espaço de paixões exacerbadas e
sobretudo – no Brasil. Somos o segundo país fanatismos, onde qualquer debate entre opi-
em número de perfis no Facebook, só perden- niões diferentes descamba para xingamentos,
do para os EUA; brasileiros estão em quarto humilhações e ofensas ao adversário? Além
lugar no uso da internet; e o número de chips disso, como é possível que amigos sensatos
de celulares ultrapassa o número de habitan- e cordiais no trato off-line expressem suas
tes do país. Outros dados, como a presença opiniões de maneira preconceituosa e des-
da internet em cerca de 50% das habitações respeitosa a grupos rivais on-line? E, ainda,
brasileiras, corroboram o argumento de que, como explicar o fenômeno dos haters, que se
malgrado obstáculos à inclusão digital, o dedicam com afinco a odiar expressões socio-
acesso às redes digitais disseminou-se por culturais com a mesma força que os fãs dedi-
todas as camadas da população brasileira.1 cam seu amor aos mesmos temas e objetos,
Contudo, ainda que esses números se- seja a música, seja a religião, seja a política?
jam expressivos, parece não haver motivo Ironicamente, as figuras dos fãs e haters
para celebração, pairando entre nossos pares também podem ser encontradas entre pes-
acadêmicos uma compreensível perplexida- quisadores do fenômeno da cibercultura des-
de. Pois, afinal, ainda é possível pensarmos de o final dos anos 1990, quando esta ainda
na cultura digital como um instrumento de despontava como uma promessa. Naquele
democratização, tal como se apostava nos momento, poder-se-ia identificar muito
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE SIMONE PEREIRA DE SÁ 173
estabelece hierarquias entre humanos e não e de cultura. Nesse sentido, a cultura mate-
humanos; e onde qualquer desvio num dos rial – referida por Miller (2010) como todos
pontos produz diferença em toda a rede. Ar- os “trecos, troços e coisas” – não nos “repre-
gumento importante, por problematizar a senta”, mas sim faz de nós o que somos, nos
hierarquia entre sujeitos e objetos e possibi- transformando em humanos (PEREIRA
litar o reconhecimento dos artefatos técnicos DE SÁ, 2016).
como coatores em qualquer rede estabelecida Essa proposta vai além tanto da tradi-
com humanos. Assim, por mais paradoxal que ção marxista, que entende a nossa relação
pareça, é através da relação com os objetos com os objetos técnicos em termos de feti-
que nos tornamos humanos; che da mercadoria, como
e as tecnologias cristalizam [...] a comunicação digital, também da tradição se-
processos sociais (PEREIRA sobretudo através dos sites miótica, ainda presente,
de redes sociais, exacerbou
DE SÁ, 2014). por exemplo, em alguns
o papel dos afetos na
A ideia de tarefas dis- comunicação, transformando estudos sobre consumo
tribuídas entre humanos e o par formado por fãs e haters que percebem a cultura
não humanos, tanto quanto nas figuras emblemáticas [...] material como símbolos ou
o conjunto de questões sus- signos que representam ou
citado pela discussão anteriormente deli- traduzem as relações sociais em termos de
neada, parece útil por nos permitir ir além status, poder, hierarquia etc.
das dicotomias muito comuns na aborda- Se retornamos ao ambiente da cultura
gem da relação entre técnica e cultura ou digital, creio que o diálogo com essas pers-
entre sujeitos e objetos. E, nesse sentido, a pectivas contribui para complexificarmos
Teoria Ator-Rede contribui para incorpo- nosso olhar sobre o fenômeno, entendendo
rarmos na análise os objetos e nossos vín- que os sites de redes sociais são, efetivamen-
culos e afetos por eles. te, ambientes povoados por redes sócio-téc-
Contudo, a questão das materialidades nicas diversas formadas por acoplagens
pode ainda ser explorada em outras direções. entre humanos e tecnologias.
Tomemos, por exemplo, a vertente antropo- Dentro dessa rede, conforme mencio-
lógica dos estudos de cultura material, que nei anteriormente, a performance de gosto e o
também têm se dedicado ao questionamento modo afetivo de comunicação parecem ser as
e à superação das oposições entre “pessoa formas de expressão e narrativa dominantes.
e coisa, animado e inanimado, sujeito e ob- Por performance de gosto entendo, em
jeto” (KEANE, 2005; MILLER, 2005, 2013; diálogo com Hennion (2001, 2002), a di-
HORST; MILLER, 2006; MIZRAHI, 2010; mensão processual e coletiva que envolve
TILLEY et al., 2006). a expressão valorativa dos afetos. Ou seja,
Nessa perspectiva, o fio condutor é a a forma como expressamos nosso amor pe-
premissa de que sujeitos e objetos são mu- los objetos sócio-técnicas (PEREIRA DE
tuamente dependentes e cocriativos na cons- SÁ, 2014). E, por modo afetivo, me refiro ao
trução do que chamamos de subjetividades modo discursivo que se utiliza de materiais
178 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
que apelam para a emotividade e para as pai- se torna importante, a fim de superarmos a
xões; e que envolve o conjunto de elementos dicotomia entre os mundos do consumo e
como emoticons (ícones que traduzem nos- da cidadania e política, uma vez que fãs e
sas emoções com carinhas alegres ou tristes, ativistas têm mais afinidades do que supõe
corações pulsando, estrelinhas e uma infini- o senso comum.
dade de expressões imagéticas que parecem Não se trata aqui de afirmar que todo
ter sido retiradas de um diário de adolescen- fã é ativista ou que as intenções cívicas de
te, mas que são utilizadas um grupo de fãs e de ativis-
por todos nós, sem limite Conforme antecipou McLuhan, tas são idênticas, mas sim
o meio é a mensagem,
de faixa etária); expressões de enfatizar a porosidade
apontando assim para o fato
onomatopeicas de prazer entre cultura e política,
de que os meios não são
ou dor (hehehe; kkkk; en- neutros, mas coprodutores dos sublinhando o fato de que
tre muitas outras); selfies e processos comunicacionais “formas de ativismo políti-
outros tipos de fotografias co vêm sendo visibilizadas
“fofas”, “estranhas”, “fora de foco”, comuni- graças à aprendizagem com práticas de con-
cando assim diversos estados emocionais; sumo da cultura popular” (AMARAL et al.,
letras de música; hashtags que se alastram 2014). Ou seja: o argumento aqui exposto vai
pelos sites indicando nosso estado naquele além de entender os fãs como intérpretes ati-
momento (#gratidão; @sentindo-se aben- vos dos materiais da cultura pop, reivindican-
çoada; @sentindo-se animada etc.), entre do a necessidade de análises que aprofundem
outros. Cultura afetiva, cuja performance seu papel como produtores de práticas e nar-
se traduz no estilo fandom de nos expres- rativas extremamente eficazes para ganhar
sarmos e cujos personagens centrais são, visibilidade no disputado cenário de excesso
portanto, os fãs e os haters. informacional da contemporaneidade.
Contudo, perceber a cultura das redes Assim, se definirmos brevemente os
como uma cultura de fãs (e haters), movida fãs, a partir dos estudiosos da “cultura parti-
pelos afetos aos objetos de consumo, não cipativa”, como os consumidores engajados,
significa apostar na hipótese da vitória do que constroem suas identidades através dos
capitalismo avançado e da desmobilização produtos culturais, sobretudo da cultura
política. Pelo contrário. pop, como seriados, quadrinhos, música,
moda etc; e os ativistas como os atores en-
Fãs e ativismo nas redes sociais gajados na ação intencional para modificar
Conforme aponta Amaral (et al., 2014) a hegemonia e provocar mudança, caberia
em diálogo com os estudos de fandons argumentar que ambos encontram-se mobi-
transculturais (JENKINS, 2006, 2008; lizados em torno de valores coletivos e dis-
BENNET, 2012; BROUGH; SHRESTOVA, postos a atuar criticamente em favor destes
2012;) e de ativismo nas redes sociais (JENKINS, 2006, 2008; BENNET, 2012).
( BURWELL; BOLER, 2008; MALINI; Dessa maneira, a mesma “energia” que
ANTOUN, 2013), a noção de ativismo de fãs mobiliza um coletivo de fãs da Lady Gaga
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE SIMONE PEREIRA DE SÁ 179
ou Harry Potter, por exemplo, a consumir os causa; por outro, o conjunto de práticas que
produtos culturais ligados aos seus ídolos sustenta a performance de gosto do fandom
também pode ser mobilizada para causas constitui um modo narrativo que tem sido
sociais relacionadas ao universo de ambos. apropriado pelo ativismo político na busca
Além disso, fãs são ativos, críticos, têm alta por visibilidade e construção de laços afe-
capacidade de mobilização e pressão em tivos em torno de uma causa num ambiente
torno de suas causas, além de produzirem saturado de informação e, portanto, de alta
e compartilharem leituras divergentes das disputa pela atenção.
mensagens hegemônicas, a partir de uma Contudo, antes que os críticos deste
ampla atividade de criação coletiva, na forma argumento afirmem que os exemplos aci-
de fanzines, fanfics etc. ma não representam “autênticas formas de
Um exemplo destacado por Bennett ativismo”, caberia problematizar a própria
(2012) é o uso do blockbuster Avatar, de definição de “ativismo autêntico”, ecoando
James Cameron, por ativistas palestinos, que assim as observações de Duncombe (2007;
se vestiram como os personagens do filme apud In: BENNET, 2012). Para o autor,
em protestos de rua na fronteira com Israel, reivindicar uma forma de ativismo políti-
ganhando assim visibili- co cujo modelo ainda se
dade na mídia mainstream Contudo, perceber a cultura das ancora nas estratégias
e também em materiais redes como uma cultura de fãs predominantemente “dis-
(e haters), movida pelos afetos ciplinadas” e “racionais”
circulados na internet.
aos objetos de consumo, não
Também Amaral (et de Martin Luther King
significa apostar na hipótese da
al., 2014) cita um conjunto vitória do capitalismo avançado Jr., por exemplo, é uma
de práticas de mobilização e da desmobilização política armadilha, uma vez que o
da cultura fandom apro- jogo, a performance, o es-
priadas por ativistas, seja nos protestos de petáculo e o afeto são elementos cruciais da
rua em 2013, seja nas redes sociais. Fantasias mobilização política e devem ser reconhe-
e cartazes com frases inspirados em persona- cidos como tais.
gens de seriados, memes, citações de músi- Como questão final, cabe reconhecer
cos pop e filmes são alguns dos exemplos que que, talvez, o estilo fandom, que reproduz a
borram as fronteiras entre mundo do consu- lógica das torcidas – a favor ou contra uma
mo e mundo do ativismo político, apontan- ideia – seja eficiente para chamar aten-
do para a centralidade do estilo fandom nas ção para uma causa, mas não seja o mais
narrativas contemporâneas. adequado para discussões que envolvam
Esses exemplos demonstram nosso ar- sutilezas, nuances, ponderações. E, dessa
gumento central: as práticas de fãs e ativistas maneira, precisamos de outros espaços
irrigam-se mutuamente e podem ser vistas que complementem tais ambientes supe-
numa escala de ações (mais ou menos) re- raquecidos para repercutir e aprofundar as
sistentes à cultura hegemônica. Pois, por um discussões que rapidamente incendeiam
lado, parte dos fãs é ativista em prol de uma as redes sociais.
180 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
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2016. No prelo.
Notas
Abordamos neste ensaio alguns dos eixos constitutivos das formas emergentes de ativis-
mo que combinam ocupação das ruas e das redes. Propomos algumas categorias analíticas
para abordar as revoltas que eclodem a partir de 2011, destacando o papel da imaginação, das
emoções e dos processos de subjetivação na emergência de um novo sujeito político, assim como
o papel e o lugar das redes digitais da web. Interessa-nos apontar, como anotações, linhas de
pesquisa capazes de acompanhar esses movimentos sociais
E
marca, ao contrário, sua distância e seu não
m uma linha de tempo relativamente desejo de inscrever-se no sistema. Essa tal-
longa, poderíamos dizer que a dissi- vez seja uma das faces menos discutidas do
dência no México é uma velha his- zapatismo, na medida em que as condições
tória com períodos de alta intensidade, que de vida dos insurretos levaram rapidamente
podem remontar à colônia, mais tarde à guerra o debate para o tema da inclusão-exclusão. A
da reforma, a seguir, à revolução de 1910 e, no pobreza, os agravos históricos, a injustiça e
transcurso do século XX, a momentos parti- a terrível desigualdade a que foram subme-
culares de nossa história. No entanto, para os tidos os indígenas mexicanos, neste caso os
fins deste breve ensaio, eu gostaria de partir – do sudoeste do país, obliteraram a dimensão
como momento fundacional na história con- mais dramaticamente irruptiva da rebelião
temporânea do México – da irrupção, em 1994, indígena, que foi justamente seu chamado a
dos indígenas zapatistas na cena nacional, pensar de outro modo, a construir um espaço
porque esse momento marca, em seu sentido distinto, afastado dos centros de poder.
mais profundo, o significado de “dissidência”, O dissidente não está na oposição,
que é derivado de dissidir (e não de dissentir), decidiu separar-se (“não residir”, do grego
cujo núcleo interpretativo articula-se com “se- meneoo): daí vem seu potencial transforma-
parar, não permanecer, não desejar”. dor, da revelação de outra ordem possível.
O zapatismo constituiu-se justamen- O dissidente articula resistência e sedução
te como chamado a uma insurreição que (como no subtítulo do documentário de
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE ROSSANA REGUILLO 185
Rodrigo Dorfman1); por isso, diante do cha- American Free Trade Agreement)
mado zapatismo, os poderes proprietários no México, por meio do qual o então
se paralisam e só atinam em responder com presidente Carlos Salinas de Gortari
força e com propostas de “inclusão”. decretou a entrada do país, em ma-
Diante da ordem discursiva da democra- nobra impecável, nas doces águas do
cia moderna e de seus dispositivos fundamen- livre comércio;
tados na noção de consenso, de equilíbrios, de b) as derrotas dos movimentos sociais
manutenção – a qualquer custo – dos acordos, a das décadas de 1960 e 1970 e a re-
dissidência irrompe para desestabilizar a polí- pressão que sofreram, bem como a
tica dos consensos (FERNÁNDEZ-SAVATER, retração de numerosos atores so-
2011), e especialmente para “desordenar o ciais que optaram pelo trabalho em
mapa policial do possível”. pequena escala;
A dissidência é sedução, é resistência, c) os impactos sociais e simbólicos de
mas é fundamentalmente imaginação por uma indústria midiática e cultural
meio da qual procura instaurar um tem- esmagadora, que se dedicou com
po impossível (DERRIDA, 2003), abre as afinco a produzir versões unívocas
comportas para o que pode ser possível e, da realidade.
à maneira derridiana, abre caminho para
a insurreição do possível. Nesse sentido, a Nesse espaço chamado zapatismo fo-
dissidência é, mais do que uma economia ram brotando sonhos e projetos, anelos e
da redenção, uma economia da imaginação. cooperativas, desejos e escolas, primeiro ao
O zapatismo abriu as comportas da ima- redor de um lócus chamado “La Realidad”,
ginação em um momento em que o mapa dos depois “Aguascalientes” e, já mais tarde, ex-
horizontes possíveis parecia colapsado por plodindo em rizomas chamados “Caracoles”.
três questões fundamentais: “[...] O messiânico, ou a messianicidade
sem messianismo, seria a abertura ao futuro
a) a decisão dos mercados de assinar ou à vinda do outro como advento da justiça,
acordos internacionais para dotar o mas sem horizonte de espera e sem prefigura-
neoliberalismo globalizante de um ção profética”, diz Derrida (2003, 61). Talvez
marco legal de operação. É o caso do seja possível encontrar, nessa elaboração, uma
Nafta (Tratado Norte-Americano pista-chave sobre o coração da dissidência, a
de Livre Comércio; em inglês: North do acontecimento como advento do outro em
186 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
um horizonte sem esperas proféticas. Esse ou- dentro ou justificar a repressão), os estu-
tro que se torna outro possível, esse espaço à dantes da “Ibero” postaram na internet um
parte, esse tempo impossível que se configura vídeo de 11 minutos no qual 131 deles, com
como uma “estrutura geral da experiência”. suas credenciais nas mãos, se apresentavam,
A partir dessas colocações, é possível exercendo seu direito de réplica às desquali-
dizer que a dissidência necessariamente ficações e qualificações de que haviam sido
exige uma forma de dessubjetivação, um ar- alvo.2 O vídeo viralizou de forma sem prece-
rancar-se de si, para construir uma nova sub- dentes na história recente do país.
jetividade. Resistência, sedução, imaginação, Cada um dos participantes utilizou três
advento do outro para configurar um espaço elementos para configurar o vídeo: seu nome,
distinto/à parte no qual outra subjetividade seu número de matrícula e sua carteira de es-
se torna possível. tudante – credencial – da Universidade. Um
signo, um índice e um ícone. O nome próprio
Novas paisagem dissidentes: é o signo que opera como emblema, como con-
#YoSoy132 densação de um eu, uma narrativa biográfica
Em 11 de maio de 2012, o candidato à a partir da qual se participa; o número da ma-
presidência do México pelo Partido Revolu- trícula é um índice que permite situar com
cionário Institucional (PRI), Enrique Peña facilidade aspectos relevantes e importantes
Nieto, visitava um dos auditórios da Univer- da continuidade de um elemento (simbólico
sidade Ibero-Americana, na cidade de Méxi- ou material) com a realidade – nesse caso, sua
co, em mais um ato no encadeamento ritual condição de estudante; por fim, a carteira de
das eleições. Os estudantes o interpelaram e, estudante opera como ícone, representação ou
sem roteiro preparado, a prepotência do poder signo que mantém uma relação de semelhança
foi mais forte, não soube, não quis calibrar a com o objeto representado. Por isso, o vídeo de
inteligência sensível de seus interlocutores quase 11 minutos de duração, no qual os mes-
e aí se desencadeou a primeira sequência no mos elementos são repetidos em diferentes
desenrolar do acontecimento que se tornou tons e ênfases, é tão poderoso: não se elude a
#YoSoy132. Nada estava escrito, e era inclu- responsabilidade individual (o nome próprio)
sive um “incidente” que poderia ter passado e se fala a partir de um lugar de identidade. No
despercebido. Mas, embora nada estivesse es- entanto, talvez para além desses elementos, o
crito, já existia um espaço, um tempo aberto que desencadeou o acontecimento, a potência,
para o advento do outro, do diferente. foi que esses jovens evidenciavam, por meio do
Pouco tempo depois, e diante da desqua- uso das redes, que o horizonte do possível po-
lificação do que ocorrera pelo presidente na- dia transmutar-se em paisagem do impossível.
cional do PRI, Pedro Joaquín Coldwell, que “Pensamos que não se trata de mero uso
acusava os jovens universitários indignados das redes sociais, mas da atuação coletiva e
de vendidos, de porros (assim se chamam no inteligente de apropriação de redes sociais
México os grupos de choque que se infiltram e outras ferramentas digitais para uma ação
nos movimento sociais para detoná-los por política e coletiva transformadora. Não é a
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE ROSSANA REGUILLO 187
revolução Facebook ou Twitter, é uma nova O mês de junho de 2012 foi o da força
capacidade tecnopolítica, praticada de for- do impossível. As cascatas de ações suce-
ma maciça por cidadãos em rede”, diz Javier diam-se em velocidade extraordinária, as-
Toret, do grupo DatAnalysis15m.3 sembleias, ocupação de praças em diferentes
O vídeo 131 Alunos da Ibero foi seguido, cidades, uma efervescente conversa coletiva
em sequência alucinante, por novos vídeos nos nas redes, acampamentos, campanhas infor-
quais os protagonistas (em sua maioria, jovens mativas em meios de transporte e em bairros,
estudantes de universidades públicas e priva- surgimento de fóruns nacionais, coletivos
das) afirmavam “ser o ou a 132”, somando-se, que se somavam a #YoSoy132, passeatas,
assim, um por um, a uma onda que encontra- plantões que assumiam diferentes configu-
ria sua melhor expressão e condensação sim- rações, todas, porém, sob o manto da “espe-
bólica na hashtag #YoSoy132, que, naquela rança sem espera”, como diria Derrida.
época, final de maio de 2012, já era uma “ten- Aprendendo no curso da própria ação,
dência” no Twitter e um tema fundamental no as e os integrantes do movimento avançavam,
Facebook. Além disso, o movimento já havia não sem contratempos, na tensão entre a sub-
comprovado várias vezes sua força nas ruas. versão e a invenção. Não se trata aqui de um
#YoSoy132 não era um chamado à insur- jogo de palavras e, sim, de uma tensão-chave
gência em sentido político tradicional; era um que gostaria de chamar de “espaço interme-
convite dissidente a pensar e sentir de outro diário”; essa espécie de liminaridade, potên-
modo, um apelo a pensar e a sentir “como se a cia, que entendo como o processo aberto pela
gente já fosse livre”, como se tudo já tivesse co- irrupção de um acontecimento: que gera suas
meçado a mudar pelo mero fato de imaginá-lo. próprias coordenadas espaço-temporais; que
Cansados da classe política mexicana, se caracteriza pela tensão entre uma ordem
da corrupção, da manipulação constante anterior e uma nova realidade em gestação;
da informação e, com esta, da realidade, as no qual se expressa a tensão política entre
e os jovens encontraram na configuração a transformação ou a preservação das cate-
#YoSoy132 a possibilidade de “afastar-se” e gorias para pensar o mundo (REGUILLO,
desordenar o mapa policial do possível.4 Fun- 1995). Subverter é perturbar, transtornar
damentalmente por meio da ruptura da con- um sistema; invenção é inventio, invenire, é
figuração de uma ordem preestabelecida. Sua encontrar, descobrir, criar.
batalha contra a manipulação da informação
concentrou-se, é verdade, na Televisa, mas Arder juntos
a potência do movimento gerou um desliza- Víctor Vich diz que “há imagens emocio-
mento importante: além de um “contra” cla- nais que podem mover as bases mais estáveis
ramente estabelecido, produziram uma chuva dos estados nacionais” (2004). Há ações polí-
de opções informativas. Elas e eles agora con- ticas que têm a virtude camaleônica de operar
tavam a história: rádios na internet, páginas, simultaneamente como “imagens fotogra-
boletins, revistas que lhes permitiam romper fáveis” – o que significa “decifráveis” para
o monopólio da palavra legítima. os meios de comunicação – e de tornar-se
190 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
poderosos apelos a subjetividades diferen- das emoções, equivale a sentir com outros e
ciadas – o que significa “apropriáveis” por imaginar um bem comum para e com os ou-
um conjunto diverso e disperso de atores so- tros. Nesse advento da solidariedade, essa
ciais que se reconhecem de repente em uma emoção primária de com/doer-se ou enamo-
imagem, em um ritual, em uma performance rar-se do outro e desejar seu bem é o princípio
espontânea ou intencional. telúrico da dissidência, o anúncio da chegada
Em seu tornar-se acontecimento, tanto disso/desse outro possível. Não se espera a
o zapatismo como #YoSoy132 conseguiram chegada do Messias, atua-se para que algo
gerar esse outro espaço de interpelações sub- chegue, dirá Arditi (2012, 150). As emoções
jetivas e produzir imagens emocionais que, são fundamentais para entender não por que,
rompendo as costuras do discurso político e sim como as pessoas, no tempo impossível,
tradicional, abalaram as fundações de uma anunciam o que seremos, o que podemos ser.
ordem que se assume como única possível. Afastar-se, rebelar-se, deixar-se sedu-
Nesse espaço intermediário, no tempo mes- zir e seduzir, imaginar, emocionar-se, agir
siânico sem prefiguração profética, nesse em consequência, mas especialmente in-
como se já fôssemos livres, as dissidências terromper, perturbar, desordenar o tempo
protagonizadas por ambos os movimentos da dominação são elementos e momentos
sociais conseguiram catalisar as emoções e os constitutivos da dissidência.
desejos, condição fundamental, ressalto, para Desordenar em tempos de internet:
abrir a comporta da imaginação dissidente.
Em minha pesquisa sobre as revoltas Na prática, as distinções nítidas entre
em rede, com ênfase em #OccupyWallStreet rua e rede são difíceis e artificiais. Por um
e #YoSoy132, chego a uma hipótese inter- lado, há internet na rua e isto modificou
pretativa que resiste à análise: o empodera- muito o modo como fazemos ativismo ou
mento é uma dimensão-chave para a ação. Da nos organizamos, já que o fato de tuitar ou
desesperança e da tristeza, passa-se à raiva, retransmitir via streaming a partir dos lu-
à indignação; mas é a vertigem da emoção gares físicos transformou a maneira como
coletiva do empoderamento que deflagra a construímos a narrativa das ações, assim
possibilidade de atravessar as camadas do como os movimentos através da cidade.
medo e da tristeza. Você pode participar de uma ação e ter um
Não basta indignar-se, como assinalou papel importante nela sem estar fisicamente
o autor do manifesto ¡“Indignaos”! (“Indig- no lugar. Dito isto, sem presença estratégica
nem-se!”) (2011a) e, pouco depois, também em diferentes espaços urbanos, o aconteci-
em sua incitação à mobilização intitulada mento aumentado não costuma ter impacto
¡Comprometeos! (“Comprometam-se!”) muito forte (TORET, 2013).
(2011b); creio que a interface entre indigna-
ção e compromisso com, pelas e pelos outros Cresce entre os próprios manifestan-
nasce de uma emoção um pouco desvaloriza- tes a tendência a reconhecer-se e autono-
da: a solidariedade, que, na socioantropologia mear-se como “os indignados”, substantivo
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE ROSSANA REGUILLO 191
rastreáveis, mas estes não constituem lugares análise longitudinal desses elementos
de liderança identificáveis como tais. permite-me afirmar que é crescente
Assim, nos processos de mudança a tendência a envolver-se com cau-
social provenientes dessas formas de in- sas intermitentes, contingentes que
surgência, parece-me que há dimensões “significam” e marcam sua distância
centrais que eu gostaria de agrupar breve- em relação às lógicas de participação
mente em três questões: institucionalizadas, partidarizadas.
Causas em vez de organizações. Por
a) o fortalecimento do eu-autor que outro lado, remetem ao que é “pes-
desestabiliza o monopólio tanto dos soalmente” relevante; nesse sentido, o
saberes “legítimos”, “autorizados”, nome próprio (mesmo um nickname,
como dos centros de irradiação ou um avatar) importa. Isso está ligado
emissão “credenciados”. Os ciber- à dimensão seguinte, que considero
nautas não pedem licença. Trata-se central nesses processos;
de um espaço no qual os atores têm b) a dissolução das fronteiras entre o
acesso a uma posição de autoridade, objetivo e o subjetivo; ao ler e ana-
de empoderamento, a partir de um lisar numerosos blogs, Facebook,
“eu” que assume sem timidez os riscos Twitter e o uso dessas ferramentas
de sua enunciação. Claro que se pode pelos atores do protesto nas revoltas
contra-argumentar que há problemas do século XXI, pode-se perceber que
e que, em muitos casos, os “sites” ou existe uma solução de continuidade
linguagens no ciberespaço acabam na maneira de encarar essa separa-
reproduzindo esquemas antidemo- ção nítida, fruto da modernidade.
cráticos, excludentes, racistas e xenó- Nesse sentido, se as feministas disse-
fobos; e isso é verdade. Mas até nesses ram que “o privado é político”, a frase
portais é possível encontrar a voz que para caracterizar a rede em seus usos
introduz a nota crítica, o desacordo, a contestatários poderia ser “o subjeti-
chamada serena ou acalorada a outro vo, o pessoal, as emoções e o cotidia-
ponto de vista possível. no constroem política”. Parece-me
Rompendo o sistema de hierarquias que a relação entre vida cotidiana
estabelecido pela modernidade le- e mundo público que se estabelece
trada, os cibernautas “indignados” por meio da dinâmica no ciberespaço
encontram um espaço-chave para poderia estar assinalando a incipien-
conferir valor a duas questões fun- te emergência de um sujeito que, ao
damentais na constituição de suas mesmo tempo que restitui “policiti-
(novas?) subjetividades. Primeiro, a cidade” ao subjetivo, dessacraliza o
possibilidade da (auto)escolha dos sistema de hierarquias por meio das
problemas, processos e acontecimen- quais a modernidade configurou o
tos que vinculam suas biografias. Uma espaço de autoridade enunciativa;
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE ROSSANA REGUILLO 193
Rossana Reguillo
Doutora em ciências sociais com especialização em antropologia social. Professora
e pesquisadora no Departamento de Estudos Socioculturais do ITESO, em Guadalajara.
Suas linhas de pesquisa são as culturas juvenis, novos movimentos sociais, violências e
socioantropologia das emoções.
Referências bibliográficas
ARDITI, Benjamin. Las insurgencias no tienen un plan – ellas son el plan: performativos
políticos y mediadores evanescentes en 2011. México. Debate Feminista, ano 23, n.
46, p. 146-169, 2012.
Notas
1 Occupy the imagination. Tales of seduction and resistance. Trailer disponível em:
<http://vimeo.com/62362177>.
4. “PLEBEYO.” ENTRE
PAIXÃO & ESTIGMATIZAÇÃO;
PRAZER & VIOLÊNCIA
O ACONTECIMENTO DO FUNK
Écio Salles
O funk carioca, assim como outras manifestações culturais semelhantes – que George
Yúdice chamaria “plebeyas” 1 –, já demonstrou a vitalidade e a potência de suas expressões
estéticas. Entretanto, é alvo constante de preconceito e polêmicas midiáticas, quando não de
discriminações legais e repressão policial. Outros gêneros na história do Brasil já passaram
pela mesma situação, e não é difícil encontrar paralelos entre o funk e o início do samba no país.
Neste artigo, apontamos como o funk se impõe a essas barreiras e produz um acontecimento
que renova a música brasileira, tornando-se capaz de produzir paixão, prazer e desejo
Q
uando George Yúdice me convidou novos modelos de gestão da carreira, de re-
para escrever este artigo, primeiro lações econômicas e de expressão estética.
me entusiasmei. O convite vinha Elas não estão atreladas às grandes grava-
de um intelectual que admiro e respeito há doras; oferecem modelos abertos de negócio,
bastante tempo (além de orgulhar-me de formas flexíveis de direitos autorais; redu-
poder considerá-lo um amigo), e o tema é zem a distância entre artista e público; têm
daqueles que mais me mobilizam e interes- a produção horizontalizada, em geral feita
sam. Depois, admito que fiquei preocupado. em rede; dispõem de formas colaborativas
A responsabilidade não é pouca. O tema de produção e centram suas performances
geral, diversidade cultural, é demasiado mais nos bailes e shows ao vivo que no su-
complexo. E o tema específico trouxe uma porte CD. Nas palavras de Yúdice em recente
novidade. Embora o funk e o hip-hop, entre entrevista: “mais que escutar a música, o que
outros assemelhados, sejam assuntos com interessa é dançá-la e ter uma experiência
os quais lido frequentemente, o conceito de viva”.2 Ele elenca alguns exemplos nas Amé-
“plebeyo”, introduzido no debate, nem tanto. ricas, como a cumbia villera, na Argentina,
“Plebeyo” é, como Yúdice denomi- ou a champeta, em Cartagena.3 No Brasil,
na, algumas manifestações culturais, es- um exemplo do fenômeno seria o tecnobre-
pecialmente as da música, que propõem ga, gênero surgido no início dos anos 2000
198 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
em Belém, capital do Pará, extremo norte dos tempos idos”. Em outras palavras, os que
do Brasil, cidade que “reúne o tradicional não aceitavam, à época, a nova estética mu-
e o moderno, o antigo e o novo, tudo em um sical e os novos valores culturais trazidos
arranjo sem igual”, como informam Ronaldo pela bossa nova.
Lemos e Oona Castro no livro Tecnobrega: Na outra clave, uma das críticas mais
o Pará Reinventando o Negócio da Música severas ao movimento bossanovista foi feita
(LEMOS, 2008: 16). Outro exemplo, sobre por José Ramos Tinhorão. Para o crítico, a
o qual passo a tratar agora, é o funk, ou funk bossa nova, por um lado, resulta da elitização
carioca, para ser mais preciso. Proponho uma do samba, o qual teria se submetido aos mo-
breve reflexão sobre o funk e sua relação com delos importados dos Estados Unidos, incor-
a cultura brasileira, tentando imaginá-lo porando elementos do be-bop e do cool jazz.
como acontecimento cultural decisivo no Dessa forma, a bossa nova se identificaria
Brasil contemporâneo. umbilicalmente com a elite. Por outro lado,
Em seu livro Balanço da Bossa e Outras seria associada à industrialização, enquanto
Bossas, o poeta e crítico literário Augusto de o samba tradicional às formas artesanais. Em
Campos informa que o fio condutor que une matéria de música popular, dirá Tinhorão,
e solidariza os artigos do volume – “de um
musicólogo, um regente, um compositor e um a experiência dos jovens da zona sul do
poeta ‘eruditos’ mas entusiastas da música Rio de Janeiro constituía um novo exemplo
popular”4 – é o interesse numa visão evolu- (não conscientemente desejado) de aliena-
tiva dessa mesma música, especialmente ção das elites brasileiras, sujeitas às ilusões
voltado, continua o autor, “para os caminhos do rápido processo de desenvolvimento com
imprevisíveis da invenção”. É, portanto, um base no pagamento de royalties à tecnologia
livro parcial e polêmico, dirá o próprio au- estrangeira (TINHORÃO, 1998: 310).
tor. “Contra o nacionalismo-nacionalóide em
música. O nacionalismo em escala regional Sem dúvida, o advento da bossa nova
ou hemisférica sempre alienante.” Campos traria uma novidade de tal ordem para a cul-
conclui pregando: “Por uma música nacional tura brasileira da época que a celeuma seria
universal” (CAMPOS, 1993: 14). inevitável. Afinal, o novo gênero não apenas
Nesse texto, Campos não se bate con- romperia com determinados padrões musi-
tra a velha guarda. Antes, chega a aproxi- cais considerados brasileiros como repercu-
mar nomes como os de Noel Rosa ou Mário tiria positivamente no exterior, em especial
Reis ao de João Gilberto. Sua pregação mira nos Estados Unidos. Brasil Rocha Brito, no
o que ele chama de Tradicional Família primeiro artigo de Balanço da Bossa e Outras
Musical, TFM (aqui, ecos da conservadora Bossas, intitulado sucintamente Bossa Nova,
TFP – Tradição, Família e Propriedade –, anunciou de saída o fato.
organização que apoiou o golpe militar no
Brasil em 1964). Mira aqueles que denomi- Indubitavelmente, a eclosão da bos-
na “velhaguardiões de túmulos” e “idólatras sa nova revolucionou o ambiente musical
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE ÉCIO SALLES 199
A arte popular não tem gozado de ta- combinando-as com a batida de Shy D. Essa
manha popularidade junto aos filósofos e talvez tenha sido a origem, ou uma precur-
teóricos da cultura, ao menos no que con- sora pelo menos, do Tamborzão, a batida que
cerne a seus momentos profissionais. Quan-incorporou a percussão brasileira, inclusive
do não é completamente ignorada, indigna algumas que remetem diretamente aos to-
ques do candomblé e da umbanda, no funk
até mesmo de desdém, ela é rebaixada a lixo
feito aqui e nacionalizou de vez o gênero.6
cultural, por sua falta de gosto e reflexão
(SHUSTERMAN, 1998: 99). Com isso, creio poder dizer que o funk
é a forma brasileira de música eletrônica,
Medaglia também ignora o fato de que, que integra e intensifica a sua diversidade.
no Brasil, tanto os rappers quanto os funkei- Não são poucos os artistas internacionais
ros criaram formas de inserir a marca espe- (e consagrados) do gênero, como M.I.A. ou
cificamente brasileira nos beats (batidas) o DJ Diplo, que receberam influência decisi-
de suas canções. Para citar alguns exemplos va do funk brasileiro. Aliás, esse é um outro
mais evidentes, o grupo pernambucano Fa- ponto de contato com a bossa nova. Também
ces do Subúrbio desde os anos 1990 faz rap o funk começou sob a influência da música
misturado com coco e maracatu. O rapper norte-americana ou europeia e, mais tarde,
paulistano Rappin’ Hood e o carioca Marcelo passou a influenciá-las.7
D2 há algum tempo vêm fazendo experiên- Todo esse processo de “legitimação”
cias bastante exitosas com o samba.5 Os ar- no Brasil e no mundo, somado à capacida-
tistas do funk não deixam por menos. de do funk de mobilizar multidões em torno
Há funks com bases de berimbau de dos bailes e gerar uma poderosa economia
capoeira, de jongo, de hinos de clubes de fu- à margem da indústria cultural “oficial”, é
tebol – em especial os dos times do Rio, mais também o que justifica o entendimento do
ainda o Clube de Regatas do funk como acontecimento
Flamengo. Cabe destacar Não é exagero dizer cultural. O acontecimento
que todos esses hinos fo- que a bossa nova e o não é necessariamente es-
ram compostos pelo carioca funk compartilham uma petacular ou barulhento. Às
Lamartine Babo. Depois da coincidência: terem vezes, pode mesmo ser um
voga de beats importados sido objeto tanto de evento menor e de efeitos
manifestações exacerbadas
que assinalaram uma par- não verificáveis na imedia-
de preconceito e rejeição
cela muito significativa da tez da ação que o sucede.
de um lado quanto de
primeira geração do funk elogios e adesão Junto com a emergência do
carioca, como a 808 Voltmix, entusiásticos de outro funk, emergiram novos de-
foi a vez da hegemonia das sejos, novos mundos possí-
bases de MC Shy D, de Miami, no final dos veis, abertos à experimentação e à criação.
anos 1990. Nesse momento, os funkeiros O que importa, retomando Lazzarato, é que
começaram a introduzir linhas de percus- essas novas possibilidades sejam efetiva-
são de congas e tubadoras nas composições, das. Para o autor, “efetuar os possíveis que o
204 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Agradecimentos
Ao DJ Grandmaster Raphael, um dos ícones do funk carioca, pela generosa entrevista,
concedida num domingo à noite, que me ajudou a esclarecer alguns pontos para este artigo.
Ao Mateus Aragão, organizador do movimento Eu Amo Baile Funk e do “maior baile
funk do mundo”, o Rio Parada Funk, que acontece anualmente no Rio. Ele fez a ponte
para o diálogo aqui presente e outros tantos.
Écio Salles
Nasceu no bairro de Olaria, subúrbio carioca, na borda do Complexo do Alemão.
Um dos criadores e organizadores da Festa Literária das Periferias (FLUPP), encontro
internacional de literatura criado no Rio de Janeiro em 2012 e realizado em favelas cario-
cas. É escritor, autor de Poesia Revoltada (um estudo sobre a cultura hip-hop no Brasil)
e coautor de História e Memória de Vigário Geral (Aeroplano), além de curador da cole-
ção Tramas Urbanas, também da editora Aeroplano. Formou-se em letras na UERJ; fez
mestrado em literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutorado
em comunicação e cultura na UFRJ. Por dez anos, foi um dos coordenadores do Grupo
Cultural AfroReggae. Foi secretário de Cultura em Nova Iguaçu, cidade com quase um
milhão de habitantes, na Baixada Fluminense. Também foi consultor do Programa Onda
Cidadã (Itaú Cultural). É conselheiro da Universidade das Quebradas, projeto criado por
Heloisa Buarque de Hollanda. É vascaíno, Vila Isabel e lateral direito (fora de forma) do
Pindorama, a Seleção Brasileira de Futebol de Escritores.
Referências bibliográficas
BRITO, Brasil Rocha. Bossa nova. In: CAMPOS, Augusto de (Org.). Balanço da bossa e
outras bossas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993.
CAMPOS, Augusto de (Org.). Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1993.
206 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
LUDEMIR, Julio. 101 funks que você tem que ouvir antes de morrer. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2013.
MEDAGLIA, Júlio. Entrevista explosiva: Maestro Júlio Medaglia. São Paulo: Ed. Casa
Amarela, 2002.
TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo:
Editora 34, 1998.
VIANNA, Hermano. O mundo funk carioca. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
Notas
4 Os autores do livro a que Augusto de Campos se refere são: ele próprio (o poeta);
Júlio Medaglia (o regente), Gilberto Mendes (o compositor) e Brasil Rocha Brito
(o musicólogo). Campos publicou os textos originalmente em 1968, sob o título
Balanço da Bossa. Mais tarde, publicou reedição com acréscimos, a qual intitulou
Balanço da Bossa e Outras Bossas. Esta última é a que menciono aqui.
DIVERSIDADE RESTRITA:
O REGIME DO PATRIMÔNIO IMATERIAL
E AS CULTURAS POPULARES NO PERU
Santiago Alfaro Rotondo
(Pontifícia Universidade Católica do Peru)
Assumindo o patrimônio como construção social, o artigo analisa o regime proposto pela
Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da Unesco e sua implemen-
tação no Peru. Propomos que o tradicionalismo e o conservacionismo da Convenção são refor-
çados nas políticas patrimonialistas do Ministério da Cultura peruano. Como consequência,
o Estado acaba restringindo a diversidade cultural, ao invés de a promover, ao consolidar a
hierarquia entre as versões tradicionais e as modernas do espectro popular e ao limitar-se a
documentar e validar expressões, mas não garantir sua continuidade
A
noção de patrimônio cultural foi his- Unesco exportou marcos normativos, pro-
toricamente ligada tanto a monu- gramas e normas de política cultural.
mentos, lugares e objetos quanto a Quais são as chaves do regime de patri-
critérios eurocêntricos de avaliação. Por meio mônio imaterial proposto pela Unesco? De
do conceito de patrimônio imaterial, a Orga- que maneira todos esses conteúdos globais
nização das Nações Unidas para a Educação, são articulados aos sistemas políticos na-
a Ciência e a Cultura (Unesco, na sigla em in- cionais? Todas as expressões imateriais da
glês) procurou ampliá-la para que abrangesse cultura popular são salvaguardadas?
expressões humanas vivas ou intangíveis, es- Assumindo que o patrimônio é uma
pecialmente as criadas por culturas popula- construção social resultante de seleções
res, alheias aos cânones ocidentais. e hierarquias que expressam consensos e
Esse esforço expressou-se primeiro em conflitos (SMITH, 2006; BENTIX, 2009.
recomendações e iniciativas multilaterais. In: GARCÍA CANCLINI, 1990), o presente
Após a aprovação da Convenção para a Sal- artigo responde a essas perguntas a partir da
vaguarda do Patrimônio Imaterial (2003), análise das políticas culturais implementa-
houve desenvolvimento de um sistema de lis- das no Peru. Para tanto, recorre ao conceito
tas (de obras representativas e ameaçadas), de regime patrimonial, entendendo por este
oferecimento de assessoramento técnico a o resultado político da construção social do
governos nacionais e incentivo a múltiplos patrimônio, composto do “conjunto de regras
projetos. No transcurso dos últimos anos, a e normas que regulam as relações entre o
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE SANTIAGO ALFARO ROTONDO 209
Referências bibliográficas
______. Peruwood: la industria del video digital en el Perú. In: Latin American Research
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YÚDICE, George. Músicas plebeyas. In: Memorias, saberes y redes de las culturas
populares en América Latina. Bogotá: Editorial de la Universidad Externado
de Colombia, 2016.
222 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
5. OUTROS RUMOS
PARA A DIVERSIDADE
200. A AMPLITUDE DA
FALA SERÁ A REALIZAÇÃO DA
DIVERSIDADE TÃO DESEJADA
DESDE OS ANOS 1980?
George Yúdice e Omar Rincón
entrevistam Jesús Martín-Barbero
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE MARCUS FRANCHI E HIURY CORREA 223
AS REGRAS DA CASA
EM LAÇOS RECÍPROCOS
Marcus Vinícius Franchi Nogueira
Hiury Correa
P
ara corporificar nossas concepções, pela professora Marcélia Lupetti, que muito
utilizamos como exemplo o caso do nos interessou: “Economia criativa carac-
Carnaval baiano, por sua magnitude teriza-se pelas atividades que resultam de
e seu nível de desenvolvimento das relações indivíduos exercitando a sua imaginação e
de mercado. No entanto, apesar de escolher- explorando seu valor econômico”.
mos um exemplo específico, acreditamos Há na história do pensamento ociden-
que a análise aqui desenvolvida serve para tal diversas definições, concepções e usos da
diferentes contextos de exploração econô- noção de “imaginação”. No entanto, nos cha-
mica das expressões simbólicas, oriundas ma atenção o termo como sendo o portador
dos acervos culturais ligados aos povos e co- de valor econômico, alegando que, quando
munidades tradicionais. Assim, as reflexões exercitada em prol da exploração econômi-
aqui consignadas não se circunscrevem nas ca, a imaginação resulta em um conjunto
cordas dos trios elétricos, ao contrário, as ex- de atividades que caracterizam a economia
trapolam, dançam também o carimbó, desfa- criativa. A partir dessa concepção, o “bem”,
zem limites, visitam o trançado de Tucumã, dotado de valor, é exatamente o exercício
a Festa de Parintins e roçam a farinha entre da imaginação!
as línguas iorubá e tupi que vão juntas, de Sobre o conceito de imaginação, Gilbert
mãos dadas, servir tacacá nos grafismos das Durand1 sugere que o imaginário é a ex-
cuias do Mercado Ver-o-Peso! pressão de um acervo cultural de imagens
Utilizaremos como ponto de partida conectadas a um trajeto antropológico e pe-
uma definição atribuída a John Howkins, ríodo histórico.
224 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
condizente com a sua participação, afinal de ancestral deixe de ser acessado e aplicado.
contas, são a fonte original de um negócio Nesse sentido, quantas aplicações deixam de
de milhões de reais! ser feitas, na medida em que o modelo exclui
No entanto, o que podemos observar a fonte geradora criativa original?
nesse modelo de negócio simbolizado pelo Ora, se estamos entendendo que econo-
abadá é exatamente o contrário, manifesto mia criativa trata da exploração da aplicação
na reintrodução da hierarquização social do do exercício da expressão de acervos cultu-
espaço público do Carnaval baiano, conforme rais, significa que, por exemplo, no negócio
nos alerta o professor Paulo Miguez: dos abadás, por uma questão de sobrevivên-
cia, as regras da casa deveriam garantir que
A colocação de cordas ao redor do a cultura iorubá se mantenha viva, sendo
bloco privatizou o trio elétrico, já que as exercitada, oportunizando aplicações reno-
pessoas pagam para ficar entre as cordas, vadoras de suas expressões. Assim, quanto
vestidas com abadás. Isso reintroduziu uma maiores as oportunidades de aplicações,
hierarquia social na ocupação do espaço mais resultantes passíveis de exploração de
público [...].5 valor estariam disponíveis.
Nesse caso, quanto mais se “utiliza” os
Marília Lomanto Veloso6 destaca ele- insumos criativos, mais insumos são gerados
mentos vinculados à segregação racial e como resultantes do processo de aplicação!
econômica, em artigo intitulado Carnaval Ou seja, a aplicação multiplica-se, expande e
de Salvador: “apartheid” e Seletividade em agrega valor através das milhares de possibi-
uma Ilha de Brancos Cercada por uma Cor- lidades de novas aplicações, que pela conexão
da de Negros. ancestral se mantêm cheias de significado e
singularidade. E a cada rito um novo gesto,
As Empresas/Bloco Carnavalescas uma nova rima. Com a fonte geradora ori-
garantem o único tempo em que a minoria ginal fora do processo, o brinquedo perde a
branca e rica predomina sobre uma cidade ligação com a ancestralidade, com o rito.
histórica e matematicamente negra e pobre. Certamente, quando o valor está in-
Por todo o período de Carnaval, negro é o tom timamente atrelado ao manejo de acervos
da corda, dos ambulantes que circulam aos culturais, a lógica subjacente a esse modelo
milhares. É a cor do povo “Fora dos Blocos”. não poderá ser a convencional, pois em maior
ou menor grau as experiências reservam pe-
Chama atenção o fato de o modelo de culiaridades que as distinguem entre si, as
negócio baseado nas empresas/blocos, no individuam e também as valorizam. Assim,
qual o abadá é o maior símbolo, excluir a po- quanto mais singular a experiência, maior é a
pulação afrodescendente, que é exatamente o capacidade de que seja estabelecida entre ela
constituinte simbólico da exploração econô- e o sujeito uma relação sui generis de valoriza-
mica empreendida no Carnaval baiano. Essa ção e isso seria o componente antropológico
exclusão garante que todo um repertório da magnitude de valor que de fato interessa.
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE MARCUS FRANCHI E HIURY CORREA 227
Podemos dizer que o mercado em pau- social que resulte em novos produtos, pro-
ta não está alocando recursos de maneira cessos ou serviços”.7
eficiente, pois está gerando um processo de Nesse contexto, é pertinente incluirmos
exclusão, bastante relevante. E, além de gerar o conceito de tecnologia social na conversa,
passivos em relação à ocupação do espaço que, por definição,
público, está oprimindo sua fonte original de
riqueza, oferecendo aos que trazem os acer- compreende produtos, técnicas e/ou
vos em sua ancestralidade o lado de fora da metodologias reaplicáveis, desenvolvidas na
corda! Nesse sentido, a escassez está sendo interação com a comunidade e que represen-
produzida pelo próprio funcionamento do te efetivas soluções de transformação social.
modelo de negócio. [...] as tecnologias sociais são “técnicas e me-
Parece-nos que onde há escassez de re- todologias”, “produtos e processos”, que, como
cursos é onde o repertório teórico-técnico quaisquer tecnologias, envolvem de maneira
e ferramental vem sendo utilizado para dar intrínseca um modo próprio de pensar e agir.
conta da diversidade imposta pela realidade. Muitas vezes, é no modo de aplicação que
Nesse cenário, o desafio é diversificar uma tecnologia torna-se social. Este “modo” é
o repertório tecnológico de então compreendido como uma
gestão em busca de ferra- Certamente, quando o valor abordagem sistêmica que leva
está intimamente atrelado
mentas alternativas que es- em conta todo um conjunto de
ao manejo de acervos
tejam mais preparadas para fatores, desde o reconhecimen-
culturais, a lógica subjacente
incorporar as particularida- a esse modelo não poderá to das necessidades e da mobi-
des de cada casa. Em cada ser a convencional [...] lização para a mudança, até os
uma existem peculiaridades métodos de gestão e a eficácia da
que as distinguem entre si, as individua e solução tecnológica desenvolvida, passando
também as valoriza. Assim, quanto mais sin- pela avaliação de impactos socioambientais
gular e diverso é o modelo de negócio, maior e a busca direta de impactos positivos para o
é a possibilidade de que sejam estabelecidas conjunto da sociedade.8
relações sui generis de reciprocidade!
Colaborando com tal raciocínio, James As regras da casa, sob a influência das
D. Wolfensohn, ex-presidente do Banco tecnologias sociais, adotam formas democrá-
Mundial, declara: “começamos a compreen- ticas de tomada de decisão, a partir de estra-
der que o sucesso do desenvolvimento de- tégias especialmente dirigidas à mobilização,
pende em parte de ‘soluções’ que fazem eco à participação popular, e estabelecem con-
na percepção que uma comunidade tem da traponto a alguns princípios relacionados às
sua própria identidade”. Assim, o desafio é regras e modelos do mercado stricto sensu.
encontrar as trilhas que nos permitam tran- Seu repertório tem como referência as tec-
sitar entre inteligências e modelos, na busca nologias utilizadas pela economia solidária.
de “inovação” – “introdução de novidade ou A economia solidária é um modo especí-
aperfeiçoamento no ambiente produtivo ou fico de pensar a organização das regras da casa.
230 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Compreende uma variedade de soluções sob Podemos então, sem radicalismos, dizer
a forma de cooperativas, associações, clubes que no mínimo a partir daqui temos a pos-
de troca, empresas autogestionárias, redes de sibilidade de pensar sobre as regras da casa
cooperação, bancos, entre outras alternativas, na linha conectiva de mercado e influência
que realizam atividades de produção de bens, TS! Gerando de início um repertório misto de
prestação de serviços, finanças e outras entre- referências metodológicas mais apropriadas
gas. Seus fundamentos acentuam a noção de para lidar com as singularidades expressas
desenvolvimento local e ampliam os horizon- pela diversidade cultural.
tes em relação à pluralidade das formas de se A aposta é que, na interseção (merca-
organizar as “regras da casa”. do – TS), aumentem as chances de se atingir
Etimologicamente, o termo solidarie- inclusive resultados clássicos (renovados) de
dade vem do latim solidum, que servia para eficiência e igualdade.
designar a obrigação que pesava sobre os Em lógica e teoria dos conjuntos, a in-
devedores quando cada um era responsável terseção é um conjunto de elementos que,
pelo todo (in solidum). Nesse caso, solidarie- simultaneamente, pertencem a dois ou mais
dade é um fato antes de ser um valor e desig- conjuntos, representado por ∩.
na uma dependência recíproca. Uma outra A proposição que nos interessa, aludin-
concepção faz da solidariedade um dever do à teoria, é mercado∩TS. Nesse sentido,
moral. Como fato ou como dever, a solida- é necessário identificar quais elementos
riedade pressupõe “laço recíproco”. (conceitos, teorias e práticas) compõem o
Nesse sentido, é a economia do laço conjunto mercado∩TS e entender como se
recíproco – ou, nos termos deste artigo, as comunicam, interagem e se complemen-
regras da casa baseadas em laços recíprocos tam. Entre os elementos do conjunto mer-
para exploração do valor da cado∩TS, identificamos:
aplicação do exercício da ex- O fato é que a aplicação, a. influência TS; b. teoria dos
pressão de representações conforme o modelo direitos coletivos; c. teoria
do real, elaboradas a partir convencional, tende a da economia do bem-estar.
desordenar as sociedades
de um acervo de diversos O primeiro elemento,
que procuram seguir outros
conjuntos de traços distinti- influência TS, já tratamos
caminhos ou que promovem
vos (espirituais e materiais, valores distintos anteriormente. Já o segun-
intelectuais e afetivos que do elemento está associado
caracterizam um grupo humano), relacio- ao diálogo sobre propriedade intelectual re-
nados aos trajetos antropológicos e perío- lacionado aos conhecimentos tradicionais.
dos históricos. Segundo a Organização Mundial de
Os laços recíprocos sobre as regras da Propriedade Intelectual (Ompi), consti-
casa do negócio dos abadás, por exemplo, tuem propriedade intelectual as invenções,
abririam canais de base comunitária com obras literárias e artísticas, símbolos, no-
a ancestralidade iorubá, inaugurando uma mes, imagens, desenhos e modelos utiliza-
experiência fundamentada na reciprocidade. dos pelo comércio.
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE MARCUS FRANCHI E HIURY CORREA 231
Hiury Correa
Mestre em filosofia da matemática pela Universidade Federal de Goiás (UFG), é
presidente da Cooperativa de Ideias Ambientais e Tecnologias Sociais (ECOOIDEIA), onde
presta consultoria socioambiental para os setores público e privado.
Pela cooperativa, prestou consultoria nos seguintes projetos: Estudo de Valoração
das Perdas e Danos gerados pelo empreendimento minerário no Município de Juruti
Velho (PA) pela Alcoa (2011-2013), Hidrelétrica Corumbá IV, Viveiro Escola (2012-2014),
Ministério do Meio Ambiente (MMA), no Estudo Socioeconômico e Diagnóstico Ambiental
no município de São Félix do Xingú (2014), SEMA/PA, auditando as signatárias do TAC
da Carne no estado do Pará (2014).
Atualmente, pela ECOOIDEIA, é responsável pela execução dos trabalhos de Assis-
tência Técnica e Extensão Rural Produtiva e Social, no lote 08 da RESEX Tapajós-Arapiúns
(Incra) e compõe as equipes dos seguintes projetos: Cataforte III (FBB) e Elaboração do
Plano de Manejo do Monumento Natural do Conjunto Espeleológico do Morro da Pedreira
(Votorantim Cimentos).
234 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Referências bibliográficas
MIGUEZ, Paulo. Relatório de Economia Criativa 2010 – Economia Criativa: Uma opção
de desenvolvimento viável, p. 39-40.
Notas
3 Malês (do hauçá málami: “professor”, “senhor”; pelo iorubá imale: “muçulmano”)
era o termo usado no Brasil, no século XIX, para designar os negros muçulmanos
que sabiam ler e escrever em língua árabe. Os muçulmanos chegaram ao Brasil
no final do século XVIII, oriundos da região sudanesa da África, e pertenciam a
vários grupos etnoculturais. Ficaram conhecidos genericamente como malês ou
mussurumim. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Mal%C3%AAs>.
ENTREVISTA COM
JESÚS MARTÍN-BARBERO
por Omar Rincón e George Yúdice
Introdução
J
esús Martín-Barbero é um dos filósofos, comunicólogos e pensa-
dores mais conhecidos da América Latina e Espanha, sobretudo
no que diz respeito às transformações sociais. Nascido em 1937 em
Ávila (Espanha), doutorou-se pela Universidade de Louvain e se radicou na
Colômbia em 1963, onde fundou a Escola de Comunicação da Universidad del
Valle (Cali) em 1975. O livro Dos Meios às Mediações: Cultura, Comunicação
e Hegemonia (1987) trouxe uma mudança radical nos estudos da mídia e nos
238 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
A MUTAÇÃO QUE HABITAMOS IMPLICA UMA nossos países e, de certo modo, todo o planeta
MUDANÇA DE DISCURSOS. A SEU VER, QUAIS estão vivendo. Mas a atual etapa do capita-
SÃO AS NOVIDADES MAIS FORTES NO CAMPO lismo marca um transtorno radical no que a
DA COMUNICAÇÃO? igualdade significava como tensão social ao
A pergunta não se coaduna com a ideia mesmo tempo básica e plena: a de todos com
de novidade, pois o que hoje encontro nesse os mesmos direitos e em seu mais alto grau.
campo é de outra ordem: a de mutação cultu- Hoje o modelo é outro: é “a própria socieda-
ral. Mutação que implica, em primeiro lugar, de” que se encarrega de definir o alcance tanto
profundas transformações na ideia que tínha- de nossos direitos como de nossos projetos,
mos de sociedade, pois sociedade e Estado são injetando-nos tanto o grau de conformismo
as duas grandes criações políticas da moder- quanto o de cinismo.
nidade, e foram elas que esgotaram o modelo Sociedade em mutação nomeia então a
inicial. Em termos rousseaunianos, sociedade defasagem radical pela qual passam todas
designava o princípio básico da igualdade – as instituições da modernidade desde a cri-
igualdade de todos os cidadãos perante a lei, se do casal e da família, estendendo-se até
ou seja, a própria chave do modelo. O sentido a crise da escola, do trabalho e da política.
do social jogava-se entre igualdade e desi- As mudanças que estamos vivendo não são,
gualdade. Contudo, é esse modelo de socie- portanto, mudanças na sociedade que ha-
dade-que-inclui-todos que não modela mais bitávamos, e, sim, mudanças-de-sociedade,
a sociedade atual. Entendamo-nos: são ine- mudanças das articulações que a movimen-
gáveis os avanços na luta contra as desigual- tavam e das chaves que lhe davam sentido.
dades maiores, como atestam os avanços que Historiadores, sociólogos e antropólogos,
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE RINCÓN E YÚDICE ENTREVISTAM BARBERO 241
tanto de direita como de esquerda, chegaram se diz moderna porque já não crê mais nos
pelos mais diversos caminhos e raciocínios deuses gestou a ideia de progresso como o
a apontar os anos 1960 como início da mu- autoconfigurar-se da sociedade, mas essa
tação: de Jacques Revel a Eric Hobsbawm autoconfiguração ateia será parecidíssima
e Margaret Mead. Já no final do século XX, com o autoconfigurar-se da religiosidade do
uma pesquisa cultural aponta o transcurso mais velho dos mundos. A concepção leiga
do pensamento sobre as mudanças: Os Anos da sociedade acabou sendo muito pareci-
1960 e 1970: Evolução, Revolução, Mutação. O da com a dos crentes. A ideia de progresso
ponto de inflexão será marcado por Estados assinala que vamos em direção a uma socie-
Unidos, França, Inglaterra, Itália, Japão e dade cada dia melhor, pois o que nos espera
também pela América Latina. Foi a cultura é um final feliz: para os velhos crentes é o
política que mudou por dentro: jovens, mu- paraíso celeste, e para os marxistas ateus
lheres, religiosidades, sexualidades. é o “reino da liberdade”. O desastre não po-
Nesse contexto, há uma clara consciên- deria ter sido maior para todos os que ima-
cia de que, se quisermos entender “o que está ginaram uma história linear e para a frente.
acontecendo”, precisamos compreender que Acabou o combustível do motorzinho do
o que mudou realmente foi o sentido que o progresso! A ideia do “reino da liberdade”
tempo e o espaço adquirem para as pessoas segundo São Marx entrou em uma crise tão
comuns. Não é possível entender o que está profunda e desoladora quanto a dos cren-
ocorrendo com as sociedades sem compreen- tes convictos de uma fé que lhes garantia
der os novos fenômenos de migração e das co- “o reino dos céus”! No momento atual, falar
nexões que as pessoas vivem, a partir de suas de progresso – em sua enganosa moderni-
próprias culturas, com culturas muito outras. dade – acaba sendo uma piada de mau gos-
Habitamos uma sociedade que deixou de ser to: estamos acabando com o planeta Terra
homogênea e progressista, pois o que explodiu porque o capitalismo financeiro é o único
foram tanto seus tempos quanto seus espaços. que deveras reina. Então, o que temos é
uma sociedade cujo motor é essa outra coi-
Progresso sa chamada informação, que permite que
A temporalidade moderna de socie- os seres humanos dirijam a evolução dos
dade era o progresso. Uma sociedade que animais, das plantas e dos seres humanos
242 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
por meio da informação genética. Uma so- informação social, que é a informação resul-
ciedade que, até anteontem, vivia da lei do tante do largo e denso texto/tecido da vida.
mais forte e agora vive da lei do mais e mais
bem-informado que é o inventor. Informação social
A informação social resulta das múl-
Informação tiplas formas de interação dos seres, pois
Não podemos entender o que está ocor- conviver – do casal e da família à escola, ao
rendo no campo da comunicação, que se tor- trabalho e ao lazer, às culturas e às artes –
nou o campo mais crucial no âmbito político, exige trocar continuamente informação
sem escrever em maiúsculas a palavra IN- acerca de suas necessidades, de seus mo-
FORMAÇÃO, já que esta agora não tem nada dos de pensar e de seus modos de viver. A
a ver com a informação que correspondia ao escola, o hospital, a polícia, os bancos e as
modelinho da imprensa e dos outros meios instituições de controle funcionam com
de informação. Agora é que começamos a base na informação que os cidadãos forne-
entender que informar é dar forma, e isto é cem – livre ou obrigatoriamente. E agora,
o conhecimento mediante o qual foi possível pela primeira vez, esse conjunto de infor-
traçar o genoma humano, ou seja, dar-lhe mações torna-se tecido ou texto consultável.
forma. Daí que até o que entendíamos por Junto com esse tecido de informação que é
ciência tenha sofrido transformações muito formalizado, hoje emerge o paradoxo que é
fortes quando o genoma humano foi plas- o Facebook: milhões de seres humanos, que
mado. Aí comunicação não tem tanto a ver se conhecendo e sem ter nada a ver uns com
com os meios, e sim com a sociedade que os outros, trocam enormes quantidades de
está construindo um conhecimento capaz informação de um extremo a outro do pla-
de orientar a formação genética das plan- neta. Junto com esses jogos de informação,
tas, dos animais e dos seres humanos a partir aparece o Google oferecendo gratuitamente
do embrião. Há dois grandes motores para montes de conhecimento e saberes, de in-
pensar as transformações da comunicação formação que é produzida no mundo todo
hoje: por um lado, o surgimento de um tipo e se encontra disponível para as pessoas
de informação absolutamente nova que é comuns. Não é de se estranhar que “o algo-
a informação genética; e, por outro lado, a ritmo do Google” esteja gerando uma nova
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE RINCÓN E YÚDICE ENTREVISTAM BARBERO 243
religião. E nem que a internet se transforme por mais banais que possam ser as palavras
em arma de batalha que intervém em novas trocadas. Quer dizer, não é qualquer ruído,
rebeliões políticas, ou nos modos como as é O-RUÍDO-DO-MUNDO, o que resulta do
crianças se conectam com a rede de video- entrechoque das falas do mundo; há muitas
games. Estamos convivendo com rearran- falas e há muitas mais falas do que acredi-
jos de modelos de família, ou melhor, com távamos, porque as falas não são apenas os
a explosão da ideia de família, já que, tendo idiomas, mas sim as narrações, as imagens,
sido a chave da mais básica unidade, hoje é as músicas, as experiências contadas pelas
a base da maior diversidade e, inclusive, de pessoas e as diversíssimas culturas contan-
enorme dispersão. Essas transformações do-se a vida e se dizendo coisas. Uma enorme
não são meras mudanças de uma institui- informação social decorrente do fato que as
ção, mas uma verdadeira mutação dos se- maiorias falem, possam falar umas com as
res humanos constituindo outras formas e outras. Bem-vindo seja um ruído que fala de
modelos de sociedade. uma mudança histórica radical.
Foi o filósofo e historiador da ciência Quando digo informação social, estou
Michel Serres quem melhor plasmou a mu- ressaltando que as fraturas da sociedade, e
dança de fundo; enquanto a imensa maioria não a tecnologia, são a chave para entender
dos desconcertados intelectuais maldiz o a mudança. A palavra sociedade está longe
mundo digital, especialmente a mina de ouro do que os sociólogos têm chamado de mo-
que o Facebook se tornou, Serres ali encon- delos de sociedade; é que a própria ideia de
tra outra, muito outra, realidade: a rede é um modelo carrega uma memória de idealiza-
tecido de vozes, ou melhor, de falas, pois, pela ção que hoje não faz sentido: pois os modelos
primeira vez na história humana, pessoas co- passam por um grande transtorno devido às
muns podem falar, ou seja, milhões de pessoas desconcertantes mudanças decorrentes da
estão falando pela primeira vez, estão se apro- informação genética e da informação social.
priando do direito à fala. Claro que o mundo
da rede explode com tantas falas, e essa ex- Comunicação
plosão gera RUÍDO. De forma que é verdade: A comunicação hoje vive em – e de –
a rede está cheia de ruído, mas esse ruído está uma sociedade que habita tanto a complexi-
prenhe de falas tecendo informação social, dade do conhecimento como a do sensível e
244 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
As séries norte-americanas têm au- isso tem a ver sobretudo com a fala social am-
diência impressionante entre os jovens, e pliada, a fala que sai dos lugares de autoridade
esse fenômeno é mundial, ou seja, a cultura e dos lugares de poder. Estamos saindo de uma
audiovisual empodera transformando-se, sociedade na qual pouquíssimos falavam e en-
deixando de lado o que chamávamos de ci- trando em uma sociedade muito outra de falas
nema, o que chamávamos de televisão, o que multiplicadas e expandidas. O importante é
chamávamos de rádio. O que vai nos restar é a amplitude da fala, uma informação social
um mundo audiovisual revisitado, porque, na que cresce e cresce a cada dia porque o que os
verdade, vai ser cada vez mais mundo, quer internautas trocam entre si, por sua vez, altera
dizer, mais vasto, pois está sabendo levar as os modos de falar, possibilitando a criação em
pessoas a imaginar em comum. A impren- coletivo, os novos modos de criatividade no
sa vai continuar existindo tanto em papel falar por meio de um saber-fazer-se presente
como digitalmente; vai continuar havendo que transforma a própria socialidade. Vivemos
rádio, pelo menos nestas terras; a televisão uma época em que a criatividade se gesta nos
vai continuar reinventando-se do seu jeito jogos da ambiguidade cotidiana do falar cole-
desastrado; mas o que há de verdadeiramente tivo possibilitado pela rede.
novo é a integração do mundo audiovisual no
digital explodindo a narrativa e reinventando Bogotá, 6 de junho de 2015.
os modos e os formatos do narrar.
Falas
Viemos de um mundo quase mudo, e
estamos em uma cultura que exige que es-
crevamos e nos reconheçamos como artistas,
criadores, músicos, dançarinos. Uma socie- Nota
dade que quer dar a si mesma um estatuto de
1 MARTÍN-BARBERO, Jesús. Hacia el habla
criatividade. Isso ocorre por causa da irrupção
social ampliada. In: AMADO, Adriana;
da internet, das redes sociais, do celular, onde RINCÓN, Omar (Ed.). La comunicación en
há quem fale de um novo ativismo, um novo ci- mutación [remix de discursos]. Bogotá:
dadão, um novo modo de ser criador. Para mim, Friedrich-Ebert-Stiftung (FES), 2015.
246 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
em 1990 pelos institutos nacionais de saúde e P. Sloterdijk. Serres nos fez pensar, desde
dos Estados Unidos e formado por cientistas o começo deste século, sobre o sentido da
de diferentes países; o mapa do genoma com- genética como “o fim da evolução natural”,
pleto foi apresentado em 2003. Entre a web e o pois sua direção está passando a ser assumi-
mapa do genoma – ou seja, em quarenta anos, da pelo homem não só no que diz respeito às
de 1962 a 2003 –, a ideia de informação muda plantas e aos animais, mas também às pes-
radicalmente de âmbito ao transformar-se em soas. Para um ocidental que pensou de forma
informação genética ou científica. dualista durante muitos séculos, o natural
Por outro lado, o crescimento e aden- como o bom e autêntico versus o artificial
samento das redes sociais, apesar de todo o visto como o falso ou enganador, Serres ex-
ruído – mas também de vida social, cultural e plode esse dualismo de séculos ao colocar o
política – que nelas existe, passa a configurar o espaço do meio como eixo de outro pensar,
outro espaço estratégico: a informação social. que Valéry nomeou ao afirmar que “o mais
Assim chamo toda a informação que os cida- profundo é a pele”. Sloterdijk, por sua vez, nos
dãos hoje entregam no caso de qualquer solici- levou a pensar a outra chave: informar é dar
tação de serviços, dos escolares, na instituição forma, de modo que o “princípio de in-forma-
maternal, aos profissionais, no mundo do tra- ção” é o ponto de partida de outro modo de
balho, inclusive os de saúde e as viagens, os de habitar o mundo. Um mundo em que a ação
pertencimento a agrupações que abrigam as de transmitir passou para o segundo lugar,
diferentes necessidades e demandas. Há pou- pois o primeiro é hoje o movimento entre o
co tempo li o resumo de um texto que circula inscrever e o transcrever, chave da chamada
entre publicitários europeus; constata que es- inteligência artificial. Estamos diante de tex-
sas agências hoje precisam investir muito me- tos genéticos cujo significado não é somente
nos nas pesquisas de opinião que fazem sobre o de saber, mas também o de dar forma ao
hábitos e demandas d@s adolescentes, pois o que os modernos ainda chamavam de rea-
que milhões de adolescentes mais contam uns lidade ou, mais cientificamente, de “o real”.
aos outros, no Facebook, são justamente seus A melhor definição dessa nova inteligência
“secretos desejos e frustrações”. encontra-se na frase que Juan de Mairena/
E quem me mostrou as pistas da vira- Antonio Machado colocou na boca de um
da mais de fundo pela qual passou a ideia de camponês anarquista e andaluz: “tudo que
informação foram dois filósofos: M. Serres sabemos todos nós sabemos”.
248 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
QUANDO VOCÊ SE REFERE A “O-RUÍDO-DO- de vozes privadas e públicas [...]. Todo mundo
MUNDO” – “O QUE RESULTA DO ENTRECHO- quer falar, comunicar-se com todo mundo, e
QUE DAS FALAS DO MUNDO; HÁ MUITAS esse tecido de vozes coincide com o da rede,
FALAS E HÁ MUITAS MAIS FALAS DO QUE ambos murmuram na mesma frequência de
ACREDITÁVAMOS, PORQUE AS FALAS NÃO onda”. O que para Serres cabe nessas vozes
SÃO APENAS OS IDIOMAS, MAS SIM AS NAR- vai além das diferenças sociais em que reside
RAÇÕES, AS IMAGENS, AS MÚSICAS, AS EXPE- a desigualdade, mas – absorvida como está
RIÊNCIAS CONTADAS PELAS PESSOAS E AS pelo social – a diversidade cultural não apa-
DIVERSÍSSIMAS CULTURAS QUE SE CONTAM rece. Ou talvez as redes já sejam para Serres
A VIDA E SE DIZEM COISAS. UMA ENORME o lugar das múltiplas formas de tradução e
INFORMAÇÃO SOCIAL DECORRENTE DO trocas entre as mais diversas línguas e as cul-
FATO DE QUE AS MAIORIAS FALEM, POSSAM turas. Há algo disso que ainda pode parecer
FALAR UMAS COM AS OUTRAS. BEM-VINDO romântico, mas que certamente nomeia ou-
SEJA UM RUÍDO QUE FALA DE UMA MUDAN- tra coisa: @s adolescentes e jovens conver-
ÇA HISTÓRICA RADICAL” –, VOCÊ ACREDITA sando em vários idiomas ao mesmo tempo,
QUE A TROCA DE INFORMAÇÃO NA INTERNET com palavras, imagens, músicas e metáforas
CONSEGUIU ATINGIR A DIVERSIDADE HUMA- de todas as cores e sabores.
NA QUE A UNESCO DEFENDEU NOS ÚLTIMOS Por minha parte, estou convencido de
30 ANOS, OU SE TRATA DE OUTRA COISA, QUE que essa nova forma de troca tem sua própria
TALVEZ NÃO DEVÊSSEMOS CHAMAR DE DI- figura dentro do mundo digital: a interface. A
VERSIDADE, OU, SE A CHAMARMOS ASSIM, interface nomeia, em linguagem de engenha-
DEVERIA SER COM OUTRO SENTIDO? QUE ria, a relação entre homens e computador: ou
SENTIDO SERIA ESSE? seja, o plano dos transistores e os circuitos
A ideia por trás dessa frase que você integrados, o que é invisível para o usuário.
transcreve vem do último livro-escândalo Em um segundo momento, a interface no-
de M. Serres, cujo título é Polegarzinha. Um meia os programas e hipertextos que foram,
livro que não fala da irmã do Pequeno Pole- em grande medida, imaginados e possibilita-
gar e sim dos dedos polegares com os quais dos por Alan Turing, aluno de Wittgenstein!
meninas e adolescentes se comunicam pelo Por fim, interface acaba nomeando as múl-
celular. Transcrevo as palavras do autor: tiplas formas de interatividade entre leitor
“A calma dos povos em silêncio sucede, de e texto, das quais Humberto Eco e Robert
maneira brusca, a extensão das redes: esse Jauss começaram a falar. Ligados a esse
novo ruído de fundo, tumulto de clamores e plano da interface, há filósofos, como P. Levy
POLÍTICAS CULTURAIS PARA A DIVERSIDADE RINCÓN E YÚDICE ENTREVISTAM BARBERO 249
e B. Stiegler, que o identificam com a inteli- a trabalhar a partir das condições, ao mesmo
gência coletiva: essas novas formas de inte- tempo do traduzível e do indecifrável de cada
ração colaborativa de muitos em um texto cultura. É a exigência insuperável: que cada
conjunto. De várias maneiras, a interface cultura conheça as outras e se (re)conheça
acabou remetendo à metáfora, essa figura nelas ao mesmo tempo que experimenta suas
mais criativa da linguagem humana. E a in- profundas diferenças; ou seja, as possibilida-
terface metáfora da linguagem digital põe em des de toda tradução passam pelo reconhe-
contato não só as palavras, mas também os cimento dos limites de toda troca profunda.
saberes, os fazeres e as experiências e os cor- A Unesco avançou nesse sentido, mas
pos, as ciências com as artes e artimanhas. A continua presa, pois as permanentes home-
interface/metáfora nomeia o salto do mundo nagens à diversidade cultural que hoje vemos,
das máquinas para o das conversas entre os prestadas tanto por governos quanto por ins-
novíssimos hipertextos e os antiquíssimos tituições públicas internacionais, e inclusive
palimpsestos entre internautas. por empresas das indústrias culturais, são in-
Devemos a P. Ricoeur – em uma de suas versamente proporcionais ao que sucede no
últimas conferências, pronunciada na Unes- plano das políticas que protegem e estimulam
co – a ideia de que a diversidade cultural não a diversidade. Isso porque quase tudo fica em
pode ser pensada à margem dos processos níveis de decisão aos quais nem os atores do
de troca entre as culturas, pois não há inter- plano local nem alguns mediadores no plano
culturalidade fora da tradução, já que esta é mundial/global têm acesso. O que a sobrevi-
a mediação constitutiva entre a pluralida- vência da diversidade está exigindo é uma
de de culturas e a unidade do humano. Foi a nova institucionalidade mundial do cultural
tradução entre línguas que nos demonstrou que seja capaz de interpelar tanto os organis-
tanto as possibilidades como os limites de mos mais locais quanto os mais globais. Essa
toda troca entre culturas. E a tradução par- nova institucionalidade só surgirá quando
te da não estrangeiridade, não exterioridade houver uma profunda redefinição da velha
entre as línguas, por mais diversas que sejam, institucionalidade: a dependente de relações
não exterioridade que é demonstrada pela que permitem ao estado-nação sua legitima-
longuíssima e larguíssima história da hibri- ção e o usufruto do sentido e do valor do cultu-
dação cultural que a tradução gera. Diante do ral. Aquilo que se produz muito especialmente
fracasso da longa crença na existência de uma quando uma cultura local é revalorizada como
língua matricial comum, que nos pouparia do universal pela única instituição no mundo que
“cara a cara” entre culturas, a história nos leva se tornou global ao assim fazê-lo, a Unesco.
250 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
o fato de poder cooptar os usuários para que se limitam a lucrar, mas estão utilizando a
estes não ultrapassem os “limites estabe- internet como forma de controle. Respondo
lecidos”. E acontece porque se trata de um então por dois caminhos. Primeiro, é muito
saber que é utilizado pelo administrador que possível que estejam nos controlando mais e
conhece os usos aceitáveis e, portanto, rentá- melhor, pois as polícias do mundo todo têm,
veis. E não só para o negócio, mas também antes de mais nada, esse ofício, e a internet
para a criação, que é a fonte da rentabili- lhes proporciona ferramentas novíssimas e
dade. As formas de interlocução na inter- supereficazes. Segundo, que de acordo com a
net estão sendo redesenhadas para que os sua última pergunta, a mera possibilidade de
usuários tenham a sensação de fazer o que duvidar de que estejamos sendo muito e mais
querem, enquanto essas falas possibilitam cruamente controlados nos remete direto a
fazer negócio como tudo que circula pela um paraíso inventado por Bakhtin e apelida-
rede. Lembre-se de que anteriormente já do de “polifonia”! Aqui os seus terrores me
falei de como os publicitários, nada menos assustam mais do que a própria internet,
do que eles, até agora haviam sido os magos pois Bakhtin jamais relacionou a polifonia
do ofício de fazer com que as pessoas dese- a um paraíso! E polifonia, em seu livro sobre
jassem e comprassem o que os vendedores Dostoiévski, não tem nada a ver com falató-
oferecem, inclusive muito antes de os pro- rio! Polifonia é a maneira como o exterior
dutos estarem à venda! do romance “ecoa” dentro dele e, vice-versa,
Como na pergunta você menciona dois como o interior do romance “sintoniza” ou
usos precisos da internet, quero separá-los. “dissoa” com o mundo do crítico leitor. Isso,
Um é a apropriação do valor dos dados gera- sim, foi uma revolução – repito, não uma
dos pelas pessoas ao expressar-se, diante do farra –, pois a polifonia bakhtiniana tira os
que apontei anteriormente que isto é feito críticos literários de um ofício esgotado em
por todos os que traficam com o que dize- olhar com lupa as palavras e frases para que
mos e fazemos. Mas você vai mais fundo possam dedicar-se a ouvir o entrecruzamen-
ao suspeitar que os administradores não to de vozes que compõem um romance.
254 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Como participo dessa outra ideia do moderno adquire sua verdadeira figura na
tempo, o que posso fazer a esse respeito em inversão através da qual vemos como ruínas
relação à América Latina é compartilhar al- do antigo a perda de identidade, a miséria, as
gumas pistas. Uma delas é a questão do bru- migrações massivas e a desolação quando, na
tal destempo que a modernidade introduziu verdade, estas são ‘ruinas da modernidade!’”.
nestes países, transtornando seus tempos O “mal-estar no nacional” não é só o que
longos e desligando seus tempos curtos. Em ocorreu no passado, mas o que está aconte-
Las Convenciones Contra la Cultura, o histo- cendo hoje quando a identidade nacional já
riador colombiano Germán Colmenares apro- não se deixa encaixar em “uma” mentalidade,
fundou-se no primeiro mal-estar no nacional pois ela se encontra transtornada pela sensi-
vivido pelos latino-americanos justamente bilidade de adolescentes e jovens, que vivem,
ao perceber as contradições que a própria jogam e sonham a partir de um espaço sem
independência acarretou: “para intelectuais costuras, sejam elas consideradas nacionais
situados em uma tradição revolucionária, ou locais. Isso não significa que não sintam
não só o passado colonial parecia estranho, seu pertencimento a um país e a “uma na-
mas também a população em geral, que se ção” transtornada pela própria constituição
aferrava a uma síntese cultural que nele ha- colombiana de 1991, que assumiu explicita-
via ocorrido”. Estranhamento esse que levou mente que não havia um modo único de ser
muitos a uma “resignação desencantada”, que colombiano. Termino convocando nosso
era ausência de reconhecimento da realida- amigo Carlos Monsiváis, que afirmava: “Ape-
de, “ausência de vocabulário para nomeá-la” sar das abundantes discussões, a identidade
e surda hostilidade em relação ao espaço das nacional não está em risco. É uma identidade
subculturas iletradas. Então foram “fixadas as mutável, continuamente enriquecida pela
identidades” de indígenas, negros e mulheres, fala dos marginais, as contribuições da mí-
o que o transformou na mais eficaz forma de dia, as renovações acadêmicas, as discussões
exclusão. Ou podemos remeter ao antropólogo ideológicas, a americanização e a resistência
mexicano Roger Bartra, quando este afirma: à ampliação da miséria”.
“A operação por meio da qual se constrói o
vínculo entre passado indígena e presente Bogotá, 10 de fevereiro de 2016.
256 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
Omar Rincón
Jornalista, acadêmico e ensaísta colombiano que aborda temas de jornalismo, mídia,
cultura, entretenimento e comunicação política. Professor associado da Universidade dos
Andes (Colômbia), diretor dos programas de mestrado em jornalismo e humanidades di-
gitais da mesma universidade. Analista de mídia do El Tiempo. Consultor em comunicação
da Fundación Friedrich Ebert.
Hoje, atua nas áreas de crônica indígena (2015), ensaios sobre as mutações das
culturas populares (Comunicación en Mutación – Remix de Discursos, 2015), reflexões
sobre Uribe (De Uribe, Santos y Otras Especies, 2015) e sobrevivência da videoarte
(Audiovisualidades de la Niebla, 2014). É autor do ensaio audiovisual Los Colombianos
TAL Como Somos, (Brasil/2007); Narrativas Mediáticas: o Cómo se Cuenta la Sociedad
del Entretenimiento (2006); Televisión Pública: del Consumidor al Ciudadano (2005),
Televisión, Video y Subjetividad (2002).
258 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
COLEÇÃO OS LIVROS
DO OBSERVATÓRIO
O Lugar do Público
Com a organização de Jacqueline Eidelman, Mélanie Roustan e
Bernardette Goldstein, a publicação tem como foco conhecer efetivamen-
te o público. Acompanhar a visitação, identificar e compreender os tipos
de público tornou-se um desafio para a política de desenvolvimento dos
museus e monumentos. A partir de estudos de caso, O Lugar do Público
apresenta uma visão em perspectiva, lança luz sobre o jogo dos agentes
(quem encomenda e quem executa, os que decidem e os eleitos) e ilustra
o diálogo entre os setores de atividade e o campo acadêmico.
Arte e Mercado
Xavier Greffe
Este título discute as relações da arte com a economia de mercado e
a atual tendência de levar a arte a ocupar-se mais de efeitos sociais e
econômicos – inclusão social, o atendimento das exigências do turismo
e as necessidades do desenvolvimento econômico em geral – do que de
suas questões intrínsecas. Conhecer o sistema econômico é o primeiro
passo para colocar a arte em condições de atender realmente aos direi-
tos culturais, que hoje se reconhecem como seus.
Cultura e Educação
Teixeira Coelho (Org.)
Esta publicação remete ao Seminário Internacional da Educação e Cul-
tura realizado no Itaú Cultural em setembro de 2009. Os participantes
latino-americanos (inclusive brasileiros) e espanhóis comparam e refle-
tem sobre práticas capazes de culturalizar o ensino, por meio de iniciativas
administrativas e curriculares e de ações cotidianas em sala de aula.
Saturação
Michel Maffesoli
O título reúne os textos “Matrimonium” e “Apocalipse”, de Michel
Maffesoli. Neles, o autor estende a discussão sobre a pós-modernidade
para além do domínio das artes e analisa os fatos e os efeitos pós-mo-
dernos na vida social. A partir desse debate, Maffesoli questiona valores
como indivíduo, razão, economia e progresso – pedras fundamentais da
sociedade ocidental moderna, que está em crise, saturada.
Este é um Maffesoli diferente, polêmico e que não receia ser até mesmo
panfletário. Seu alvo é o pensamento conformado com as conquistas
teóricas dos séculos passados que não mais servem para entender a
época contemporânea. Discutindo com o pensamento oficial, o autor
investe contra o politicamente correto, o moralmente correto e todas as
formas do bem pensar, isto é, contra as ideias feitas que se transmitem
e se repetem acriticamente.
Cultura e Economia
Paul Tolila
Durante muito tempo, os economistas negligenciaram a cultura e por
muito tempo o setor cultural também se desinteressou da reflexão eco-
nômica. Vivemos o fim dessa época. Para os atores do setor cultural, as
ferramentas econômicas podem se tornar uma base sólida de desenvol-
vimento; para os tomadores de decisões, a contribuição da cultura para
a economia do conhecimento abre oportunidades originais de ação; para
os cidadãos, trata-se de ter os meios para compreender e defender um
setor cujo valor simbólico e potencial de riqueza humana e econômica
não podem mais ser ignorados.
264 OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL
AS REVISTAS DO
OBSERVATÓRIO