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Estado Novo *
Sérgio Lira **
Introdução.
1
* Comunicação apresentada ao Congresso Histórico de Amarante, 3ª Sessão, Património, Arte e Arqueologia.
** Docente da Universidade Fernando Pessoa, Porto.
[1]
Usamos a expressão «nacionais», neste caso, não no sentido legal ou de nomenclatura dos museus mas tão só para nos
referirmos aos museus portugueses.
Dividiremos, segundo o que vimos enunciando, o nosso texto em três partes
fundamentais. Não pretendemos, pela ordem adoptada, hierarquizar as questões
tratadas: apenas adoptámos esta sequência por uma questão de facilidade expositiva.
Sem querer debater a questão de quando deve ser considerado iniciado o Estado
Novo (tal assunto não cabe, obviamente, nem no âmbito nem no espaço desta
comunicação), não nos é possível deixar de aflorar a questão, uma vez que não podemos
deixar de expor que razões nos levaram a iniciar a nossa análise por uma peça
legislativa datada de 19243[3]. Não parece merecer qualquer dúvida que tal data não
pertence, nem nas propostas mais abrangentes do conceito, ao Estado Novo. No entanto,
mercê de análises que vão mais além do que o aparentemente simples facto político da
aprovação da Constituição de 1933, a ideia de que o Estado Novo pode ser considerado
como entidade nascente desde data anterior a essa, é de considerar. Em especial no que
respeita à questão que agora abordamos, um decreto de 1928 4[4] torna evidente que o
Estado Novo nascente não pretendia romper de forma brusca e declarada com a tradição
legislativa anterior; pelo contrário, o legislador afirma que "o Governo entendeu que o
que se impunha era, não a confecção de novas leis, que ofereciam, pelo menos, os
riscos de tudo o que é novo e imprevisto, mas sim modificar e melhorar a antiga,
remediando as deficiências evidenciadas na sua prática". Essa legislação mais antiga a
que alude o texto vinha sendo produzida desde 1911 e havia sido "Vazada nos moldes
das mais perfeitas organizações estrangeiras". O elogio a tal legislação é franco e
evidente: "como exemplo da eficácia da lei de 1911 bastaria citar (...) o Museu
Nacional de Arte Antiga de Lisboa, que, de um armazém mal arrumado, se transformou
num dos bons museus da Europa".
2[2]
Seria, naturalmente, interessante iniciar esta análise pelas peças legislativas do início do século, correspondentes à fase
da Primeira República. No entanto tal desviaria necessariamente o nosso estudo para uma cronologia que não nos propusemos
analisar aqui. Assim, e apesar de algumas inevitáveis referências a legislação anterior, procuraremos cingir-nos à época do Estado
Novo.
3[3]
Lei nº 1700, de 18 de Dezembro de 1924. Por uma questão de simplificação do trabalho de quem pretender consultar a
legislação que citamos, indicamos sempre neste texto as datas de publicação no Diário oficial.
4[4]
Decreto nº 15216, de 22 de Março de 1928.
A lei nº 1700, que acima referimos, vem na tradição das alterações que a
República produziu relativamente à questão do património. Naturalmente a sua análise
não faria sentido desligada da do Decreto que a regulamenta 5[5]. De uma forma clara são
estas duas peças a "herança" legislativa mais próxima que o Estado Novo recebeu do
período da Primeira República. Por elas iniciaremos, pois, a nossa análise.
O Decreto nº 11445, que acima já referimos, vem tentar colmatar esta lacuna: no
seu artigo 47º especifica que "Para efeitos gerais da lei consideram-se obras de arte ou
objectos arqueológicos: as esculturas, pinturas, gravuras, desenhos, móveis, peças de
porcelana, de faiança e de ourivesaria, vidros esmaltes tapetes, tapeçarias, rendas,
jóias, bordados, tecidos, trajos, armas, peças de ferro forjado, bronzes, leques,
medalhas e moedas, inscrições, instrumentos músicos, manuscritos iluminados e de um
modo geral todos os objectos que possam constituir modelo de arte ou representar
valiosos ensinamentos para os artistas, ou pelo seu mérito sejam dignos de figurar em
museus públicos de arte, e ainda todos aqueles que mereçam o qualificativo de
5[5]
Decreto nº 11445, de 13 de Fevereiro de 1926.
6[6]
A semelhança de princípios com o sistema do Reino Unido, introduzido em 1952 e geralmente conhecido como
"Waverlay Criteria", é digna de nota. Ver MAURICE, C. and TURNOR, R. - "The Export Licensing Roules in the United Kingdom
and the Waverlay Criteria" in International Journal of Cultural Propety , nº 2, vol. 3, 1994, pp. 273-293; ver ainda FAHY, Anne (ed.
by) - Collections Management, Routledge, Londres, 1995.
7[7]
Vejam-se os artigos 38º a 43º da citada Lei nº 1700.
históricos". Sendo notória a convivência de elementos de uma estrema especificação
com outros de uma abrangência total, este texto confirma as dificuldades, que podemos
adivinhar, eram sentidas pelo legislador em matéria tão difícil. Se algumas peças
passam a património artístico ou arqueológico sem qualquer margem para dúvidas, as
formas vagas com que finaliza o artigo permitem a inclusão em tal conceito de
praticamente tudo o que for considerado "histórico"... sem que tal termo seja definido.
Por outro lado, em número considerável de artigos, o presente Decreto reitera a
preocupação da Lei que acima referimos no que respeita à limitação da possibilidade de
exportação de património artístico ou arqueológico e reafirma as prerrogativas do
Estado no caso de venda pública, indo mais longe e passando a considerar que a simples
colocação "para venda em leilão público de objectos artísticos, arqueológicos e
históricos colocá-los há, para todos os efeitos, nas condições dos inscritos no catálogo"
desde que tal seja declarado por um representante do Estado8[8].
Uma nova achega à definição do que é património foi dada pelo Decreto nº
2056610[10] que determina não haver necessidade de qualquer acção formal de
arrolamento por parte dos agentes do Estado para que as peças e objectos
correspondentes ao especificado na lei fossem considerados arrolados. Tal determinação
é o seguimento natural do que vimos acima. Este Decreto, considerando incompleto o
determinado no artigo 47º do citado Decreto 11445, vem acrescentar à lista aí referida (e
que citámos) "os incunábulos portugueses; as espécies xilográficas e paleotípicas; os
cartulários e outros códices, membranáceos ou cartáceos; os pergaminhos e papéis
avulsos de interesse diplomático, paleográfico ou histórico; os livros e folhetos
considerados raros ou preciosos; e os núcleos bibliográficos que se recomendam pelo
valor dos seus cimélios ou simplesmente pelo seu valor de colecção.". Não muda, pois,
de tom a legislação: estamos ainda perante o espírito da lei que conhecemos até esta
8[8]
Ver artigo 56º do Decreto nº 11445.
9[9]
A única alteração evidente de política prende-se com o princípio da gratuitidade completa das entradas nos museus:
neste Decreto consagra-se o princípio de que essas entradas devem ser pagas, com algumas excepções, para, apenas em 1931,
através do Decreto nº 19414 de 5 de Março, se regulamentar o pagamento e colocar em prática o princípio.
10[10]
Decreto nº 20586, de 4 de Dezembro de 1931.
data e nele continuaremos em 1932 com a fundação da Academia Nacional de Belas
Artes11[11] onde o património referido continua a ser o "artístico e arqueológico". O
Decreto nº 20985, datado também deste ano de 1932 12[12], ainda que reorganizando os
serviços artísticos e arqueológicos, porque duvidando da eficácia da legislação
anterior13[13] lhe não reconhecia capacidade para ser mantida em vigor, praticamente não
altera o que temos vindo a observar no que respeita ao conceito de património. Uma vez
mais, quando o legislador pretende estabelecer o conceito refere os móveis "que sejam
de subido aprêço, reconhecido valor histórico, arqueológico ou artístico e cuja
exportação do território nacional constitua prejuízo grave para o património histórico,
arqueológico ou artístico do País.". Por outro lado, quanto às competências do recém
criado Conselho Superior de Belas Artes e no que respeita às aquisições para os museus,
uma vez mais se referem apenas "obras de arte e peças arqueológicas", como únicas
aquisições dignas de menção legislativa. Mais à frente, no artigo 14º, ainda no que
respeita às competências do dito Conselho, surge-nos a menção à necessária supervisão
dos trabalhos de "recuperação de quadros, esculturas ou quaisquer outros objectos
artísticos ou arqueológicos", mantendo-se assim, também a este respeito, o vago
conceito enunciado antes. No Capítulo V do mesmo Decreto, dedicado aos Museus, o
legislador separou estas instituições em três grupos: "a) Museus Nacionais, b) Museus
Regionais e c) Museus, museus municipais, tesouros de arte sacra e outras mais
colecções oferecendo valor artístico, histórico ou arqueológico".
Outro aspecto a ter em conta e que pode contribuir para apreender o conceito de
peça de museu para o período que vimos analisando, prende-se com a formação exigida
ao pessoal profissional dos museus nacionais. Conforme determinava o Decreto nº
2211014[14] para o acesso ao estágio dos conservadores tirocinantes, a funcionar no Museu
Nacional de Arte Antiga, tomava-se como habilitação de preferência "o diploma de
curso superior ou especial em que seja professado o ensino da história de arte". Tal
facto parece significativo se se tiver em conta que tal estágio era motivo de preferência
para o desempenho de funções de conservador ajudante nos museus regionais,
independentemente das características das suas colecções.
11[11]
Decreto nº 20977, de 5 de Março de 1932.
12[12]
Decreto nº 20985, de 7 de Março de 1932.
13[13]
Veja-se o próprio texto do prólogo: "Produziu os seus frutos a organização que ora se substitue, devido talvez mais
ao desenvolvimento da cultura estética em geral do que à excelência do complexo sistema administrativo então criado.".
14[14]
Decreto nº 22110, de 12 de Janeiro de 1933.
Em 195315[15] este regime de estágio é totalmente remodelado. Mantém-se, ainda
assim, uma acentuada tónica nas questões de arte. Senão, vejamos: a habilitação de
acesso é alargada para qualquer curso superior ou da escola de belas-artes, mas exige-se
um exame de aptidão aos candidatos. Tal exame constava de duas partes, uma teórica e
uma prática, ambas sobre temas de arte (a primeira versando um "assunto", a segunda
sobre uma "obra"). Ao longo do estágio era exigido aos candidatos a frequência de
várias cadeiras universitárias, todas versando questões de História e História d'Arte 16[16].
Para o exame final, a par com uma prova escrita "sobre um problema de museologia",
exigia-se uma prova prática, que podia durar até quatro dias: o candidato deveria
escolher "nos depósitos do Museu Nacional de Arte Antiga pinturas, móveis ou outras
peças e valor artístico, com os quais" deveria organizar "uma exposição de carácter
permanente numa das salas do mesmo Museu". Fazia ainda parte da prova elaborar o
catálogo das obras expostas e defender o seu trabalho em prova oral. Conforme
determinava o artigo 15º deste decreto "Os candidatos aprovados no exame final
ficarão com o título de conservador adjunto dos museus e dos palácios e monumentos
nacionais, que lhes assegura preferência absoluta para o provimento nos lugares de
conservador dos museus de carácter artístico, histórico e arqueológico pertencentes ao
Estado (...)".
15[15]
Decreto nº 39116, de 27 de Fevereiro de 1953.
16[16]
História Geral da Civilização, Epigrafia, Numismática, Esfragística, Paleografia e Diplomática, História de Arte e
Arqueologia.
17[17]
Ver Arquivo do Museu Nacional de Soares dos Reis, correspondência recebida, 1954.
18[18]
Veja-se Arquivo do Museu Nacional de Arte Antiga, correspondência expedida, carta ao Director Geral do Ensino
Superior e das Belas Artes, datada de 3 de Agosto de 1953, a propósito dos estudos por causa de uma possível guerra. Enviada
também ao Ministro dos Negócios estrangeiros, pedindo facilidades no acesso a informação. Ver ainda processo confidencial para
ofício 380 de 19 de Setembro de 1953 no mesmo Arquivo.
sofrer gravemente, em caso de conflito armado 19[19]. Uma vez mais estamos perante
objectos de valor artístico ou histórico, concepção em estrita concordância com o que
temos vindo a observar na legislação referida.
Analisemos agora uma importante peça legislativa20[20] que veio alterar, ao menos
na letra da lei, o sentido da existência dos museus nacionais. Trata-se do Regulamento
Geral dos Museus de Arte, História e Arqueologia. Apenas pelo título fácil se torna
verificar que o legislador restringiu o universo dos museus a tratar. A única «excepção»
é a inclusão do Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia (Museu Etnológico do Dr.
Leite de Vasconcelos) que, apenas forçadamente, poderá integrar-se no âmbito da
arqueologia. Todos os outros museus tratados por este Decreto são museus de arte,
história e arqueologia, somente. Par além das apreciações (aliás deveras interessantes e
profundamente inovadoras para a legislação portuguesa sobre museus) feitas no
preâmbulo, o texto do Decreto é muito claro ao estabelecer, no artigo 5º, como primeira
finalidade dos museus "Conservar e ampliar as colecções de objectos com valor
artístico, histórico e arqueológico.". Uma vez mais estamos perante legislação que
valoriza de forma inequívoca este tipo de espólio como o de excelência no campo da
museografia.
A questão que se pode colocar de seguida é o porquê desta insistência da lei neste
tipo de definição; sabemos, por outras vias, que em Portugal havia museus de «outras
19[19]
Arquivo do Museu Nacional de Arte Antiga, correspondência expedida, carta ao Director Geral do Ensino Superior e
das Belas Artes datada de 18 de Maio de 1953: acerca dos perigos de uma eventual guerra, citando um excerto de um artigo do
ParisMatch, nº 216 de 2 a 9 de Maio de 1953, pp 16, onde Portugal é classificado como "testa de ponte" (tête de pont) no caso de
conflito, o Director expressa a sua preocupação por pouco se ter feito na salvaguarda dos bens à sua guarda.
20[20]
Decreto nº 46758, de 18 de Dezembro de 1965, normalmente referido como Regulamento Geral dos Museus de Arte,
História e Arqueologia.
coisas»21[21]... inclusivamente protegidos e até criados pelo Estado Novo22[22]. Estaremos
perante museus «de segunda»? menos dignos da pena do legislador? menos
necessitados da regulamentação da lei? Se sim, e aparentemente, de facto, estes museus
passavam mais longe das preocupações legislativas de reorganização e de normalização,
parece só ser atribuível às características do seu espólio essa menor importância.
O que temos, pois, como peça de museu? Objectos de arte, seja de que tipo for,
pertencentes a qualquer época; objectos históricos e arqueológicos; objectos
etnográficos, científicos (que pertencem à actividade laboratorial ou de campo de um
qualquer ramo da ciência) e de história natural.
O que vimos afirmando é aplicável ao outros objectos de arte: excepção feita aos
que foram originalmente concebidos e realizados especialmente pelo seu valor estético
(esses podem ser, ainda que com alguma crítica possível, classificados à partida como
peças de museu), os objectos de arte deixaram de ser o que eram ao entrarem no
inventário do Museu. Uma das constantes preocupações dos Directores, e novamente
de arte.
24[24]
Carta datada de 23 de Março de 1948, constante dos volumes de correspondência expedida guardados no Arquivo do
Museu Nacional de Arte Antiga.
25[25]
Não encontrámos, para esta época e no texto da lei, preocupação em justificar pelo interesse público que se constitua,
organize e torne visitável o Museu e que se transforma um objecto litúrgico num objecto de arte, numa peça de museu. Para a
primeira metade do século por uma única vez nos surge inequívoca e preferencialmente referida a preocupação com o público: trata-
se do Decreto nº 19414, de 5 de Março de 1931 onde se regulamenta o pagamento das entradas nos museus, reservando "alguns dias
na semana exclusivamente destinados para entradas gratuitas, favorecendo assim as classes pobres que desejem instruir-se e
visitar êsses museus;". A preocupação com o público, enquanto principal elemento de um museu, claramente expressa, apenas se
pode detectar no Decreto nº 46758, que já acima referimos, e que data de meados da década de sessenta.
recorremos aos exemplos do Museu Nacional de Arte Antiga, era exactamente a pressão
oficial que sofriam para que alguns dos objectos peças do museu voltassem esporádica e
temporariamente às suas antigas funções: estão neste caso peças de mobiliário e
serviços de mesa que eram por vezes requisitados para serviço oficial, ainda que contra
a vontade expressa do Director26[26]. O uso dos objectos, por exemplo pratas, que eram
obviamente reconhecidos como peças de arte, não era indesejável enquanto tal: era
repudiado na medida em que sujeitava peças de museu a um uso que não era já, por
virtude dessa classificação, o seu.
A peça de museu, objecto de arte, não é entendida como objecto "utilizável" a não
ser como tal, ou seja, para ser admirado, estudado, empregue como fonte inspiradora 27[27]
ou educativa do sentido estético. Usar uma peça de museu para um fim tão prosaico
com dar um banquete a uma dignidade consular ou decorar uma antecâmara de um
qualquer ministério era visto como um desrespeito, e, pior, como um perigo óbvio para
a preservação da peça. Se um qualquer candelabro se podia quebrar no decorrer de um
banquete sem que tal fosse mais grave que a perda de um valor comercial (por mais alto
que este fosse), já quebrar uma peça de museu não era admissível, porque a peça de
museu não devia exercer funções utilitárias, ainda que para elas tivesse sido
originalmente concebida e produzida. A peça de museu, nesta óptica, é única, e como tal
deve ser tratada28[28].
Até este ponto estivemos no âmbito dos objectos que a legislação que referimos
elege como peças de museu. Mais ou menos abrangentes, com mais ou menos
excepções, são estes os conceitos que estão por detrás das leis que acima citámos: as
peças de museu, por essa legislação, são de facto, regra geral, os objectos que deixam de
ser o que eram originalmente ao entrar para o Museu; abandonam o mundo, viram as
29[29]
Em 1940 a dita espada foi para Lisboa participar nas comemorações dos Centenários; aquando das comemorações da
tomada de Lisboa, a espada foi, novamente, solicitada, e compareceu na Capital. Veja-se a correspondência trocada e as autorizações
necessárias no Arquivo do Museu Nacional de Soares dos Reis, correspondência expedida, em particular: carta endereçada pelo
Director em 25 de Abril de 1940 ao Presidente da Comissão Executiva dos Centenários anuindo ao pedido de empréstimo; carta
datada de 13 de Maio de 1947 acusando a recepção da espada, após o empréstimo para a exposição comemorativa da tomada de
Lisboa.
30[30]
Veja-se um documento datado de 2 de Julho de 1944, emitido pela Direcção Geral do Ensino Superior e das Belas
Artes, referindo posição da Junta Nacional de Educação e de outros organismos oficiais e comunicando a decisão de a espada
permanecer no Museu Nacional de Soares dos Reis, apesar da pretensão apresentada por "uma cidade" para tomar a sua guarda e
exibição. Arquivo do Museu Nacional de Soares dos Reis, correspondência recebida, 1944.
31[31]
Ver a este respeito PEARCE, Susan - Museums, Objects and Collections: A Cultural Study, Leicester University
Press, Leicester, 1992. Um paralelo com os objectos etnográficos pode ser encontrado na obra de SILVA, Maria Alice Duarte -
Colecções e Antropologia - Uma Relação Variável Segundo as Estratégias de Objectivação do Saber , dissertação apresentada ao
Instituto de Ciências Socais da Universidade do Minho para a obtenção do grau de Mestre em Antropologia Cultural e Social, não
publicado, Braga, 1997, p. 24.
costas ao século, e convertem-se a uma existência mais "pura", mais importante,
dedicada à estética ou à ciência histórica.
As peças de museu, qualquer que seja a sua natureza, assumem, como vimos, um
papel específico aquando da sua entrada em inventário (passam a ser espécies) e
recebem uma carga especial aquando da sua exposição (passam a únicas ou a legítimas
representantes). Esta mudança de estatuto determina tratamentos específicos, cuidados
particulares, despesas e preocupações que, na sua maioria, os objectos nunca
conheceriam não fora terem sido convocados pelo museu. No entanto, para além deste
papel de peça de museu, que como temos vindo a observar, é já de si complexo, os
objectos museografados assumem, por vezes, outros papéis, derivados deste: para a
nossa análise presente interessa-nos o papel de objecto político ou de propaganda
ideológica, e dele nos ocuparemos no ponto seguinte.
A oferta é ainda mais larga, chegando a referir preços especiais para encomendas de conjuntos de peles por grosso (mais de 1.000)...
Arquivo do Museu Nacional de Soares dos Reis, volumes da correspondência recebida, 1948.
35[35]
Mantenhamos presente que não nos referimos a museus actuais, onde a memória do objecto não está completa com a
sua mera presença física, onde exigimos a explicação do fabrico, uso, tradições, superstições, etc. a ele associadas; onde os autores e
utilizadores têm, cada vez mais, tanto ou mais lugar que o objecto.
temos vindo a citar36[36] para rapidamente se tornar patente que o Estado Novo «arruma»
a questão do património, nos seus aspectos organizativos gerais, até meados da década
de 3037[37]. Depois, actua pontualmente, criando ou reorganizando museus, declarando o
interesse público de imóveis ou classificando-os como monumentos, enfim alterando
aspectos particulares da legislação quando esta se mostra desactualizada. Alterações de
fundo só se começam a adivinhar na década de 50... e só se tronarão efectivas e notórias
na década seguinte.
Este calendário, relativo ao património, é tão mais notório quanto outras questões
só depois foram tratadas pelo Estado Novo. Tome-se a título de exemplo a organização
da Mocidade Portuguesa (datada de 1936), a imposição dos livros únicos nas escolas
primárias (datada de 1937) ou uma questão aparentemente de somenos mas deveras
interessante: a obrigatoriedade do teclado nacional HCESAR nas máquinas de escrever
(datada também de 1937)38[38]. Poder-se-ía ainda citar a obrigatoriedade de declaração de
estar integrado na ordem social e constitucional para assumir cargos de função
pública39[39] ou qualquer das muitas outras normas que, após meados da década de 30
foram dando forma legal ao Estado Novo; mesmo sem mais exemplos se torna óbvio
que as preocupações com o património foram «precoces» nesta construção. E até na
pena de Salazar, através de alguns dos seus discursos e escritos, é notório que o
património e a sua protecção ocupam um lugar importante, como obra já realizada,
desde muito cedo40[40], ao lado de outras obras públicas enaltecidas e apontadas como
realizações da Ditadura e do Estado Novo.
Nesta perspectiva, que papel esperava o Estado Novo ver desempenhado pela
peça de museu nas suas intenções de propaganda? Perguntando de outra forma, como
explorou o Estado Novo a peça de museu em favor da sua propaganda política e
ideológica? que interesses, que mensagens, que valores, pretendia fazer passar através
da peça de museu?
Outro exemplo que pode ser citado, deste mesmo género, é o questionário que a
Direcção Geral do Ensino Superior e das Belas Artes enviava anualmente aos museu,
relativo a dotações orçamentais, verbas gastas, entradas nos museus e, no ponto 4º "De
um modo geral tudo o que possa pôr em relevo a obra da Ditadura e do Estado
Novo"45[45].
Eram, pois, os museus sede de propaganda: pelas suas realizações culturais, pelas
obras neles realizadas (em alguns casos óbvias e ostentáveis), pelo número de visitantes
estrangeiros e nacionais que a eles se deslocava, pelas peças excepcionais que
expunham ou guardavam e que demonstravam a grandeza passada dos feitos
portugueses. O nacionalismo46[46], característica evidente do regime47[47], alimentava-se em
grande parte dos testemunhos de um passado louvado. Muitos desses testemunhos, à
guarda dos museus, faziam destas instituições «cofres-fortes» do sentimento de orgulho
nacional que o Estado Novo pretendia fazer renascer.
48[48]
Veja-se por exemplo uma carta datada de 20 de Abril de 1940 dirigida ao Exmº Senhor Presidente da Comissão
Nacional de Centenários pelo Director do Museu Nacional de Arte Antiga: "(...) A respeito da cedência desta peça [A Cadeira de D.
Afonso V], devo informar V. Exª que discordo da sua saída do Museu pelas seguintes razões:1º Figura em uma das salas de
exposição e dela não deve ser retirada; 2º A cadeira, muito usada pelo tempo, não pode ser deslocada sem que daí resulte grave
prejuízo par a sua conservação. No caso de se entender que ele deve realmente ser cedida (...) peço a V. Exª o favor de me informar
do facto a fim de o levar ao conhecimento da entidades de que este museu depende, e consequentemente, de libertar a minha
responsabilidade dos prejuízos que, eventualmente, possam ocorrer (...)". Arquivo do Museu Nacional de Arte Antiga,
correspondência expedida. O pedido era mais vasto que a cadeira referida e é interessante notar que à margem da requisição feita
pelo Comissariado da Exposição está apontado, para certos itens, "Não vai": para um total de dezoito itens requisitados três
mereceram tal nota; em quatro estão corrigidas as quantidades de peças a enviar. Arquivo do Museu Nacional de Arte Antiga,
correspondência recebida.
49[49]
Uma vez mais apresentamos exemplo do Museu Nacional de Arte Antiga: por carta datada de 8 de Janeiro de
1941enderaçada ao Inspector do Serviço de Empréstimos da Comissão executiva dos Centenários, reclama o Director do Museu:
"Sucede que das duas cadeiras, uma foi entregue com o couro do assento inteiramente rasgado e a outra com um intenso rasgão de
um dos lados (...) prova evidente de que os objectos dos museus não devem ser cedidos seja qual for o pretexto invocado, antes
devem ser utilizadas cópias dos originais (...)" O Director pede ainda que as despesas de restauro no valor de 120$00 sejam pagas
ao museu. Arquivo do Museu Nacional de Arte Antiga, correspondência expedida.
50[50]
Decreto-lei nº 27269, de 24 de Novembro de 1936.
51[51]
Decreto-lei nº 29087, de 28 de Outubro de 1938.
Já no que se refere ao texto do Decreto-lei nº 29087, no seu artigo 22º, o tom é
bem outro: "Todas as repartições, serviços autónomos, museus, bibliotecas e arquivos
do Estado, da metrópole e ilhas adjacentes e das colónias, prestarão à comissão
executiva, ao Comissariado da Exposição do Mundo Português e organismos dela
dependentes o concurso e os elementos que para a boa execução dos seus objectivos
lhes forem solicitados.". É patente o poder que a dita comissão e o comissariado teriam
ao seu dispor, até sobre instituições normalmente alheias a poder externo, excepto pelas
vias hierárquicas políticas e administrativas. Para que não restassem quaisquer dúvidas,
o artigo 23º esclarece e determina: "Mediante têrmo de entrega, as autoridades que
tiverem a seu cargo os museus, bibliotecas e arquivos dependentes dos diferentes
Ministérios porão à disposição da comissão executiva, do Comissariado da Exposição
do Mundo Português e da secção das exposições de arte os elementos o objectos que
lhes forem requisitados, tomando-se todas as precauções para garantir a boa guarda e
conservação dos mesmo.". Não tinham pois qualquer força as eventuais opiniões
discordantes dos directores dos museus: as suas peças podiam ser requisitadas. E note-
se que é tão explicita essa autoridade da comissão e comissariado quanto é vaga a
exigência de precauções relativas à guarda e conservação das peças. Neste caso é
notório que, uma vez mais, as peças de museu assumem novo papel: o de objectos de
propaganda52[52], de material a explorar ideológica e politicamente, mesmo com algum
desprezo pelo seu estatuto privilegiado de peça de museu, normalmente sob a protecção
e autoridade do director da instituição. O poder político, em função da propaganda,
despoja as peças de museu da redoma com que as havia protegido. Não podemos, assim,
deixar de observar que, ainda que pontualmente, é notório o interesse primeiro do poder
político relativamente ao património: este não é um valor por si, mas sim um valor
potencial no palco da prestação ideológica e do jogo político. Nada nos impede, pois, de
assumir como possíveis essas intenções aquando das preocupações com o património e
não apenas as mais "puras" relacionadas com os valores intrínsecos dos bens culturais.
Conclusão
O que afirmamos nas linhas anteriores pode parecer, à primeira vista, um lugar
tão comum que não carece de demonstração documental. Não concordamos com essa
visão. A nossa escola de investigação, fundada num documentalismo exigente como é o
52[52]
Não será de deixar de ter em conta que o Decreto-lei que vimos seguindo, no seu artigo 5º, parágrafo 2º, afirma: " A
secção de propaganda e recepção funcionará no Secretariado da Propaganda Nacional, sob superintendência do respectivo
director, em colaboração com a Agência Geral das Colónias e a Emissora Nacional de Radiodifusão.".
medieval (habituado a um aproveitamento exaustivo e a uma crítica rigorosa das fontes)
não se compadece com "evidências". Pelo contrário julga necessário provar solidamente
o que afirma, fundar em documento o que conclui. Assim procuramos fazer,
percorrendo os três passos que são as três partes deste nosso texto: analisar o que é
considerado elemento de património cultural no período de análise eleito, verificar
como um dos aspecto particulares desse património (a peça de museu) se constitui e é
considerado para, finalmente, poder analisar um uso específico desse elemento: o uso
político e ideológico.
Fontes e Bibliografia:
Fontes primárias:
Legislação:
Lei nº 1700, de 18 de Dezembro de 1924.
Decreto nº 11445, de 13 de Fevereiro de 1926.
Decreto nº 15216, de 22 de Março de 1928.
Decreto nº 16791, de 30 de Abril de 1929.
Decreto nº 19414, de 5 de Março de 1931.
Decreto nº 20586, de 4 de Dezembro de 1931.
Decreto nº 20977, de 5 de Março de 1932.
Decreto nº 20985, de 7 de Março de 1932.
Decreto nº 22110, de 12 de Janeiro de 1933.
Decreto nº 22728, de 24 de Junho de 1933.
Decreto nº 23054, de 25 de Setembro de 1933.
Decreto nº 26175, de 31 de Dezembro de 1935.
Decreto nº 26611, de 19 de Maio de 1936.
Decreto nº 27003 de 14 de Setembro de 1936.
Decreto-lei nº 27269, de 24 de Novembro de 1936.
Regulamento da Organização da Mocidade Portuguesa, de 4 de Dezembro de 1936.
Decreto nº 27868, de 21 de Julho de 1937.
Decreto nº 27882, de 21 de Julho de 1937.
Decreto-lei nº 29087, de 28 de Outubro de 1938.
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