DECISÃO: Trata-se de reclamação, com pedido de medida liminar, na
qual se sustenta que o ato judicial impugnado – proferido pela
colenda Seção de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais do E. Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul (Agravo Regimental nº 4000197-81.2016.8.12.9000) – teria transgredido o enunciado constante da Súmula Vinculante nº 10/STF, que possui o seguinte teor:
“Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a
decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte.” (grifei)
A parte ora reclamante, para justificar a alegada transgressão ao
enunciado constante da Súmula Vinculante nº 10/STF, invocou, em síntese, as seguintes razões:
“A Lei Federal nº 13.105 de 16 de março de 2015, após longo
período de discussão foi aprovada, como ferramenta para tentar solicitar entre outros a morosidade judiciária. Contudo, antes mesmo de se poder observar sua eficácia na prática, os descontentes com a mesma afrontam-na sem qualquer respeito pelas normas constitucionais, como o presente caso, onde houve afronta à autoridade da Súmula Vinculante nº 10. É sabença de todos que o advento do NCPC alterou a contagem dos prazos processuais, os quais passaram a ser contados em dias úteis, conforme determina a norma:
‘Art. 219. Na contagem de prazo em dias, estabelecido por
lei ou pelo juiz, computar-se-ão somente os dias úteis. Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se somente aos prazos processuais.’
A premissa acima não faz alusão a nenhuma exceção, logo
não é necessário ser um ‘expert’ nas ciências jurídicas, para se entender que a nova lei determina que os prazos processuais (todos os processos judiciais, não importa o grau ou a jurisdição) são contados somente nos dias úteis. Conforme mencionado no ato reclamado os enunciados 161 e 165 do FONAJE, a jurisprudência da Seção Especial de Uniformização da Jurisprudência das Turmas Recursais dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais de Mato Grosso do Sul, a Corregedora Nacional de Justiça ministra Nancy Andrighi, o Presidente do Conselho de Supervisão dos Juizados Especiais de Mato Grosso do Sul, Desembargador Marco André Nogueira Hanson determinaram que nos juizados especiais os prazos processuais são contínuos, não em dias úteis. Contudo, nem os enunciados do Fonaje, nem a Seção Especial de Uniformização do TJMS, nem a Corregedora Nacional de Justiça Ministra Nanci Andrighi, nem o Presidente do Conselho Desembargador Marco André Nogueira Hanson tem o condão de negar efetividade à norma do artigo 219, parágrafo único, da Lei Federal nº 13.105/2015, sem praticar aquilo que determina o artigo 97 da Constituição Federal do Brasil, enunciado da Súmula Vinculante nº 10. Logo, a decisão da Seção Especial de Uniformização da Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul, na ação de Agravo Regimental no Mandado de Segurança nº 4000197-81.2016.8.12.9000/5000, afronta a autoridade da Súmula Vinculante nº 10 (…).” (grifei)
Busca-se, na presente sede reclamatória, “(…) que a Seção Especial de
Uniformização da Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul proceda a novo julgamento na ação de (Agravo Regimental no Mandado de Segurança nº 4000197-81.2016.8.12.9000/5000), aplicando o artigo 219, parágrafo único, do NCPC. Caso contrário, seja declarada a inconstitucionalidade do artigo 219, parágrafo único, do NCPC, nas ações dos juizados especiais, com observância à clausula de reserva de plenário, com a ordenança do artigo 97 da Constituição Federal do Brasil”.
Cabe assinalar, desde logo, que o exame dos fundamentos subjacentes à
presente causa leva-me a reconhecer a inexistência, na espécie, de situação caracterizadora de desrespeito ao enunciado constante da Súmula Vinculante nº 10/STF.
É certo que o Supremo Tribunal Federal, em sua jurisprudência
(RE 432.597-AgR/SP e AI 473.019-AgR/SP, ambos relatados pelo Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE), considera “declaratório de inconstitucionalidade o acórdão que – embora sem o explicitar – afasta a incidência da norma ordinária pertinente à lide, para decidi-la sob critérios diversos alegadamente extraídos da Constituição” (RTJ 169/756-757, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – grifei).
Na realidade, esta Suprema Corte tem entendido equivaler à própria
declaração de inconstitucionalidade o julgamento que, sem reconhecer, explicitamente, a eiva de ilegitimidade constitucional, vem, não obstante, a recusar aplicabilidade ao ato do Poder Público, sob alegação de conflito com critérios resultantes do texto da Carta Política.
Como se sabe, a inconstitucionalidade de qualquer ato estatal só
pode ser declarada pelo voto da maioria absoluta dos membros do Tribunal ou, onde houver, dos integrantes do respectivo órgão especial, sob pena de absoluta nulidade da decisão emanada do órgão fracionário (Turma, Câmara ou Seção).
É preciso ter presente, por necessário, que o respeito ao postulado da
reserva de plenário – consagrado pelo art. 97 da Constituição (e introduzido, em nosso sistema de direito constitucional positivo, pela Constituição de 1934) – atua como verdadeira condição de eficácia jurídica da própria declaração jurisdicional de inconstitucionalidade dos atos do Poder Público, consoante adverte o magistério da doutrina (LÚCIO BITTENCOURT, “O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis”, p. 43/46, 2ª ed., 1968, Forense; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, vol. 2/209, 1992, Saraiva; ALEXANDRE DE MORAES, “Constituição do Brasil Interpretada”, p. 1.424/1.440, 6ª ed., 2006, Atlas; JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, p. 50/52, item n. 14, 27ª ed., 2006, Malheiros; UADI LAMMÊGO BULOS, “Constituição Federal Anotada”, p. 939/943, 5ª ed., 2003, Saraiva; LUÍS ROBERTO BARROSO, “O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro”, p. 77/81, itens ns. 3.2 e 3.3, 2004, Saraiva; ZENO VELOSO, “Controle Jurisdicional de Constitucionalidade”, p. 50/51, item n. 41, 1999, Cejup; OSWALDO LUIZ PALU, “Controle de Constitucionalidade”, p. 122/123 e 276/277, itens ns. 6.7.3 e 9.14.4, 2ª ed., 2001, RT, v.g.).
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, por sua vez, tem
reiteradamente proclamado que a desconsideração do princípio em causa gera, como inevitável efeito consequencial, a nulidade absoluta da decisão judicial colegiada que, emanada de órgão meramente fracionário, haja declarado a inconstitucionalidade de determinado ato estatal (RTJ 58/499 – RTJ 71/233 – RTJ 110/226 – RTJ 117/265 – RTJ 135/297) ou, então, “embora sem o explicitar”, haja afastado “a incidência da norma ordinária pertinente à lide, para decidi-la sob critérios diversos alegadamente extraídos da Constituição” (RTJ 169/756-757, v.g.).
As razões subjacentes à formulação do postulado constitucional do
“full bench”, excelentemente identificadas por MARCELO CAETANO (“Direito Constitucional”, vol. II/417, item n. 140, 1978, Forense), justificam a advertência dos Tribunais, cujos pronunciamentos – enfatizando os propósitos teleológicos visados pelo legislador constituinte – acentuam que “A inconstitucionalidade de lei ou ato do poder público só pode ser decretada pelo voto da maioria absoluta dos membros do Tribunal, em sessão plena” (RF 193/131 – RTJ 95/859 – RTJ 96/1188 – RT 508/217).
Não se pode perder de perspectiva, por isso mesmo, o magistério
jurisprudencial desta Suprema Corte, cujas decisões assinalam a alta significação político-jurídica de que se reveste, em nosso ordenamento positivo, a exigência constitucional da reserva de plenário:
“Nenhum órgão fracionário de qualquer Tribunal dispõe
de competência, no sistema jurídico brasileiro, para declarar a inconstitucionalidade de leis ou atos emanados do Poder Público. Essa magna prerrogativa jurisdicional foi atribuída, em grau de absoluta exclusividade, ao Plenário dos Tribunais ou, onde houver, ao respectivo Órgão Especial. Essa extraordinária competência dos Tribunais é regida pelo princípio da reserva de plenário inscrito no artigo 97 da Constituição da República. Suscitada a questão prejudicial de constitucionalidade perante órgão fracionário de Tribunal (Câmaras, Grupos, Turmas ou Seções), a este competirá, em acolhendo a alegação, submeter a controvérsia jurídica ao Tribunal Pleno.” (RTJ 150/223-224, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Não obstante as razões que venho de expor, não vislumbro na
decisão de que ora se reclama a existência de qualquer juízo, ostensivo ou disfarçado, de inconstitucionalidade do dispositivo normativo indicado pela parte ora reclamante (art. 219 do CPC/15), como resulta claro do teor do acórdão objeto da presente impugnação reclamatória, valendo destacar, por oportuno, o seguinte fragmento do voto proferido pelo eminente Juiz Relator:
“Mas, ainda que fosse o caso de analisar a certidão,
melhor sorte não assiste ao agravante, porquanto a publicação realizada em 26/04/2016 tem como decurso de prazo realmente o dia 10/05/2016, tal como certificou o servidor, procedendo a contagem em dias corridos, não úteis. Isso porque, pelo princípio da especialidade, o novo CPC somente deve ser aplicado no âmbito dos Juizados Especiais nos casos de expressa e específica remissão, bem como quando houver indubitável compatibilidade com os critérios do art. 2º da Lei 9.099/95. Com efeito, os juizados especiais cíveis são orientados pelo princípio da celeridade, de modo que a contagem de prazo em dias úteis vai de encontro com o princípio da celeridade previsto na Lei 9.099/95. Nesse sentido, são enunciados 161 e 165 do FONAJE: …................................................................................................... Registre-se que a inicial menciona um suposto enunciado 4 de um colegiado de turmas recursais que sequer declina o Estado da Federação para que possa checar a autenticidade da fonte. Demais disso, a Seção Especial de Uniformização da Jurisprudência das Turmas Recursais dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais de Mato Grosso do Sul possui entendimento firmado no sentido de que a contagem dos prazos em dias úteis não deve ser aplicada no âmbito dos Juizados Especias, visto que incompatível com o princípio da celeridade previsto no art. 2º da Lei 9.099. No mesmo sentido, manifestou-se a Corregedora Nacional de Justiça, ministra Nancy Andrighi, e o Presidente do Conselho de Supervisão dos Juizados Especiais de Mato Grosso do Sul, Desembargador Marco André Nogueira Hanson.
Assim, como a regra específica de contagem de prazos é de
amplo conhecimento de jurisdicionados e de advogados, o acórdão proferido em acordo com esse entendimento não é ato ilícito ou abusivo, razão pela qual indefiro a inicial de mandado de segurança.” (grifei) Vê-se, desse modo, que o órgão ora reclamado não realizou exame de constitucionalidade da norma indicada pela parte reclamante, o que afastava – por ausente qualquer ato de controle constitucional – a necessidade de observância do postulado da reserva de plenário (CF, art. 97).
Impende registrar, no ponto, que não transgride a autoridade da
Súmula Vinculante nº 10/STF o acórdão proferido por órgão fracionário que, sem invocar nas razões conflito entre ato do Poder Público e critérios resultantes do texto constitucional, limita-se a interpretar normas infraconstitucionais.
Vale referir, bem por isso, ante a pertinência de seu conteúdo,
fragmento da decisão que o eminente Ministro LUIZ FUX proferiu no julgamento da Rcl 22.987/MG, de que foi Relator:
“’In casu’, verifica-se que o Tribunal reclamado concluiu que
a solução do tema referente à condenação em honorários deveria se fazer à luz do enunciado da Súmula nº 421 do STJ. Infere-se, nesse contexto, que a Corte reclamada não afastou a aplicação do dispositivo legal invocado pelo reclamante com supedâneo em disposição constitucional, mas apenas conferiu interpretação ao mencionado verbete. Como é consabido, para que se verifique afronta à Súmula Vinculante nº 10 é necessário que o órgão julgador afaste a incidência de norma legal invocando, para tanto, fundamento extraído da Constituição Federal (juízo disfarçado de inconstitucionalidade, nas palavras do Ministro Celso de Mello), o que não se verifica no caso sob exame. (…).” (grifei)
Cumpre ressaltar, finalmente, em face da ausência, na espécie, dos
pressupostos que poderiam legitimar o ajuizamento da reclamação, que este remédio constitucional não pode ser utilizado como um (inadmissível) atalho processual destinado a permitir, por razões de caráter meramente pragmático, a submissão imediata do litígio ao exame direto desta Suprema Corte.
É que a reclamação – constitucionalmente vocacionada a cumprir a
dupla função a que alude o art. 102, I, “l”, da Carta Política (RTJ 134/1033) – não se qualifica como sucedâneo recursal nem configura instrumento viabilizador do reexame do conteúdo do ato reclamado, eis que tais finalidades revelam-se estranhas à destinação constitucional subjacente à instituição dessa medida processual, consoante adverte a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECLAMAÇÃO.
CONVERSÃO EM AGRAVO REGIMENTAL. AUSÊNCIA DE ARGUMENTOS NOVOS. RECLAMAÇÃO UTILIZADA COMO SUCEDÂNEO RECURSAL. INEXISTÊNCIA DE AFRONTA AO ART. 93, INC. IX, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. ....................................................................................................... 3. O instituto da Reclamação não se presta para substituir recurso específico que a legislação tenha posto à disposição do jurisdicionado irresignado com a decisão judicial proferida pelo juízo ‘a quo’. ....................................................................................................... 5. Agravo regimental não provido.” (Rcl 5.465-ED/ES, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, Pleno – grifei)
“AGRAVO REGIMENTAL EM RECLAMAÇÃO. A
RECLAMAÇÃO NÃO É SUCEDÂNEO DE RECURSO PRÓPRIO. RECURSO IMPROVIDO. I – A reclamação constitucional não pode ser utilizada como sucedâneo de recurso próprio para conferir eficácia à jurisdição invocada nos autos da decisão de mérito. ....................................................................................................... III – Reclamação improcedente. IV – Agravo regimental improvido.” (Rcl 5.684-AgR/PE, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Pleno – grifei)
“(…) – O remédio constitucional da reclamação não pode
ser utilizado como um (inadmissível) atalho processual destinado a permitir, por razões de caráter meramente pragmático, a submissão imediata do litígio ao exame direto do Supremo Tribunal Federal. Precedentes. (…).” (Rcl 6.534-AgR/MA, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno) Sendo assim, e pelas razões expostas, nego seguimento à presente reclamação, restando prejudicada, em consequência, a apreciação do pedido de medida liminar (CPC/15, art. 932, VIII, c/c o RISTF, art. 21, § 1º).