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Do mesmo autor, nesta Editora:

o DIREITO DE SONHAR
Gaston Bachelard

• A Chama de uma Vela

Tradução
Glória de Carva lho Lins

J.
Copyrighl © 1961, Presses Univcrsitaires de Francc

Titulo Original: La flomme d'une chandel/e

Capa: projetO gráfio.'O de r-elipe Taborda, uti lizando detalhe da tela


"Efeçto de luz arlL ficial", de $chalcken (Mu~u do Prado, Madri)

1989 A HENRI Bosco


Impresso no arasi!
Prfl1ted in Brazi/

Todos os direitos desta tradução reservados à


EDITORA BERTRAND BRAS IL S.A.
Rua Benjamin Conseanl, 142 - Glória
20241 - Rio de Janeiro - RJ
Te!.: (OZ I) 22 1-1132 Telex: (21) 38074 BESI BR .
Não t perm itido a reprodução lotai ou parcial desta obra, por
quaisquer meios, sem a prévia auto rização por escrito da edi tora.

Atendemos pelo Reembolso Postal.


fNDlCE

PRÓLOGO..................... . ...................... . 9
CAPiTULO I - O passado das ~'elas ................... 25
CAPíTULO 11 - A solidão do sonhador de vela ..... 39
CAPiTULO 111 - A verticafidade das citamos. " ..... .. 59
CAPiTULO IV - As imagens poéticas da chama na vi-
da vegetal. ........ ..... ... 0.0 73
.............

CAPITULO V - A luz da lâmpada .... .. ................ 9 1


Minha lâmpada e meu papel em
I' EpfLOGO -
branco .... ... ... ... ... .. .... ............... 107

..
, Prólogo

Neste pequeno livro, de pura famas ia, sem a so-

I
brecarga de saber algum, sem nos aprisionarmos na uni-
dade de um método de investigação, gostaríamos de,
numa seqüência de curtos capitulos, dizer que a reno-
vação da fantasia recebe um sonhador na contempla-
• ção de uma chama solitária. A chama, dentre os obje-
tos do mundo que nos fazem sonhar, é um dos maio-
res operadores de imagens. Ela nos força a imaginar.
Diante dela, desde que se sonhe, o que se percebe não
é nada, comparado com o que se imagina. Ela traz con-
sigo um valor seu, de metáforas e imagens, nos domí-

9
- --------------...,-______ ~== •os______________UEE
.._L 2 ~ ~------ __. . . . 5.. .çz_

ruas das mais diversas meditações. Tomem-na como su- ser sonhador feliz de sonhar, ativo em sua fantasia, con·
jeito de um dos verbos que exprimem a vida e verão tém uma verdade do ser, um destino do ser humano.
que ela dá a esses verbos um complemento de anima- Fnrre todas as imagens, as imagens da chama -
ção. O filósofo que corre atrás das generalizações afir- das mais ingênuas às mais apuradas, das sensatas às
ma, com dogmática tranqüilidade: "O que se chama mais loucas - comém um símbolo de poesia. Todo so-
Vida na criação é, em todas as formas e em todos os nhador inflamado é um poeta em potencial. Toda fan-
seres, um mesmo e único espírito. uma chama úni - tasia diante da chama é uma fantasia admiradora. To-
ca"l. Mas tal generalização rápido demais alcança sua do sonhador innamado está em estado de primeira fan -
meIa. J:, principalmente na muhiplicidade e nos deta-
lhes das imagens que devemos fazer sentir a função de
operador da imaginação das chamas imaginadas. O ver-
1 tasia. Esta primeira admiração está enraizada em nos-
so passado longínquo. Temos pela chama uma admi-
ração natural, ouso mesmo dizer: uma admiração ina-
bo il1flamar dt\-"t, enlão. entrar para o vocabulário do ta. A chama determina a acentuação do prazer de \'er,
psicólogo. Ele comanda lodo um setor do mundo da a lgo além do sempre visto. Ela nos força a olhar.
expressão. As imagens da linguagem inDamada infla- A chama nos leva a ver em primeira mão: temos
mam o psiquismo. dão um tom de excitação que a fi· millcmbranças, sonhamos tudo atrdvés da personali-
., losofia da poética necessita. As mais frias metáforas dade de uma memória muito antiga e, no entanto, so-
transformam-se realmente em imagens, através da cha- nhamos como todo mundo, lembramo-nos como todo
ma, tomada como objeto de fantasia. Ainda que mui- mundo se lembra - então, seguindo uma das leis mais
tas vezes as metáforas nada mais sejam do que trans- COllsfalltesda fantasia diante da chama, o sonhador vive
mutações do pensamento numa vontade de dizer me- em um passado que não é mais unicamente seu, no pas-
lhor, de dizer ile maneira diferente, a imagem. a verda- sado dos primeiros fogos do mundo.
deira imagem, quando é vivida primeiro na imagina-
ção. deixa o mundo real e passa para o mundo imagi-
nado, imaginário. Através da imagem imaginada co-
nhecemos es~ fantasia absoluta que é a fantasia poé- \I
tica. Correlatamente, como tentamos provar em nosso
último livro - mas scrá que um livro acaba alguma
vez de descre~r toda convicção de seu autor? -, co- Assim, a contemplação da chama pcreniza essa p~i.
nhecemos nosso sonhador produtor de fantasias. Um meira fantasia. Ela nos distingue do mundo e amplia
o mundo do sonhador, A chama é, em si mesma, uma
1. H~__'II!J..
eirado po r 6b.o, ... ~"... mmaN'qM~ ~I k t1H, Milnei~ Callin-l grande presença, mas, perto dela, sonha-se longe. longe
da Suei, lOmO I, P. lU.
demais: "Perdemo-nos em fantasias." A chama está ali,
10 \I

. I
pequena e medfocre, lutando para manter seu ser, e o III
sonhador vai sonhar em outro lugar, perdendo seu pró-
prio ser, sonhando grande. grande demais - sonhan-
do com o mundo. Limitando por ora nossas investigações, mantendo-
A chama é um mundo para o homem 56. nos delUro da unidade de um só exemplo, esperamos
Então, se o sonhador inflamado fala com a cha- atingir uma estética concreta, uma estética que não se-
ma, fa la consigo mesmo, ei-Io poeta. Ampliando o ria trabalhada por polêmicas,dc filósofos. que nào se-
mundo, o destino do mundo, meditando sobre o desti- ria racionalizada por idéias ge'rais fáceis. A chama, ela
no da chama, o sonhador amplia a linguagem, já que sozinha, pode concretizar O ser de todas as suas ima-
exprime uma beleza do mundo. Através de tal expres- gens, o ser de todos os seus fantasmas.
são pancalizante* o próprio psiquismo se amplia, se ele- O objeto - uma chama! - a ser investido pelas
va. A meditação da chama deu ao psiquismo do so- imagens literárias é tão simples que esperamos poder
nhador uma aJimentação de verticalidade, um alimen- determinar a comunhão das imaginações. Com as ima-
to verticalizante. Uma alimentação aérea. sendo O opos- gens literárias da chama, o surrealismo tem alguma ga-
to de todas as "alimentações terrestres", é o princípio
, mais ativo para dar um sentido vilal às determinações
poéticas. Voltaremos a essas determinações num capí-
ralHia de ter uma raiz de realidade! As imagens mais
fantásticas da chama convergem. Transformam-se, por
meio de notável privi légio, _em imagens verdadeiras.
tulo especial para ilustrar o cOllselho de toda chama: O paradoxo de nossas investigações sobre a ima-
• queimar alto. sempre, mais alto. para estar certa de dar ginação literária: achar a realidade por meio da pala-
luz. vra, desenhar com palavras, tem, aqui, aJguma chance
Para atingir esta "altura psíquka" é preciso en- de ser dominado. As imagens faladas traduzem a ex-
cber todas as impressões, insunando-lhes matéria poé- traordinâria excitação que nossa imaginação recebe da
tica. A contribuição poética basta, acreditamos, para mais simples das chamas.
que possamos dar uma unidade às fantasias que ha-
víamos reunido sob o símbolo da vela . Esta monogra-
fia poderia trazer como subtítulo: A poesia das cha-
mas. Realmente, de acordo com nossa vontade de, aqui, IV
apenas seguir uma linha de fantasias, destacamos esta
monografia de um livro mais ger"l que esperamos um
dia vir a publicar sob o título: A poética do fogo. Devemos ainda dar uma explicação sobre um ou-
tro paradoxo. De acordo com a vontade que lemos de
• FIlnca _ ala,...""a. CN. da T,l vivcr as imagens literárias dando-lhes loda atualidade,

12 13
ainda com a ambição maior de provar que a poesia é gica: o inconscieme tranqüilo, sem pesadelos, em equi-
uma potência ativa da vida atual, não existe. para nós, hbrio com sua Fantasia. é exatamente o claro-escuro do
um paradoxo inútil em colocar tantas fantasias sob o psiquismo, ou, melhor ainda, o psiquismo do claro-
símbolo de uma vela? O mundo anda depressa, o sé- escuro. Imagens da pequena luz nos ensinam a gostar
culo se acelera. O tempo não é mais o das lamparinas desse c1aro-escuro da visão intima. O sonhador que
e das palmatórias. Somente sonhos decrépitos se ligam quer se conhecer como ser sonhante, longe das clari-
às coisas sem uso. dades do pensamento, tal sonhador, desde que goste
A resposta a essas objeções é fácil: os sonhos e as de sua famasia, é tentado a formular a estética desse
famasias não se modernizam tão rapidamente quanto claro-escuro psfquico.
nossas ações. Noss~ fantasias são verdadeiros hábitos Um sonhador de lâmpada (a óleo) compreenderá
psíquicos fortemente enraizados. A vida ativa também instintivamente que as imagens da pequena luz são lam-
não os atrapalha. Existe interesse. para um psicólogo, parinas íntimas. Suas luzes pálidas tornam-se invisíveis
em reencomrar todos os caminhos da familiaridade quando o pensamento trabalha, quando a consci~ncia
mais antiga. está bem clara. Mas quando o pensamento repousa, as
"(:>. As famasias da pequena luz nos levam de volta ao imagens vigiam.
reduto da familiaridade. Parece que existe em nós can- A consciência do claro-escuro da consciência tem
i tos sombrios que toleram apenas uma luz bruxulean- uma tal presença - uma presença duradoura - que
te. Um coração senslvel gosta de valores frágeis. Co- o ser espera que desperte - um despertar de ser. Jean
munga com os valores que lutam, portanto; com a luz Wahl sabe disso. E o diz num s6 verso:
fraca Que luta contra as trevas. Assim, todas as nossas
fantasias da pequena luz conservam certa realidade psi- Ó pequena luz. d nascente, branda alvorodal
cológica na vida atual. Elas têm um sentido e. diria-
mos mesmo, têm uma função. Com efeito, podem dar
a uma psicologia do inconsciente toda uma aparelha-
gem de imagens para interrogar, calmamente, natural- v
mente, sem provocar o sentimento de enigma, o ser so-
nhador. Com a fantasia da pequena luz. o sonhador
se sente em casa, seu inconsciente é como se Fosse sua Propomos, pois, transferir os valores estéticos do
casa. O sonhador! - esta duplicata de nosso ser, este c1aro-escuro dos pintores para o domínio dos valores
c1aro-escuro do ser pensante - tem, na fantasia da pe- estéticos do psiquismo. Se conseguissemos, tiraríamos
quena luz, a segurança de ser. Quem confiar nas fan-
2. Jean WAHL. IWmtJ M f/1"rONIOIlff. Ed. Conn~nctI. p. 31
tasias da pequena luz descobrirá esta verdade psicol6-

14 15
em parte O que há de diminuto, de pejorativo, na no- George Sand vê o problema, coloca-o: como' 'des-
ção de inconsciente. As sombras do inconsciente dão crever", não pintar, esse claro-escuro - eis af o privi-
tantas vezes valor ao mundo de luminosidade fraca. on- legio dos grandes artistas. Como expô-lo? Queremos
de a fantasia tem mil felicidades! George Sand pres- mesmo ir mais longe: esse claro--escuro. como inscrevi-
sentiu essa passagem do mundo da pintura para o mun- lo no psiquismo. exatamente na fro ntei ra d~ um psi.
do da psicologia. Numa nOla de rodapé de uma das Quismo casta nho escuro com um psiquismo castan ho
páginas do texto de Consuelo. ela escreveu, evocando mais claro?
o claro-escuro: "Eu me pergunto muitas vezes em que Realmente. ai está um problema que tem me ator-
consiste esta beleza c como seria possível para mim mentado durante os vinte anos que tenho escrito li vros
descre\'ê-Ia'. se qu isesse fazer passar o segredo para a sobre a Famasia. Não sei nem mesmo exprimi-lo de ma-
alma de uma outra pessoa. Mas qual! Sem cor, sem fOf- neira melhor que George Sand em sua curta nota. Em
ma, sem ordem e sem claridade, os objetos exteriores resumo, o cla ro-escuro do psiquismo é a fantasia, uma
podem, digam-me, I'Cvestir-se de uma aparência que fala fanta sia calma, cal mante, Que é fiel a seu centro, ilu-
aos olhos e ao espirilo? Apenas um pintor poderá me minada nesse centro e não fechada sobre si mesma, mas
responder: sim, eu compreendo. Ele se lembra rá. de O transbordando sempre um pouco, impregnando com
! filósofo em mediração. de Rembrandt: este grande quar·
• to perdido nas sombras, eslas escadas sem fim dobrando
sua luz a penumbra. Vê·se claro em si mesmo e no en-
tanto son ha-se. Não se arrisca toda a luz, não somos
sem se s~ber para onde, estas luminosidades difusas do o brinquedo, a vitima desta Quimera que cai com a noi -
quadro, toda esta cena indefinida e nítida ao mesmo te. que nos entrega de pés e mãos atados a esses espo·
tempo, esta cor poderosa espalhada sobre um assunto liadores do psiquismo, a esses facínora s Que freqüen-
que, em resumo, e pinlado apenas com castanho claro tam essas Oorestas do sono noturno que são os pesa-
e castanho escuro; esta mágica de c1aro.escuro, este jogo delos dramálicos.
de luz colocado sobre os objetos mais insignifica ntes, O aspecto poético de uma fantasia nos faz
uma cadeira, uma moringa, um vaso de cobre. Esses conformarmo-nos com esse psiquismo dourado que
objetos, que não merecem ser olhados e muito menos mantem a consciência desperta. As fantasias diante da
pilHados, transformam-se em objetos tão interessantes, vela se constituirão em quadros. A chama nos mante-
tão bonitos, à sua maneira, que não se pode tirar os rá nessa consciência da fantasia que nos manrém acor·
olhos deles - existem, e são dignos de existir...• dados, Dorme-se diante do fogo. Não se dorme dianle
da chama de uma vela,

J. l'I<.» i QU( .1Ib~Dh.moo.


4. ConSlo.rlo. ~lld'Iotll.,.t. yy, 1861, tomo 111, p. 264-5.

16 17
r ••

VI vendo sobre a vela. queremos ganhar doçuras d'alma.


É neçessârio que se tenha vinganças a executar para
imaginar o inferno. Existe nos seres do pesadelo um
Em livro recente tentamos estabelecer uma dife- complexo das chamas do inferno que n110 queremos,
rença radical entre a fantasia e o sonho noturno. No nem de perto nem de longe, alimentar.
sonho nOturno reina a claridade fantástica. Tudo em Em resumo, estudar o ser de um sonhador com
fa lsa luz. Muitas vezes vê-se claro demais aí. Os pró- a ajuda das imagens da pequena luz, com a ajuda das
prios mistérios são delineados. desenhados em traços imagens humanas bem antigas, dá. para uma investi-
fortes. As cenas são tào nítidas que o sonho noturno gação psicológica, uma garantia de homogeneidade.
faz facilmente literatura -literatura, porém jamais poe- Existe um parentesco en tre a lamparinn que vela e a
sia. Toda literatura do fantástico acha no sonho Tloturno alma que sonha. 'JI.:mto para uma quanto para a outra
esquemas sobre os Quais trabalha o animus do escri- O tempo é lento. Taoto no devaneio quanto na luz fra-
lar. É no 0/11/1/11$ que o psicanalista estuda as imagens ca encontra-se a mesma paciência. Então o tempo se
do son ho. Para ele, a imagem é dupla, significa sem- aprofunda, as imagens e as lembranças se reúnem. O
pre outra coisa a lém dela mesma. É uma caricatura ps!- • sonhador inflamado une o que vê ao que viu. Conhece
,,
I. quica. É preciso esforçar-se para achar o ser verdade1-
ro sob a caricatura. Esforçar-se, pensar, sempre pen-
a fusão da imaginação com a memória. Abre-se então
a todas as aventuras da fantasia, aceita a ajuda dos
sar. Para aproveitar as imagens, para gostar delas por grandes sonhadores e entra no mundo dos poetas. Por
elas mesmas. ser ia necessário. sem dúvida, que além conseguinte, a fantasia da chama, tão unitária a prin-
de saber tudo o psicanalista tivesse recebido uma edu- cípio, torna-se de abundante multiplicidade.
cação poét ica. Logo. menos sonhos em animlls e mais Para pôr um pouco de ordem nesta multiplicida-
famas ias em anima. Menos inteligência em psicologia de, vamos fazer um rápido comentário sobre os capí-
imersubjetiva e mais sensibilidade em psicologia da in- tulos, às vezes muito diferemes entre si. desta simples
timidade. monografia.
Do pon to de vista que vamos adotar neste peque-
no livro, as famasias da intimidade fogem do drama.
O fantástico instrumemado pelos conceitos tirados da
experiência dos pesadelos não reterá nossa atenção. Pelo
VII
menos quando encontrarmos uma imagem de chama
singular demais para que possamos fazê-Ia nossa, pa-
ra que possamos co l oc~-la no claro-escuro de nossa fan-
tasia pessoa 1, evitaremos os comentários longos. Escrc-
o primeiro capítulo é ainda um capitu lo de preãm-
bulo. Pre<:iso dizer como resisti à tentação de fazer, a
18 19

..
propósito das chamas, um livro de saber. Este livro te- Se tivemos o escrúpulo de evitar todo e qualquer
ria sido longo, mas teria sido fácil. Teria bastado fazer desvio das pesquisas pseudocientificas, fomos freqüen-
uma história das teorias da luz. De sêcu lo a século o temente seduzidos por pensamentos fragmentados, por
problema tem sido retomado. Mas, por maiores que te- pensamentos que não provam mas que, em rápidas afir-
nham sido os espíritos que trabalharam na física do fo- mações, dão à fantas ia estímulos sem igual. Então, não
go, não puderam jamais dar a seus trabalhos a objeti- é a ciência, mas a filosofia que sonha. Temos lido e
vidade de uma ciência. A história da combustão per- relido a obra de um Novalis. Temos recebido dela gran-
manece, até Lavoisier, uma história de visõe.. pré- des lições para meditar sobre a verticalidade da cha-
científicas. O exame de tais doutrinas depende de uma ma.
psicanálise do conhecimento objetivo. Esta psicanál i- Quando estudamos. em um de nossos primeiros
se deveria apagar as imagens para determinar uma or- livros sobre a imaginação·, a técnica de sonhar acor-
ganização das idéias.! dado, havíamos observado a solicitação a um sonho
voador que recebíamos de um universo em aurora (au-
O segundo capitu lo é uma contribuição a um es- roral), de um universo que t raz a luz em seus vértices.
tudo da solidão, a uma ontologia do ser sol itário. A Comentávamos então a técnica psicanalítica de sonhar
li chama isolada é testemunha de uma sol idão, solidão
essa que une a ehama e o sonhador. Graças à chama,
a-i:ordado, instituída por Robert Desoille. Tratava-se de
aliviar, pela sugestão de imagens fe li zes, o ser sobre-
a solidão do sonhador não é mais a solidão do vazio. carregado por suas fa ltas, entorpecido no seu fastio de

I A solidão, graças à pequena luz, tornou-se concreta.


A chama ilustra a solidão do sonhador, ilumina a fronte
pensativa. A vela é o astro da página branca. Reu nire-
viver. Com a criação de imagens, o guia transforma-
se, para o paciente, em u m guia de u ansformação. O
guia propunha uma ascensão imaginária, que precisa-
mos alguns textos, tomados aos poetas, para comen- va ser ilustrada ·por imagens bem ordenadas, tendo ca-
tar essa solidão. Esses textos foram acolhidos por nós da uma delas uma virtude de ascensão. O guia ali men-
pessoalmente de maneira tão fácil que temos quase cer- tava o onirismo do sonhador, oferecendo no momento
teza que serão bem recebidos pelo leitor. Confessamos preciso imagens, para lançar e relançar o psiquismo as-
assim uma convicção de imagens. Acreditamos que a cendente. Esse psiquismo ascendente só é benéfico se
chama de uma vela é. para muitos sonhadores, uma sobe alto, sempre mais alto. As imagens desta psicaná-
imagem da solidão. lise pela al tura devem ser sistematicamente bem alias
para que se esteja bem seguro de que o paciente, em
plena vida metafórica, abandonará as misérias do ser.
,. cr. Úl f'txmI11i()" de l"tspnl sc~ml/iqu~ C""'rlbumm 11 UM p.$)"<"lultll1{yst d~
la ro""afswll(Y ob~ri'·t. &I. Vrin.

20 2\
A chama solitária, porém, ela sozinha, pode ser, chama à cosmologia da luz. Em vez de lratarmos de
para o sonhador que medita, um guia ascensional. Ela matéria tão abrangente quisemos, nesta monogra fia ,
é um modelo de verticalidade. ficar na homogeneidade das fantasias da pequena luz,
Numerosos textos poét icos nos ajudarão a desta- sonhar ainda no interior da fam iliaridade onde uniam-
car o valor desta vcrticalidade na luz, pela luz que um se o lampião e o castiçal, par indispensável numa resi-
Novalis vivia na meditação da chama reta. dência dos velhos tempos, numa residência para a qual
voltaremos sempre, para sonhar e recordar.
Após o exame dos devaneios de filósofo voltare- Encontrei grande auxílio na fantasia da obra de
mos, no quarto capítulo, aos problemas que nos são um mestre que conhece os devaneios da memória. Em
familiares: os problema.~ da imaginação literária. Um muitos romances de I-I cnri Bosco, o la mpi ão é, em to-
livro volumoso não seria suficiente para estudar a cha- da a acepção do termo, um personagem. O lampião
ma, seguindo, em literatura, todas as mctá foms que su- tem um papel psicológico em relação à psicologia da
gere. Pode-se perguntar se a imagem da chama não po- casa e à psicologia dos seres da família. Quando uma
deria associar-se a loda imagem um pouco brilhante, grande a usência deixa um va.do eTll uma residência, um
a roda imagem que quer brilhar. Escrever-se-ia então lampião de Bosco, vindo de não sei qual passado, man-
..
1i
il
um livro de estét ica literária geral, orga nizando todas
as imagens que aceitam ser aumentadas, colocando ne·
tém uma presença, espera, com uma paciê ncia de lam-
pião, o exilado. O lampião de Bosco mantém vivas to-
las uma chama imaginaria. Esta obra, que mostraria das as lembranças da vid a familiar, todas as lembran-
que a imaginação é uma chama, a chama do psiquis- ças de uma infância, as lembranças de todas as infân-
mo, seria bem agradável de se escrever. Mas nela se le· cias. O escritor escreve para ele e para nós. O lampião
\'aria toda a vida. é o espírito que vela sobre seu quarto, sobre todos os
Falando de a rvores, de Dores, podemos dizer co- quartos . Ele é o cent ro de uma residência, de todas as
mo os poetas lhes dão vida, vida total, poética, através residências. Não se concebe uma casa sem lampião. as-
da imagem das chamas. sim como não se concebe um lampião sem casa.
Para a chama, existe, da vela ao lampião, como A meditação sobre o ser famil iar do lampião nos
que uma conquista de sabedoria. A chama do lampião, permitirá, portanto, reunir nossas fantasias sobre a poc-
graças à engen hosidade do homem, é agora discipli- tica dos espaços da intimidade. Reencontraremos IO-
nada. Está inteiramente a seu dispor, simples c grande dos os temas q ue havíamos desenvolvido e m nosso li-
doadora de l uz. vro: A poético do espaço. Com o lampião entramos na
Nós quisemos terminar nossa obra meditando so- morada da fant asia da noile. nas residências de outro-
bre esta chama humanizada. Seria preciso escrever to- ra, as residências abandonadas mas que são, em nos-
do um livro para passar realmente da cosmologia da sos devaneios, fi elmente habitadas.

22 23
Onde reina um lampião, reina a lembrança.

Finalmente, para colocar uma marca um pouco


pessoal neste pequeno livro, que comenta as fantasias
dos outros, achei que podia acrescentar. no epílogo. al-
gumas linhas nas quais evoco as solidões do trabalho.
as vigflias do tempo onde, longe de me relaxar em fan -
tasias fáceis, trabalhava com tenacidade, acreditando
que com o lrabalho do pensamento desenvolve-se o es-
CAPíTULO I
pírito. •

o passado das velas


\I
!:
[ li
" Chama tumulto alado,

I'
Ó 80pru, vermelho reflexo do c~ u
~ qu~m decifrasse seu mistério
sa~ria o que existe !leia de vida
[e de mo rte...."
M" itTIN K MIB ISH. Anlhologie de la
pol$if ollrmondf, 1.11.

r
Antigamente, em um passado esquecido pelOS pró-
prios sonhos, a chama de uma vela fazia os sábios pen-
sarem; provocava mil devaneios no filósofo solitário.

24 25
Sobre a mesa do filósofo, ao Jado dos objetos prisio-. livro, colocar todos os nossos documentos, quer ve-
neiros em suas fonnas, ao lado dos livros que instruíam nham de filósofos ou de poetas, em primeira fantasia.
lentamente. a chama da vela chamava pensamentos sem Tudo é nosso, tudo é para n6s, quando reencontramos
medida, suscitava imagens sem limite. A chama era, en- em nossos devaneios ou na comunicação dos devaneios
tão, para um sonhador de mundos, um fenômeno do dos outros as raízes da simplicidade. Diante de uma cha-
mundo. Estudava-se o sistema do mundo nos grandes ma nos comunicamos moralmente com O mundo. Em
livros, e eis que uma simples chama - ó escárnio do uma simples vigíli a, a chama da vela é, desde então,
saber! - vem colocar diretamente seu próprio enigma. um modelo de vida tranqüila e delicada. Sem dúvida,
O mundo não eSfá vivo, numa chama? A chama não o menor sopro a atrapalha, assim como um pensamento
tem uma vida? Não é ela o símbolo visível do interior estranho na meditação de um filósofo. Mas quando vem
de um ser, o símbolo de um poder secrelo? Esta cha- realmente o reinado da grande solidão, quando soa real-
ma não tem todas as contradições internas que dão di- mente a hora da tranqüi lidade, então a mesma paz es-
namismo a uma metafísica elementar? Por que procu- lá no coração do sonhador e no da chama, então a cha-
rar dialéticas de idéias quando se tem, no coração de ma mantém sua forma e corre. direta, como um pen-
um fenômeno simples, dialéticas de fatos, dialéticas de samentO firme, a seu destino de verticalidade.
seres? A chama é um ser sem massa c, no entanto, é Assim, nos 1empos em que se sonhava pensando,
um ser forte. em que se pensava sonhando, a chama da vela podia
Qual campo de metáforas precisaríamos examinar ser um sensível manômetro da tranqüilidade da alma,
se quiséssemos, num desdobramento de imagens que uma medida da calma fina, de uma calma que desce
unissem a vida e a chama, escrever uma "psicologia" até os detalhes da vida - de uma calma que dá uma
das chamas ao mesmo tempo que uma "física" dos fo- graça de continuidade à duração que segue o curso de
gos da vida! Metáforas? Nesse tempo de longínquo sa- uma fantasia pacífica.
ber, onde a chama faria os sábios pensarem, as metá- Quer ficar calmo? Respire suavemente diante da
foras eram o pensamento. chama leve que faz sossegadamente seu trabaJho de luz.

Il III

Mas se o saber dos velhos livros morreu, o inte- Logo, pode-se fazer de um saber muito antigo fan-
resse da fantasia continua. Tentaremos, neste pequeno tasias vivas. No entanto não procuraremos nossos do-

26 27
cumemos nos antigos pergaminhos. Gostaríamos, mui- Neste capítulo de preâmbulos, indicaremos essas varia-
to ao contrário. de d~ol\'er a todas as imagens que con· ções apenas para ilustrar, de imediato, esse dogmatis-
servaremos sua densidade onírica, uma bruma de im- mo de uma famasia que usa toda sua glória para pro-
precisão para que possamos fazê-Ias entrar em nossa vocar um saber adormeddo. Apenas uma comradição
própria fantasia. Pode-se comunicar imagens singula- lhe basta para atormentar a natureza e liberar o sonha-
res pela fa ntasia pura. A inteligência e inepta quando dor da banalidade dos julgamentos sobre os fenôme-
é preciso analisar fantasias de ignorantes. Apenas em nos familiares.
algumas páginas deste pequeno ensaio evocaremos tex- Então, também o leitor dos Pensamentos de Jou-
tos onde as imagens familiares são ampliadas ao pon- bert se compraz em imaginar. Vê essa chama úmida,
to de visarem dizer os segredos do mundo. Com que esse líquido ardente, escorrer para o alto, para o céu,
facilidade o sonhador do mundo passa de sua peque- como um riacho vertical.
nina luz às grandes luminárias do céu! Quando somos De\'ercmos nOlar de passagem uma nuance que
apanhados, em nossas leituras. por tais ampliações, po- pertence propriamente à filosofia da imaginação lite-
demos nos entusiasmar. Mas não podemos mais siste- rária. Uma imagem-pensamento-frase como aquela de
matizar nossos entusiasmos. Em todas as nossas inves- Joubert é uma proeza de expressão. As palavras vão
\1 tigações só conservaremos jatos de imagem. além do pensamento. E a fantasia que fala é, por sua
,I Quando a imagem particular assume um valor cós- velo, ultrapassada pelafanrasia que escreve, Essa fan -
mico, produz o efeito de um pensamento vertiginoso. tasia de um "fogo úmido" ninguém ousaria dizê-la,
Uma tal imagem-pensamento, um tal pensamento- mas escreveram-na. A chama foi uma tentação do es-
imagem não tem necessidade de contexto. A chama vis- critor. Joubert não resistiu a ela. t: preciso que as pes-
ta por um vidente é uma rea lidade fantasmagórica que soas racionais perdoem àqueles que escutam os demô-
pede uma declaração da palavra. Daremos, a seguir, nios do tinteiro.
vários exemplos desses pensamentos-imagens que se Se a fó rmula de Joubert fosse um pensamento, não
enunciam numa fntse brilhante. Ás vezes tais imagens- seria mais do que um paradoxo simples demais; se fos-
pensamentos-frases colorem subitamente uma prosa se uma imagem, seria efêmera e fugaz. Mas, tendo lu-
tranqüila. Joubert, o razoável Joubert, escreveu; "A gar no livro de um grande moralista, a fórmula nos abre
chama é um fogo úmido." 1 Daremos a seguir algumas o campo dasfanrasias sérias. O indefinido tom de fan -
variações desse tema: uniào da chama com o riacho. tasia c de verdade nos dá o direito, simples leitores que
somos, de sonhar seriamente, como se, em tais fa nta-
I. .IOIJ 8UT ~"sm. S! td., 1562, p. J6J. os ",unfirOI ropreiros eram ~h~m . ·
sias, nosso espírito trabalhasse com lucidez. Na fanta-
dos, U ~Zl$, de "fon... de rOSo". Cf. Edoul rd four ..... o. 11$ Arr;"',... iII1l51m, • sia seria, à qual Joubert nos conduz, um dos fenôme-
p. 261, "'ril, 1841. nos do mundo e expresso, logo, dominado. É expresso
28 29
em algo além da sua realidade. Troca sua realidade por Mas quando se sonha mais profundamente, o be-
uma realidade humana. lo equilíbrio do pensamento entre a vida e a morte é
~Rcfazendo para nós mesmos imagens do cubículo perdido. No coração de um sonhador de vela, que res-
do filósofo meditando, vemos sobre a mesma mesa a 50nãnciatem essa palavra: apagar-se! As palavras, sem
vela e a ampulheta, dois seres que medem o tempo hu- dúvida, desertam de suas origens e retomam uma vida
mano, mas em estilos bem diferentes! A chama é uma estranha, uma vida emprestada ao acaso de simples
amp~lheta Que escorre para o a lto. Mais leve do Que comparações. Qual o maior sujeito do verbo apagar-
a areia Que dcsmorona, a chama constrói sua forma se? A vida ou a vela? Os verbos metaforizantes podem
como se o próprio tempo tivesse sempre alguma cois~ fazer os sujeitos mais exóticos agirem. O verbo apagar-
a fazer. se pode fazer morrer qualquer coisa, tanto um baru-
Chama e ampulheta, na meditação pacifica ex- lho quanto um coração, tanto um amor quanto uma
primem a comunhão do tempo leve com o tem~ pe- cólera. Mas quem quer o sentido verdadeiro, o sentido
sado. Em minha fantasia, diz-se a comunhão do tem- primeiro. deve lembrar-se da morte de uma veja. Os mi-
po de anima com o tempo de animus. Gostaria de so- tólogos nos ensinaram a ler os dramas da luz nos espe-
nhar com o tempo, na duração que escorre e na dura- táculos do céu. Mas no cubículo de um sonhador os

I ção que voa, se eu pudesse reunir em meu cubículo ima- objetos familiares tornam-se mitos do universo. A vela
ginário a vela e a ampulheta. que se ~<!2,a é-um sol que morre. A vela morre mesmo . . .
Mas para o sábio que imagino, a liçào da chama mais suavemente que o astro celeste. O 'pavio se curva _.•"1; II
é maior que a da areia escorrendo. A chama leva o lei- e escurece. A chama tomou, na escuridão que a encer- YI
tor vigilante a levantar os olhos de seu folheto, a dei- ra, seu ópio. E a chama morre bem: ela morre ador-
xar o tempo das tarefas, da leitura , do pensamento. Na meccndo-. -
chama o próprio tcm po se põe a velar. Todo sonhador de. vela, todo sonhador de peque-
~im , o leitor vigilante diante da chanla não lê mais. nas chamas sabe disso. Tudo é dramático na vida das
~ensa na vida. Pensa na morte. A chama é precária e coisas e do universo. Sonha-se duas vezes quando se
vacilante. Essa luz, um sopro a aniquila; uma faísca a sonha em companhia de uma vela. A meditação dian-
reacende. A chama é nascimento c morte fáceis. Vida te de uma chama torna-se, segundo a expressão de Pa-
e morte aqui podem ser justapostos. Vida e morte são racclso, uma exaltação de dois mundos, uma exaltaria
em suas imagens, contrários bem distintos. Os jogO; IIlriusque mundi. 1
de pensamento dos filósofos levando suas dialéticas do Daremos, a seguir, apenas alguns tcstemunhos, em-
ser e do nada num tom de simples lógica tornam-se prestados aos poetas, desta dupla exaltação - simples
diante da luz Que nasce e que morre, dralt1alicament~
concretos. 2. Ceado por C. O. JUN<;. f'aNJcdska, p. IH.

30 31
filósofo da expressão literária que somos. Como dizía- 50S que poderemos seguir pessoalmente, vivendo a ale-
mos no começo dessas páginas. os tempos de ajudar gria de imaginar.
tais sonhos, sonhos desmedidos, pelos pensamentos,
pensamentos trabalhados, pensamento dos outros, vol-
taram. v
Aliás, será que já se fez poesia com O pensamento?

Blaise de Vigenêre. em seu Tratado do fogo e do


sol. escreve, comentando o Zohar:
IV "Existem dois fogos. um mais forte que devora o
outro. Quem quiser conhecê-lo, deve contemplar a cha-
ma que parte e sobe de um fogo aceso ou de um lam-
Para justificar nosso projeto de nos limitarmos a pião ou archote, pois ela s6 sobe ~e estiver in~?rpora­
documentos que podem ainda nos levar às fantasias sé- da a alguma substância combustlvel e em umao com
rias próximas dos devaneios do. poeta, vamos comen- O ar. Mas nessa chama que sobe existem duas chamas:
tar um exemplo. entre muitos outros, de um conglo- uma branca. que brilha e clareia, tendo uma r~z azul
merado de imagens e de idéias tomado emprestado a na ponta; outra vermelha. que é ligada à madelfa e ao
um velho livro que não pode. tanto por suas idéias co- pavio que queima. A branca sobe diretamente para o
mo por suas imagens, atrair nossa participação. As pá- a1to e. embaixo, fica firme e vermelha. sem se despren-
ginas que vamos citar, separadas de sua situação his- der da matéria, provendo os meios para a outra arder
tórica. não podem ser designadas como uma explora-
e brilhar."l . '
ção da fantasia. Essas páginas não correspondem tam- Aqui começa a dialética do passIvo e d~ auvo, do
bém à organização de um saber. Não se deve ver nelas movido e do móvel, do queimado e do quelmant~ -
nada além de uma mistura de pensamentos pretensio- a dialética dos particfpios passados e dos gerúndiOS,
sos e imagens simplistas. Nosso documento será, por- que dá satisfação aos filósofos de todos os tem~s:
tanto, exatamente o contrário da exaltação das imagens Mas para um "pensador" da chama, como fOI VI-
que gostamos de viver. Será uma atrocidade do imagi- genere, os fatos devem abrir um horizonte de valores.
nação. O valor a conquistar aqui é a luz. A luz é e~tãO ~u~a
Depois de ter comentado esse documento pesado, supervalorização do fogo. É uma supervalonzaçao Já
voltaremos às imagens mais delicadas, reunidas em sis-
tema menos grosseiro. Reencontraremos enlão impul-
l . Blai.e de VIG~,"EU Trrtill du f tu " dti S'L Pari>. 1528, p. IOB.

32 33
que ela dá sentido e valor a fato s que para n6s. agora, fenômenos do mundo, uma \lei que tenham um pouco
são insignificantes. A iluminação t realmente uma coo· de consistência e unidade, tornam-se ,'erdadcs huma-
QuiSla. Vigen~re nos faz sentir a dificuldade que acha· nas. A moralidade que terminO! o te-<10 de Vigenere de\'C
ma grosseira tem para tornar-se chama branca, para renuir sobre toda a narrativa. Essa moralidade estava
conqu istar este valor dominante que é a brancura. Es- larente no interesse que O sonhador tinha por sua vela.
sa chama branca é "sempre a mesma, sem mudar nem Ele a observava moralmente. Ela era, para ele, uma en-
variar como a outra, que às vezes escurece, depois torna- rrada moral no mundo, uma entrada na moralidade do
se vermelha, amarela, an il. verde-azulada c azulada," mundo. Teria ele ousado escrever sobre isso se não vis-
Emão a chama amarelada será o antivalor da cha- se mais que sebo queimando? O sonhador tinha sobre
ma branca. A chama da vela é O campo fechado para sua mesa o que podemos chamar de um Jen6meno-
uma luta de valor e de amiva lor. Ê preciso que a cha- exemplo. Uma matéria, vulgar entre outr&5. que pro-
ma branca "extermine e destrua" as grosseiras que a duz a luz. Ela se purifica no próprio ato de dar a luz.
alimentam. Logo. para um autor da pré-ciência. a cha- Quc incrível exemplo de purificação ativa! E são as PrQ-
ma tem um papel positivo na economia do mundo. Ela prias impurezas que, aniquilando-se, dão a luz pura.
é um instrumento para melhorar o cosmos. O mal é, assim, o alimento do bem . Na chama o filó-
A lição moral está pronta então: a consci~ncia mo-
,I ral deve tornar-se a chama branca "queimando as ini-
sofo reencontra umfen6meno-exemplo, um fenômeno
do cosmos, exemplo de humanização. Seguindo esse fe-
I qü idades que ela aloja" . nômeno-exemplo, "queimaremos nossas iniqüidades".
E quem brilha bem, brilha alto. Consciência e cha- A chama purificada, purificaotc. clareia o sonha-
ma têm o mesmo destino de verticalidade. A simples dor duas vezes: pelos olhos e pela alma. Aqui as metá-
chama da vela designa bem esse destino, ela que "vai. foras são reais e a realidade, já que é contemplado, é
deliberadamente, para o alLO e volta ao lugar próprio uma metáfora da dignidade humana. Ela é contemplada
de sua morada, depois de ter cumprido sua missão em- metaforizando a realidade. Dcformar-se-ia o valor do
baixo sem mudar seu brilho para n~ r.huma outra cor documento que Vigencre nos deixou se fosse analisa-
além da branca." do no horizonte de um simbolismo. A imagem demons-
O texto de Vigenere é longo. Nós o abreviamos tra. o simbolismo afirma. O fenômeno ingenuamente
muito. Ele pode cansar. Deve cansar se for considera- contemplado não é, como o símbolo, carregado de his-
do como um texlO de idéias que organiza conhecimen- tória. O símbolo é uma conjunção de tradições de múl-
tos. Pelo menos, como lexto deJantosios, ele me pare- tiplas origens. Todas essas origens não são reanimadas
ce um claro testemunho de uma fantasia que supera la- na contemplação. O presente é mais forte do que o pas-
dos os limites, que engloba todas as experiências, ex- sado da cultura. O fato de Vigencre haver estudado o
periências essas oriundas do homem ou do mundo. Os Zchor não impede que tenha retomado em toda sua

34 35
-
primitividade de fantasia o que tinha a pretensão de suas imundícies". Michelet repetia-o ainda no último
ser um saber no velho livro. Se a vela ilumina o velho século. Quem pensa tão grande pode muito bem so-
livro que fala da chama, a ambigüidade dos pensamen- nhar pequeno e crer que sua pequena luz serve à puri-
tos e das fantasias é extrema. ficação do mundo.
Nada de símbolos. nada também de dupla lingua-
gem para traduzir o material em espiritual, ou vice-ver-
sa. Com Vigenere estamos dentro da unidade forte de
uma fantasia que une o homem e seu mundo, na uni- VI
dade forte de uma fa ntasia que não pode se dividir nu-
ma dialética do objetivo e do subjetivo. O mundo, em
tal fantasia, leva, em todos os seus objetos, um desti· É claro que, se dirigissemos nossas investigações
no do homem. Ora, o mundo, na intimidade de seu mis- para os problemas da liturgia, se nos apoiássemos so-
tério, quer o destino de purificação. O mundo é o ger- bre uma espécie de simbolismo maior, sobre um sim-
me de um mundo melhor, como o homem é o germe bolismo prinlitivamente constllUído em seus valores mo-
de um homem melhor, como a chama amarela e pesa- rais e religiosos, não teríamos nenhuma dificuldade em
da é o germe da chama branca e leve. Reencontrando achar para a chama e para as labaredas - labareda,
seu lugar natural, por meio de sua brancura. de seu di- grande chama que brilha gloriosamente - simbolismos
namismo da conquista da brancura. a chama não obe- mais dramálicos que aquele nascido. ingenuamente, lias
dece somente à filosofia aristotéli ca. Um valor maior fan tasias de um sonhador de vela. Mas aehamos que
que todos aqueles que presidem os fenômenos físicos existe interesse em seguir uma fantasia que acolhe as
~ conquistado. A volta aos lugares natu rais é, certamen- mais longínquas comparações diante do fenômeno mais
te, uma colocação de ordem, uma restituição da ordem familiar. Uma comparação é, às vezes, um símbolo que
no cosmos. Mas, no caso da luz branca, a ordem mo- começa, um símbolo que não tem ainda sua responsa-
rai vem primeiro que a ordem física. O lugar natural bilidade total. O desequilibrio entre o percebido e a ima-
para onde a chama se dirige é um centrode moralidade. gem é, de imediato, extremo. A chama não é mais um
- E é por isso que a chama e as imagens dela desig- objeto de percepçãa Transformou-se em um objetofl-
nam os valores do homem como valores do mundo. Elas los6fico. Então tudo é possivel. O filósofo pode muito
unem a moralidade do "pequeno mundo" à morali- bem imaginar diante da vela que ele é a testemunha de
dade majesLOsa do universo. um mundo em ignição. A chama é, para ele, um mun·
Os místicos da finalidade do vulcão não dizem ou- do dirigido para a transformação. O sonhador vê nela
tra coisa no decorrer dos séculos. Afirmam que, pela seu próprio ser e seu próprio vir a ser. Na chama o es·
ação benfazeja de seus vulcões, a Terra "purga todas paço mexe, o tempo se agita. Thdo treme quando a luz

36 37
treme. A mutação do fogo não é a mais dramática e
a mais viva das mutações? O mundo anda depressa se
for imaginado em fogo. Assim o filósofo pode sonhar
tudo - violência e paz - quando sonha com o mun-
do diante da vela.

CAP iTULO 11

A solidão do sonhador de vela

,
" Minha ~ol idiio já e$tá pronta
Para queimar quem a queimar!."

LoUIS E~ne. Le nont du feu.

Após um curto capítulo de preâmbulos. em Que


esboçamos os temas de pesquisas Que um historiador
de idéias e de experiências deveria persegui r, vohamos
a nosso simples oficio de descobridor de imagens, ima-
gens sulicientemente atraentes para fixar a fantasia. ~

38
-
chama da vela chama fantas ias da memória. Ela nos

39
devolve, em nossas longínquas lembranças, situações ta-espevitadeiras. Para mim, o tempo das velas é o tem-
de vigílias solitári'as. po das "velas de cera com ranhuras". Ao longo desses
Mas a chama solitária agrava a solidão do sonha- canais lacrimais corriam lágrimas, lágrimas ocultas. Be-
dor ou consola sua fantasia? Lichtenberg disse que o lo exemplo para ser imitado por um filósofo lamurien-
~omem tem tanta necessidade de uma companhia que to! Stendhal já sabia reconhecer as boas velas de cera.
sonhando na solidão sente-se menos só diante da vela Em suas Memórias de um turisla, conta seu cuidado
~Este pensamento impressionou tanto Albert Bé- em ir à melhor mercearia do lugar para munir-se de
guio que ele deu, para o capítulo Que consagrou a Georg boas velas. com as quais substituía os sujos cotocos do
Lichtenberg, o thulo de: "A vela acesa.'" albergue.
Mas todo "objeto" que se torna "objeto da fan- É, ponanto, na lembrança da boa vela de cera Que
tasia" assume um caráter singular. Que grande traba- devemos reencontrar nossos devaneios de solitários. A
lho q ualquer um gostaria de fazer se fosse possível reu- chama é só, naturalmente só. ela quer ficar s6. No fim
nir um museu dos "objetos oníricos", dos objetos so- do sécu lo XVIII. um físico da chama tentou em vão
nhados por uma fantasia familia r dos objetos familia- colar as duas chamas de duas velas: colocava as velas
res. Cada coisa dentro de casa teria assim seu "duplo", pavio contra pavio. Mas as duas chamas solitárias, na
não um fantasma de pesadelo, mas uma espécie de es- sua embriaguez de crescer e subir, esqueciam de unir-
pectro que freqüenta a memória, que dá nova vida as se, e cada uma conservava sua energia de verticalida-
lembranças. de, preservando em seu vértice a delicadeza de sua

1 Sim, a cada grande objeto corresponde uma per-


sonalidade onirica. A chama solitária tem uma perso-
ponta.
Nessa "experiência" do fisico, que desastre de sím-
nalidade onirica, diferenle da do fogo na lareira. O fo- bolos para dois corações apaixonados que se empenham
go na lareira pode distrair o aliçador. O homem diante em vâo em se ajudarem um ao outro a Queimar!
de um fogo prolixo pode ajudar a lenha a queimar, co- Pelo menos, que a chama seja para o sonhador o
loca no tempo devido uma acha suplementar. O ho- §.imbolQ de um ser absorvido por sua transformacão!
mem que sabe se aquecer mantém uma atitude de Pro- A chama é um ser-em-mutação, uma mutação-em-ser.
meteu. Modifica os pequenos atos de Prometeu, daí Sentir-se chama inteira e 56, dentro do pr6prio drama
seu orgulho de atiçador perfeito. de um ser em mutação, que ao clarear se destrói - es-
Mas a vela queima só. Nào precisa de auxilio. Não ses são os pensamentos que brotam sob as imagens de
temos mais, sobre nossas mesas, espevitadeiras· e por- um grande poeta. Jean de Boschere escreve:

I. Al~rl BIlar'N. L:.l_ roma~lique ft k .n.... ,omo L p. 28 .


• 7nourtl up.n>irlNkirD _ ser~ia 1"'111 KplUlll" a '"ela. (N. da T.)

40 41
Meus pensamentos, no fogo, perderam Tristela ou resignação? Simpatia ou desespero? Qual
suas túnicas. é o tom desse apelo a uma comunicação impossível?
com as quais as reconhecia; Queimar só, sonhar só - grande símbolo, duplo
consumiram-se no incêndio símbolo incompreendido. O primeiro para a mulher
do Qual sou origem e alimento. que, toda ardente, deve ficar só, sem nada dizer - o
E, no entanto, nào sou mais. segundo para o homem taciturno que tem apenas uma
Sou o interior, o eixo das chamas. solidão para oferecer.
....................................................... E, todavia, a solidão, para o ser que poderia amar,
E!/O entanto não sou mais. l que poderia ser amado, que adorno! Os romancistas
nos disseram belezas sentimentais desses amores escon-
didos, dessas chamas não declaradas. Que romance se
Ser o eixo de uma chama! Grande e forte imagem faria se fosse possível continuar o diálogo começado
de um dinamismo unitário! As chamas de Jean de 80s- por lZara:
chefe, as chamas de Satã o Obscuro não tremiam. Pode-
se tomá-las como a divisa de uma grande obra. Chama só, eu estou sozinho

mas este diálogo não continua pelo silêncio. pelo si-


lêncio de dois seres solitários?
11
Mas, guando se sonha. é preciso faJar Na fanta-
sia de uma no' nd i n da vela o sonhador
evoca o passado, recupera-se com o falso assado. O
Um heroismo vital toma, com Jean de Boschere.
son a OI sonh<t com aguilo que poderia ter sidQ. So-
seu exemplo numa chama enérgica que "rasga suas tú-
nha, em revolta contra si mesmo, com ,o que deveria
nicas". Mas existem chamas de solidào mais pacífica.
ser, com o que deveria ter feito.
Falam mais simplesmente à consciência solitária. Um
Nas alternâncias da fantasia. essa revolta contra
poeta, em cinco palavras, conla-nos o axioma da con-
si acalma-se. O sonhador rendeu-se à melancolia que
solação'das duas solidões:
mistura as lembranças efetivas e as da fantasia. É nes-
sa mistura, repetimos, que nos tornamos sensrveis às
Chama só, eu estou sozinho l
fantasias dos outros. O sonhador de vela se comunica
com os grandes sonhadores da vida anterior, com a
2. Jun d~ B.osclt ~ .(. Lk"'~J!>'HtIWS de 1'0bscIJr. p. 148. grande reserva da vida solitária.
) , Tristan TLUA. Oú bO;W!nI /eJ" loupJ. p. 15,

42 43
III bre a mesa tin ha sua luminosidade como a uréola. E o
gato lá estava, senlado sobre a mesa do poeta, com a
cauda muito branca contra a escrivaninha. Olhava seu
Se meu livro pudesse ser o que eu gostaria que fos- dono e a mão dele correndo sobre o papel. Sim, a vela
se, se eu pudesse reunir, lendo os poetas, bastante ex- e o gato olhavam o poeta com o olhar cheio de fogo.
plorações da fantasia para forçar a barreira que nos pára Thdo era olhar nesse pequeno universo, que é uma me-
diame do Reino do Poeta. gostaria de achar, no fim sa iluminada dentro da solidão de um trabalhador. En-
de todos os parágrafos. na extremidade de uma longa tão, como se podc dizer que tudo não guardaria seu
seqüência de imagens. a imagem realmente terminal, impulso de olhar, seu impulso de luz? O declínio de
aquela que se designa como imagem exagerada para o um é compensado por um acresamo da cooperação dos
julgamento dos pensamemos razoáveis. Minha fanta- oulros .
sia, ajudada pela imaginação dos outros, iria bem além E depois. os seres rracos têm um algo além mais
de meus próprios devaneios. sensível, menos brutal que os seres rortes. A solidão
Diante da vela, para dizer algo além das lembran- da não-vela continua sem c car a solidão da vela. Ca-
ças da solidão, algo além também das lembranças da a o Jelo o mundo, amado por seu valor, tem aciro
miséria, evocarei, neste curto parágrafo, um documento a seu próprio nada. Cada ser verte do ser um pouco
Iilerário em que Théodorc de Banville fala de uma vi- de ser, a sombra do scu ser, em seu próprio não-ser.
gma de CamOes. Quando um poeta fala simpaticamente Então, na su tileza dos acordos que um filó so ro de
de out ro poeta, o que diz é duas vezes verdadeiro. ultradevaneios percebe entre os seres e os não-seres, o
Banville conta que a vela de Camôes, cstando apa- ser do olho do gala pode aj udar o não-ser da vela. O
gada, o poeta continuou a escrever seu poema à luz dos espetáculo de um Camôes escrevendo no meio da noi-
olhos de seu galO." le era muito grande! làl espetáculo tem sua própria du-
A luz dos olhos de seu gato! Branda e delicada luz, ração. O próprio poema quer esperar seu lérmino, o
que se deve ver como algo além de toda e qualquer luz poeta quer alcançar sua meta. No momento em que
trivial. A vela não é mais, mas ela roi. Ela havia come- a vela desralece, como não notar que o olho do gato
çado a vigtlia, enquanto o poeta começava seu poema. é um porta-luz? O gato de Camõcs certameme não se
Ela havia levado vida em comum, vida inspirada, vida sobressaltou quando a vela morreu. ' O gato, este ani-
inspirame com o poeta inspirado. A luz da vela, no ro- mai vigilante, este ser atento que observa dormindo,
go da inspiração, verso após verso, o poema desenvol-
via sua própria vida, sua vida ardeme. Cada objeto 50- ,. NOIt-M qu~ o p IO ... to ~ kilo "'-111m, li'" .... limido. Al;rcdll • •JC mWIO
rKll~ qllt IIIodo q"" t fraco t fr4il. AIoim l t Situr dt ta ClII.mbrt clt quot
quando O ..",lume « m medo. ~Ic apap....a II'L c r. lt Sicu, dt LA CH~ " MOf.
"'ouve/In pctUia SId In anun Ih I. I..mlbr, 1634. p. 60.

44 45
continua a vigilia de conceder luz com o rosto do poe- cionário das onomalOpéiasfrancesas, do bom Nodier.
ra iluminado pelo gênio. Ele me ensinou a explorar com o ouvido a cavidade
das sílabas que constituem o edifício sonoro de uma
palavra. Com Que espanto, com que admiração, aprendi
que, para o ouvido de Nodier, o verbo cJignoter (pis-
IV car continuamente] era uma onomatopéia da chama da
vela! Sem dúvida o olho se revolta, a pálpebra treme
quando a chama treme. Mas o ouvido Que se deu por
Agora que nos tornamos sensíveis aos dramas da inteiro à consciência de escutar já ouviu a inquietação
pequena luz, com uma imagem exagerada, podemos es- da luz. Sonhava-se, não se olhava mais. E eis que o ria-
capar aos privilégios das imagens imperativamente vi- cho de sons da chama escoa mal, as sílabas da chama
suais, Sonhando, solitário e ocioso, diante da vela, sabe- coagulam-se. Escutemos bem: a chama clignote [pis-
se logo que essa vida que brilha é também uma vida ca). As palavras primitivas devem imitar o que se ouve
que fa la. Os poetas, ainda aí, vão nos ensinar a escutar. antes de traduzirem o que se vê. As três sl1abas da cha-
i\ chama murmura, a chama geme. A chama é um ma da vela que pisca [c1ignote] se chocam, batem-se
ser que sofre. Sombrios murmúrios saem desse infer- umas contra as outras. Cli. gno, ter, nenhuma sílaba
no. lbda pequena dor é a representação da dor do mun- quer se fundir com a outra. A inquietação da chama
do. Um sonhador que leu os livros de Franz von Baa- está inscrita nas pequenas hostilidades das três sonori-
der encontra, em miniatura e em surdina, nos gritos dades. ym sonhador de palavras não pára de com-
de sua vela , fragmentos do relâmpago. Escuta o baru- padecer-se com esse drama de sonoridades. A pa-
lho do ser que queima, esse Schrack que Eugêne Susi· lavra clignoter é uma das mais tremidas da língua fran-
ni 'nos diz ser intraduzível do alemão para o francês.' cesa.
É curioso constatar que o que há de mais intraduzível Ah! essas fantasias vão longe demais. Elas só po-
deuma lingua para a outra são os fenômenos do som dem nascer sÇlb a p~na de um filósofo perdido em seus
e da sonoridade. O espaço sonoro de uma Ifngua tem devaneios. Ele esquece o mundo de hoje, onde o pis-
suas próprias ressonâncias. car constante é um sinal estudado pelos psiquiatras, on-
Mas será Que sabemos acolher bem, em nossa lín- de o "pisca-pisca" é um mecanismo que obedeçe ao
gua materna, os ecos longínquos que ressoam no côn- dedo do automobilista. Mas as palavras, prestando-se
cavo das palavras? Lendo as palavras, nós as vemos e a tantas coisas, perdem sua virtude de fidelidade. Es-
entendemos melhor. Que revelação foi pára mim o Di- quecem a primeira coisa, a coisa bem familiar, da pri-
meira familiaridade. Um sonhador de vela, que se lem-
6. E"~"" SusrH I. FFanz """ Raad~r ~I la conMJssaMt myslique, v,in, p. 321.

47
46
A chama da vela revela presságios. Daremos um rá-
\'t.
bra de ter sido um companheiro da pequena luz, rea-
prende, lendo Nodier, as primeiras simplicidades. pido exemplo disso. ._.
Numa noite de pavor, eis que o lamplao de Stnnd-
Como indicamos em nosso capítulo de preãmbu-
lo. um sonhador de chama toma-se facilmente um pen- berg diminui a intensidade de sua luz:
sador de chama. Quer compreender por que o ser si-
"Vou abrir ajaneJa. Uma corrente de ar está amea·
lencioso da sua vela de repeme se põe a gemer. Para
Franz von Baader esse craque (Schrack) "precede ca- çando apagar o lampião. .
O lampião se põe a cantar. a gemer, a c ho ramlO-
da inflamação, qualquer que ela seja. silenciosa ou ba·
rulhema". Ele é produzido "pelo camata de dois prin- gar.'"
cípios opostOS, no qual um comprime o OUlro ou suo Lembremo-nos que este trecho foi escrito direta-
bordina-o a e le". Sempre queimando, a chama deve re- mente em francês por Stri ndberg. Uma vez que a cha-
innamar-se. manter, contra uma matêria grosseira, o ma choraminga , ela tem um desgosto infantil, logo. to-
comando de sua luz. Tivéssemos nós o ouvido mais do o universo está infe liz. Strindberg sabe, uma vez
apurado, escutaríamos todos os ecos dessas agitações mais. que lodos os seres do mundo lhe pressa~a m in-
internas. A vista dá unificações facilmeme. Os sussu r· fe licidades. Choramingar não é piscar de maneira me·
ros da chama . ao contrário. não se resumem. A chama nor com lágrimas nos olhos? Com lágrimas na voz,
narra todas as lutas que é precis.o SUStentar para man- tal ~alavra não é uma onomatopéia da chama líquida
ter um a unidade. da q ual se faz menção na fil osofia do fogo, de tempos
Mas os corações mais ansiosos não se tranqüil i- em tempos?
zam com vistas cosmológicas. inscrevendo as infelici- Em OUlra página do mesmo trecho', Slrindberg
dades de uma coisa num inferno universal. Para um suspeita de má vontade da luz: é um barulho de vela
sonhador de chama, o candeeiro é uma companhia as- de cera que pressagia a infelicidade' : .
sociada a seus estados d'alma. Se ele treme, é porque "Acendo a vela para passar o tempo lendo. Rema
pressente um a inquietude que vai penurbar todo o um silêncio sinistro, e escuto meu coração bater. En-
quarto. E, no momento em que a chama pisca, eis que tão um pCQueno barulho seco me sacode como uma
o sangue pula no coração do sonhador. A chama está faísca elétrica.
angustiada e a respiração no peito do sonhador tem so- O que é isso?
bressaltos. Um sonhador, un ido tão fisicameme à vida Um bloco enorme de parafma acaba decair da vela
das coisas. dramatiza o insignificante. Para tal sonha- 1. !"U!~. Irtf~,."o. Ed . StllCk. p. 1&9.
dor de coisa, tudo tem uma significação humana, em 8. 1.#. Ctl~ p. lOS,
9 . •• N~ I..ombwdi • • ,,~' ..pIlU do le<;ido, 011 ,emido. da I>(IIa de m.do:". J40 preI.
sua minuciosa famasia. Reunir-se-iam ·facil mente nu- sq;o. r~OII"IA. .J" do: GUIIU'UJIS, MYf~ da ""'lira. !<ImO I. p, 2(6)-
merosos documentos sobre a sutil ansiedade da luz sua-
49
48
no chão. Nada além disso, mas era uma ameaca de mor- sabe que escrevendo na mais absoluta solidão se comu-
te, em nossa casa." nica COIJI o grande QUITO dos leitores solitários. Sabe
Sem dúvida, Strindberg tem um psiquismo de es- que, dentro de toda alma, existe. além da razão, um
corchado. t sensível aos menores dramas da matéria. lugar onde sobrevivem os medos mais pueris. Está cer-
O carvão, em seu foga reiro, produz também a larmes to de poder propagar suas infelicidades de vela. Em In-
quando se esm igalha demais ao queimar, quando os ferno, segue a divisa que exprime em sua autobiogra-
resíduos fundem-se mal. Mas o desastre é., por sua vez, fia: "Vá lá ~ os outros terào medo."1O
mais sutil c maior quando vem da IUl. O lampião, a
vela, não são eles que dão o fogo mais humanizado?
Uma vez que é o fogo que dá a luz, não é ele o autor
de maior valo r? Uma perturbação no ápice dos valo- v
res da natureza rasga o coração de um sonhador que
gostaria de estar em paz com o universo.
Vejam bem que na ansiedade de Strindberg, dian- Q uando a mosca se at ira d~ntro da chama da ve-
te de uma infelicidade da vela, não se encontra nenhum Ia, o sacrifício é ruidoso, as asas crepitam, a chama tem
traço de atrativo simbólico. Q aCOnlecimenlo é tudo. um sobressalto. Parece que a vida se quebra no cora·
Por menor que seja, é designado como um destaque ção do sonhador.
da atualidade. O fim da traça é menos sonoro, mais cuidadoso.
A puerilidade desta alienação será facilmente de- Ela voa sem barul ho, toca de leve a chama e é instan-
nunciada. Será motivo de espanto o fato dela ler lugar taneamente consumida. Para um sonhador que sonha
em uma relação cheia de sofrimentos domésticos reais. grande, quanto mais simples é o incid~nte, mais longe
Mas o fala lá está; o fa la psicológico vivido pelo escri- vão os com~ntá rios. C. G. J ung escreveu assim um ca-
tor duplica-se no fato literário. Strindberg acredita que pÍlula inteiro para expor esses d ramas sob o tit ulo: "O
um acontecimento insigni ficante pode agitar o coração canto da traca"." Jung cita um poema de Miss MilIer,
humano. Com um pequeno medo, pensa que colocará uma esquizofrêniça cujo exame foi o ponto d~ partida
o medo na solidào do leitor. da primeira edição das Metamorfoses da alma.
Naturalmente o psiquiatra não tem dificuldade em Ainda ai, a poesia vai dar a um insignificante fa-
diagnosticar a esquizofrenia quando lê os textos de Ia a significação de um destino. O poema aumenta tu-
Slrindberg. Porém tais textos, tomando forma literá- do. t em di reção ao sol, a chama das chamas, que o
ria, colocam um problema: esses escritos não são es-
quizo frenizantcs? lendo Jriferno com inleresse, cada 10. SnINDIU(I. L·!.:n"",,," 1111\1., Slock. fi. 167.
11. C. G. JUNC. MilumorplloW$ rk I'rimt t, ~ s)"mbol~ Irld .• 1953,
lei(Or nào terá suas horas de esquizofrenia? StrindbcIg p. 156e ~.

50 51
ser minúsculo, tanto tempo dobrado em sua crisruida, Goelhe porque assistimos a essa ampliação de imagens
vai buscar o sacrificio supremo, glorioso. que é um dos dinamismos mais constantes da fantasia
Eis como canta a traça, como cama a esquizofrê-
escrita.
nica: "Aspirava a ti desde o primeiro acordar de mi- Em Le Di,,·an. Goethe toma como tema a selige
nha consciência de bichinho. Sonhava apenas contigo Sehnsucht, da nosLalgia bem-aventurada, o sacrificio
quando era crisálida. Muitas vezes milhares de meus da borboleta na chama:
semelhantes pereciam voando em direção a alguma fra-
ca faisca emanada de ti. Mais uma hora e minha fraca Quero louvar o Vivente
existência terá acabado. Mas meu úhimo esforço, co- Que aspira à morte na chama
mo meu primeiro desejo, não lerá outra finalidade além No frescor das noites de amor.
de aproximar-se de tua glória. Então.. tendo te visto por .........................................
um instante de êxtase, morrerei contente, já que. pelo És tomada de sentimento eSlranho
menos uma vez, terei contemplado, em seu perfeito es- Quando luze a labareda silenciosa
plendor, a fonte de beleza, de calor e de vida." Não ficas mais fechada
Este é O cama da traça, simbolo de uma sonhado- Na sombra tenebrosa
ra que queria morrer no sol. E Jung não hesita em com- E um desejo novO te leva
parar o poema de sua esquizofrênica com os versos em Em direção a mais alto himeneu
que Fausto son ha em se perder na luz do sol: ....................•.................
Corres voando fascinada,
Oh! pena não ler asas para sair voando do solo E enfim, amante da luz.
E persegui-lo sem parar em seu curso! Te vemos, Ó borboleta,
Veria na irradiação do som, eternamente, consumida.
O mundo silencioso exposlo a meus peso
Este destino recebe de Goetbe uma grande divisa:
Mas um nol,lO impulso desperta em mim. "Morre e transforma-te."
lAnço-me cada vez mais longe paro beber de sua luz
{eterna./l E (anto não compreendeste
Este: Morre e transforma~te!
Não hesitamos em seguir Jung na comparação que Que és apenas hóspede obscuro
faz do poema de sua esquizofrênica com o poema de Sobre a terra tenebrosa.
12. Cf. liX. dI. p. 162. No seu prefácio ao Divan, Henri Lichtenberger faz

52 53
um grande comentário ao poema. 1I O misticismo da O fato de a borboleta vir queimar suas asas na cha-
poesia oriental "aparece para Goethe como aparenta- ma sem que se tenha o cuidado de apagá·la antes Que
da com o misticismo antigo. à filosofia platônica e he. isso aconteça é uma falta cósmica que não revolta nos-
raclftica. Gocthe, que mergulhou na leitura de Platão sa sensibilidade. Entretanto, que símbolo formidável é
e de Platina, percebe distintamente o parentesco que este de um ser que vem queimar as asas! Queimar seus
une o simbolismo grego e o simbolismo oriental. Re- adornos. queimar seu ser, uma alma sonhadora não pa·
conheceu a identidade do tema sótico da borboleta que rou de meditar sobre isso. Quar.do a Paulina de Picrre·
se joga na chama do archote e do mito grego que faz Jean Jouve se vê tão bela antes de seu primeiro baile,
da borboleta o símbolo da alma, que nos apresenta Psi- Quando Quer ser pura como uma religiosa e, ao mes-
quê sob a fo rma de moça ou de borboleta, apanhada mo tempo, tentar todos os homens, é a morte de uma
e capturada por Eros, queimada pela tocha." borboleta na chama que ela evoca: "Mas, Querida bar·
boleta, toma cuidado com a chama. olha lá outra que
vai morrer como aquela da outra noite. vai morrer ime·
diatamente. Volt.a para o fogo apesar de tudo, não com·
VI preende o fogo, e a metade de uma asa já está queima-
da, volt.a, uma vcz mais. mas é o fogo, borboleta infe·
liz. é o fogo!""
A traça se joga na chama da vela: fototropismo P.J.ulina é uma chama pura, mas é uma chama. Ela
positivo, diz o psicólogo que mede as forças materiais; Quer ser uma tentação. mas ela mesma se vê tcntada .
complexo de Empédocles, diz o psiquiatra que quer ver É tão bela! Sua própria beleza é um fogo que a tenta.
a raiz dos impulsos iniciais do ser humano. E todos os Desde esta primeira cena, o drama da morte da pureza
dois estão com a razão. Mas é a fantasia Que põe todo no erro está em ação. O romance de Jouve é o romano
mundo de acordo, pois o sonhador, vendo a traça sub. ce de um destino. Morrer por amor, no amor, como
missa a seu tropismo, a seu instinto de morte, se diz, a borbolera na chama, não é realizar a síntese de Eros
diante dessa imagem: por que não eu? Já que a traça e Tanatos? O texto de Jouve é animado. por sua vez,
que é um Empédocles minúsculo, por que não ser eu pelo instinto da vida e pelo instinto da morte. Esses dois
um Empédocles faustiano que na morte pelo fogo vai instintos. revelados como o faz Jouve, em profundida·
conquistar a luz do sol? de, em sua primitividade. nào são contrários. O psicó·
logo das profundezas que é Jouve mostra Que eles agem

13. GoETHE. U Divon. lrad. de Ll CIIITNB[RGER, p. 4~.46. 14. Pierre-Jcan lOU Va! . f'uu!inll. Mercure de Fram:e, p. 40.

54 55
nos ritmos de um destino, nesses ritmos que colocam devaneios, cada impressão de solidão de um grande so-
incessantes revoluções numa vida, litário deve achar sua imagem. Tais "impressões" são,
E a primeira imagem, a imagem de um destino fe- primeiro, imagens. ~(tÇiso imaginar a solidão para
minino escolhida por louve, é aquela imagem de uma conhecê-la, para amã-la ou ara defender-se dela a-
borboleta queimada pela vela na noite de seu primeiro ra rangUl o ou para ser coraJOso, Quando se qui-
baile. ser fazer a psicologia do claro-escuro psíquico em que
Eu quis seguir os sonhadores de chama mais dife- se clareia ou se escurece esta consciência do nosso ser,
rentes, mesmo aqueles que meditam sobre a morte das será preciso multiplicar as imagens, duplicar toda ima-
falenas atraídas pela luz. Mas essas são as fantasias das gem. 1}m homem solitário. na glória de ser só, acredi-
quais não participo. Conheço bem as vertigens, O va- ta às vezes poder dIzer o que é a solidão, Mas a cada
zio me atrai e me assusta, Mas não sofro de venigens um cabe uma solidão, E o sonhador de solidão não po-
empedodianas. -de nos dar m3ls que algumas poucas páginas deste ál-
A solidão da morte é um tema de meditação gran- bum de claro-escuro das solidões.
de demais para o sonhador de solidão que sou. Falta- Quanto a mim, totalmente em comunhão com as
me, portanto, para terminar este capítulo, redizer co- imagens que me são oferecidas pelos poetas, totalmente
mo faço minhas as fantasias simples e tranqüilas que em comunhão com a solidão dos outros, eu me faço
evoquei no início dele. só com as solidões dos outros,
't) "àço-me só, profundamente só, coIl} a solidão de
um outro.
Mas é preciso, é claro, que esta solicitação à soli-
VlI dão seja discreta, que seja, precisamente, uma solidão
de imagem. Se o escritor solitário quiser me contar sua
vida, toda sua vida, me transformará imediatamente
Jean Cassou sonhava sempre em abordara grande em um estranho. As causas da sua solidão não serão
poeta Milosz com esta pergunta, digna de ser colocada nunca as causas da minha. A solidão não tem histó
a uma majestade: "Como se comporta Sua Solidão?" ria. Toda a minha solidão cabe numa primeira imagem.
Esta pergunta tem mil respostas. Em que recanto Eis, portanto, a imagem simples, o quadro central
da alma, em que canto do coração, em que lugar do no claro-escuro dos devaneios e da lembrança. O so-
espírito, um grande solitário está só, bem só? Só? Fe- nhador está à sua mesa; está em sua mansarda; acende
chado ou consolado? Em que refúgio, em que cubícu- sua lâmpada, Acende uma vela, Acende sua vela de ce-
lo. o poeta é realmente um solitário? E quando tudo ra, Então eu me lembro. então eu me reencontro: sou
muda também segundo o humor do céu e a cor dos o sonhador que ele é. Estudo como ele estuda, O mundo
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é, para mim, como para ele, o livro diffci l clareado pe-
la chama de uma vela. Pois a vela, companheira de so-
lidão. é principalmente companheira do trabalho soli-
tário. A vela não ilumina um cubículo vazio. ilumina
um livro.
Só, à noite. com um livro iluminado por uma vela
- livro e vela, dupla ilha de luz, contra as duplas tre·
vas do espírito e da noite.
Eu estudo! ~u apenas o sujeito do verbo estudar. CAPÍTUW III
Não ouso pensar.
Antes de pensar, é preciso estudar.
Só os filósofos pensam antes de estudar.
Mas a vela se apagará antes que o dificillivro seja
compreendido. É preciso não perder nada do tempo de A vert;calidade das chamas
luz da vela, grandes horas da vida estudiosa.
Se levanto os olhos d9 livro para olhar a vela, em
vez de estudar, sonho.
Então as horas se alternam na vigília solitária. As "No alto.•. a luz se despoja de seu Vl:st ido."
I
, horas se alternam entre a responsabilidade de saber e OCTAVtO PAZ. AgI/UI ou Sof/
I a liberdade das fantasias, esta liberdade fácil demais
I do h.omem solitário.

i \ A imagem de um leitor vigi lante à luz de vela me


basta para que comece esse movimento alternado dos
pensamentos e das fantasias. Sim, eu me perturbaria
se o sonhador, no centro da imagem, me dissesse as
causas da sua solidão, alguma história longínqua de Entre as fantasias que nos aliviam, bem eficazes
traições da vida. Ah! meu próprio passado basta para e simples são as da altura. Todos os objetos retos e em
me atrapalhar. ~o do passado dosoutros. ~ pé designam um zênite. Uma forma reta e de pé se lan-
preciso das i os oulros para recolorir as m i- ça e nos leva em ~rticalidade. Conquistar um pi·
nhas. reclso das fantasias os outros para me lembrar co real continua sendo uma proeza esportiva. O sonho
aemeu trabalho sob as pequenas luzes, para me lem- vai mais alto, ele nos leva para além da verticalidade.
brar que, eu também, fui um sonhador de vela.

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Muitos sonhos de voar nascem num estimulo da verti-
calidade diante dos seres retos e vertica is. Perto das tor-
res, das árvo res. um sonhador de altura sonha com o Quanto mais simples for seu objeto, maiores se-
céu. As fantasias de altura alimentam nosso instinto
rão as fantasias. A ehama da vela sobre a mesa do so-
de vcnicHlidade. insti nto recal cado pelas obrigações da litário prepara todas as fantasias da vertica1idade. A
vida comum , da vida vulgarmente horizontal. A fan - chama é uma valente e frágil vertica1. Um sopro a atra-
tasi a verlica lizall tc ê a mais liberadora das fa masias. palha, mas ela logo se endireita. Uma força ascensio-
Não há melhor meiO para se sonhar bem do que so-
nal restabelece seus prestigias.
nhar com oulro lugar. Porém o mai s decisivo dos ou-
tros IlIgares não é o Outro lugar que rica acima? Os so- A vela queima alto e sua púrpura se ergue
nhos com o acima fazem esque(er, su primi r os do em-
baixo. Vivendo no zênile do objeto em pé, acumulan- diz um verso de Tl'akl. l
do as fantasias de verticalidadc, conhecemos uma tran ~­ A chama é uma vertiealidade habitada. Todo so-
cendência do se r. As imagens da venicalidade fa zem- nhador de chama sabe que a chama está viva.L a ga·
nos enrrar no reino dos valores. Comungar por meio ran te sua vertlcãlidade por meio de reflexos sensíveis. , >-
~a imaginação c~~ a verlicalidade de um objeto re~o Mesmo quando um incidente de combustão vem per-
e receber o benefIcIo dc forças as,"ell sionais. ê parrici- turbar o impulso zcnital, ela reage prontamente. ld!!!..
par do fogo escondido que habita as forma s belas, as sonhador de vontade verticalizante que estuda sua li- r-
fo rmas seguras de sua verticalidade. ção diante da chama aprende que deve se endireitar.
Há algum tempo havíamos desenvolvido longa- Reencontra a vontade de queimar alto, de ir, com tO-
mente esse tema da verticalidade em um capítulo de das as suas forças, ao ápice do ardor.
nosso livro L'alr Cf les songcs.' Se quiserem se trans- E que grande hora, que bela hora quando a vela
portar a esse ca pitulo verão todo o plano anterior de queima bem! Que delicadeza de vida há na chama que
nossas presentes fa ntasias sobre a verticalidadc da se alonga, que se afila! Os valores da vida e do sonho
chama. se encontram então associados.
Uma haste de fogo! Nun ca se sabe tudo sobre o Que
{perfuma?
diz o poeta .'

2. A"Owlogill d~ IQ jX!ésie A/lemQndc. StO<.:k. tomo 11. p. 109.


l . Edm ond J "B~. W Mols IfTlCCnl, p. I~.
J. L'Q/f ~I les sanita. Corti, caps. [ e IV.

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Sim, a haste da chama é tão ereta, tão frágil que Se nos déssemos o direito de meditar sobre os te-
a chama mais parece uma flor. mas litúrgicos, não teríamos djficuldades em a~har do-
Assim as imagens e as coisas trocam suas virtu- cumentos sobre o simbolismo das chamas. Sena então
des. Todo o quarto do sonhador de chama recebe uma preciso fazer face a um saber. Ultrapassaríamos O pro-
atmosfera de verti<:alidade. Um dinamismo suave mais jeto de nosso pequeno livro que deve se conte~tar em
seguro leva os devaneios em direção ao ápice. Podemos apanhar os símbolos em seus esboços. Quem q~lser en-
muito bem nos interessar pelos turbilhões internos que trar no mundo dos símbolos colocados sob o SignO do
cercam o pavio., ver no ventre da chama tumultos onde fogo, poderá pegar a grande obra de Carl-Martin Eds-
lutam trevas e luz. Mas todo sonhador de chama eleva man: Ignis diyinus.'
seu sonho em direção ao ponto mais alto. l:! lá que o
fogo lorna-se luz. VilJiers de l'lsle-Adam tomou como
inscrição de um capitulo de sua lsis o provérbio árabe: 111
"A labareda não ilumina sua base."
~ no pico que os maiores sonhos estão.
A chama é tão essencialmente vertical que apare- Havíamos descartado, em nosso capítulo de
ce, para um sonhador do ser, estendida em direção ao preâmbulos, toda inquietação de saber, toda ex.periên-
além, em direção a um não-ser etéreo. Num poema que cia cientffica ou pscudocientífica sobre os fenomenos
tem por título Chamo, lê-se': da chama. Fizemos o melhor possível para ficar na ho-
mogeneidade das fantasias que imaginam, que sã~
Ponte de fogo lançado entre o real e o irreal aquelas de um sonhador solitário. Não se pode ser dOIS
coexistindo a todo instante com o ser e o não-ser quando se sonha em profundidade com uma chama.
Às observações ingênuas feitas juntas por Goethe .c Ec-
Brincar de ser e de não-ser com um nada, com uma kermann, por um mestre e um discípulo, oã? prepa-
chama, com uma chama talvez apenas imaginada, é. ram nenhum pensamento, não podem ser refeitas com
para o filósofo, um belo instante de metafISica ilustrada. a seriedade que convém à pesquisa científica. Além dis·
Mas toda alma profunda tem seu além pessoal. A so não nos dão aberluras sobre esta filosofia dos cos-
chama ilustra todas as transcendências. Diante da cha- mos que influência tão grande teve sobre o romanlis-
ma, Claudel se pergunta: .. De onde a matéria tira 0J mo alemão.'
impulso para se transpOrtar para a categoria do
6. CarI.Marlin EDS/>'A~. 11M diviIfU$, Lund, 1949. Do mtsmo aulor:
divino?'" Lz txJplé,.,~ du f tu , UppSllla, 1940".
4. Rola" AssELlloIEAlJ. PtJisjrs incomplltrs, &:\. Debrrsse, p. 38. 7. Cf. COlfll'f!rW liOlU d~ (}()rlht r r d '&ttmfann, nad .• lomo I. p. 203 .
5. Paul CI.AUDU. L'(klf Houlr, p. 134. 2SS , 258, 2S9.

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\
Para provar de imediato que com Novalis deixa-
se o reino de uma rlsica de fatos para entrar no reino Se lêssemos sobre a chama essa inversão da cau-
de uma física de valores comentaremos uma curta di- salidadc, seria preciso dizer que é a ponta que é a re-
visa reproduzida na edição Minor ' : "Lieht macllf serva da ação. Puri ficada na ponta, a luz extrai tudo
Feuer'~ "É a luz que faz o fogo". Em sua forma ale- do sabugo. A luz é, então, o motor verdadeiro que de-
mã, esta frase em três sílabas anda mu ito rápido, é uma termina o ser ascensional da chama. Compreender os
flccha de pensamento tão rápida que o senso comum valores no próprio ato em que ultrapassam os fatos,
não sente imediatamente seu impacto. Toda a vida co- em que acham seus seres em ascensão, é o próprio prin-
tidiana nos ordena ler a frase ao contrário pois, na vi- cipio de cosmologia idealizante de Novatis. Todos os
da comum, acende-se o fogo para se ter a luz. Esta pro- idealistas acham, meditando sobre a chama, o mesmo
vocação só se justificará se se aderir a uma cosmolo- estimulo ascensiona l. Claude de Saint-Martin escreveu:
gia de valores. A frase em três sílabas" Ucht maeM "O movimento do espírito é como aquele do fo-
Feuer" é o primeiro ato de uma revolução idealista da go, acontece em ascensào." I~
feno menologia da chama. É uma dessas frases-eixo Que
I um sonhador se repete para condensar sua convicção.
Durame horas, imagino, esculo as três sílabas nos lá- IV
I bios do poeta.
A prova idealista não saberia enganar: para No-

I
vaUs a idealidade da luz deve explicar a ação material Coordenando todos os fragmentos em que Nova-
do fogo. lis evoca a verticalidadc da chama, poder-se-ia dizer que
O fragmento de Novalis continua: "Licht iSf der tudo que é ereto, tudo que é vertical no Cosmos, é uma
Genius des Feuerprol.f'sses", "A luz é o gênio do pro- chama. Numa expressão dinâmica , seria preciso dizer:
cesso do fogo' '. Declaração das mais graves para uma rudo o que sobe tem o dinamismo da chama. A recí-
poética dos elememos materiais, já que a primazia da proca, apenas' atenuada, é clara. Novalis escreveu:
luz tira do fogo seu pOder de sujcito absoluto. O fogo
s6 recebe seu verdadeiro ser no término de um proces- "Na chama de uma vela, todas as forças da natu-
so em que se torna luz, quando. nos tormemos da cha- reza são ativas."
ma, foi desembaraçado de loda sua materialidade.' "In der Flamme eines Lichtes sind alie Nafurk-
riiflf'f/ fiit;g.'~1

8. 'fumo 111, p. JJ.


9. Para um autor da t:"cyrlopldie (artigo: "hlgo", p. 1!I4): "Uma cha_
m~ vi~a e clara (dá mais C>lJor) do que o bra:;eiro mais udentc." 10. Cla ude de SA t l'lT. M A~ II N. u Nouve{ homml', ano IV, p. 28
11. NOVAl.IS. les disciples à Sai!. I~d. Mi nor, léna, 1927, 11 , p. 37.
64
65
As chamas constituem o próprio ser da vida ani- "Se O vegetal pode se definir como' materia com-
maI. E Novalis nota in ....ersamente "a natureza animal bustível', para o animal e le é matéria acesa."1!
da chama"'). A chama é, de algum modo, a animali- "O animal mantém (sua fonna) queimando o que
dade nua, maneira exagerada de animal. Ela é o glu- irá alimentar a energia da qual ela é o ato, conseguin-
tão por excelência (das Gefriissige). O fato desses afo- do o que irá satisfazer a fome do fogo nele recluso.....
rismos serem fragmentos dispersos em toda a obra re- O tom dogmático desta cosmologia sob a forma
vela o caráter imediato das convicçõcs. São verdades de divisa, tanto em Novalis. quanto em Claudel, des-
de fantasia que só se pode provar experimentando o cartará sem dúvida um filósofo do saber. Não será a
onirismo profundo, mais sonhando do que renetindo. mesma coisa se acolhermos tais aforismos no quadro
. Cada reino da vida é então um tipo de chama par- de uma poética. A chama. aqui, é criadora. Ela nos
tIcular. Nos fragmentos traduzidos por Maeterlinck, lê- entrega instituições poéticas para nos fazer participar
se (pág. 97): da vida inflamada do mundo. A chama é, então. uma
"A árvore só pode transformar-se em uma chama substância ativa, poetizante. - -
norida, o homem numa chama falante. o animal nu - Os seres mais diversos recebem seu substantivo da
ma chama errante."u chama. Basta um adjetivo para particularizá-los. Um
Paul Claudel, sem ter lido esse texto de Novalis, leitor rápido talvez veja a( apenas um jogo de estilo.
seg~ndo parece, escreveu pâginas semelhantes. Para ele, Mas se ele participar da intuição innamante do móso-
a VIda é um fogo." A vida prepara seu combustível no fo poeta compreenderá que a chama é um ponto de par-
vegetal e se innama no animal: "O vegetal ou elabora- tida do ser vivo. A vida é um fogo. Para conhecer sua
ção d? m~téria combustível. O animal provendo sua essência é preciso queimar em comunhão com o poe-
p~pfla alimentação", diz Claudel no resumo prepara- ta. Para empregar uma fórmula de Henry Corbin, di-
tono de seu texto. riamos que as fórmulas de NovaIis tendem a levar a me-
ditação à incandescência.
12. Éd. M,nor, I. 11, p. 206.
13. Cf. duma Plla,illl $i na ular em qu~ tudo que vi'o'\' ~ dado como o ~crc-
rz.ncoM' e lima C"hama. Somos apenas Oi raildudl de um 5ef innanado
. mor. t. • p. 216).
' Em O f),wi, GOf'rliE C$ereY\':
Na l'hamll agif da /lIrrrfJl
& ~/abora",. do dl$for~. O $IlmO do anltnQ/ ,.
dll p/im/li
An des H~nks I'8Khen Fcuul:riften IS. Loc. dt .• p. 92
'" ç ,Rd~1 da! Rohe Tier- und POanmu3f'tcn 16. Loc. cit., p. 93
14. U LWOEL. l.arl jXJt!f'qur, p. 86.

66 67
v la afasta de seu ser as fagulhas que saem voando, mais
leves e mais livres sob O manto da chaminé.
Assisti muitas vezes a esse espeláculo em sonha-
Mas eis uma imagem dinâmica em que a medita· doras vigilias. Às vezes, minha boa av6 reacendia, co-
ção da chama encontra uma espécie de impulso sobre- locando galhos secos acima da chama, a fumaça lenta
viral que deve aumentar a vida, prolongá-Ia além de que subia ao longo da fornalha negra. O fogo pregui-
si própria, apesar de todas as fraquezas da matéria co- çoso não queima sempre de uma s6 vez todos os elixi-
mum. O trecho 27\ de Novalis resume toda uma filo- res da madeira. A fumaça deixa com pesar a chama
sofia de chama-vida e da vida-chama" : brilhante. A chama tinha ainda tanta coisa para quei-
"A arte de saltar além de si mesmo é considerada mar! Na vida também há tantas coisas para reacender!
em toda parte como o alO mais alto. É o ponto de ori- E quando a sobrechama ganhava vida novamen-
gem da vida. A chama não é nada mais que um ato le, minha avó me dizia: veja, meu filho, são os pássa-
.' dessa espécie. Assim a filosofia começa aí. onde o fi- ros do (ogo. Então, eu mesmo, sonhando sempre mais
I'I losofante filosofa a si mesmo, isto é. se consome e se
renova." I.
dislante do que as palavras da avô, achava que esses
pássaros do (ogo faziam seus ninhos no coração das
,I. Numa reforma de seu texto, Novalis, tendo à mão
os dois sentidos do verbo vel7.ehren (consumir, consu-
achas de madeira, bem escondido, sob a casca e a le-
nha leve. A árvore, esse porta-ninhos, havia prepara-
.1
,; mar), indica a passagem, 110 ato da chama, do deter-
minado ao determinante. do ser satisreito ao que vive
do, durante seu crescimento, esse ninho interno onde
esses belos pãssaros do fogo se aninhariam. No calor

t
sua liberdade. Um ser se torna livre se consumindo pa- de uma grande lareira, o tempo acaba de eclodir e de
ra se renovar, dando-se assim o destino de uma cha- levantar vôo.
ma, acolhendo principalmente o destino de uma sobre- leria escrüpulos em contar meus prôprios deva-
I chama que vem brilhar acima de sua ponta_ neios e distantes lembranças se a primeira imagem, a
Mas, antes de filosofar, talvez seja preciso rever; chama que salta por cima de si mesma para continuar
talvez, pela falta de revisão. seja preciso reimaginar es- a queimar, não fosse uma imagem real. A chama que
se raro fenômeno da lareira, quando a chama tranqüi- se sobrevoa, que lama um novo impulso além de seu
primeiro impulso, além de sua exlremidade, Charles No-
17. NO'IA LlS. &t. MlIlor, 11. p. 259. dier a viu. Ele rala de "esses fogos sonhados que voam
18. cr. N IEf'lCHE . PouiDs: acima das lachas e dos candelabros. quando as cinzas
A .ido ( riou jlQfV si mnnu:
Stu Silpremo obstÔClllo. que as produziram já se esfriam.""
A.f(Iro 1'111 wltll por tlma di' _ proprio penStlmt'nlO-
19. C harks NOOlEII.. Obrolf romplI'IQ$, tom o v, p . s.
68
69
Esta chàma sobrevivente. sobrevoante, ilustra uma Meio sabendo, meio sonhando, diria então: para
comparação longínqua. para Nodier. Ele fa la de um obter sucesso na experiência de Faraday, é preciso .a n-
tempo em que "o amor, só, vivia acima do mundo so- dar depressa, pois as coisas reais não sonham por muito
cial. assim como esses (ogos que produzem uma luz tempo. Não se deve dcixar a luz dormir. É preciso se
mais pura acima das labaredas". apressar em acordá-la.
Para um sonhador novalisiano das chamas anima-
lizadas, a chama, já que voa, é um pássaro.

Onde pegareis o pássaro


Além de dentro da chama?

pergunta um jovem poeta. 2Il


Havia, panamo, conhecido bem, em meus deva-
neios e jogos diante da lareira, a Fênix doméstica eté-
rea entre todos, pois renascia. não de suas cinzas: mas
apenas de sua fumaça.
Mas, quando um fenômeno raro está na base 'de
,, uma imagem extraordinária, imagem essa que enche a
alma de devaneios desmedidos, a Quem ou a que ê pre-
ciso dar realidade?
É um físico que vai responder: Faraday fez da ex-
periência da vela acesa em seu vapor o assunto de uma
conferência popular. l l Esta conferência teve lugar en-
Ire oulras que Faraday fazia nos cursos noturnos e que
reuniu sob o titulo de His(ória de uma vela. Para obter
sucesso na experiência, é preciso soprar suavemente,
bem suavemente, a vela, e bem rápido reacender o va-
por c apenas o vapor, sem despertar o pavio.

20. Picrre G"ItNI[R. Roger Toulouse, Cahiers de RocltefoTl, p_ 40.


21. F"RAD.O.Y. Histo;", d'unt chl1f1delfe, lrad. p. 58.

70 71
CAPÍTULO IV

I
I As imagens poéticas da chama na vida vegetal
II
,,
\
);
"N~o sei mais u durmo
., Pois a luz "da I\C beliolropio."

Ii
[CIÔUt<E ARNAlIO. Antholoaie.

Quando se sonha um pouco com forças que mano


têm em cada objelo uma forma, facilmente imagina-
se que em lodo ser vcnical reina uma chama. Em par-
ticular, a chama é o elemento dinâmico da vida ereta.
Citamos anteriormente este pensamento de Novalis: "A

73
árvore não é outra coisa além de uma chama florida." 11
Vamos ilustrar esse tema lembrando as imagens que re-
nascem, sem fim, na imaginação dos poetas.
Antes de contar as explicações da imaginação poé- Quando a imagem da chama se impõe a um poe·
tica, talvez seja preciso lembrar que uma comparação ta para dizer uma verdade do mundo vegetal, é predso
não é uma imagem. Quando 81aise de Vigenere com- que a imagem permaneça em uma frase. Explicá-la,
para a árvore a uma chama, ele apenas aproxima pala- desenvolvê-Ia, seria diminuir, parar o impulso de uma
vras sem conseguir realmente fazer a concordância en- imaginação que une o ardor do fogo e o paciente po-
tre o vocabulário vegetal com o da chama. Registrare- der do verde. As imagens-frases que pin tam, que con-
mos esta página que nos parece um bom exemplo de tam as chamas vegetais, são igualmente ações polêmi-
uma comparação prolixa. cas contra o senso comum adormecido em seus hábi-
Vigenêre apenas falou da chama de uma vela de lOS de ver e de falar. Mas a imaginação é tão segura,
cera, agora fala da átvore: "Em sentido semelhante (ao com uma imagem nova, de: conter uma verdade do
da chama) que tem suas raízes presas na terra, da qual mundo que a polêmica com os não-imaginanres seria
extrai seu alimento, como a parte inferior da vela ex- tempo perdido. Vale mais a pena para o imaginame fa-
trai Oseu do sebo, da cera ou do óleo que fazem a vela lando a outros imaginantes dizer ainda, sem fi m. no-
arder. O tronco que suga seu suco ou seiva faz o mes: vas frases sobre as chamas da vida vegeta l.
mo que a base da vela, onde O fogo se mantém através Assim começa o reino das imagens decisivas, das
do licor Que atrai para si, e a chama amarela são seus decisões poéticas. Toda poesia é começo. Propomos de-
galhos e ramos revestidos de folhas; as nores e os fru - signar essas imagens-frases, ricas de uma vontade de
tos em que a Árvore termina são a chama branca na expressões novas, pelo nome de sentenças poéticas. O
qual tudo se reduz,'" nome de fragmentos, utilizado pelos fragmentistas,
Ao longo desta comparação exposta, jamais apa- prejudica.-os. Nada é panido numa imagem que encon-
nharemos um dos mil segredos ígneos que prepararão tra força em sua condensação.
à distância a flamejante explosão de uma árvore florida. Com um dicionário de belas sentenças da imagi-
Vamos, ponamo, tentar pegar, seguindo os poe- nação dogmática, com uma botânica de todas as
tas, as imagens em primeira poesia, quando elas nas- plantas·chamas cultivadas pelos poetas, talvez se deci-
cem de um detalhe digno de ser enaltecido, de um ger- frassem os diálogos do poeta e do mundo. Sem dúvida
me de poesia viva, de uma poesia que podemos fazer sempre será diffcil organizar um grande número de ima-
viver em nós. gens voluntariamente singulares. Mas, às vezes, o atra-
1. 1.«. CII" 17.
tivo da leitura basta para aparentar, a propósito de uma
imagem singular, dois gêneros diferentes. Por exemplo,
74
75
[2495
de um poeta raro. Trata-se da imagem-germe, do germe-
como não ter a impressão de que Victor Hugo e 8al- imagem. Eis um testemunho de uma chama que quei-
zac pertencem à mesma família dos botânicos do de- ma no interior da árvore - toda uma promessa da fla-
vaneio quando se colocam essas duas sentenças poéti- mejante vida. Louis Guillaume, em um poema que tcm
cas uma ao lado da outra: o título: O velho carvalho!, com três palavras, nos en-
che de fantasias: "Fogueira de seivas", diz ele para enal-
"Toda planta é um lampião. O perfume é a
tecer a grande árvore.
luz.") "Fogueira de seivas", palavrds nunca ditas, semen-
"Todo perfume é uma combinação de ar e de te sagrada de uma nova linguagem que deve pensar o
luz.") mundo com a poesia. A sentença poética é deixada aos
cuidados do leitor. Sonhar-se-ão mil sentenças poéti-
É claro que, na estética de Balzac, é a planta que, cas sonhando-se com esta seiva ígnea que dá forças do
em sua extremidade, na flor, realiza essa síntese prodi- fogo à rainha das árvores. Quanto a mim, acordado
giosa do ar e da luz. de minhas velhas imagens pelo dom do poeta, deixo
Uma espécie de correspondência baudelairiana é a grande imagem do grande ser retorcido em sofrim en-
ativa pelo alto, pelos picos, como se os valores de pico tos como aquela de Laocoon, e sonhando com toda essa
viessem excitar os valores de base. Assim os sonhadq- seiva que sobe e q ueima, si nto que a árvore é um porta-
res que vivem nos dois sentidos a correspondência dos fogo. E um grande destino é predito para o carvalho
perfumes e da luz lêem com convicção este "pensamen- pelo poeta. Este carvalho é o Hércu les vegeta] que, em
to", que valoriza uma luz suave: "Certas árvores todas as fibras de seu ser, prepara sua apoteose na cha-
tornam-se mais cheirosas quando são tocadas pelo arco- ma de uma fogueira.
íris.' '. Um mundo de contradiçõcs cósmicas nasce a partir
desse nó de podcres hostis. Louis Guillaume ligou em
três palavras o fogo e a água. Eis aí um grande triunfo
111 da linguagem. S6 a linguagem poética pode ler tanta
audácia. Estamos realmente no domínio da imagina-
ção livre e criativa.
Mais condensado ainda Que uma sentença poéti-
ca é o pr6prio germe da imagem que se pode receber
2. Victor Huoo. Cltom~ ~i ,il. t. n , p. 44.
l. BAL.ZAC. I..olli$ Lombel. 2~ ed. p. 296. S. LoU 15 O IU .AUME , Lo Nu,' ptl,f~, M. Subcl"VlC, p. 28.
4. I...e sieur de Lo. CHAMBIlI!. I,is, p. 20.

77
76
-: \ '.. ~
, -
This sínteses de objetos, tais fusões de objetos fe-
IV chados em formas tão diferentes, como a fusão do ja-
to d'água e da chama, da árvore e da chama, nào sa-·
beriam se exprimir na linguagem da prosa. É preciso
Às vezes o germe da imagem parece exagentdo. Vai, o poema, as flexibilidades do poema, as transmutações
de uma só vez, aos limites de seu prestigio. Numa úni- poéticas. O hino se apodera do ser das imagens, ele as
ca imagem, Jean Caubêre confere um sentido de cha- faz de seus objetos, objetos hínicos. É o hino que é o
ma ao jato d'água solitário, este ser ereto, mais ereto poder si ntetizante. O poeta mexicano Octavio Paz sa-
que todas as árvores do jardim . "O jato d'água de Cau- be disso muito bem e diz muito precisamente: o hino
bere" - grande privilégio esse de dar seu nome a uma é por sua vez
imagem incriada _ é, para mim, a vigorosa chama de
água, o fogo que respinga ao chegar ao máximo de sua Álamo de fogo, jato d'água:
altura, no término de sua ação ereta.'
Ainda aqui o poeta deixa ao leitor o cuidado de
Existem jardins fazer as frases intercalares - o prazer poético de es-
onde queima 11m JOIO d'água solitário crever sentenças poéticas que devem unir a chama da
enrre as pedras árvore esguia e a chama totalmente verlical do jato
ao crepúsculo. d'água. Com os poetas de nosso tempo entramos no
reino da poesia brusca, uma poesia que não conversa
o poeta nos dá uma grande alegria de palavras. mas que sempre quer viver em primeiras palavras. Por-
Por ele transcendemos as diferenças elementares. A tanto é preciso escutar os poemas como palavras ditas
água queima. Ela é fria, mas é fOrle, logo ela queima. pela primeira vez. A poesia é uma admiração, exata-
Ela recebe, num a espécie de surrealismo natural, a vir- mente ao nível da palavra, na palavra e pela palavra.
tude de um fogo imaginário. Nada é desejado, nada Aproveitamo-nos de todas as ocasiões para falar
é fabricado nesse surrealismo imediato do jato d'água- de nosso entusiasmo pelos valores poéticos autônomos.
chama . Jean Caubêre concentrou o surrealismo de sua Porém é necessário que voltemos ao programa mais pre-
imagem numa só palavra: a palavra queima desrealiza ciso de nossas pesquisas sobre as imagens vegetais da
e surrealiza. E essa palavrd queima inverteu a melan- chama abordando exemplos mais simples do parentes-
r.:olia crespuscular do poema. A iniagem adquirida é, co das luzes, das flores e dos frutos.
então, um testemunho da melancolia criativa.
7. Octavio PAZ. Aig/c QU So/ei/?, p. 83.
6. Jean CAIJBL':~~. DiserIS, &I. Oebrl'~st:, p. 18.

78 79
- - - -- ------

rc como transformadora dos sumos da vida em subs·


v tância de fogo e de chama. . .
Quando o sol de agosto já trabalhou as primeiras
seivas. o fogo lentamente vem até o cacho. A ~va cla·
Uma dn'ore é bem mois Que uma árvore reia. O cacho transforma·se num lustre que brilha sob
o abajur de folhas largas. Foi para encobrir o cac~o
diz um poeta.' de uvas que a pudica folha da vinha primeiro servIU.
O que há de mais precioso em seu ser sobe em di- . Os poetas de fantasias cósmicas escol hem entre es·
reção à luz. e é assi m que em muitos poemas as árvo- sas duas imagens: montada pelo fogo e montada pela
res porta-frutos são as arvores porta-luz. A imagem é luz. Para Rachilde, no tempo de sua juventude, a vi·
bastante natural na poesia do~ jardins. Todas as luzes nha, sugando pelo cepo viril todos os fogos da terra,
na folhagem do verão são alimentos de fogo. Um dos dá ao cacho de uva "esse açúcar satânico destilado atra·
personagens de Oickens confidencia que Quando era vés de violências de vulcão." "
criança pensava "que os pâssaros tinham os olhos bri- A embriaguez do homem termina as loucuras da
lhantes por causa dos bagos vermelhos e brilhantes que vinha.
comiam".' Em cada árvore, um pocta conta a união de três
li Numa conferência sobre a pintura de Matisse, sob
o título: A poesia da luz, Arsene Soreil citava um poe-
ma oriental que dizia:
movimentos:

Arvore fonle, árvore esguicho. arco de fogo"


As laranjas são as lâmpadas do jardim Existem árvores que têm fogo em seus rebentos.
Para d'Annunzio, o loureiro é uma árvore tão quente
Sorei! citava também Mareei Thiry: que quando podada seu tronco se cobre logo de reben·
tos que são como "faíscas verdes." !>
V~se nas macieiras frutos que brilham como lâmpadas

Mas essas imagens sào rápidas demais, sào termi-


nais, não seguem as longas fantasias que vêem a árvo-
10. RActULOE. Q,nt~ ~f IIOJH·~lIn. 5eluidos do talro. le Mm:ure de
FI1lfItt, I!IOO. p. 15(}
8. Oilbrn $ocAlD. Fld~~ ou moncM, p. IS. 11 . Oaavio PAl. Af~fe ou Sokil, p. 11.
9. DKK E'OS. L'Uomm, /IIt $P«"I'" QU k Ptxf~, p.19. 12. D'A""'UNltn lA C'Otlll'mp!olioll d~ lo morl, Calmann·lt\·y, p. 59.

80 81


VI
o céu se apaga e as castanheiras queimom
Um sonhador novalisiano aceitará facilmente, co- escreve Jean Bourdeillette. "
mo um dos axiomas da poét ica do mundo vegetal, es- A fo lhagem a lta das castanheira s do outono faz
la fórmula: todas as fl ores são chamas - chamas que sua partitura na sinfonia do sol se pondo. Se se pegar
querem tomar-se luz. o poema em sua totalidade, imagina-se facilmente que
Essa transformação em luz. todo sonhador de flo- loda árvore age como luz. O incêndio dos picos desce
res a sente, anima-Q como um uhrapassar daquilo que para todas as flores do jardim. O poema de Bourdei l-
vê, um excesso da realidade. O sonhador poeta vive na Iene termina com esse grande verso:
a uréola de toda beleza, na realidade da irrea1idade. O
poeta que não tem os privilégios do pintor, q ue é um As ddlias guardaram a brasa do sol
criador através das cores, não tem nenhum interesse em
rivalizar com os prestígios da pintura. Tomado pelo ri - Quando leio piroforicamente tal poema, sinto que
gor de sua profissão, o poeta, esse pintor através das ele realiza uma unidade de fogo entre o sol, a árvore
palavras, con heçe prestígios de liberdade. Deve contar c a flor.
a flor, dizer a flor. S6 pode compreender a fl or ao\, Uma un idade de fogo? A própria unidade da ação
mando suas chamas pelas chamas de palavrd. A expres- I:ollferida ao mundo pela expressão poética.
são poética é essa t ransformação em luz que todo so- Existem. na obra do mesmo poeta. flores em cha-
nhador nova li siano pressentiu em suas contemplações mas mais indi vidualizadas. Uma tulipa vermelha não
filosóficas. é uma taça de fogo? Toda flor nào é um tipo de chama?
O problema do poeta é, porta nto, o de exprimir
o real com o irreal. Vive, como já dissemos em nosso Tulipas de cobre
prefácio, no claro-escuro de seu ser, sucessivamente tra- 7ilfipas de fogo
zendo ao real uma luz pálida ou uma penumbra - e Torcidas no ardor
cada vez dando à sua expressão uma nuance inesperada. Desse mês de maio."
Mas "vejamos" algumas expressões poéticas de
flores-chamas matizadas de maneiras bem diferentes Se colocarem a tulipa do jardim sobre a mesa, te-
confo rme o gênio do poeta. rão uma luz. Coloquem uma tulipa vermelha. uma só,
Tomemos primeiro imagens em que as chamas da
fl or possam ser chamas emprestadas, reflexos de um 11 Jtan BouRllllllETTE. lLs É/Oifts dom la mom Ed o:.... .... ~ ' 9"
oD ._- -
sol se pondo:
.". Jean BouROCILLETTE. HtliqUB des pongtrlS, Ed. Stllltn. p. 48.

82
83


num vaso comprido. Terão perto dela, na solidão da O fogo e a rosa serão apenas um
flor solitária, fantasias de vela.
Numa nola, Bernardin de Saint-Pierre escreve: And lhe fire ond rhe rase are one"
"Chardin diz que. quando um rapaz presenteia, na Pér-
sia, uma tulipa à sua amante, ele lhe dá a entender que, Para que tal conciliação de imagens dê duplo va-
como eSla flor, tem o rosto em fogo e o coração em Iar a cada uma delas, é preciso que essa conciliação exis-
carvão." " e:
la nos dois sentidos. necessá.rio Que um sonhador de
Realmente, no fundo do cálice, o pavio da labare- rosas veja toda uma roseira dentro de sua lareira.
da é preto. Às vezes flores parecem brotar no óleo que arde.
Quando a flor é uma luz tranqüila, uma chama Assim escreve Pieyre de Mandiargues:
sem drama, o poeta enCOntra palavras Que são felici-
dades em palavras: O fogo dos gerânios ilumina o óleo"

Os (remoças azuis Queimavam Qual é a origem desse grande sonho em vermelho


Cama luU!s suaves" c prelO? A flor ou a lareira? Para mim, a imagem do
poeta joga duas vezes, e nas duas vezes joga violenta·
Está af, na colocação das palavras, uma chama mente.
úmida Que escorre em suas sílabas labiadas. Thdo depende do temperamento do poeta. Para
Imagino uma bela mulher terna, Que diz e tOrna Lundkvist, o plácido acianto, "o acianto se erg ue, elé-
a dizer esses dois versos olhando-se no espelho. Seus trico, no~ campos de trigo e ameaça a ceifadeira como
lábios estariam relizes. Seus lábios aprenderiam a flo- ri chama de um rogareiro". .

rir docemente. A luz e a rosa trocam suas suavidades. Rodenbach,


Entre todas as flores, a rosa é reahnente uma la- o ser das imagens suaves, escreve:
reira de imagens para a imaginação das chamas vege-
tais, Ela é o próprio ser da imaginação imediatamente A lâmpada do quarto é uma rosa branca".
convencida. Que intensidade neste unico verso de um
poeta Que sonha com um tempo em que Em sua casa de eem espelhos, Rodenbach cultiva-
va as nores imaginárias. Escreve ainda:
17. T. S. El1Of. Follr QlJO//lors.
IS. Ik-mardin de s,..INT-PtF:UI!. âlKf6 ik 111 NII/IoIff'. Paris, 1791. lomo 18 P,eyn: de M.\OóL>IARGl!LS l.n 1","oltgTlmi:f moltl"'~"'lIlts. Ed. R.
li ., p. l7J. l.afronl. p. H.
16. Jean BoulDEllu,rn:. loc. r:i/~ p. J.oI. 19. GeorJes RODt:cl<.M..\C H. l i Miroir d .. C"itl1l%l, p. n.

84 85
A lâmpada Assim, correlativamente, o fogo floresce e a flor
que/a? nenufaresflorirem nos espelhos. se ilumina.
Desenvolver-se-iam sem fim esses dois corolários:
Sua fantasia dos reflexos é tão cosmogônica que, a cor é uma epifania do fogo; a flor, é uma ontofania
assim, criou o lago vertical. O poeta cobre as paredes da luz. ll
de seu quarto com quadros de ninféias. Nada pára
um imaginante que vê, em todas as lâmpadas, flores.
Um temperamento poét ico mais ardente contará
com maior paixão o fogo das rosas. A obra de d'An- VII
nunzio é rica em rosas de fogo. Lê-se no grande romance
O Fogo:
"Olhe essas rosas vermel has! Diante do mundo das flores estamos em estado de
- Elas queimam. Dir-se-ia que têm em suas co- imaginação dispersada. Não sabemos muito, não sa-
I rolas um carvão aceso. Elas realmente queimam."lO bemos mais acolhê-las na intimidade de seu ser, como
I· A nota é tão simples! Pode até parecer banal para o testemunho de um mundo de beleza, do mundo que
li um leitor apressado. Mas o escrilor quis pôr esse di~­
logo dos dois amantes no fogo das paixôes. As florés
multiplica os seres belos. Cada flor, no entanto, tem
sua própria luz. Cada flor é uma aurora. Um sonha-
"
fI
vermelhas podem marcar uma vida. Algumas linhas
adiante, o diálogo é retomado:
dor de céu deve encontrar em cada flor a cor de um
céu. Assim o Quer uma fantasia que, em tudo, põe em
"Olhe. Elas se tornam cada vez mais vermelhas. movimento uma correspondência sobrebaudelairiana
O veludo de Bonifácio... Você se lembra? Tem a mes- em sua vontade de vida nos picos.
ma força. Para abrir um sábio artigo, "Simpalia e teopatia
- A flor interna do fogo." dos 'Fiéis do amor' no Islã":.!, Henry Corbin cita
Em outra página, quando d'Annunzio segue o tra- Proclus, invocando "o heliotrópio e sua prece":
balho dos vidreiros, a imagem se inverte. E o vidro fun- "Que outra razão, pergunta Praclus, pode-se dar
dido que atrai o nome de uma flor, nova prova das ações ao fala de que o heliorropio segue com seu movimen-
reciprocas dos dois pólos de uma imagem dupla: 10 o movimento do sol e o selenotrópio o movimento
"As taças nascemes oscilaram na ponta das has- da lua, cortejando, na medida do possivel, as labare-
tes, rosas e azu ladas como os carimbos da hortênsia das do mundo, além de admitir as harmonias causais,
que começa a mudar de cor."I.
20. D'ANNI 1'<710. Ui nu, Calmann· l.ivy, p. 304_ 22. A primdra fórmula é de d·Annunzio.
21. Loc. cit., p. n8. 23. Em EI'Q/lOS Jghrbuc:h, 19S5, p. 199.

86 87

as causalidades cruzadas entre os seres da terra e os se- tropismo do heliotrópio é, para os "Fiéis do amor" do
res do céu? Islã, uma helioparia.
"Pois, na verdade, toda coisa ora, segundo a ca-
tegoria que ocupa na natureza, e canta em louvor ao
chefe da série divina à qual pertence, elogio espiritual
e elogio racional, físico ou sensível; pois o heliotrópio VIIJ
se move por ser livre em seu movimento c, na volta que
faz, se se pudesse surpreender o som do ar tocado por
esse movimento, se perceberia Que se trata de um hino Sonhando com toda a ingenuidade sobre as ima-
a seu rei, da maneira que uma planta pode canta-lo," gens dos poetas, aceitamos todos os pequenos milagres
A que nível, em que altura é preciso meditar so- da imaginação. Quando o valor poético está em jogo,
I bre o texto de Pradus? Antes de mais nada. c preciso lorna-se inconveniente evocar outros valores e abordar
sen tir que ele se desenvolve para ganhar uma altura, o estudo com o mínimo espírito critico. Mostraremos,
I todas as alturas. O fogo, o ar, a luz. toda coisa que so-
be também é divina; todo sonho desenvolvido é parte
no entamo, para acabar este pequeno capítulo, um do·
cumento que não podemos deixar de olhar com olhos
, integrante do ser da flor. A chama de vida do ser ~e
floresce é uma tensào em direção ao mundo da pura luz.
E todas essas transformações sào transformações
de nativo da Champagnc.
Tomamos emprestado esta anedota de um livro sé-
rio. Lorde Frazer, sem nenhuma preparação, sem ne-
felizes da lentidão. As labaredas nos jardins do céu, de nhum comentário, escreve:
acordo com as flores nos jardins do homem, são cha- "Quando os Menri entraram em contato com os
mas firmes, são chamas lentas. O céu e as flores estão Maleses, encontraram uma nor vermelha (gant 'gn: em
de acordo em aprender meditando a meditação lenta, malês: gantang). Reuniram-se em círculo em torno de-
a meditação que ora. la e estenderam os braços por cima para se aquece-
Se lermos as páginas posteriores de Henry Cor- rem.":!>
bin, devemos nos abrir sem reserva à dimensão da Al- Em seguidá, a anedota se complica. Um cervo e
tura - uma Altura que recebe a dignidade do sagra- um picanço verde intervêm. O picanço verde, algum
do. Para Proclus, o heliotrópio, em sua cor de ceu, ora pássaro de lenda, podia muito bem trazer, em suas pe-
porque se volta sempre, num sinal de fidelidade, para nas brilhantes, o fogo para os homens de uma tribo.
seu Senhor. Henry Corbin cita então este verso do AI- Frazer nos deu tantos documentos sobre os animais que,
corno: •'Cada ser conhece o modo de orar e de glorifi- em suas lendas, são benfeitores da humanidade que
car Que lhe é próprio." " E Corbin mostra Que o helio-
2S. u.rM FR AZER. ,-"Origine dll fim cn Ash', p. 127.
24. Loc. CII., p. 203,

88 89
aprendemos a acreditar - um pouco. apenas um pou-
co - em tudo o que os etnólogos nos relatam. Colo-
camo-nos docilmente na escola da ingenuidade. Mas.
por conta dessa famflia de maleses reunida em torno
de um buquê de nores ardentes para aquecer os dedos.
o demônio da ironia se apossa de meu espirilO e inver-
te o eixo da ingenuidade: como deviam brilhar de ma-
lícia os olhos dos bons selvagens quando conlavam ao
ingênuo missionário essa comédia sobre a origem 110- CAPiTUW V
ral do fogo!

A luz da lâmpada

, hA fim de animar mmha tím ida lâmpada


A "asta noite a~cl1d~ todas as suu
lestrelas,"
TAG() IlI,. {.,..-iv/(>s. Estc( urto poema
está escrito ~ob,.e v lequ e de uma mulher.

A companh ia vivida dos objetos familiares nos traz


de volta li vida lenta. Perto deles somos tomados por
uma fantasia que tem um passado e que no entanto
reencontra a cada vez um frescor. Os objetos guarda-
dos no '·armário de coisas" (chosier), nesse estreito mu-
seu de coisas que gostamos, são talismãs de fantasia.
Evocamo-Ias c, pela graça de seus nomes, já vamos 50-

90 91

nhando histórias bem velhas. Também, que desastre de neg~o O espaÇO subitamente claro. O mesmo gesto me·
fantasia quando os nomes, os velhos nomes, aconte· C~OICo ~rovoca a transformação inversa. Um pequeno
cem de mudar de objeto, de se ligar a uma outra coisa clique diZ. com a mesma voz. seu sim e seu não. O fe·
totalmente diferente da velha boa coisa do velho armá· nomenólogo tem. assim, os meios de nos colocar ai·
riol Aqueles que viveram em outro século dizem a pa· t:~nadamente em dois mundos, isto é, em duas cons·
lavra lâmpada com outros lábios diferentes dos lábios Clendas. Com um interruptor elétrico pode·se jogar sem
de hoje. Para mim, sonhador de palavr.ls, a palavnllâm· parar o jogo do sim e do não. Mas. aceitando a meci·
pada elétrica me faz rir. Nunca a lâmpada elétrica po· nie~ . o fe nomenólogo perdeu a densidade fenomeno-
derá ser bastante familiar par..! receber um adjetivo pos· lógica de seu ato. Entre os dois universos de trevas e
sessivo. ' Quem pode dizer agora: minha lâmpada elé· de luz existe apenas o movimento sem realidade. um
trica como di.z.ia antigamente: minha lâmpada? Ahl cer momentO berysoniano, um momento de intelectual. O
mo sonhar ainda. nesse declínio dos adjetivos posses· momento tinha mais drama quando a lâmpada era mais
si\'Os. desses adjetivos que diziam tão fortemente a com- humana. Acendendo o velho lampião, podia-se sem·
panhia que tínhamos com nosSOS objetos? pre temer alguma falta de jeito, algum azar. O pavio
A lâmpada elétrica não nos dará nunca as (anla· dessa noite não é em absoluto o mesmo de ontem. Se
sias dessa lâmpada viva que. com o óleo. fazia luz. En· houver falta de cuidado, poderá carbonizar. Se o vidro
tramas na era da lui. odmin.iSlrada. Nosso único papel protetor não estiver bem colocado, o lampião irá fI:!.·
é o de ligar um interruptor. Somos apenas o sujeito me· maçar. ::m-se sempre algo a ganhar dando aos obje-
cânico de um gesto mecânico. Não podemos mais apro· tos familiares a atcnção amiga que merecem.
veitar deste ato para nos constituirmos, COITl orgulho
legítimo, em sujeitos do verbo acender.
Em seu belo livro Vers une cosmologie (Em dire-
ção a uma cosmologia) Eugene Minkowski escreveu um
capitulo sob o tílUlo: "Acendo a lâmpada."l Mas a 11
lâmpada é, aqui. uma lâmpada elétrica. Um dedo so·
bre o interruptor basta para fazer suceder ao espaço
é ~a amizade que os poetas tem pelas coisas. por
suas COIsas, que poderemos conhecer esses feixes de mo-
I. Jean de Ba;cHf:ll;Emarta com um r:1pod.o~rrasmo uma ana tm que.
1'11'1 yt>z de uma lumpariruJ., t uma I~mpltda etrlnca que YC1>e'ra a ",ura mentos que dão valor humano aos aiOS efêmeros.
da Vir&cm. A lal1'l par illa nlio e um ulhar: "Uma 1311'1parina dc>ia qud Em pâginas em que ele nos conta suas lembran·
mar no olho l'IelVo de seu óko" (d. Mar/he tll'tllllllgf. p. 221)_ A lii m-
pada clo11rica nlo Im! olhar ças. de. infância, Henri Bosco dâ de novo ao lampião
2. E. MI NKOWSKI. Ver.!' um.. COSltl%gle, cd. Aubier. p. IH a digmdade de antigamente. Desse lampião ficl a nos-

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so ser solitário, escreve: "Percebe-se rapidamente, não masse que ele recebe bem menos fogo, que trazemos
sem emoção, que ele é alguém. De dia, acha-se Que ele para ele, do que sua chama nos oferece. O fogo vem
é apenas uma coisa. uma utilidade. Mas. quando o dia de fo ra. E esse fogo é apenas uma ocasião, um cômo-
declina e. errante numa casa solitâria, invadida por es- do pretexto do Qual se aproveita o lampião apagado
sa penumbra que apenas lhe permite circular tateando para irradiar sua luz. Ele existe. Sinto-o como criatura."
ao longo das paredes. você procura o lampião, que nâo A palavra "criatura" decide tudo. O sonhador sabe
a cha mais c que depois descobre onde havia esqueçido que essa criatura cria luz. É lima criatura criativa. Basta
que estava, este lampião apagado e em suas mãos, mes- lhe dar um mérito, basta lembrar Que é um bom lam-
mo antes que tenha sido aceso, lhe assegura e oferoce pião, e ei-Io vivo. Ele vive na lembrança da paz de an-
uma presença doce. Ele o acalma, pensa em você..." ) tigamente. O sonhador lembra do bom lampião, que
Tal página achará pouco eco da parte dos feno- se acendia tão bem. O verbo reflete: se acendia reforça
menólogos que defi nem o ser dos objetos por sua o valor de sujeito da criatura que dá a luz. As palavras
"utensilidade". Criaram esta palavra terrível par~ pa- e suas flexões ternas nos ajudam a sonhar bem. Dê qua-
rar de um só golpe as seduções que nos vêm das coi- ~idade às coisas, dê, do fundo do seu coração. o poder
sas. A ulensilidade é para eles um saber tão nítido que Justo aos seres agentes e o universo resplandecerá. Um
não precisa da fantasia das lembra nças. Mas as lem- bom lampião, um bom pavio, um bom óleo e eis uma
branças aprofundam a companhia Que temos com o'!i luz que rejubila o coração do homem:Quem gosta da
bons objetos, os objetos fiéis. Cada noite, na hora cer- bela chama gosta do bom óleo. Ele segue a inclinação
ta, o lampião faz "sua boa ação" para nós. Essas de· de todas as fantasias cosmogônicas nas quais cada ob-
sordens sentimentais entre o bom objeto e o bom so- jeto do mundo é um germe do mundo. Para um Nova-
nhador podem facilmente receber a crítica do psicólo- Iis, o óleo é a própria matéria da luz, o belo óleo ama-
go cristalizado na idade adulta. Para ele são apenas se- relo.é a luz condensada, uma luz condensada que q uer
qüelas das idades infantis. Mas, sob a pena do poeta, se dilatar. O homem vem, com uma chama leve, libe-
o sentido poetico volta a vibrar. O escritor sabe Que será rar as forças da luz aprisionadas na matéria.
lido pelas a lmas sensíveis às primeiras realidades poé- S~m dúvida, não sonhamos mais tão longe. No en-
ticas. A página de Bosco prossegue: lanto Já se sonhou dessa maneira. Sonhou-se com a
" ... Observe-o bem Quando for acendê-lo, c diga- lâmpada que dá uma vida luminosa a uma matéria obs-
me se, secretamente, não e ele que se acende, sob nos- cura. Como também um sonhador de palavras não fi-
sos olhos distraídos. Talvez eu o espantasse se lhe afir- cará emocionado Quando a etimologia lhe ensinar que
O petróleo é o óleo petrificado? Das profundezas da
terra a lâmpada faz subir a luz. Quanto mais velha for
3. Hr"l RI Bosco, Un Ollb/i mains profand, Gallimard, 1%1, p. 316.

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,

a substância com que trabalha. mais ~gura.mente a lâm- 111


pada será sQnhada em seu status de criatura criadora.
Mas essas fantasias sobre as cosmogonias da luz
não são mais do nosso tempo. Nós só as evocamos aqui Ninguém se espantará depois de tal união da crian-
para sinalizar o onirismo desconhecido, o onirismo per- ça e do lampião, que o.lampião seja, em toda a obra
dido, o onirismo QUe, além de ludo, tornou-se matéria de Bosco, um personagem verdadeiro que tem um pa-
de história, saber do velho saber. pei efetivo na narrativa de uma vida. Em numerosos
Queremos portanto levar nossos devaneios seguin- romances dele, lampiões familiares, íntimos, vêm mar-
do a inspiração de um grande devaneador. Seguindo car a humanidade de uma casa, a duração de uma fa-
Bosco. podemos descobrir a profundidade das fantB- mília. Muitas vezes uma velha empregada tem sob sua
sias de uma infância mantida em seus devaneios. En- g uarda o lampião dos ancestrais. Uma velha empregada
tramos com Bosco no labirinto em que se cruzam as que cuida de seu jovem patrão, venerando os objetos
lembranças e os devaneios. Uma infância pega em seus familiares, prolonga para o patrão, que conheceu crian-
devaneios é insondável. Nós a deformamos sempre um ça. a paz de sua infância. Ela sabe encontrar, para ca-
pouco fazendo uma narração. Às vezes, nós a defor- da grande acontecimento da vida doméstica, a lâmpa-
mamos sonhando mais. às vezes, son hando menos. da certa. Como a velha Sidonie que conhecendo a dig-
Henri Bosco, quando tenta nos transmitir os senlime~­ nidade hierárquica das luminárias acende, para a ex-
los que o ligam ao lampião, eslá sensibilizado por es- pectativa de uma visita importante, todas as velas do
sas alterações das lembranças e dos devaneios. É, en- candelabro de prata.
tão, necessária uma dupla ontologia para nos dizer o Nas horas graves, uma lâmpada rustica acentua,
que é, por sua vez, o ser do lampião e o ser do sonha- pela simplicidade, o drama natural da vida e da mone.
dor da fidelidade das primeiras luzes. Tocamos nas raí- O herói do devaneio, que e o personagem central de
zes do sentimento poêtico por um objeto carregado de Bosco: Maficroix, encontra apoio moral na lâmpada,
lembranças. Bosco escreve: uma vel ha lamparina sombria, quando sentc que seu
"Sentimento que me vem desta infância da qual bom servidor poderia estar morto: "Pois tinha neces-
parafraseio um pouco pesadamente, acho. as sidade de apoio e, não sei porquê, procurei-o no fogo
solidões.'" dcsta pequena lâmpada. Ela me iluminava fracamen-
te, sendo apenas uma lâmpada comum que, mal con-
servada. vacilava em certos momentos e ameaçava apa-
gar·se. Porém ela estava lá, e vivia. Mesmo nos mo-
mentos em que sua delicada chama cnfraquecia, con-
4. Loc. ,·,t.. p. 317. servava uma claridade religiosamente ca lma. Era um

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ser suave e amigo, que me comunicava, em n:ainha ani- Um movimento lento desloca-se no claro-escuro
ção, a onda modesta de sua vida de lâmpada. Pois ape- do sonho, movimento que propaga uma paz: "A lâm-
nas um pouco de óleo alimentava-a, em seu globo de pada estende suas mãos que acalmam"J, "Uma lâm-
vidro. Óleo unloso que subia para a lâmpada e que a pada estendeu suas asas dentro do quarto."1 Parece
chama dissolvia em sua luz. Mas a luz, para onde que a lâmpada emprega seu tempo em clarear progres-
ia .. .'" sivamente todo o quano_ Asas e mãos de luz vão len-
Sim, a luz de um olhar, para onde ela vai quando tamente roçar as paredes.
a morte coloca seu dedo frio sobre os olhos de um E Léon-Paul Fargue escuta sob a concha do aba-
mono? jur a lâmpada cochichar. Um fluxo e um refluxo de luz,
todos dois bem leves, suspendem e acalmam o manto
de luz: "A lâmpada faz seu cantO leve, suave como é
escutado dentro das conchas.'"
IV Octavio Paz também escuta a lâmpada que
murmura:
"A fraca luminosidade da lâmpada a óleo, lumi-
Mesmo lias horas em que a vida não tem draml\, nosidade que disserta, moraliza, discute consigo mes-
o tempo das lâmpada.. é um tempo grave, em que se ma. Ela me diz que ninguém virá .. ."'o
deve meditar em sua lentidão. Um pocta, sonhador de Parece-me que o silêncio aumenta quando a lâm-
pada fala baixo:
chama, soube colocar esta duração lenta na própria fra-
se que exprime o ser da lâmpada: Um silêncio de sal fazia as lâmpadas tifintarem

... ESla lâmpada atenta e a noite se diz o poeta belga Roger Drucher_ "
combinam .. ."6 A duração do que escorre e a do que queima vêm
harmonizar aqui suas imagens. A lâmpada de Fargue
As duas séries de pontos de suspensâo estâo no é uma grande imagem do tranqüilo e lento tempo. O
texto de Fargue. Assim o poeta nos obriga a dizer em tempo ígneo, na chama da lâmpada, modera seus so-
voz baixa o prelúdio de uma concordância entre a pe-
quena luz e a primeira sombra da noite.
7. Loc. cil~ p. 108.
8. /..t;c. cil~ p. 65.
5. Ik n rl IIO;;CI1 Molkroix. p. 232. 9. f.nc. cil~ p. lOS.
6. Lton-Paul fARGlJ E. fWmf!s. ~guioo d~ Pour (o musiQUI'. Pari s. Gal- 10. Octavio l'AZ, Águia ou Sol? p. 69.
limard. p. 71.
ii Roç.er BRUCHE:~ Vigik$ de (a rigut'llr, p. 21.

98 99

tas de Henri Bosco, onde o lampião e o primeiro mis-


bressaltos. Para falar do fogo da lâmpada, é preciso
tério de um romance psicologicamente misterioso. Es-
respirar em paz.
se romance tem por título Haycinthe. Encont ra-se, aí,
Quantas lâmpadas de Georges Rodenbach nos im-
transformada em moça, o ser Que todos os leitores de
poriam a mesma tranqüilidade! Num s6 verso do Le
Bosco conheceram criança nas duas narrativas: Le Jar-
Miroir du deI nala/II temos esta grande lição: din d'Hyacinlhec Ane cu/olle, Sobrevivendo de um ro-
mance a oulro, as personagens de Bosco são oníricos
Lômpado amiga de lentos olhores de um fogo companheiros de sua vida criadora. Para explicar me-
{calmo. lhor todo nosso pensamento, acrescentaríamos: o lam-
pião também é um companheiro on írico na obra de
A noite chega, acende-se á lâm pada, então é mais Dosco.
do que um momento mecânico vivido pelo poeta das Que grande tarefa seria para um psicÓlogo de des-
lâmpadas: ligamento, apesar da confusão dos sonhos c pesade-
los, conhecer a personalidade desse ser íntimo, desse
o Quarto se espanta. ~ r duplo Que "se parece conosco como um irmão"!
Dessa felicidade que dura. U Conheceríamos então a unidade do scr de nossos de-
\ vaneios. Seríamos realmente os sonhadores de nós mes-
Uma felicidade de luz impregna o quarto do so- mos. Compreenderíamos oniricamente os outros quan-
nhador através da lâmpada. do conhecêssemos a unidade do ser de seus seres so-
Acumularíamos facilmen le uma grande Quantida- nhadores.
de de imagens que contam rapidamente o valor huma- Mas vejamos um po uco mais de perto o lam pião
no das lâmpadas. Essas imagens têm, quando são boas, de Bosco na narrativa: Hyacinthe.
um privilégio de simplicidade. Pareçe que a evocação
de uma lâmpada está certa da ressonância na alma de
um leitor qu e gosta de lembrar. Um haja poético en-
volve a luz da lâ mpada no claro-escuro dos devaneios
que reanimam o passado. v
Mas em vez de d ispersar noSsa demonstração do
valor psicológico da lâmpada sobre múltiplos exemplos
preferimos evoca r uma na rrativa, uma das mais boni- o lampião é o Ser da primeira página. Apenas
seis linhas foram escritas para dizer Que o narrador do
12. Gwl"les ROI)~NBAÇH. u Mirr;li, du ("il'l1!(tlu~ p. 19. livro instalou-se sobre um platô deserto, numa casa de-
13 l..oc. ("/I.• p. 4.
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serta, num jardim vazio, cercado por um muro - até A primeira página de Bosco é então de uma sensibili-
que o lampião interveio, o lampião de um outro, um dade extrema. O ser Que vinha para o platô deserto pro-
lampião distante, um lampião inesperado. Numa pri- curar a solidão é perturbado por um lampião que Quei-
meira leitura, não se adivinha, sob as palavras de ex- ma a Quinhentos metros de sua morada. O lampião de
trema simplicidade, o drama das solidões que é posto, outro atrapa lha o repouso perto de seu próprio lam-
em seu germe, por estas poucas linhas: pião. Há , assim, uma rivalidade de solidões. O ser só
" foi nessa parede, atravessada por uma janela es- Queria ser s6, queria ser o único a ter um lampião sig-
treita, que subitamente, desde a noite da minha cllega- nificativo de solidão. Se o lampião solitário em frente
da, acendeu-se o lampião. Fiquei contrariado. iluminasse trabalhos domésticos, se fosse ap60as um
"Esperei na estrada. Tinha esperança de que os utensílio, o sonhador do lampião meditante que é Bosco
quebra-ventos iriam ser puxados. Mas ninguém puxou- não receberia nenhum desafio, nenhum sofrimento. No
os. O lampião brilhava ainda quando me decidi a en- entanto dois lampiões de filósofo numa mesma vila.
trar. Depois disso, a cada noite, via-o quando se acen- é demais, um está sobrando.
dia, desde as primeiras sombras. O cogito de um sonhador cria seu próprio cosmos,
"Algumas vezes, muito tarde no meio da noite, saía um cosmos singular, um cosmos só dele. Sua fantasia
para o caminho. Queria saber se ele queimava ainda. é prejudicada, seu cosmos é perturbado se o sonhador
"Ele estava lá. Só se apagava ao nascer do dia,." te.m certeza de que a fantasia de outro opõe um mun-
Sem ir mais além, para nós sonhadores de lam- do ao seu próprio mundo.
pião coloca-se um problema: o problema do lampião Então uma psicologia de hostilidades íntimas de-
de um outro. Os fenomenólogos do conhecimento dos senvo lve~se logo nas primeiras páginas de Hyacinthe.
outros não trataram desse problema. Não sabem que Esse lampião ao longe não é sem dúvida "dobrado"
um lampião ao longe é sinal de alguém. sobre si mesmo. É um lampião que espera. Ele vela tão
Para um sonhador de lampião, existem duas es- continuamente que vigia. O platô onde o solitário de
pécies de lampião do outro. O lampião do outro da ma- Bosco procurava a solidão passa a ser então um espa-
nhã e o lampião do outro da noite; o lampião do Pri- ço vigiado. O lampião espera e vigia. Vigia, logo é ma-
meiro a levantar e o lampião do Último a deitar. Bos- lévolo. Todo um fundamento de hostilidades nasce na
co dobrou o problema fazendo face ao lampião que bri- alma do sonhador do qual se veio violar a solidão. A
lha toda a noite. Que lampião do outro é esse? Quem partir daí o romance de Bosco corre sobre um novo ei -
é esse outro dó lampião singular? Todo o romance de xo: já que a lâmpada ao longe vigia o platô, o sonha-
Hyacinthe responde a estas questões. dor atrapalhado por esta vigilância vigiará o vigilante.
Mas sào nas primeiras impressões que devemos de- O sonhador de lampião esconde então seu lampião para
ter-nos para nos instruir na fenomenologia da solidão. espionar o lampião do outro.

102 103
Aproveitamos um texto de Bosco para apresentar nhando com o lampião ao longe que encontra uma aju-
uma nuance pouco estudada da psicologia do lampião. da.
Forçamos um pouco a nota para fazer sentir que o lam- Sobre a planície coberta de neve, "eu via o lam-
pião de um outro poderia suscitar nossa indiscrição, pião: era ele que me retinha. Olhava-o agora com uma
estragar nossa solidão, desafiar nosso orgulho de ve- surda ternura. Haviam-no acendido para mim: era meu
lar. Todas essas nuances, um pouco forçadas, desper- lampião. O homem que velava dentro da noite, tão tar-
[ando a idéia de que o lampião, como lOdos os valo- de, sob sua luz tênue, começo a imaginá-lo parecido
res, pode ser tocado por uma ambivalência. comigo. Algumas vezes, levado para além desta seme-
Mas, no romance quc começa por uma desventu - lhança, era a mim mesmo que imaginava, atento a al-
ra da solidão, o lampião do estranho não tarda a ser, guma meditação que no entanto permanecia impene-
como um bom lampião, socorrista para o sonhador da trável para mim.""
narrativa de Bosco. O sonhador sonha então com a so- O movimento de confiança do sonhador diante do
lidão do outro, para achar um conforto. A reviravolta lampião ao longe não chegava a seu termo. A palavra
se dá a partir da página 17: impenetrável indicava um questionamento recalcado.
"É então que o lampião (ao longe) toma subita- A alternação de confiança e de mistério não se acal-
mente uma importância inesperada. Não que seu brio mava. Para ter sossego era preciso, além dos mistérios
lho tenha se tornado mais vivo no seio dessas tr~as psicológicos, transformar-se realmente no velador sob
precoces", pois ele brilhava sempre com a mesma sua- o lampião. Toda a meditação estende-se em direção a
vidade, porem a luz que irradiava parecia mais fami- C5se desejo: "Atrás do lampião, permanecia essa alma;
liar. Poderia se dizer que o espírito com o qual ilumi- essa alma que eu gostaria de ser."
nava, talvez, os trabalhos ou fantasias, agora achava Demos apenas uma fraca medida da riqueza das
o calor dele mais amigável, gostava de sua calma pre- variações que animam, nessa obra de Bosco, a fanta-
sença. Ele havia perdido, a meus olhos, seu valor de sia sobre o lampião de um outro. Mas mesmo que co-
sinal, sua promessa de espera, para lQrnar-se o lam- mentássemos linha por linha as trinta páginas escritas
pião do recolhimento." por ele, serlamos capazes de indicar objetivamente as
Quando a neve invade o platô, quando o inverno belezas ora delicadas, ora profundas? Lemos e relemos,
pára toda a vida, a solidão transforma-se em isolamen- muitas vezes, Hyacinlhe. Nunca fizemos duas vezes a
to. O sonhador conhece a aflição. Será que ele vai fu - mesma leitura... Que mau professor de literatura tería-
gir da "planície selvagem varrida pelos ventos"? É so- mos dado! Sonhamos demais lendo. Lembramo-nos de-

[5. Hcnri Bosc<J, l/y<K"inrk p. [8.

104 105
mais também. A cada leitura deparamos com inciden-
tes pessoais de sonho, de incidentes de recordação. Uma
palavra, um gesto, pára minha leitura. O narrador de
Bosco puxava seus quebra-\'Cntos para esconder sua luz;
lembro-me das noites em que fazia o mesmo gesto, no
interior de uma casa de antigamente. O marceneiro da
vila havia cortado, no meio de cada posligo das jane-
las, dois corações para que o sol da manhã despertas-
se, assim que surgisse. os moradores. Por isso. à tardi- Ep(wGO
nha e tarde da noite, pelas duas aberluras dos posti-
gos, o lampião, nosso lampião·, projetava dois cora-
çõcs de luz dourada sobre o campo adormecido.

Minha llimpada e meu papel em branco

Lembrando-se de um longínquo passado de tra-


ba lho. reimaginando as imagens tão numerosas mas
também monótonas do trabalhador obstinado. lendo
e meditando sob a lâmpada, fica-se preso a um viver
como sendo o único personagem de um quadro. Um
quano de paredes delicadas e como que apenado so-
bre seu centro, concentrado em torno do Illcditante sen-
tado diante da mcsa iluminada pela lâmpada. Durante
uma longa vida, o quadro recebeu mil variantes. Po-
rém guarda sua unidade, sua vida central. É agora uma
• Em "AlICes, lamplio r Iiml*l& Ii óleo) do dQICnados ptLl mCStl\l. palam';
imagem constante em que se fundem as lembranças e
("""" Ir-' da TI

106 107
as famas ias. O ser sonhando concentra-se ai para lem-
b;ar o ser que trabalhava. Que reconforto, Que nostal- co. A página bra nca! esse grandé deserto a ser atraves-
gia lembrar-se dos quartos pequenos onde se trabalha- sado, jamais atravessado. Essa página branca que con-
va, onde se linha energia para trabal har bem. O verda- tinua branca a cada vigília nâo é o grande sinal de uma
deiro espaço do trabalho solitário é dentro de um quarto solidão sem 11m recomeçada? A solidão se obstina COI1-
pequeno, no drculo ilumi nado pela lâmpada. J ean de tra o soli tário quando é aquela de um trabalhador que
Boschhe sabia disso e escreveu: "Só existe um quano não somente quer se instruir, que não somente quer
estreito que permite o trabalho.'" E a lâ mpada de tra- pensar, mas que quer escrever. Então a página branca
balho põe todo o quarto nos limites internos da dimen- é um nada, um doloroso nada. o nada da escrita.
são da mesa. Como a lâmpada de o utrora, em minh as Sim, se apenas se pudesse escrever! Depois, talvez
lembranças, concentra a morada, refaz as solidõcs da se pudesse pensar. Primum scribere, deinde philosopha-
coragem, minha solidão de trabalhad o r! ri, diz uma tirada de Nietzche. l Mas se está só demais
O trabalhador sob a lâmpada ê assim uma primeira para escrever. A página branca é branca demais, ini-
gravura, válida para mim em mil lembranças. válida pa_ cialmente vazia demais para que se comece a existir real-
ra todos, pelo menos ê o que imagi no. O desenho, te- mente escrevendo. A página branca impõe silêncio. Ela
nho certeza, não precisa de legenda. Não se sabe o Que contradiz a familiaridade da lâmpada. A "gravura"
o traba lhador sob a lâmpada pe nsa, mas sabe-se q ue passa a ter. desde ent ão, dois pólos, o pÓlo da lâmpa-
pensa, q ue está só, a pensar. A primeira gravura traz da e o pólo da página em branco. O trabalhador soli-
a marca de uma sol idão, a marca caracte rística de um tário está dividido entre esses dois pólos. Um silêncio
tipo de solidão. hostil reina então em minha "gravura". Mallarmé não
Como trabalharia melhor, como trabal haria bem vivia em uma "gravura" dividida quando evocou:
se pudesse me reencontrar em uma ou OU'(3 de minhas
" primeiras" gravuras! ... a claridade deserta de uma lâmpada
sobre o papel vaúo que a brancura defende?J

11

_ A solidão aumenta se, sobre a mesa iluminada pela


lampada , se expõe a solidão de uma página em bran-
J. J ...n d. 1IcI('lCII U[ . SltIQ" 1'Ob$t:/lr. p. 19S _
1. NI~Tl.CHt . lA G~, "'."ir_ Ind .• M== <k F .. ~. ft. 2~. rl1llmenlO 3•.
, M 'I ........ ~ 8r"'ir$ m(J,.i~M. IWmn de j<r/IlH'l*
108
109
111 IV

E como seria bom - generoso também com rela-


Para resum ir, no final das contas das experiências
ção a si mesmo - recomeçar tudo, começar a viver es-
da vida, eXperiências esquartejadas, esquartejantes, é
crevendo! Nascer na escrita, pela escrita, grande ideal
bem mais diante .d o meu papel em branco, diantc da
das grandes vigílias solitárias! Mas, para escrever 'na so-
página branca colocada sobre a mesa na j usta distân-
lidão de seu ser, como se se tivesse a revelação de uma cia da minha lâmpada, que realmente estou à minha
página em branco da vida, seria preciso ter aventuras
mesa de existência.
de consciência, aventuras de solidão. Mas, sozinha, a
consciência pode fazer variar sua solidão? Sim, foi em minha mesa de existência que conhe-
Sim, como conhecer, ficando s6. aventuras de ci a exi.~tência máxima, a existência em tensão - em
consciência? Será que se pode encontrar aventuras de tensão para um adiánte, um mais adiante, um acima.
consciência descendo em suas próprias profundidades? Tudo em volta de mim é repouso, é tranqüilidade; meu
Quantas vezes, vivendo dentro de uma de minhas "gra- ser só, meu ser que prj)cura o ser, está estend ido na in-
vuras", acreditei que aprofundava minha solidão. Acve- verossímil necessidade de ser um OUlro ser, um mais
ditei Que descia, espiral por espiral, a escada do ser. que ser. E é assim que com o Nada, com as Fantasias,
~credita-se que se poderá fazer livros.
Mas, em lais descidas. vejo agora que, acreditando pen-
sar, sonhava. O ser não está abaixo. Está acima sem- Mas, quando se termina um pequeno álbum de cla-
pre acima - precisamente no pensamento solitário que ros-escuros do psiquismo de um sonhador. retorna a
trabalha. Logo, seria preciso, para renascer, diante da hora da nostalgia dos pensamentos bem rigidamente
página em branco, em plena juventude de consciência organizados. Eu disse apenas, seguindo meu roman-
colocar um pouco mais de sombra no claro-escuro d~ tismo· de vela, uma metade de vida diante da mesa da
amigas imagens, imagens esmaecidas. Como desforra existência. Depois de lantas fa-ntasias, lama-me uma
seria preciso regravar o gravador - regravar, a cada vi: urgênei_a de me inst ruir ainda, de descartar, em conse-
gília, o próprio ser solitário, na solidão de sua lâmpa- qüência, o pape-l em branco para estudar em um livro,
da, em resumo, ver ludo, pensar tudo, dizer tudo, es- em um livro difkil, sempre um pouco dificil demais pa-
crever tudo em primeira existência. ra mim. N:-o cosão diante de um livro de desenvolvi-
mento rigo 50, o espírito se constrói e se reconstrói.
Toçta transfl "mação de pensamento, todo futuro de
pensamento, está em uma reconstrução do espírito.

110 111

J
Mas será que ainda há tempo para mim de reen-
contrar o trabalhador que eu con hecia tâo bem e de
fazê-lo entrar de novo em minha gravura?

"2

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