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Capitalismo, esquizofrenia e raça

O negro e o pensamento negro na modernidade ocidental

Ingrid Robyn
Universidade de Nebraska-Lincoln, Nebraska, EUA

Mbembe, Achille. Crítica da razão negra. ções entre o pensamento racial no mundo
1. ed. Lisboa: Antígona, 2014. Tradução de ocidental e a emergência da modernidade
Marta Lança. em sua relação intrínseca com o desenvolvi-
mento do Estado moderno e do capitalismo,
sobretudo da chamada acumulação primi-
Crítica da razão negra, de Achille tiva do capital (que, diga-se de passagem,
Mbembe (original em francês pela editora tanto Mbembe como a teórica italiana Silvia
La Découverte, 2013), é um desses livros Federici não veem como uma etapa supe-
que nasceu já clássico: clássico não no sen- rada do desenvolvimento do capitalismo, e
tido de antigo, ou imune à passagem do sim como algo ainda em curso). Situando-se
tempo, mas no sentido borgeano de ter sido entre a filosofia, a história e a crítica, Críti-
escolhido por uma comunidade de leitores ca da razão negra é, ao mesmo tempo, uma
como leitura obrigatória. E o livro é, de fato, abrangente e provocadora reflexão sobre os
leitura obrigatória não apenas para aqueles conceitos de “raça”, “negro” e “África” no
que se interessam pela questão do “negro”,1 ocidente, e um panorama histórico das re-
mas para todos aqueles que, de alguma for- lações raciais no mundo ocidental entre os
ma, se interessam pela relação entre raça e séculos XV e XXI. Ao mesmo tempo que
modernidade, ou posto de outra maneira: analisa os processos históricos dos quais de-
raça, Estado e mercado. Porque o que o au-
rivam estes conceitos, Mbembe também nos
tor denomina devir-negro do mundo é, con-
oferece um recorrido do que eu chamaria
cretamente, uma teoria explicativa das rela-
“pensamento negro” — a sua “razão negra”
1
“Nègre” no original, “black” na tradução ao inglês. —, dialogando criticamente com uma série
Como veremos adiante, Mbembe analisa a categoria de filósofos, teóricos e escritores negros que
“negro” como uma construção histórica de longa du-
ração que não se refere apenas aos sujeitos africanos e
se debruçaram sobre a sua condição e refleti-
afrodescendentes, mas ao contrário se constrói como ram sobre as possibilidades de emancipação
sinônimo de uma outredade absoluta; trata-se, por- do negro no mundo ocidental; uma tradição
tanto, de uma “ficção útil” que ultrapassa a questão
da cor da pele, a origem ou a localização geográfica cujo ponto alto o autor localiza entre as dé-
do sujeito negro. cadas de vinte e setenta do século XX, mas
DOI - http://dx.doi.org/10.1590/2237-101X01803612
Resenha recebida em 5 de junho de 2017 e aprovada para publicação em 21 de agosto de 2017.
* Professora do Departamento de Línguas e Literaturas Modernas/Instituto de Estudos Étnicos. Universida-
de de Nebraska-Lincoln. E-mail: irobyn2@unl.edu.

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de cuja ideias ele se apropria para pensar o três anos antes da sua tradução ao inglês,
século XXI. quando o mercado de editoras acadêmicas
Apesar de que percorre um longo ca- nos Estados Unidos — para ficar apenas
minho histórico, a maior parte do livro se com os Estados Unidos — é reconhecida-
concentra em dois momentos históricos mente mais ativo e mais lucrativo que o
especialmente paradigmáticos da história mercado editorial português tomado em seu
das relações entre Europa e África, assim conjunto?
como a construção dos conceitos de “negro” A pergunta permite um sem-fim de hi-
e “raça”: o pensamento ilustrado do século póteses. Uma hipótese seria a de que foram
XVIII francês e o colonialismo europeu so- os portugueses os primeiros europeus a ocu-
bre o continente africano no século XIX. Se par as costas africanas e estabelecer o tráfico
bem faz remontar o termo “negro” ao século de escravos daquele continente, para o resto
XVI, e conceda especial atenção à manei- do mundo. A teoria, no entanto, é preguiço-
ra como esta categoria opera nas Américas sa: sabemos do papel de companhias ingle-
francesa e inglesa, é durante o iluminismo sas no tráfico de escravos de origem africana
e o neocolonialismo europeus que Mbembe e, mais importante, do papel preponderante
localiza o ponto nodal da construção do ne- das colônias da América do Norte no que
gro como sujeito racializado no Ocidente e, diz respeito à construção da categoria “ne-
como tal, contraponto à humanidade encar- gro”. Além disso, tal hipótese apelaria ao na-
nada pelo “branco”: cionalismo português, algo do que o livro de
Mbembe se afasta de forma notável.
o Negro e a raça têm significado, para os Outra hipótese seria o interesse que o
imaginários das sociedades europeias, a livro poderia suscitar em outros países de
mesma coisa. (...) a sua aparição no saber e língua portuguesa, sobretudo as ex-colônias
no discurso modernos sobre o homem (e, portuguesas na África e o Brasil. Mais con-
por consequência, sobre o humanismo e a dizente, esta hipótese não explica o outro
Humanidade) foi, se não simultâneo, pelos lado da história: o fato de que o livro tenha
menos paralelo; e, desde o início do século demorado tanto em publicar-se em língua
XVIII, constitui, no conjunto, o subsolo inglesa, quanto Mbembe na verdade con-
(inconfessado e muitas vezes negado), ou fere certo protagonismo à Inglaterra e aos
melhor, o núcleo complexo a partir do Estados Unidos tanto no que diz respeito
qual o projeto moderno de conhecimento ao tráfico negreiro e à escravidão como à
— mas também de governação — se construção das fabulações responsáveis pelo
difundiu. (p. 10) surgimento da figura do negro, e que em úl-
tima instância determinariam os rumos da
Antes de entrar a fundo no conteúdo do ideologia racial na modernidade.
texto, no entanto, proponho uma pergunta: Uma possível resposta encontra-se, tal-
por que a tradução portuguesa do livro saiu vez, na tese central que Mbembe desenvolve
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ao longo deste livro, e que encontra particu- partida, o questionamento das categorias
lar resistência no mundo anglo-saxão: a ideia “negro” e “África”, e com elas, da noção de
de que o liberalismo — tanto econômico, “raça”. Para Mbembe, o negro é uma ficção,
como político — não é incompatível com a um conjunto de fabulações elaboradas no
escravidão e o racismo; ao contrário, é o libe- esteio do capitalismo mercantil e do estabe-
ralismo que cria o negro e a noção de “raça”, lecimento do sistema de plantação. A criação
indissociável desta figura. Para Mbembe, ao da categoria “negro”, à qual logo se vincu-
mesmo tempo que o Estado moderno surge laria a noção de “raça”, teria por finalidade
com e para o mercado global — é a máquina estabelecer uma diferença radical, entendida
de guerra do Estado moderno que permite como insuperável, entre a humanidade eu-
a empresa colonial, isto é, a escravidão em ropeia e esse outro, o negro, sobre o qual se
massa, o sistema de plantação e a acumula- projetam todo tipo de medos e ansiedades.
ção primitiva de capital —, o liberalismo é Esse outro, prossegue Mbembe, não seria
a ideologia que justifica esta operação. Ob- homem no sentido pleno da palavra, mas
viamente, Mbembe diferencia os processos sim objeto: pré-humano, vivendo em esta-
históricos e ideologias específicos que distin- do primitivo, incapaz de autogovernar-se,
guem o colonialismo dos séculos XV-XVIII, o negro seria então reduzido à condição de
daqueles que irão caracterizar o século XIX escravo — mercadoria e trabalho — e a em-
e boa parte do século XX. No entanto, o au- presa colonial justificada como obra “civili-
tor não observa uma real ruptura entre esses zatória” e inclusive “humanitária”; algo que,
dois tipos de colonialismos — e capitalismos segundo o autor, continuaria informando o
— no que diz respeito à questão do negro. neoliberalismo do século XXI e os processos
Ao contrário, é o surgimento da noção de de globalização.
humanidade, no esteio do iluminismo e o Junto com as categorias “negro” e “raça”,
liberalismo, o que garante a definitiva sepa- surge a “África”, terra desconhecida e que
ração desta entre “brancos” — sinônimo de não se quer conhecer, sobre as quais se pro-
“homem”, neste contexto — e “negros” — jetariam também uma série de fabulações.
vistos como uma outredade absoluta, como A partir de então, negro e África passariam
espécie de semi-homens cuja diferença radi- a ser diretamente associados: o colonialismo
cal frente ao “homem branco” justificaria a e o desenvolvimento do capitalismo dariam
empresa colonizadora. Nos termos de Wal- lugar, ao mesmo tempo, a uma territoriali-
ter Migonolo, seria no século XVIII que se zação da raça e racialização do espaço. Essa
processa a separação dos homens entre hu- associação sine qua non entre negro e Áfri-
manitas e anthropos. ca é algo que os próprios sujeitos negros
É esta a tese que o autor desenvolve nos abraçariam em seus primeiros intentos de
três primeiros capítulos do livro, “A questão emancipação, reclamando sua “africanidade
da raça”, “O poço da alucinação” e “Dife- essencial” como parte de sua identidade, e
rença e autodeterminação”. Seu ponto de canibalizando assim o discurso europeu.
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Outro aspecto fundamental destes capí- que “é necessário, por um lado, produzir
tulos são as íntimas relações que se estabele- a liberdade, mas esse próprio gesto
cem entre o Estado moderno, o mercado e implica que, do outro lado, se estabeleçam
o racismo. Para Mbembe, o Estado moder- limitações, controles, coerções, obrigações
no surge como instrumento do mercado e apoiadas em ameaças, etc.” A produção
produto da razão mercantilista, a partir dos da liberdade tem portanto um custo cujo
quais não apenas se estabelece uma partilha princípio de cálculo é, acrescenta Foucault,
do mundo, mas uma partilha na qual a raça a segurança e a protecção. Por outras
ocupa um papel central. Se o principal ob- palavras, a economia do poder característica
jetivo da lei e da burocracia é a coerção e do liberalismo e da democracia do mesmo
controle dos corpos, e o medo é o principal tipo assenta no jogo cerrado da liberdade,
instrumento do Estado — como já afirmara da segurança e da protecção contra a
Michel Foucault —, é sobre o negro que irá omnipresença da ameaça, do risco e do
se projetar este medo, e portanto sobre seu perigo. (...) O escravo negro representa
corpo que se exercerá o controle do Estado. este perigo. (p. 143)
Além do mais, o surgimento do direito mo-
derno, na Europa, implicou entender tudo É neste sentido que o liberalismo e in-
o que está além dela — homens incluídos clusive o discurso sobre direitos humanos
— como ao mesmo tempo além e aquém solidificam o racismo. O liberalismo econô-
da lei. Para Mbembe, o Estado moderno e mico tem por base o comércio de escravos,
o liberalismo surgem, então, como instru- responsável pelo desenvolvimento do capita-
mentos biopolíticos por excelência que irão lismo e pelo que hoje chamamos globaliza-
permitir e justificar a escravização do negro ção. Neste contexto, o negro ocupa o papel
— entendido como ameaça, como conjun- de mercadoria e de matéria energética: ele
to de fabulações e de disparates que por sua é, ao mesmo tempo, homem-mineral (não
vez disparam afetos —, o estabelecimento homem, natureza), homem-metal (escravo,
do sistema de plantação e, com isto, de um instrumento de extração) e homem-moeda
mercado global: (produtor de mercadorias e mercadoria em
si mesmo). Por sua vez, o liberalismo polí-
No ensaio La Naissance de la biopolitique, tico e o discurso sobre os direitos humanos,
Foucault defende que, na origem, o herdeiro do iluminismo, utilizam a escra-
liberalismo “implica intrinsecamente vidão como metáfora da condição humana
uma relação de produção/destruição em seu conjunto, ao mesmo tempo que apa-
[com] a liberdade”. Esquece-se de explicar gam a existência do racismo sob a bandeira
que, historicamente, a escravatura dos da igualdade e da fraternidade: trata-se de
Negros representa o ponto culminante um discurso universalizante que, por isso
desta destruição da liberdade. Segundo mesmo, é incapaz de dar conta da diferença
Foucault, o paradoxo do liberalismo é histórica sobre a qual se fundam as catego-
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rias “negro” e “raça”. Ao contrário, sugere gro” como categoria de autodeterminação,


Mbembe, trata-se de reafirmá-las ante a su- e não mera projeção alheia.
posta impossibilidade de conciliação entre a Paralelamente à descrição dos processos
“raça branca”, portadora de humanidade e históricos que discute, Mbembe vai deslin-
cidadania plenas, e a “raça negra”: dando o pensamento negro, a sua “crítica da
razão negra”, à que irá se dedicar de maneira
O direito é, portanto, neste caso, uma mais direta a partir do capítulo três. Duran-
maneira de fundar juridicamente uma te os séculos XV-XVIII, o negro expressa
certa ideia de Humanidade enquanto uma espécie de cisão a partir do qual habi-
estiver dividida entre uma raça de ta a si mesmo como um outro, expressando
conquistadores e uma raça de servos. Só mesmo um desejo de ser outro — como já o
a raça de conquistadores é legítima para havia sugerido Franz Fanon. Neste primeiro
ter qualidade humana. A qualidade do ser momento, o negro abraçaria os discursos e
humano não pode ser dada como conjunto fabulações que o constroem como tal e lhe
a todos e, ainda que o fosse, não aboliria as retiram a sua humanidade, ao mesmo tempo
diferenças.2 (p. 111)
que está obrigado a reconhecer sua condição
humana. Mesmo com o fim do tráfico de es-
O século XIX concluiria o trabalho
cravos e os movimentos de emancipação do
de exclusão a partir do qual a África e o
século XIX, afirma Mbembe, o pensamento
negro se vêm separados da “história da ci-
negro reproduziria as três respostas elabo-
vilização”: sem lei e nem razão, a África e
radas pelo Ocidente no que diz respeito ao
o negro deveriam ser paulatinamente “in-
“problema africano”: a noção de que África
troduzidos” ao processo civilizatório sob a
representaria uma humanidade sem história,
égide europeia. A noção de “decadência do
aquém da razão e da lei; a noção de que a
ocidente”, bastante popular nas primeiras
diferença radical do negro é algo a emendar-
décadas do século XX, e o exotismo com
-se, para o qual se faria necessário adminis-
o qual se recobre o continente africano —
trar, ainda que de forma indireta, tanto os
visto pela vanguarda europeia e também
caribenha como portador de uma vitalida- escravos libertos e seus descendentes como o
de perdida no velho continente —, não fa- continente africano como um todo; a ideia
zem senão reafirmar esses discursos, ainda de que o negro deve assimilar-se ao projeto
quando se buscava reivindicar o termo “ne- civilizatório europeu para tornar-se um ser
humano e um cidadão.
2
Mbembe se refere aqui ao direito moderno, e que Se nesse primeiro momento o negro ex-
continua informando tanto o funcionamento do Es-
tado como o discurso sobre direitos humanos. Fun-
perimentaria um processo de desapropriação
dado numa noção universalizante de humanidade, e de degradação, num segundo momento, o
o discurso sobre direitos humanos, de acordo com pensamento negro se caracterizaria pela viti-
Mbembe, teria como resultado a obliteração da cisão
fundamental que se estabelece a partir da própria mização. Para Mbembe, o pensamento ne-
criação da categoria “homem”. gro do século XIX e inícios do século XX te-
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ria sido incapaz de escapar do universalismo mo. Neste sentido, a memória da colônia se
e humanismo liberal-ilustrados, abraçando a apresentará como ponto fulcral da literatura
noção de reabilitação como forma de afir- negra, e com ela, o problema do olhar: é o
mar a sua humanidade. Neste contexto, o olhar do colonizador que cria o negro, um
pensamento negro não nega, mas sim incor- olhar que não vê mais além de um corpo
pora a noção de raça, fazendo dela funda- sobre o qual projeta todo tipo de ansiedade
mento para sua ideia de nação: sexual, e que se alimenta da sua própria ig-
norância:
A reafirmação de uma identidade humana
negada por outro participa, neste sentido, África propriamente dita — à qual
do discurso da refutação e da reabilitação. acrescentaria o Negro — só existe a partir
Mas se o discurso da reabilitação do texto que a constrói como ficção do
procura confirmar a co-pertença negra outro. (...) Por outras palavras, África só
à Humanidade, não recusa, no entanto existe a partir de uma biblioteca colonial
— exceto em raros casos —, a ficção de por todo o lado imiscuída e insinuada, até
um sujeito de raça ou da raça em geral. no discurso que pretende refutá-la, a ponto
Na realidade, abraça esta ficção. Isto é de, em matéria de identidade, tradição
tão válido para a negritude como para as ou autenticidade, ser impossível, ou pelo
variantes do pan-africanismo. (p. 158) menos difícil, distinguir o original da sua
cópia e, até, do seu simulacro. (p. 166)
Além disso, e como vítima, o negro pas-
saria a ver a sua própria história como série Outro aspecto que Mbembe associa à
de fatalidades causadas por um inimigo ex- colônia é seu papel como produtora de de-
terno, planteando a necessidade de superar o sejos e alucinações. A colônia, afirma ele, faz
seu passado e inclusive esquecê-lo, para po- circular no continente africano toda uma
der gerar uma possibilidade de futuro. série de mercadorias e bens simbólicos que
É este, em grande medida, o tema do excitam o desejo dos colonizados, que pas-
capítulo quatro deste livro, “O pequeno se- sam quase imediatamente a ser considerados
gredo”, dedicado à questão da memória e ao signos de prestígio, status, classe etc. Nes-
que o autor denomina “modos de inserção se sentido, a colônia é, também, objeto de
da colônia no texto negro”. Como origem da desejo. Sua memória, então, apresenta-se à
cisão fundamental a partir da qual emerge o literatura africana como algo que ultrapassa
negro, locus de uma perda originária, a co- os limites daquilo que a linguagem pode ex-
lônia será contraditoriamente algo comemo- pressar, mas também como inelidível.
rado e relegado ao esquecimento. A colônia, O quinto capítulo de Crítica da razão ne-
afirma Mbeme, se apresenta para o negro ao gra, “Réquiem para o escravo”, está dedica-
mesmo tempo como violência e como espé- do quase exclusivamente à literatura negra.
cie de espelho no qual se reconhece a si mes- Neste capítulo, Mbembe se debruça sobre

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certos motivos correntes na literatura con- sobretudo, de Fanon, e estendendo a questão


temporânea, e que remetem à duplicidade de do negro ao que o autor chama “novos con-
que nela se recobre a figura do negro: reverso denados da terra”, Mbembe afirma que qual-
da humanidade, mas incapaz de ignorar sua quer projeto efetivamente emancipador, nos
condição humana, o negro se identifica com dias de hoje, requer que o negro abandone o
seu duplo, a sua sombra, convertendo-se em papel de vítima, por um lado, e que os colo-
espécie de fantasma, alienado do próprio nizadores assumam a sua responsabilidade,
corpo. Na realidade — e aqui Mbembe se de outro. Trata-se, segundo ele, de insistir
afasta notavelmente do marxismo clássico na lógica da justiça; algo que se observa em
—, dissociar-se do próprio corpo, metamor- movimentos negros contemporâneos como
fosear-se, seria condição fundamental para a Black Lives Matter:3
emancipação do negro, uma vez que a ope-
ração básica do capitalismo racial consiste Enquanto persistir a ideia segundo a qual
precisamente em converter o negro em cor- só se deve justiça aos seus e que existem
po para o trabalho, isto é, em objeto. raças e povos desiguais, e enquanto se
O último capítulo do livro, “Clínica do continuar a fazer crer que a escravatura
sujeito”, nos oferece um recorrido do pen- e o colonialismo foram grandes feitos
samento negro no século XX, analisando da “civilização”, a temática da reparação
criticamente diferentes propostas de eman- continuará a ser mobilizada pelas vítimas
cipação que marcaram o período: especifica- históricas da expansão e brutalidade
mente, as de Marcus Garvey, Aimé Césaire, europeia no mundo. Neste contexto, é
Franz Fanon e Nelson Mandela. Após co- necessária uma dupla abordagem. Por
mentar em detalhe cada um desses pensado- um lado, é preciso abandonar o estatuto
res, Mbembe propõe dividir o pensamento de vítima. Por outro, é preciso romper
negro contemporâneo em dois períodos: um com a “boa consciência” e a negação
primeiro no qual o desejo de autodetermi- da responsabilidade. Será nesta dupla
nação passaria pela afirmação da diferença e condição que é possível articular uma
celebração da negritude, do qual o exemplo política e uma ética novas, baseadas na
máximo seria Aimé Césaire; e um outro, o exigência de justiça. (p. 297)
do século XXI, no qual se abraçaria o sig-
nificante negro não como forma de autoa- Seria impossível dar conta aqui de toda a
firmação ou autocompadecimento, mas sim riqueza intelectual e gama de ideias que de-
para melhor livrar-se dele. Para Mbembe,
3
Refiro-me ao principal slogan do movimento BLM,
o atual mundo globalizado requereria uma “No justice, no peace!” (Sem justiça não há paz!),
crítica radical da raça, tanto política como mas também ao fato de que o movimento rejeita a
ética, a partir da qual seria possível passar de “boa consciência branca”, que via de regra se limita
a converter o negro em vítima e portanto reproduz
uma afirmação da diferença para uma afir- a lógica paternalista a partir da qual operam as rela-
mação da comunidade humana. Valendo-se, ções raciais.

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senvolve Achille Mbembe nesse livro. Para europeu — o negro como homem de ori-
finalizar, ressaltaria a contribuição teórica gem ou descendência africana — as teses
que oferece o autor, que compartilha com desenvolvidas em Crítica da razão negra,
Fanon a qualidade de não poupar a sensi- como indica o próprio autor, referem-se an-
bilidade do leitor. Claramente inspirado tes ao que ele denomina um devir-negro do
nas obras de teóricos como Gilles Deleuze mundo; expressão que introduz a possibili-
e Michel Foucault, Crítica da razão negra dade de pensar outros sujeitos racializados
responde a esses teóricos apontando a cen- — muçulmanos, por exemplo — como os
tralidade do negro e da noção de raça para “novos negros” do mundo contemporâneo, e
o desenvolvimento da modernidade. Ao que reforça a ideia de que a categoria negro
mesmo tempo, Mbembe incorpora em sua não passa de uma ficção útil. Não humano
escritura as contribuições de toda uma série ou sub-humano, e ainda, ameaça ao mundo
de teóricos negros — africanos, caribenhos dos “brancos” — o que equivale a dizer, à
e norte-americanos —, e até mesmo de teó- “humanidade” mesma — o negro é portan-
ricos latino-americanos como Walter Mig- to passível de ser explorado, isolado do resto
nolo. Trata-se portanto de um arcabouço da “humanidade” e, inclusive, exterminado.
teórico que apenas em aparência deriva di- Neste sentido, Crítica da razão negra oferece
reta ou exclusivamente da tradição francesa. não apenas chaves fundamentais para pen-
Ao demonstrar a relação inelidível entre o sar-se a experiência do outro na modernida-
pensamento sobre raça no Ocidente, a cons- de, mas também a sua emancipação; aspecto
tituição do Estado moderno e o mercado, fundamental para o desenvolvimento da hu-
Mbembe desloca o centro de preocupações manidade mesma.
da crítica de esquerda europeia da história
do capital e dos chamados direitos humanos Como citar
para a questão da raça. Ao mesmo tempo, o Mbembe, Achille. Crítica da razão negra.
autor denuncia também as contradições do Lisboa: Antígona, 2014. Tradução de Marta
pensamento libertário e nacionalista negros, Lança. 1. ed. Resenha de ROBYN, Ingrid.
ressaltando suas dívidas para com a “razão Capitalismo, esquizofrenia e raça. O negro
branca” e insuficiências no que diz respeito e o pensamento negro na modernidade oci-
a qualquer perspectiva de futuro. Por fim, dental. Topoi. Revista de História, Rio de Ja-
apesar de enfocar-se na questão do negro em neiro, v. 18, n. 36, p. 696-703, set./dez. 2017.
sua relação com a África e o colonialismo Disponível em: <www.revistatopoi.org>.

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