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REFERÊNCIAS
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1. FÓRUM DE PESQUISADORES DAS SUBÁREAS SOCIOCULTURAL E PEDAGÓGICA. Cenários de um descompasso
da Pós-Graduação em Educação Física e demandas encaminhadas à CAPES. Disponível em:
<http://www.cbce.org.br/noticias-detalhe.php?id=1074>. Acesso em: 02 de abr. 2017.
SEÇÃO I
A AUTOFAGIA DE UM CAMPO
Em 2015 foi publicado na revista Nature o “Manifesto de Leiden sobre métricas de
pesquisa” dos autores Hicks et al. Neste artigo, é discutido que as formas como estão
sendo conduzidas as métricas de avaliação produzem distorções e julgamentos que não
representam de fato a competência e relevância de determinado grupo de pesquisa ou
pesquisador. Essa adoção métrica mundial tem alterado todo um modus operandi de
instituições e pesquisadores que acabam por reverberar um conjunto de ações que
induz a produção desenfreada, que quantifica e qualifica a partir do número, impacto e
citações de artigos. Com isso, as agências de fomento ou mesmo as Universidades criam
hierarquias pautadas nesses critérios gerando um ciclo vicioso e, muitas vezes, falho.
Ainda no manifesto, são elencados dez princípios das melhores práticas de avaliação.
Incorporando o discurso da importância do fator de impacto, esses princípios foram
publicados em um dos periódicos mais bem conceituados do mundo. Destacamos o 6º
princípio que tem como título “Considerar as diferenças entre áreas nas práticas de
publicação e citação”. Assim diz: “A melhor prática de avaliação é selecionar um
conjunto de possíveis indicadores e permitir que as distintas áreas escolham aqueles
que lhes são mais adequados” (HICKS et al., p.4).
Os atuais critérios construídos pela CAPES usam uma classificação considerando as
bases de indexação e as medidas de impacto bibliométrico, que por razões
epistemológicas, conduziram e conduzem o campo da Educação Física a uma espécie
de polarização. De um lado, a subárea Biodinâmica, e de outro, as subáreas
Sociocultural e Pedagógica, considerando-se a proposta de Manoel e Carvalho (2011)
quanto à atual divisão do campo da educação física:
Ao longo deste período inicial dentro do campo da Educação Física, percebe-se que a tentativa de
adequar-se a parâmetros de áreas completamente diferentes ameaça, senão a sobrevivência, a
identidade ou originalidade da contribuição das humanidades (p. 114).
No mesmo tom, Hallal e Melo (2017) alertam para as consequências dessa divisão:
A seguir esse processo, inviabilizaremos o convívio entre as diferentes subáreas da Educação Física.
Com isso, daremos ‘‘um tiro no pé’’, esvaziaremos a força de nossas reivindicações e a importância de
nossa disciplina, algo que em última instância não vai fazer bem para qualquer um de nós envolvidos,
tampouco para a sociedade brasileira (p. 326).
O que causa inquietude naqueles que conduzem suas pesquisas no âmbito das
subáreas Sociocultural e Pedagógica é que essas reivindicações por paridade já
ultrapassaram mais de uma década e as demandas parecem muitas vezes as mesmas
de 13 anos atrás, como já denunciavam Betti e outros (2004): “Muitos docentes-
pesquisadores da subárea pedagógica/sociocultural concordam que a manutenção dos
critérios atuais de valoração das publicações poderá extinguir essa subárea em curto
prazo” (p. 188 ).
O campo da Educação Física em sua formação primária está dividido em
bacharelado e a licenciatura. Tais cursos têm (ou deveriam ter) características distintas,
onde o primeiro habilita o graduado ao mercado de trabalho da área, com exceção do
ambiente escolar, ao passo que a licenciatura o habilita para atuação na educação
básica. É possível depreender, a partir da pluralidade de possíveis intervenções, a
importância de se valorizar todas as subáreas da Educação Física. Apesar de haver
debates sobre a pertinência desse modelo ou de uma formação unificada, ainda o
licenciado representa a maioria de profissionais que são lançados no mercado de
trabalho.
Em 01 de agosto de 2017, uma pesquisa divulgada no portal G1, mostra números
sobre o ingresso nos cursos de Educação Física pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu),
que podem apontar uma tendência do campo. Em 2015, segundo a pesquisa, 35 mil
estudantes se formaram em educação física, sendo que 60% destes em licenciatura.
Contudo, apesar de ser a maioria, em 2010 esse percentual era de 71%. Ainda segundo a
pesquisa, a Educação Física foi a 11ª profissão em número de abertura de vagas entre
2009 e 2012. Esse crescimento no número de bacharéis é atribuído à expansão das
academias e à legitimação da Educação Física no campo da saúde. Soma-se a isso a
desvalorização do profissional de educação que constantemente vêm perdendo
prestígio em nossa sociedade.
Silva, Sacardo e Souza (2014) apresentam diversas ações das políticas do Plano
Nacional de Pós-Graduação dos últimos dois ciclos (2005-2010 e 2011-2020) que vêm
sendo objeto de indução e envolvem a Educação Básica. Os autores denominam tais
ações como “Pacote CAPES para a Educação Básica Brasileira2”. No bojo dessas
proposições coadunamos com ideia de que a Educação Física tem forte vinculação ao
campo da Educação. Apesar dessas ações e observando a pesquisa citada, o que vemos
é uma retração do campo de formação dos licenciados. Essa tendência é ainda, ao nosso
ver, ratificada pela política de avaliação imposta pela área 21, onde se percebe uma
dificuldade cada vez maior dos orientadores vinculados às subáreas Sociocultural e
Pedagógica em permanecerem credenciados ou ainda se credenciarem nos programas,
o que a médio e longo prazo ocasionará uma redução de vagas para profissionais que
buscam aperfeiçoar-se nos preceitos das ciências humanas e sociais no campo da
educação física, em especial aqueles afetos a subárea pedagógica.
Essa perspectiva desvela o alinhamento do campo acadêmico ao processo contínuo
de desvalorização do professor da educação básica. A discrepância nos critérios de
avaliação da CAPES já pode ser sentida quando se busca desenvolver pesquisas em
nível de doutorado. Como exemplo, no Rio de Janeiro, há apenas cinco professores que
se filiam originalmente às subáreas Sociocultural e Pedagógica que, em tese, são
aquelas que têm uma demanda maior por profissionais vinculados ao âmbito escolar.
Entendemos que são realizados estudos na Biodinâmica vinculados à escola, mas
hegemonicamente esse não é o foco das pesquisas que dão os contornos a essa subárea.
A redução de vagas para esses profissionais que buscam aperfeiçoamento e
pesquisas nessa esfera desacelera o desenvolvimento do campo da Educação Física
dentro da escola. Destacamos que as discussões sobre como enfrentar a desvalorização
do profissional têm espaço privilegiado também na área Sociocultural. Assim, as três
subáreas se complementam, devendo ser buscada uma equiparação de possibilidades.
De fato, concordamos com Lazzarotti Filho e outros (2014) ao afirmar que as
disputas dentro do campo da Educação Física sempre aconteceram. Desde os anos de
1930 quando médicos e militares buscavam a construção do campo, até os anos de 1980
quando o pensamento renovador foi determinante para romper com uma visão
marcadamente biologicista, há uma atuação interventiva e de produção do
conhecimento polarizada dos atores envolvidos. Sobre o quartel final do século XX
destacamos Oliveira (1985), Coletivo de Autores (1992) e Kunz (1994), que dentre outros
autores, trouxeram à discussão novas características necessárias ao professor de
educação física. Desde então, conhecer o corpo humano e ensinar a “jogar bola”,
tornou-se muito pouco para uma formação global do professor.
Esta crise teórica, concomitantemente à uma crise epistemológica que colocava em
xeque se a Educação Física era uma ciência ou um campo interventivo acompanhou a
produção do conhecimento a partir do final da década de 1980 e foi essencial para
desencadear uma maior criticidade em toda uma geração de professores. De modo
ilustrativo, a Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, especialmente entre 1985 e o
início dos anos 2000, tornou-se um pólo importante de discussões no âmbito das
subáreas Sociocultural e Pedagógica. Docentes como Victor Marinho de Oliveira,
Manoel Gomes Tubino, Hugo Lovisolo, Nilda Teves, Sebastião Votre, Helder Guerra de
Resende, dentre outros, foram marcantes para a deflagração, manutenção e discussão
de referenciais teóricos advindos das ciências humanas e sociais, que muito
contribuíram para a área.
E se fosse hoje?
Possivelmente aconteceria com alguns desses professores o que relatam Silva,
Sacardo e Souza (2014), uma migração de mentes da Educação Física para outras áreas.
Os autores apresentam um quadro com diversos doutores que atuam em todo o Brasil
em outros programas de pós-graduação, que não aqueles ligados à Educação Física. De
fato, essa tendência se materializa, como também detectado em Baptista e Lüdorf
(2016), a partir do estudo do conceito de educação do corpo, cuja utilização é feita
primordialmente por professores de Educação Física que atuam na área da educação.
Com essa fuga de nossos intelectuais para outras áreas, perdemos oportunidades de
avançarmos nas mais variadas possibilidades de desenvolvimento das questões da
Educação Física.
Lazzarotti Filho et al. (2014) e Castro et al. (2017) já discutem essa tensão entre as
subáreas à luz da Teoria do Campo de Pierre Bourdieu. Essas reflexões ajudam a dar
contornos mais exatos ao fenômeno que vem se configurando como autofágico. Essa
disputa dentro do campo em busca de uma maior demarcação por espaço social forja
um habitus 3 próprio oriundo das lutas entre os agentes e instituições em torno do
capital específico e dos objetos de disputa.
O campo científico é um mundo social e como tal, faz imposições e solicitações, que
são, no entanto, relativamente independentes das pressões do mundo social global que
o envolve. Os campos se apresentam segundo Bourdieu (1983, p. 89) “Como espaços
estruturados de posições, cujas propriedades dependem das posições nestes espaços,
podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes”.
Com base no conceito de campo de Bourdieu (1983), invariavelmente existe uma
relação entre o microcosmo e o macrocosmo, mas o primeiro dispõe de certa
autonomia, que varia de campo para campo. Essa relativa autonomia é que torna as leis
internas dos campos ou subcampos (talvez subáreas) distantes do macrocosmo.
Identificar essa autonomia é um dos dilemas na elucidação da construção e
funcionamento do campo. Por isso, interessa-nos saber qual a natureza das pressões
externas, a forma sob a qual elas se exerceram e sob quais formas se manifestam as
resistências que caracterizam a autonomia, ou seja, quais são os mecanismos que o
microcosmo aciona para se libertar dessas imposições externas e ter condições de
reconhecer apenas suas próprias determinações internas.
As pressões externas são em grande parte observadas a partir da necessidade de
internacionalização do campo de pesquisa da Educação Física. O Fórum de
pesquisadores das subáreas Sociocultural e Pedagógica, realizado em 2014, discutiu que
apesar da língua inglesa ser predominante, essa se articula em maior escala com as
Ciências Naturais sendo para as Ciências Humanas e Sociais, apenas mais uma
opção:“Condicionar a permanência das subáreas sociocultural e pedagógica à
priorização de veiculação de sua produção em periódicos de língua inglesa é uma
atitude que pode ter todos os motivos menos o racional e o acadêmico (p. 8).
Segundo o Fórum (p. 6):
O fator de impacto dos periódicos das ciências sociais e humanas será sempre menor do que o das
ciências naturais por força do modo de cálculo que desconsidera peculiaridades da constituição
bibliométrica de cada ciência, logo, os docentes das subáreas sociocultural e pedagógica sempre
estarão em desvantagem em relação a seus colegas da subárea biodinâmica quando o elemento de
comparação for fator de impacto, índice h, entre outros.
Neste processo, perde-se a especificidade dos sociólogos em revistas espanholas de alto impacto: temas
como leis trabalhistas locais, serviços de saúde familiar para idosos ou empregabilidade de
imigrantes. Os indicadores baseados nas revistas de alta qualidade publicadas em outros idiomas
diferentes do Inglês devem identificar e premiar as áreas de pesquisa de interesse local (p.3).
Assimetrias internas da área também têm sido observadas em que a subárea da Educação Física
apresenta o maior número de programas (32 Mestrados e 18 Doutorados), a subárea da Fisioterapia
apresenta o segundo maior volume de programas (20 Mestrados e 10 Doutorados). A Fonoaudiologia
apresenta um número menor de programas (9 Mestrados e 6 Doutorados), enquanto a Terapia
Ocupacional é a menor área e conta com apenas 1 programa (1 Mestrado e 1 Doutorado).
É importante destacar que não se trata de negar que um dos itens avaliativos da
produção intelectual seja publicar em periódicos científicos qualificados, especialmente
nos estratos superiores, como recomendado, tampouco seja nosso desejo não se
submeter a avaliações. Interessa-nos, na verdade, vermos nossas produções
qualificadas em seus devidos contextos e singularidades, respeitando-se as diferenças
epistemológicas que, a princípio, deveriam enriquecer nossa Educação Física, ao invés
de promover o seu desmonte.
Vislumbra-se, a partir do Documento de Área da Educação Física, tentativas de
minimizar esse fato:
A Área 21 buscou preservar a identidade das subáreas de estudo que permeiam seus programas e
adotou duas importantes decisões. A primeira foi a manutenção da glosa aplicada sobre produtos
(artigos, livros e produtos técnicos) que não possuem relação com a área de concentração, linhas e
projetos de pesquisa definidos pelos próprios programas. A segunda foi estratificar diferenciadamente
os periódicos da área, utilizando uma classificação que permitiu alocar nos estratos mais elevados
veículos com alta identidade e relevância para a área, sem, no entanto, deixar de primar pela
qualidade desses periódicos. [...] O melhor entendimento das diferenças dos objetos de estudo da área
foi a discriminação dos fatores de impacto nas áreas de estudo que envolvem aspectos socioculturais e
humanos dos aspectos físicos e biológicos da ciência. A área passou a adotar medianas diferenciadas
para revistas classificadas pela Thompson Reuters como Science (SCIE) e Social Science (SSCI). Essa
política tende a minimizar os efeitos das diferenças que reconhecidamente marcam as áreas SCIE e
SSCI (p. 8).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
São inegáveis os avanços nas formas de avaliação às quais são submetidos os cursos de
Pós-Graduação Stricto Sensu em todo o Brasil. As políticas pró-ciência potencializaram o
surgimento de programas que atingiram um grau de produção que expôs a pesquisa
nacional a patamares até então inalcançáveis. Especialmente no campo da Educação
Física, houve o recrudescimento do número de programas de pós-graduação e
aumento expressivo na quantidade de artigos científicos publicados em estratos
superiores (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2016a).
Ao mesmo tempo, contudo, segundo Lazzarotti Filho e outros (2014), as formas de
mensuração da produtividade científica modificaram o modus operandi de toda uma
área. Enquanto entre os anos de 1980 até o início do século XXI os dilemas repousavam
sobre as discussões teóricas, ontológicas e epistemológicas, agora a crise reside no
desenvolvimento de um diálogo onde um praticamente não escuta o que o outro fala.
As subáreas Sociocultural e Pedagógica, há mais de uma década, vêm buscando
formas de coexistir com o alargamento da subárea da Biodinâmica. Grande parte dos
parâmetros que balizam e mensuram a produção na Área 21, mas não só a dela,
desembocam em uma situação onde o que se produz nas duas primeiras, parece, aos
olhos da segunda, algo que não se enquadra nos paradigmas forjados pelo sistema
controlador da área. Assim, de forma autofágica uma subárea parece sufocar as outras.
Sufoca porque os critérios, até então, têm privilegiado uma métrica que não
compreende as peculiaridades de produzir conhecimento das áreas vinculadas as
Ciências Humanas e Sociais.
Some-se a isso, o fato de que o nível de produtividade, muitas vezes alcançado pela
subárea biodinâmica, não é possível de ser acompanhado pelas subáreas sociocultural
e pedagógica, dadas as diferentes naturezas de se fazer pesquisa e de se divulgá-la. Com
isso, não raro, os PPG se defrontam com o dilema da manutenção ou
descredenciamento de docentes que não alcançam o patamar exigido, fato este que
impacta mais aqueles das subáreas sociocultural e pedagógica e, por consequência, a
formação de futuros mestres e doutores nessas vertentes.
Por outro lado, em um PPG que busca elevar sua nota, os critérios para
credenciamento e respectivas pontuações são difíceis de serem atingidos por
professores que desejam se credenciar, especialmente das subáreas sociocultural e
pedagógica. Assim, a renovação que se esperaria fica cada vez mais dificultada e as
discrepâncias entre as subáreas se acentuam.
Longe da pretensão de esgotar o debate, esperamos que esse livro, bem como as
discussões aqui apresentadas, possam colaborar para que o campo da Educação Física
aproxime-se, senão de um equilíbrio, de uma diminuição das distâncias vivenciadas
pelas subáreas que o compõem. Assim, espera-se que o desenvolvimento da área seja
pleno e possibilite aos mais variados tipos de pesquisa um tratamento métrico
adequado, sem que com isso a qualidade, a tanto custo buscada, seja prejudicada.
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2. Pacote CAPES para a Educação Básica Brasileira segundo Silva, Sacardo e Souza (2014): Diretorias de Educação
Básica Presencial (DEB) e de Educação a Distância (DED), Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à
Docência (PIBID), Programa de Consolidação das Licenciaturas (Prodocência), Plano Nacional de Formação de
Professores da Educação Básica (Parfor), Novos Talentos, Programa de Apoio a Laboratórios Interdisciplinares de
Formação de Educadores (LIFE), Licenciaturas Internacionais e a criação da área de Ensino.
3. “O habitus mantém com o mundo social que o produz uma autêntica cumplicidade ontológica, origem de um
conhecimento sem consciência, de uma intencionalidade sem intenção e de um domínio prático das
regularidades do mundo que permite antecipar seu futuro, sem menos precisar colocar a questão nesses termos”
(BOURDIEU, 2004, p. 24),
4. Para Bourdieu o capital específico configura-se como o fundamento de dominação ou autoridade específica de
um campo e que o mesmo tem validade em um determinado campo, ou seja, dentro dos limites internos desse
campo.
REALIDADES DA PÓS-GRADUAÇÃO EM
EDUCAÇÃO FÍSICA: MANUTENÇÃO OU
DESMONTE DAS SUBÁREAS SOCIOCULTURAL E
PEDAGÓGICA?
Profª. Drª. Sílvia Maria Agatti Lüdorf
Professora Associada da Escola de Educação Física e Desportos da UFRJ. Coordenadora do Núcleo de Estudos
Sociocorporais e Pedagógicos em Educação Física e Esportes (NESPEFE).
Prof. Ms. Pedro Henrique Zubcich Caiado de Castro
Professor das Faculdades São José. Pesquisador do Núcleo de Estudos Sociocorporais e Pedagógicos em Educação
Física e Esportes (NESPEFE).
Quadro 2. Quantitativo de dissertações de PPGEF alocados no Rio de Janeiro e no Brasil, de enfoque metodológico
interpretativo.
Total em
Total em PPGEF
PPGEF UFRJ UGF UERJ UCB PPGEF no
situados no RJ
Brasil
Dissertações com enfoque
23 76 3 5 107 220
fenomenológico-hermenêutico
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, argumentamos que mais do que manutenção das vertentes
sociocultural e pedagógica no âmbito da produção científica em Educação Física, trata-
se de resistência. Diante do sensível desmonte, os pesquisadores das subáreas
sociocultural e pedagógica têm resistido no campo científico da Educação Física no
Brasil e, especificamente no caso analisado, no Rio de Janeiro.
As perspectivas não parecem promissoras e não há fórmulas mágicas para
mudanças deste cenário. Debates e propostas sobre as políticas da Pós-Graduação
necessitam, cada vez mais, fazerem parte de fóruns, congressos e de nossos PPGEF.
Nesse sentido, iniciativas como a do Fórum dos Pesquisadores das subáreas
Sociocultural e Pedagógica (2015) e da realização deste I Seminário de Educação Física,
Esporte e Sociedade, com a temática “Pesquisa em Educação Física nas perspectivas
sociocultural e pedagógica”, bem como outras, encampadas, por exemplo, pelo Colégio
Brasileiro de Ciências do Esporte, são fundamentais e tentam colaborar para a
reconfiguração das regras de produção do campo.
Resistimos, assim, para que estas vertentes de pesquisa, vitais para a pluralidade
teórico-epistemológica da área, para fundamentar e inovar nossas intervenções
pedagógicas, e para o repensar de nossas práticas, possam continuar a existir.
Mas, até quando isso será possível?
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MANOEL, E.J.; CARVALHO, Y.M. Pós-graduação na educação física brasileira: a atração (fatal) para a biodinâmica.
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PELUSO, D. L. A pesquisa sociocultural e pedagógica nos Programas de Pós-Graduação stricto sensu em Educação
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RIGO, L. C.; RIBEIRO, G. M.; HALLAL, P. C. Unidade na diversidade: desafios para a Educação Física do Século XXI.
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ROSA, S; LETA, J. Tendências atuais da pesquisa brasileira em Educação Física Parte 2: a heterogeneidade
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SÁNCHEZ GAMBOA, S. Epistemologia da educação física: as inter-relações necessárias. Maceió: EDUFAL, 2007.
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SILVA, R. V. S.; SOUSA, E. R. ; SANTOS, C. S. (Org.). Produção científica em Educação física e Esportes: dissertações e
teses. Uberlândia: UFU/NUTESES, 1998b. v. 3.
5. Projeto de pesquisa coordenado pela Profª. Drª. Sílvia M. Agatti Lüdorf, desenvolvido no Núcleo de Estudos
Sociocorporais e Pedagógicos em Educação Física e Esportes (NESPEFE), da Escola de Educação Física e Desportos
(EEFD), desde 2010, com apoio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq).
DESAFIOS PARA A PÓS-GRADUAÇÃO EM
EDUCAÇÃO FÍSICA NO RIO DE JANEIRO
Prof. Me. Felipe da Silva Triani
Professor do curso de Educação Física da Faculdade Gama e Souza.
Membro do Grupo de Estudos em Escola, Esporte e Cultura (GPEEsC)
Membro do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Representações Sociais na/para Formação de Professores
(LAGERES).
Prof. Dr. Silvio de Cassio Costa Telles
Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Líder do Grupo de Estudos em Escola, Esporte e Cultura (GPEEsC)
Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências do Exercício e do Esporte (UERJ)
INTRODUÇÃO
O presente manuscrito pretende apontar sinteticamente o cenário epistemológico da
formação continuada no Rio de Janeiro, descrevendo os caminhos que a pós-graduação
em Educação Física se destina. Dessa maneira, sua composição se estrutura tendo como
objeto de estudo a pós-graduação stricto sensu, que tem sido investigada recentemente
em diferentes regiões do Brasil (LÜDORF, 2002; AMADIO, 2003; KOKUBUN, 2003;
KROEFF; NAHAS, 2003; MANOEL; CARVALHO, 2011; FÓRUM DE PESQUISADORES DAS
SUBÁREAS SOCIOCULTURAL E PEDAGÓGICA, 2015; CASTRO, 2015; DECIAN; RIGO, 2016),
mas que ainda carece de aprofundamento investigativo no âmago do Rio de Janeiro,
pois somente um resumo foi encontrado (PELUSO et al., 2016), fruto de uma dissertação
produzida entre 2014 e 2015, ocasião em que ainda não havia o Programa de Pós-
Graduação em Ciências do Exercício e do Esporte (PPGCEE) da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ) e o doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação
Física na Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGEF).
Diante desses entendimentos e considerando a ausência de pesquisas que
investigaram a situação da Pós-Graduação no Rio de Janeiro especificamente, é cabível
uma investigação que aponte os desafios da pós-graduação stricto sensu no Rio de
Janeiro, a fim de conhecer a situação atual da formação continuada da área. Nesse
sentido, considerando o espaço da pós-graduação, é fundamental saber que a Educação
Física tem sua composição por meio de três áreas de concentração que emergiram na
última década do século XX, a saber: biodinâmica, sociocultural e pedagógica (MANOEL;
CARVALHO, 2011).
De acordo com estudos já publicados (LÜDORF, 2002; MANOEL; CARVALHO, 2011;
LAZZAROTTI FILHO; SILVA; MASCARENHAS, 2014; CASTRO, 2015) a Educação Física
tem se expandido na pós-graduação em 33%, mas ao mesmo tempo retraído nas áreas
sociocultural e pedagógica, sendo mais de 70% do total de docentes e linhas de pesquisa
concentrados na área biodinâmica (FÓRUM DE PESQUISADORES DAS SUBÁREAS
SOCIOCULTURAL E PEDAGÓGICA, 2015). Esse cenário na região Sul do Brasil também se
apresenta com inferioridade em número de docentes e linhas de pesquisa nas pós-
graduações, considerando um estudo recentemente publicado (DECIAN; RIGO, 2016).
Destarte, cabe questionar: qual é o cenário epistemológico do Rio de Janeiro no que
tange à Pós-Graduação? A fim de responder a essa questão norteadora, a investigação
em tela pretende apontar a situação atual dos desafios para a Pós-Graduação em
Educação Física no Rio de Janeiro.
METODOLOGIA
A fim de atender ao objetivo desta pesquisa, a abordagem metodológica foi de cunho
qualitativo. Nessa direção, foi realizada pesquisa documental. Como amostra, têm-se os
três programas de pós-graduação stricto sensu do Rio de Janeiro, a saber: PPGEF;
Programa de Pós-graduação em Ciências da Atividade Física (PPGAF); e PPGCEE. Como
técnica de coleta de dados, foi utilizada a análise documental (SANTOS, 2000) realizada a
partir da interpretação dos documentos oficiais dos Programas de Pós-graduação em
Educação Física do Rio de Janeiro, por meio de consulta nos sítios dos próprios
programas.
RESULTADOS
Com o descredenciamento da Universidade Gama Filho (UGF) no ano de 2014, houve a
extinção do curso de doutorado em Educação Física no Rio de Janeiro. A falta do
doutoramento perdurou até abril de 2015 (BRASIL, 2015). Após esse tempo, o Instituto
de Educação Física e Desportos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
balizando-se pelo extinto programa da UGF institui um novo programa que oferece os
cursos de mestrado e doutorado (UERJ EM QUESTÃO, 2014). Além disso, no final do ano
de 2015 o PGEF da UFRJ conquistou o reconhecimento da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) para oferecer os cursos de
doutorado e mestrado (BRASIL, 2016). Então, o ano de 2015 terminou com dois cursos
de doutorado em Educação Física oferecidos no Rio de Janeiro.
Entre os programas de pós-graduação vigentes, o mais antigo é o PGCAF da
UNIVERSO, que teve início em 2006 (BRASIL, 2006), na sequência o PPGEF da UFRJ 6 e o
mais recente PPGCEE da UERJ. Atualmente, esses programas de pós-graduação
oferecem o curso de mestrado na área de, tendo Educação Física, isto é, três cursos de
mestrado são oferecidos no Rio de Janeiro.
Esse cenário quantitativo de cinco cursos de pós-graduação stricto sensu em
Educação Física, 3 de mestrado e 2 de doutorado, não distribui sua oferta de forma
justa, considerando que a pós-graduação em Educação Física desde a última década do
século XX se estrutura em áreas de concentração. Dessa maneira, ao analisar
qualitativamente os atuais programas de pós-graduação oferecidos no Rio de Janeiro, a
partir dos professores do programa, identificam-se 11 docentes permanentes no PPGEF,
10 que orientam na área biodinâmica e 1 na área sociocultural e pedagógica; o PPGCEE
se apresenta com 16, os quais 13 desenvolvem estudos a partir da área biodinâmica e 3
da sociocultural e pedagógica; e no PGCAF, têm-se 11 docentes, sendo 4 deles da área
biodinâmica.
Portanto, em síntese, dos 38 professores que orientam nos programas de Pós-
Graduação em Educação Física no Rio de Janeiro, 23 são responsáveis pela formação de
doutores na área biodinâmica e 4 distribuídos nas áreas sociocultural e pedagógica.
Nessa perspectiva, 27 orientam a formação de mestres na área biodinâmica e 11 na
área sociocultural e pedagógica. Então, esse panorama denuncia o descompasso de
oportunidade oferecida para a formação de mestres e doutores no Rio de Janeiro,
considerando as áreas de concentração.
No sentido de sintetizar os resultados encontrados, foi elaborada uma
sistematização, conforme Tabela 1:
Programa
Sociocultural & Pedagógica Biodinâmica Sociocultural & Pedagógica Biodinâmica
n % N % n % N %
PPGEF 1 9 10 91 1 9 10 91
PPGCEE 3 19 13 81 3 19 13 81
PPGCAF 7 64 4 36 - - - -
Total 11 29 27 71 4 15 23 85
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A situação atual dos programas de Pós-Graduação em Educação Física do Rio de Janeiro
aponta inferioridade de pesquisadores credenciados das áreas sociocultural e
pedagógica em relação aos da biodinâmica. Dessa maneira, o cenário não é diferente de
estudos já publicados que investigaram outras regiões do Brasil. Portanto, os desafios
para a Pós-Graduação em Educação Física no Rio de Janeiro estão na carência de
docentes das áreas sociocultural e pedagógica, nos cursos de mestrado e doutorado,
algo que implica a falta de oportunidade de formação continuada de mestres, e mais
ainda, de doutores, em virtude da escassez da oferta.
REFERÊNCIAS
AMADIO, Alberto Carlos. Trajetória da pós-graduação stricto sensu na escola de educação física e esporte da
universidade de São Paulo após 25 anos de produção acadêmica. Revista Brasileira de Ciências do Esporte,
Campinas, v. 24, n. 2, p.27-47, jan. 2003.
BRASIL. Parecer CNE/CES 102/2016. Brasília (DF), 2016.
BRASIL. Parecer CNE/CES 165/2006. Brasília (DF), 2006.
BRASIL. Parecer CNE/CES 344/2015. Brasília (DF), 2015.
CASTRO, Pedro Henrique Zubcich Caiado de. O panorama da produção científica em Educação Física no novo
milênio: uma análise a partir de dissertações e teses. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação
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DECIAN, Marluce Raquel; RIGO, Luiz Carlos. Os programas de pós-graduação em Educação Física da região Sul do
Brasil. VI Fórum de Pós-graduação do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte - III Fórum de pesquisadores das
subáreas sociocultural e pedagógica da Educação Física. Porto Alegre, RS, 2016.
FÓRUM DE PESQUISADORES DAS SUBÁREAS SOCIOCULTURAL EPEDAGÓGICA. Cenários de um descompasso da
Pós-Graduação em Educação Física e demandas encaminhadas à CAPES. Vitória, ES. Porto Alegre, RS. Curitiba,
PR. 2015.
KOKUBUN, Eduardo. Pós-graduação em educação física no Brasil indicadores objetivos dos desafios e das
perspectivas. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 9- 26, jan. 2003.
KROEFF, Márcia Silveira; NAHAS, Markus Vinícius. Ações governamentais e formação de pesquisadores em
educação física no Brasil. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v. 24, n. 2, p. 114-156, jan. 2003.
LAZZAROTTI FILHO, Ari; SILVA, Ana Maria; MASCARENHAS, Fernando. Transformaciones contemporâneas del
campo académico de la educación física em Brasil: nuevos habitus, modus operandi y objetos de disputa.
Movimento, Porto Alegre, v. 20, n. esp., p. 9-20, 2014.
LÜDORF, Sílvia Maria Agatti. Panorama da pesquisa em Educação Física da década de 90: análise dos resumos de
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MANOEL, Edison de Jesus; CARVALHO, Yara Maria de. Pós-graduação na educação física brasileira: a atração
(fatal) para a biodinâmica. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.37, n.2. p.389-406, mai/ago. 2011.
PELUSO et al. Pós-graduação em educação física no Rio de Janeiro. VI Fórum de Pós-Graduação do Colégio
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SANTOS, Antonio Raimundo dos. Metodologia Científica: a construção do conhecimento. 3. ed. Rio de Janeiro:
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UERJ EM QUESTÃO. Ano XXI, n, 105, Out-dez, 2014. Disponível em:
<http://www.uerj.br/publicacoes/emquestao/105/uerjemquestao105.pdf>. Acesso em: jan. 2017.
6. O PPGEF tem início em março de 1980, mas perdeu sua recomendação, e somente em 2008 foi recomendado
novamente. Fato que implica considerar o PGCAF o mais antigo.
A CIÊNCIA É UMA ESTÉTICA DA INTELIGÊNCIA:
O PENSAMENTO E A VITALIDADE DAS CIÊNCIAS
HUMANAS E SOCIAIS NA EDUCAÇÃO FÍSICA
Prof. Dr. Rafael da Silva Mattos (UERJ)
Professor Adjunto do Departamento de Ciências da Atividade Física do Instituto de Educação Física e Desportos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Coordenador de Graduação (IEFD-UERJ)
INTRODUÇÃO
Bachelard (1996) afirma que a tarefa principal do espírito científico é delinear os
fenômenos e ordenar em série os acontecimentos decisivos de uma experiência. É a
tarefa de conciliar leis e fatos, teoria e experiência, concreto e abstrato.
O novo espírito científico foi influenciado pela Teoria da Relatividade de Einstein,
pela Mecânica Ondulatória de Louis de Broglie, pela Física das Matrizes de Heisenberg e
pela Mecânica de Dirac. Estamos todos vivenciando uma nova era da ciência.
Contudo, existe uma sonolência no saber. O século XVIII continua vivo em nós. O
projeto da modernidade e o anseio pelo homem iluminista permanecem como uma
chama que não se apaga. O homem continua buscando o saber erudito, sem aceitar que
a erudição nem sempre é ciência. Então o que é a ciência?
Para Bachelard (1996), a ciência é uma estética da inteligência. Isso implica tratar a
ciência como uma produção contínua do pensamento humano. Mattos (2016) afirma
que precisamos de mais pensamento e de menos conhecimento. O pensamento está
ligado a criação. A criação está ligada a uma vontade/força de potência. O pensador não
precisava de patentes, não marca reuniões para discutir a produção acadêmica. Ele cria
e atrai novos pensadores. Ele transforma o caos ao produzir inovações no espírito.
Marx e Freud nunca foram professores universitários e deixaram um legado
incomensurável na história da humanidade.
Retondar (2016) afirma que a influência da história da sociedade na cultura e
aquisição de hábitos de vida do sujeito, não só biológico, mas também, sociocultural,
repleto de afetos e contradições, é de suma importância para a pesquisa em Educação
Física. Portanto, iluminar essa lacuna, comumente negligenciada, é relevante para
compreender questões inerentes ao ser humano. Temos, dessa forma, a possibilidade
de um diálogo não com o sujeito ideal, contemplado pela biomedicina tradicional, mas
com um sujeito do real, o qual atribui sentidos e significados para suas práticas, o que
interfere em diferentes escolhas, muitas vezes à revelia das normas biomédicas. O
próprio sistema de avaliação dos cursos propicia a manutenção do status quo da
biomedicina, o que reverbera na pesquisa e produção na área. O que é mais importante
para a prática do profissional de educação física na escola, por exemplo: ter acesso a
pesquisas que contribuam para a inclusão e minimizem a discriminação nas diferentes
manifestações da cultura corporal ou ler um artigo sobre o efeito de certas enzimas na
contração músculo-esquelética de camundongos?
Então como podemos pensar a importância das Ciências Humanas e Sociais na
Educação Física, sobretudo na área 21? Qual é a especificidade desses saberes e dessas
disciplinas para o fortalecimento do ensino, da pesquisa e da extensão na Educação
Física? Nosso problema será resolvido com a ampliação de periódicos que possam
“escoar” a produção dos pesquisadores da área sociocultural? A guerra é por indexação
de periódicos ou por legitimidade e valorização de saberes, teorias, conceitos e métodos
que desafiam a hegemonia das míopes visões tecnocientíficas?
As Ciências Humanas e Sociais são ferramentas para a capacidade de renovação, de
abertura para o espírito pensador e não dogmático. Não há nada mais coerente com a
liberdade da pesquisa do que o livre exercício do pensar.
REFERÊNCIAS
ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
BACHELARD, G. La formation de esprit scientifique. Paris: Vrin, 1996.
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FOUCAULT, M. Em Defesa da Sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.
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LUZ, M.T. Natural, Racional, Social: razão médica e racionalidade científica moderna. 2. ed. rev. São Paulo:
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LUZ, M. T. Prometeu acorrentado: análise sociológica da categoria produtividade e as condições atuais da vida
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LUZ, M.T.; SABINO, C. A pesquisa como prática artística: a razão na prática de investigação como razão artística –
uma possível contribuição de Pierre Bourdieu para a área das Ciências Sociais e Humanas na Saúde. Saúde em
Redes, v. 1, n. 2, p. 07-12, 2015.
MATTOS, R.S. Pesquisa Qualitativa em Educação Física: da graduação ao doutorado. Curitiba: CRV, 2016.
RETONDAR, J. Prefácio. In: MATTOS, R.S. Pesquisa Qualitativa em Educação Física: da graduação ao doutorado.
Curitiba: CRV, 2016.
SOARES, A.G.T. A atualidade de Descartes. Filosofia, São Paulo, n. 36, p. 6-11, 2012.
A PRESSÃO PARA PUBLICAR: REFLEXÕES
NECESSÁRIAS
Prof. Dr. Diego Luz Moura
Professor Adjunto da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF)
Líder do LECPEF (Laboratório de Estudos Culturais e Pedagógicos da Educação Física).
INTRODUÇÃO
Becker (1977) aponta que os pesquisadores no campo das humanidades ao realizarem
suas análises sempre desagradam um lado, por isso devem ter clareza de que sempre
estão de um lado. Becker realiza esta reflexão não para criar polaridades, mas para
apontar que sempre falamos de um lado. Assumir um ponto de vista não é
necessariamente um viés, mas algo inerente a interpretação dos dados.
Neste artigo, tenho um lado e falo de um ponto, logo, antes de mais nada, gostaria de
apresentá-lo aos autores para que assim me ajudem nas reflexões que proponho neste
texto. Realizei mestrado em Educação Física na Universidade Gama Filho (UGF),
iniciando meus estudos no campo das áreas Sociocultural (Sc) e Pedagógica (Pg) com
Hugo Lovisolo, e após sua saída do programa fui acolhido pelo Prof. Antonio Jorge
Gonçalves Soares, ambos bolsistas de produtividade na ocasião. Convivi desde o
mestrado com a rotina de participar de grupos de pesquisas e auxiliar na elaboração,
coleta, análise, discussão e submissão de papers para as revistas. Fui apresentado, desde
o início, aos sistemas de avaliação da Capes, mas sempre com olhar crítico. Realizei o
doutoramento sob a mesma rotina e ingressei no ano de 2013 como docente da
Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf).
Chegando na Univasf, encontrei um grupo de jovens doutores, todos haviam
terminado o doutorado nos últimos 5 anos. Os cursos de licenciatura e bacharelado em
Educação Física haviam iniciado em 2009 na Univasf e o grupo começava a organizar a
submissão do APCN para o mestrado em Educação Física (EF). E foi no segundo
semestre de 2015 que o programa de pós-graduação em nível de mestrado em EF da
Univasf iniciou suas atividades, recebendo a nota 3 e sendo o primeiro programa de
pós-graduação em EF no interior do Nordeste.
Nesta minha curta caminhada como docente da pós-graduação, tenho sofrido,
mesmo que de maneira mais branda, as cobranças do sistema de avaliação, e
acompanhado as discussões com as outras instituições. Como iniciamos o programa há
pouco tempo ainda não encaramos o que parece ser o principal elemento de tensão nos
programas – o descredenciamento.
O descredenciamento ocorre quando os docentes não atingem algum critério
durante o ciclo avaliativo da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES), que no momento é de quatro anos. O critério que tem mais sido
causador do descredenciamento é o número de pontos estabelecido para as publicações
acadêmicas instituídas pelas métricas avaliativas da (CAPES), que é o órgão responsável
pelo acompanhamento e avaliação dos programas de pós-graduação no Brasil.
Rigo, Ribeiro e Hallal (2012) apontam que de 2009 a 2011 houve uma diminuição dos
autores das áreas Sc e Pg, enquanto houve um aumento na área da saúde. Este dado é
preocupante, pois com a diminuição progressiva de orientadores nas áreas Sc e Pg
temos como consequência uma menor formação de futuros pesquisadores nestes
campos. Essa saída está relacionada com dois motivos: o descredenciamento e uma
diáspora dos pesquisadores para outras áreas como a educação, ensino, interdisciplinar
e etc. (SILVA; GONÇALVES-SILVA; MOREIRA, 2014). Todavia, independentemente do
motivo da saída, estes parecem estar alicerçados na constatação de que a indução da
ciência e os mecanismos de avaliação que estão postos na área 21 não levam em
consideração as idiossincrasias das áreas Sc e Pg.
Infelizmente se tornou cada vez mais comum ouvir que as linhas de pesquisa Sc e Pg
“puxam para baixo” os programas de Educação Física, e também por isso alguns
programas de pós-graduação em Educação Física optaram em não possuir linhas de
pesquisas relacionadas com as áreas Sc e Pg.
Os mecanismos de avaliação induzem um tipo de fazer científico que não leva em
consideração as áreas Sc e Pg. Essa tensão do quantitativo de pontos solicitados produz
maiores dificuldades na área, por possuírem tempo e características distintas sobre o
impacto de suas pesquisas (DAOLIO, 2007). Além disso, é necessário apontar que o rol
de revistas dispostas a publicar artigos relacionados aos aspectos sociológicos e
pedagógicos, por exemplo, é bem inferior em relação ao da biodinâmica (SILVA;
GONÇALVES-SILVA; MOREIRA, 2014). Este panorama faz com que as áreas Sc e Pg
tenham que possuir um volume maior de textos para alcançar os pontos da mediana.
Esse cenário descrito acima promove um paradoxo, pois nas áreas Sc e Pg é comum
que a apropriação de referenciais teóricos advindos de outras ciências, métodos de
pesquisa e especificidades da coleta de dados, levem maior tempo para confecção dos
artigos. Mas, a falta de revistas de alto Qualis acaba necessitando que o volume de
artigos seja relativamente mais alto para alcance dos pontos.
Rigo, Ribeiro e Hallal (2012) apontam que o Qualis periódico é orientado por
princípios que estão mais relacionados com a área da saúde, e não estão se mostrando
eficientes para avaliar a diversidade das áreas da Educação Física. Stigger, Silveira e
Myskiw (2015) apontam que isso contribui significativamente para o esvaziamento da
área Sc e Pg.
Logo, para continuar credenciado, os pesquisadores de todas as áreas necessitam
produzir um número de artigo em revistas especializadas. Isto gera uma espécie de
pressão para publicar que tem sido cada vez mais compartilhada com os discentes.
Neste sentido, o objetivo deste ensaio é discutir a pressão nos discentes vinculados às
linhas Sc e Pg para publicar.
Neste artigo, utilizaremos relatos de 10 alunos matriculados em um programa de
pós-graduação em Educação Física em nível de mestrado. Os alunos estão com projetos
de pesquisa vinculados nas linhas Sc ou Pg. Os dados foram coletados através de
questionário enviado previamente por email.
Um artigo publicado em uma revista A1 que teve 1000 leitores e 30 citações seria mais importante que
um artigo publicado em uma revista B3 que teve 30.000 leitores e citado cinco vezes? Um artigo que
influencia de forma significativa a didática da EF é mais ou menos importante que um artigo cujas
elaborações participam de 12 pesquisas que confirmam resultados anteriores de relações estatísticas
entre variáveis? Creio que no momento esse é o tipo de questões que nós devemos fazer e encontrar
respostas mais ou menos consensuais para instaurar novos processos avaliativos. Não devemos
esquecer que na avaliação está de modo prático e poderoso, a orientação dos processos (LOVISOLO,
2014, p.709).
O argumento de Lovisolo retrata mais uma questão que deve ser levada em
consideração. Há muitas preocupações acadêmicas, principalmente na área Pg, que
busca dar respostas a dilemas na Educação Física de escolas brasileiras. Neste sentido,
as pesquisas acabam tendo pouca atratividade para periódicos internacionais e
chegando pouco aos principais interessados, os professores da educação básica. Embora
possa ter um impacto maior para este público. Portanto, dar mais ênfase aos aspectos
qualitativos da avaliação nos parece que é um dado que poderia ser levado em
consideração de maneira mais significativa.
A avaliação com ênfase nos critérios quantitativos como se tem realizado até o
momento constrói uma ideia de “jogar o jogo”, evocando uma busca pela
sobrevivência ao sistema que tem estimulado as práticas de trocas de autoria
(LOVISOLO, 2007; TREIN; RODRIGUES, 2011). No mesmo sentido, Silva, Gonçalves-Silva
e Moreira (2014), apontam que a ideia de “jogar o jogo” oportuniza o desencadeamento
acentuado de desvio de condutas éticas na produção do conhecimento, como plágio,
publicações em empilhamento, fatiamento das publicações, autocitação
descontextualizada, dentre outros possíveis problemas.
Sitgger, Silveira e Myskw (2015) entrevistaram docentes credenciados em programas
de pós-graduação e apontam que o argumento da pressão para publicar é rotineiro nos
professores. Os autores analisaram que enquanto no ano 2000 os docentes publicavam
1,4 artigos em média por ano, no ano de 2010 a média era 7,8 artigos. Os autores
também apontaram que a média de autores por artigos aumentou significativamente.
Enquanto na área Sc e Pg entre 2000 e 2002 era de 2 autores em 2010 passou para 5
autores por artigo. Na área da Biodinâmica esse aumento foi mais expressivo, enquanto
em 1999 a média era 4 autores. Em 2010 já se podia observar artigos com 9 autores de
forma regular, sendo identificado alguns artigos com 20 autores.
Outro reflexo que começa a acontecer nas áreas Sc e Pg é um desencorajamento da
utilização de alguns métodos, principalmente aqueles em que é necessário maior
tempo para coleta de dados como a etnografia. Não optamos por um método de
pesquisa porque simpatizamos, mas porque determinadas técnicas e procedimentos
são aqueles mais apropriados para responderem certos objetivos de pesquisa. Logo, a
corrida da produção para o maior número de papers pode ser visto como um
desperdício de tempo, considerando que analisar a qualidade de dados etnográficos
requer mais tempo e este poderia ser investido para escrever um maior número de
artigos. Em uma conversa informal com docentes que costumam realizar pesquisa com
procedimentos de coletas mais rápidas, explicava sobre o método etnográfico e o
tempo necessário: entrada no campo, familiarização com a cultura, aplicação de
diversos instrumentos e a triangulação dos dados. Recordo que antes que pudesse
terminar a explicação fui interrompido com a solução: “É só parar de fazer pesquisa
assim!”. Longe de fazer uma crítica ao colega, mas esta fala nos ajuda a compreender o
pragmatismo do qual estamos imersos. Para que gastar tanto tempo com esse tipo de
pesquisa se podemos utilizar de outros métodos e acelerar a produção? Notemos que
estas “soluções” reforçam que talvez estamos publicando não mais para divulgar
nossos resultados e estabelecermos comunicação com os atores do campo profissional,
mas apenas para atender critérios quantitativos.
Silva, Gonçalves-Silva e Moreira (2014) afirmam que nessa lógica de publicações, os
temas ou métodos de pesquisa a serem investigados, por vezes, não são mais
escolhidos com base na necessidade de avanços sobre o conhecimento, mas sim, pela
maior velocidade de produção do paper ou probabilidade de se publicar em periódicos
com alto impacto (MANOEL; CARVALHO, 2011, VITOR-COSTA; SILVA; SORIANO, 2012).
E foi neste sentido que perguntamos aos discentes, qual seria na opinião deles o
objetivo da publicação de artigos em revistas acadêmicas. Obtivemos respostas em
duas direções, a primeira de impactar a área, divulgando os resultados da pesquisa e
outra no sentido do cumprimento das exigências dos processos de avaliação e buscar
aumentar o currículo.
Duas funções principais: a primeira é disseminar a produção de conhecimento acadêmico com vistas
a aproximar estes saberes da sociedade [...] A função é qualificar o pesquisador [...] Aqui, escuta-se o
argumento: quem entra no mestrado já sabe que deve sujeitar-se a isso!). A questão é o sentido da
publicação, pois ela dever ser encarada como mais um processo de aprendizagem do mestrando, e não
como uma imposição adornada pela vaidade de determinados sujeitos. (informante 2). Disseminar as
inovações da área, com o objetivo de impactar na realidade (informante 4). Promover o avanço da
ciência, divulgando resultados das pesquisas (informante 5). A maioria publica para melhorar o
currículo e ganhar bolsa de produtividade. Percebe-se que há uma preocupação enorme em produzir
(informante 8). Infelizmente a função principal tem sido a de atender as exigências do sistema. Não há
como negar a grande corrida do mundo acadêmico em torno da ampliação da quantidade de
publicações com o intuito de pontuação referente a concursos/progressão funcional/avaliação de
cursos de pós-graduação (informante 9).
[...] alguns professores e orientadores permanecem numa busca desenfreada em querer publicar
demasiadamente, resultando na maioria das vezes uma não preocupação com a qualidade e
relevância do que se está sendo publicado (informante 6).
As pressões vem acompanhadas de frases de efeito, tipo: publicar ou perecer! E os motivos estão
associados à manutenção e crescimento do programa (informante 8).
Todo mestrando se sente, de certa forma pressionado a publicar. E os motivos sejam os de que quanto
mais se produz, mais eficiente você é, e mais respeitado também. Isso não tem nada haver com o
orientador, mas sim com o sistema (informante 3).
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Não é nossa intenção realizar uma crítica a Capes como finalidade principal, pois a
ausência de um modelo de avaliação provocaria maiores prejuízos que eventuais
efeitos colaterais produzidos pelo sistema. Ademais, a crítica simples e pura tem sido
danosa a área porque apenas cria barreiras que impedem o diálogo. Compreendemos a
importância e necessidade de existir um sistema de avaliação que busque acompanhar
os programas, os pesquisadores e suas produções. Todavia, ao longo do texto nos
posicionamos na perspectiva que devesse construir mecanismos e/ou critérios,
ferramentas de cunho mais qualitativo que ajudem a identificar o impacto destas
produções na comunidade científica e no campo profissional. Sabemos do desafio que é
avaliar e por isso é necessário que continuemos a propor outras alternativas que
agreguem ao modelo que vigora até o momento.
O modelo que vemos gera pressão para todos os professores das diferentes áreas e
inclusive da Educação Física. Porém, isso se agrava nas áreas Sc e Pg por possuírem
algumas especificidades como menor número de revistas e um menor número de
periódicos com Qualis elevado. O aumento do tempo de 3 para 4 anos talvez seja uma
solução interessante no sentido de levar em consideração os estudos que possuem
maior tempo para produção. E em considerar o aumento do tempo que as revistas vêm
respondendo aos manuscritos submetidos. Mas, contudo, o aumento para quadriênio
pode não afetar significativamente se o quantitativo de pontos subir na mesma
proporção.
Uma indução em revistas da área Sc e Pg pode ser uma alternativa interessante para
que as produções possam priorizar maior qualidade e que a pressão para publicação
possa ser mais controlada e vista apenas como um estímulo e não como um ultimato.
REFERÊNCIAS
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SEÇÃO II
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Desde o início do século XX, saúde-doença, mortes, aflições, processos de cura e
sofrimentos fizeram parte de diversos trabalhos do campo das Ciências Sociais. Mauss
(1993) sugeriu a diversidade de técnicas corporais envolvida por aspectos físico-
biológicos, psicológicos e sociais, o que pode ser visto em condutas de higiene ou de
sexualidade, por exemplo. Durkheim (2007) tentou delinear as regras para definir a
oposição entre o que é normal ou patológico. Turner (1974) focou em processos rituais
tribais em relação a doenças. Evans-Pritchard (1978) preocupou-se em descrever o
modo de vida de uma tribo a partir das bruxarias e suas relações com infortúnios. O
trabalho de Lévi-Strauss (1996) demonstrou a complexidade dos componentes psico-
fisiológicos ao mencionar seu suposto funcionamento a partir dos significados da/ na
relação entre o aspecto social e o sujeito que estava comprometido/ enfeitiçado
próximo da morte.
Embora esses clássicos empreendimentos investigativos tivessem aprofundado
aspectos peculiares de certos grupos sociais sobre o modo como compartilhavam
determinadas representações da doença, do processo terapêutico e dos significados
atribuídos ao corpo, foi apenas durante a segunda metade do século XX, na França, que
emerge efetivamente a Antropologia da Saúde (AUGÉ, 1986; HERZLICH, 2005). Ainda
que tenha ocorrido o desenvolvimento da Antropologia Médica norte-americana e
anglo-saxônica (KLEINMAN; DAS; LOCK, 1997; GOOD, 1998; LOCK; NGUYEN, 2010;
SAILLANT; GENEST, 2012) atrelada essencialmente à biomedicina e à dicotomia
natureza/cultura, indivíduo/sociedade e saúde/doença, foi o campo da Antropologia da
Saúde que desconstruiu a noção de cultura na área da Saúde ao entender que os
saberes e práticas voltados ao corpo e à saúde-doença assim como o próprio referencial
(bio)médico são construções socioculturais e históricas (LE BRETON, 2016).
As aproximações teórico-metodológicas entre o campo da Antropologia e a área de
Educação Física estabeleceram-se nos anos oitenta e noventa, sobretudo, no âmbito
escolar (DAOLIO, 1995; DAOLIO, 2001; DAOLIO, 2004). Entretanto, levando em
consideração que todo campo científico constantemente “[...] é objeto de luta tanto em
sua representação quanto em sua realidade” (BOURDIEU, 2004, p. 29), pode-se registrar
que a área de Educação Física ainda configura-se pela sua (re)construção
epistemológica diante dos referenciais antropológicos.
É nesse contexto da Antropologia da Saúde que a área de Educação Física enriquece-
se em termos acadêmicos, profissionais e de políticas públicas voltadas à saúde.
Especialmente no âmbito não-formal da área de Educação Física, considera-se aqui que
há cada vez mais a necessidade de articular os conhecimentos anatomofisiológicos e do
treinamento com normas, costumes, crenças e valores que são determinantes nas
maneiras como cada grupo social se engaja nas práticas corporais.
Nesse sentido, objetiva-se, nesse texto, apontar possíveis contribuições da
Antropologia da Saúde para Educação Física. Para fins de organização do presente
manuscrito, optou-se aqui por três eixos de discussão: a) Produção do conhecimento; b)
Intervenção profissional; c) Políticas Públicas. Esses prismas de análise fornecem
argumentos para Educação Física legitimar-se sobre o sentir, o pensar e o agir dos
sujeitos face às práticas corporais engendradas por lógicas simbólicas acerca da saúde-
doença e dos processos terapêuticos que ultrapassam o referencial biomédico ainda
hegemônico na área.
PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO
Em primeiro lugar, pode-se destacar a relevância da Antropologia da Saúde para
Educação Física na dimensão da produção do conhecimento. Embora tenha ocorrido o
aumento do desenvolvimento de estudos a partir dos referenciais das Ciências Sociais
no campo da Saúde (LUZ, 2011; CANESQUI, 2011) e de pesquisas qualitativas na
Educação Física (SILVA; VELOZO; RODRIGUES JUNIOR, 2008; GOELLNER et al., 2010), a
subárea sociocultural ainda enfrenta dificuldades de se legitimar face a hegemonia da
subárea biodinâmica no cenário acadêmico da Educação Física (BETTI et al., 2004;
MANOEL; CARVALHO, 2011).
Tal cenário supracitado se deve pela área de Educação Física ter privilegiado
investigações de caráter biológico sobre exercício físico e atividade física voltada à
Saúde Pública (NAHAS; GARCIA, 2010) em detrimento da ótica das práticas corporais
que se preocupa com os significados e os sentidos que determinados grupos sociais
atribuem à cultura corporal de movimento (SILVA; DAMIANI, 2005; LAZZAROTTI
FILHO et al., 2010; SILVA, 2014). Pela Educação Física historicamente ter interface com
o campo da Saúde, as relações entre corpo, saúde-doença e cultura ainda tornam-se
uma perspectiva relativamente desconhecida ou pouco investigada no âmbito das
práticas corporais.
Nesse contexto, a partir da possibilidade de exploração de novos e complexos
objetos, temas e abordagens teórico-metodológicas no campo da Antropologia da Saúde
na contemporaneidade (CANESQUI, 2011a; IRIART; CAPRARA, 2011; DESLANDES;
IRIART, 2012), abre-se um espaço profícuo de estudos sobre a multiplicidade de formas
de conceber o processo saúde-doença e os inúmeros artifícios terapêuticos presentes na
prática profissional em Educação Física ou nas concepções e comportamentos daqueles
que realizam as práticas corporais.
Noções de riscos à saúde, práticas e saberes clínicos envolvidos no movimento
humano, usos de substâncias ou produtos para aprimoramento do corpo (fármacos,
anabolizantes, suplementos alimentares, etc.), práticas corporais realizadas em
ambientes indoor ou outdoor como processos terapêuticos, sociabilidades entre grupos
que realizam determinada modalidade de atividade física, imbricamentos entre
consumos e tecnologias visando performances atléticas ou modificações corporais,
redes sociais como espaços de compartilhamento de representações sobre exercício
físico e saúde-doença, dentre outras perspectivas de análise, são campos ainda pouco
explorados na área Educação Física pelo referencial antropológico. Destarte,
argumenta-se, portanto, a necessidade do estímulo a investigações quanti-quali ou
quali-quanti, ou ainda, estudos que centrem suas análises transdisciplinares ou
interdisciplinares abordando os referenciais da Antropologia da Saúde junto aos
pressupostos epidemiológicos ou estatísticos que ainda predominam no âmbito das
práticas corporais.
INTERVENÇÃO PROFISSIONAL
Outro contributo da Antropologia da Saúde para Educação Física pode ser pensado no
nível da intervenção profissional. Isso significa afirmar que os profissionais de
Educação Física devem aliar o conhecimento biomédico à sensibilidade de
compreensão do contexto sociocultural que o cerca. Para isso, esta condição necessária
para uma intervenção mais simétrica ou emancipatória com aqueles que realizam as
práticas corporais exige do professor de Educação Física ouvir e dialogar com o outro,
bem como conhecer as trajetórias ou itinerários individuais e o contexto
macroestrutural ou coletivo que caracterizam o público em foco.
Assim, vale considerar o contexto sociocultural do público que será foco de
intervenção do professor de Educação Física. As condições materiais/objetivas e
simbólicas/subjetivas que atravessam o engajamento nas práticas corporais por
determinados grupos sociais podem ser levadas em consideração na prescrição do
treinamento (SILVA, 2014a). Nesse caso, a ampliação da noção de práticas corporais
voltadas à saúde-doença pela perspectiva antropológica permite o professor de
Educação Física não somente humanizar a sua prática profissional com o outro, mas
também modular as variáveis do treinamento a partir ou com as expectativas e
perspectivas daqueles que realizam as práticas corporais.
Impor, informar, verticalizar ou assumir uma intervenção medicalizada com as
práticas corporais voltadas à saúde exclusivamente a partir de parâmetros técnico-
científicos influencia no compromisso, na adesão e no vínculo daqueles que se
exercitam em diversos espaços onde a área de Educação Física atua. Desse modo, o
profissional de Educação Física tem como desafio entender os motivos, interesses e
lógicas dos sujeitos em realizar as práticas corporais, buscando detectar o que significa
e quais sentidos de saúde-doença para o outro, ou ainda, identificar, por meio da
alteridade, quais ou como acionam determinados dispositivos para cuidar de si. A
prática em saúde na Educação Física deve possibilitar a constante comunicação entre
profissional e o outro, considerando as necessidades os interesses deste com as práticas
corporais e o concebendo como capaz e ativo de agenciar sua própria vida agindo no
momento de exercitar-se conforme suas experiências de vida.
Nesse sentido, interseccionar criticamente os marcadores sociais da diferença
(camada social, gênero, sexualidade, raça/cor/etnia e ciclo de vida) com aspectos que
podem condicionar as representações de saúde-doença (orientação política ou religiosa,
por exemplo) podem fazer parte do cotidiano de orientação do profissional de
Educação Física. Acrescenta-se ainda que a intervenção com o outro deve se pautar
também nos elementos microssociais que atravessam as relações entre saúde-doença e
práticas corporais como o convívio com a família, vizinhos ou amigos na dimensão do
trabalho e do lazer. Em suma, o referencial da Antropologia da Saúde propicia que o
professor de Educação Física conceba a sua atuação de modo contextualizado e
singularizado perante a diversidade ou pluralidade de contextos e grupos sociais.
POLÍTICAS PÚBLICAS
Por fim, outra contribuição do referencial da Antropologia da Saúde para Educação
Física pode se referir às políticas públicas voltadas à saúde. Se a Constituição Federal
(BRASIL, 1988), no artigo 196, aponta que “A saúde é direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos [...] para a promoção, proteção e recuperação”, vale
questionar como os projetos responsáveis por planejar as práticas corporais para a
população estão sendo conduzidos atualmente.
Historicamente, as políticas públicas voltadas à saúde, sobretudo na área de
Educação Física, alinham-se a perspectivas tradicionais e biologizantes de prevenção
em que privilegiam a mudança de atitudes e de comportamentos individuais
responsabilizando os sujeitos, vistos como passivos e carentes de informação, pelas
próprias condições de saúde-doença (BAGRICHEVSKY; ESTEVÃO; PALMA, 2006; DA ROS,
2006; NOGUEIRA; BOSI, 2017). A própria Política Nacional de Promoção da Saúde
(BRASIL, 2010) não deixa claro o sentido político ou conceitual entre estimular a prática
regular de atividades físicas no sentido de buscar efeitos físico-orgânicos reduzindo os
sujeitos ao “biológico” ou valorizar as práticas corporais como um processo
sociocultural que interfere na interação com o movimento humano.
Diante desse contexto, o referencial da Antropologia da Saúde consegue considerar
os aspectos microscópicos responsáveis por influenciar o engajamento dos sujeitos nas
práticas corporais e compreender os determinantes socioeconômicos e culturais que
engendram tal realidade, diferente das práticas em saúde universalistas, biologistas,
individualistas e a-históricas (LANGDON, 2014). Pela própria constituição da Educação
Física ter sido marcada pelo referencial biomédico técnico-científico, a formulação de
políticas públicas de saúde no Brasil ainda é incipiente (BAGRICHEVSKY, 2007).
Assim, há a necessidade de cada vez mais empreender políticas públicas na área de
Educação Física que considerem não somente o caráter universal, utilitário ou
instrumental das práticas corporais, mas também as especificidades ou peculiaridades
locais e das subculturas que propõem-se a movimentar-se em prol do processo saúde-
doença. Para além dos inegáveis benefícios físico-orgânicos proporcionados pela
realização regular das práticas corporais, torna-se imperativo que as políticas públicas
considerem outros elementos igualmente terapêuticos, tais como a criação e
consolidação de vínculos sociais ou afetivos, maior sociabilidade e a vivência lúdica ou
prazerosa de exercitar-se.
A Antropologia da Saúde potencializa práticas em saúde menos segregacionistas e
mais próximas da realidade dos sujeitos. Assim, nas políticas públicas, a eficácia e o
impacto do movimentar-se não devem restringir-se aos benefícios dos parâmetros
biológicos ou à mercantilização vinculada aos lucros da efetividade de sua prática, pois
o que pode ser determinante para a adesão ou manutenção das práticas corporais é o
significado ou o sentido dado pelos sujeitos à saúde-doença ou aos modos terapêuticos
de acordo com seus contextos e grupos sociais. Portanto, formular políticas públicas
voltadas à saúde depende de identificar as nuances de usos do corpo dos sujeitos a
partir substancialmente do ponto de vista simbólico e relacional daqueles que realizam
as práticas corporais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi possível destacar a importância do campo da Antropologia da Saúde para Educação
Física desde a produção acadêmica, passando pela intervenção profissional, até o
planejamento de políticas públicas voltadas à saúde. As dimensões acadêmicas,
profissionais e de gestão face à organização e à sistematização das práticas corporais
tornam-se relevantes para orientar a área de Educação Física na contemporaneidade.
Assim, longe de perder de vista os aspectos macroestruturais que influenciam no
engajamento das práticas corporais, o “exercício antropológico” da Educação Física em
acessar a lógica interna ou microscópica dos sujeitos em suas realidades sociais e
dimensões simbólicas com o movimento humano torna-se um desafio necessário à
área atualmente. Isto é, revelar as ações e experiências individuais e coletivas com as
práticas corporais a fim de relativizar conceitos biomédicos e entender as noções de
saúde-doença ou os mecanismos terapêuticos daqueles que se exercitam mitiga o
“ethos biologizante” ainda marcante na área.
Logo, partindo da posição antropológica de realizar certa leitura do mundo social,
“[...] como um conjunto de normas que visam aprofundar o conhecimento do homem
pelo homem; e nunca como certezas ou axiomas indiscutíveis e definitivamente
assentados” (DaMATTA, 2010, p. 11), entende-se que o conhecimento técnico-científico é
uma condição necessária para a legitimação da área de Educação Física no campo da
Saúde, mas não é suficiente para buscar apreender a pluralidade ou a carga simbólica
incutida na realização das práticas corporais.
Compreende-se, portanto, que a área de Educação Física deve-se apoiar não somente
na lógica estruturada da racionalidade biomédica, mas também nas vivências e nas
experiências simbólicas dos sujeitos com o movimento humano nos diversos grupos
ou contextos sociais. Em outras palavras, “antropologizar” cada vez mais a área
significa entender e explorar os sentidos e os significados atribuídos às práticas
corporais ampliando a maneira de pensar a questão da saúde como um fenômeno
biopsicossocial.
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(DES) CONSTRUINDO A METODOLOGIA: A
ABORDAGEM QUEER PARA PESQUISAS SOBRE
GÊNERO E SEXUALIDADE NO CAMPO DA
EDUCAÇÃO FÍSICA E DOS ESPORTES
Profº. Drnd. Leandro Teofilo de Brito
Docente EBTT do Colégio Pedro II. Doutorando em Educação - ProPEd/UERJ
Prof. Dr. Erik Giuseppe Barbosa Pereira
Professor Adjunto da Escola de Educação Física e Desportos da UFRJ.
Líder do Grupo de Estudos Corpo, Esporte e Sociedade (GECOS)
QUEERIZANDO A METODOLOGIA
A abordagem de pesquisa configurada pela perspectiva queer que aqui apresentamos,
diz respeito à pesquisa de campo da tese de doutorado de um dos autores deste
capítulo, que em linhas gerais, buscou problematizar a presença de jovens adolescentes
atletas que se identificam como gays e bissexuais em equipes de base do voleibol.
Como principal teorização da pesquisa, além da perspectiva queer, a noção de
performatividade de gênero, da teórica feminista Judith Butler se mostrou produtiva
para a discussão sobre a orientação sexual e as performances de masculinidades dos
sujeitos da pesquisa. Butler (2015) afirma que o gênero é performativo pela repetição
estilizada do corpo por falas, atos e gestos, que, com base nas normas regidas pela
heterossexualidade reprodutora, buscam enquadrar os sujeitos arbitrariamente em
modelos binários, inteligíveis e coerentes de sexo-gênero-desejo (sexualidade). Todavia,
este é um processo contingente e imprevisível, pois possibilita, ao mesmo tempo, a
manutenção das normas como possibilidades de rupturas e subversões nas
performances de gênero.
Judith Butler, nesta discussão sobre o gênero performativo, se apropria da noção
derridiana de iterabilidade para afirmar que tal repetição jamais se realiza de forma
plena (BUTLER, 2009; DERRIDA, 1991). A iterabilidade é uma propriedade da linguagem
que explica as dinâmicas sociais de construção dos sentidos pela linguagem, que inclui
a alteridade e jogos de poder, ao afirmar que não se repetirá jamais um mesmo
enunciado de maneira idêntica ao proferido inicialmente, mesmo que os
deslocamentos realizados não sejam perceptíveis e nem sempre se apresentem
relevantes politicamente. Essa ressignificação de sentidos pela linguagem é também
apropriada pelo corpo ao se performatizar um gênero, conforme as construções
teóricas propostas pela teórica feminista.
A captação destes jovens adolescentes atletas ocorreu pela técnica bola de neve
(PATTON, 1990), método que tem como objetivo selecionar a amostra por
conveniência, permitindo que se busque sujeitos com o perfil desejado pela pesquisa.
Como o autor da tese trabalhou em início de carreira como professor de escolinhas de
iniciação de voleibol, o contato com pessoas que atuam no campo como professores/as,
técnicos/as e atletas facilitou a captação destes sujeitos. Os jovens adolescentes, sujeitos
da pesquisa, identificam-se como gays e bissexuais, são atletas de clubes amadores e
ligados à federação do estado do Rio de Janeiro e alunos/atletas com bolsas de estudos
em colégios particulares no mesmo estado.
O método utilizado para coleta de dados, conforme a perspectiva pós-estruturalista
adotada pela pesquisa, optamos por chamar de construção de informações e se dá por
uma proposta de entrevistas narrativas. Reconheceu-se que a operacionalização de
narrativas se mostrava potencial ao enunciar como a experiência de jovens
adolescentes atletas gays e bissexuais se constituía no contexto do voleibol, dando voz
a sujeitos invisibilizados e excluídos historicamente no espaço (hetero)normativo do
esporte. A pesquisa não se pautou em uma técnica de entrevistas pré-estabelecida, mas
em uma proposta que possibilitou a construção de um método através da interlocução
de autores/as situados nos estudos pós-estruturalistas, conforme as proposições de
teorizações aqui apresentadas sobre abordagem teórico-metodológica queer.
Partimos inicialmente para a construção de tal proposta pelos estudos da
pesquisadora argentina Leonor Arfuch, que nomeia de “espaço biográfico” (ARFUCH,
2010, p.9) um local de multiplicidades de narrativas que contam de diferentes modos
histórias e/ou experiências de vida. A denominação espaço biográfico, para a autora,
remete-se a um universo de gêneros discursivos que delineiam um território composto
pela “trajetória individual sempre em busca de seus acentos coletivos” (ARFUCH, 2010,
p.15) e que são expressados por entrevistas, conversas, testemunhos, histórias de vida,
relatos de auto-ajuda, anedotários entre outros. A narrativa, como um destes variados
gêneros biográficos, é postulada como uma dimensão configurativa da experiência,
numa relação dialógica e alteritária que se faz possível dentro dos diferentes espaços-
tempos. Nos deteremos, de forma breve, nestes pontos elencados pela pesquisadora.
Ao discorrer sobre a constituição da experiência, Leonor Arfuch se aproxima da
noção proposta pela historiadora feminista Joan Scott. Neste entendimento, quando a
experiência é tomada como origem do conhecimento, a visão dos sujeitos, seja da
pessoa que viveu a experiência ou a da que narra, torna-se verdade apriorística,
remetendo-se a um entendimento essencialista que opera invisibilizando formas de
como a diferença é estabelecida, como e de que maneira esta informa os sujeitos. Scott
(1998), refutando tal posição, propõe que, ao tornar visível a experiência de um grupo,
se coloque em evidência os processos históricos que, constituídos pelo discurso,
posicionam sujeitos na construção crítica de sua experiência, já que: “Não são
indivíduos que têm experiência, mas sim os sujeitos que são constituídos pela
experiência” (p. 304). Deste modo, interessa à pesquisa como a constituição da
experiência dos sujeitos da pesquisa – identificados como jovens adolescentes atletas de
voleibol gays e bissexuais – são narradas.
Outra noção importante enunciada por Arfuch (2010) é o dialogismo e a alteridade, a
qual a autora se aproxima do filósofo russo Mikhail Bakhtin. Nesta proposta, interagir
com o outro no estudo de campo através de um olhar dialógico e alteritário permite
reconhecer o encontro entre sujeitos como um acontecimento, em que o processo
dialógico é uma forma criativa e produtiva do eu se aproximar com suas palavras às
palavras do outro, possibilitando negociações (BAKHTIN, 2011). O espaço biográfico,
para a pesquisadora, é reconhecido como uma instância de trocas dialógicas que se
materializa, por exemplo, pelas entrevistas, através do diálogo mútuo entre
entrevistador e entrevistado. Conforme coloca a autora: “[...] a forma dialógica é
essencial, tanto para o contato e a configuração mesma do ‘campo’ (o traçado temático,
as variáveis e a amostra que orientarão a posterior indagação), quanto para a produção
interlocutiva desses relatos, segundo objetivos particulares” (ARFUCH, 2010, p. 239). Tal
construção de proposta de entrevistas narrativas favorece um olhar não essencializado
e desnaturalizado promovido no diálogo entre pesquisador e sujeitos entrevistados,
assim como também desconstrói as formas mais usuais de utilização de entrevistas nas
pesquisas acadêmicas.
Durante as trocas dialógicas ocorridas entre pesquisador e sujeitos levou-se em
consideração as iterações - retornando à noção derridiana apropriada por Judith Butler
na noção de performatividade - dos enunciados proferidos nas conversas, focalizando
repetições/deslocamentos sobre as questões de gênero e sexualidade propostas pela
pesquisa. Após a realização destas entrevistas, problematizou-se as mesmas pelo que se
configurou como contextos de iteração (LEITE, 2017). Considerando contexto em
Derrida (1991) como uma instância aberta e instável, realizou-se a leitura das
entrevistas narrativas agrupando contextos de iteração: identificando o contexto mais
imediato que as enunciações apontavam através do diálogo ali desenvolvido. Uma
entrevista gera diferentes contextos de iteração e os mesmos são agrupados conforme
temas, que se relacionam com a pesquisa mais geral propriamente dita, considerando
problema objetivos, roteiro de entrevistas, etc. Apresentaremos um contexto de
iteração que foi nomeado como voleibol feminino e expressa de forma bastante clara as
iterações construídas pelo diálogo:
Thiago Alves: Eu amo ela, acho ela uma mulher excepcional também, teve filho agora e não foi pras
olimpiadas, mas voltou super bem em Osasco, porque é uma jogadora forte, de porrada mesmo na
bola, porradeira como se fala, adoro ficar vendo ela jogar, amo o estilo dela de jogar, entendeu?
Pesquisador: Uma pena ela ter sido cortada das olímpiadas. Discordei daquilo.
Thiago Alves: Aquilo foi maior erro... E ela tem uma página no face pros gays, não sei se é a pagina
dela ou se é um fã clube dela gay que fez a página.
Pesquisador: Verdade. Ela tem essa página sim, mas eu acho que é página dela mesmo e não foi feita
Pesquisador: Verdade. Ela tem essa página sim, mas eu acho que é página dela mesmo e não foi feita
pelos fãs não..
Thiago Alves: Ah, lembrei... Ela fez essa página pros fãs, mas também pra homenagear o irmão mais
novo que joga também e é gay
Pesquisador: Verdade.. já soube dessa história também (risos). A gente sempre sabe tudo pelos grupos
de vôlei no face... Você viu que ela jogou bem ontem na semifinal do paulista?
Thiago Alves: Vi, vi sim. Ela jogou pra caramba e foi maior pontuadora do jogo. Não é a toa que ela é o
destaque do time de Osasco e esse vôlei dela me inspira demais
Pesquisador: Você acha que há uma influência da boa fase do vôlei feminino na formação dos
meninos que jogam na base aqui do Rio?
Thiago Alves: Sem dúvidas que sim. O vôlei feminino é caracterizado por muito rali e as pessoas
querem ver emoção, a bola não cai e sempre se fala assim “essa pessoa é muito habilidosa, como ela
pegou essa bola, etc.” Então as pessoas hoje em dia se motivam pela emoção no esporte e o vôlei
feminino sobra em emoção, porque a bola não cai tão fácil, o saque é difícil de passar. E posso te falar?
A maioria das pessoas que hoje jogam vôlei e gostam de vôlei não tem ido no masculino. Como
também não tem masculino adulto mais aqui no Rio é o feminino mesmo que manda. Mas isso não é
só aqui é em SP também, veja o time de Osasco lá quando vem jogar aqui, que manda ônibus e mais
ônibus com sua torcida.
CONSIDERAÇÕES
O grande desafio de pesquisadores/as que trabalham com metodologias de pesquisa
pós-estruturalistas é situar-se em um universo regulado por normatizações, como é a
pesquisa acadêmica, conduzindo-se em um caminho próprio de inovação, de
transformação e ressignificação do fazer-se pesquisador/a. Desestabilizar
metanarrativas consolidadas no espaço acadêmico coloca tais metodologias de
pesquisa em possível desconfiança, porém a potencialidade de criação de novas
possibilidades e formas de pesquisar favorece um devir de desnaturalização do que está
posto e fixo como verdade absoluta. Por este desafio que reconhecemos a importância
de consolidação destas metodologias nas pesquisas acadêmicas.
Neste sentido não apenas as questões de gênero e sexualidade no campo da
Educação Física e dos Esportes foram focalizadas com o intuito de desconstrução de
seus sentidos mais estabilizados, mas todos os processos que insistem em classificar e
hierarquizar posições que normalizam sujeitos, assim como modos legitimados de
fazer pesquisa tidos como imutáveis em sua “essência”. Queerizar a pesquisa e a
metodologia significa desconstruir-se e desestabilizar-se de uma posição fixa de
pesquisador/a para uma incansável busca pelo infinito de possibilidades.
REFERÊNCIAS
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´études ibériques et ibéro-américaines, v. 1, p. 123-136, 2016.
INTRODUÇÃO
Pesquisa, basicamente, diz respeito ao meio pelo qual alguém se utiliza para resolver
um problema. Não importa tanto a forma de conhecimento envolvido (científico,
religioso, do senso comum, etc.), para solucionar um problema é preciso pesquisar.
Quando ao cidadão comum se apresenta uma dúvida, muito provavelmente, nos dias
de hoje, ele deverá recorrer à internet para encontrar respostas às suas questões. Isto é,
irá pesquisar, ao seu modo, aquele determinado assunto.
Obviamente, o presente ensaio tratará mais especificamente da pesquisa científica.
Tal pesquisa se fundamenta principalmente no rigor para apreender os dados e analisá-
los. Diferente do senso comum, o conhecimento científico requer inúmeros
procedimentos validados, rigorosos e possíveis de serem reproduzidos. Ocorre, porém,
que a forma hegemônica de produção de conhecimento científico anuncia para si um
discurso de verdade e todos os outros modos passam a ser questionáveis, ainda que
mantenham (ou tentem manter) o rótulo de científicos. Kuhn (1997), por exemplo,
questiona o status científico das ciências sociais, na medida em que estas apresentam
muitos desacordos entre os cientistas e podem apresentar respostas menos
consistentes. Talvez, seja possível afirmar que correntes epistemológicas de posições
positivistas e neopositivistas compreendem como científicos apenas os saberes
produzidos a partir da coleta de dados matematicamente mensuráveis por
instrumentos sofisticados. Neste sentido, acreditam que as pesquisas qualitativas ou das
Ciências Sociais ou Humanas não possam gerar resultados confiáveis (SERAPIONI,
2000).
De outro modo, Serapioni (2000) explica que os investigadores que se utilizam da
pesquisa qualitativa argumentam que a pesquisa quantitativa perde validade, uma vez
que não consegue compreender as subjetividades das pessoas envolvidas com
determinados fenômenos.
No campo de competência da Educação Física, tal como na Saúde Coletiva, os
estudos mais pragmáticos são, ainda, fortemente sustentados pelas ciências biológicas,
enquanto outros pesquisadores se valem das ciências sociais e humanas para encontrar
as soluções de seus problemas de pesquisa (LANGDON; WILK, 2010; KNAUTH; LEAL,
2014; PALMA, 2015).
A despeito de toda diferença possível, a pesquisa científica envolvendo seres
humanos precisou ser eticamente regulada. Contudo, os riscos que envolvem
determinadas pesquisas podem ser extremamente distintos. Neste sentido, o objetivo
do presente ensaio é debater algumas questões éticas da pesquisa em ciências Sociais e
Humanas no campo de competência da Educação Física, bem como, destacar as
diferenças entre as Resoluções (466/12 e 510/16) que norteiam a eticidade da pesquisa
científica no Brasil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Resolução 510/16 permite alguns avanços. Embora seja possível argumentar que os
A Resolução 510/16 permite alguns avanços. Embora seja possível argumentar que os
pressupostos que a fundamentam, bem como, suas especificidades pudessem estar
presentes em uma única resolução que a contemplasse em conjunto com a Resolução
466/12, provavelmente, a força política nela contida poderia se esvaziar.
Para o campo da Educação Física, a Resolução 510/16 pode representar, igualmente,
um ganho, uma vez que as investigações do campo podem ser de caráter biológico ou
sociológico/ humanidades. Neste sentido, cabe destacar um exemplo. Guerriero e
Minayo (2013) expuseram a seguinte situação: “Uma professora de educação física
propôs uma pesquisa cujos objetivos eram registrar as regras de um jogo indígena e
identificar em que medida as regras do futebol foram incorporadas nesse jogo. Planejou
assistir às olimpíadas indígenas, observar seu desenvolvimento e anotar as regras
usadas nesse evento que ocorre todos os anos” (p. 774). As autoras, então, comentam e
questionam: “Não seria impossível solicitar TCLE, pois todos os jogadores, nesse caso,
estariam presentes. Entretanto, seria adequado solicitar por escrito a permissão para
assistir a jogos que ocorrem em público?” (p. 774). O exemplo em tela é bastante
pertinente e representa bem as novas possibilidades de análise com a Resolução 510/16.
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