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Meses atrás, uma parceria entre movimentos dissidentes da Igreja Adventista do Sétimo Dia
resultou no lançamento de um projeto audacioso: a publicação de uma Bíblia de estudos com
notas de Ellen G. White, algo inédito em língua portuguesa. A obra foi nomeada de “Bíblia
White” e é resultado de uma parceria firmada entre o Instituto Bíblico de Capitólio (IBC) e do
Instituto de Agricultura de Evangelismo (IAGE), ambos sediados no interior de Minas Gerais. As
entidades, que andam de mãos dadas também em outros projetos, têm em comum a defesa
enfática da Teologia da Última Geração (TUG), que sustenta ideias heterodoxas sobre os
conceitos de pecado, salvação e perfeição cristã, dentre outros temas teológicos de pouca
flexibilidade para discussão.
A “Bíblia White” é um similar nacional da “Remnant Study Bible”, editada por norte-americanos
alinhados com a TUG e vendida nos Estados Unidos com edições em inglês e espanhol desde
2012. Como Bíblias de estudo, ambas reúnem breves textos explicativos (nesse caso, citações
de EGW) que correspondem a versos bíblicos presentes na mesma página. O projeto
brasileiro, entretanto, conta com uma considerável distinção. Além das notas de White, a obra
traz ainda uma tradução inédita da Bíblia em língua portuguesa.[1] Nomeada Almeida Antiga
(AA), a versão também foi preparada pela coalização IAGE/MV, algo pouco comum quando o
assunto são Bíblias de estudo.[2]
O processo de impressão, realizado em uma gráfica no Paraná, foi narrado ao vivo através das
redes sociais por Silveira. No vídeo, ele chegou a afirmar: “Aulas de homilética, hermenêutica,
exegese […] toda essa sabedoria humana nos impede de encontrar as preciosas gemas da
verdade”, uma indiscutível demonstração de desprezo para com alguns dos conhecimentos
envolvidos na tradução de uma Bíblia.
Com essa frase, Silveira fez uma declaração preocupante para alguém que encabeçou uma
equipe editorial. Em certo sentido, ele parece crer que a ignorância impulsiona a busca pela
verdade. Talvez por essa razão sinta-se habilitado para tal serviço. Para Silveira, o chamado
para a reforma não acontece apesar da incapacidade, mas por causa dela. A falta de
conhecimento, para Silveira, é vantagem. Seguindo essa lógica, o que diríamos de Lutero, um
doutor em línguas bíblicas? Assim, proponho um bom lema para a Almeida Antiga: “E não
conhecereis as técnicas, a ignorância os libertará.”
A citação de Silveira, transcrita acima, me parece suficiente para que sejam levantadas dúvidas
a respeito da lisura e precisão da tradução Almeida Recebida, bem como de toda a “Bíblia
White”. E é pela análise de tal tradução que começo minhas avaliações dessa obra.
A afirmação de Kull, entretanto, encontra conflitos com uma declaração do Centro White a
respeito das traduções bíblicas utilizadas por Ellen: “Mesmo sendo costume de Ellen White
usar a King James Version, ela fez uso ocasional de outras traduções inglesas que estavam se
tornando disponíveis em seus dias. Contudo, ela não comenta diretamente sobre os méritos
dessa ou daquela versão, mas fica claro pela sua prática que ela achava desejável que se
fizesse uso da melhor versão disponível da Bíblia. Por exemplo, em seu livro A Ciência do Bom
Viver, Ellen White empregou oito textos da English Revised Version (ERV), 55 da American
Revised Version (ARV), dois da tradução de Leeser, e quatro de Noyes, além de sete variantes
marginais. Entretanto, em suas pregações, Ellen White preferia usar a linguagem da King
James Version porque era a mais familiar para os seus ouvintes.”[4] Cabe dizer que a ERV e
ARV não são baseadas no Textus Receptus, ardorosamente defendido por Kull e Silveira, e
foram, sim, utilizados por Ellen White. Mais do que isso, diz o Centro White, a preferência de
Ellen pela KJV seria por conta da familiaridade do público, não de sua superioridade.
Kull e Silveira, que admitem não ter domínio ou familiaridade com as línguas bíblicas – e talvez
por isso desdenhem dos conhecimentos técnicos –, exaltam a suposta superioridade de sua
Almeida Antiga (AA) defendendo uma pretensa fidelidade superior, baseada no Textus
Receptus, em detrimento das demais traduções atualmente disponíveis em português. Silveira,
aliás, citou nominalmente em vídeo as versões publicadas pela Sociedade Bíblica do Brasil
(SBB) como não sendo confiáveis. Se considerado o Textus Receptus como balizador para a
qualidade, dentro do catálogo de versões disponibilizadas pela SBB, a Almeida Revista e
Corrigida, seria a mais próxima do ideal. Entretanto, mesmo tendo sido baseada no Textus
Receptus, utiliza-se de outros manuscritos em alguns trechos. Apesar disso, outras opções em
língua portuguesa preenchem tais requisitos. Feita inteira e exclusivamente a partir do Textus
Receptus, a Almeida Corrigida Fiel, da Sociedade Bíblica Trinitariana, seria uma boa opção.
Outra possibilidade seria a tradução King James 1611, da BV Books. Ambas são traduções em
nosso idioma que prezam pelo uso exclusivo do Textus Receptus. Se esse fosse o critério, elas
deveriam ser consideradas opções válidas para a “Bíblia White”. Entretanto, em nenhuma delas
poderia haver qualquer modificação, por mínima que fosse. Assim, as “correções” criativas de
Silveira (como em João 5:32) não seriam admitidas no texto. O uso irrestrito do Textus
Receptus, conforme exposto, não pode ser colocado como uma novidade trazida pela Almeida
Antiga.
Cabe dizer ainda que a AA é resultado de uma comparação entre a tradução de Almeida
(1848) e a King James Version (1611), conforme dito pelo próprio Silveira na apresentação da
Bíblia White, com algumas correções ortográficas e mudanças realizadas por conveniência
teológica, conforme será exposto mais adiante. É possível dizer que a AA se trata de uma
paráfrase, um arremedo de traduções. Não se trata de uma versão proveniente do tão exaltado
Textus Receptus, mas de traduções dele derivadas.
Também adventista, o brasileiro Wilson Paroschi afirma que com a descoberta de manuscritos
mais antigos, o trabalho de Erasmo em seu Textus Receptus perdeu espaço: “Apesar de os
críticos ainda divergirem com relação a algumas das teorias textuais, todos buscavam um texto
que estivesse o mais próximo possível do original e, nesse novo período, sob os mais violentos
protestos, romperam definitivamente com o Texto Recebido.”[7]
Em seu livro, Paroshi desmonta ainda algumas das argumentações de Silveira a respeito das
diferenças entre o texto da Almeida Antiga e traduções contemporâneas, tecnicamente
chamadas de variantes textuais. Silveira afirma que as novas traduções estão retirando trechos
bíblicos inteiros e reage dizendo, também em vídeo: “Nós queremos a Bíblia inteira, não
adulterada, não cropada.” Ele dá Mateus 6:13 como exemplo de texto bíblico “depenado” em
versões modernas, mas que se encontra intacto na Almeida Antiga, dizendo que o trecho
“Porque Teu é o reino e o poder, e a glória, para sempre, Amém” desapareceu.
Sobre o verso, entretanto, crítico textual afirma: “Na tradição protestante, a oração termina com
a doxologia ‘pois Teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém’, que está ausente na
tradição católica. E parece que esta é a que está correta, tanto que as modernas edições
evangélicas da Bíblia já estão omitindo essa leitura. […] As evidências documentais, portanto,
sugerem que a doxologia do Pai-nosso consiste num acréscimo posterior.[8] Em outras
palavras, o trecho que Silveira reivindica, na realidade, não estava presente nos originais
bíblicos. A retirada consiste, portanto, em um texto mais fiel, e não menos, como defendido por
ele.
Outra mudança lamentável é a de Mateus 28:19. A ordem de Jesus com “Portanto, vão e
façam discípulos de todas as nações” (NVI) é traduzida por “Ide, portanto, ensinai todas as
nações”. Silveira justifica tal mudança dizendo que discipulado “tem a ver com coaching”, e que
a tradução correta é “ensinai”, uma vez que é assim que está na KJV. Mais uma vez Silveira
pisa no Textus Receptus, no qual o verbo grego encontrado aponta para o equivalente em
português a “discípulos” e não “ensino”.
PODERIA SER DIFERENTE. Acredito que uma alternativa que daria algum ar de legitimidade
ao trabalho do IAGE/MV com a “Bíblia White” seria a publicação de um volume de comentários
separados dessa tradução trágica, como já foi feito no passado pela extinta Review and Herald
(se bem que a publicação de textos de Ellen White em novos volumes deve contar sempre com
a aprovação dos Depositários do Patrimônio Literário White). Ainda hoje esse material é
vendido nos Estados Unidos.[10] Isso não daria margem para interpretações incorretas no que
diz respeito à falsa equidade entre os escritos de White e a Bíblia.
Por fim, a Bíblia White apresenta-se com falhas graves provenientes de um trabalho editorial
ineficaz. Lamentavelmente, essa obra será recebida com tapete vermelho por alguns
adventistas desavisados. Mal sabem que se trata de um “cavalo de Troia”. Se não podemos
confiar na tradução, o que dizer da compilação dos Testemunhos realizada? Mas isso é
assunto para outra oportunidade.
Davi Boechat trabalhou no Correio da Lavoura, Jornal de Hoje e Conecta Baixada, veículos da
Baixada Fluminense, na região metropolitana do Rio de Janeiro; atualmente cursa Direito na
Universidade Iguaçu (UNIG)
Referências:
“Daniel Silveira, agricultor em Capitólio MG, começou seus trabalhos na “Bíblia White” em
2016, partindo da versão Almeida Recebida, de domínio público. […] Em seguida foi feito um
trabalho de comparação e igualação à versão em inglês King James (KJV) de 1611 em
grandes extensões do texto bíblico, especialmente nos profetas do Antigo Testamento, por
Daniel Silveira. Onde EGW lança luz sobre um texto em que mesmo na King James de 1611
está errado, também foi efetuada a correção.” Disponível em: http://bibliawhite.org/sobre
Em geral, editoras que lançam Bíblias para estudo optam por traduções consagradas e
conhecidas no mercado editorial, geralmente com o reconhecimento de sociedades bíblicas. A
“Bíblia de Estudos Andrews”, publicada pela Casa Publicadora Brasileira, por exemplo, utiliza a
versão Almeida Revista e Atualizada, da Sociedade Bíblica do Brasil. A própria “Remnant Study
Bible” é disponibilizada em duas versões: além da clássica King James Version, que está em
domínio público, conta ainda com uma edição que utiliza a New King James Version, licenciada
pela Thomas Nelson Publishers.
Esse texto é parte de uma mensagem enviada por Kull a Reginaldo Castro.
Centro White. “Ellen White usou outras traduções de Bíblia além da King James Version?”
<disponível em: http://www.centrowhite.org.br/perguntas/perguntas-sobre-ellen-g-white/os-
ensinos-de-ellen-g-white/>
Introdução à Exegese Bíblica, p. 71, Thomas Nelson Brasil.
“O ‘Textus Receptus’ e as traduções modernas da Bíblia.” <Disponível em:
https://adventistbiblicalresearch.org/pt-br/materials/bible-canon-and-versions/o-
%E2%80%9Ctextus-receptus%E2%80%9D-e-tradu%C3%A7%C3%B5es-modernas-da-
b%C3%ADblia>
Crítica Textual do Novo Testamento, p. 123, 124, Edições Vida Nova.
Para uma definição de hermenêutica texto-prova e sua influência no meio adventista, consulte
o artigo de Isaac Malheiros “Dicta Probantia: Uma Reflexão sobre o uso de ‘textos-prova’ na
hermenêutica adventista” <Disponível em: http://www.seer-
adventista.com.br/ojs/index.php/hermeneutica/article/view/495>
Ellen G. White Comments from the Seventh-day Adventist Bible Commentary <Disponível em:
https://www.adventistbookcenter.com/ellen-g-white-comments-from-the-seventh-day-adventist-
bible-commentary.html>
https://www.adventistbookcenter.com/ellen-g-white-comments-from-the-seventh-day-adventist-
bible-commentary.html