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Daniel Thin
Universidade Lumière Lyon 2, Faculdade de Antropologia e Sociologia
Introdução: refletir sobre as relações Podemos apreender as relações com base nas di-
entre famílias populares e escola ferenças de capitais associados às posições sociais,
fazendo uso do conceito de capital cultural, criado
Em qualquer pesquisa, quando construímos um por Pierre Bourdieu (1979a, 1979b), para analisar as
objeto ou uma forma de abordar e tratar uma questão, diferenças entre classes sociais nas relações com a
o fazemos comumente de maneira a ultrapassar os escola (Lareau, 1989). Insistimos então na fraqueza
discursos, os pontos de vista ou as abordagens que dos recursos culturais e escolares que os pais podem
nos pareçam precários ou insuficientes. No que mobilizar em suas relações com a escola e para con-
concerne às relações entre as famílias populares e a tribuir para a escolaridade de seus filhos, assim como
escola, ou à relação das famílias populares com a es- nos efeitos de dominação gerados por essa relativa
colarização, o discurso que mais freqüentemente en- fraqueza em termos de capital cultural. Em uma pers-
contramos nos ambientes educacionais é o discurso pectiva próxima a essa, as relações podem ser vistas
normativo, que tende a insistir naquilo que, do ponto como relações entre indivíduos ou grupos que ocu-
de vista da instituição escolar, é percebido como dé- pam posições diferentes no espaço social: de um lado,
ficit da ação dos pais no que tange à escola, ou seja, os professores, membros das classes médias assala-
como déficits educacionais. Esse discurso é particu- riadas; de outro, as famílias populares, caracteriza-
larmente fértil, uma vez que se dirige às frações mais das por seu pertencimento às classes sociais mais des-
dominadas e mais carentes das classes populares, providas e mais dominadas no espaço social. O sentido
aquelas que são mais afetadas pela precariedade da das relações está, portanto, todo contido nas diferen-
existência. Para escapar a essa visão depreciativa, que ças entre as posições objetivas dos indivíduos e dos
não permite levar em conta as relações das famílias grupos no espaço social. Enfim, podemos assinalar
populares com a escola e a escolarização, várias abor- que as relações entre famílias populares e escola sur-
dagens sociológicas podem ser mobilizadas. gem das relações entre instituições de socialização e
de enquadramento e membros de classes populares, se entrelaçam ao redor de um fenômeno que tem suas
relações consideradas na perspectiva de um controle próprias características (irredutíveis às características
social exercido sobre as famílias (Donzelot, 1977).1 de uma classe social), a escolarização, e de relações
Essas abordagens permitem evitar os discursos que por meio das quais são confrontadas práticas sociali-
adotam o ponto de vista da instituição escolar, e es- zadoras divergentes. Para compreender as relações
clarecem várias dimensões das relações entre as fa- entre as famílias populares e a escola, é preciso levar
mílias populares e a escola. Aliás, elas não estão to- em conta o fato de que essas relações colocam em
talmente ausentes de nossas próprias análises, por jogo maneiras de estar com as crianças, maneiras de
exemplo, quando observamos a ação empreendida examinar as aprendizagens, maneiras de comunicar,
pelos agentes da instituição escolar para tentar impor ou, ainda, maneiras de regular os comportamentos
aos pais outras práticas socializadoras ou outras re- infantis ou juvenis. As relações produzidas pela esco-
gras familiares de vida, ou ainda quando estudamos a larização revelam sujeitos sociais cujas práticas so-
ação dos dispositivos encarregados de remediar as cializadoras são muito diferentes, freqüentemente
rupturas escolares de estudantes dos meios populares contraditórias, entretecidas por lógicas antinômicas:
(Kherroubi, Millet & Thin, 2005). Além disso, temos de um lado, os professores, cujas lógicas educativas
realmente de falar de famílias que possuem “fraco fazem parte daquilo que chamamos modo escolar de
capital cultural”, se o medirmos pelos diplomas e pelo socialização; do outro, famílias populares com lógi-
número de anos de escolarização dos pais, e pela sua cas socializadoras estranhas ao modo escolar de so-
distância com relação à cultura dominante. cialização. Não é, portanto, somente o capital cultu-
Entretanto, parece-nos que essas abordagens dei- ral ou o capital escolar que estão em jogo; é o conjunto
xam de fora questões centrais que envolvem as rela- das práticas socializadoras das famílias que estão
ções entre famílias populares e escola. O capital cul- implicadas nas relações entre os pais e os professo-
tural é certamente um indicador valioso quando se res, e essas práticas devem ser compreendidas por sua
trata de classificar os sujeitos sociais e suas práticas distância do modo escolar de socialização, mais do
culturais e educativas, compará-los, situá-los uns em que pelo capital escolar dos pais. Nossas pesquisas
relação aos outros, mas não permite, por si só, resti- sobre as relações entre famílias populares e escola
tuir ou resumir a diversidade e a complexidade das (Thin, 1998) nos levaram a entender essas relações
práticas.2 Ele deixa de lado as relações efetivas dos naquilo em que elas são urdidas por dissonâncias e
pais com a escola, a forma como os pais se apropriam tensões entre lógicas socializadoras divergentes, até
da escolaridade de seus filhos, o sentido que eles atri- mesmo contraditórias, e, finalmente, como o lugar de
buem a isso, as práticas socializadoras familiares, uma confrontação desigual entre dois modos de so-
apesar das correlações que podemos estabelecer en- cialização: um, escolar e dominante; o outro, popular
tre práticas e capital escolar, correlações que são a e dominado.3
manifestação dos efeitos duráveis da socialização
exercida pela escola.
Acima de tudo, se nos limitarmos a essas dimen-
3
Essa tese, aliás, perpassa nossos trabalhos mais recentes.
sões, esqueceremos a especificidade de relações que
Assim, uma pesquisa sobre os percursos de rupturas escolares toma
como ponto de partida que o fundamento dessas rupturas reside
na contradição entre as lógicas sociais nas quais os alunos oriun-
1
Para um retorno crítico à noção de controle social e sua dos de famílias populares (e, particularmente, os mais domina-
crítica, ver Darmon (1999). dos) vivem e são socializados, e as lógicas escolares. Ver Millet e
2
Sobre esse assunto, ver Lahire (1995). Thin (2003, 2005).
4
Encontramos também uma concepção de socialização que morais exigidos dela pela sociedade política em seu conjunto, e
permite pensar uma socialização não-normativa em Berger e pelo ambiente específico ao qual ela está particularmente destina-
Luckmann (1986). da” (Durkheim, 1985, p. 51). O autor faz com que esse enunciado
5
Nessa ótica, a noção de socialização também não é seja precedido pela seguinte frase: “A educação é a ação exercida
assimilável à educação que tenha “por objeto suscitar e desenvol- pelas gerações adultas sobre aquelas que ainda não estão
ver na criança um certo número de estados físicos, intelectuais e emparedadas pela vida social”.
intrafamiliares, e formas de socialização. Além dis- lógica educativa da “pedagogia do jogo”; ou, ainda,
so, Bernstein trata das relações entre “socialização quando insiste nas condições sociais que favorecem
escolar” e socialização nas famílias, e enfatiza que, ou não uma “redefinição do papel pedagógico da mãe
para as crianças de classes superiores, a escolariza- de família” (idem, p. 304). Finalmente, a relação com
ção é “fonte de desenvolvimento cultural e simbóli- a infância que se impõe na escola maternal, e que
co”, e, para as crianças de classes populares (famílias constitui uma dimensão do modo escolar de sociali-
operárias), ela é uma “experiência de mudança sim- zação, está mais próxima das famílias de classes su-
bólica e social” (Bernstein, 1975, p. 192). Ele aborda periores que das famílias populares. Com esse texto
ainda a questão da relação com os brinquedos em di- de Chamboredon, vemos como, afinal, essa relação
ferentes tipos de famílias, mostrando a proximidade se constrói pelas proximidades entre o modo escolar
da concepção de brinquedos nas classes superiores e de socialização, ou uma de suas variantes, e determi-
a que ocorre na escola maternal6 (idem, p. 159) e a nadas classes sociais, simultaneamente por seu capi-
distância entre essa última e a concepção das mães de tal cultural e por suas condições de existência.
famílias operárias. Assim, seus trabalhos abrem ca- Quando aborda outro objeto, a delinqüência ju-
minho (pelas ligações que ele estabelece entre códi- venil, Jean-Claude Chamboredon convida mais cla-
gos lingüísticos e socialização) para pesquisas sobre ramente a se pensar na diversidade dos modos de so-
as consonâncias e dissonâncias entre a socialização cialização em função das classes sociais. Ele insiste
escolar e as diferentes socializações familiares. principalmente nas diferentes formas de regulação dos
Por sua vez, Jean-Claude Chamboredon trata da comportamentos infantis e adolescentes de acordo
socialização na escola em suas relações com a socia- com as classes sociais: “os ‘fracassos’ de socializa-
lização fora da escola, ou seja, nas famílias, através ção não são dissociáveis das condições de socializa-
do modo de socialização na escola maternal. Destaca ção e das formas de regulação características de cada
que o desenvolvimento da escolarização no nível da classe social: estas, de fato, definem, senão o conjun-
escola maternal tem efeitos diferentes de acordo com to das causas da delinqüência, ao menos suas condi-
as classes sociais, “a ‘descoberta’ da primeira infân- ções de possibilidade de surgimento” (Chamboredon,
cia como objeto pedagógico podendo ter conseqüên- 1997, p. 170). Ressaltando que a delinqüência juve-
cias opostas nas diferentes classes: de um lado, desa- nil não é redutível a uma rejeição das normas con-
possamento da família em proveito da escola; de outro vencionais, mas remete às diferenças ou aos afasta-
lado, extensão das funções de inculcação da família, mentos da socialização, e que ela não tem o mesmo
graças à ‘invenção’ de um novo ‘terreno’ e de novos significado nas classes populares e nas classes médias,
métodos de socialização” (Chamboredon & Prevot, em função das posições das famílias no seio de suas
1973, p. 297). Chamboredon estabelece uma relação classes e das práticas de socialização, Chamboredon
explícita entre as condições sociais de existência e a permite que se examine o que poderíamos denominar
socialização quando coloca a questão da relação en- conflitos de socialização ou conflitos entre lógicas so-
tre trabalho e jogo nas diferentes famílias, que varia cializadoras, ao mesmo tempo em que se esquiva de
de acordo com as condições mais ou menos uma concepção normativa da socialização.
limitadoras e mais ou menos penosas de trabalho, e Apoiados principalmente nesses dois autores e
que traz possibilidades diferenciadas de apreender a nos trabalhos do GRS sobre a forma escolar como
modo de socialização dominante, foi possível desen-
volver uma análise das relações entre famílias popu-
6
Na França, a educação básica compreende a escola mater- lares e escola em termos de confrontação entre as ló-
nal, não obrigatória, que recebe crianças de zero a seis anos, a esco- gicas socializadoras diferentes, com freqüência
la elementar, obrigatória a partir dos seis anos, e o colegial. (N.T.) divergentes, às vezes, antinômicas.
Uma confrontação desigual so não esquecer que ele é produto de uma profunda
oposição entre duas lógicas sociais diferentes. Portan-
Essa confrontação acontece entre dois conjuntos to, falar de confrontação entre as lógicas escolares e as
de lógicas socializadoras relativamente distintas uma lógicas das famílias populares não significa que as re-
da outra, e que podem se traduzir em práticas lações sejam necessariamente conflituosas. Se a noção
antinômicas (por exemplo, no que diz respeito à auto- de confrontação indica claramente a existência de uma
ridade, ou em matéria de linguagem, ou ainda do jogo). tensão constitutiva das relações entre as lógicas e as
Esses pontos de distanciamento, essas diferenças, essa práticas mais ou menos antinômicas, essa tensão pode
oposição entre esses dois conjuntos de lógicas sociali- ser solucionada por ajustes recíprocos, por apropria-
zadoras são de natureza estrutural, porque estão fun- ções mais ou menos conformes às lógicas escolares,
damentados na estrutura das relações sociais (que ou ainda por uma coexistência em que os protagonis-
entrecruzam, como sabemos por meio de Bourdieu, tas das relações se mantenham distantes uns dos ou-
dimensões econômicas e dimensões culturais). Acre- tros. É preciso ter claro, ainda, que confrontação desi-
dito, além disso, que esse ponto de vista está presente gual e o predomínio do modo escolar de socialização
também em Bernstein, quando destaca os vínculos exis- (e, ao mesmo tempo, das lógicas da escola) na relação
tentes entre os dois códigos de comunicação, assim não significam que a situação seja confortável para os
como as duas formas de socialização e as relações so- professores, nem, ao contrário, que as práticas dos pais
ciais. Essa confrontação entre dois pólos (o pólo das não sejam constrangedoras para os professores. Sabe-
lógicas escolares e o pólo das lógicas populares) é, ao mos que essa confrontação torna complexo o trabalho
mesmo tempo, o encontro entre um pólo dominante e dos professores quando as práticas dos pais não cor-
um pólo dominado, o que justifica a proposição de uma respondem às suas expectativas. Essa confrontação tem
confrontação desigual (Thin, 1994a). Ela é desigual no também incidências nas famílias, que podem ser
sentido de que as práticas e as lógicas escolares ten- desestabilizadas até em suas práticas socializadoras com
dem a se impor às famílias populares. Ela é desigual seus filhos, e até em sua autoridade parental, mesmo
no sentido de que os pais, tendo pouco (ou nenhum) quando a escola pode tentar “valorizar novamente” os
domínio dos conhecimentos e das formas de aprendi- pais ou requalificá-los em seus papéis de pais. Na ver-
zagem escolar e dominando mal as regras da vida es- dade, como em todas as relações sociais, estas aqui são
colar, são, não obstante, obrigados a tentar participar relações de interdependência, no sentido em que
do jogo da escolarização, cuja importância é grande Norbert Elias (1991a, 1991b) as teorizou, gerando obri-
para o futuro de seus filhos. Ela também é desigual gações de interdependência tanto nas famílias quanto
porque os professores, como agentes da instituição es- nos professores.
colar, têm o poder de impor às famílias que elas se
conformem às exigências da escola (pelo menos às mais Lógicas socializadoras escolares e
elementares entre elas). Ela é desigual, ainda, porque modo escolar de socialização
os pais têm o sentimento de ilegitimidade de suas prá-
ticas e de legitimidade das práticas dos professores. É Em um pólo da confrontação encontramos as ló-
dessa confrontação desigual que nasce a maioria dos gicas escolares incorporadas pelos professores e an-
mal-entendidos, das inquietações, das dificuldades en- coradas na instituição escolar e na história social de
tre os professores e as famílias populares. Tais dificul- seus agentes. Essas lógicas estão inscritas no mundo
dades não podem ser analisadas como produto de uma escolar de socialização, produto de um processo his-
simples incompreensão que basta ser esclarecida para tórico de transformação do modo de socialização e
que as relações melhorem. As dificuldades são estru- de relação com a infância dominante em nossas for-
turais e, se queremos falar em mal-entendido, é preci- mações sociais. Não podemos, portanto, estudar as
relações entre professores e famílias populares sem deixadas nas ruas.8 A forma escolar é uma forma de
nos interrogarmos sobre as lógicas escolares e o modo relação social específica, no sentido de que ela é, antes
escolar de socialização que se impõe como modo de de tudo, uma relação pedagógica. O único sentido da
socialização dominante em nossa formação social, as relação é a educação. Os adultos que rodeiam as crian-
lógicas socializadoras que esse modo implica ocupan- ças têm como única tarefa educá-las e formá-las atra-
do amplamente o espaço da instituição escolar. As vés de atividades que não têm outro fim senão a for-
lógicas escolares, para além da diversidade das práti- mação das mentes e dos corpos. A forma escolar inclui
cas de ensino, inscrevem-se e encontram sua unida- também as aprendizagens separadas da prática. Não se
de, sua coerência, seu fundamento no modo escolar aprende mais fazendo ou repetindo os gestos daqueles
de socialização, conceito que se apóia nos trabalhos que sabem (praticamente), participando de tarefas co-
sócio-históricos sobre a forma escolar desenvolvidos tidianas e imitando. Aprende-se por meio de exercí-
pelo GRS (Vincent, 1980; Vincent, Lahire & Thin, cios concebidos para fins exclusivos de aprendizagem.
2001).7 A forma escolar é constituída, no decorrer de Além disso, na forma escolar, a socialização passa pela
um longo processo histórico, como forma de relações aprendizagem de regras, e a relação entre o mestre e o
sociais e de socialização que, sem ser completamente aluno deve-se basear em regras impessoais ou “su-
homogênea, partilha um certo número de traços arti- prapessoais”, que se aplicam tanto ao professor quanto
culados entre si e que caracterizam uma maneira de ao aluno: ela não pode depender do humor do pedago-
socializar que se impôs como predominante em vá- go, ou de suas afinidades (ou incompatibilidades) com
rias sociedades modernas. esse ou aquele aluno. Esse é um dos fundamentos da
A forma escolar é, antes de tudo, caracterizada por disciplina escolar, e o duplo sentido disso não aconte-
um espaço e um tempo específicos. A socialização opera- ce por acaso: as disciplinas escolares são entretecidas
se, então, fora da vida social comum, num espaço fe- pela aprendizagem de regras (regras gramaticais, re-
chado e resguardado dos olhares “não-pedagógicos”. gras matemáticas, regras de apresentação etc.). Assim,
Esse é o princípio do enclausuramento escolar. A so- por meio das aprendizagens desenvolve-se um traba-
cialização ocorre fora das temporalidades da vida so- lho educativo e moral. A construção da forma escolar
cial, segundo ritmos que são próprios da escola e que participa de maneira central da instauração de uma nova
se baseiam no princípio de um emprego bem estrutu- relação com a infância, e de uma nova forma de socia-
rado do tempo, deixando o mínimo de tempo possível lizar. A criança é constituída como um ser específico
para o tempo livre de toda rotina e de toda atividade que surge de uma ação específica, distinta das outras
escolar ou educativa. Impera a obsessão pela ocupa- atividades sociais, e que chamamos de educação. A
ção incessante das crianças, sobretudo das crianças separação da infância, que se realiza preferencialmen-
pobres, que não devem ficar entregues a si mesmas e te nas escolas, é uma separação social que constitui
uma categoria etária, progressivamente desmembrada
em subcategorias, sobre a qual deve ser exercida a ação
7
O conceito de modo escolar de socialização lembra exa- educativa, “a socialização metódica da nova geração”
tamente que o que está em jogo são as modalidades de socializa-
ção, e permite evitar os riscos de leitura reificante, aos quais a
noção de forma escolar nem sempre escapa. Falar de modo esco- 8
É, aliás, surpreendente reencontrar essa “obsessão” rela-
lar de socialização é uma maneira de tornar mais operacional o cionada às crianças das classes populares no momento em que,
conceito de forma escolar e colocar em suspenso a questão da num país como a França, ressurge o medo das “novas classes pe-
unidade ou da unicidade da forma escolar, para pensar um modo rigosas” e de seus filhos, isto é, das classes pobres, vítimas da
de socialização com orientações partilhadas por diferentes variantes precariedade de existência e, com freqüência, relegadas a morar
ou diferentes evoluções da forma escolar. em bairros segregados.
de que fala Émile Durkheim (1985, p. 51), ação espe- vários aspectos às lógicas escolares. Essas lógicas
cializada que requer competências específicas. “Ad- socializadoras populares enraízam-se e perpetuam-
mite-se, doravante, que a criança não está madura para se por meio da socialização familiar, das condições
a vida, que é preciso que ela seja submetida a um regi- sociais de existência que se afastam das lógicas es-
me especial, a uma quarentena, antes de deixá-la jun- colares, e da própria escolarização (ou falta de esco-
tar-se aos adultos” (Ariès, 1973, p. 313).9 Certamente, larização) dos pais, que está na base de sua relação
a forma escolar que foi elaborada a partir dos séculos com a escola, mas também de sua relação com a lin-
XVI e XVII na França passou por muitas transforma- guagem e com a cultura escolar. As diferenças entre
ções ao longo do tempo. Assim, podemos lembrar que os dois conjuntos de lógicas socializadoras são per-
nas escolas francesas havia um abrandamento das re- cebidas em uma grande variedade de dimensões.
gras e a possibilidade de construí-las em conjunto com Assim, contrariamente ao modo escolar, que tende a
os alunos, ou ainda a insistência na “autonomia” do separar tempo de aprendizagens e tempo de práti-
aluno, ou seja, a busca de produção de uma auto-obri- cas, a socialização familiar no ambiente popular
gação e de uma autodisciplina na criança, para que ela acontece principalmente através dos atos da vida
estabeleça suas práticas, seus comportamentos, de acor- cotidiana, na convivência de adultos e crianças, sem
do com suas próprias regras, normas ou leis... No en- separação da vida comum da família ou do bairro.
tanto, se a escola de hoje não é mais aquela em que Os pais não constroem momentos específicos de ação
nasceu a forma escolar, ela conserva lógicas que sur- educativa com seus filhos, como podemos observar
gem fundamentalmente dessa forma escolar. Além dis- nas famílias de classes médias e superiores. Eles não
so, o modo escolar de socialização exige um modo transformam os momentos de jogo em momentos
dominante de socialização, não apenas pelo lugar sem- educativos, mas os vivem como momentos de pra-
pre muito importante ocupado pela escola nas socieda- zer compartilhado, com freqüência em relações cor-
des modernas, mas também porque ele se impõe como porais pouco mediatizadas por jogos que impõem
modo de socialização para além das fronteiras da es- regras formais. As diferenças passam igualmente
cola e entretece várias instâncias de socialização (como pelas práticas de linguagem que, além do fato de
as atividades de extensão ou extracurriculares) (Thin, sinalizarem um fraco domínio da linguagem esco-
1994b) e partes do espaço social, a ponto de podermos lar, estão estreitamente ligadas ao modo de sociali-
falar de “pedagogização das relações sociais” (Bernard, zação familiar, à estruturação das relações intrafa-
1984, p. 18). miliares e à relação com a escrita na família
(Bernstein, 1975; Lahire, 1993). Em muitos domí-
Lógicas socializadoras populares nios, as lógicas familiares vão de encontro às lógi-
cas escolares, pois essas lógicas familiares surgem
No outro pólo da confrontação, as lógicas so- das relações entre pais e filhos, dos modos de comu-
cializadoras das famílias populares opõem-se em nicação, das temporalidades familiares, ou aparecem
diretamente da sua compreensão da escolarização e
de suas relações com a escola e com os professores.
9
Essa transformação não deixa de ter ligação com o que Podemos desenvolver aqui algumas dessas dimen-
Norbert Elias chamou “processo de civilização”, que supõe a cons- sões das lógicas e das práticas familiares.
trução de indivíduos para os quais a auto-obrigação se sobrepõe à
obrigação exterior. O desenvolvimento dessa auto-obrigação re- O modo de autoridade
quer um trabalho que forme hábitos e disposições, trabalho que
pode ser mais bem realizado com as crianças que são submetidas A autoridade dos pais e o modo de ação sobre as
a uma ação pedagógica sistemática. Ver Elias (1973, 1975). crianças apóiam-se, sobretudo, no princípio de uma
pressão exterior que supõe uma vigilância direta e de as crianças comportarem-se, por si mesmas, de
práticas de controle dos comportamentos. Encontra- acordo com as regras da vida escolar e, de modo mais
mos poucas regras dirigindo cada momento da vida amplo, social. A autonomia (forma de autocontrole)
da criança quando ela está dentro ou fora de casa, assim concebida é não apenas buscada, mas às vezes
mas a transgressão de limites que não podem ser ul- também esperada pelos professores, que gostariam que
trapassados, sejam eles limites territoriais ou de seus alunos fossem autônomos desde o momento em
aceitabilidade, acarreta diferentes formas de repres- que entram em sua sala de aula. Desse ponto de vista,
são verbal ou física. Os pais fixam os limites a serem as práticas dos pais, apreendidas por meio do com-
respeitados de forma imperativa, ou seja, eles são portamento de seus filhos, ou diretamente, nos en-
pouco negociáveis, e fora deles concedem toda liber- contros com os professores, parecem, para estes, muito
dade. A autoridade manifesta-se na forma de sanções distanciadas das práticas que desenvolvem a autono-
contextualizadas, isto é, sanções aplicadas diretamente mia das crianças.
ao ato repreensível ou reprovado, e que têm como Esse distanciamento faz com que os pais sejam
objetivo primeiro interromper o ato. Esse modo de com freqüência percebidos pelos professores como
autoridade implica que a autoridade, inseparável do fracos do ponto de vista da autoridade que exercem
contexto no qual ela se aplica, só pode ser exercida sobre suas crianças (ao mesmo tempo “muito rígidos”
pela presença física dos pais. Isso não ocorre facil- e “muito permissivos”), “fraqueza” que estaria na ori-
mente nas relações com os professores. Quando estes gem dos comportamentos não conformes às regras
pedem aos pais que intervenham para regular os com- escolares apresentados por certas crianças dos meios
portamentos de seus filhos na escola, os pais sentem- populares. Outra conseqüência é que, quando os pro-
se impotentes e devolvem aos professores sua pró- fessores apelam para a autoridade dos pais, eles sem-
pria responsabilidade quanto à vigilância direta de pre podem recear que ela seja exercida de acordo com
comportamentos no espaço escolar. Essa atitude modalidades muito afastadas da norma escolar de
parental, então, deixa de ser interpretada como um autoridade, principalmente porque os pais das famí-
sinal de abandono do seu papel de pais. Ao mesmo lias populares comumente usam castigos corporais
tempo, nas famílias populares, fica-se do lado oposto para punir os atos repreensíveis.11 Essa confrontação
de práticas que visem de maneira privilegiada trans- dos modos de autoridade é carregada de uma
mitir e fazer interiorizar uma moral por meio de um desqualificação potencial dos pais. Estes podem sen-
discurso educativo, a produzir disposições pela ex- tir-se duplamente desqualificados: primeiro, porque
plicitação de princípios morais, que permitem que as têm pouco domínio sobre o comportamento de seus
crianças participem, discernindo as “boas” das “más” filhos; segundo, porque as modalidades de sua ação
influências. Trata-se, sobretudo, de vigiar, de impe- sobre esses comportamentos seriam muito violentas
dir ou de limitar as ações das crianças, especialmente ou prejudiciais à “autonomia” das crianças. Esse sen-
fora de casa, em vez de inculcar-lhes regras de segu- timento de desqualificação contribui para desarmar a
rança, de moral... às quais elas deverão submeter seus autoridade dos pais justamente onde as instituições
comportamentos. Em outras palavras, as práticas dos de socialização e de enquadramento (a escola, o tra-
pais de famílias populares agem mais pela pressão
exterior do que pela busca de um autocontrole10 das
próprias crianças. Ora, de modo inverso, a escola hoje 11
Além do fato de que a ação física corresponde mais à
valoriza a autonomia, entendida como a capacidade intenção de interromper rapidamente o ato repreensível, seria pre-
ciso levar em conta tudo aquilo que os castigos corporais impli-
cam em relação ao corpo das classes populares, que devem sua
10
De acordo com a expressão de Norbert Elias. existência no plano econômico à sua força física de trabalho.
balho social) gostariam de reforçá-la, sobretudo se res e os pais. A observação nas famílias e nos encon-
considerarmos que as próprias crianças, ao descobri- tros não permite inferir uma falta de comunicação,
rem na escola outro modo de autoridade, outros prin- mas sim práticas linguageiras12 afastadas das lógicas
cípios de legitimidade dos adultos, podem questionar escolares em matéria de linguagem. Com base nos
a autoridade parental “tradicional”. trabalhos de Bernstein (1975), de Lahire (1993) ou
O distanciamento entre as expectativas dos agen- de Labov (1978), podemos mostrar que as práticas
tes da instituição escolar e as práticas das famílias linguageiras nas famílias populares surgem de uma
populares e a desqualificação simbólica dos pais atin- linguagem pouco descontextualizada, mas fortemen-
ge o auge quando estes últimos vêem suas possibili- te ligadas aos acontecimentos que estão ocorrendo ou
dades de regular os comportamentos de seus filhos que foram vivenciados em conjunto. Ligada a essa
alteradas por condições de existência degradadas, forte contextualização dos discursos, a linguagem é
como pudemos observar em famílias afetadas direta caracterizada por muitos subentendidos, como pro-
ou indiretamente pela precariedade econômica (Millet va, por exemplo, o emprego recorrente de expressões
& Thin, 2005). Podemos evocar aqui a imposição de dícticas, assim como de locuções que só designam
horários de trabalho que impedem os pais de estarem com precisão as coisas e as pessoas por meio do em-
presentes de maneira regular nos momentos impor- prego de pronomes dêiticos (ele, ela, nós...) para no-
tantes da vida familiar, ou ainda as situações de isola- mear alternadamente, e sem referência explícita, con-
mento social, que atingem mais freqüentemente as textos ou indivíduos que, no entanto, são distintos na
mães solteiras e desempregadas e que diminuem os ordem do discurso. Pode-se pensar que a ligação en-
recursos da rede de sociabilidade para apoiar a ação tre o contexto conhecido dos interlocutores e a pre-
de regulação dos comportamentos das famílias, ou, ponderância do “nós” (do coletivo) sobre o “eu”
enfim, a desqualificação social dos pais, que pode se (o indivíduo) na socialização dispensa a explicitação
transformar em desqualificação aos olhos de seus pró- necessária à comunicação escolar. Além disso, a co-
prios filhos. A ocorrência dessas situações cria outras municação com as crianças não surge de uma comu-
situações que fragilizam o modo de autoridade das nicação pedagógica, mas de uma comunicação práti-
famílias populares e aprofundam o fosso existente ca que visa à troca, antes de qualquer outra finalidade.
entre estas últimas e a instituição escolar. Isso faz com que os professores lamentem que os pais
não realizem com seus filhos um trabalho explícito
Modos de comunicação sobre a linguagem, ou seja, que eles não considerem
a linguagem como objeto de uma troca educativa –
O problema da linguagem é uma questão impor- por exemplo, designando as coisas sem ter em vista
tante nas escolas dos bairros populares. Qualquer qualquer utilidade prática, ou corrigindo as constru-
enquete feita com professores revela que eles lamen- ções gramaticais das crianças. Essas diferenças de
tam o que identificam como uma falta de vocabulário lógicas são, em princípio, e disso não se tem dúvida,
dos alunos, dificuldades de ingressar no mundo da dificuldades escolares para as crianças dessas famí-
escrita e da linguagem escolar. Freqüentemente, es- lias. Elas também trazem em si a potencialidade de
sas percepções coincidem com a percepção do uni- tensões entre as famílias e os professores, uma vez
verso dessas famílias carentes no que diz respeito à que as famílias são vistas como deficientes no plano
comunicação e à linguagem. Pela distância entre a lingüístico, e porque as distâncias sociolingüísticas
linguagem dos alunos e a linguagem esperada na es-
cola constrói-se toda uma representação das famílias
e de seu universo vocabular, representação freqüen-
temente reforçada pelas interações entre os professo- 12
No sentido de práticas cotidianas de linguagem. (N.T.)
também serão evidenciadas no curso das interações lidades simples ou arrítmicas, atropeladas de vez em
entre os pais e os agentes da instituição escolar. quando por urgências ligadas à fragilidade da exis-
tência, e que se harmonizam mal com as temporali-
Relação com o tempo dades escolares.14 Essas famílias mais desprovidas são
assim condenadas a “viver cada dia com sua agonia”,15
Podemos também evocar a questão das tempo- o que impossibilita qualquer planificação e antecipa-
ralidades que são diferentes no universo escolar e no ção da existência. Tudo ocorre como se nas famílias
universo das famílias populares. O mundo da escola que acumulam dificuldades a vida fosse vivida como
é um mundo de regularidade temporal, marcado tan- uma seqüência de “golpes” que são proferidos contra
to pelos horários e calendários escolares como pela elas, de urgências que precisam ser enfrentadas e que
sucessão de atividades pedagógicas organizadas de impedem qualquer programação de atividades, a ponto
acordo com os empregos do tempo. É também o mun- de não poderem, por exemplo, organizar encontros
do da planificação através da lógica da progressão com os agentes de instituições como a instituição es-
nas aprendizagens, a do caderno de textos ou da agen- colar. Em outras famílias, nas quais os pais têm um
da, ou ainda a do encontro, como, por exemplo, nas emprego, as fortes obrigações temporais da atividade
reuniões entre professores e pais. No caso das famí- profissional produzem o que podemos denominar tem-
lias populares, as mais dominadas, são outras tempo- poralidades familiares não-sincronizadas, no sentido
ralidades que aparecem. Por um lado, trata-se de fa- de que as divisões temporais produzidas pela ativida-
mílias cujos membros são socializados em universos de profissional dos pais estão em claro desacordo com
nos quais as relações com o tempo objetivadas em os outros ritmos familiares, principalmente os ritmos
agendas, calendários, relógios etc. têm pouco lugar, dos filhos e os ritmos que sua escolarização exige. Os
porque eles são pouco escolarizados ou porque vêm, benefícios organizacionais e temporais (em termos de
pela emigração, de universos culturalmente afastados regularidade de horários, de estruturação dos ritmos
desse tipo de racionalidade temporal. Por outro lado, familiares…) que o exercício de uma atividade assa-
e cada vez mais, as famílias são afetadas pela precari- lariada em horários regulares e durante o dia pode
edade da existência, pela falta de trabalho estável ou produzir sobre a vida familiar são prejudicados por
pelo desemprego. Para essas famílias excluídas da escalas de horário que desequilibram os ritmos do-
sociedade salarial (Castel, 1995), a ausência de divi- mésticos, e algumas vezes por horários irregulares.
são temporal pelo trabalho,13 ou as temporalidades de São, portanto, temporalidades muito afastadas das
um trabalho errático conduzem, às vezes, a tempora-
14
Há um exemplo disso num filme de Bertrand Tavernier,
13
Pierre Bourdieu (1977), evocando a condição dos Quando tudo começa (1999), em uma cena em que o diretor de
subproletários argelinos nos anos de 1950 e de 1960, destacou os uma escola maternal censura um jovem casal por não levar seu
efeitos estruturantes do trabalho e a desorganização que a ausên- filho regularmente à escola. Os dois terminam confessando (o tom
cia de emprego regular pode produzir: “na falta de emprego regu- é o de uma confissão constrangida e dolorosa) que estão há muito
lar, o que faz falta não é apenas a certeza de um salário, é esse tempo desempregados, estão desanimados e não encontram moti-
conjunto de obrigações que caracterizam uma organização coe- vos sequer para levantar da cama pela manhã...
rente do tempo e um sistema de expectativas concretas. Como o 15
Como escreveu Robert Castel (1995), “é no momento em
equilíbrio emocional, o sistema de quadros temporais e espaciais que esta ‘civilização do trabalho’ parece se impor em definitivo
nos quais se desenrola a existência não pode se constituir na au- sobre a hegemonia do assalariado que a construção racha, colo-
sência de pontos de referência fornecidos pelo trabalho regular. cando na ordem do dia a velha obsessão popular de viver ‘um dia
Toda a vida é relegada à incoerência” (p. 87). após o outro’” (p. 461).
temporalidades escolares que tecem as vidas das fa- teis, incoerentes com relação a esses objetivos, elas
mílias populares, repercutindo tanto nas relações en- só podem ser perda de tempo. Como o saber não pode
tre pais e filhos como nas relações com a escola, ou vir senão da escola, e como os investimentos sociais
ainda com as aprendizagens escolares.16 são primordiais, os pais não entendem que o tempo
da escola seja desviado das aquisições que eles jul-
Uma relação “instrumental” com a escola ou a gam fundamentais.
lógica da eficácia Enfim, a importância do trabalho e do trabalho
“sério” está também na origem da reserva dos pais
O sentido da escolarização para famílias de bai- com relação às atividades pedagógicas que aparente-
xa renda reside nas possibilidades sociais que ela mente são menos trabalhosas que as aulas e os exer-
viabiliza e sobre as quais baseia sua promessa, seja cícios. Ela nutre-se da forte cisão entre trabalho e jogo,
em termos de futuros profissionais, seja em matéria entre trabalho e descanso, característica das classes
de conhecimentos que permitam, segundo seus pró- populares e que as diferencia dos intelectuais (por-
prios termos, que o sujeito “se vire” na vida cotidia- tanto, dos professores), que nem sempre sabem onde
na. De fato, é cada instante da vida escolar que os passa a fronteira entre seu trabalho e seus lazeres. Nos
pais apreendem de acordo com essa lógica de eficá- meios populares, o jogo remete a colocar entre pa-
cia, e cada atividade pedagógica deve se inscrever rênteses as exigências da vida, leva a um descanso, a
diretamente na perspectiva de eficácia social. Em um prazer, a uma troca livre de qualquer conotação
outras palavras, para as famílias populares, os exercí- pedagógica e educativa. Para os pais, a escola está
cios escolares não são considerados “atividades cujo classificada ao lado do trabalho, e tudo aquilo que se
objetivo está nelas mesmas” (Bourdieu, 1984, p. 177). assemelhe ao jogo parece inútil ou nefasto à escolari-
Constituem-se em exercícios para a obtenção de re- dade.
sultados que se traduzem em notas, na passagem de Além disso, observamos uma oposição ou uma
uma classe para outra, naquilo que eles permitem con- tensão entre os pais, que esperam da escola conheci-
quistar socialmente. Conseqüentemente, as ativida- mentos que sejam apreensíveis em sua operacionali-
des escolares só têm sentido se as famílias populares dade imediata e prática, e a lógica pedagógica, que se
puderem associá-las aos objetivos sociais que atri- inscreve na duração, que coloca o sentido das apren-
buem à escolarização de seus filhos; todas as ativida- dizagens em objetivos mais distantes e mais gerais,
des que parecem afastar as crianças das aprendiza- ou mais universais, cujos fins só se desvelam em lon-
gens ditas fundamentais, e que não parecem contribuir go prazo, no domínio de procedimentos intelectuais
para a melhoria dos resultados escolares, são mais ou abstratos. Desse ponto de vista, aliás, o processo de
menos suspeitas aos seus olhos. Aparecendo como inú- “secundarização” da escola elementar acentuou, sem
dúvida alguma, a distância existente entre as famílias
populares e a escola, ao longo dos últimos trinta anos,
16
“A disciplina escolar é, antes de tudo, uma disciplina tem- uma parte das aprendizagens tendo mais sentido na
poral e, se consideramos que o trabalho pedagógico tem por fun- seqüência dos estudos (o colégio, depois o liceu) que
ção substituir o corpo selvagem […] por um corpo ‘habituado’, ou na sua finalidade prática e a curto prazo.17
seja, temporalmente estruturado […]” (Bourdieu, 1972, p. 296), As práticas familiares ante a escolaridade são
“[…] falta a ele, assim, uma capacidade de auto-obrigação ao tra- sempre maneiras de se apropriar da situação escolar
balho escolar e uma crença em seu futuro escolar e profissional
que, ambos, se constroem durante um longo tempo, a partir de
numerosos ritos de confirmação e consagração que balizam a tra- 17
Jean-Manuel de Queiroz (1981) fala da “desorientação
jetória escolar” (Beaud, 2002, p. 159). escolar” dos pais.
que os pais não podem contornar. As modalidades colares” em casa, e alguns se interrogam então sobre
dessa apropriação entram em contradição com as ex- a qualidade pedagógica dos professores. Enfim, essa
pectativas e os desejos dos professores. Assim, uma tensão leva muitos pais a oscilar entre “a retirada” e
parcela dos pais (sobretudo os mais desprovidos diante “o superinvestimento”, no que se refere ao acompa-
dos saberes e da pedagogia escolares) não participa nhamento da escolaridade.
regularmente do trabalho escolar, ou intervém ape-
nas quando os resultados pioram substancialmente. Uma relação na escola entre ambivalência
Para esses pais, o que predomina é o sentimento de e apropriações heterodoxas
incompetência, e até o temor de prejudicar seus fi-
lhos. Em seguida, eles consideram que o papel da es- Essas lógicas socializadoras, enraizadas nas clas-
cola e dos professores é se ocupar de todo o processo ses populares, e que se perpetuam enquanto se
de escolarização, aí incluídos o aprendizado das li- eternizam as condições que as criaram, são domina-
ções e a realização dos exercícios escritos. O “acom- das e ilegítimas. Portanto, elas não estão completa-
panhamento distante” por parte de alguns pais é con- mente livres da influência das lógicas escolares, das
siderado insuficiente, e os pais são incitados a investir quais diferem. A confrontação da escolarização pelas
mais no acompanhamento escolar de seus filhos. Ou- práticas das famílias populares não ocorreria se os
tros pais tendem a “superinvestir” no trabalho esco- pais não percebessem a ilegitimidade de suas práti-
lar de seus filhos, acrescentando tarefas ou tentando cas e “reconhecessem” a legitimidade das práticas
antecipar as aprendizagens escolares. Essas práticas escolares desenvolvidas por uma instituição que se
de “sobreescolarização” são contrárias à lógica peda- tornou central tanto no processo de socialização quan-
gógica atual, que supõe o aprendizado da autonomia to no da reprodução do social. Isso explica o fato de
no trabalho escolar e, a partir daí, mais amplamente, encontrarmos na relação das famílias populares com
a autonomia na vida social. Para os professores, os a escola e com a escolarização a ambivalência carac-
pais – que desconhecem a autonomia enquadrada que terística “de todo simbolismo e de toda prática da clas-
preconizam – oscilam entre a frouxidão e o excesso se dominada” (Grignon & Passeron, 1989, p. 71),
de controle em matéria de escolaridade, fugindo de ambivalência fundada no reconhecimento da impor-
Caribde para cair em Cila.18 Por conseguinte, é, com tância e da legitimidade da escola, associada a for-
freqüência, grande o mal-entendido entre os pais e os mas de desconfiança e distância em relação à institui-
professores. Muitos pais não conseguem compreen- ção escolar. Com efeito, os pais expressam um
der as observações e as críticas dos professores que sentimento difuso de que a escola talvez não seja fei-
censuram o controle excessivo que eles exercem so- ta para eles e para seus filhos, manifestam medos li-
bre o trabalho escolar de seus filhos, por estarem con- gados aos riscos envolvidos na escolarização, e uma
vencidos de que estão fazendo tudo que lhes é possí- desconfiança no que tange às instituições em geral.
vel pela escolaridade de suas crianças. Da mesma A ambivalência vai aparecer, por exemplo, quan-
forma, eles não entendem que os resultados escolares do os pais pedem aos professores que sejam rígidos e
não melhorem apesar do acúmulo de exercícios “es- severos, e ao mesmo tempo protestam contra algu-
mas sanções: de um lado, eles esperam que as moda-
lidades de manutenção da ordem escolar correspon-
18
Caribde ou Caríbdis, temível turbilhão no Estreito de dam ao modo de autoridade familiar; de outro, eles
Messina, terror dos antigos navegantes, que, se conseguiam dele tendem a querer proteger os membros da família con-
escapar, iam bater contra o rochedo de Cila. Daí a expressão pro- tra o poder dos agentes das instituições, com uma es-
verbial “fugir de Caribde para cair em Cila”, isto é, fugir de um pécie de obsessão quanto à injustiça e à estigmatização
perigo para expor-se a outro, maior. (N.T.) a respeito de sua família. A ambivalência também é
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Thèse (Doctorat de Sociologie et Sciences Sociales) – Université Recebido em outubro de 2005
Lumière Lyon 2, Lyon, 1994a. Aprovado em janeiro de 2006
Resumos/Abstracts/Resumens
res las fuentes de las dificultades parti- main sources of information: 1) of a jovens em municípios de regiões
culares de la escuela y de la enseñanza quantitative nature: the data on metropolitanas
en los barrios populares. students enrolled in the university Reúne os resultados preliminares do
Palabras claves: socialización; modo admission exam; 2) more qualitative projeto de pesquisa “Juventude, escola-
de socialización escolar; socialización data obtained from interviews with 27 rização e poder local”, que examina
en familias de clases sociales popula- students. This study permits us to show iniciativas públicas desenvolvidas pelo
res; socialización y escolarización; the contradictions between a greater Executivo municipal em 74 municípios
relación escuela-familia demand for higher levels of education de regiões metropolitanas do Brasil
and the policies of access and (Sudeste, Sul, Centro-Oeste e Nordes-
Nadir Zago permanence to the Brazilian system of te) no período entre 2001 e 2004. As
Do acesso à permanência no ensino higher education. principais ações são investigadas tendo
superior: percursos de estudantes Key-words: higher education; social como eixos analíticos o conjunto de
universitários de camadas populares and educational inequalities percepções sobre juventude que anco-
O presente artigo trata da problemática Del acceso a la pernanencia en la ram as iniciativas e as formas que são
das desigualdades educacionais, com enseñanza superior : trayectos de propostas pelo poder público para a
longa tradição na sociologia da educa- estudiantes universitarios de clases interação com os segmentos juvenis.
ção, e sobre a presença de estudantes sociales populares Palavras-chave: juventude; políticas
de origem popular no ensino superior. El presente artículo trata de la proble- públicas; poder local
O eixo central da análise contempla as mática de las desigualdades educati- Youth and local power: a balance of
desigualdades de acesso e de perma- vas, con larga tradición en la public initiatives directed at young
nência no ensino superior. Os resulta- sociología de la educación, y sobre la people in municipalities pertaining
dos apresentados estão apoiados em presencia de estudiantes de origen po- to metropolitan regions
uma pesquisa, com duas fontes princi- pular en la enseñanza superior. El eje Presents the preliminary results of the
pais de informação: de natureza quan- central del análisis son las desigualda- research project “Youth, schooling and
titativa, apoiada nas estatísticas dos des de acceso y de permanencia en la local power” which examines public
candidatos inscritos no exame de aces- enseñanza superior. Los resultados que initiatives developed by municipal
so à universidade; em dados mais apro- fueron presentados están apoyados en governments in 74 municipalities
fundados, obtidos em entrevistas com una pesquisa, con dos principales pertaining to metropolitan regions in
27 estudantes. A discussão do trabalho fuentes de información: 1) de Brazil (Southeast, South, Central West
permite mostrar as contradições entre naturaleza cuantitativa, apoyada en and Northeast) in the period between
uma maior demanda da população pela las estadísticas de los candidatos 2001 and 2004. The principal actions
elevação do nível escolar e as políticas inscriptos en el examen de acceso a la are investigated taking as analytic axes
de acesso e de permanência no sistema universidad; 2) en datos más profun- the set of perceptions on youth which
de ensino superior brasileiro. dos obtenidos en entrevistas con 27 anchor the initiatives and the forms
Palavras-chave: ensino superior; desi- estudiantes. La discusión del trabajo which are proposed by the public
gualdades sociais e educacionais permite mostrar las contradicciones power for interaction with this segment
From access to permanence in entre una mayor demanda de la of the population.
higher education: the trajectories of populación, devido a la elevación del Key-words: youth; public policy; local
university students of popular origin nivel escolar y las políticas de acceso y power
This article deals with the problem of de permanencia en el sistema de la Juventud y poder local: un balance
inequalities in education, a theme dear enseñanza superior brasileña. de iniciativas públicas dirigidas para
to the sociology of education, and of Palabras claves: enseñanza superior; jóvenes en municipios de regiones
the presence of students of popular desigualdades sociales y educativas metropolitanas
origin in higher education. The central Reune los resultados preliminares del
axis of this analysis is that of the Marilia Pontes Sposito, Hamilton proyecto de investigación “Juventud,
inequalities of access and permanence Harley de Carvalho e Silva, Nilson escolarización y poder local” que exa-
of those students in higher education. Alves de Souza mina iniciativas públicas desarrolladas
The results are based on the Juventude e poder local: um balanço por el ejecutivo municipal en 74
conclusions of a research based on two de iniciativas públicas voltadas para municipios de regiones metropolitanas