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A estética funk carioca

Mylene Mizrahi

A estética funk carioca


Criação e conectividade
em Mr. Catra

Prêmio IPP-Rio Maurício de Almeida Abreu –


sociologia & antropologia

Instituto Pereira Passos


coleção
© 2014 Mylene Mizrahi
Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação Editorial
Isadora Travassos

Produção Editorial
Cristina Parga
Eduardo Süssekind
Rodrigo Fontoura
Sofia Soter
Verônica Montezuma
Victoria Rabello

cip-brasil. catalogação na publicação


sindicato nacional dos editores de livros, rj
M681e
Mizrahi, Mylene
A estética do funk carioca: criação e conectividade em Mr. Catra / Mylene Mizrahi. - 1. ed. -
Rio de Janeiro : 7 Letras, 2014.
il.
isbn 978-85-421-0216-1
1. Funk (Música) - Rio de Janeiro (RJ) - História e crítica. 2. Funk (Música) - Aspectos sociais
- Rio de Janeiro (RJ) - História. 3. Movimentos da juventude - Rio de Janeiro (RJ) - História.
I. Título.
14-10701 cdd: 782.42164098153
cdu: 78.067.26(815.3)

2014
Viveiros de Castro Editora Ltda.
Rua Visconde de Pirajá, 580 – sl. 320 – Ipanema
Rio de Janeiro – rj – cep 22420-902
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br – www.7letras.com.br
programa de pós-graduação em sociologia e antropologia
instituto de filosofia e ciências sociais
da universidade federal do rio de janeiro
(ppgsa/ifcs/ufrj)

Coleção Sociologia & Antropologia

Conselho Editorial
Beatriz Maria Alasia de Heredia
Bila Sorj
Elina Pessanha
Felícia Silva Picanço
Glaucia Villas Bôas
José Ricardo Ramalho
Marco Antonio Gonçalves
Marco Aurélio Santana
Maria Laura V. C. Cavalcanti
Michel Misse
Mirian Goldenberg
Yvonne Maggie

UFRJ
Sumário

Prefácio: Funk não faz amálgama, faz conexão 9


Els Lagrou

Agradecimentos15
Introdução19

Parte i
Capítulo 1 33
Uma etnografia da noite
Capítulo 2 63
Escapando pela válvula

Parte ii
Capítulo 3 103
Autonomia da arte, criatividade e difusão
Capítulo 4 149
Englobamento e subversão
Parte iii
Capítulo 5 201
Cabelos femininos e a confusão de símbolos
Capítulo 6 243
Adereços masculinos e relações de gênero
Conclusão293
Referências bibliográficas 303
Prefácio
Funk não faz amálgama, faz conexão
Els Lagrou

“Na maior diplomacia sufocaram o proibidão mas liberaram a putaria.”


Esta é uma das frases marcantes de Mr. Catra, compositor e intérprete
funk, que a autora, Mylene Mizrahi, tomou como fio de Ariadne a seguir
na sua entrada no universo funk. Ao abordar o mundo do funk carioca a
partir de um ator-personagem privilegiado, e, como veremos, escolhido
a dedo, a autora produz uma reveladora etnobiografia, que mostra como
a figura excêntrica e altamente individualizada de Mr. Catra tira o que
tem de mais específico, criativo e interessante exatamente daquilo que o
une a seu ambiente de criação: o mundo carioca, onde o funk conecta as
mais diversas partes da cidade e os mais variados atores e agentes.
Catra cresce num contexto social que o permite ter um acesso pri-
vilegiado a dois mundos que coexistem e se conectam incessantemente
de modo, poderíamos dizer, fractal, do nível mais íntimo e micro ao
nível mais público e macro, mas não por isso formam uma amálgama.
Imbricados e entrelaçados como estão o “asfalto” e o morro, ou, nas pala-
vras de Catra, “o asfalto e a favela”, estes mantêm suas diferenças topo-
gráficas e de perspectiva. Há definitivamente pontos de vista diferentes a
assumir nesta “cidade partida” e Catra assume deliberadamente o ponto
de vista da margem, com um conhecimento privilegiado, porém, do
centro que sabe ironizar como ninguém para a alegria tanto do povo do
morro quanto dos chamados playboys e patricinhas do asfalto.

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a estética funk carioca

A arma de Catra é o riso, o riso da insubmissão e da imposição


de uma perspectiva reversa que vai acompanhada de uma capacidade
aguda de equivocação pelo uso sistemático de deslizes de sentido e de
paródias, tanto na linguagem verbal quanto na musicalidade e nas ima-
gens invocadas e produzidas. A arte de Catra é uma arma porque o que
este artista intenciona é mesmo fazer sua política de conscientização
através de conexões artísticas – sonoras e imagéticas – insuspeitas, abrir
os olhos de seu variado público para “a hipocrisia da burguesia” e para o
potencial libertador de outra filosofia de vida, uma filosofia que é, na sua
percepção, religiosa: a sua muito particular e pessoal releitura da reli-
gião judaica da época salomônica, antes do tempo das leis gravadas em
tábuas por Moisés. O equívoco e o sorriso causados pela reza cantada
ou falada em hebraico ou em português com a qual ele costuma “abrir
os trabalhos”, ou seja com a qual ele abre a festa com suas músicas do
Probidão, de Putaria ou de Cultura, se sustenta nesta filosofia / religião
que assume a força libertadora da religião salomônica com sua poli-
gamia positivada que implica uma valoração explícita da sexualidade,
assim como da religião judaica sionista que na sua experiência não é
racista como as religiões de matriz cristã. Foi em Jerusalém, em frente ao
muro das lamentações, que Catra experimentou esta vocação e vislum-
brou a possibilidade de uma religião democrática, por em suas palavras
ter sido Israel o único país que importou negros da África em condi-
ções de igualdade, como aconteceu com os judeus etíopes na época da
fundação do estado de Israel. Vemos aqui como Catra se posiciona de
modo polêmico e firme em questões de gênero, raça e política social,
propondo uma leitura surpreendente e criativa.
Catra se faz artista na proximidade com as margens, devolvendo
ao “centro” sua imagem em espelho invertido. O Proibidão expressa o
ponto de vista do tráfico sobre o asfalto, mas para trazer este ponto de
vista para o asfalto é preciso muita camuflagem, muito uso de lingua-
gem figurativa que só pode ser decifrada por entendidos. O mesmo não
acontece quando as músicas são executadas nas festas no morro e na
periferia, onde a mensagem pode ser mais explícita e o público possui
mais competência para “ler” sua mensagem. Catra sabe se situar muito
bem nesta topografia interconectada, onde se pode dizer uma coisa num
contexto mas não em outro.

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prefácio

Mylene Mizrahi faz uma análise e exegese fina, tanto das letras des-
tes cantos, herméticos para uns e transparentes para outros, quanto das
estratégias do ocultar e mostrar utilizadas com maestria por Mr. Catra
nas suas trajetórias noturnas, nas quais cruza a cidade com velocidade
intensa, conectando geograficamente Norte e Sul, subúrbio e Centro,
asfalto e favela. Numa só noite Catra e sua equipe, acompanhados da
antropóloga, fazem uma costura musical, conectando pontos, fazendo
ouvir sua voz nos quatro cantos da Cidade.
Como dito na frase com a qual abri esta curta apresentação deste
denso trabalho: “sufocaram o proibidão mas liberaram a putaria”. Vemos
assim que é no gênero chamado, no mundo funk, de putaria, música
explicitamente erótica, mas não por isso menos figurativa e velada como
nos mostra Mizrahi, que Catra encontra mais liberdade para equivo-
car e divertir seu público do asfalto. Nos shows em lugares consagra-
dos da cultura carioca, Catra “vai debochar a ideia de cultura, a MPB”.
Anunciando em tom sério e com a musicalidade suave e sóbria do estilo
MPB que “agora é hora da cultura”, Catra executa sua versão funk do
clássico “Uma tarde em Itapuã” de Vinícius de Moraes para a diversão
geral do público. Esta é mais uma estratégia para produzir o equivoco
irônico resultante do encontro entre perspectivas, brilhantemente evo-
cado por Mizrahi. Como alerta a autora: “É a transgressão que permite a
Mr. Catra unir em um mesmo plano erotismo, religião e alucinógenos”.
Podemos perguntar: O que acontece quando a elite se olha ou se
ouve na voz de um Outro muito próximo, ou um Mesmo muito Outro,
que a desafia equivocando-a? A resposta de Catra é que a melhor
maneira de fazê-lo é fazendo-a rir de si mesma. Nas palavras de Mizrahi,
Catra “visa transformar o encontro de mundos e interpretações em algo
desafiador, que descentra, faz pensar, e antes de tudo faz rir”. É isso que
significa conectar sem produzir amálgamas, produzindo, poderíamos
dizer, poderosas figuras quiméricas onde a diferença não é dissolvida
mas potencializada, produzindo forte efeito estético, não no sentido
apaziguador do belo, mas no sentido perturbador de algo que afeta, que
age sobre o receptor que sai alterado da experiência.
A abordagem teórica do universo criativo funk proposta por Mylene
Mizrahi é inovadora e equivoca o leitor, como o faz seu interlocutor pri-
vilegiado, Mr. Catra. Como não podia deixar de ser, no entanto, e aí

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a estética funk carioca

reside provavelmente uma das razões da desestabilizadora originalidade


deste trabalho, os estilos usados para equivocar, pelos dois protagonistas
deste encontro, são radicalmente diferentes. Se Catra debocha, Mizrahi
apresenta uma seriedade e desenvoltura teórica raramente encontra-
das em trabalhos deste gênero. O contraste surrealista (no sentido do
efeito cognitivo e estético procurado) que resulta do encontro destas
duas estratégias complementares de antropologia reversa me parece ser
o ponto forte e desafiador deste trabalho.
Mizrahi transforma Catra numa pessoa distribuída ou fractal ao
modo melanésio, desestabilizando fronteiras intra-acadêmicas, e mos-
trando deste modo como são férteis as conexões parciais entre teorias
que normalmente não se conectam. Vemos assim que se Catra conecta
mundos de modos inesperados que fazem rir, mas não por isso exer-
cem menos efeito cognitivo de mudança de perspectiva, Mizrahi tam-
bém conecta de modo inesperado mundos que de outra perspectiva se
considerariam distantes, afetando profundamente o modo de se per-
ceber o mundo criativo do funk carioca, mas também os modos de
se pensar os caminhos possíveis de se fazer antropologia hoje em dia.
Contra a vertente dominante de estudos sobre o funk que o apresentam
como “produção circunscrita ao ambiente da favela e por oposição ao
“asfalto” (mas é preciso alertar que existem exceções podendo ser con-
siderados precursores deste olhar), Mizrahi, amparada pela experiência
que o campo lhe deu, aposta na percepção da criatividade funk como
produto do encontro.
É neste sentido que o conceito de conectividade deve ser com-
preendido como fio condutor desta poderosa análise feita por Mizrahi
do mundo funk a partir do prisma de Catra. O conceito de conecti-
vidade proposto por Mizrahi para dar conta do modus operandi da
criatividade funk aponta não somente para o fato deste conectar espa-
ços geográficos diversos, mas principalmente para sua capacidade de
conectar mundos sociais, assim como ambientes estéticos e sociocul-
turais diversos. Mizrahi mostra como a conectividade marca o estilo
de Catra, desde o etos de sua vida pessoal ao modo de compor música.
A lógica de composição da música funk é coletiva, conectiva e age por
meio de apropriação e transformação.

12
prefácio

Nos últimos capítulos veremos que este estilo artístico de com-


posição e performance musical do universo funk também caracteriza
a arte corporal da festa, onde marcas, cabelos e estilos são ‘roubados’
(ou raspados e desenhados), apropriados e transformados para agir
em sintonia com e como próteses na construção de corpos dançantes
masculinos e femininos. Mizrahi atenta ainda para o marcado e valo-
rizado bimorfismo nos estilos dos corpos genderizados na festa funk,
mostrando que esta fuga da androginia e a valorização do contraste
e da complementaridade de gênero, ligada a um certo caráter agonís-
tico destas relações, longe de transformar a mulher em ‘mero’ objeto
do desejo masculino, a coloca em cena como agente altamente ativo e
apoderado neste eterno jogo de sedução. A expressiva encenação cole-
tiva do ‘confronto’ ou ‘guerra’ dos sexos é a performance e celebração
de ideais aparentemente muito próximos daqueles expressos como filo-
sofia pessoal por Catra, que visa muito mais a performance artística e
eminentemente transgressora da atração mútua dos gêneros e da soli-
dariedade coletiva de pessoas do mesmo sexo do que qualquer tipo de
dominação, controle ou ato consumado no contexto da festa. O efeito
estético da festa consiste muito mais em sugerir, provocar e encenar
do que mostrar. Aqui também vale a máxima que permeia a análise
de Mizrahi que se a arte urbana busca comunicar ao colocar domínios
diversos em conexão, sempre se tratará de uma comunicação ambígua,
conflituosa, que produz conectividade, mas não apaga as diferenças,
nem na música, nem nas letras, e muito menos nas coreografias festivas
de homens e mulheres dançantes.

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Agradecimentos

Este livro resulta de minha tese de doutorado e marca um ciclo de mais


de dez anos de pesquisa no mundo funk que por sua vez corresponde ao
meu adentrar na antropologia. Nesse percurso, contei com a colaboração
e contribuição de diversas pessoas e instituições, às quais quero agradecer.
A tese foi defendida em julho de 2010 no Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA-IFCS-UFRJ) com
um período de estágio doutoral na University College London (UCL).
Agradeço ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico), pela bolsa fornecida para a realização do curso de dou-
torado e à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior), pela bolsa fornecida para a realização de doutorado sanduí-
che em Londres bem como pelos recursos fornecidos para a publica-
ção deste livro, obtidos como auxílio junto à bolsa de pós-doutorado do
Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD-Institucional).
Tive o privilégio de ser orientada por Els Lagrou, o que me possibi-
litou uma interlocução perspicaz e arguta, conduzida com atenção e cer-
cada por afeto. Els, quando eu ainda tateava a antropologia, foi grande
incentivadora de meu projeto não só de pesquisa como acadêmico. Eu
ainda concebia as bases de uma investigação primeira, fora do PPGSA,
quando estabelecemos nosso diálogo, que se estendeu por minha pes-
quisa de mestrado, igualmente orientada por ela, e se fortaleceu com a
reflexão de doutorado.

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a estética funk carioca

No PPGSA-IFCS tive algumas interlocuções importantes. Marco


Antonio Gonçalves contribuiu de modo crucial para os resultados deste
trabalho, uma conversa que se iniciou ainda no mestrado e que conti-
nuou ao longo do curso de doutorado, gerando artigos e a sua participa-
ção na banca da defesa de tese. Agradeço a Maria Laura Cavalcanti por
suas valiosas contribuições no exame de qualificação da tese, e ainda
a Peter Fry, Beatriz Heredia, Emerson Giumbelli, que em momentos
diferentes contribuíram para o andamento de meu argumento. Roberto
Marques, Tatiana Bacal, Julio Naves Ribeiro, Bruno Cardoso, meus cole-
gas de curso, propiciaram conversas instigantes e tornaram agradável
e divertido um período marcadamente solitário. Claudia Jesus Vianna,
Denise Alves da Silva e Verônica Vasconcellos, secretárias do PPGSA,
estiveram sempre atentas e colaborativas com as muitas solicitações ine-
rentes ao trabalho acadêmico.
Daniel Miller, meu supervisor na University College London (UCL),
foi desde sempre um grande entusiasta e incentivador de meu tema de
pesquisa. Sua leitura sagaz de meu material somou definitivamente aos
resultados a que cheguei. Susanne Kuechler, Roger Sansi-Roca, Allen
Abramson e Paolo Fávero foram outros importantes interlocutores em
Londres. O formato que concedi à tese de doutorado se beneficiou for-
temente das muitas apresentações que fiz em continente europeu bem
como da intensa interlocução que estabeleci com meus colegas, em espe-
cial com Piero DiGiminiani, Diana Espírito Santo, Nico Tassi, Matan
Shapiro, Florencia Ferrari, Tom Rodgers, Clarissa Rahmeyer.
Lembro aqui da queridíssima e saudosa Santuza Cambraia Naves,
leitora entusiasmada e interessada do material que apresento nas pró-
ximas páginas, que junto com Sonia Maluf e Micael Herschmann exa-
minaram minha tese de doutorado. Vânia Cardoso e Scott Head, no
Departamento de Antropologia da UFSC, Carla Barros, no Departamento
de Estudos Culturais da UFF e Fábio Koifman, no Departamento de
História da UFRRJ, incentivaram este trabalho.
Recebi o dom de poder contar com a extrema generosidade, con-
fiança e amizade de Wagner Domingues da Costa e Sílvia Regina Alves,
o casal Catra. Com eles de fato pude fazer uma “antropologia da ami-
zade”, ao me possibilitarem explorar as potências que o diálogo intersub-
jetivo pode possuir para a pesquisa antropológica. Com Sílvia e Catra

16
agradecimentos

produzimos conhecimento na relação, uma tese se não a seis mãos,


certamente a três mentes. Tive ainda duas grandes parceiras no campo:
Cíntia e Thamyris, respectivamente comadre e filha do casal Catra.
A partir dessas quatro pessoas conectei-me ainda a Neuma, mãe de
Thamyris e aos irmãos desta última: Thamara, Fernando, Nêgo, Samuel,
Noemi, Alan, entre muitos outros com os quais transitei.
Os parceiros de criação de Catra foram definitivos para minha
movimentação em campo e para meu desvendamento da lógica criativa
funk, estivessem eles envolvidos na criação musical – como os músicos
Tio Rocha, MC Jota, DJ Sandrinho, Kapella, DJ Edgar, MC Sapinho, DJ
Buiú, DJ Ratinho, César Baleia, Beto da Caixa, Das Sete – ou na engre-
nagem de produção funk, como Pigmeu, empresário de Catra, Sabrina,
antiga produtora, o taxista Renatinho e o empresário Henrique Brandão
Junior, o Juninho. DJ Sanny Pitbull, MCs Leonardo e Junior, e o delegado
Orlando Zaccone também contribuíram em momentos diferentes com
essa pesquisa. Este trabalho se beneficia ainda de outras duas pesquisas
que conduzi no mundo funk, e quero aproveitar para deixar registrado
aqui meu agradecimento a meus antigos interlocutores em campo, den-
tre eles Lívia, Vivi, Irene, Sofia, Eric, Mãozão.
Vera Lucia Dutra, Lilian Koifman, Eliane Gamal e Sílvia Pinheiro
estiveram sempre à minha volta, me brindando com suas amizade e
inteligência.
Por fim gostaria de agradecer a minhas irmãs e aos meus pais e muito
especialmente a minhas filhas, Manuela e Lia, que ainda pequenas tive-
ram muita paciência com uma mãe imersa em um mundo que elas ainda
não conheciam. A elas duas e a Geraldo dedico meu amor e este livro.

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Introdução

O trabalho que apresento nas próximas páginas é resultado de minha


pesquisa de doutorado e consiste em uma versão revista da tese em que
resultou. Veremos uma etnografia sobre o que denominei como sendo a
“Estética Funk”, construída a partir do nexo entre estética, conectividade
e criação formado por meio da produção e da circulação de imagens e
objetos materiais. O meu argumento deriva de dois focos empíricos fun-
damentais: a criação musical e os investimentos corporais. O termo esté-
tica, como o emprego, deve ser entendido por referência à forma, seja ela
demarcadora das imagens visuais, verbais ou artefatuais, encontradas na
aparência física, nas roupas, nos cabelos, no ritmo e nas letras das músi-
cas. Desta perspectiva, a utilização que faço desta terminologia deriva
do esforço de desfazer as separações analíticas implicadas em domínios
definidos por categorizações como objeto, corpo, música, palavra e ima-
gem. Em uma frase, a tese teve o propósito de investigar o modo pelo
qual a criação estética e artística está à serviço da conectividade.
O Funk Carioca é um ritmo musical derivado do soul norte-ameri-
cano (Vianna, 1988), que chegou ao Rio de Janeiro na década de 1980.
Seu lócus de execução se deu inicialmente em bailes de dança que ocor-
riam na Zona Sul, área privilegiada do Rio de Janeiro, e que posterior-
mente migraram para áreas periféricas da cidade. É mais propriamente
nas favelas que a ressignificação do ritmo estrangeiro dá origem ao que

19
a estética funk carioca

hoje conhecemos como Funk Carioca, tornando-se manifestação cultu-


ral fortemente associada aos jovens das classes populares da cidade. Mas
é possível dizer também que o ritmo, mesmo que majoritariamente con-
sumido por estes jovens, alcançou circulação tal que lhe permitiu tornar-
se um dos símbolos mais loquazes do Rio de Janeiro, tanto em âmbito
nacional como em contexto estrangeiro, especialmente na Europa. Do
ponto de vista de minha investigação, o funk interessou especialmente
enquanto manifestação estético-cultural capaz de colocar-nos em con-
tato com o universo imagético que ele produz e que o contém.
Construí minha tese de doutorado em continuidade com minha
dissertação de mestrado, na qual discorri sobre as relações entre roupa,
corpo e dança em um baile funk, relacionando o Figurino Funk às outras
manifestações artísticas presentes na festa. Contudo, ao contrário do
que fiz então, quando produzi uma etnografia sobre o gosto indumen-
tário concretizada no contexto específico da festa como observado em
um local particular, o baile que acontecia em um clube na Zona Central
da cidade, sem me preocupar com as relações que a estética identificada
pudesse ter com o mundo exterior, nesta nova fase de minha investi-
gação importou-me apreender o universo estético funk tanto a partir
de suas interfaces internas como através daquelas estabelecidas com o
restante da cidade. A pesquisa no baile já havia dado-me mostras de
que não seria possível seguir aprofundando nesse universo estético sem
abrir o contexto de investigação. E por ‘abrir’ refiro-me não apenas a um
ampliar do escopo de minha pesquisa, o que poderia ser feito ao migrar
da esfera da festa para a cotidiana. Pois isto poderia manter-me ainda
encerrada em um contexto, já que os frequentadores da festa eram em
sua maioria moradores das favelas que circundavam o clube onde acon-
tecia o baile em que eu antes investigara. Partindo do pressuposto que
grande parte dos consumidores e produtores do ritmo moram nestas
localidades, uma escolha fácil seria buscar o cotidiano em seus locais
de moradia. Entretanto, acompanhando meus jovens interlocutores de
então, ficava muito claro que o seu trânsito não se dava somente entre a
festa, no asfalto, e a vida na favela. Moravam na favela, mas estudavam,
trabalhavam e faziam suas compras na “pista”. A própria sistematização
da indumentária corporal e a análise do gosto já haviam indicado que a
estética corporal funk resulta de uma síntese entre marcas de localidade

20
introdução

e elementos mais cosmopolitas, ponto ao qual retornarei ao longo de


minha narrativa. Sem falar que o próprio funk é ele mesmo a ressignifi-
cação carioca de uma trend estrangeira.
Todos estes motivos me mostraram a necessidade de pensar o funk
a partir da desconstrução de categorias reificadas, estivessem elas infor-
mando o próprio universo de investigação ou formatando a produção de
conhecimento antropológico. Foi nesse contexto que o encontro com Mr.
Catra se mostrou tão promissor. Eu o procurara para realizar uma entre-
vista de modo a obter subsídios para uma reflexão que me propusera
fazer a partir das relações ente funk e religião (Mizrahi, 2007b). Nos
diferentes shows que assisti durante o trabalho de campo da pesquisa de
mestrado, Catra era não apenas o que mais se destacava nesse aspecto
como era o artista funk que de fato inseria o discurso em torno do divino
em suas performances. Considerei aquela uma boa entrada para o tema
e o procurei. Da primeira entrevista surgiu o seu convite para que o
acompanhasse em suas turnês profissionais, e das primeiras incursões
com o artista surgiu a minha proposta para que ele passasse ao centro
de minha investigação de doutorado. Acompanhá-lo, como mostro no
primeiro capítulo, colocou-me a possibilidade concreta de realizar uma
investigação como parecia-me conceitualmente relevante. Um estudo
que escapasse não somente às noções que remetem a um pensamento
dual – que marcadamente presidiu narrativas estabelecidas da nossa era,
as chamadas “grandes narrativas da Modernidade” – como aquelas que
descreviam o funk como produção circunscrita ao ambiente da favela e
por oposição ao “asfalto”. O que meus dados iniciais mostravam é que o
funk era produto do encontro. Decidi perseguir esta hipótese.
A localização do funk no ambiente da favela é muitas vezes acom-
panhada de um discurso de denúncia da “criminalização” que o ritmo
sofre, vinculando a restrição em sua circulação ao histórico preconceito
racial e de classe de que são alvo os seus produtores e consumidores
majoritários. Essa mesma “criminalização”, entretanto, produz simul-
taneamente uma “glamurização” do funk, como Herschmann (2000b)
chamou atenção ao fim de uma década em que as reflexões acadêmicas
enfatizaram fundamentalmente o aspecto de “demonização” do processo
de inserção do ritmo nos meios de comunicação e a violência urbana

21
a estética funk carioca

e o conflito a ele associados.1 Hoje, este mesmo viés informa reflexões


em torno do funk que mostram o rendimento analítico que a ênfase
no “preconceito” que o ritmo sofre pode oferecer.2 Sem desconsiderar
a relevância destes estudos, procurei seguir por um caminho outro,
focando-me não tanto nos limites que constrangeriam o funk e mais
em seu aspecto agentivo, em sua expansão e criatividade. Interessou-me
assim problematizar a ideia de que o funk carioca é resultado de uma
cisão entre favela e asfalto, indivíduo versus sociedade, ou comunidade
versus sociedade, para mostrar o seu aspecto mediador, vendo-o como
produto do encontro, muitas vezes conflituoso, entre diferentes esferas e
classes sociais, inclusive aquelas que se convencionou chamar de “favela”
e “asfalto”.3
A evidência empírica indicava o quão rentável poderia ser uma
ênfase na circulação do ritmo e de seus artistas. Não há um jovem no
Rio de Janeiro que não tenha tido uma experiência de fruição do funk,
de modo que sua música é consumida por diferentes grupos e classes
sociais nos mais diferentes ambientes da cidade e do Brasil. Essa discus-
são, contudo, levanta uma outra, sobre a qual vale à pena nos determos
um pouco e que diz respeito à necessidade de distinção entre o baile
funk e a música funk carioca.
Iniciei minha imersão no universo estético funk em 2001, quando
comecei uma pesquisa sobre a trajetória na mídia do estilo indumentá-
rio associado às frequentadoras dos bailes funk, conhecido pela catego-
ria midiática “calça da gang” (Mizrahi, 2003). Após acompanhar o pro-
cesso de ressignificação deste objeto, que foi adquirindo novos sentidos
de acordo com os diferentes grupos sociais que o consumia, parti para
minha investigação de mestrado com o intuito de arrolar os discursos e
práticas dos usuários do estilo no contexto que a pesquisa anterior reve-
lara como sendo o seu ambiente de criação, o baile funk. E a partir dos
resultados a que cheguei em minha dissertação desenvolvi o estudo que
originou minha tese de doutorado. Desse modo, o evoluir de minha pes-
quisa fez com que o foco de minha investigação fosse gradativamente

1 Ver Yúdice (1997), Herschmann (1997b), Gomes (1997).


2 Ver Facina (2009), Lopes (2008), Medeiros (2006) e Favela on Blast (2008).
3 Ver Soares (2010), para um estudo que aborda o funk para pensar a favela.

22
introdução

migrando do baile funk para a música funk, sua criação, circulação e


fruição, uma variação que me parece importante ser marcada.
A tese que origina este livro se faz mais propriamente em torno
do ritmo funk, no sentido que foi acompanhando a circulação de sua
música por diferentes espaços da cidade que conduzi a minha etnogra-
fia. Desse modo estive em casas noturnas de elite localizadas na Zona
Sul da cidade, como a Baronetti; em casas de shows frequentadas pelas
classes populares e médias localizadas na Baixada Fluminense, como a
Via Show; em casas de espetáculo em que confluíam todas as classes,
como a Fundição Progresso, na Lapa, na Zona Centro; em clubes perifé-
ricos e ociosos, como o Clube do Boqueirão, também na Zona Centro;
e em favelas, como a do Tuiuti e a da Mangueira, ambas na Zona Norte.
Considero que o que se chama de baile funk acontece nestes dois últi-
mos locais, os clubes periféricos e decadentes, como aquele em que fiz
o trabalho de campo de mestrado, e as favelas, como a do Tuiuti e a da
Mangueira, ambas na Zona Norte.4 Nos outros locais dança-se e escuta-
se funk, bem como outros ritmos, como o house, o pop rock, o rock
nacional, o hip-hop, etc. Assim, mesmo em ocasiões em que o funk é a
atração principal, o que é configurado pela apresentação de MCs deste
ritmo musical, este se constitui em “mais um set” do playlist da noite, a
programação musical a ser executada. Já em um baile funk dança-se e
escuta-se funk do começo ao fim, e quando é tocado um ritmo alterna-
tivo – preferencialmente o pagode romântico ou uma variante melódica
do hip-hop – isto ocorre em momentos de baixa frequência de público
ou são executados em outro espaço físico.
São estas festas, denominadas bailes funk, que são perseguidas,
mais do que a música tocada nelas. Este cenário se adensou ainda mais
com a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em dife-
rentes comunidades populares, através da imposição de regras para a
regulamentação dos bailes que na prática impediram a sua realização.
Por outro lado, o artista funk, em sua hábil manipulação do mercado
que quer atingir, produz diferentes versões de acordo com o contexto

4 Em pesquisa sobre a cadeia produtiva do funk, realizada pela Fundação Getúlio Vargas (Simas
2008), a classificação por tipos de bailes é outra, diferenciando aqueles realizados nas favelas de
todos os outros.

23
a estética funk carioca

de sua circulação. Invariavelmente uma música possui duas versões, a


“pesada” e a “light”, com a segunda amenizando letras de músicas que
de outro modo estariam impedidas de circular pela sociedade ampla e
sem tocar em espaços formais como o rádio e a televisão. Além disso,
se sabemos que o proibidão foi “sufocado” até inícios dos anos 2000,
seus artistas buscaram alternativas para seguirem fazendo música, como
ficará mais claro no decorrer desta narrativa. É dessa perspectiva, desse
dinamismo que vemos nas buscas que o artista empreende, que afirmo
que mais do que as limitações ao movimento interessou-me explorar
seu viés expansivo e criativo.

O estudo da estética funk, como proponho, envolve dois aspectos.


Um deles é mais propriamente a realização de uma etnografia da arte,
onde a arte é tematizada por meio de uma abordagem antropológica,
como defendida por Alfred Gell (1998). Deste modo, o interesse recai
sobre manifestações que estejam imiscuídas na própria vida dos povos e
grupos estudados e não como apartadas da vida cotidiana, modo tradi-
cional pelo qual são considerados os objetos de arte em contextos moder-
nos. O que define uma obra de arte, uma manifestação artística, é, a par-
tir desta ótica alternativa, menos a sua circulação em contextos artísticos
e extraordinários, e mais a sua agência e intencionalidade. É a capacidade
de transformação da arte que interessa, ao invés de suas propriedades
representacionais. O segundo aspecto envolvido consiste em tomar o
estudo da estética como relativo à forma, esteja ela no corpo, nas roupas,
nos cabelos, nas métricas e nos ritmos musicais. Este enfoque entende a
estética como um modo de expressão não-verbal de qualidade sintética
e resultante do diálogo polifônico estabelecido entre os distintos níveis
de significação (Lagrou, 2007a), de modo que a música será abordada
como mais uma das vozes do diálogo. As suas qualidades formais nos
interessaram na medida em que nos ajudam a elucidar a lógica estilística.
Dessa perspectiva, proponho um uso diferencial para o termo esté-
tica de modo a escapar à associação costumeira que a designação esta-
belece com o “julgamento da beleza e do gosto” ou com o “fenômeno
do Modernismo europeu”, como Overing chamou atenção ao evidenciar
as dificuldades que o seu uso transcultural poderia acarretar (Weiner,
1994). O debate de Manchester sobre a validade do uso transcultural

24
introdução

da categoria estética produziu como desdobramento o questionamento


sobre se seria a noção de belo eficaz na distinção dos objetos artísticos.
De um lado se posicionaram antropólogos que expressaram uma con-
cepção universalista da percepção estética, ao defenderem que todos os
povos distinguiriam alguma classe de objetos como belos e artísticos. Do
outro, se postaram os opositores do uso do termo em contextos etnográ-
ficos por entenderem que o mesmo carrega a própria noção ocidental do
que pode ser arte, envolvendo assim o julgamento de uma cultura em
termos de sua capacidade de produzir o belo, impedindo, dessa maneira,
o estudo de objetos e imagens que contrariassem tais pressupostos.
O sentido que sugiro para a estética procura recobrar o laço entre
aparência e função, forma e conteúdo, cujo rompimento Gell (1998)
atribuiu ao Iluminismo. Desse modo, o estudo da arte, como proponho,
se faz em sintonia não apenas com Gell mas também com Latour (1994),
ao se utilizar da estética como recurso de visualização e demonstração
da imbricação de que é feita a vida social. Gell não era contra a estética
propriamente, mas contra a “atitude estética” que separava o belo de
seu aspecto utilitário, operação de purificação à qual ele oferece como
antídoto o olhar antiestético ou filistino (Gell, 1992), recurso metodo-
lógico através do qual o antropólogo poderia deixar de lado as aprecia-
ções de julgamento de valor ao estudar objetos de arte em contextos
não ocidentais, evitando informar suas avaliações por meio de noções
etnocêntricas e preconcebidas. O poder do objeto de arte deveria ser
conceituado a partir de seus processos de fatura e do encantamento
que a destreza do artista poderia produzir sobre os espectadores de sua
criação bem como a partir de suas agências e intencionalidades, que
colocam em relação social o objeto e o espectador.
É interessante notar ainda, através do raciocínio que segue Gell para
a elaboração de uma antropologia da arte, como os conceitos podem se
revelar limitadores. Mesmo escrevendo após as discussões realizadas em
Manchester, ao usar a categoria “objeto de arte” o autor se viu obrigado a
diferenciar o seu uso particular do feito pelos demais. Pois o que ele não
intenciona é tomar um objeto como “de arte” no sentido que a “teoria
da arte” lhe concede, ou no sentido próprio da concepção de arte em
termos ocidentais: algo extraído da esfera cotidiana e corriqueira e que
não pode portanto ser outra coisa que não um objeto extraordinário.

25
a estética funk carioca

Na teoria antropológica da arte de Gell, não há lugar para uma “obra de


arte” no sentido institucional do termo. Pois um objeto que foi conside-
rado como tal é retirado de todas as outras esferas da vida e considerado
exclusivamente como “de arte”.
Gell está essencialmente preocupado com os objetos materiais,
enquanto Lagrou (2007a) enriquece o estudo da estética ao propor que
as imagens, sejam elas em suas manifestações verbais, visuais e mesmo
virtuais podem nos conduzir a domínios outros, que escapam à objeti-
ficação que a coisa permite. A autora quer evidenciar o caráter que as
imagens possuem de nos levar às “experiências às quais apenas se alude”
e que são mantidas em condições “essencialmente secretas”. Busca, desta
forma, chamar atenção para um estudo das imagens que leve em consi-
deração a capacidade que as mesmas possuem de afetar os sujeitos emo-
cionalmente, sejam eles o pesquisador ou o pesquisado.

A investigação que origina o presente livro teve como contexto o


universo articulado em torno do cantor de funk Mr. Catra e sua rede de
relações profissionais, de amizade e familiares, e foi concretizada a partir
de entrevistas em profundidade e uma observação participante.5 Mas,
mais do que essas técnicas de pesquisa, procurei fazer uma “antropolo-
gia da amizade”, como fez Jean Rouch ao realizar seus documentários
etnográficos, acreditando, como ele e Marco Antonio Gonçalves, que a
“etnografia não significa um amontoado de dados (...) mas, sobretudo,
uma discursividade construída a partir de uma relação” (Gonçalves,
2008, p. 194). Pois mesmo concordando com Strathern (2004 [1991])
que a questão levantada pela pós-modernidade na antropologia coloca
um “problema de escrita”, penso que o que antes é colocado, ou mais
fundamentalmente é preciso renovar, é o modo como nos posiciona-
mos em campo. Em outros termos, não é possível renovar a escrita sem
igualmente revigorar o modo como nos relacionamos com os sujeitos de
nossa pesquisa, aspecto bastante elaborado pelos referidos antropólogos,
ainda que Strathern (2004 [1991]) tenha fixado sua crítica na natureza da

5 A discussão que apresento nas próximas páginas se beneficia ainda dos dados empíricos reco-
lhidos em minha pesquisa de mestrado (Mizrahi, 2006), realizada ao longo de dezesseis
meses nos anos de 2004 e 2005, e daqueles recolhidos para a pesquisa A influência dos subúr-
bios na moda da Zona Sul (Mizrahi, 2003), conduzida entre 2002 e 2003.

26
introdução

representação. A “crise da representação” gera desse modo novos mode-


los de autoridade etnográfica, que deixa de pertencer exclusivamente ao
antropólogo que realiza o relato e produz assim novos paradigmas para
essa mesma autoridade, como o dialógico e o polifônico, que “atribui aos
colaboradores não apenas o status de enunciadores independentes, mas
de escritores” (Clifford, 2002b).
Mas considerar o lugar do pesquisador no campo não se refletiu,
no caso de minha pesquisa, em um modo “discursivo” preocupado
principalmente com a representação dos contextos de pesquisa e situa-
ção de interlocução (Clifford, 2002b, p. 44), como nas reflexões de
Paul Rabinow sobre o trabalho de campo (2007 [1977]) e na proble-
matização do “encontro etnográfico” de Vincent Crapanzano (1980).
Pensar o tipo de relação que com meus interlocutores estabeleci pas-
sou também pelo modo como utilizei a mim mesma como dispositivo
de pesquisa, despertando neles interesses pelo diálogo que propunha
e suscitando conversas a partir da minha presença e da maneira como
eu me apresentava, nisto incluído o meu gosto pessoal ao me vestir.
Assim, nunca pensei que o pesquisador devesse ser uma figura neu-
tra e que essa neutralidade, se é que ela é possível, devesse se refletir
em minha indumentária. Percebi muito rapidamente que mostrar-me
diferente de seus gostos ou de suas expectativas de gosto não os confun-
diria com relação aos meus propósitos ali. Ao contrário, o modo como
me apresentava tornava mais instigante a relação, para mim e para eles,
na medida em que abria a possibilidade de uma troca mútua de infor-
mação. Como disse-me a filha mais velha de Catra, quando em sua casa
cheguei depois de algumas semanas ausente do ambiente doméstico:
“tanto tempo sem aparecer e nenhuma novidade?”.
O trabalho de campo ocorreu entre o mês de maio de 2007 e trinta
de dezembro de 2008, data em que precisou ser interrompido para que
no dia seguinte eu me ausentasse do país de modo a realizar doutorado
sanduíche no exterior, e foi complementado por incursões menos fre-
quentes, feitas após o meu retorno. A pesquisa empírica foi recortada
em três planos diferenciados. O primeiro deles se conformou ao longo
das turnês e performances do artista e de sua trupe, o que me permi-
tiu não apenas acompanhar as suas apresentações e seus deslocamentos
pela cidade e pelo estado do Rio de Janeiro como gerou a oportunidade

27
a estética funk carioca

para que eu voltasse às festas onde antes investiguei. A segunda situação


se deu em torno do núcleo familiar do artista, o que incluiu diversas
incursões aos centros de comércio acompanhando sua parentela femi-
nina. Por fim, o terceiro contexto de investigação se deu no estúdio de
gravação, onde acompanhei o processo criativo de Mr. Catra e outros
profissionais do funk, como DJs e MCs. Os nomes originais dos perso-
nagens foram em grande parte mantidos. Contudo, alguns deles foram
alterados de modo a proteger suas identidades.
Apesar de investigar em um mundo da arte, não interessei-me
especialmente pelo aspectos econômicos de sua cadeia produtiva, como
trabalhos que seguiram pela esteira de Howard Becker (1982) buscaram
elucidar,6 e tampouco possuo preocupações mercadológicas e de comodi-
ficação similares às de George Marcus e Fred Myers (1995). Ao optar pela
realização de um estudo da estética funk “microscópico”, como Clifford
Geertz sugere para a pesquisa antropológica (1989), não pretendo com
isso recortar um quadro específico de análise, que poderia ser o da festa
ou aquele que viabiliza a sua música. O que intenciono é de fato estudar a
relação da arte e do mundo imaginário dos seus sujeitos criativos com a
vida que eles articulam, que por sua vez engendra a própria arte.

O livro está dividido em três partes, cada uma se desdobrando em


dois capítulos, e está assim organizado não apenas pelo encadeamento
narrativo possibilitado, como também a partir da discussão teórica sus-
citada. Privilegiei uma escrita e narrativa que, ao mesmo tempo em que
entremeadas pela discussão teórica, mantiveram uma cadência que per-
mitisse ao leitor me acompanhar no processo de extração de sentido que
realizo ao organizar, por meio da construção do texto e da inserção de
imagens, parte dos dados recolhidos em campo.
A primeira parte tem como mote central teorias que de três dife-
rentes maneiras elaboram sobre a condição de partibilidade da pessoa
individual. O capítulo 1 resulta das primeiras incursões com o cantor
Mr. Catra e o modo pelo qual estas saídas me colocaram a necessidade
de levar a sério a hipótese de pesquisa que esmiucei na parte inicial desta
introdução. Através de uma etnografia da noite e das performances

6 Ver Facina (2008).

28
introdução

de Mr. Catra, temos uma mostra do contexto social pelo qual circula
o funk no Rio de Janeiro ao mesmo tempo em que vemos o artista se
deslocando pelo espaço urbano em um carro coletivo, distribuindo sua
agência nos moldes da “pessoa distribuída” de Gell (1998), “refazendo
o social” no sentido de Latour (2005) e exercendo sua “conectividade”,
como em Strahern (2004 [1991]), ao colocar em contato as diferentes
partes geográficas e sociais da cidade. A narrativa deste capítulo intro-
duz ainda os temas a serem elaborados ao longo da tese como um todo:
criatividade, objetos, imagens, religião, ironia, raça, relações de gênero.
O capítulo 2 muda o contexto etnográfico para o espaço doméstico,
onde estão presentes o artista e seus familiares. Aqui está em foco a “pes-
soa fractal”, como em Wagner (1981 [1975]), que nos permite evidenciar
não apenas como muitos dos traços de Mr. Catra se replicam por seus
parentes e afins, mas também como existe uma noção de pessoa que
não é apenas “dividual”, mas divisível onde se é um através de muitos.
Por meio dos discursos em torno da religião e de sua trajetória familiar,
contextualizaremos o posicionamento político peculiar e transgressor
de Mr. Catra diante da sociedade envolvente e de uma cosmologia oci-
dental objetificadas respectivamente pelo que ele designa como “socie-
dade católica” e a “hipocrisia da sociedade”.
Na segunda parte do livro evidencio a dinâmica criativa funkeira e
seu traço fortemente subversivo, além de uma tensão entre parte e todo
através da qual vemos que ao mesmo tempo em que Catra é um artista
singular do funk, é o próprio funk que lhe oferece os instrumentos de
viabilização dessa sua singularidade. Assim, a discussão teórica a unir
os dois capítulos desta unidade é amarrada por Edward Sapir (1949) e o
inerente embate entre figura e fundo que governa a vitalidade cultural.
Veremos ainda uma atuante lógica do englobamento, como em Louis
Dumont (1992), na qual a noção de totalidade é premente, ao mesmo
tempo em que seremos conduzidos pelo próprio artista às abordagens
que buscam uma dissolução dos limites desta mesma totalidade.
O capítulo 3 possui como contexto etnográfico o estúdio Sagrada
Família, onde Mr. Catra grava suas produções bem como as de outros
artistas. A narrativa será conduzida pelos parceiros de criação do cantor,
que nos ajudarão a elucidar a lógica criativa da música funk. A discus-
são teórica versará em torno da criatividade artística e da apropriação

29
a estética funk carioca

cultural. No capítulo 4 jogaremos o foco mais propriamente sobre o


artista Mr. Catra e no processo de tradução de uma música veremos
o constante papel mediador que ele exerce. Ao mesmo tempo, desta-
caremos o lugar que possui a imagem no processo criativo funkeiro e
discorreremos por diferentes subgêneros da música funk até chegarmos
às paródias musicais, uma das marcas distintivas de Mr. Catra.
Na terceira parte da tese, a análise se centra na estética corporal
feminina e masculina e nos objetos materiais dos quais os sujeitos criati-
vos se cercam para elaborarem a sua aparência. A discussão teórica cen-
tral recai sobre as distintas teorias da materialidade, sobre as noções de
agência e intencionalidade e sobre o modo protético com que os objetos
estendem as capacidades das pessoas. Como desdobramento da proble-
matização dos objetos materiais e da beleza emergirão questões relativas
às relações raciais e de gênero.
O capítulo 5 possui como discussão subjacente a criatividade,
mesmo quando não tratamos do artista em sentido estrito, e o modo
como os símbolos e a aparência podem ser manipulados de maneira a
equivocar o outro. O núcleo da reflexão é formado pelas produções dos
cabelos femininos e como a sua manipulação resulta em uma estética
duplamente ambígua. De um lado, ela procura escapar a uma associa-
ção que vem se mostrando como estabelecida entre cabelo e identidade
negra ao mesmo tempo em que opta por um estilo que os diferencia
do cabelo associado ao branco. De outro, os cabelos femininos buscam
uma mobilidade na circulação social, uma certa invisibilidade, que não
localize as suas usuárias em uma identidade funkeira fixa, como faria o
estilo indumentário de calças femininas que estudei no mestrado. Desse
modo, as elaborações sobre os cabelos femininos nos permitirão ver o
modo silencioso com que a estética nos fala sobre os preconceitos sociais
e raciais presentes em diferentes ambientes do Rio de Janeiro.
O capítulo 6, por fim, traz uma discussão que é inversa à que subjaz
no capítulo anterior. Se naquele vimos como os objetos podem ter seus
sentidos manipulados, neste o argumento versa sobre a imprevisibilidade
dos eventos e efeitos que eles podem produzir. A narrativa será conduzida
pela trajetória dos objetos mais propriamente masculinos mas, também
diferentemente do capítulo anterior, estes nos levarão forçosamente a con-
siderar a presença do feminino e por sua vez as relações entre os gêneros.

30
Parte I

Nós sofremos, como pacientes, de formas de agência que são


mediadas através de imagens de nós mesmos, porque, como pessoas
sociais, nós estamos presentes não somente em nossos corpos sin-
gulares, mas em tudo o mais em nossos arredores que testemunhe
nossa existência, nossos atributos e nossa agência.

Alfred Gell, 1998, p. 103


Capítulo 1
Uma etnografia da noite

Este capítulo de abertura é composto pelos deslocamentos realizados


por Mr. Catra de modo a cumprir sua atribulada agenda profissional.
Através de sua circulação pela cidade do Rio de Janeiro, apresento
uma etnografia da noite carioca e das performances profissionais do
artista ao mesmo tempo em que introduzo a conjuntura social na qual
se desenrolou minha pesquisa como um todo. Tendo como principal
contexto etnográfico o interior da van que nos carrega pelas diferentes
regiões da cidade, que age conectivamente ao alinhavar áreas geográfica
e socialmente distantes, o capítulo anuncia igualmente alguns dos temas
a serem elaborados no decorrer do livro. Assim, ao mesmo tempo em
que nos moveremos pelo Rio de Janeiro, colocando em relação as suas
partes, tangenciaremos tópicos como criatividade, objetos, imagens,
religião, ironia, raça, relações de gênero.

os deslocamentos
Estamos no carro, prontos para iniciar os deslocamentos que nos leva-
rão para as muitas performances que o artista funk executará em sua
jornada de trabalho. As noites começam em torno das vinte e uma horas
e terminam aproximadamente às sete horas da manhã seguinte.1 Como

1 A realização de muitos shows em uma única noite, com curto intervalo de tempo entre um e
outro, e a “correria” que deriva dessa estratégia para o cumprimento da agenda profissional são

33
a estética funk carioca

ocorre com frequência, nos encontramos na Praça da Bandeira, Zona


Norte da cidade, e a van pode chegar já trazendo Mr. Catra de sua casa,
em Vargem Grande, Zona Oeste da cidade.2

Rumamos em direção ao primeiro show da noite, que acontecerá na


periferia da cidade, em Jardim Ideal. Mr. Catra conversa com um de seus
seguranças sobre as “milícias”, grupos ilegais de policiais e bombeiros,
que “tomaram” dos traficantes de drogas o controle de diversas favelas.
Fred diz que só falta eles, os milicianos, traficarem, e Mr. Catra diz que
isso já fazem. O que falta mesmo é “um invadir o outro”, o que, acredita
o artista, em breve acontecerá, pois “são muito vaidosos”. Eu interrompo
a conversa de Catra e Fred e pergunto ao primeiro se ele acha que os
milicianos são mais vaidosos do que os bandidos. Ele responde, com sua
voz rouca e a jocosidade que lhe são peculiares dizendo que “o Rio de
Janeiro é uma terra de homens vaidosos. É quase veado. Sabe como é?”.

características do artista de funk carioca, como mostra o especial para o canal de televisão MTV
Brasil (Funk Carioca 2005). Este traço gera uma pequena competição entre os artistas que dispu-
tam para ver aquele que mais apresentações consegue realizar em um único turno. Tati Quebra-
Barraco diz que fez dez shows seguidos, enquanto o DJ Marlboro conta doze apresentações con-
secutivas, como declaram no referido documentário. A equipe deste, por sua vez, acompanhou a
turnê do Bonde dos Magrinhos, que resultou em quatro shows. Nas noites em que acompanhei
Mr. Catra contei um número máximo de sete apresentações em uma única jornada.
2 Ao longo deste capítulo apresento diferentes mapas onde estão marcados os percursos feitos
durante a noite, onde A refere-se a Vargem Grande, B a Praça da Bandeira, C a Jardim Ideal, D
a Rocha Miranda, E a Vila da Penha, F a Bangu, G a Lapa, H a Nova Iguaçu e I a Gávea.

34
uma etnografia da noite

Aqui abro um parêntese. Estamos em um cenário anterior ao da


instalação das Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs, nas favelas
cariocas, e até aqui a lógica a reger as relações entre as facções crimino-
sas do Rio de Janeiro é a de uma “invadir” a outra, “tomando” o controle
de uma favela à facção adversária. Assume-se assim o controle de uma
comunidade ao “invadir” seus territórios. Essa lógica governa as rela-
ções entre as três facções que comandam o crime nas favelas cariocas
e justifica ainda outra invasão, feita oficialmente pela polícia. Por sua
vez, os milicianos não se diferenciam em facções, mas agem como uma
quarta facção, invadindo os traficantes e tomando-lhes o poder. É inte-
ressante notar que o verbo invadir é utilizado para designar a invasão de
um território geográfico mas é inserido na construção verbal de modo
a remeter ao corpo físico do seu proprietário, de maneira que o corpo
biológico e as terras de um indivíduo ou grupo se equivalem.3
Mr. Catra, sentando, como de costume, na última fila de bancos do
carro, se dirige então à sua produtora, com lugar cativo na cabine do moto-
rista, no assento próximo à janela: “Sabrina, cadê os meus cordões?”. Ela
estica as mãos para trás e os passa para Fred, que os entrega a Mr. Catra.
A mesma operação é feita para entregar ao artista os seus anéis. Tanto
anéis quanto cordões são dourados e vistosos. Os cordões são três, pelo
menos. Deles pendem berloques, que podem ser as duas grandes letras C,
uma estrela de seis pontas, ou a face de um leão, todos dourados. Preso ao
fecho de um dos cordões, portanto visível para quem olha o artista pelas
costas, está um pequeno “olho turco”, adereço originalmente usado pelos
povos do Oriente Médio de modo a se protegerem contra o “mau olhado”,
o olhar dos invejosos. No pulso direito, o artista traz um relógio e muitas
pulseiras. Algumas em metal dourado e outras formadas por contas que,
como pequenos terços, reproduzem o mesmo olho protetor.
É uma noite fria. Mr. Catra veste uma larga calça jeans e uma blusa
de mangas longas em meia malha branca, estampada com dizeres em
preto. Traja ainda o que chama de seu “casaco de escocês”, capaz de,
como ele diz, protegê-lo das mais baixas temperaturas: uma japona na
cor cáqui, de capuz com pelo à sua volta. As roupas usadas por Mr. Catra

3 Veremos ainda que o mesmo tropo, invadir, é utilizado para designar o ato literal de penetração do
corpo alheio, como exemplificado pela canção “Bum bum não se pede”, transcrita no capítulo 4.

35
a estética funk carioca

em suas turnês são fornecidas por uma confecção paulista, que reproduz
a estética do vestuário masculino hip-hop. A Manos tradicionalmente
patrocina artistas de hip-hop, e Mr. Catra e seu grupo são os únicos fun-
keiros apoiados pela grife, o que me é revelado com um certo orgulho.
Continuamos nos deslocando a caminho do show. Passamos por
uma área de casas simples, casebres, e muitas biroscas, bares pequenos.
Com frequência vemos templos evangélicos e eventualmente igrejas
católicas. Mr. Catra avisa que “é aqui que o couro come”. Mais adiante
nos mostra a casa em que morou, contando que era “responsável” por
toda aquela área, acrescentando que cumpria a função montado a cavalo.
Nós estamos passando por Duque de Caxias, município da Baixada
Fluminense, mencionado na canção “Minha facção”, cuja letra veremos
adiante. Foi ali que Mr. Catra se tornou conhecido como “sinistro da
Baixada”, como diz a música. Deixou o lugar depois que o prefeito lhe
deu um prazo de setenta e duas horas para que dali se retirasse. Alguém
lhe pergunta se ele não negociou: “Negociei, ué. Saí”. E ele ri.

Chegamos ao local onde acontecerá a apresentação, anunciada em


uma faixa à entrada da casa de show, ao lado do nome de um dos patro-
cinadores do evento, o que leva um dos membros da equipe a reclamar:
“FM O Dia é o caralho”. Acrescenta que está “cheio desse negócio de FM
O Dia”, que os dois telões anunciados deveriam ser “mínimos” e que o
raio laser era certamente “daqueles de canetinha”. Entramos no baile.
O espaço é amplo e parece recém-construído. Todo o ambiente tem
aspecto novo e limpo. Os dois telões são de grandes dimensões, e estão

36
uma etnografia da noite

posicionados em cada uma das extremidades do espaçoso palco. O raio


laser desce do centro do teto e reproduz sobre o piso e as paredes bonitas
e coloridas mandalas de luz.
Mr. Catra sobe ao palco, mas logo o microfone apresenta defeito.
Ele aguarda por um momento para que o problema seja solucionado, o
que não ocorre. Catra se dirige então à mesa de som montada sobre um
pequeno tablado no centro do salão, posicionada de frente para o palco.
Dali ele canta entre o DJ Edgar, o técnico de som e um funcionário da
casa. Inicia sua apresentação como sempre faz, cantando o refrão de um
louvor, seguido de batidas funk, realizadas pelo DJ em seu MPC, a bateria
eletrônica.
O senhor é meu pastor
E nada me faltará!

O cantor profere a primeira frase, enquanto a audiência, em res-


posta, repete a segunda. Ele canta então “Minha Facção”.
Minha facção
É o bonde de Deus
Já fui ladrão
E conheço o breu

Se liga rapaziada
Essa é que é a parada
Catra, O Fiel
Sinistro da Baixada

Catra, O Fiel
Maluco pode crê
Minha facção
Fortalece você

Só não vale corrê


Vem representá
Se ajoelhou, mano
Vai ter que orá

Humilde e sinistro
Representação
Minha facção
Fortalece você

37
a estética funk carioca

Eu estô ligeiro
Sempre atento e esperto
Se ajoelhou
Tem que fechar com o certo4

Terminado o show, voltamos para o carro. Deixamos a Baixada


Fluminense em direção ao próximo baile, na Zona Norte da área metro-
politana da cidade. Mr. Catra comenta como gostou da festa que aca-
baram de fazer: “baile gostosinho, microfone maneiro”. Mas ninguém
emite qualquer opinião. Fez-se silêncio. Eu mesma não entendo até que
ponto ele era sincero e até onde criara um pretexto para implicar com a
implicância alheia, mandando uma mensagem àqueles que reclamaram
ao entrar na festa.
Mr. Catra volta a falar da época em que vivia na área. Diz que precisa
“entrar para a política”, pois assim dará “um jeito rápido” nos problemas
da cidade. Em seguida reclama “dessa sociedade católica”, que “ferra”
com tudo e todos. Continuamos a nos deslocar de carro, em direção à
Rodovia Washington Luiz, principal via de acesso à Baixada Fluminense.
Passamos por um entroncamento de vielas. Mr. Catra avisa que ali tem
uma “boca”, um ponto de venda de drogas ilícitas, e que a área é cheia
delas. Fred, com gaiatice, completa: “tem mais boca do que dente”, e
ambos riem. Mr. Catra emenda, e avisa: “Rio de Janeiro! A chapa está
quente! Tem mais boca do que dente”. Já na Rio-Petrópolis, a Rodovia
Washington Luís, as reclamações se fazem presentes novamente: “Tem
que pensar duas vezes antes de ir a São Gonçalo e Caxias”. São Gonçalo,
como Duque de Caxias, é um município associado à violência cotidiana.

4 Minha facção, de Mr. Catra. A grafia das palavras nas letras das canções reproduzem o modo
exato como estas são proferidas e escritas. O termo “nóis”, por exemplo, é escrito precisamente
desta forma. Como me disse o DJ Ratinho, não se escreve “nóis”, como outros termos, por
desconhecimento de um modo correto de escrita, mas sim porque trata-se de uma “palavra
outra”, ainda que seu significado tenha “a ver” com o significado de “nós”. Nesse sentido, a
escrita expressa mais um modo de, através da forma, de sua grafia, se opor a uma norma oficial,
a que rege a língua culta. O próprio Mr. Catra afirma no documentário Mr. Catra, o fiel (2007)
que hoje são falados dois idiomas no Rio de Janeiro, o do asfalto e o da favela. Este último é
designado como “favelês” pelo cantor de hip-hop MV Bill (2006) em sua canção “O preto em
movimento”. Eu mesma, no início do trabalho de campo, por diversas vezes tive dificuldade
de acompanhar as conversas, não apenas porque não dominava o assunto tratado, mas porque
ignorava muitos dos termos empregados e/ou seus significados

38
uma etnografia da noite

Em Rocha Miranda, bairro da Zona Norte carioca, Mr. Catra rea-


liza o segundo show da noite, que ocorre de modo usual. Depois de can-
tar as canções religiosas, Catra se dirige à plateia, elevando o tom de sua
voz e dizendo que quer ouvir “o grito dos maconheiros”. O público grita
de volta ao MC, lhe respondendo. Ele entoa um trecho de uma canção
reggae e diz “Viva Bob Marley... Viva Marcelo D2”, ambos os artistas
associados ao consumo de maconha, e canta então uma parte da música
“Bonde dos Maconheiros”, de sua autoria. Cria assim a oportunidade
para expressar seu desprezo pela “sociedade escrota”.
Ô, ô, ô, ô, ô
Cadê o isqueiro?
Demorô, formá
O bonde dos maconheiros
Não fume cigarro...
Não beba uísque...

Ao descer do palco, Mr. Catra passa ao lado de uma bela morena,


que vem em sua direção. A moça está vestida e adornada de modo bas-
tante provocador. Traja calça jeans clara, justa e de cumprimento acima
do tornozelo, e em seus pés traz tamancos de salto alto. Usa blusa preta
bem curta, que permite entrever através de seu generoso decote o sutiã
usado sob a mesma e na cor branca, fazendo assim um bonito con-
traste com a blusa e a pele do colo de seu seio. O seu abdômen está
todo exposto, tornando-se possível ver o umbigo de sua “barriga sara-
dinha” enfeitada por um reluzente piercing de cristal. Mr. Catra geme,

39
a estética funk carioca

fica mobilizado. Tenta encontrar um modo de falar com a moça, que


ignora-o, ou parece fazê-lo. Nem o olha. Já no carro, Mr. Catra fala:
“mulher... gostosa...”, não necessariamente nesta ordem. O tom de sua
voz é como o de alguém que sente dor.
Estamos de volta à van e o motorista ainda manobra quando uma
motocicleta se aproxima de nós, vindo pela contramão. Fred levanta e
vai até a janela, com a pistola na mão, fazendo-a visível a quem quer que
o observasse. A preocupação com motociclistas que se aproximam do
carro é constante, pois temem o ataque de bandidos.
Partimos para o Olimpo, casa de shows na Penha Circular, outro
bairro da Zona Norte da cidade. No caminho Mr. Catra e Fred con-
versam sobre um amigo comum que recentemente passou a fazer parte
do movimento Hare Krishna. Mr. Catra diz que ele, o amigo, é exce-
lente pessoa, “bom até demais”. Mas é também “doido”, pois só pode
ser “doido” alguém que acredita em um deus “com cara de elefante”.
Comentam sobre um amigo policial, que deixou o bairro da Tijuca, na
Zona Norte da cidade, pra trabalhar em Nova Iguaçu. Fred diz que em
Nova Iguaçu a polícia é mais respeitada, pois na Zona Sul “todo mundo
é filho de alguém”. Chegamos ao Olimpo e antes de Mr. Catra subir
ao palco podemos ouvir uma música funk que tem por tema central
o “Caveirão”, veículo blindado da polícia, utilizado nos confrontos que
ocorrem dentro das favelas, com o intuito de combater os traficantes
de drogas e os bailes funk patrocinados por estes. De acordo com Mr.
Catra, o Caveirão é um “artefato de guerra de uma das facções cariocas”.5
Caveirão brotô no morro
Querendo terrorizá
Mand’o Caveirão embora
Que a galera qué dançá

Se o Caveirão não fô
O bicho vai pegá
Se mexê com os carinha
Vai tomá só de AK [...] 6

5 A ideia de que a polícia forma uma quinta facção a disputar com os bandidos o controle das
ações ilícitas no Rio de Janeiro surge igualmente nas falas dos informantes de Alvito (2001).
6 “Caveirão”, de Fá do Tuiti.

40
uma etnografia da noite

Faz muito calor, e a casa está decorada como se para um baile de


carnaval, e dos bastidores podemos ver pessoas fantasiadas na plateia.
Após o show, deixamos a Baixada Fluminense, com destino à
Zona Oeste da cidade. O grupo, de modo geral, parece preocupado.
Comentam que será preciso passar por “trás do presídio” e Mr. Catra
fala que não está “muito amigo do pessoal da Vila Kennedy”, favela por
cujas imediações forçosamente passaremos para chegar ao local do
próximo show. Situada entre Bangu e Campo Grande, a comunidade
evoluiu a partir de uma vila proletária criada nos anos 1960, durante
a gestão do governador Carlos Lacerda, com o objetivo de absorver
os moradores removidos de extintas favelas de outras áreas da cidade,
habitadas pelas classes alta e média.
Mr. Catra e Fred voltam a falar sobre as milícias. Comentam que
o sargento de uma determinada área já colocou “gato net”, acesso ile-
gal às redes de televisão de sinal fechado, provido e cobrado através de
uma taxa de serviço pelos milicianos aos moradores das comunidades
que controlam. Concluem, então, que a área já está sob o domínio dos
milicianos: “se botô gato net, tá tomado”. Para se deslocar pelo Rio de
Janeiro e arredores, é preciso saber o que está “tomado”, controlado pelas
milícias, e o que está “dominado”, controlado pelos traficantes.
Estamos na Avenida Brasil, entre a Vila Kennedy e a Penitenciária
de Bangu, e o motorista do carro, a quem chamam de Ultraman – perso-
nagem futurista de uma série japonesa de filmes de animação, famosa na
década de 1970 – não sabe bem por onde seguir. Decide-se que ele deve

41
a estética funk carioca

atravessar um posto de gasolina, e sair por trás do mesmo. Trafegamos


ao longo do muro do presídio e Mr. Catra comenta como está “boniti-
nha” uma de suas entradas. Alguém reage, argumentando lhe parecer
um despropósito encontrar harmonia estética na entrada de um presí-
dio. Sabrina fala ao rádio, mas precisa interromper sua conversação pois
o sinal é intermitente. Novo comentário é feito, afirmando que certa-
mente dentro do presídio não existe este problema. A facilidade com que
os prisioneiros das penitenciárias do Rio de Janeiro acessam o mundo
de fora é um problema recorrente para as autoridades governamentais.
Ao chegarmos no Clube Bangu Campestre, local onde ocorrerá a
quarta apresentação da noite, vemos um simpático gramado à sua frente,
separado da via de carros por paralelepípedos pintados de branco. A
área está mobiliada por bancos igualmente pintados de branco e deco-
rada por “anões de jardim”. Um ambiente leve e kitsch, tomado pelos
jovens que por ali circulam. Novas apreciações pejorativas são reali-
zadas. “Esculacham” as meninas, xingando-as e dizendo que elas são
“baixo nível”. Alguém fala, levando as mãos ao alto: “Pra recordar, Jesus”.
E outro completa: “É pra tu não esquecer que é funkeiro”.

Descemos do carro, mas a noiva do DJ prefere ficar. Eu não entendo


bem o porquê: se ela achou que correria perigo na festa, se foi orien-
tada a permanecer no carro, ou se simplesmente estava cansada e por
isso preferia ficar. Fico então na dúvida se eu estou autorizada ou não a
descer do carro. Pergunto a Fred, o segurança, por onde vou, e ele diz

42
uma etnografia da noite

que eu devo ficar no carro. Nesse momento Ruan, amigo de Mr. Catra e
morador de uma favela na Zona Norte da cidade, se aproxima de mim,
perguntando-me o que eu gostaria de fazer. Digo a ele que gostaria de
ir junto, “se puder”. Ele diz “então vamos”, acrescentando que me dará
“cobertura” ao seguir atrás de mim, me protegendo. Fred já partira,
acompanhando Mr. Catra, Edgar e Sabrina.
No local do baile não há palco montado e Mr. Catra canta nova-
mente da mesa de som. Ele inicia a última parte do show, ao se diri-
gir ao DJ, em tom solene e jocoso, gradualmente assumindo um caráter
imperativo: “DJ Edgar... por favor... Que soem as trombetas da PU-TA-
RI-A!”. Um som de trombetas invade o espaço, acompanhado do ruído
do galope de cavalos, produzidos eletronicamente pelo sampler do DJ.
O MC então, usando toda a potência de sua voz, anuncia: “Vai começar
a Putariaaa...!”, se referindo à série de canções eróticas que usualmente
versam sobre os benefícios do sexo oral e a troca sexual com diversas e
simultâneas parceiras. Até o ano de 2006, este momento do show pro-
duzia a oportunidade para que muitas garotas do público subissem ao
palco e assim participassem da performance do artista, encorajadas pelo
MC e por canções como “Vem todo mundo”.

Ah…
Vem! Mariana, Juliana, Marieta, Julieta
Vem Aline, Yasmine, Jaqueline
Vem Andréia, vem Nilcéia
Vem Iara, vem Jussara
Vem a Claudia, vem Amana, vem Amanda
Vem todo mundo!

Oh, vem, vem, vem


Vem, vem, vem
Vem, vem, vem
Oh, vem, vem, vem

Para!
Só não vem aquela que fala demais
Tá ligado?
Aquela que fala demais pode ficá lá
Fica lá minha filha…

43
a estética funk carioca

Saia da janela
Vê se tu se toca
Mulher de verdade
Gosta mesmo é de piroca
Então…

Oh, vem, vem, vem, nhanha


Vem, vem, vem, nhanha
Vem, vem, vem, nhanha
Oh, vem, vem, vem, nhanha
Vem, vem, vem, nhanha
Vem, vem, vem, nhanha

Ela foi na minha casa


Tirar o meu sossego
Chegou cheia de marra
Depois pediu arrego
Tremeu de pernas bambas
Quando sentiu meu instrumento…

Quero ver tu rebolá


Ha, ha! Com tudo dentro
Quero ver tu rebolá
Ha, ha! Com tudo dentro

Então...
Ha ha ha! Vem, vem, vem nhanha
Vem, vem, vem
Vem, vem, vem
Com tudo dentro, hein?
Ha! vem, vem, vem nhanha
Vem, vem, vem
Ha! Vem, vem, vem
Ah...
Ha! vem, vem, vem nhanha
Vem, vem, vem
Ha! Vem, vem, vem
Ahhhhh.....

Ai eu quero namoro
Quero compromisso
Quero casamen...’

44
uma etnografia da noite

Só se você rebolá
Ha ha! Com tudo dentro
Então...
Ha ha ha! Vem, vem, vem nhanha
Vem, vem, vem
Vem, vem, vem

Pode vir... 7

O show transcorreu de modo usual, ao qual assistimos do chão.


Quanto a Ruan, este esteve ao meu lado todo o tempo, parecendo zelar
por meu bem-estar. Na saída do salão há um grupo de moças aguar-
dando por Catra para tirar fotos com ele que para e faz pose com cada
uma delas, abraçando-as e sem sorrir.
De volta ao carro, surgem novos desentendimentos. Discussões
que resultam da tensão gerada pelas diversas apresentações programa-
das para a noite, o que torna reduzido o intervalo de tempo destinado
aos deslocamentos feitos entre uma e outra casa de espetáculo. O debate
agora gira em torno do rumo a ser tomado. Para qual casa de show segui-
remos? Para a Rio Sampa, em Nova Iguaçu, a maior cidade da Baixada
Fluminense, ou para a Fundição Progresso, na Lapa, bairro da Zona
Central da cidade do Rio de Janeiro? Decide-se pela primeira opção,
mas ao motorista, que dirige em altíssima velocidade pela Via Dutra,
já nas imediações de Nova Iguaçu, escapa a entrada para a pista de ser-
viço que nos conduziria ao destino determinado. Mr. Catra diz a ele que
continue, com sua voz grave e em tom pacífico: “vai que Deus já deu a
direção”. O motorista não entende e Catra repete: “vai que Deus já deu
a direção”. Seguimos então para a Fundição Progresso, na Lapa, o bairro
mais boêmio do Rio e ponto de encontro de jovens de diferentes classes e
“tribos” da cidade. Mr. Catra, sempre sentado na última fila de bancos da
van, conversa discretamente ao telefone e, ao encerrar a ligação, eleva o
tom de sua voz e fala para o grupo: “A piranha tá me esperando com um
monte de veado! Por que eu tenho esses problemas, Senhor?”.
Chegamos ao acesso do estacionamento da casa de espetáculos,
tomado por jovens que ali se aglomeram. A noiva do DJ, sentada em
seu lugar distante da janela, se dirige a uma das moças que obstrui a

7 “Vem todo mundo”, de Mr. Catra.

45
a estética funk carioca

passagem do carro, sem que esta a escute: “Sai! Piranha! Vagabunda!”.


Em seguida é a vez de um dos seguranças reclamar de um rapaz de faixa
vermelha na cabeça, duvidando de sua masculinidade. Nessas horas as
expressões preferenciais são “veado”, “veadinho” e “arrombado”. Alguém
comenta que aquela “gente da Fundição é muito estranha”, e Mr. Catra
complementa dizendo que o local é um “puteiro moderno”.

Adentramos o estacionamento da Fundição Progresso, onde


Silvana e seus amigos aguardam. Subimos todos para os camarins,
onde esperamos um pouco. Já no palco Catra “dá uma palhinha”, faz
uma curta e improvisada participação, ao fim da apresentação de um
grupo de pagode. O som está péssimo, tornando quase impossível se
escutar as vozes dos cantores, o que o produtor do grupo de pagode
nota, comentando comigo. Os sambistas encerram a sua apresentação
e o palco agora é de Mr. Catra. Usando o microfone, portanto se diri-
gindo simultaneamente ao público e à direção da casa, ele avisa que não
começará o show enquanto o som não for ajustado, argumentando que
a “rapaziada merece” e que “o bagulho tem que ser do jeito que tem que
ser”. Ele canta o refrão de uma música funk que diz: “Aumenta, aumenta
o som. Aumenta, aumenta o som. Escute o barulhão”. Realiza o seu
tradicional louvor e reclama, novamente ao microfone: “Tão economi-
zando o som?”. Chama então Anderson, o técnico de som de sua equipe,
para que este resolva o problema, pedindo-lhe que vá até a mesa de som

46
uma etnografia da noite

principal localizada no centro do imenso salão que abriga a audiência.


Finalmente o show foi iniciado, seguindo seu andamento costumeiro.
Catra se prepara para introduzir as canções eróticas, dando início à
série de paródias musicais que tão bem distinguem o seu modo de fazer
funk, como esmiuçarei no capítulo 4. Executa agora a sua versão da
idílica “Tarde em Itapoã”, de Toquinho e do poeta Vinícius de Moraes.
Postada ao fundo do palco, assistindo a apresentação, Silvana leva seus
braços ao alto, movimentando suavemente seu corpo jovem e de formas
arredondadas ao ritmo da música, agora com o conteúdo de sua letra
subvertido pela composição de Mr. Catra.
Tirou meu calção de banho
Fez biquinho pra mamá
Meu pau ficou des’tamanho
Não dava pra’creditá

E a gata mamava sorrindo, que lindo


E eu pedi mais um pouco
E o bagulho explodindo
É uma coisa de louco

É bom…
Uma mamada de manhã
Halls com sabor de hortelã
Pra relaxar dá dois no can8
Um natural de Amsterdam9

Da Lapa nos dirigimos para a Rio Sampa, em Nova Iguaçu, com o


carro agora lotado graças aos convidados recém-chegados de Mr. Catra.
A entrada pelos bastidores desta casa é sempre triunfal, com Catra
e sua trupe cumprimentando e sendo cumprimentados efusivamente
pelo pessoal da casa, mas um modo efusivo particular, de poucas pala-
vras e muitos gestos: apertos de mãos espalmados, feitos por braços
flexionados, acompanhados de poucos sorrisos e um andar gingado
também particular.

8 “Can” se refere à abreviação para cannabis, o nome científico para maconha.


9 “Uma mamada de manhã”, de Mr. Catra.

47
a estética funk carioca

Ao chegarmos, aguardamos no corredor dos bastidores da Rio


Sampa, que conduz aos camarins. Mr. Catra, Sabrina e Pigmeu, o empre-
sário do cantor, estão reunidos a portas fechadas em uma tensa e privada
discussão. Chegamos tarde demais, e não há mais tempo para a apre-
sentação de Catra. Silvana e seus amigos relaxam em um dos camarins,
com as portas abertas. Ruan está de pé ao meu lado. Até então ele esteve
bastante calado, mas estimulado pelo acúmulo de uísque e energético
que se dá ao fim da noite e pela presença homossexual na sala à nossa
frente, me fala: “Isso é uma verdadeira caôzada”. Ao que eu lhe pergunto:
“como assim, caôzada?”. E ele continua:
Caôzada que quero dizer é mutretagem. Eu sou homem, tu é mulher. A
gente é o que a natureza deu pra gente. Eu não posso ser você, nem você
quer ser eu. Caôzada porque se eu encontro um à noite, de maquiagem,
enchimento no peito...

“Caôzada” significa um erro, algo falso, uma mentira, enquanto


“mutretagem” vem da gíria “mutreta”, significando assim um plano com
objetivos dúbios, um arranjo não muito bem feito.
Partimos para a Zona Sul, área privilegiada da cidade, para realizar
a última apresentação da noite, que ocorrerá no Jockey Club da Gávea,
reduto da elite carioca. A abertura do show me parece incomum. Edgar,
o DJ, reproduz extensamente através de sua MPC o altíssimo som de uma
rajada de metralhadoras. Mr. Catra está no alto do caminhão que foi
convertido em uma espécie de trio elétrico e que faz as vezes do palco.
Ele olha pra o público no chão e fala, tranquilamente e em tom grave:

48
uma etnografia da noite

O bagulho é desse jeito. Você tem que respeitar pra ser respeitado. Porque
ninguém é melhor do que ninguém. E a humildade é a essência da vida, tá
ligado? Quem é humilde aí?

O público, humildemente?, permaneceu em silêncio.


Antes de encerrar sua apresentação, Mr. Catra retorna às odes reli-
giosas, e grita: “Pra terminar do jeito certo. Acredite!”, e então canta: “O
senhor é meu pastor e nada me faltará”. Ele poderá ainda pedir “palmas
pra quem verdadeiramente merece” e encerra sua participação dizendo:
“Que Deus ilumine vocês”.

a relação entre teoria e empiria


O luxo da antropologia reside no poder que ela nos concede de, ao
invés de testar teorias, produzir outras na relação com nosso informan-
tes e a partir da própria teoria. É por este motivo que nossa descrição
etnográfica, mesmo quando tachada de empiricista, ajuda a adentrar
mundos que a pura descrição não permitiria. É dessa união entre empi-
ria e conceituação que nasce a narrativa deste livro como um todo.
Pois, se adentrei o mundo funk, ainda em 2002, movida por um certo
fascínio que sua estética sempre me causou, foi movida por proble-
mas teórico-conceituais que neste mesmo mundo permaneci, dando
sequência à minha investigação. O funk, como vi desde o início, é sim
bom para pensar, e Mr. Catra, junto à sua rede de relações, atendeu
a questões teórico-analíticas que possuíram especial relevância para a
minha produção de conhecimento.

49
a estética funk carioca

Minha pesquisa de mestrado foi conduzida em um determinado


baile funk, dando origem à dissertação “Figurino Funk: uma etnografia
sobre roupa, corpo e dança em uma festa carioca”. Tendo como um dos
suportes analíticos os sistemas classificatórios de bens, como em Lévi-
Strauss (1996) e Sahlins (2003), problematizei os usos da roupa e o nexo
existente entre materialidade, corporalidade e noção de pessoa em um
único e bem definido contexto, circunscrito pela festa. Uma vez encer-
rada esta etapa de minha pesquisa, formulei meu projeto de doutorado
tendo por base a ideia de conectar a esfera da festa à vida cotidiana de
seus frequentadores. Uma possibilidade que imediatamente se interpôs
foi a de me concentrar em uma favela, ambiente no qual residia a maio-
ria dos jovens que frequentavam o baile onde anteriormente investiguei.
Entretanto, ao deixar a festa, já se fazia claro que a ideia de um todo
coeso, de uma realidade fechada em si mesma, não poderia fornecer
o lócus analítico nem o contexto de investigação necessários às com-
plexidades envolvidas no processo de “invenção da cultura” (Wagner,
1981 [1975]) engendrado pelo funk. Ao mesmo tempo, as nuances apre-
sentadas por uma concomitante abordagem dos objetos regida pela
ótica de sua fisicalidade (Miller, 1987; Gell, 1998), como igualmente
imprimida na dissertação de mestrado, mostraram-se de certo modo
dissonantes com o sistema de oposições que construí para o Figurino
Funk. A estrutura de contrastes revelara-se pouco flexível para abrigar
as ambiguidades que a materialidade dos objetos trouxera à tona.
Foi nesse contexto que o encontro com Mr. Catra se mostrou tão
promissor. Pois a ele cheguei de um modo casual, interessada que estava
em produzir uma reflexão específica sobre a relação entre funk e religião,
que originaria um artigo sobre o tema (Mizrahi, 2007b). Através de
Catra adentrei um Rio de Janeiro que não era mais possível ser descrito
por meio das relações margem e centro. E foi ao finalizar a descrição
etnográfica desse mesmo Rio de Janeiro – descrição que vimos acima
– que notei que, sem perceber, não recorri mais aos próprios termos
“centro” e “periferia” na construção de minha narrativa. Esse universo
de clivagens, se não ausentes, mas um tanto embaralhadas, sem lugar
fixo, composto por oposições alternantes e móveis, emergiu para mim
no próprio momento em que eu mergulhava na leitura de uma literatura
mais propriamente melanésia e que tratava das relações parte e todo, da

50
uma etnografia da noite

pessoa compósita, do indivíduo e da sociedade. É essa conjunção entre


teoria e empiria que conduz minha reflexão e está contida de modo sin-
tético neste capítulo primeiro.

A descrição etnográfica que apresentei na primeira sessão deste


capítulo se articula a três problemas teórico-conceituais que perpassam
todo o meu argumento. Os problemas a que me refiro são a descrição
etnográfica em si, a natureza do social e a relação parte-todo. Todos eles
se relacionam ao argumento principal a amarrar a tese de doutorado que
origina este livro, a saber, a dimensão conectiva do fazer artístico, e estão
todos contidos na imagem utilizada por Strathern (2004 [1991]) para
nos falar da incomensurabilidade das partes de um todo.
Tomando de empréstimo ao matemático Gleick a imagem de uma
louça que é recomposta de seus cacos, Strathern (2004 [1991]) defende
que a descrição etnográfica não deve buscar refazer uma totalidade,
pois é produto das “conexões parciais” estabelecidas entre partes que,
por sua natureza fractal, por sua fractalidade, não podem engendrar um
encaixe perfeito. A imagem de uma xícara refeita a partir de seus pró-
prios cacos nos fala menos da impossibilidade de se refazer um todo
e mais de como esse refazer produz um encaixe imperfeito, um todo
não coeso. Esta imagem interessa-me especialmente na medida em que
contém o trabalho de refeitura a que deverá se dedicar o antropólogo
em sua produção de conhecimento. Ao abrir mão da ideia de totalidade,
Strathern não a substitui por um mundo em fragmentação, mas consi-
dera a relevância de se refazer um todo, que se caracteriza agora pela sua
não coesão. As partes encontram-se entrelaçadas, mas não completa-
mente fundidas (Strathern, 1988 p. 70). A noção de conjunto perma-
nece mas, diferentemente dos sistemas classificatórios, há agora espaço
para as ambiguidades.
Refazer o todo traz à tona perguntas sobre a escrita etnográfica e
o modo pelo qual se produz o conhecimento antropológico. Estas são
problematizações que emergem da etnografia propriamente dita, o que
fica mais evidente a partir do traço reflexivo com que conduzo a investi-
gação empírica e está presente ainda na maneira com que me foram sus-
citadas as elaborações sobre o meu material. Nesse sentido, a construção
do texto etnográfico é problematizada ao longo de todo o trabalho e

51
a estética funk carioca

não se restringe à escrita deste capítulo. A questão que me coloco, inspi-


rada por Wagner (1981 [1975]), é a de como refazer, do ponto de vista do
antropólogo, a cultura estudada.
Contatos entre superfícies têm propriedades muito independentes dos
materiais envolvidos. Elas são propriedades que resultam como depen-
dentes das qualidades fractais dos choques sobre choques sobre choques.
Uma simples mas poderosa consequência da geometria fractal das super-
fícies é que as superfícies em contato não tocam em todo lugar. A aspereza
[bumpiness] em todas as escalas impede isso... É por isso que duas peças de
uma xícara quebrada não podem ser rejuntadas, mesmo que elas pareçam
se encaixar em alguma escala ampla. Em uma escala reduzida, choques
irregulares falham em coincidir10 (Gleick, 1988 p. 106, apud Strathern,
2004 [1991], p. xxiv).

O “paradoxo do contato entre superfícies” (Strathern, 2004


[1991], p. xxii) contém a impossibilidade da fusão de suas partes. Ele
é uma lembrança de que as partes não estarão nunca em contato per-
feito, de modo que uma conexão necessariamente envolve a presença de
um gap, um intervalo, uma interrupção. Portanto, a noção de “conec-
tividade” traz implícita a noção de “socialidade” na qual o conflito está
previsto e não significa uma recusa da relação mas reafirma o fato de
não haver nada de “inerentemente benigno no entrar em relações”
(Strathern, 2004 [1991], p. 46). A noção de Strathern se contrapõe
à noção de sociedade, “um conceito totalizante” definido por oposição
ao seu correlato “indivíduo” e “através do qual os antropólogos ociden-
tais puderam pensar o holismo dos outros” em um mundo plural, um
“mundo cheio de distintas, sociedades totais” (Strathern, 1992, p. 77).
Igualmente, o conceito se afasta da noção de “sociabilidade” de Georg
Simmel (1983), segundo a qual a vida social é movida pelo caráter volun-
tário das associações entre os indivíduos e pela amabilidade e o prazer
inerente às suas relações.
Uma segunda imagem, o ciborgue tomado de empréstimo a Donna
Haraway, permite a Strathern traçar uma espécie de terceira via para ilus-
trar o modo pelo qual ela entende que a experiência etnográfica ocorre
(Strathern, 2004 [1991], p. 27) e assim traduzir não apenas as suas
ideias sobre perspectiva, texto etnográfico e o trabalho do etnógrafo,

10 As traduções dos originais são de minha autoria. (n.a.)

52
uma etnografia da noite

mas também as relações parte–todo e as relações sujeito-objeto. O cami-


nho está novamente na parcialidade das conexões que caracterizam as
relações entre corpo humano e máquina que formam o ciborgue. As
partes estabelecem conexões que são em si parciais, formando assim
uma imagem toda, mas nunca um todo coeso, pois as partes, por serem
humanas e não humanas não possuem termos de equivalência ou com-
paração, portanto, não se encaixam nunca.
Eu evoquei a imagem do ciborgue (...) de maneira a fazer um ponto óbvio
sobre a vida social. Não existe nada de inerentemente benigno no entrar
em relações, ou tornar todo mundo participante na performance do outro.
Nós não podemos usar a socialidade como um tipo de campo que sim-
plesmente realça a tomada de consciência pessoal ou cultural. Nossos cos-
mopolitas acadêmicos não podem simplesmente aderir às relações sociais
por conta de sua experiência do mundo. (Strathern, 2004 [1991], p. 46)

Strathern recorrerá ainda a uma terceira imagem, a do gráfico frac-


tal, para chegar a um novo modelo para o texto antropológico, compa-
tível com uma Modernidade que ela diagnostica como “pós-plural”, na
qual não há mais lugar para uma “cultura ocidental pluralista que vê o
mundo como constituído em entidades – uma multiplicidade de indiví-
duos ou classes ou relações” (Strathern, 2004 [1991], p. xiv). A autora
nota que a ressonância cultural alcançada por estas “imagens bifurcadas”,
aquelas concedidas pelos gráficos fractais, se relaciona à exigência de uma
nova forma de escrita do texto antropológico, e oferece a sua sugestão ao
mesmo tempo em que critica a oferecida pelos antropólogos pós-moder-
nos. Se a metáfora apresentada pelos últimos é a da viagem (Strathern,
2004 [1991]), a que ela fornece produz “contra-imagens às recebidas metá-
foras antropológicas de estrutura e sistema” (Strathern, 1992, p. 76).
Strathern escreve no início dos anos 1990, reconhecendo que o
modo como a Modernidade se afigura exige uma nova abordagem do
social bem como uma escrita etnográfica distinta. Como ela afirma, as
suas formulações em Partial Connections formam uma narrativa “em
resposta a um problema de narrativa” (2004 [1991], p. xiii), problema
este suscitado pela crítica à representação etnográfica conforme sinte-
tizada pelo reflexive turn. Mas a autora (1992; 1999; 2004 [1991]) não se
mostra satisfeita com as imagens de fragmentação, colagens e suturas a
que os antropólogos pós-modernos frequentemente recorrem para dar

53
a estética funk carioca

conta tanto do novo formato que deve ter o texto etnográfico quanto
para descrever em que consiste a criatividade cultural nesse mundo
pós-plural. Strathern pressente em autores como James Clifford e Ulf
Hannerz a “nostalgia de um holismo não problemático” (Strathern,
1992, p. 98), no qual o mundo, como o texto, resultaria em um conjunto
compósito, feito a partir de fragmentos tomados de empréstimo a outras
realidades. Mesmo que os elementos deslocados de outras realidades
não pudessem ser encaixados perfeitamente, ainda assim mundos totais
deveriam existir em algum lugar de modo a fornecer as partes a serem
recombinadas criativamente. As culturas, como o texto etnográfico e as
pessoas, seriam, dessa perspectiva, híbridos particulares resultantes da
recombinação de elementos pré existentes.
Bruno Latour (1994), por sua vez, entende que nós, modernos, jamais
isolamos efetivamente em domínios estanques o público e o privado, o
doméstico e o político, o corpo e a mente, a ciência e a magia. As imagens
de separação oferecidas por nossa ontologia ocidental servem-nos igual-
mente para falar da concomitante hibridização que a própria purificação
viabiliza. É ao criarmos mecanismos de purificação que tornou-se pos-
sível crer que hibridizamos. Latour (1994) expõe seu argumento ao dis-
secar a rede articulada pelos distintos domínios que percorre o repórter
de um caderno de economia para escrever um artigo corriqueiro e nos
informar sobre um assunto específico e cotidiano. O caráter processual
do social é posteriormente enfatizado pelo autor através da teoria do ator
-rede (2005), onde a rede não é uma coisa mas um conceito, um recurso.
A rede é uma ferramenta para ajudar a descrever algo, e não aquilo que
deve ser descrito. Para apreendermos o social, segue o autor, devemos
fazê-lo através da análise dos “matters of concern” e não através dos “mat-
ters of fact”, dados já feitos e que se refiram a uma versão hegemônica de
um fato prematuramente unificado (Latour, 2005, p. 115-118).
Latour, como Strathern, ao reconceitualizar o social, propõe igual-
mente um novo modo para a sua representação. E como o social é para o
autor uma questão de movimento e circulação, são necessários recursos
analíticos que permitam ao leitor visualizar o social novamente como
uma entidade circulante (Latour, 2005, p. 128). Desse modo, os ato-
res, em vez de tratados como “intermediários” – onde somente alguns
são causadores das ações desempenhadas por muitos (Latour, 2005,

54
uma etnografia da noite

p. 130) – serão tomados como “mediadores”, todos capazes de fazer os


outros realizarem ações inesperadas (Latour, 2005, p. 128). A tarefa é
descrever os atores como redes de mediações, daí o termo compósito
actor-network que dá origem à actor-network-theory, a ANT (Latour,
2005, p. 136). Mas são redes que, diferentemente do objeto que auxilia
o pescador em seu ofício, não podem ser “penduradas”, reificadas, mas
que precisam ser permanentemente rastreadas e refeitas por meio da
passagem de um novo veículo (Latour, 2005, p. 132).
Latour propõe que investiguemos não uma realidade única, estática
e reificada, mas múltiplas realidades que são constantemente refeitas. O
termo social em sua sociologia das associações refere-se a
um movimento, um deslocamento, uma transformação, uma tradução,
um recrutamento [enrollment]. É uma associação entre entidades que não
são de maneira nenhuma reconhecíveis como sendo sociais da maneira
usual, exceto durante o breve momento em que elas são novamente
embaralhadas. Persistindo na metáfora do supermercado, nós chama-
ríamos “social” não uma prateleira específica ou ala, mas as múltiplas
modificações feitas na organização dos bens por todo o local – seu empa-
cotamento, a marcação de preços, etiquetação – porque essas mudanças
de minuto revelam ao observador quais são as novas combinações explo-
radas e quais atalhos serão tomados (o que será posteriormente definido
como “rede”). Assim, social, para a ANT, é o nome de uma associação
momentânea que é caracterizada pela forma através da qual ela se consti-
tui em novas formas (Latour, 2005, p. 65).

Mas se os deslocamentos de Mr. Catra mostram-nos o artista em


suas potências conectivas, eles nos revelam ainda uma dimensão outra
de seu fazer, a de distribuidor de agência, permitindo-nos apreender os
efeitos de sua “pessoa distribuída”. O conceito elaborado por Alfred Gell
(1998) se baseia na exúvia e na fractalidade, duas noções fundamentais e
complementares entre si e que enfatizam o caráter essencialmente partí-
vel da pessoa que ultrapassa os limites do seu corpo individual.
Ao analisar o volt sorcery, Gell (1998, p. 96-154) chama atenção para
o fato de seu poder de ação residir na similitude que o objeto construído
tem com o seu protótipo, a pessoa a quem será impingido o dano. É
esse ato de representar a vítima que concederá eficácia à feitiçaria, pois
em última instância a vítima, que é também o protótipo da representa-
ção visual, é a responsável pela aparência do índice, transferindo para

55
a estética funk carioca

este sua agência. Entretanto, a representação, o índice, o bonequinho


vodu, torna-se ainda mais eficaz quando lhe é acrescentado um frag-
mento físico, uma parte destacada da pessoa que será alvo da magia.
Essa associação entre magia simpática e magia por contato, notada por
Frazer, é incorporada por Gell em sua teoria do índice. Pois as exuviae,
as partes do todo, se assim desejarmos, não simbolizam metonimica-
mente o corpo da pessoa, mas são agentes. Partes destacadas da “pessoa
distribuída” que agem sobre o mundo e sobre aqueles com quem esta-
belecem contato, ao mesmo tempo em que sofrem como pacientes com
as ações dos outros índices.
Nós sofremos, como pacientes, de formas de agência que são mediadas
através de imagens de nós mesmos, porque, como pessoas sociais, nós
estamos presentes não somente em nossos corpos singulares, mas em tudo
o mais em nossos arredores que testemunhe nossa existência, nossos atri-
butos e nossa agência (Gell, 1998, p. 103).

É a própria condição de pessoa social que nos faz “partível”. Através


das exuviae que libera de seu corpo, o artista, o sacerdote ou o político
influente distribui sua agência, deixando traços e produzindo efeitos,
ao mesmo tempo em que se alimenta das partes dos mundos pelos
quais passa.
Gell está elaborando a partir da noção de “divíduo”, expressão origi-
nalmente forjada por Marriot e também utilizada por Strathern (1988),
para falar da pessoa dividual melanésia, como por Wagner (1991), em
sua definição da “pessoa holográfica”. A noção de Gell contém tanto a
dimensão relacional e representacional do “divíduo” e da “pessoa holo-
gráfica” como evidencia a agentividade das partes da “pessoa partível”.
Neste capítulo dei destaque a este último aspecto da pessoa de Mr. Catra,
deixando a discussão sobre a fractalidade para ser aprofundada no pró-
ximo capítulo. Com isto, contudo, não quero argumentar que Mr. Catra
não seja moderno. Ao contrário, a sua modernidade permite coadunar
partibilidade e replicação com traços mais comumente tidos como “oci-
dentais”. Dessa perspectiva, defendo que a manifestação de sua indivi-
dualidade não é incompatível com a possibilidade de tomá-lo em seus
traços de “pessoa holográfica”, como começará a emergir no capítulo a
seguir e como ficará evidente a partir da discussão em torno da criativi-
dade estabelecida nos capítulos três e quatro.

56
uma etnografia da noite

A criatividade, como emerge do material etnográfico que alicerça


a segunda parte do livro, deixará ver como, em um contexto urbano
carioca, propor a perspectiva melanésia sobre a pessoa não exclui a pos-
sibilidade de abordá-la em suas feições modernas. Permitirá ainda notar
que a individualidade, para se manifestar, não precisa corresponder ao
individualismo que, como descreveu Louis Dumont, define a pessoa
como uma “mônada” fechada em si mesma. Diferentemente, tratamos
de uma modernidade que permite escapar ao pensamento dual e na
qual a pessoa individual manifesta a todo momento a sua dependência
dos outros. A partibilidade de Catra permite-lhe romper com os limites
espaço-temporais impostos ao corpo físico e realizar o ideal funkeiro de
estar em muitos lugares simultaneamente.

“vem todo mundo!”


Mr. Catra é o nome artístico de Wagner Domingues da Costa, e é por seu
primeiro nome que ele é tratado no ambiente doméstico. Catra é igual-
mente chamado de Negão, especialmente por pessoas ligadas ao seu uni-
verso profissional. O artista, um homem com pouco mais de 40 anos,
dono de uma voz grave e rouca, reveladora de doçura, é uma figura com-
plexa. Antigo gangster, como ele gosta de se definir, ele está na cena funk
desde seus momentos primeiros, os anos 1980. Iniciou sua carreira como
cantor de “funk proibido”, categoria que classifica músicas que narram as
ações dos bandidos e as interações cotidianas na favela, e posteriormente
se especializou na chamada “putaria”, canções que focalizam as relações
entre os gêneros e frequentemente possuem conteúdo erótico.
Mr. Catra foi criado no domicílio em que sua mãe trabalhou como
empregada doméstica, em uma área de moradia de classe média próxima
à Favela do Borel, no bairro da Tijuca, cujos negócios ilícitos já foram
controlados por um de seus irmãos. Ter sido adotado por Edgard, o
patrão de sua mãe, permitiu a ele estudar no Colégio Pedro II, uma escola
tradicional carioca conhecida por seu alto nível educacional. Estes traços,
associados ao estilo de vida singular, concederam a Mr. Catra um conhe-
cimento fino da espacialidade carioca e de sua dinâmica cultural. Por
essas razões é sempre a ele que se recorre quando é preciso decidir sobre
o caminho a tomar para se chegar a alguma localidade desconhecida,

57
a estética funk carioca

caminho este que deve ser não apenas o mais curto como o mais seguro.
As peculiaridades de sua pessoa igualmente lhe possibilitaram uma rela-
ção diferenciada com os consumidores de funk. As apreciações pejorati-
vas sobre a população de áreas pobres da cidade, como as que ouvimos ao
longo da noite descrita acima, jamais foram feitas por ele.
A riqueza de Mr. Catra reside precisamente em sua complexidade.
Através das ambiguidades que ele parece mesmo cultivar, ele desobriga o
antropólogo a delinear a sua análise por meio de categorias reificadas. Pois
as oposições entre favela e asfalto, a cidade ilegal e a cidade formal, não
possuem lugar fixo no mundo como articulado por Mr. Catra. Em alguns
momentos os contrastes parecem se firmar, em outros eles parecem dis-
solvidos e em outros ainda parecem fora do lugar. Foi ao seguir Mr. Catra
que tornou-se possível a mim evitar o uso de termos como centro, perife-
ria e margem, frequentemente utilizadas nas descrições do mundo funk.
Catra age como um “mediador cultural” mesmo sem oferecer um
“oposto sociológico do homem marginal esmagado entre dois mundos”
(Velho, 2003[1994], p. 81). Pois em sua retórica e produção artísticas,
como nas de outros artistas funk, o estar à margem da sociedade, do
sistema, surge reiteradamente como condição própria da pessoa funk.
Ainda assim Catra fará uma síntese singular desses mundos pelos quais
transita, produzindo a sua colagem pessoal e idiossincrática ao mesmo
tempo em que querendo fazer dela a norma, ponto que ficará mais claro
a partir das elaborações do capítulo a seguir.
Teorizando sobre o indivíduo contemporâneo e as sociedades com-
plexas ocidentais, Gilberto Velho enfatiza que a “maleabilidade e flui-
dez” são aspectos cruciais para a compreensão do sujeito em ambiente
urbano (Velho, 2003 [1994], p. 25). A capacidade de trânsito entre dois
ou mais mundos seria “uma característica generalizada da sociabilidade
contemporânea” (Velho, 2003 [1994], p. 23), tendo sido antes traços
característicos das elites na Idade Média. Por outro lado, meu material
etnográfico torna evidente o modo pelo qual o sujeito criativo funk
se utiliza de sua grande habilidade na manipulação de símbolos e de
sua percepção do conhecimento restrito que as classes médias e altas
possuiriam dos universos populares, de modo a facilitar o seu trânsito
pelos espaços da cidade, como veremos ao longo de todo o livro. A pers-
pectiva funk é a de que no Rio de Janeiro contemporâneo ocorreu uma

58
uma etnografia da noite

inversão do fenômeno como descrito por Velho, e a maleabilidade, que


era privilégio das elites e que teria se democratizado na Modernidade,
se localizaria de fato nos extratos sociais mais baixos. Seus membros é
que teriam efetivas liberdades e habilidades para circulação pela cidade,
conformando mediadores e pontos de vista privilegiados.
Mr. Catra é o ponto de interseção entre mundos de que nos fala
Velho (2003 [1994], p. 26) a partir de Simmel. Mas menos porque desem-
penhe distintos “papéis sociais”, ou que possua alguma essência residual
na qual ancore a sua identidade individual e mais por ser essencialmente
uma pessoa compósita. Estes diferentes mundos pelos quais transita e
as relações que trava com estes e aqueles que os habitam compõem o
seu self. Mr. Catra é um feixe de relações, que catalisa caminhos e dá
acesso a um mundo que mistura funk, favela, elite, poder oficial e crime.
Contudo, como ficará mais evidente a partir do próximo capítulo, ele
agencia esses mundos de maneira particular, a partir de suas criativi-
dade pessoal e individualidade, nos revelando o modo como entende
que estas relações se dão. Os caminhos que traça Catra não são alea-
tórios e nesse sentido se assemelham àqueles que formam o “trajeto”
(Magnani, 1996, p. 43). Contudo, estes caminhos não têm por objetivo
levar a um ponto ou “pedaço” específico dentro de uma “mancha”. O
“trajeto” do cantor de funk tem itinerários previamente demarcados mas
não levam a um ponto final. Os deslocamentos de Catra, em sua van
com sua trupe, têm um fim em si mesmo, o da circulação e dissemina-
ção do funk, da arte, da “cultura”.
Se não é preciso assim presumirmos a totalidade como imprescin-
dível para apreendermos a cidade e suas dinâmicas, tampouco preci-
samos recorrer à sua contraparte, a fragmentação, para nos guiarmos
pelas conexões parciais que o artista estabelece. Mr. Catra não apenas
mostra o quão tênues podem ser as fronteiras da dita “cidade partida”,
como igualmente as costura, ao distribuir sua agência através dos cami-
nhos que traça. Por meio da conectividade revelada e produzida pelo
artista, podemos ver como esses mundos não são estanques, mesmo que
encontrem-se separados. Ao percorrer o Rio com Mr. Catra, torna-se
visível que as oposições que alimentam a criatividade funkeira e através
das quais o imaginário carioca e a própria noção de urbano muitas vezes
se constroem, são colocadas em xeque.

59
a estética funk carioca

A metáfora da “cidade partida”, utilizada para representar o Rio de


Janeiro e a relação entre os seus mundos sociais, foi especialmente empre-
gada pela imprensa nos anos 1990, dando, inclusive, origem ao título do
livro do jornalista Zuenir Ventura (1994). Esta lógica oposicional conti-
nua a informar estudos acadêmicos sobre a dinâmica das cidades brasi-
leiras. O economista Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro (1996), toma como
ponto de partida a referida metáfora para nos falar de uma certa homo-
logia entre a “concentração social e espacial de renda” (Ribeiro, 1996, p.
173) no Rio de Janeiro e posteriormente ilustrar o “pouco contato” e uma
“relação praticamente inexistente” entre a população pobre da Cruzada,
cortiço localizado no valorizado Leblon, bairro da Zona Sul carioca, área
privilegiada do Rio de Janeiro, e os moradores mais abastados do refe-
rido bairro (Ribeiro, 2008, p. 13). A antropóloga Tereza Caldeira (1999),
por sua vez, parte dos “enclaves fortificados” construídos na cidade de
São Paulo para nos falar de como estas “barreiras físicas” não apenas
tornam explícitas as desigualdades sociais, materializando-as, como
tendem a restringir os encontros sociais àqueles estabelecidos “dentro
de grupos relativamente protegidos e homogêneos”.
Já foi dito que o funk é a “cola” da “cidade partida”. Essa mesma
imagem pode ser produtiva se pensarmos em uma cola fluida, que não
promova a amalgamação, formada pela substância estética que preen-
che com maleabilidade os vãos que separam as partes da cidade, do
ciborgue, de modo que as partes se tocam mas não se fundem [merge].
Não fundem menos por causas socioeconômicas e mais por razões que
governam os gostos. Em suma, por motivos de preferências e escolhas.
O funk, por meio da arte e de um senso estético próprio, promove
a aproximação de estéticas. Com essa ideia não pretendo descrever um
Rio de Janeiro “democrático”, onde haveria uma convivência em que
classe e cor não seriam empecilhos para as relações sociais. Ao contrário,
trata-se de reconhecer o modo pelo qual as diferenças que estas catego-
rias subsumem são centrais para as interações sociais na cidade e como
é através da aparência que elas podem ser melhor acessadas. Contudo,
parece haver no Rio espaço para a suavização dessas clivagens, o que é
obtido de modo especialmente eficaz através da estética, de sua criação
e manipulação e do equivocar que é acionado por meio dela.

60
uma etnografia da noite

Dessa perspectiva, falar em estética não torna menos relevante a


sua ação sobre o social, pois a primeira não é entendida por oposição ao
segundo, mas o compõe (Latour, 1994; Gell, 1998; Lagrou, 2007a).
O funk se mostra assim como uma das possibilidades de preenchimento
dos intervalos criados por áreas geográficas, classe e cor. Uma aderência
que conecta, ainda que parcialmente. É este ponto que pretendo apro-
fundar nos próximos capítulos: o modo pelo qual a criação e a criativi-
dade estão colocadas a serviço da produção de uma estética que busca
acima de tudo comunicar.

O capítulo a seguir transfere o lócus etnográfico para o interior da


casa de Mr. Catra, de modo a apresentar um relato o mais idiossincrático
possível sobre o artista e oferecer elementos para a discussão posterior
sobre criatividade, por meio da qual mostrarei como a singularidade
de Catra é viabilizada através de seu encontro com o funk. O próximo
capítulo nos mostra ainda um ambiente doméstico que muitas vezes se
afasta da noção de privado e de privacidade. Ao contrário, o ir e vir de
artistas, parceiros de criação, amigos e familiares é a constante, e excep-
cionais são os momentos de pouco movimento.

61
Capítulo 2
Escapando pela válvula

a herança familiar de mr. catra


Wagner Domingues da Costa é o nome de batismo de Mr. Catra.
Sua mãe, Dona Elza, chega ao Rio de Janeiro aos treze anos, vinda da
pequena cidade de Carangola, no interior de Minas Gerais, trazida pela
família de um ainda solteiro Edgard. Logo Edgard contrai matrimônio
e Elza passa a trabalhar na moradia do novo casal. Segundo a filha mais
velha de Catra, Thamyris, que à época do trabalho de campo passava
dos quinze para os dezesseis anos, Edgard, muito mais velho do que
Elza, se afeiçoa a esta e passa a protegê-la e a tratá-la como a uma filha,
ainda que Elza continuasse a realizar os serviços da casa, comandando
os outros empregados, como conta a narrativa familiar. Elza se apaixona
então por Raul, “homem branco”, motorista da casa. Mas a família de
Raul, continua Thamyris, não gosta de “pretos” e, para não “contra-
riar” a eles, Elza deixa o rapaz e se envolve posteriormente com Miguel.
Desta vez Elza enfrenta a resistência de sua família de adoção. A falecida
esposa de Edgard, a quem Catra chamava de “tia”, diferenciando-a assim
de sua mãe, não gosta que Elza namore “pretos”. Eu acho o fato curioso
e pergunto a Thamyris como podem gostar de Elza, uma “preta”, e não
gostarem que ela namore “pretos”. Cida, uma negra de traços finos, que
já foi casada com um irmão de Sílvia, a esposa de Mr. Catra, acha graça
em meu comentário. Thamyris, igualmente “da cor”, explica que é por

63
a estética funk carioca

causa da “pobreza”, e continua me contando a saga de sua família. Com


Miguel, Elza traz à luz Catra e a família de Edgard o “pega” para criar.
Elza volta então para os braços de Raul, com quem vive o resto de sua
vida, até falecer aos cinquenta e dois anos de idade.
Catra possui assim como referência paterna três figuras masculinas:
Miguel, Raul e Edgard. Mas é a Edgard que Catra chama de pai, a quem
define como alguém que é “mais preto do que muito preto”. Catra cresce
na casa de Edgard, ainda que Thamyris diga que “não tem muito isso
de quem morou com quem”, pois a casa de Edgard, uma casa “dessas de
família”, de três andares, era em frente àquela em que viviam Elza e Raul.
É Edgard quem dá a Catra grande parte de seu referencial, e mesmo
tendo conhecido Miguel, ele reafirma: “[Edgard] foi o único pai que
eu conheci”. Pergunto-lhe se ele foi então “criado” por Edgard, e Catra
enfatiza: “criado não, amado”. Edgard possibilita a Catra uma educação
formal de qualidade, composta, dentre outros, por latim, teoria musical
e “clássico italiano”. Catra gosta de enfatizar como o ensino era duro e
exigia disciplina, se orgulhando de ter assim adquirido interesse pela
música e respectivo conhecimento teórico.
Mas se Edgard possibilita uma formação pautada por regras ineren-
tes ao sistema educacional, ele mesmo trata, com seu estilo de vida, de
desfazê-las, relativizá-las. Foi com o pai que Catra primeiro deu-se conta
de como, no Rio de Janeiro e no Brasil, podem ser maleáveis as fronteiras
que separam as esferas formais e informais da vida social, o lícito e o ilí-
cito. Foi “seu Edgard” ainda quem defendeu o filho quando este, aos treze
anos, chegou à escola dirigindo um Dodge Dart, carro da empresa auto-
mobilística Chrysler muito apreciado pela classe média alta na década de
1980. Diante da irregularidade, a professora da escola quis punir Catra,
ameaçando-o de prisão, e Edgard, antecipando a habilidade do filho na
manipulação das representações que raça e “cor” podem adquirir em
diferentes contextos, acusa-a de racismo, o que faz com que o entrevero
seja resolvido ao largo da lei e no abrigo das relações pessoais.
É no Pedro II que Catra forma seu primeiro grupo musical, de rock,
participando dos saraus da escola. Terminado o segundo grau, Catra
presta vestibular para direito, mas não segue a carreira. Prefere se apro-
ximar da vida à margem da sociedade formal: “se vira para o lado do
Borel”, indo atrás “de safadeza”, como diz sua esposa. Catra, por sua vez,
é menos ambíguo. Diz que passou a “roubar bancos”: “Eu era um artista.

64
escapando pela válvula

Éramos vinte: dez dentro e dez fora”. Posteriormente ele passa a traba-
lhar como “matuto”: “eu pegava com os colombiano, os boliviano. Eu
traficava”.1 Mr. Catra sempre afirmou em minha presença a proximidade
que ele, como muitos dos seus parceiros de criação, possuiu com a mar-
ginalidade, dando visibilidade a esses traços de sua vida.
Catra conta-me essas passagens sentado à mesa de jantar da sala
de sua casa, voltado para a televisão que, malgrado o fato de “odiá-la”,
está invariavelmente ligada no ambiente doméstico. Do CD player, aco-
modado no mesmo móvel em que se encontra a TV, saem palavras em
hebraico de uma série de orações chamada tikun klali, e por perto está
Thamyris e o funk que sai de seu laptop. Sílvia se aproxima, coloca um
cigarro artesanal nas mãos do marido e se retira novamente. Era mais
uma tarde despendida no núcleo doméstico de Catra. A grande dife-
rença, entretanto, era dada pelo fato de que em dois dias eu partiria para
Londres, onde faria o meu doutorado sanduíche, o que de certo modo
configurava um desfecho no trabalho de campo. Catra, por sua vez, tra-
tou de aproveitar essas últimas conversas para me revelar dados novos,
reafirmando conhecimentos que me haviam sido passados de modo mais
indireto e que informam o todo desta narrativa. Diz que me fala “essas
coisas todas” porque eu tenho “uma noção muito clara do que é certo e
do que é errado”. O que ele queria, como assegurou nesta mesma tarde,
era “expor” suas “ideias”, porém, como já dissera em outra ocasião, “a
sociedade não está preparada”. Vai se expondo com emoção, a ponto de
em determinado momento me parecer ver seus olhos cheios de lágrimas.
Voltando à história de Mr. Catra e sua família de origem: Dona Elza,
nesse meio tempo, se aprimorava até tornar-se uma “cozinheira profis-
sional. Catra acrescenta que ela trabalhou ainda como “enfermeira”, de
modo que possuía renda suficiente para “ajudar as pessoas” e assim ter
“vários filhos de criação”. O mais presente deles, ao menos no que diz
respeito às narrativas da família Catra, é Cesar, um menino “branco”
que Elza encontra desprotegido nas ruas da Favela do Borel, nas imedia-
ções da Usina, bairro em que residia Edgard e seu núcleo familiar. Cesar,

1 Mr. Catra declara, no documentário Mr. Catra, o fiel (2007), que passou a “roubar banco e a
traficar” por não possuir dinheiro para seguir com seus estudos. A mim, além de evidenciar a
vida confortável que teve na juventude, justificou a mudança de posicionamento na vida ao ser
motivado por “uns negões” que teriam lhe roubado o seu casaco “da Disney”.

65
a estética funk carioca

como Catra, foi criado por Elza e Edgard, que o chamaria de “aquele
meu filho safado”, em referência à “vida errada” pela qual o outro filho
de criação enveredaria. Catra e Cesar se tornam bons companheiros.
Surfam nos mares da Barra da Tijuca, como qualquer “playboy” carioca.
Catra, inclusive, como conta-me Thamyris em tom de escárnio, passa a
alisar seu cabelo para “tirar onda” e “jogar” a parte frontal de seu cabelo,
como os surfistas costumam fazer.
Ao mesmo tempo em que se aproxima da ilegalidade, Catra passa
a dar andamento à sua carreira artística, e é ao cantar os “proibidos”, as
músicas que enaltecem as ações dos bandidos, que ele de fato firma a sua
trajetória profissional. A emocionante composição em homenagem a
JM, chefe do Morro da Formiga e líder do Bonde da Parma, que agregava
não apenas a Formiga, como o Borel, a Grota e o Morro da Fé, cantada
por um Catra ainda com voz jovem, marca, segundo o próprio artista,
esse momento de transição, que se dá acompanhado de decepção, amar-
gor e enlutamento, como podemos pressentir por meio de sua letra.
Foi num sábado de baile
Que a Formiga entristeceu
Completou sua missão
JM está com Deus

Abalou nosso sistema


A Parma toda chorou
Com a partida d’um irmão
Que a jornada terminou

É, com saudade agora eu sei


Que você está com o Justo
O mestre que ampara o bonde
E nos protege contra tudo

Irmão. Fique com Deus


O justo juiz do céu
É a humilde homenagem
Da Formiga que é fiel

Para sempre na memória


Nós iremos te guardar
Seus amigos de verdade
Sofrem por você não estar

66
escapando pela válvula

Mas eu sei que o criador


Que ao seu lado está
Ele ilumina o bonde
E sempre vem nos consolar

Irmão. Fique com Deus


O justo juiz do céu
É a humilde homenagem
Do Catra que é fiel

Irmão JM
Eu canto de coração
Pra você, pro mano Charle
Pro Sapula e pro Torrão

Irmãos e o JM
Eu não canso de cantar
JM de processo
De fé, de fechar

Irmão! Fique com Deus


O justo juiz do céu
É a humilde homenagem
Do Catra que é fiel

Da Formiga que é cruel


Da Parma que é fiel
JM de processo
Fique com o justo juiz do céu2

[Irmão, a Parma, o Catra e todos os seus irmãos nunca irão te esquecer.


Que Deus te ampare e nos ilumine. Que o certo prevaleça em nossas vidas
e que você ajude ao criador a nos indicar o caminho certo. Glória Senhor.]

O “traficar”, ao invés de marcar uma entrada definitiva para a vida


à beira da sociedade oficial, configura a etapa que antecede a sua inser-
ção como artista, parecendo mesmo viabilizá-la. Catra não dá qualquer
indício de ter sido “salvo” da vida junto ao “crime” pela arte, mas é a
vida à margem que o coloca definitivamente no mundo da música e da
criação artística. Segundo Catra, foi ao recomeçar a cantar em sua vida

2 “Rap do JM”, de Mr. Catra.

67
a estética funk carioca

adulta que ele deixa de “roubar” e “traficar”.3 Entretanto, esta passagem


não se dá como uma ruptura, uma conversão que o afasta do “mal”,
como concebido em uma classificação bipolar e maniqueísta, mesmo
porque a noção de “justo”, “humilde” e “certo” estão presentes tanto em
um momento como em outro.4 A mudança se faz através de um conti-
nuum, e é ao elaborar inventivamente sobre esse universo marginal e em
proximidade a ele que Catra efetivamente se consagrará como artista,
como será esmiuçado mais a frente.
De acordo com algumas narrativas familiares, Catra jamais morou
na favela, mas passava suas noites ali para retornar pela manhã e dormir
na casa de sua mãe, a essa altura vivendo em residência própria. Orlando
Zaconne, chefe das carceragens do Rio de Janeiro em 2010 e anterior-
mente delegado na Tijuca, disse-me em uma conversa informal que não
acredita nem que Catra tenha “vivido aquela situação”, mas entende que a
sua convivência estreita com a mesma fez com que ele absorvesse a “cul-
tura do Comando [Vermelho]”, a facção que controla o Morro do Borel.
Em depoimento ao documentário Mr. Catra, o fiel (2005), Zaconne
nos faz ver melhor o que lhe parece ser esta “cultura do Comando”. Em
uma blitz que fazia rotineiramente com seu grupamento, um de seus
homens identifica um carro com um negro forte, com muitas tatua-
gens e colares de ouro, acompanhado de algumas mulheres, como des-
creve no filme, indícios que parecem suficientes a Zaconne para que
o carro seja interceptado. Ao aproximar-se do veículo, ele conversa
com o motorista e percebe que trata-se de Mr. Catra. Entre surpreso
e contente com a descoberta, o delegado lhe pergunta por que ele não
anunciou antes quem era e disse-lhe que seguisse em frente, brincando
com o artista e usando expressões funkeiras, dizendo-lhe que tivesse
cuidado porque “a chapa tá quente”.

3 Como em declaração feita no documentário Mr. Catra, o fiel.


4 Diversos estudos tratam da identificação entre a criminalidade e o mal. Zaluar (1997) afirma
que mesmo com a tradicionalmente flexível classificação do “bem” e do “mal”, como feita pela
cultura brasileira, o “medo realista do crime” e suas taxas ascendentes propiciaram “a volta
de uma dicotomia nítida e absoluta entre o bem e o mal na preferência de várias camadas da
população” (Zaluar, p. 116). Teixeira (2009), em estudo sobre a sujeição criminal e pentecosta-
lismo, constata que a conversão religiosa, ao “agir contra o mal”, que se crê influenciar o sujeito
criminal, expulsa-o e consequentemente “transforma” o indivíduo, dando origem ao “ex-ban-
dido”. Para outras reflexões sobre “O mal à brasileira” ver Birman, Novaes e Crespo (1997).

68
escapando pela válvula

Este incidente condensa muitos dos aspectos relativos à conexão


entre circulação e estética que trabalho ao longo deste livro. A “cultura
do Comando” estava visualizada e objetificada pelos adornos dos quais
Catra se fazia acompanhar, como será aprofundado no capítulo 6. Mas,
além dos objetos, foi explicitada a cor de Catra, reforçando o modo
como a aparência física é central no Rio de Janeiro para a mobilidade
das pessoas, tema que será introduzido por Sílvia no capítulo 5, condu-
zindo toda a sua discussão. Por fim, não será apenas a aparência a contar
nessa circulação, mas o poder transformador da arte, como surgirá das
falas de Dr. Rocha, no capítulo 4.
O delegado Zaconne foi ainda o responsável pela operação que em
2006 prendeu, pela segunda vez, o já gerente de tráfico do Borel, Cesar
Baleia, foragido em outro estado. Foi a partir das narrativas feitas em
torno dessa segunda prisão que primeiro soube desse irmão de Catra
e passei a entender o porquê da presença repentina, na casa da família,
de uma cunhada do casal Catra, moça de família de bicheiros que, em
uma visita de rotina a um parente encarcerado, conheceu Cesar em sua
primeira reclusão, que durou cerca de 14 anos, e por ele se apaixonou.
Passaram então a viver como marido e mulher, ele na prisão e ela tran-
sitando pela cidade, até a sua recente soltura.
Catra efetivamente imprime uma marca pessoal ao modo como dá
sentido à sua vida. De uma lado realiza o movimento mais ou menos
previsível de deixar a “vida bandida” através da arte, dizendo ele mesmo
que o funk oferece a oportunidade de uma vida honesta àqueles que
não a teriam com facilidade. Acredita que o crime é “riqueza em vão”
e “prisão em liberdade”, enquanto o funk é uma “válvula de escape”. No
entanto, esta última figura de linguagem não se refere a um dispositivo
que promova o escapismo ou a alienação das classes populares, como
embutido na noção de “ópio do povo”. Através do trocadilho que faz
com o dito e parece pegar a ele mesmo em desaviso – “escapou pela
válvula” –, Catra indica que apreende o funk como o mecanismo que
permite ao sujeito escapar do sistema, da “sociedade escrota”, da “socie-
dade católica” e da “hipocrisia da sociedade” ao mesmo tempo em que
mantém relação com esse mesmo sistema, tirando proveito dele. Faz
isso de um modo particular, não opondo o bem ao mal, a vida errada ao
caminho certo ou àquele apontado por Deus. Este, aliás, é onipresente

69
a estética funk carioca

em qualquer das fases de sua vida. Passados cerca de dezoito meses do


encerramento do trabalho de campo propriamente dito Catra cantava
que “quem tem fé em Deus não tem religião”.

replicação e individualidade
Na próxima sessão passo a palavra a Sílvia Regina Alves que, ao nos con-
duzir por um pequeno detour etnográfico, nos descortinará outra parte do
mundo que aqui é designado como sendo de Mr. Catra. Mergulharemos
em mais uma tarde na casa da família Catra, e através de uma pequena
construção ela confirmará a nossa percepção da partibilidade das pes-
soas nesse universo ao objetificar uma noção de pessoa que rege a ela, ao
marido e a outros de sua rede de relações e que se aproxima da “pessoa
holográfica”, como conceitualizada por Roy Wagner (1991).
O modelo genealógico, de acordo com Roy Wagner, é o que melhor
concretiza como a “pessoa fractal” não é nem ser individual nem grupo,
mas “uma entidade composta por relações integralmente implicadas”
(Wagner, 1991, p. 163):
As pessoas existem reprodutivamente ao serem “carregadas” como parte
das outras, e “carregam” ou engendram outras ao se fazerem “fatores”
genealógicos ou reprodutivos destas. Uma genealogia é assim um enca-
deamento de pessoas, como se pessoas fossem mesmo vistas como se “bro-
tando” de outras, em uma descrição cinética acelerada da vida humana.
Pessoa como ser humano e pessoa como linhagem ou clã são cortes ou
identificações igualmente arbitrários desse encadeamento, diferentes pro-
jeções de sua fractalidade. (Wagner, 1991, p. 163)

Dessa perspectiva, tomar Catra como o centro ou o ponto de partida


da análise se assemelharia ao modo pelo qual Lévi-Strauss (1991) elegeu,
em O cru e o cozido, o mito bororo como aquele de referência, não por ser
o mais simples, o mais complexo ou o mais arcaico dos mitos, mas por
sua posição “irregular” no seio do grupo. Ele não é “senão uma transfor-
mação mais ou menos elaborada de outros mitos” (Lévi Strauss, 1991,
p. 12). Ou nos termos de Wagner (1991), a tarefa do great man, a partir
do qual o antropólogo norte-americano elabora sobre a pessoa fractal,
é manter uma escala que é ao mesmo tempo pessoa e agregado; ele “é
grandioso [great] como uma instanciação ou configuração particular de

70
escapando pela válvula

uma totalidade conceptual; pode se ter tipos de great men como podem
existir variantes do mito” (Wagner, 1991, p. 173).
Por outro lado, o lugar do indivíduo e as idiossincrasias dos sujeitos
emergirão, de modo que ao mesmo tempo em que veremos a replicação
se desdobrando em moldes mais costumeiramente melanésios, nota-
remos atuante a pessoa individual, noção que conduz discussões mais
próprias a valores ocidentais. Contudo, trataremos da “individualidade”
e não tanto do “individualismo” a definir o indivíduo moderno. Como
em Rapport, o indivíduo criativo, o “indivíduo transcendente” [trans-
cendent individual] – a se distinguir do indivíduo transcendental, que
busca transcender as “amarras da sociedade” –, é aquele “que escreve
a si e, no processo, reescreve o seu entorno sociocultural” (Rapport,
1997a, p. 3). “Individualidade”, portanto, não se aproxima do “individua-
lismo” – “uma particular conceptualização histórico-cultural da pessoa”
(Rapport, 1997a, p. 6) – mas é universal e ubíqua, a que nos permite
um paralelo com a pessoa individual entre os amazônicos Piaroa, que
guardam uma noção de individualismo que se foca sobre a felicidade do
indivíduo vivente em sociedade (Overing, 1988). Mas a noção Piaroa
de individualismo se diferencia da nossa na medida em que, em vez de
tomar a sociedade como um objeto sobre o qual a pessoa individual
criará, e à qual o indivíduo criativo se oporá, o indivíduo Piaroa se
detém de impor o seu self sobre a sociedade e se realiza na medida em
que cria a sociedade à sua volta (Overing, 1988, p. 190).
É nesta tensão entre uma pessoa fractal que replica as partes ao
mesmo tempo em que e é replicada por elas e uma individualidade
idiossincrática que meu argumento se constrói. Pois deve notar-se que a
fractalidade da pessoa em Roy Wagner não diz respeito a uma replica-
ção como repetição idêntica, mas à derivação de uma pessoa em outras.
A imagem é holográfica, não espelhada. Cada uma das partes do holo-
grama contém a informação que compõe todas as outras – as “relações
integralmente implicadas” contidas em parte e todo, pessoa e agregado
– mas não originam partes iguais.
Através do desvio que se segue saberemos ainda sobre um terceiro
irmão de Catra, poderoso, e “branco” como César, mas que articula
narrativas que descrevem um mundo radicalmente diferente. E o que
parece diferenciar esses mundos não é tanto a sua cultura como o ponto

71
a estética funk carioca

de vista do corpo. Branco e negro se opõem aqui para nos falar de huma-
nidades distintas. Como em Viveiros de Castro (1996), a perspectiva
diferencial que o corpo oferece ao visualizar ontologias diferenciadas
não engloba todos os animais (Viveiros de Castro, 1996, p. 118), ou,
no caso que analisamos, todos os brancos, mas subsume aqueles “rivais”.
As diferentes perspectivas que o corpo possibilita deverão ficar mais cla-
ras nos capítulos em que trato das relações entre materialidade e corpo.
Entretanto, a noção de “frescura” que nos será oferecida a seguir permi-
tirá começar a notar a forte correspondência existente nesse universo
entre corpo e pessoa, como notaram em contexto ameríndio Seeger, Da
Matta e Viveiros de Castro (1987 [1979]). Desse modo, dialogaremos não
apenas com a teoria sobre a pessoa melanésia. Ao levarmos adiante o
estreito nexo existente entre corpo e pessoa, veremos que os mecanis-
mos que geram as concepções de personhood em um contexto funk e no
universo ameríndio mais se aproximam do que se distanciam.

o modelo reduzido de sílvia


É uma quinta-feira, dia em que a expectativa para que eu apareça é
grande, especialmente para Cíntia, que muitas vezes aproveita o meu
“bonde”, a carona pega em meu carro, para “descer pra Sul”, a Zona Sul
onde vive, no Morro do Cantagalo. Cíntia é comadre do casal Catra,
e naquele período ajudava Sílvia em seu último mês de uma gravidez
que desde o início inspirou alguns cuidados. Como em outras vezes, as
mulheres da casa disseram que eu me ausentara por mais tempo do que
eu registrara em minhas notas de campo.
Estacionei meu carro, como de hábito, sobre a calçada ao longo do
muro que abriga a casa e o estúdio de gravação de Catra, em terrenos
contíguos. Coloquei-o atrás de uma fila de outros carros, sinal de que
o estúdio estava bastante movimentado. A campainha do interfone que
dava acesso à residência estava com defeito, de modo que me dirigi à
garagem, cujo portão estava entreaberto, e depois entrei pela cozinha.
Antes cumprimentei Tio Rocha, que varria o terreno e abriu seu bonito
sorriso ao me saudar.
Na sala encontro Thamyris sentada ao sofá maior, que fica de frente
para a grande TV de plasma. Dou-lhe dois beijinhos e cumprimento de
longe a moça que desconheço e está sentada com um bebê em seus braços.

72
escapando pela válvula

Depois fico sabendo que se trata de Lenora, que já trabalhou com Catra
como produtora e é mulher do MC Funk, que está naquele momento no
estúdio, junto com “todos os DJ’s”, como me disse Rocha na chegada.5
Cíntia, sentada à mesa da sala de jantar que fica logo atrás do jogo
de sofás, está de costas para a TV acendendo um cigarro. Ao me ver ela
solta um “iiiiiiih!” sorridente, me perguntando em seguida se eu fumo.
Antes que eu responda, Sílvia, do alto do mezanino que abriga o quarto
do casal, afirma em tom de voz firme e alto: “fuma!”, com a jocosidade
que é peculiar a ela e ao marido. Cíntia, ainda sentada, leva sua mão
em minha direção (eu estava de pé, já perto da escada que me levaria a
Sílvia), me oferecendo o cigarro.
Cíntia conta que falou em mim nesses dias. Eu pergunto o que fala-
ram, e Sílvia, sempre do alto, volta a provocar, dizendo que a amiga falou
mal de mim. Cíntia dá o seu sorriso pacífico e diz, na mesma levada, que
“não, claro que não”. Mas Sílvia reafirma o que dissera, e completa: “você
sabe que eu falo mêmo!”. E eu, imaginando elas falarem de mim, disse,
imitando-as: “Pô... Mylene não bota a cara...”. Cíntia sorriu de novo, desta
vez parecendo concordar comigo. E em seguida contou que estiveram
na Terê-Fantasy, tradicional festa à fantasia que acontece anualmente em
Teresópolis, cidade da região serrana do Estado do Rio de Janeiro, e que
sentiram minha falta, pois eu teria tirado ótimas fotos delas.
Subo para entregar a Sílvia a lembrancinha que eu trouxera para
o seu bebê e ela me dá feliz a notícia de que será uma menina. Sílvia
está especialmente agitada nesta tarde. O seu quarto está todo revirado,
graças à faxina que resolveu fazer, mesmo que a faxineira esteja pre-
sente. Sobre a cama de Sílvia, coberta por um lençol de estampa idên-
tica ao que forra o colchão do berço da filhinha que aguarda, estão o
banco revestido por couro marrom com estofamento do tipo capitoné,
os pufes de tecido, os tapetinhos e o enorme leão de pelúcia, que nor-
malmente ficam acomodados sobre o chão do quarto. Sílvia começa a
retirar as coisas que estão sobre a cama pra recolocá-las em seus lugares.
Eu faço menção de ajudá-la, e ela diz que “a Cíntia é assim também”:
não pode vê-la “pegando nada que quer ajudar”. Após colocar sobre o
chão o grande leão de pelúcia – que possui formato tal que fica como

5 MC é designação para o cantor de funk, e é também usada para denominar seu correlato no
hip-hop. DJ é aquele que toca e produz a música sobre a qual as letras serão cantadas.

73
a estética funk carioca

se deitado, esparramado sobre o piso –, os tapetes e os pufes, Sílvia faz


menção de pegar o banco de couro sozinha. Eu a interrompo dizendo
que assim já era demais e que ela ao menos pegasse o móvel de um lado
e eu do outro, sugestão que não foi rechaçada.
Noto pela primeira vez, à esquerda da grande televisão de plasma
que fica de frente para a cama do casal, uma pequena prateleira trian-
gular de alvenaria com uma série de garrafas de bebidas, muitas delas
do uísque Red Label da destilaria escocesa Johny Walker. Penso que
aquelas devem ser as garrafas que ficavam no móvel que já esteve locali-
zado onde agora está armado o berço que aguarda Silvinha, na sala que
antecede o quarto de casal. Sílvia nota meu interesse pelas garrafas, e
comenta como aprecia as bebidas alcoólicas. Eu não dou muita atenção
para a última frase de Sílvia, mas digo que quero fotografar as garrafas,
e ela, normalmente avessa às fotos feitas em seu ambiente privado, sur-
preendentemente não se opõe. Ao contrário, parece gostar da ideia.

Ela me mostra então uma espécie de presépio, uma instalação mon-


tada atrás de sua cama, no parapeito da janela localizada acima de sua
cabeceira. Sem que eu nada pergunte, Sílvia me explica o que significa
cada peça do tal presépio.
De um lado está Catra, e ela comenta como o boneco se parece com
o marido, e eu concordo, acrescentando que até a roupa se assemelha

74
escapando pela válvula

com o estilo que ele costuma vestir. Curiosamente, naquela tarde chu-
vosa e fria, Catra está no estúdio vestindo precisamente um conjunto de
moletom formado por calça preta e casaco de zíper, exatamente a roupa
que o boneco veste.
O boneco que representa Catra está rodeado dos muitos leões de
“que ele gosta”, como diz Sílvia. Um dos leões é bem grande, mais escuro
e está deitado, os outros são todos iguais e claros. Estes muitos leões,
penso, remetem aos companheiros de criação e vida de Catra. São os
Leões de Judá, “guerreiros a serviço do Criador”, como ele diz em uma
canção, e formam o “coletivo” Sagrada Família.
Na outra extremidade da montagem, em posição oposta e simé-
trica ao boneco que representa Catra, há uma boneca bem alta de corpo
voluptuoso e de pele cor de canela, como é Sílvia. Em torno desta boneca
maior há uma série de bonequinhos dos dois sexos, que se assemelham
a anjos, eu diria, mas representam crianças, de acordo com Sílvia. Ela
explica: “esse aqui já é o meu lado... porque eu sou mais mãezona”.
Mostra uma bonequinha na extremidade esquerda, abraçada a uma
outra boneca que representa uma mulher adulta e explica que Noemi,
então sua caçula, com quatro anos de idade, fala que aquela é ela “agar-
rada” à saia da mãe. Há outras três mulheres adultas na instalação: estão
ao centro rodeando uma fotografia de seu marido com um bebê. Tanto
essas três bonecas como a dupla de mãe e filha que está ao lado de Sílvia
têm um layout talvez africano, de todo modo distinto da grande boneca
que está ao canto esquerdo.

75
a estética funk carioca

Sílvia, bem como sua filha, não encontra dificuldade em represen-


tar a si de maneira múltipla. Tanto enquanto mãe e progenitora, pois
a boneca cuja filha segura a mão não é a mesma que imediatamente
pareceu representá-la, como enquanto esposa e amante. As três bonecas,
de seios à mostra e corpo mais magro e jovem do que o seu, ou seja, da
grande boneca, remetem às muitas parceiras de Catra que passam e pas-
saram pela vida dele e com ela. São também de certo modo ela, Sílvia.
Como ela mesma disse, pertencem ao seu lado. Mas são ela de modo
parcial, como ela é também parcialmente essas outras mulheres.
A grande boneca está com o corpo mais coberto. Como a própria
Sílvia já disse, hoje ela se veste “mais tiazinha”, como as mulheres não
tão jovens, mas, novamente, esta não é uma regra. Se ainda alguns
meses após a gravidez ela se vestia “muito tapada” – expressão que ela
certa vez usou para se referir, decepcionada, ao modo como eu me ves-
tia para uma noite de festa –, um ano após o nascimento de Silvinha, a
mãe – vestindo calça jeans justíssima, adornada nas nádegas por duas
asas bordadas em fio de tom acobreado e blusa preta de babados, cur-
tíssima e do tipo frente única, revelando costas e abdômen – causava
furor ao passar pelo pátio de um Circo Voador lotado em noite dedi-
cada exclusivamente ao funk.6
Estas bonecas são todas elas partes desse “lado” de Sílvia, o qual não
é por sua vez a soma dessas partes. Partes novas podem ser inseridas,
que não alterarão o significado do todo, pois todas as partes contêm a
informação desse todo. Como aconteceu nessa manhã, com a incorpo-
ração ao conjunto de uma nova bonequinha.
Também faz parte do lado de Sílvia o retrato que, colocado ao cen-
tro da instalação, nos mostra um Mr. Catra mais jovem carregando ao
colo um bebê. Nêgo, então com oito anos, foi batizado Wagner como
o pai, cujo apelido é Negão, e é o filho de Catra com tom de pele mais
escuro, também como o pai. Catra de fato se vê mais jovem na foto,
mas o seu rosto e sua expressão são os mesmos. Seu modo de olhar
para a câmera parece muito atual, de maneira que parece mais jovem
e ao mesmo tempo não tanto. Pergunto a Sílvia porque foi Nêgo quem

6 Esta casa de espetáculos, localizada na Lapa, Zona Central da cidade do Rio de Janeiro, realiza
periodicamente o evento “Eu Amo Baile Funk”, dedicado a cantores em ascensão que são ao
fim da noite “fortalecidos” por artistas que já alcançaram projeção com o ritmo musical.

76
escapando pela válvula

recebeu o nome de Wagner, e ela diz que é porque Catra sempre quis um
filho com seu nome. Pergunto por que não Fernandinho, por exemplo,
já que é mais velho, e Sílvia explica que Fernando “já veio com nome”.
Catra, ao conhecer este filho, tomou conhecimento também de seu
nome, dado pela mãe biológica do menino sem a participação do pai.

Pergunto a Sílvia sobre as bonecas e sua materialidade. Como não


as toquei estou curiosa para saber se são de cerâmica ou madeira. Mas
Sílvia me explica que não, que são de gesso, branco pintado de preto,
ou marrom. A única que é de cerâmica é também a de pele em um
tom mais claro, a que mais se assemelha fisicamente a Sílvia. Todas as
outras bonecas têm a pele em tom de preto ou marrom bem escuro e
brilhante. Com a representação do lado de Catra ocorre de certo modo
o inverso. Ele aparece como o mais negro de todos. O leão maior, feito
em madeira entalhada e que aparece aos seus pés, é mais claro que ele,
mas ainda assim escuro. Todos os outros leões são entalhados em pedra
e são pequenos e claros.
Indago sobre a procedência das bonecas; onde ou como Sílvia as
teria obtido. Já sei que a boneca que se assemelha a ela foi adquirida
na Bahia: “é baiana”. Uma outra delas, que está ao centro rodeando a
imagem de Catra e Nêgo, ela ganhou naquela manhã de Claudia, que
faz faxina em sua casa. Sílvia não me fala nada mais sobre o modo como

77
a estética funk carioca

adquiriu as peças de sua instalação, e chama a minha atenção para os


bonequinhos pequenos, especialmente uma dupla que está lado a lado,
vestidos por roupa em ombro só, mostrando-me como são “expressivos”.
Pouco perguntei sobre os bonecos do lado masculino, pois Sílvia mesma,
ao dedicar pouco tempo com os mesmos, me levou a isso. O motivo
de serem claros esses leões aos pés de Catra, ou loiros, como Verônica,
que conheceremos mais adiante, não foi explicitado por Sílvia. A minha
sugestão é a de que remetem ao homem branco e o modo como a rela-
ção com este é constitutiva da pessoa de Catra, atuante em sua criação e
movimenta a sua criatividade.
Na representação de Sílvia, os mundos feminino e masculino estão
separados por uma barreira física que, formada por cristais translúcidos,
é também fluida. Separa Catra e seus leões do universo em que se encon-
tram as mulheres, mas não os isolam. Tanto através do tempo gasto por
Sílvia na explicação de um e de outro lado, como na própria diversidade
dos objetos presentes no lado feminino e ausente no masculino, podemos
ver como o primeiro lhe parece muito mais complexo e rico face a sim-
plicidade e clareza do segundo. O universo feminino ocupa dois terços
do espaço representacional e é capaz de conter o masculino, o que não
ocorre do outro lado. Assim, se Catra me dirá no estúdio que as mulhe-
res “já nascem veadas”, pois partilham intimidades como eles, homens,
jamais ousariam fazer, poderia ser inferido o inverso a partir da mon-
tagem de Sílvia. A obsessão por mulheres e pelo órgão sexual feminino
não correspondia apenas a uma afirmação de masculinidade em “lados”
majoritariamente povoados por homens, como a van ou o estúdio de gra-
vação, mas produzia uma invocação constante da presença feminina em
um mundo que vinha se mostrando como altamente dependente desta.
A miniatura de Sílvia funciona assim como um modelo reduzido
de seu universo, e veremos ao longo do livro como ele não se distancia
do modo como as coisas de fato ocorrem no dia a dia. O estúdio, muito
menor do que a casa, é majoritariamente masculino. E a casa, ainda que
espaço do feminino, abriga também os homens. Possui três dormitórios:
o “das meninas”, pintado de rosa, o “dos meninos”, pintado de azul, e o
do casal, localizado no andar superior e de cor branca.
Como em Lévi-Strauss, ao reduzir a escala, Sílvia se permite falar
de modo sintético e apreensível da vida que se desenrola ao seu redor.

78
escapando pela válvula

Mas se para o antropólogo francês o objeto de arte envolve “sempre uma


renúncia a certas dimensões” do protótipo, de modo que “o conheci-
mento do todo precede o das partes” (Lévi-Strauss, 1989, p. 39), na
miniatura de Sílvia as partes são acima de tudo versões de si mesma.
Analogamente a Gell – e ao modo do deus singular A’a, cuja imagem
“representa sua divindade como uma composição de relações”, ou do
personagem de Ibsen, Peer Gynt, feito de “camadas de experiência bio-
gráfica (relacional) reunidas” (Gell, 1998, p. 140) –, Sílvia externaliza
a si e ao marido através de uma “figura fractal” (Gell, 1998, p. 137),
uma sucessão de homunculi, de modo que os limites de suas pessoas
não podem ser individuados através dos limites espaciais de seus corpos
(Gell, 1998, p. 140). Se em Lagrou os artefatos surgem como cristaliza-
ções das aptidões e características dos corpos (Lagrou 2007a; 2009b),
aqui eles obviam as capacidades replicatórias e a noção de pessoa nativa.
Mas se o objeto de arte de Sílvia objetifica o seu mundo, no sentido
trazido por Miller (1987), com sujeito e objeto constituindo-se mútua
e simultaneamente, ele é antes representacional do que partes estendi-
das da pessoa de Sílvia. Se destaca dela, mas não a replica ou medeia
ações nem tampouco expande a sua pessoa “pragmaticamente”, como,
de acordo com Keanne (2006), seria característico de uma aborda-
gem antirrepresentacional dos objetos. A construção de Sílvia perma-
nece imobilizada em seu quarto. Desta perspectiva se aproxima mais
do objeto biográfico (Hoskins, 1998), do que da parte destacada da
pessoa andrógina melanésia (Strathern, 1988) ou mesmo do objeto
andrógino (McKenzie, 1991). O objeto feito por Sílvia representa seu
mundo e a fractalidade de sua pessoa. O objeto está dividido em par-
tes feminina e masculina, mas Sílvia, como polo feminino, é também
Catra. Ele faz parte de seu lado na instalação, com a criança que carrega
e rodeado de mulheres. Então ela é também o Catra que está do outro
lado, rodeado de leões. A sua pessoa não o seria sem esse masculino
dualisticamente construído em seu universo. Um mundo “supergen-
derizado” de tal maneira que a dualidade entre os sexos, ao invés de
remeter a uma suposta universalidade da dominação masculina, como
defendeu Ortner (1996 apud Hoskins, 1998, p. 14), expressa precisa-
mente a sua particularidade etnográfica (Hoskins, 1998, p. 15).

79
a estética funk carioca

Na cabeceira do lado esquerdo da cama, que é o mesmo em que,


no presépio, está o feminino, estão também duas pequenas esculturas.
Uma delas é de madeira, em tom levemente dourado, e parece ser a
imagem de um animal felino. Mas Sílvia me fala que não, que aquela é
Verônica. Eu rio. Acho na verdade curioso que esteja ali uma homena-
gem à parente que se apropriou de objetos de Sílvia em sua própria casa.
E Sílvia mais uma vez diz que não, que aquela é a cachorra, e fala, com
carinho, se não é igualzinha à Verônica, que fica “deitada daquele jeito”.
Verônica, a cadela, de fato se parece com a imagem que Sílvia traz em sua
mesa de cabeceira. Da raça pitt bull, é ela quem, por meio de seu nome,
homenageia a referida parente, que então tingira seus longos cabelos,
originalmente escuros, de loiro e passara a usar lentes de contato cor de
mel, a mesma cor dos olhos da cadela. É interessante notar ainda que
os cabelos de Verônica, a parente, e os bonequinhos da instalação de
Sílvia, passaram por intervenções opostas e simétricas. Verônica conver-
teu seus cabelos do preto para o loiro. Os bonequinhos de Sílvia foram
convertidos de brancos a negros. Estas intervenções, ao invés de aleató-
rias, correspondem, outrossim, a elaborações estéticas e miméticas que
possuem como móvel a relação com o outro, com a alteridade, ponto
que será aprofundado nos dois últimos capítulos deste livro.
Passamos para o andar inferior da casa. Sílvia agora tem em suas
mãos balde e vassoura, na qual enrola um pano de chão e depois dá um
nó. Passa-o pelo piso do corredor próximo ao banheiro, e eu e Cíntia
comentamos como ela está inquieta. Sílvia está ansiosa aguardando a
chegada do bebê. Como me dissera mais cedo, arrumava para se distrair.
Enquanto ela limpa, vamos todas conversando. E Sílvia nos faz rir.
Sílvia discorre sobre os irmãos brancos de Catra, todos filhos bioló-
gicos do “seu” Edgard. Começa a sua narrativa pela ocasião em que leva-
ram a filha mais velha de Catra ao psicólogo. Thamyris, continua Sílvia,
era agitada, levada, de modo que “a família do Wagner” “cismou” que a
menina precisava se consultar com um psicólogo. Sílvia e uma de suas
cunhadas acompanharam a menina ao terapeuta. Nesta época moravam
todos juntos no bairro da Usina: Sílvia, Wagner, Seu Edgard, Thamyris e
a cunhada. Eu demoro a entender que falavam de uma irmã de Wagner,
filha de Edgard, e que Sílvia já havia morado com todos eles, o que as
impacienta. Falam algo como “ai Mylene, que dificuldade”. A esta altura

80
escapando pela válvula

Thamyris já havia se juntado a nós e participava da conversa, enquanto


Lenora permanecia mais afastada.
Sílvia imita a irmã de Wagner sentada na antessala do consultó-
rio enquanto aguardam o atendimento, com os ombros encolhidos e a
cabeça baixa. Em seguida descreve o consultório propriamente, como
uma sala em que em um de seus cantos estavam “uns papéis” e “umas
canetinhas”. Sílvia está de pé, entre a janela que fica próxima à cozinha e
a porta que sai para o jardim, e o “lá”, onde na sala da psicóloga estariam
os papéis e as “canetinhas”, palavra que Sílvia fala com desdém ao mesmo
tempo em que sacode uma de suas mãos reforçando o seu desprezo, é
o canto direito da TV, no extremo oposto e diagonal ao ponto no qual
ela parava. Sílvia continua. Diz que ficou “uma hora sentada” esperando
por Thamyris, que apresentou à psicóloga um desenho de “uma casa
linda, com um jardim bonito na frente”, onde estavam a menina, o pai e
Sílvia, sob um céu que abrigava um sol “imenso” e no qual voavam “gai-
votas”. A psicóloga, sempre de acordo com o relato de Sílvia, examina
o desenho e diz que a menina está com “problemas”, comentário que
muito irrita a Sílvia. Ela se volta para a psicóloga e fala que “se a criança
desenha uma pessoa enfiando a faca” em alguém ou em alguma coisa,
tem que ser “internada”, e que se faz “um desenho todo lindo, tá com
problemas”. Então, pergunta ela à psicóloga, “qual é o desenho que ela [a
criança] tem que fazer pra mostrar que ela não tem problemas?!”. Já fora
do consultório, a irmã de Catra diz a Sílvia que não concordara com o
modo como ela falou com a terapeuta.
Sílvia nos diz que “gente fresca é assim: tudo é psicólogo”. Eu ime-
diatamente reajo dizendo que não sou assim, e Sílvia reage também rapi-
damente dizendo que o “fresca” bateu “fundo na alma”, pois ela, conti-
nua, não se referia a mim. Eu me defendo mais uma vez dizendo que
elas, ou ela, gostam de me chamar de “fresca”, e Sílvia insiste que eu me
entreguei, pois não usa essa expressão, e de fato, Sílvia nunca havia me
chamado de “fresca”. Ela continua a contar o que teria desencadeado
essa ida ao psicólogo.
Certo dia Sílvia estava em casa fazendo a sua sobrancelha e
Thamyris, então com nove anos, entrou no banheiro e lá se trancou.
Ao sair, trazia um “pano” cobrindo o seu rosto, e quando o removeram
viram que a menina estava com as sobrancelhas “raspadas”. Thamyris

81
a estética funk carioca

pegara o “prestobarba” de Sílvia e fizera a sobrancelha ao seu modo. Para


completar, numa tentativa de ajeitar a bobagem que fizera, cortou “essas
duas partes do cabelo” – e Sílvia levou a mão acima de sua testa, sepa-
rou duas mechas e fez com os dedos o movimento de uma tesoura – e
colou-as no lugar da sobrancelha. Tudo isso foi relatado com a narrativa
hilariante de Sílvia, mesmo que Thamyris parecesse não encontrar tanta
graça na performance que a envolvia.
Acabado o relato, eu falei que isso não me parecia motivo para man-
dar uma criança ao psicólogo e, voltando ao tema da “frescura”, comentei
que em algumas casas as crianças só se sentam à mesa com os adultos
depois de completados oito anos de idade e que antes disso se sentam
na cozinha. Sílvia fala que “lá” era assim também, que “até a comida” é
diferente. O tempero, acreditam “eles”, tem que ser outro para a criança.
Thamyris acrescenta que só ela ia “lá”, à casa do irmão de Catra, pois
quando uma filha menor de Catra esteve “lá”, teriam ficado chocados com
o fato de uma menina de nove anos falar a palavra “merda”. Eu pergunto
a Thamyris se Thamara nunca esteve “lá”, e ela diz que não, com alguma
veemência. Até então eu não sabia que Thamara, a quem frequentemente
encontrava na casa de Sílvia e era referida como mais uma filha de Catra,
era filha de sangue apenas de Neuma, a mãe biológica de Thamyris.
Sílvia segue por sua narrativa. Diz que no sítio do irmão de Catra,
havia uma empregada “só para pentear os cabelos de Thamyris”, e eles
falavam para a moça, filha da caseira da casa de campo, que ela pentearia
o cabelo de Thamyris pois a menina tinha “um cabelo grossinho”. Sílvia
admira o cuidado que “eles” têm ao nomear o cabelo crespo. No seu
entender, sabiam usar palavras mais adequadas para não “ofender”. Eu
lhes pergunto se dizer que alguém tem cabelo crespo é uma ofensa, mas
não me respondem. Eu me calo e entendo que neste contexto adjetivar
um cabelo como “crespo” pode ter conotação pejorativa.
Sílvia fala que até então Catra e Thamyris eram os únicos negros na
família e com a chegada dos novos membros “pardos”, continua Sílvia,
“foram se acostumando”. Sílvia fala que o irmão de Catra é “rico” e associa
isso ao esnobismo que nele vê. Coloco que Edgard, o pai, era rico tam-
bém e não parecia esnobe. Sílvia fala que Edgard “era rico”, em um tom
de voz que indicava que ele não era tão rico como o filho ficou, e conta
que Edgard “perdeu” seu dinheiro e colocou parte de seu patrimônio

82
escapando pela válvula

no nome deste filho que, por este motivo, o “ajuda”. Thamyris interpreta
de modo diferente. Diz que o “único” que ficou rico foi este tio, que
ao notar que o pai perdia dinheiro na “bolsa”, “passou tudo para o seu
nome”. Thamyris reforça que é com Catra que o avô tem mais afinidade:
“é o filho que melhor o entende”, acrescentando que é Catra quem o leva
para as boates de shows eróticos.

Foi uma conversa bastante esclarecedora, a que tivemos nesta tarde,


e ficou ressoando em minha cabeça enquanto eu refazia o trajeto de volta
para minha casa, a ponto de, ao escrever os relatos de campo, ter a sensa-
ção de que esta parte final teria sido-me contada enquanto dirigia, o que
era impossível, pois voltei com o carro vazio. Junto com os trechos que
voltavam à minha mente, ainda na Estrada do Rio Morto, que nos leva de
Vargem Grande ao Recreio dos Bandeirantes, pensei como se posiciona-
ria Catra em relação a tudo isso: um irmão rico que administrava os bens
de seu pai, que, por sua vez, parecia se identificar muito mais com o filho
de criação do que com seu filho de sangue e de cor; e ainda como enca-
rara o fato de viver em uma casa na qual ao mesmo tempo em que parti-
lhava dos confortos franqueados aos outros filhos da família, dividindo
com alguns deles o quarto de dormir, a mãe servira como empregada
doméstica. A resposta, me parece, veio através de seu posicionamento
face à sociedade envolvente, feito tanto através de escolhas mais privadas,
como aquelas relativas à religião e à família, quanto através da criação
artística. A frase que Catra me falou lá no começo de nossa convivência
começava a fazer sentido. O pai simultaneamente branco e “mais preto
do que muito preto” indicava a diferença desse pai em relação a outros
brancos, diferença não só na relação com os negros, mas de estilo de vida.

a família hoje
Sílvia e Catra estão juntos há mais de dez anos. Foram Catra e Sílvia
que assumiram Nêgo ainda bebê, entregue ao pai pela mãe, com quem
Catra tivera um relacionamento fortuito. O casal criou ainda Thamyris
e Fernandinho, pois a mãe deste último, então com onze anos de idade,
“não cuidava dele direito”. Nêgo chama Sílvia de “mãe”, Thamyris a
chama pelo nome e Fernandinho a chama de “tia”. À Thamara conheci

83
a estética funk carioca

na casa da família como a irmã de Thamyris que, um ano mais jovem


do que ela, desde pequena preferiu viver com a mãe a viver com o pai,
Catra. Na época, quem as efetivamente criava era dona Elza, mãe de
Catra, e Thamara, conta-me Thamyris, não se “dava bem” com a avó,
de modo que “preferiu” viver com a mãe, Neuma. Foi ao conhecer
Thamara que soube do fato de Thamyris possuir mãe viva, pois pensei
eu que sua mãe já havia falecido e por isso fora criada primeiro pela avó
paterna e depois pelo pai e pela mulher dele. E mais uma vez equivo-
cada, pensei que foram de fato escolhas pessoais que fizeram Thamara
abdicar de viver com a família de Catra. Mas com o tempo vim saber
que Thamara é filha de Neuma, a mãe de Thamyris, com outro homem
e neta de consideração de Elza, mãe biológica de Catra e quem pri-
meiro se encarregou de sua criação.
Thamyris conta que quando Sílvia “chegou” ninguém sabia que ela
se relacionava com Catra, pois era amiga de “umas primas” de seu pai.
Trabalhavam juntas “na Globo”, uma das empresas do grupo de teleco-
municações Globo. Sílvia passou a morar no mesmo apartamento em
que as moças residiam, enquanto iniciava sua relação com Catra, que
vivia com Patrícia, mãe de Julia, então com catorze anos, outra das filhas
do cantor. Nesta época, a esposa de seu Edgard já era falecida e ele vivia
com suas duas filhas em um apartamento na Usina. Em um apartamento
vizinho viviam Elza, Raul e Thamyris, que da maternidade foi levada por
Elza para a casa do casal, como me contou Raul. Catra e Neuma, à época
do nascimento da menina, brigavam com frequência, um com ciúmes
das investidas extramatrimoniais do outro. A avó, segundo Thamyris,
“não deixou” que a mãe criasse a filha, e Catra, para provocar a ex-mu-
lher, registrou a criança apenas em seu nome. Em um terceiro e também
adjacente apartamento viviam Sílvia e as primas de Catra, que por sua
vez transitava entre as três residências.
Ao início do trabalho de campo, em 2007, Catra dizia ter dezesseis
filhos, de modo que se em 2008 chegaram mais dois ele teria dezoito
descendentes. Conversando com Cíntia, comadre do casal, refazemos as
contas. Já foram apresentados Thamyris, Thamara, Julia, Fernandinho e
Nêgo. Com Sílvia, a única mulher com quem Catra gerou mais de uma
criança, ele teve Samuel, Noemi e a recém chegada Silvinha. Junto com
Silvinha ficamos conhecendo ainda Alan e o pequeno Moises. Como

84
escapando pela válvula

disse Cíntia, “o Negão é inédito: ele em dois meses teve um filho de


dezoito [anos], outro de dois [anos] e um recém-nascido”. Diz que Catra,
quando conversam sobre esses filhos todos, fala que ele é “reprodutor”, e
que “na escravatura não servia pra lavoura não”. Ficaria na “Casa Grande”.
Catra já sabia da existência de Alan, mas a mãe não o deixara conhecer o
garoto, que no fim da adolescência se aproximou da ilegalidade. A mãe,
sem saber o que fazer, recorreu a Catra, que retirou o rapaz do rumo pelo
qual se enveredava e passou a ser o responsável por sua criação. Alan
hoje vive com o pai, acompanhando-o em seu trabalho e dando início à
sua carreira como MC. Trata Sílvia por “tia”, que muitas vezes faz “a linha
mãe”, como ela diz, ao prestigiar o enteado em suas apresentações solo.
Alan é mais velho do que Thamyris, e foi o pivô da separação de Catra e
Neuma, que estavam juntos quando o garoto veio ao mundo.
Digo a Cíntia que conheci recentemente Isaac, um bebê que não
deveria ter ainda um ano. Ela já sabia da existência do menino, mas,
curiosa, quer mais detalhes, e me pergunta onde o conheci, e eu digo
que em uma passagem de som. Cíntia continua a repassar o rol de filhos
de Catra. Lembra de Ágatha, que devia ter os mesmos sete anos que
Samuel possuía então, e Esther, um pouco mais velha, como Nêgo, tal-
vez. Lembro a Cíntia da irmã menor de Ágatha, Raíssa, e ela me olha
seriamente nos olhos e fala: “olha bem pra cara daquela menina, Mylene,
e vê se ela se parece com o Negão!”. Eu insisto em minha dúvida e per-
gunto se Raíssa é “aquela loirinha?”, e Cíntia diz: “loirinha não”, talvez
“ruivinha”. Raíssa tem a pele dourada, os olhos verdes e os cabelos cres-
pos, que pensei serem loiros mas que aparentemente foram tingidos
neste tom por sua mãe. Cíntia acrescenta que “ainda tem isso: ele [Catra]
fica com peninha e adota as irmãs também”. Na tarde em que conheci
Raíssa, ela estava na casa da família, com febre, e chorava no colo de
Catra, com saudades de seu lar. Lembro a Cíntia que a própria Sílvia
se refere à menina como “a filha do Negão”, e que portanto entendi que
fosse filha dele. E Cíntia reforça: “você não conhece o Negão?! Pega logo
o filho dos outros pra ser seu!”.
Cíntia concorda que Catra é “um cara legal”, mas não vê com bons
olhos “esse bagulho de ele ficar tendo um filho atrás do outro”. De todo
modo, ela nos fala dessa característica inclusiva que não é só de Catra.
Uma predisposição para a adoção que aparece também em Sílvia, que

85
a estética funk carioca

está presente na facilidade com que Thamyris entende como irmãos os


filhos recém-chegados, que marcou seu Edgard e a mãe de Catra, dona
Elza, e ainda o marido desta, Raul.
Relações e pessoas tornam-se de fato análogas, as capacidades destas reve-
lando as relações sociais das quais elas se compõem, e as relações sociais
revelando as pessoas que elas produzem. (Strathern, 1988, p. 264)

Com a morte da mãe, Catra passa a imprimir com mais profissio-


nalismo as complexidades de sua existência em seu fazer artístico, trans-
formando-as em marcas singulares. Em 1999, Dona Elza falece, com
cerca de cinquenta e dois anos, de um mal súbito do coração. Dois meses
depois Catra perde um filho, de cinco anos, de um câncer que migrou
do globo ocular para o córtex. Catra, Sílvia e Thamyris passam a viver
com Edgard e uma filha deste – irmã e madrinha de Catra – no bairro
de Copacabana, inicialmente em um apartamento na Rua Inhangá e
posteriormente em outro na Rua Barata Ribeiro. Em seguida, conta-
me Thamyris, Catra se muda com ela e Sílvia para o bairro do Catete,
época em que Catra “começou a ter a própria vida” e passou a se dedicar
exclusivamente à vida artística. Em um determinado período, inclusive,
a irmã e madrinha, treze anos mais velha do que Catra, trabalha com ele:
montam juntos uma produtora, cujo nome, Carbô, faz referência à avó
de Catra, dona Carbosina.
À época do trabalho de campo, Sílvia vivia em uma casa em Vargem
Grande, Zona Oeste da cidade, com Thamyris, Fernandinho, Nêgo,
Samuel, Noemi e Silvinha. Na frente desta casa há um grande gramado
com churrasqueira e uma piscina de boas dimensões. Catra também
vivia na casa, mas fui aos poucos sabendo da existência do “flat” no
Recreio dos Bandeirantes, que de início me pareceu um pouso esporá-
dico. O “flat” surge nas narrativas da família em um período tenso para
o casal Catra, ambos com seus ânimos alterados por supostas incursões
extraconjugais que teriam ocorrido de ambos os lados, situação que
se assemelha à época em que Thamyris veio ao mundo. Mas desta vez
ocorre uma pequena inversão de lugares. Como Catra fez no passado,
desta fez foi Sílvia quem colocou na filha recém-nascida somente o seu
nome e sobrenome, acrescentado ao seu final o “Segunda”. E ainda fez
com que o próprio Catra realizasse o seu desejo, pois sendo ele o pai lhe
caberia o dever de fazer o registro.

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escapando pela válvula

Na primeira visita que fiz a Sílvia, ao voltar do período em Londres,


ela me anuncia “que eu e o Negão estamos separados”, e eu levo um
susto. O ritmo da casa era o mesmo. Os filhos dela e de Catra continua-
vam circulando por lá, mesmo aqueles que não viviam com ela, assim
como o próprio Catra, que encontrei se arrumando para sair. Sílvia me
fala que “é sempre a mesma história, [ele] arruma [uma] piranha nova,
depois [a] piranha racha a cara [dele] e ele volta [para ela]”: Catra se
encanta por uma nova mulher, depois se decepciona com a moça e pro-
cura por Sílvia novamente. Ela diz que “cansou”, e acrescenta que ele não
tem mais o “flat”, mas vive “em uma casa aí”, indicando com uma de suas
mãos que o imóvel se localiza na mesma região em que ela mora.
Catra vivia assim como fez então, quando a mãe ainda era viva e ele
iniciava seu relacionamento com Sílvia. Como antes, quando transitava
entre a casa da mãe, a casa em que vivia Sílvia e a casa de Edgard, não
possuía pouso único, ainda que a casa de Sílvia parecesse ser o mais per-
manente deles. Nos termos de Rapport, Catra mostra-nos “não apenas
que é possível se sentir em casa em movimento, mas que o movimento
pode ser o próprio lar” (Rapport, 1997b, p. 73). O autor propõe uma
noção de identidade não atre-
lada a um centro definido, de
modo que ao invés de realizada
através da “fixidez”, a identidade
se faz através do “movimento”
(Rapport, 1997b, p. 76). Por sua
vez, Sílvia está sendo coerente
com o que me dissera antes
de minha partida. Me avisara,
então, que quando eu voltasse
ela não estaria mais na mesma
casa, que se mudaria para o
Recreio [dos Bandeirantes]. Se o
marido quer “ter várias mulhe-
res”, disse, ela então “quer viver
de madame”.7

7 Em entrevista a Revista Trip, edição de junho de 2009, Catra afirma que possui 18 filhos e que
é “casado” com cinco mulheres.

87
a estética funk carioca

Sílvia está magra. Veste um top bem curto e um short bem baixo,
em nylon preto. Achei-a mais jovial. Leve. Silvinha, por sua vez, está
linda. A mãe a penteou e vestiu com esmero. Fez várias chuquinhas,
dividindo assim o seu cabelinho preto e crespo, e aplicou na parte presa
bastante gel de cabelo, com o auxílio de uma pequena escova, dessas que
se usam para os dentes. O cabelo ficou impecável. Depois lhe passou
bastante óleo corporal e perfume. Sua pele negra ficou reluzente em um
vestido branco, sem mangas, com faixa na cintura em xadrez branco e
rosa e flores coloridas aplicadas.
O altar de Sílvia não está mais ordenado como quando o conheci.
Os únicos bonecos que permanecem no mesmo lugar são dois, aqueles
que representavam a ela e a Catra. Se Sílvia procurou garantir a ordem
em seu mundo através de algum tipo de volt sorcery, a própria vida tra-
tou de produzir seus efeitos sobre o seu objeto de arte. Se a vida é o
protótipo do objeto, ela então imprimiu sua agência sobre o mesmo. A
fotografia de seu marido com o filho pequeno não se encontra mais lá,
e as bonecas femininas que a rodeavam estão espalhadas pela base da
instalação. As crianças também estão espalhadas, e os leões que acom-
panhavam o boneco de Catra desapareceram. Há, porém, um leão extra,
que está levemente deslocado do centro. É feito de látex, e poderia ser
um brinquedo infantil. Tem traços hiper-realistas e a sua boca está lar-
gamente aberta, como se o animal desse um grande rugido.
Mas se os bonecos de Sílvia estão embaralhados em seu altar, a
ordem parece assegurada em sua cama. A colcha de plush que a cobre é
estampada por uma grande imagem de um casal de felinos abraçados,
aconchegados um ao outro. Na metade da coberta que corresponde ao
lado de Sílvia está reproduzida uma onça pintada, e do lado que corres-
ponde a Catra vemos um leão. Ambas as imagens possuem novamente
traços hiper-realistas e estão margeadas por um fundo vermelho sangue.
Sobre o travesseiro de Catra está recostado um macaco de tecido atoa-
lhado marrom escuro, e sobre o de Sílvia uma boneca de pano, de pele
clara e rosada e cabelos em lã amarelo claro, trançados.
Os bonecos felinos que estavam em sua mesa de cabeceira tam-
pouco estão presentes. E sobre a mesa correspondente a Catra estão dois
livros. Um deles é sobre o Comando Vermelho. O segundo, acomodado
abaixo deste, é a coletânea que lhe dei, onde consta um artigo de minha

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escapando pela válvula

autoria sobre a sua pessoa e o seu fazer artístico. Na prateleira de baixo


encontra-se uma “Torá”, nome hebreu que Sílvia usa para designar o que
os cristãos chamam de Pentateuco. Suas páginas estão abertas no livro
Levítico, onde repousa um relógio masculino de metal prateado. Sob
o livro está a cópia mimeografada de um paper que apresentei em um
congresso, que trata da agência dos objetos em um baile funk e cuja
etnografia deu origem ao capítulo final deste livro.

mr. catra e a religião


A religiosidade de Mr. Catra faz-se visível através de sinais cotidianos,
de suas falas e atitudes, como evidenciado a partir das descrições do
próprio show, das interações que se dão nos bastidores dos eventos e
durante os deslocamentos da trupe. Catra, como nenhum outro artista
funk, insere o discurso em torno da religião ativamente em suas per-
formances profissionais.
Em contextos performáticos, o discurso em torno do divino parece
significar efetivamente a busca por uma conexão com o sobrenatural,
o “Todo Poderoso”. O louvor realizado ao início de seu show está rela-
cionado ao fato de o artista se considerar um “instrumento de Deus”,
e formar com Ele uma dupla: ele mesmo, Mr. Catra, e Deus, a quem é
fiel, donde o seu codinome “Mr. Catra, o Fiel”, justifica a mim o cantor.8
Deste modo, nada do que Mr. Catra faz pertence a ele, continua o artista.
É ainda em busca do elo com o divino que ele louva a Deus na aber-
tura de seus shows. Explica que pede que “tudo dê certo” no decorrer
de sua apresentação, em seguida “alegra a rapaziada” cantando músicas
“sensuais” e finalmente encerra a sua apresentação com mais um louvor,
agradecendo o resultado positivo que obteve.
Dessa perspectiva, a canção “Minha facção”, cujos versos estão repro-
duzidos no capítulo anterior, tem de fato uma “letra religiosa”. Entretanto,
ela remete igualmente ao modo de vida anterior do artista, onde estabe-
leceu uma relação de proximidade com um mundo “proibido” e ilegal,
como indicado nessa mesma canção religiosa – “já fui ladrão e conheço

8 Esta mesma explicação ele concede no filme documentário Mr. Catra, o fiel.

89
a estética funk carioca

o breu” – e presentificado por muitas de suas falas em situações off-stage.9


O codinome “Fiel”, deste ponto de vista, poderia ser também referência a
uma das facções criminosas a controlarem o tráfico de drogas no Rio de
Janeiro, pois é chamado de “fiel” aquele que “fecha” com a referida facção.
Mas hoje a mesma composição musical pode permitir uma leitura outra,
onde a vida à margem da sociedade é substituída pela “vida loka”, a vida
que une festas e trabalho formal. Mr. Catra fala:
Aqui no Rio de Janeiro, cada um tem a sua facção. A minha facção é a de
todos aqueles que creem em Deus. Não interessa de onde for, qual classe
social. Todos os puros pertencem à minha facção. Quero saber do funk,
que é a minha facção, quero saber de Deus, que é a minha facção. O pre-
sente que ele deu pra gente que é o funk, vida loka. Essa vida maravilhosa
que a gente pode usar como válvula de escape dessa violência, da prosti-
tuição, como válvula de escape para o ostracismo, pro marasmo, tá ligado?
Isso é que eu vivo. Onde dá um dinheiro bom, que não dá bolo na mão.
Que não tem problema. Um dinheiro sadio.

Catra se diz “hebreu”, seguidor do que ele chama de “judaísmo salo-


mônico”. Foi antes “cristão” e flertou com o espiritismo, “por causa” de
sua mãe. Mas não se adaptou:
Reparei que em casa que manda muita gente, é sempre bagunçada. Nunca
dá certo nada... Porque espírita tem uma porrada de deus, semideus,
secretário do deus... né não?!

É através da sua insatisfação com o cristianismo, seja ele em sua


versão católica ou pentecostal, que ele se permite colocar lado a lado
questionamentos de fundo mais político com aqueles que se refletem
em sua ordem familiar.
Você ser cristão é usar sua religião como política. Você não acha? Que a
cultura ocidental é toda manipulada? Leva o homem contra a sua pró-
pria natureza... Nêgo jura fidelidade perante a Deus!! Você tá jurando um
bagulho que você não vai fazer nunca!! Que é contra a natureza do animal
homem... que é a natureza divina.

A conversão de Mr. Catra, ou a sua fé em Deus, é por ele atribuída


ao fato de Ele tê-lo salvo da vida errada. Foi Ele que o impediu de se

9 A reportagem da revista Trip, edição de junho de 2009, adjetiva a música “Facção”, também
chamada de “O fiel”, como “hino ao Senhor e às facções criminais”.

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escapando pela válvula

vingar do assassino de seu irmão.10 Mas Mr. Catra explica que, mesmo
“evangélico”, possuía “muitas dúvidas, sobre muitas coisas”, e foi ao visi-
tar Israel e o Muro das Lamentações, em Jerusalém, que ele passa pelo
que pode ser considerado como uma segunda conversão. A sua ade-
são ao judaísmo possui, segundo ele, fundamento espiritual, místico e
simultaneamente político. Pois foi o que sentiu lá aliado à decepção que
sentiu ao chegar aqui que o modificou.
Botei papelzinho e o que eu senti lá [no Muro das Lamentações], eu não
consigo nem explicar.11 O que me transformou foi o que eu senti no Muro.
Aquela sensação boa, tá ligado? Saí de alma lavada. Foi do jeito que eu me
senti. Dá uma vontade de chorá. Mas é bom. Você não tá triste. Você tá se
fortalecendo. Você não sente tristeza. As pessoas não choram de tristeza.

Mr. Catra acredita que durante todo esse tempo foi enganado. Que
Jesus sofreu um “golpe de Estado”, pois como é possível que não haja
um Evangelho de Jesus, nem de Judas, “seu melhor amigo”? Por acaso,
pergunta, “Jesus de Nazaré, o Rei dos Judeus, rabino e criado no templo,
era analfabeto?”. Recentemente vem se perguntando “quem foi que usou
Jesus para dividir o tempo?”. Afirma que a sua religião é a de um “povo
que passou por vários holocaustos” e que aqui no Rio de Janeiro aconte-
cem holocaustos diários.
A fascinação e a admiração de Mr. Catra pela Terra Prometida
parecem estar relacionadas tanto à sua tradição religiosa como à feição
moderna do Estado de Israel, país cuja fundação, em 1948, foi feita em
bases socialistas, regidas por uma ideologia igualitária, e que, de acordo
com o que vivenciou Mr. Catra, não exclui nem oprime como nas cida-
des brasileiras. A leitura de Mr. Catra surge marcada por uma interpre-
tação que encontra explicação na própria cosmologia associada a uma
religião distinta da católica, que viabilizaria um respeito pelo outro, dife-
rente do que pode ser por ele experienciado no Rio de Janeiro.

10 Esta passagem da vida do artista está registrada no documentário Mr. Catra, o fiel (2005), em
que Catra conta que seu irmão foi morto por um colega da escola que, passado a policial, teria
“subornado” este irmão e, com medo de uma denúncia, armou-lhe “uma tocaia” e o matou.
Catra decide vingar a morte do irmão e matar o policial, que é antes morto por uma terceira pes-
soa. O MC vê no ocorrido uma intervenção divina, que o impediu de cometer um assassinato.
11 Refere-se ao costume de se colocar pequenos pedaços de papel nos quais são escritos os pedi-
dos ao deus. Estes bilhetes são dobrados e inseridos nas fendas do muro, formadas pela junção
de um e outro bloco de pedra.

91
a estética funk carioca

Submissão. Compaixão. Esmola... Isso que o cristão prega. Doação.


Donativo. Isso não existe. O que existe é o-p-o-r-t-u-n-i-d-a-d-e. Um povo
próspero é onde todos produzem. Jesus caôzada é esse bagulho que pre-
gam aí. Jesus [com cara de] metrossexual... com cara de anjo. Tá ligado?
[Nada disso.] Jesus era revolucionário.

É a distância do Ocidente que, aos seus olhos, permite ao judeu uma


visão de mundo distinta. Pois, mesmo passando pela Europa, foi em Israel
que encontrou um mundo sem as opressoras hierarquias que guiam as
pessoalizadas relações sociais estabelecidas em seu mundo de origem.
O que foi decepcionante para mim foi, depois de vir de Israel, saber que
tudo que se aprende aqui é viver de ilusão, não é viver de realidade. Uma
ilusão imposta pela cultura ocidental, pela cultura católica. As discrimina-
ções. É tudo culpa dessa cultura ocidental.
Uma lei que condena o inocente, que liberta o poderoso, aonde o órfão e
o velho são abandonados.
Israel é o modelo de educação tanto do lado árabe quanto do lado judeu.
O que eu acho legal é como os pais ensinam os filhos a serem indepen-
dentes. Os pais lá criam as crianças com amor, aqui a gente cria as crian-
ças com mimo.
Lá não tem playboy. Israel não tem playboy.12 Lá, todo mundo é todo
mundo, tá ligado? Lá não tem isso que fulano, que é beltrano, que é branco,
que é negro.
Israel foi o único país que levou o negro pra dentro sem escravizar. [E sim]
para ajudar os etíopes.13

Mas o judaísmo de Mr. Catra é vivido de modo particular e em sua


esfera doméstica. O uso subversivo que faz da religião, que produz o seu
idiossincrático “judaísmo salomônico”, lhe permite coadunar relações
amorosas e simultâneas com distintas parceiras e os muitos filhos que
produzem essas relações, com uma posição a meio termo do Ocidente
e do Oriente que o judaísmo lhe concede. Pode assim “viver como os
orientais”, com muitas mulheres, como ocorreu no período salomônico,

12 “Playboy” é a categoria nativa que designa os antigos “filhinhos de papai”, os filhos de pais “com
condições”, que não precisam trabalhar para garantir o seu sustento. A terminologia é utilizada
como categoria de acusação por funkeiros e favelados para deles se diferenciarem, dinâmica
que será aprofundada adiante.
13 Os “etíopes” formam um grupo de judeus negros que foram retirados de seu país de origem, a
Etiópia, onde viviam em situação muito precária.

92
escapando pela válvula

mas a um modo ocidental.14 Catra acredita piamente que se fossem pos-


síveis “arranjos de três ou quatro mulheres juntas e um homem” não
haveria tanta pobreza e miséria no mundo. Pois é de modo também
idiossincrático que Catra distribui sua renda. Afirma que “acha errado
comprar terra”, e de fato o imóvel em que vive sua família é alugado,
assim como já o vi recusando proposta de seu empresário para que rea-
lizassem juntos ganho monetário rápido na compra e venda de terrenos
imobiliários. Durante conversas que giravam em torno da religião e da
natureza masculina, Catra me falou ainda: “eu deixo as pessoas me rou-
barem”, o que já havia sido me dito por pessoas que trabalham com ele,
mas que acreditavam que ele não percebesse o fato.
De início pensei que as falas de Catra através das quais ele defende a
primazia do macho dominante eram de algum modo retóricas, repetidas
para o pesquisador, o entrevistador ou o documentarista na construção
de seu personagem, como fazendo parte de seu processo de autorrepre-
sentação. Poderíamos pensar, junto com Marco Antonio Gonçalves, que
Catra, como Jean Rouch, teria se tornado refém de seu próprio perso-
nagem (Gonçalves, 2008, p. 24-25). Ou levar mais adiante esta ideia
e sugerir que o que se dá é mesmo uma escolha de vida. Pois soube por
Sílvia e Thamyris, em uma tarde em que a primeira estava especialmente
furiosa com as investidas extramatrimoniais do marido, que ele repete
“o seu sermão” também para as mulheres da família, justificando os seus
atos muito serenamente. Como os animais, os homens podem e devem
ter muitas fêmeas, e a melhor amiga da mulher deveria ser a amante de
seu marido, pois ambas querem bem à mesma pessoa. Por fim, Catra
viveria “em um quintal com várias casas”, pois, mesmo se considerando
judeu, “é muçulmano nesses negócios de mulher”, traduz Alan, seu filho
mais velho. Catra se justifica ainda através de dados concretos, afir-
mando que esta lógica é similar a da favela, ou a de seus chefes.15

14 Elaborações sobre o “judaísmo salomônico” e arranjos poligâmicos deram título à reportagem


da revista Soma, edição de maio de 2009, sobre Mr. Catra. Em “As Minas do Rei Salomão”, o
termo “minas” é empregado a partir de seu duplo sentido que remete tanto às minas de ouro
associadas ao rei hebreu como às muitas mulheres, meninas, também chamadas de “minas”,
que teriam Salomão e Mr. Catra.
15 Marcos Alvito (2001), em seu estudo sobre a favela de Acari, mostra que o costume dos chefes
do tráfico de ter várias mulheres e filhos – igualmente compartilhado pelos presidentes das
associações de moradores – deriva tanto de um ethos masculino viril como de uma estratégia

93
a estética funk carioca

Em contextos exteriores aos shows, podemos notar que o discurso


articulado em torno da religião revela um ideal transgressor e peculiar
diante da sociedade envolvente e de uma cosmologia ocidental objetifi-
cada através do que ele designa como “a sociedade católica” e a “hipocri-
sia” que a caracterizaria. A “mídia”, segundo Catra, expressa esta “socie-
dade”, “impondo valores hipócritas”. Estes valores vão desde a proibição
da prostituição e do comércio de drogas, quando a atitude correta seria
“legalizar e taxar”, até o casamento monogâmico e a pobreza. Quanto às
apreciações relativas às relações raciais, diria que se estas são pouco ver-
balizadas, de acordo com uma “penetrante etiqueta do silêncio” (Sheriff,
2001, p. 60), isto ocorre devido ao fato de serem problematizadas prefe-
rencialmente por meio de discursos não orais. São elaboradas através da
música, da beleza, das imagens e dos objetos, e no que toca à Mr. Catra,
são expressas através das paródias musicais que faz. Em uma frase, são
elaboradas por meio de discursos estéticos. Dessa perspectiva, a estética
revela o seu potencial político e conforma poderoso meio de acesso a
questões costumeiramente evitadas e referidas de forma velada. Peter
Fry (2002), em seu artigo sobre a publicidade e a produção da beleza no
Brasil, sugere que é o discurso silencioso da estética que poderá nos aju-
dar escapar às reificações produzidas pelo conceito de “raça”.
Esse aspecto maior, cosmológico, que as narrativas em torno da
religião evidenciam, possibilita a Mr. Catra comunicar o seu posicio-
namento político face ao mundo envolvente, posicionamento este que
tende a expressar, através de suas reivindicações, o ponto de vista da
própria juventude favelada, principais criadores e consumidores do
ritmo musical aqui em questão. As narrativas pessoais de Mr. Catra
em torno da religião, aquelas que ele faz em seu reduto doméstico, nos
revelam que a mesma é meio de manifestação tanto de sua fé como de
suas angústias relativas ao poder e à subjugação e ponte com o político.
É a partir desse posicionamento que expressa uma ontologia própria,
porque fluida, portanto coerente com o seu interesse no trânsito e na
ambiguidade, que se torna possível compreender a aproximação de Mr.

de sobrevivência e de administração dos negócios baseada na ampliação das redes de paren-


tesco e de solidariedade. Os discursos de Catra se afinam ainda com aqueles registrados por
Salem (2004), segundo os quais os homens das classes populares creditariam à natureza o
aspecto fundante da radical diferença entre as sexualidades feminina e masculina, tornando-os
refém dos desejos da “carne”.

94
escapando pela válvula

Catra com a “religião dos hebreus”, modo como ele denomina a crença
que constrói de maneira pessoal e particular.
Mr. Catra compôs em hebraico com seu parceiro Sapinho, um judeu
branco, nascido na Tijuca, o bairro no qual Catra viveu e que abriga a
favela do Borel, território pelo qual ele antes circulou. Sapinho hoje vive
em Israel e de policial passou a cantor de funk carioca.
Atem tzrichim leavin
Tzarich latet kavod
Bishvil lekabel kavod
Daber she zé anachnu
Baruch atah adonay
Eloym achi chashuv
Ichié baruch Yerushalaim

Na minha casa
O mal não vai entrar
Tem a Bíblia e o Alcorão
E na porta mezuzá

E a Torá baruch atá


Baruch atá adonai
Quem tá puro entra
Quem tá mandado sai
Yoshua Je t’aime
Faith in god, iluminations
make a peace, make love
with a positive vibration

Com Deus no coração


Salam
Salam alekon
Salam alekon shalom

Hoje eu fui foi lá no Muro


Conversar com o rabino
Quando de repente ouvi
O bonde dos palestino

Meti a mão na estrada


Fui conferi qual é
O bonde mais sinistro
É Jerusa e Nazaré

95
a estética funk carioca

Jerusalém
A melhor noite que tem
Jerusalém
A melhor noite que tem

Rebolando com as mina


Começaram a se esfregar
Chegaram perto de mim
Me pedindo neshiká
Id chamudá
Bitch neshiká
Id chamudá
Bitch neshiká
Haifa, Tel-Aviv, Guivataim,
Ashdod
Acco, Nazaré, Gaza só para
quem pode
Natania, Hedera, Massada, só disciplina
Das Colinas do Golan à fronteira palestina
Eloym vem conduzindo
A caneta e o papel
Moshé abriu o Mar Vermelho
Com a força linda do céu
Da terra irá brotar
Vida, leite e mel
Mr. Catra de Golan
E Sapinho de Israel16

Nos dois primeiros parágrafos, transliterados do hebraico, são fei-


tos louvores a Deus e repetidas palavras de ordem da favela:
Vocês precisam entender
Pra ter respeito
É preciso respeitar
Fala que é nóis
Santificado seja o Senhor
Deus é o mais importante
Haverá paz em Jerusalém

No sexto parágrafo pede-se paz em árabe e hebraico.


16 “Jerusalém”, de Mr. Catra e MC Sapinho.

96
escapando pela válvula

De modo geral, é através da ironia, mais do que da religião, que Mr.


Catra presentifica em contextos performáticos seus questionamentos
políticos ao desafiar a cultura hegemônica e o gosto estabelecido. A sub-
versão de símbolos da alta cultura, ou de esferas “sagradas” da cultura, é
constantemente realizada por Mr. Catra por meio das canções que exe-
cuta. É precisamente o aspecto subversivo que fará a ponte entre as for-
mulações mais domésticas de Catra e a sua criatividade artística. A ironia
possibilitará a Mr. Catra reunir transgressoramente religião, sexualidade
e posicionamento político. A transgressão, ao invés de aspecto extraordi-
nário dos sistemas de crenças – como nos períodos liminares e ritos de
passagem analisados por Turner (2005) ou os rituais de rebelião descritos
por Gluckman (1974) – seria um “componente chave” da religião, como
argumenta Taussig (1997). É a transgressão que permite a Mr. Catra unir
em um mesmo plano erotismo, religião e alucinógenos.

Estamos na passagem de som que antecede ao show que mais tarde


Mr. Catra fará na Fundição Progresso. O palco está montado como
uma arena, no centro do salão, e à sua volta estará mais tarde o público.
Mr. Catra vai muito informalmente passando pelas músicas que can-
tará, assim como está informalmente vestido. Diferentemente do modo
como se apresenta em seus shows – muito adornado por colares, anéis,
pulseiras e relógio dourados, algum boné bem grande bordado também
frequentemente em dourado, trajando calças jeans amplíssimas, ves-
tindo blusas t-shirts e agasalhos fornecidos por seus patrocinadores, em
sua maioria marcas associadas ao hip-hop paulistano, e calçando tênis de
marcas estrangeiras, preferencialmente Nike, Puma, Adidas ou Reebok,
de aspecto muito novo –, ele veste uma bermuda de microfibra estam-
pada, sem qualquer marca evidente, um chinelo de dedo branco e verde
da marca Havaianas e uma camiseta preta, com as mangas cortadas, da
Termas 4x4, localizada no Centro da Cidade e que inspirou uma de suas
canções. Traz ainda um par de óculos de sol sobre a cabeça, também
sem marca. Parece recém-saído da praia.
Ele ensaia a mais nova paródia que fez, e que incluirá no repertório
desta noite, uma versão feita a partir de uma música de Alceu Valença.
Os músicos e outros membros da trupe riem com a novidade, sentados
nos degraus dos tablados acomodados em volta do palco. Em seguida
é repassada a paródia da canção “Pais e Filhos”, de Renato Russo. Mr.

97
a estética funk carioca

Catra explica a Sandro, o DJ, como lhe parece que a batida eletrônica a
acompanhar o refrão da versão da música deve ficar, e simultaneamente
se diverte com o resultado de sua criação, gargalhando. Sandrinho escuta
o MC e se dirige a Jota, o tecladista, preocupado que está em adequar o
timbre de sua bateria eletrônica ao tom do teclado na música “4x4”, tam-
bém conhecida como “Adultério”, versão parodiada da canção “Tédio”,
do grupo de rock Biquíni Cavadão. Mr. Catra pode-se fazer acompanhar
por mais de um músico a tocar instrumentos acústicos, mas nesta noite
só o teclado de Jota estará ao palco. Jota faz parte da Sagrada Família,
como o coletivo de músicos se autodenomina, que tem Mr. Catra como
seu componente mais conhecido. Apresentam-se em grupo ou indivi-
dualmente, mas estão sempre juntos, no mesmo “bonde”, que aqui não é
de bandidos, mas de parceiros de criação e de vida.
A passagem de uma música a outra é muito pouco formal, assim
como toda a atmosfera do ensaio. Parece mesmo uma reunião de ami-
gos, de modo que sou muitas vezes pega de surpresa. Mr. Catra inicia
uma pregação, com a voz grave como a de um pastor, mas simultanea-
mente bem-humorada: “Eu queria convidar vocês pra um momento
de reflexão nas suas vidas. Irmãos e irmãs... Nesse exato momento...,
agora... Abra seu coração, abra sua mente, e deixe tudo de bom entrar...
Então, irmão. Vem comigo...”. Levanta o tom de sua voz e, de modo vigo-
roso, fala: “Putaria que é bom!”. Eu dou uma gargalhada isolada e dis-
sonante, surpresa com o inusitado da cena, me dando conta de que o
que assisto será efetivamente performado no show que acontecerá mais
tarde. Em seguida, Mr. Catra grita: “Isso?! Nem no circo tem, nem no
circo tem!”, o que leva seus parceiros a produzirem um clamor de apro-
vação e, aí sim, soltarem a sua gargalhada. Mr. Catra dá sequência ao seu
louvor, sempre com a voz imposta, como a de um pastor: “Glorificado
seja o seu emprego...”, e gargalha. “Santificado seja o seu...”, e emite novas
gargalhadas. Jota acompanha a pregação com seu teclado, e Sandrinho
regula o som de sua bateria eletrônica de acordo com o tom que segue o
tecladista. E Mr. Catra finaliza: “Vamos orar agora por aquelas meninas
que estão naquele local... Naquele local!”. O MC desata o seu riso final, e
o DJ eleva o som das batidas eletrônicas.

Através de uma operação mimética e criativa Mr. Catra e Jota ela-


boraram um aspecto da vida pregressa dos dois. Mr. Catra, já sabemos,

98
escapando pela válvula

foi “cristão” e hoje segue o “judaísmo salomônico”, abraçado por lhe


parecer expressar uma visão de mundo e uma cosmologia que se dife-
rencia daquelas que regem “a sociedade católica”, que, acredita, tantos
males trouxe para o seu mundo. Jota, por sua vez, ao longo de mui-
tos anos foi fiel de uma grande igreja neopentecostal, trabalhando na
mesma. Garantia o seu sustento fazendo exatamente o que fez naquela
tarde. Tocando ao teclado. E hoje, coerente com seu projeto de viver da
música, o músico se dedica ao funk que, de acordo com o que me disse
Mr. Catra, tem salvado muita gente, mais até do que Jesus.
O que assistimos foi a encenação reinterpretada de um culto evangé-
lico. Jota e Mr. Catra representaram-no teatralmente, parodiando a per-
formance religiosa que já esteve muito presente em suas vidas. As suas
impressões sobre esse universo, inclusive, são reiteradamente externadas
nas conversas estabelecidas no furgão dentro do qual muitas vezes nos
deslocamos entre um e outro show. Mas a encenação artística que fize-
ram, além de ironizar a prática religiosa, oferece ainda uma via outra, pois
avisam, através do ato performático, que a salvação não se encontra onde
antes estiveram, mas em uma vida alternativa, regida por valores próprios,
que combina festas e prazeres carnais com a crença no divino. Mr. Catra
corrigiu-me diversas vezes, reafirmando a condição necessária da crença
no “Criador”. Jota, igualmente, sequer cogita a possibilidade de uma vida
sem Deus. O problema, dizem ambos e em separado, são os homens.
A ironia permite, assim, que Mr. Catra insira criativamente a religião
na estruturação de suas performances, e não nos deixa esquecer que o
aspecto político é peça fundamental para se compreender a ele e ao funk.
A história pessoal de Mr. Catra lhe possibilitará assumir diferentes
pontos de vista. Ao tirar partido de sua aparência física, Catra circula
por espaços aos quais a classe média de modo geral não tem acesso e, ao
assumir o olhar da favela, inicia o trabalho de mediação e conexão que
marcará a sua vida profissional. Fará assim pontes entre mundos, pin-
çando daqueles pelos quais circula os símbolos com os quais jogará, as
representações que manipulará, atividade que marcará definitivamente
a sua prática artística, como espero evidenciar nos capítulos a seguir.

99
Parte II

A individualidade (...) é para a cultura como o próprio sopro da vida.


Edward Sapir, 1949, p. 310
Capítulo 3
Autonomia da arte, criatividade e difusão

É o beat que dita.


Mr. Catra

Neste capítulo colocarei em evidência o estúdio de gravação em que Mr.


Catra trabalha junto a seus parceiros de criação. A abordagem sobre o
artista se fará em sintonia com a perspectiva assumida na primeira parte
do livro: a sua apreensão a partir da replicação de sua pessoa distribuída.
Este recurso permitirá conciliar em uma mesma narrativa a exigência de
apresentação da efervescência criativa que se forma no estúdio e a par-
ticipação das diferentes pessoas que passam pelo local, acontecimentos
discorridos em muitas e distintas tardes. Dessa perspectiva, a multiplici-
dade que as pessoas permitem acessar possibilitará produzir uma assem-
blage de ideias e conceitos nativos. Contudo, à medida em que a escrita
evolui e penetramos no ambiente de produção musical, a necessidade de
problematização da pessoa individual para a compreensão das mecâni-
cas que regem a criação artística se mostrará mais premente. Se a discus-
são em torno da individualidade travada no capítulo anterior ocorreu de
maneira pontual, acompanhar o aspecto processual que envolve a cria-
tividade, como faremos neste capítulo e no próximo, a tornará urgente.
Neste capítulo, intenciono evidenciar a lógica abstrata a reger a cria-
ção musical funk. Ao invés de pensar o funk para além dele mesmo e uti-
lizá-lo como dispositivo para a objetivação de uma cultura da favela ou

103
a estética funk carioca

de seu contexto de produção, busco ver o que o funk tem para dizer de si
mesmo e de que modo é possível defini-lo como gênero musical. Dessa
perspectiva, isolarei a especificidade de sua lógica apropriativa, anterior-
mente referida como “um estilo da bricolagem sonora” (Vianna, 2007)
ou um “pegue e misture” (Herschmann, 2000a, p. 222), aprofundando
o seu sentido em minha exploração.

o estúdio de gravação
O Estúdio Sagrada Família fica separado por um muro da casa onde
vivem Sílvia e as crianças. É lá que Catra realiza as gravações de suas
canções bem como são efetivadas as produções de músicos de fora,
aqueles que não pertencem ao núcleo duro do “coletivo”. Este é com-
posto por Dr. Rocha, Jota, WF, Kapella, e Mr. Catra, além de Beto da
Caixa que, passado um tempo, se afastou do grupo. Trabalham juntos e
em separado, se apresentando em conjunto e mantendo seus trabalhos
individuais. As fronteiras desse “coletivo” são também fluidas e podem
abarcar “todos aqueles que fecham com a gente”. O estúdio poderia ter
seus ganhos incrementados por produções externas. Entretanto, só são
recebidos ali artistas que de uma forma ou de outra tenham afinidade
com o coletivo, que sejam “amigos”. Alguns destes possuem um vínculo
mais forte com Catra, estabelecendo com o artista uma relação que
poderia se chamar de apadrinhamento. O que coloca o estúdio em ação
são mais questões que concernem às relações sociais e à criação artística
do que o mero ganho monetário, ainda que, como mais tarde me diria
Dr. Rocha, o estúdio precisa em algum momento “dar um retorno finan-
ceiro”, pois por hora ele trabalha apenas “pra nós mesmos”.

Entrar no estúdio nem sempre foi tarefa simples. A campainha à


porta era inexistente e o recurso mais usual era “dar um grito” para
quem estivesse lá dentro ouvir e vir até o portão abri-lo. Quando “gri-
tar” não surtia efeito, pois deve considerar-se que a sala principal de
um estúdio de gravação possui paredes e portas grossas revestidas com
material antirruído, eu recorria a algum dos moradores da casa de
Sílvia. Em geral quem me ajudava era Thamyris, com sua voz potente.
Quando sua voz também não era suficiente, colocava-se o momento de
os pequenos da casa entrarem em ação. Fernandinho, Nêgo e Samuel

104
autonomia da arte, criatividade e difusão

disputavam pra ver quem pularia o muro para abrir o portão do outro
lado. Por fim, com o tempo surgiu a possibilidade de ligar de fora para
o telefone móvel de algum dos músicos dentro do estúdio, o que, nova-
mente, não produzia resultados imediatos, pois os números telefônicos
eram recorrentemente alterados, os aparelhos telefônicos eram empres-
tados, eu poderia não dispor do número telefônico do profissional que
ali se encontrava, simplesmente não escutavam ou ignoravam a minha
ligação, a bateria do telefone poderia estar descarregada, e assim por
diante. O meio de comunicação mais eficaz era o uso de rádios do tipo
Nextel, que eu não possuía.
As minhas chegadas se faziam frequentemente no meio da tarde,
por volta das três horas, horário em que o estúdio de fato começa a fun-
cionar. Quem costumeiramente abria o portão era Tio Rocha, ou Dr.
Rocha, ou simplesmente Felipe, como só Catra o trata. Rocha, por sua
vez, pode referir-se a ele como Negão ou Catra, mas o usual é que cha-
me-o de Wagner. Os dois são primos e trabalharam juntos no início da
carreira de Catra, logo que este deixou o grupo Caravana do Borel. Mr.
Catra e Dr. Rocha formaram assim uma dupla de MCs, como era moda
na época. Escolheram seus nomes artísticos de modo a “homenagear” a
“localidade” de onde vieram. Ambos moravam na rua Rocha Miranda,
muito próxima à rua Doutor Catrambi, no Alto da Boa Vista. Esta última
rua deu origem ao nome artístico de Catra, que adicionou o Mister, tam-
bém em voga naquele momento, enquanto Rocha acrescentou o Doutor
ao primeiro termo do nome da rua em que moravam. Beto da Caixa,
também morador da mesma área, tem seu codinome em referência à
“caixa d’água”, um reservatório da Companhia de Águas e Esgotos do
Rio de Janeiro, CEDAE, localizada nas proximidades da comunidade
onde morava, no alto da rua Doutor Catrambi.
A origem dos nomes artísticos de Catra, Rocha e Beto reflete a
relevância que possui o território na vida dos jovens funkeiros, traço
especialmente evidenciado pelos bailes funk dos anos 1990, em que a
briga violenta e lúdica colocava em relação, através do embate, galeras
de distintos lados da cidade, como pode se aferir a partir de trabalhos
produzidos em meados da referida década.1 Hoje, essa mesma lógica da

1 Herschmann (2000a, 1997); Cechetto (2003); Cunha (1997).

105
a estética funk carioca

territorialidade é recortada pelas diferentes facções e milícias a coman-


darem as distintas localidades da cidade, aspecto que será iluminado
pelos “Proibidões”, as canções funk prescritas pela polícia e que ganha-
ram especial destaque em fins da década de 1990 e inícios dos anos
2000. Estas canções serão alvo de minha análise em capítulo posterior.
Catra e Rocha, a despeito das diferenças em suas técnicas corporais,
possuem histórias de vida com pontos em comum. Felipe, uma criança
negra, foi criado, como o primo Wagner, por uma família branca, a quem
sua mãe biológica o entregou por não ter condições de manter. A mãe
de criação de Felipe já “praticamente” criara a sua mãe biológica, com
quem ele vai morar já rapaz. Rocha diz que assim teve a oportunidade
de conhecer os dois mundos: “o lado da vida boa e o lado de uma vida de
luta”. Felipe cresceu no bairro do Flamengo, Zona Sul, área privilegiada
da cidade, estudou na escola pública Senador Correa, vizinha à sua casa
e onde teve como colega um dos filhos da bem-sucedida atriz Marília
Pêra, como frisa, e praticou natação dos sete aos catorze anos no Clube
Fluminense, casa do time de futebol mais elitizado à época e conhecido
por seus traços racistas, localizado no adjacente bairro de Laranjeiras.
Rocha afirma que durante sua infância não teve “visão do preconceito” e
que só foi “entender” o que isto significava ao morar com a sua mãe bio-
lógica, decisão que tomou movido pela vontade de conhecer melhor seu
“lado verdadeiro”. Ele não se demora na explicação de como vivenciou o
preconceito, mas deixa clara a sua percepção da relação existente entre
a cor escura da pele e a pobreza, a falta de oportunidades e a vida difícil
que se desenrolava de um lado e não do outro.
Rocha, mais do que intérprete, é hoje compositor, e a conversa com
ele deixa evidente que a Sagrada Família, bem como o modo como Catra
conduz seus negócios e como cada um deles encara o funk, se distan-
cia em muito de atividades espontâneas, não programadas ou ingênuas,
como muitas vezes são caracterizadas as manifestações artísticas popu-
lares. Rocha fala explicitamente do poder de transformação da arte. De
como a estética e a conectividade substituem o político e a ideologia
na afirmação de posturas desafiadoras perante a sociedade formal. O
modo como Rocha, Catra, Kapella, WF e Jota conduzem seus passos está
estreitamente ligado a um projeto. O funk, para Rocha, é um

106
autonomia da arte, criatividade e difusão

(...) ideal... Tanto que ele invadiu tudo. A música, independente da letra,
ela é forte. Invade qualquer lugar. E eu gosto disso. Acho legal isso. Podem
vir mil barreiras, mas o funk, ele passa por todas essas barreiras. Faz parte
do Rio de Janeiro. Ele mesmo se fixou. Tô aqui. Não saio mais daqui.

Um “ideal” que é ao mesmo tempo individual e coletivo. A come-


çar pela maneira como o cerne do coletivo conduz suas atividades na
música. Gravam em conjunto, mas cada um cuida de sua carreira “indi-
vidualmente”, realizando trabalhos independentes. O modo como se
dão as parcerias musicais ilustra bem esta dinâmica. Rocha explica que
muitas vezes está escrevendo uma letra e “chega o Beto [da Caixa] e dá
uma ideia; aí o Wagner tá chegando” e dá nova sugestão. Ou Rocha está
“sem cabeça” pra finalizar uma música, chega “um amigo” e oferece uma
solução. Na hora do registro, porém, a música pertencerá a Rocha: “É
um ajudando o outro coletivamente. Mas o trabalho é ao mesmo tempo
individual, porque cada um vai ter o seu trabalho”. As parcerias podem
se dar também na hora de interpretar uma música, “fortalecendo o par-
ceiro”, como nesta música cantada por Kapella e com participações de
Mr. Catra, Dr. Rocha e Jota.
Peraí malandro, tem que ser na disciplina
Como é que tu quer ser macho se não dá moral pras minas
Coisa mais linda que Deus botou nessa terra
Quer ter paz irmão, leva ela pro edredom

É mó loucura, ela dançando só pra mim é um fato


Parece que eu tô na Arábia, eu nem saí do quarto
A música é boa, essa mina é maravilhosa
Se tiver sonhando, eu mato o corno que me acorda

Minha realidade também pode ter uísque


Avisa pro sistema que eu não vivo de alpiste
Cada um no teu estilo, cada beat uma missão
Essa aqui eu dediquei pas mulher de coração

Te pego e aperto preta


É nóis no amor preta
Te beijo na bochecha [...]2

2 “É nóis no amor”, MC Kapella, música do CD Os brutos também amam, que reúne produções
da Sagrada Família.

107
a estética funk carioca

“Parceiro” e “amigo” são categorias que ilustram relações distintas.


“Parceiro” é aquele com quem se partilha efetivamente a vida e o traba-
lho. “Amigo” é um aliado, uma pessoa que está do mesmo lado da vida,
que partilha pontos de vista em aspectos considerados cruciais. Se em
algumas ocasiões fui “parceira”, era também considerada uma “amiga”,
uma aliada na divulgação do funk.
Cada um dos membros da Sagrada Família exerce funções práticas,
muitas vezes não “artísticas”, como meio de incrementar o ganho que
obtém com a música, mas também como modo de reforçar o “coletivo”.
Nos termos de Rocha, “cada um tem que ter a sua função. Não é só can-
tar. Isso é coletividade”. Com exceção de WF, que trabalha como auxi-
liar de serviços gerais em um condomínio em Belfort Roxo, na Baixada
Fluminense, todos eles trabalham para o estúdio. Rocha é o responsável
por sua manutenção física, como faria um administrador. Kapella é o
responsável pela produção das músicas de hip-hop e eventualmente tam-
bém produz músicas de funk. Ele é a figura mais permanente na mesa de
gravação, mesmo não sendo o produtor exclusivo das músicas ali grava-
das. Jota trabalha como tecladista das produções de Catra e do estúdio.
Catra, por sua vez, mantém negócios paralelos, o que contribui para que
a engrenagem que se articula à sua volta continue em andamento.
Rocha, ao mesmo tempo
em que atribui à Catra a razão
de estarem juntos, como um
“coletivo”, a todo momento pro-
cura desfazer a excepcionalidade
do primo artista. Afirma que tal
excepcionalidade são “as pessoas”
que lhe atribuem, e que “se você
perguntar a ele se ele é o grande
astro do funk”, Catra respon-
derá negativamente. Explica que
“Wagner poderia cantar sozinho”
e não precisaria “de nenhum de
nós aí”, pois “o trabalho dele cres-
ceu e se desenvolveu” de maneira
independente. E após atingir uma

108
autonomia da arte, criatividade e difusão

“situação” mais estável em sua trajetória artística ele reuniu “os amigos
dele que gostavam também da música” para com eles “dividir o fruto” de
seu trabalho e para que “seus amigos plantem e possam colher também”.
Encerra reenfatizando que Catra poderia “sozinho” seguir sua vida, “mas
ele, por dentro, ele é isso que você está vendo: os amigos, o trabalho”.

Ouço os pés que deslizam sobre a pedra brita. O portão que dá para
a rua se abre, e vejo o rosto de Rocha com seu sorriso largo e enigmático
me cumprimentando. Sorrisos, não risos, são pouco usuais nesse con-
texto. O estilo manda que se mantenha o cenho fechado ou indiferente.
Refaço com Rocha o caminho pela área externa que nos adentra efe-
tivamente no estúdio de gravação. Passamos pela antessala de piso de
pedras. O mesmo revestimento cobre o chão do corredor que nos leva
à saleta com uma grande televisão e que dá para um pequeno banheiro,
em frente ao qual há uma velha geladeira. Atravessamos a primeira
porta à prova de som, que nos coloca no corredor que dá acesso às duas
salas do estúdio propriamente. A partir daqui tanto piso como paredes
são revestidos de um material que se assemelha à madeira, e em alguns
trechos as paredes foram grafitadas por artistas de hip-hop, trazidos por
Kapella. Na primeira sala está Buiú, o DJ mais jovem da companhia, e
Harley, também chamado de WD e irmão de WF.

109
a estética funk carioca

Os irmãos W são igualmente “parentes” de Catra. Rocha se junta a


eles. Buscam na internet uma música de “samba” que Catra lhes pediu,
talvez para produzir uma “versão”. Sigo pelo corredor até a sala princi-
pal do estúdio, a única com ar-condicionado. Catra coloca a mão em
meu ombro, me avisando que “tamo cheio de trabalho” e sugerindo que
eu “fique junto” deles. Mas logo ele desaparece.
Passa por mim um rapaz que veste uma blusa t-shirt bordô, que eu
não havia visto antes. É Naja, técnico de som e músico de pagode. Jota
lhe diz algo que não compreendo. Fala sobre “ar mona”, que entendo
como “as monas”, já que a letra s é muitas vezes pronunciada como um
r aspirado. Mas não, Jota fala sobre a harmonia, “harmôna”. Diz para
Kapella que dará trabalho “ajeitar” a música em que este mexe naquele
momento em seu computador. Kapella está sentado à sua mesa, em
frente ao novo e grande monitor de LCD, tipo widescreen, que contrasta
com o monitor imenso e arcaico que antes os atendia. Kapella me cum-
primenta: “e aí, parceirinha?”.
O trabalho de produção musical no estúdio fica ao cargo de quatro
profissionais. Kapella é MC de hip-hop e completa seu orçamento com os
ganhos advindos das músicas que produz. Como Jota, Kapella conheceu
Catra em São Paulo. E, como Jota, Kapella teve problemas com a polícia
e foi Catra quem os ajudou a deles se desembaraçar. A “prisão” é um
tema recorrente nesse universo.
Rodô malandro, já era
E é melhor se preparar pro futuro que te espera
Sua vida daqui pra frente pertence à sociedade
E você vai conhecer o inferno de verdade

Na DP você vai ver que o negócio é sério


Covardia, cela lotada isso não é mistério
Preste atenção sangue bom, tu tem que tá preparado
Pois lá não é lugar seguro pra quem tenha caguetado

Então segura a onda e aguenta o pau


Sem direito de defesa vão acabar com a sua moral
Submarino, pau-de-arara viram brincadeira
É o terror amigo, são os carrascos da cadeia

Na hora da boia vem a quentinha e a tradicional laranja


Divina sucata pois o coletivo já te manja

110
autonomia da arte, criatividade e difusão

Judaria não tem vez, o ritmo é de união


E pa aguentar tanto esculacho tem que ter disposição

Porque você rodô já era


Rodô malandro, já era
Rodô malandro, já era
Agora não é mais a brinca, o negócio é à vera

A coisa piora quando chega a hora da travessia


Presídio é um inferno, será o seu lar, o seu dia-a-dia
Logo na chegada atividade, é bom ficar esperto
Procure sua banda e o seguro é certo

Ficar no seguro é o mesmo que ser acovardado


E pelo contexto se você não sabe será esculachado
Não terá nenhum lugar em nenhuma esfera
Porque você rodô já era

Rodô malandro, já era


Rodô malandro, já era
Rodô malandro, já era
Agora não é mais a brinca, o negócio é à vera

Amontoados vivem num regime que os faz de lixo


Pra viver na cadeia amigo você tem que virar bicho
Denominadas como casas de reabilitação
A cadeia é a faculdade da marginalização

Esses lugares só hostilizam, não recuperam ninguém


A escola de bandidos chama-se FUNABEM
Eis que um dia chega a liberdade, vai encontrar tudo mudado
Muitas portas se fecharão, será discriminado

Pensamento elitizado é cruel e louvado


Ex-presidiário é inocente não é mais culpado
Ex-presidiário é inocente não é mais culpado
E o pensamento elitizado é cruel e malvado

Porque você rodô já era


Rodô malandro, já era
Rodô malandro, já era
Agora não é mais a brinca, o negócio é à vera3

3 “Rodô malandro”, de Mr. Catra.

111
a estética funk carioca

Kapella é o cérebro do estúdio. Quando adolescente, “pressionado”


pelo Rock in Rio – festival dedicado ao rock que tomou conta da cidade
no ano de 1985 – montou com colegas uma “banda de hardcore”. “O rock
acabou pegando a mente um pouco”, diz ele, corroborando com a ideia
de que o referido festival foi um “divisor de águas” para o Rock Brasil
produzido nos anos 1980 (Ribeiro, 2009).
Seu nome, que em sua grafia original – capela – é uma expressão
para a voz gravada sozinha, sem a presença de instrumentos ou bases
musicais, faz referência à voz potente e rouca que ele possui, similar à de
Catra. Sua mesa, colocada ao centro da sala de gravações, é uma espécie
de centro nervoso do local. É ali que ele centraliza, junto ao seu com-
putador, todas as ações necessárias para que as músicas sejam gravadas
de modo satisfatório, “produzindo”-as: prepara as bases – que vêm a ser
as melodias compostas por ritmos eletrônicos e feitas através de batidas
que podem ser eletrônicas ou não –, controla a afinação da voz e regula
o seu compasso com a base. Um trabalho que exige rapidez, eficiência e
muita concentração mental e auditiva, aspectos que se traduzem em sua
fala e raciocínio rápidos. É a “mente” colocada em ação.
Jota explica que o cantor da música na qual Kapella trabalha naquele
momento “não tem voz pra cantar melody, não é cantor de melody”, de
modo que se estabelece um embate entre a voz dele e o fundo musical,
a base. Digo a Jota que concordo com ele, que ao meu ouvido soavam
descompassados, na verdade não mesclavam, não combinavam, voz e
fundo musical. É então que Jota começa a definir o que recorta a música
funk enquanto gênero musical e me introduz mais propriamente em
questões relativas à criação e à criatividade. É também deste momento
em diante que Jota passa a corresponder aos meus cumprimentos.
Você não pode usar muita harmonia no funk, porque ele se desclassifica
de funk. O funk não é rico em harmonia, ele tem uma harmonia e você
tem que saber não escrachar muito a harmonia do funk.

A “harmonia” diferencia especialmente as musicalidades do funk


melody e do proibidão. O primeiro, dono de letras românticas, mesmo
sendo um subgênero mais melódico e harmônico, não pode ainda assim
ser excessivamente harmônico. Deve manter uma certa escassez, uma
“pobreza lírica e melódica” que tanto desgosto causa aos “peritos” e aos

112
autonomia da arte, criatividade e difusão

“críticos” regidos por uma “preconceituosa cartilha de música de quali-


dade”.4 Essa economia nos aspectos lírico e harmônico do funk convive
com o exagero de sua estética hiper-realista, da qual trataremos adiante,
e remetem ambos aos aspectos de contenção e exuberância que, como
mostra Santuza Naves (2000), conviveram lado a lado e marcaram a
produção de diferentes representantes da Bossa Nova. A pouca riqueza
harmônica do funk, como coloca Jota, contrasta ainda com outras de
suas manifestações. A estética corporal funk afirma, através dos objetos
materiais, uma “estética da abundância” que busca desfazer através da
aparência o contorno totalizante com o qual muitas vezes se localiza,
inclusive no próprio contexto de investigação, aqueles rotulados como
“pobres”, assunto que será retomado nos dois capítulos finais deste livro.5
A Estética Funk é definida não por um “gosto da necessidade” que,
nos termos de Bourdieu, definiria as escolhas de consumo das classes
populares, inaptas que estas seriam, de acordo com o sociólogo fran-
cês, a fazer eleições estéticas próprias e autônomas; a cultura popular,
dessa perspectiva, não passaria de um pastiche ou arremedo da cultura
hegemônica. Vale notar que Bourdieu considera o potencial subversivo
que os usos dos bens podem apresentar aos membros da classe traba-
lhadora observando um explícito desafio das classes populares ao gosto
burguês no âmbito da convivialidade produzida em torno da comida.
Assim, Bourdieu, que localiza na lógica distintiva um aspecto essencial
da organização dos gostos que separam as classes sociais, considera a
possibilidade de as classes inferiores não apenas imitarem, mas também
desafiarem a ética e o gosto hegemônicos, mesmo que em uma esfera
relativamente restrita da vida social.
Contudo, o autor não aprofunda a discussão e concede maior des-
taque ao aspecto imitativo que estaria presente na governança do gosto e
da cultura populares. A lógica distintiva não permite a Bourdieu prever
a possibilidade de ocorrer um trickle up, uma disseminação dos gostos
das camadas inferiores tal que possibilite a criação de modas a serem
usadas por grupos sociais hierarquicamente superiores, não havendo,
deste modo, espaço para a circularidade dos gostos. Diferentemente,
a ausência e a falta, que no esquema de Bourdieu conformam a única

4 Ver Herschmann (2000a, p. 223) e Vianna (1997, p. 19).


5 Tomo de empréstimo a Tassi (2009) a expressão “estética da abundância”.

113
a estética funk carioca

alternativa estética possível aos “pobres em capital cultural e econô-


mico”, surgem no funk como uma opção, uma escolha.
A parcimônia com que elementos melódicos são usados na música
funk é mais evidentemente assumida pelo funk do tipo Proibido, aquele
que, sinteticamente, enaltece através de suas letras as ações dos bandi-
dos. Nas palavras de Jota:
O Proibidão não tem harmonia, não tem melodia, é uma batida. O cara
capricha na batida de todos os jeitos que ele pode colocar em cima de uma
voz, só uma voz.

É por este motivo que aquele que canta esta variante de funk rara-
mente possui voz apropriada para cantar um melody. Foi isto que cau-
sou a inadequação de voz e base presente na música em que o produtor
Kapella trabalhava. Como o cantor não possuía em sua voz a melodia
necessária para a execução de uma música do subgênero, acabou-se
por “exagerar” na melodia da base musical, e a produção resultou dis-
sonante de seu estilo.
O modo como a voz determina o tipo de funk que se irá cantar
fica evidente também através de outro exemplo. Passados vários meses
do início do trabalho de campo, Catra começou a se fazer acompanhar
em suas performances por uma dançarina, Yani de Simone. No show
de Catra, Yani apenas dançava, mas, antes de seguir por carreira solo, a
moça posou para uma revista de nus, voltada para o público masculino,
e gravou músicas no estúdio Sagrada Família. Algum tempo depois, com
Yani já seguindo rumo próprio, Sheila, como a chamarei, participou
como dançarina de algumas performances de Catra. Como Yani, Sheila
gravou canções no estúdio e muito chamou a minha atenção a beleza
e afinação de sua voz, o que comentei em voz alta. Sheila me explicou
então que ainda pequena cantava no coro da igreja que frequentava com
sua família e Catra adicionou que ela poderia cantar qualquer coisa, ao
contrário de Yani, que só “pode” cantar Putaria.

ética e estética
Jota conta-me a sua trajetória por meio de uma história musical de vida.
Ele hoje tem cerca de 34 anos, e diz que “curte funk desde moleque”.
Depois “virou cristão” e aos doze anos “entrou para a igreja”. Jota possui

114
autonomia da arte, criatividade e difusão

uma arraigada fé em Deus, e acredita que mais do que este, foi a música,
ou melhor, um objeto musical, que o levou para a Igreja de modo a colo-
cá-lo em contato com Ele.
Quando eu vi aquilo, que eu entrei na igreja que eu vi o teclado... Vamos
dizer..., não foi nem Deus, né? Deus falou: “olha pro teclado que tu vai me
ver”. Fiquei preso com aquilo ali.

Jota possui diversos músicos em sua família, um deles é inclusive


maestro, e foi de fato a música que o manteve ligado à igreja e à Deus. Ali
ele adquiriu a sua profissão, aprendendo a tocar teclado e a cantar, até
se tornar um “músico missionário”, viajando pelo Brasil e para a África.
Trabalhou na mesma instituição religiosa dos doze aos vinte e dois anos
de idade, recebendo “ordens” e salário. Gostava do que fazia, mas com o
passar do tempo começou a questionar a sua atividade na igreja: “você
vai ficando velho e você se pergunta se você quer trabalhar pros outros
ou se você quer ser patrão”.
Hoje, hoje, hoje sou patrão
Maluco pra ter o que eu tenho
Tem que ter disposição
Tá ligado...?!

Protejo minha favela com unhas e dentes


Pode vir quem for que aqui a chapa é quente
Protejo minha favela com unhas e dentes
Pode vir quem for que aqui a chapa é quente

Mas eu não posso esculachar


Só somar e dividir
E eu luto pela favela
E não vou sair daqui

Desde pequenininho
Eu vivi no meio disso
E pela hierarquia
Eu assumi o compromisso

Essa missão tenho que cumprir


Não posso abandonar
Caiu pra dentro do problema se tentar vir me tomar
Caiu pra dentro do problema se tentar vir me tomar6

6 “Hoje sou patrão”, de MC Jota.

115
a estética funk carioca

Ao deixar a igreja, Jota passa a viver do ganho que obtém com a


música, além dos trabalhos ocasionais a que recorre para reforçar seu
orçamento. Tocava com uma banda de “funk music, de fora mêmo” e
depois “Música Popular Brasileira”: “Djavan, Tim Maia, Ed Motta”. Ao
mesmo tempo “fazia bico de segurança”. Passados alguns anos, Jota decide
que cantará funk carioca: “Eu sempre curti funk, mas eu sou músico. Eu
tinha que trabalhar com origens musicais, com música”. Assim, se o con-
tatava um grupo de pagode precisando de um tecladista, ele aceitava. O
relevante para Jota era trabalhar como um músico profissional.
A decisão de trabalhar com funk carioca causa certo espanto em
sua mãe, pois esta entende que o filho “tem musicalidade demais” para
tocar um ritmo que lhe parecia pouco instigante artisticamente. Jota res-
ponde à mãe que acha o funk “musical” e que estava decidido a “viver
no caminho do underground”. Em seguida ele se muda para São Paulo,
onde vive por três anos e trabalha como “back vocal” de uma banda de
hip-hop. Mas continuava a escrever suas “letras de funk”, afirmando que
“nunca quis gravar um CD de hip-hop”.
O que move Jota em direção a um ritmo e o afasta do outro rela-
ciona antes aspectos de ressonância cultural do que puramente de quali-
dade musical e melódica. Ao perguntar-lhe qual a diferença entre escre-
ver uma letra de funk e uma letra de hip-hop, ele estabelece uma relação
direta e imediata entre ética e estética: “Você não pode pegar um hip-hop
e ficar lá, lá, lá, lá, igual o funk faz”. Pergunto-lhe “como assim lá, lá, lá,
lá?”, e ele responde que não é possível cantar no hip-hop “uma melodia
tão simples assim”: “ela quer/ela dá/ ela quer/ela quer dar”, exemplifi-
cando com a passagem de uma música funk que canta Catra. “Isso aí
não tem no hip-hop”. Pergunto se isso não pode ocorrer no hip-hop:
Não [é que não pode]. Não existe isso. O hip-hop já vem com mais outras
influências. Do jazz, do RB [rhythm and blues] contemporâneo. A galera já
é mais tah, sou do hip-hop. A galera do hip-hop já é mais metida. Não sei
o que passa pela cabeça, não sei se é porque a música é mais rica. [É um]
estilo musical que implica a alta sociedade. Você não vê a premiação da
música? A maioria dos caras que tão ganhando são os rappers. As cantoras
de rhythm and blues que cantam hip-hop também [são premiadas]. Então
o rap tem isso aí. Eu não vou falar contra o rap mas não é o que eu quero.

116
autonomia da arte, criatividade e difusão

Os hip-hoppers se julgariam “superiores” pelo fato de produzirem


uma música “mais rica”, tanto por suas influências musicais – “o jazz e o
rhythm and blues contemporâneo” – quanto pelo fato de sua matriz nor-
te-americana movimentar altas cifras na indústria fonográfica global. O
hip-hop é assim, para Jota, o ritmo dos poderosos.
O mesmo vale para o MC Black Ney, que nesta tarde estava no estú-
dio tentando reatar o elo desfeito com Catra, aparentemente por negli-
gência do próprio Black Ney. Nascido Waldnei Bispo, na Bahia, ele se
utilizou do termo Black ao criar seu nome artístico por ele ser “da cor”.
Black Ney inicia sua carreira em São Paulo, como cantor de hip-hop, e
ao chegar no Rio de Janeiro nota que o ritmo não possui muita pene-
tração: “não era bem aceito”. Ele contrapõe funk e hip-hop ao delinear
este último em termos que caracterizam a chamada “indústria do jabá”,
através da qual músicas e estilos musicais alcançam grande circulação e
sucesso comercial graças à pressão do grande capital.
Pra você seguir no hip-hop tem que ter um investimento muito forte:
gravadora, um empresário sinistro bancando a parada toda. Em qual-
quer lugar do Brasil.

Funk carioca e hip-hop nacional possuem pontos de contato, parti-


lhando universos musicais e contextos sociais, como os músicos que pas-
sam pelo estúdio da Sagrada Família permitem notar.7 Ambos cantam
raps, mas rappers são chamados apenas os cantores de hip-hop, como
Kapella. Catra, por sua vez, é um MC, terminologia que se aplica ao can-
tor de funk. Ainda assim grava com constância músicas de hip-hop.
Entretanto, a percepção que um e outro ritmo suscita é distinta. No
Brasil, continua Jota, o hip-hop é “cego”, “puxado”, não possui a autono-
mia que conduz o seu ritmo de filiação: “Ele [o hip-hop] não vai igual
ao funk. Solta que eu sou o funk. Eu entro em qualquer lugar”. Jota,
como Rocha, está interessado na comunicação que o funk produz e lhe

7 O documentário L.A.P.A. mostra essa comunicação entre os mundos do hip-hop e do funk no


Rio de Janeiro através do trânsito que fazem os artistas. O MC Funkero, que participa do filme,
já se autodenominou MC Funk na época em que participava mais ativamente da cena funk.
Sua mulher, Lenora, já trabalhou como produtora dos shows de Catra e na tarde em que na
casa de Sílvia eram relatadas as peripécias da família Catra, no capítulo anterior, ela aguardava
pelo marido, que se encontrava no estúdio.

117
a estética funk carioca

permite estabelecer. E como o parceiro, Jota vê no funk uma autonomia


que não encontra em outros ritmos musicais:
O rap tem barreiras. Não sei por que, mas tem. Parece que a galera não
curte legal a ponto de ter bailes de hip-hop e encher igual ao funk, enten-
deu? Isso que eu tô te falando: o funk tá dominando os espaços das outras
músicas. O hip-hop tá perdendo espaço. Hip-hop brasileiro, nacional, já
não tinha espaço. Agora com o funk explodindo forte, tá acabando mais
ainda o espaço deles.

Acrescenta que não é possível um músico viver no Brasil dos ganhos


obtidos com o hip-hop:
Quem vive? Racionais e MV Bill só?! Marcelo D2?! E os underground?
Kapella é underground e vive de produção.

A autonomia que emerge das falas de Jota, Rocha e Black Ney rela-
ciona-se à independência que o funk possui da indústria fonográfica
formal, notada desde os seus momentos de fundação e se afina com as
exigências postas pela reestruturação da indústria fonográfica (Vianna
1988; Herschmann 2007). Mas, em vez de me ater a questões merca-
dológicas, me interessa seguir pela pista deixada por meus amigos em
campo e elaborar sobre a estreita vinculação que se estabelece no funk
entre arte, criatividade, difusão e circulação. Padrão estilístico e circuito
de consumo se equiparam. Continua Jota:
O funk precisa de harmonia, mas você não pode exagerar muito. Tem um
padrão. O funk tem um padrão, você não pode viajar. O padrão seria o que
vai tocar num circuito que já existe, favela, boate, se não você vai ficar com
um funk pra ficar escutando dentro de casa. Não vai ser comercializável.

A criação coloca em relação a produção e o consumo, pois “tudo


tem um circuito”, e é este “circuito” por onde as músicas funk circulam
que dará o “padrão” de variação para a sua harmonia bem como o “parâ-
metro” para a construção das letras das canções. É a audiência, a recep-
ção que deverá ser atendida.
O exercício que me parece relevante realizar é o de problematizar
como pode ser pensada a autonomia da criação artística em contextos
modernos que escapem à oposição indivíduo versus sociedade. Veremos
que a “autonomia da arte”, como delineada por Jota, Rocha, Black Ney
e outros artistas funk, é muito diferente da que encontramos nas artes

118
autonomia da arte, criatividade e difusão

visuais moderna e contemporânea, pois, ao mesmo tempo em que pres-


cinde do “gênio criativo”, coloca em evidência a relevância que possui
a individualidade para a criatividade. A definição de artista ocidental
é exemplar do modo como é conceitualizada a pessoa individual no
Ocidente e é caracterizada pela liberdade total de invenção que possui-
ria o criador único e soberano da obra de arte, proprietário exclusivo
de algo que pertence ao domínio do extraordinário. No ambiente funk,
diferentemente, a arte é autônoma, mas não o artista. Além disso, de
acordo com o artista funk, arte, para ser entendida enquanto tal, precisa
circular, ser consumida e romper a barreira do extraordinário.
Esse autonomia do fazer artístico, vinculada a seu caráter não
extraordinário e sua qualidade de circulação, poderia ser creditada à
especificidade da música enquanto expressão artística, pois “rompe
barreiras”, como é reiteradamente afirmado pelos artistas com os quais
trabalhei. Entretanto, é essa mesma música que faz o artista se subme-
ter a ela, e não o contrário. Como coloca Jota, “você tem que andar
com o funk” porque a sua “cadência” “muda”. Diferentemente do autor
moderno que constrói um texto semanticamente fechado (Foucault,
1979; Barthes, 1991), no funk é a arte enquanto vida que arrasta o
artista. Se esta ideia pode desagradar aos mais puristas, que veem na arte
o papel fundamental de transcender as amarras da sociedade, ou aqueles
que, através de uma concepção marxista do mercado, opõem produ-
ção e consumo, ela parece coerente em um ambiente em que a invenção
não é apenas balizada pela tradição, mas limitada e/ou estimulada pela
audiência e pela recepção.
A ideia de uma “arte pela arte” tem como referência fundamental
a definição do artista como feita por Kant. De um lado, as atividades
artísticas são descritas em contraposição às desempenhadas pelo arte-
são, que “simplesmente segue regras”, ao passo que o artista, mesmo
seguindo-as adicionaria a “espontaneidade” essencial à beleza e à pró-
pria definição de arte (Boden, 2005, p. 479). De outro, as belas artes
em Kant se diferenciariam da natureza por serem “produto da liber-
dade humana”. Em Kant, mesmo que o artista siga regras, suas pro-
duções devem parecer “espontâneas” (Crawford, 2005, p. 66). Além
disso, as elaborações do filósofo alemão sobre o “gênio criativo”, mesmo
que considerem a necessidade de esforço e treinamento para o seu

119
a estética funk carioca

desenvolvimento, ou que a criação imaginativa muitas vezes deva se


submeter ao julgamento disciplinado, promulgou o romântico mito do
gênio como “abençoado pela extraordinária e inexplicável faculdade da
criatividade” (Boden, 2005, p. 480). A “liberdade” descreve o “gênio
criativo”, bem como a própria concepção de arte, legados da tradição
kantiana que exigem uma definição de pessoa individual compatível e
afinada com aquela desenvolvida no Ocidente Moderno.
Louis Dumont delineia o individualismo ocidental em contraste
com o sistema de castas indiano e com as sociedades tradicionais.
Enquanto nestas “o acento incide sobre a sociedade em seu conjunto”,
em que ordem e hierarquia são valores máximos e “cada homem parti-
cular deve contribuir em seu lugar para a ordem global”, nas sociedades
modernas “o ser humano é o homem ‘elementar’, indivisível”, “a medida
de todas as coisas”, e a sociedade apenas “o meio” para a viabilização
de seu “fim”, que seria, em última instância, a vida particular de cada
ser individual (Dumont, 1992, p. 57). Rapport e Overing, por sua vez,
destacam aspectos similares na descrição do indivíduo moderno – “o
essencial valor e dignidade do indivíduo humano, sua autonomia moral
e intelectual, sua racionalidade e autoconhecimento, espiritualidade,
direito a privacidade, soberania e autodesenvolvimento, e sua voluntá-
ria adesão a uma sociedade, a um mercado e a um Estado” (Rapport
& Overing, 2000, p. 178) – mas criticam Dumont, argumentando que
este acaba por reificar o individualismo como valor universal. A noção
de “indivíduo fora do mundo” forjada pelo etnólogo francês denotaria
a existência de um exemplar do indivíduo moderno mesmo em uma
sociedade holista, como a de castas (Rapport & Overing, 2000, p.
182). Diferentemente, Rapport & Overing defendem a universalidade
da individualidade, definida pela atribuição e localização da agência
em cada ser humano individual e não na sociedade ou na cultura. As
agências e consciências individuais, e não a moderna liberdade indivi-
dual, oferecem perspectivas particulares sobre o mundo, diferenciando
os homens entre si. Os autores propõem assim uma noção de indivíduo
não durkheimiana que renega a prioridade do social.
O funk produz uma noção de autoria que, ao mesmo tempo em
que coloca em questão a propriedade individual [ownership], não evo-
lui, do ponto de vista do seu produtor, para noções de feições mais

120
autonomia da arte, criatividade e difusão

pós-estruturalistas, como a “morte do autor” (Barthes, 1991) ou o ano-


nimato e o murmúrio (Foucault, 1979, p. 160). O funk nos permitirá
“pensar a criatividade individual e a autonomia pessoal juntas com a vida
em sociedade”, em vez de “projetar o poder de criatividade para fora da
sociedade” (Lagrou, 1997, p. 47). Este último movimento é mais próprio
do artista ocidental que sumariza em sua pessoa a sinonímia que o indi-
víduo moderno promove entre coletividade e coerção, como já mostrara
Clastres (2003). Veremos que será “a sociedade” a ser exportada para fora
do coletivo funk, como ficará mais evidente a partir do quarto capítulo.

a lógica criativa e a não proeminência da palavra


Chego ao estúdio no horário de costume, e quem abre a porta da rua é
Das 7, artista recém agregado ao coletivo. Na sala principal, Kapella está
sentado à mesa do computador e Rocha está deitado sobre o colchão de
inflar acomodado ao centro da sala. Seu corpo está envolvido desde os
pés por um lençol que se enrola sobre sua cabeça como uma touca, dei-
xando somente seu rosto de fora. Eu me pergunto como ele conseguiu
fazer aquilo. Estão todos cansados, dizem. Ontem foi “dia de puteiro”:
estiveram na inauguração de “uma termas” no Centro da Cidade onde
Catra fez um show. As tardes após estas noitadas – que ocorrem geral-
mente no início da semana e se estendem pela madrugada adentro, pois
após o show Catra permanece com seu “bonde” aproveitando as ame-
nidades que os “cabarés” oferecem – são marcadas ora por cansaço ora
pela excitação com os momentos que vivenciaram e relembram.
Eu havia marcado um encontro com Sandro no estúdio, mas não
tinha certeza se ele viria. Como as visitas à casa e ao estúdio eram inva-
riavelmente produtivas, independentemente da questão específica que
eu tivesse intenção de explorar, eu não estava exatamente preocupada
com a sua chegada. Decorridos dezesseis meses de campo, eu já apren-
dera que o conhecimento objetivo que eu poderia estar buscando, a
pergunta que eu trazia em minha “mente”, raramente me era entregue,
respondida, como eu planejara. Mas desta vez tudo deu certo.
Catra adentra o estúdio e fala em tom alegre e suave: “E aí, meu
povo?”. Em seguida se mostra furioso. Sílvia saiu e levou a chave de casa.
Ele precisa se trocar, pois segue para o município de Guapimirim para

121
a estética funk carioca

fazer a campanha do Dr. Eduardo, candidato a vereador que, apesar do


doutor que acompanha seu nome, não é um MC:
O filho do seu..., do doutor Eduardo, não teve aí não? Vou até Guapimirim.
Puta que o pariu...! Sílvia é mó vacilona. Vai à praia e deixa a porra do tele-
fone desligado. O bagulho é daqui a pouco, tenho que trocar de roupa.

Me dou conta de como ele fala rápido, e ainda arfa graças ao cigarro
que fuma. A voz de Sandro, de uma potência que só os DJs possuem, me
deixa ainda mais descentrada. Mas recobro o prumo.
Catra está chegando da praia e pela primeira vez acho-o com cara
de rico, de “playboy fudido” como ele me dissera. Sua roupa não é em
si suficiente para me dizer porque o vejo deste modo. A informação
está na sutileza da diferença em relação às roupas que ele usualmente
veste. Traja uma blusa t-shirt branca relativamente comprida e ampla,
cobrindo os quadris, mas não oversized como as blusas da Manos, a grife
paulista que o patrocina, produtora de roupas no estilo hip-hop, de cores
fortes e estampas marcantes. A blusa que traja é estampada por uma
grande imagem, que cobre boa parte da sua frente, mas os desenhos e a
escrita em letra corrida, feitos de um traço fino e em tom de um cinza
meio claro, produzem um efeito de fading, em tom de preto esmaecido,
como se já bem desbotado pelo uso e pelo tempo. Ele veste bermudas de
microfibra estampada por desenho abstrato, em tons de marinho, verde
bandeira e branco, e calça um par de sandálias de dedo Havaianas. Não
usa óculos de sol, nem cordões, e traz um único anel no dedo anelar
direito, em ouro amarelo, com um reluzente cabochão engastado. Catra
parece mais magro, e a sua blusa t-shirt não o deixa nem com o look de
hip-hopper, como usualmente se apresenta, nem com o ar de pagodeiro
como o vimos na passagem de som da Fundição Progresso.
Ele me pergunta se eu “trouxe a música”. Na última vez em que eu
estivera no estúdio eles tentavam baixar a canção “O meu amor”, do
musical A ópera do malandro, com letra de Chico Buarque e interpre-
tada por Marieta Severo e Elba Ramalho. Sabe-se lá por que não con-
seguiram fazer o download, mas o que me parecera interessante foi o
fato de somente Catra e eu conhecermos a música que ele buscava. E
esta não era apenas uma questão geracional, já que Rocha, da mesma
faixa etária que a nossa, também desconhecia a música. Era, talvez, uma
questão de formação e circuito.

122
autonomia da arte, criatividade e difusão

Entrego-lhe o pen drive com a música, ele o repassa para Sandro, que
o “espeta” no computador. O computador do estúdio está configurado
para receber quatro HDs externos diferentes: o de Kapella, o de Sandro,
o de Buiú e o de Ratinho, funcionando como quatro diferentes compu-
tadores. Cada um deles chega e conecta o seu equipamento portátil, ou
“espeta” o seu pen drive para alimentar o seu acervo de sonoridades.
“Se liga na letra, Sandrinho. Esquece a música e se liga na letra”,
orienta Catra. Antes que a música se inicie eu falo que ela tem um ins-
trumental bem leve, e ele diz que “então essa é outra [versão]”, pois a
que conhece “tem um sax forte”, e cantarola o som do sax. Ele não tinha
certeza quanto às intérpretes, pois afirmara, então, que a canção era
cantada por Tânia Alves, o que eu lhe disse saber que não era verdade,
mas acertou em cheio quanto à sua musicalidade. A música começa
a tocar e entra um sax que eu reconheço ser importante, e justifico o
meu equívoco dizendo que pareço estar tão acostumada com o funk
que o referido instrumental me parecera muito leve. Ficamos ouvindo.
Catra fala agora para Rocha que ele preste atenção na letra, notando
como ela é “sensual” e “erótica”, e Rocha concorda. Pergunto a Catra
se ele fará uma paródia da música, e ele responde negativamente. Diz
que será como é “no original”. Catra parece querer mostrar que funk e
MPB não estão tão distantes assim, e que a sensualidade nas letras não é
privilégio do funk, como Rodrigo Faour mostra em seu História sexual
da MPB (2006). A música, a princípio, seria cantada por Yani, o que
acabou não acontecendo, talvez pelo fato de sua voz, como o próprio
Catra me diria “só se adequar à putaria”.
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca
Quando me beija a boca minha pele toda fica arrepiada
E me beija com calma e fundo até minha alma se sentir beijada, ai [...]8

Catra pede a Sandro que me mostre as últimas produções que


realizou, dentre elas a música que gravou em seu estúdio com Afrika
Bambaataa, um dos pais da música eletrônica que originou o funk
carioca, como o próprio Catra afirmara em outra ocasião:

8 “O meu amor”, de Chico Buarque.

123
a estética funk carioca

A gente veio do miami bass, que é originário do techno pop, que é o início
da música eletrônica, o Kraftwerk. Porque tudo começou em Stuttgart, e
veio pra cá pro Brasil como música eletrônica. Entrou com aquele suin-
gue novo e juntou naquele beat eletrônico. [Mas] passou primeiro pelo
Estados Unidos: Run DMC, Soulsonic Force, Afrika Bambaataa, que fize-
ram o miami bass e o eletro funk, tá ligado? E veio para o Brasil. No Brasil
a gente ficou vários anos dependendo da base dos gringos pra tocar.

Aquela não foi a primeira vez do DJ nova-iorquino no Brasil. Catra


fizera a abertura de seu show na Fundição Progresso, a casa de espetácu-
los na Lapa, no Centro do Rio de Janeiro. O MC carioca cantou imedia-
tamente antes do artista norte-americano entrar e foi antecedido pelos
rappers BNegão e Shawlin. Catra era o único funkeiro naquela noite e se
apresentara como tal, repetindo o roteiro e repertório musical de seus
shows, acompanhado das performances eróticas da Mulher Filé, a dan-
çarina Yani de Simone.
Conversamos sobre cada uma das produções que Sandro repassa e
logo Sílvia chega acompanhada de Thamyris e Cíntia, fazendo a cara de
espanto que repete a cada vez que me vê no estúdio, rodeada somente
por homens. Ela costumava dizer que não entendia como eu tolerava o
“cheiro de chulé” que, segundo ela, ficava naquela sala. E a verdade é que
era no abrigo de sua casa e da companhia feminina que eu me refugiava
quando já cansada daquele mundo puramente masculino e de música e
vozes tão altas. Antes de sair, Catra pede a Sandro que lhe grave um CD
com as novas músicas, para ir “escutando no carro”. Eu peço a Sandro
que grave um para mim também e Kapella pede a Catra que lhe deixe
o cigarro que traz entre os dedos. Fala de modo tão engraçado que o
próprio Catra ri e lhe passa o fumo. Eu fico com Sandrinho. A conversa
em torno de seu trabalho de produção musical rende muito e esclarece
as questões relativas à criação levantadas por Jota.

Sandrinho, hoje com 33 anos, é o DJ número um da “firma”. Trabalha


com Catra desde 2000, com exceção do período entre os anos de 2005
e 2008, quando Edgar assumiu o seu posto. Catra e Sandro foram apre-
sentados por um amigo comum, um barbeiro que cortava o cabelo de
ambos em um pequeno salão nas imediações do Morro do Borel, onde
Sandro nasceu e foi criado e por onde Catra transitava. Sandro enfatiza
que jamais fez qualquer curso de DJ e aprendeu o seu ofício observando

124
autonomia da arte, criatividade e difusão

o irmão mais velho, que era também disc-jóquei. Sandro começou a dis-
cotecar aos quinze anos de idade, e hoje concilia o trabalho com Mr.
Catra com a carreira independente que lhe garante sólida presença na
Europa. Ele afirma que fez um trabalho pioneiro, abrindo caminho para
a penetração de outros DJs de funk carioca, que hoje fazem turnês bia-
nuais pelo velho continente, como o já mencionado Edgar.
Conversamos sobre a música “Olha a vibe”, recém produzida por
ele, e a primeira constatação a que chego é que a noção de “canção”, no
sentido de uma composição musical, popular ou erudita, para ser “can-
tada”, vai se tornando inválida para designar as produções funk.9 Rocha
já antecipara esta ideia, ao defender que o funk, hoje, depois do surgi-
mento das “montagens”, não permite mais letras longas, como o próprio
Jota falara, ao afirmar que o hip-hop não pode abarcar melodia e letras
tão simples como o funk faz. O que Sandro fará, entretanto, será manter
a simplicidade da letra, na verdade excluindo-a e transformando pala-
vras e fraseados em som, de modo a produzir uma longa “montagem”
funk altamente rica em conteúdo melódico, e ainda assim se manter fiel
ao ritmo musical no qual se engaja.

9 A discussão em torno do “fim da canção” não é nova e foi suscitada justamente pela potência
do rap. O pontapé inicial do debate teria sido dado por Chico Buarque, que em entrevista ao
Jornal Folha de São Paulo disse ver no rap uma forma de “negação da canção” (<http://www.
chicobuarque.com.br/texto/mestre.asp?pg=entrevistas/entre_fsp_261204c.htm>). Buarque
teria sido inspirado pela crítico José Carlos Tinhorão, que por sua vez afirmara que o rap viera
“restaurar a música da palavra” (apud Barros e Silva 2009). Por fim, José Miguel Wisnik
argumenta que já chamara atenção para a “grande novidade” que significou o rap no cenário
da música popular nacional (Wisnik, 2004, p. 319-333).

125
a estética funk carioca

Começamos o processo de exegese da música. Mesmo seguindo por


uma abordagem conceitual que questiona o lugar que a palavra pode
possuir no processo de extração de sentido, intrigada pelo significado
que poderia possuir sua letra, que a mim parecera enigmática, incorro
no vício produzido pela vertente antropológica fiel à proeminência da
linguagem e inicio a minha investigação com uma curiosidade silen-
ciosa sobre aquele que seria seu sentido semântico. O que me diriam
aquelas “categorias nativas”? Esta mesma dúvida me guiara a cada vez
que eu me colocara a infrutífera missão de traduzir os “cantos nativos”,
projeto que surtira efeitos em etnografias de contextos amazônicos.10
Não pretendo afirmar que as palavras não agem ou que a letra das
músicas não possui significado nem conexão com o social e a reali-
dade. Mas o que se afigura é que a agência do som parece ultrapassar
a das palavras. Além disso, existe uma comunicação que só se estabe-
lece para os iniciados e que possui códigos em vários registros, e não
somente o linguístico. A definição do estilo musical funk reside não
em seu conteúdo mas em sua forma, como mostrou Gonçalves para o
cordel (2007). É o ritmo e a melodia que definem o pertencimento da
música ao estilo funk e não o conteúdo de suas letras. Este traço certa-
mente contribuiu para que uma tradução efetiva das letras das músicas
não tivesse sido possível e a exegese resultou do próprio processo de
imersão no campo e do extenso tempo de investigação. Pois o fato de
partilharmos a mesma língua já havia me mostrado que, se os termos
linguísticos poderiam não possuir o mesmo significado, não eram fun-
damentalmente as questões de ordem linguística que poderiam ilumi-
nar o desvendamento que eu fazia da sabedoria nativa.
Reproduzo a letra abaixo. Tentar interpretá-la já nos coloca no
caminho que aqui antecipo.
Olha a vibe me’irmão!
130 BPM
[Hey, hey, hey]

Vamo começá do jeito certo


Do jeito que tem que ser!
Aqui tá proibido! Tá proibido! Tá proibido!

10 Ver como exemplo Vidal e Lopes (1992).

126
autonomia da arte, criatividade e difusão

[Êta pô!]
Atenção, atenção!
130 BPM
[A pedido, a pedido]
[A pedido, a pedido]
Olha a vibe me’irmão!
[Ap, ap, a pedido]
Atenção, atenção!
Vamo comecá do jeito certo
Do jeito que tem que ser!
Aqui tá proibido! Tá proibido! Tá proibido!
Olha a vibe me’irmão!
Êta pô!
[Que isso. Como é que é o bagulho?]

[Êta pô!]
[A-a-a-a-a-a, à pedido]
[A pedido, a pedido]
Olha a vibe me’irmão!
[A pedido, a pedido, a pedido]

Para tudo
Vamo comecá do jeito certo
Do jeito que tem que ser!
Aqui tá proibido! Tá proibido!11

Rindo de minha pergunta sobre quem teria tido a “ideia” que ori-
ginou a música, Sandro me responde que “não teve ideia nenhuma” e
repassa comigo os procedimentos que tomou e lhe permitiram originá-la.
Chama assim atenção para o lugar que o processo de criação artística
possui na compreensão dos mecanismos que regem a criatividade, como
problematizado recentemente em dois diferentes trabalhos.
Matthew Rampley (1998), especialmente interessado na criação
artística, busca uma alternativa para a apreensão e definição de criati-
vidade que escape às definições kantianas de arte como pertencente ao
domínio do extraordinário e de “gênio criativo”, persona soberana de
toda fonte de criação. Rampley se volta para a teoria do “acompanha-
mento de regras” [rule-following], como elaborada por Wittgenstein,

11 “Olha a vibe”, de Mr. Catra e produção de DJ Sandrinho.

127
a estética funk carioca

que rompe com a noção de que “com as regras o sistema continua um


dado”. As regras, como as placas de sinalização, “indicam uma direção
mas não mapeiam todos os passos do caminho”, como não contêm o
lugar a que o viajante, o jogador ou o artista criativo chegará. Seguir
regras tampouco significa que “todas as aplicações da fórmula estão pre-
vistas ou contidas pela fórmula em si”. É no próprio processo de criação
que o artista, ao se deparar com cada um dos limites, encontrará saídas
e adotará ou não as regras do jogo: o “processo de seguir regras é a fonte
de criatividade” (Rampley, 1998, p. 272-275).
Ingold e Hallam (2007) estão interessados na criatividade de modo
amplo, e não apenas em como a mesma poderia ser conceitualizada em
contextos artísticos. A ênfase recai sobre a improvisação e sobre o modo
como o processo criativo surge como o caminho que se toma em busca
de soluções muitas vezes cotidianas. Ingold (2007), em particular, se
apoia na filosofia de Bergson de modo a desvincular a criatividade da
inovação e do novo – uma associação estabelecida no pensamento oci-
dental – e dar destaque à improvisação como “generativa da forma”. A
criatividade residiria no “projeto de manter a vida acontecendo” [keep
life going], em contraste com uma visão “combinatória da criatividade”, a
geração infinita de novidades através do rearranjo de elementos preexis-
tentes subjacente à noção lévi-straussiana da mente criativa como uma
bricoleuse (Ingold, 2007, p. 45-48).
Logo que voltou a trabalhar com Catra, no início daquele ano de
2008, Sandro pediu a Sabrina, então produtora dos eventos do MC, a gra-
vação de algum “show do Negão”. Sabrina lhe passou então a reprodução
somente da voz de Catra, à capela, retirada do registro de um show que
originaria um DVD ao vivo. Sandro diz que queria produzir “novida-
des” para o cantor, mas não lhe interessava uma voz “de estúdio”, pois ao
vivo “você pega aquela vibe do público”. A vibe é a vibração, a energia,
algo similar ao que já foi chamado de “astral”, à qual Catra se referia,
falando com o público, entre uma e outra música: “olha a vibe”, “sente a
vibe”. O “do jeito que tem que ser” foi retirado da introdução que Catra
faz recorrentemente ao início de seus shows, antes de entoar o louvor a
Deus: “Pra começar do jeito certo! Do jeito que tem que ser! O Senhor é
meu pastor e nada me faltará!”. O “tá proibido”, por sua vez, é proferido
no momento da ode à maconha. Sandro então “meditou” e separou as

128
autonomia da arte, criatividade e difusão

frases que queria usar. Fez também a base, um “corpo da música todo
eletrônico”, com samplers, sons tomados de empréstimo ao house.
Em seguida, Sandro colocou sobre a base de house, beats de funk,
bem como as vozes funk, “mais cantadas, mais suingadas, mais meló-
dicas” em contraposição à voz “mais sampleada” do house. A esco-
lha do house não é aleatória. Ocorre pelo fato de as músicas deste
ritmo possuírem a mesma “velocidade” que o funk, as mesmas bati-
das por minuto, em torno de 129 e 130 BPMs, dependendo do produ-
tor.12 Algumas produções de hip-hop também podem ser sampleadas
e incorporadas ao funk. Catra, quando da visita de um “DJ de fora”,
incorporou a base feita a partir do sampler de uma música do rapper
norte-americano Jay-Z a uma música sua funk. Conseguiu fazer isso,
explica Sandro, porque a música do norte-americano possui 65 BPMs
de velocidade, a metade das 130 BPMs que possui o funk, permitindo
assim o casamento de um e outro ritmo em uma mesma música funk.
Voltando à “Olha a vibe”, Sandro decide então “brincar” com a simi-
laridade e a diferença. A diferença com que as vozes são trabalhadas
em um e outro ritmo é presentificada pela voz cantada de Catra. Esta é
“suingada” e “melódica”, em contraste com as vozes “mais sampleadas”
do house. E com a fala e a voz de Catra são afirmadas as equivalências de
velocidades que possuem os ritmos: “130 BPM!”. A diferença na cadência,
no beat do house, que “é aquela coisa reta, que não tem virada” é sobre-
posta pelas “viradas loucas” do funk, que “vai, volta, vai, termina, volta”.
Sandro vibra com sua criação: “Parece uma escola de samba
entrando na avenida!”. Logo que Catra e Sandro começaram a traba-
lhar, ainda em 2000, o MC teria lhe dito que gostava de suas músicas
com muita “percussão”, algo incomum na época, o que levou Sandro a
perguntar se Catra era “macumbeiro”. Ao provocar Catra com a sua per-
gunta, pois ser chamado de “macumbeiro” nesse contexto pode ser uma
ofensa, Sandro denotava o seu estranhamento com a solicitação de Catra
para inserir elementos percussivos na música funk. Gostar de “batuque”
parecia-lhe incomum entre funkeiros e faria mais sentido entre aqueles

12 A velocidade das músicas funk varia de 129 a 130 BPMs, de acordo com o profissional que rea-
liza a produção. Sandro defende a unificação das velocidades para 130 BPM de modo a facilitar
o trabalho do DJ, tanto no momento da produção musical no estúdio, como nas mixagens
feitas ao vivo nas apresentações em casas noturnas.

129
a estética funk carioca

próximos do universo da Umbanda. Hoje, Sandro concorda com Catra


que o funk é um “samba eletrônico” e, se isto é verdade, a “Olha a vibe”,
além de homenagear a afirmação de Catra, é uma mostra convincente
do modo como sua porção eletrônica permite ao ritmo inovar e a certo
modo reinventar tradições: “A parada tem som de samba, não adianta.
Mas a marcação, a cadência que a música tem é eletrônica”, diz Sandro.
A letra da música, por sua vez, tem igualmente significado musical,
melódico, e não exatamente de conteúdo semântico. As palavras e os
fraseados valem como mais um som, um instrumento musical. Este é
o modo através do qual Catra lida muitas vezes com sua voz, como um
instrumento musical sem o qual, afirma, não seria ele mesmo: não seria
Mr. Catra, nem Wagner Domingues da Costa, nem Negão. Seria outra
pessoa. O que Sandro está fazendo é assumir de modo mais evidente a
musicalização da palavra falada, já contida no modo como são engen-
drados muitos dos sons que recheiam as “bases” das músicas funk.
Os diferentes sons que uma palavra como “chão” pode produzir,
por meio da aplicação de distintos “efeitos”, reforçam a lógica que trans-
forma a palavra em som. O “reverbe” reproduz a palavra como um eco,
reverbera o som. O “reverse” “reverte” a palavra, como diz Buiú, inver-
tendo-a de traz pra frente, e transforma-a no som “ôj”. O “delay” igual-
mente reproduz a palavra como um eco, mas indica através da variação
de tom um afastamento físico do som. Já o som “tchow” deriva igual-
mente de “chão”, mas chega a esta forma não através da aplicação de
efeitos. Neste caso, explica Buiú, a palavra chão é “cortada pela metade”,
gerando assim o som “tch”, que é colocado em “sequência” até ser distor-
cido pela velocidade da música: “tch, tch, tch, tchow”.
Outra manifestação exemplar da tendência que indico é dada pelo
beatbox. Estruturado como um loop – um ciclo de uma frase musical,
com começo, meio e fim, que se repete do início ao término da música,
continuamente, em um intervalo determinado de tempo que dura apenas
alguns segundos – o beatbox especificamente é produzido pela voz que
reproduz o som de um ou mais instrumentos de percussão. Entretanto,
os loops podem ser produzidos a partir de qualquer som: voz, instru-
mentos de percussão, sons sampleados, isto é, apropriados de outras
produções e convertidos em timbres eletrônicos através do sampler.

130
autonomia da arte, criatividade e difusão

Os beatbox produzidos pela voz de Catra estão presentes em grande


parte das “bases” de músicas funk. A “base”, como o nome diz, consiste
na base melódica de uma música que receberá posteriormente a letra,
ou, no limite, a voz. Sandro, como Catra, um cantor, parte primeiro da
base para então colocar a letra. Sandro diz que primeiro prepara a “base”
e depois chega à voz que lhe parece se adequar a ela. A “base” resulta de
beats sobre beats, da junção e sobreposição de diferentes batidas, como
o “tamborzão”, a “guerra de atabaque” ou “macumba”, e outros samplers,
como os provenientes de músicas estrangeiras, como as de miami bass,
o ritmo que é tido como o grande originário do funk carioca. Dominar
todos estes recursos faz parte do trabalho de um produtor de funk
carioca, bem como do produtor de música eletrônica em geral. Os DJs
exercem grande parte de seu ofício como produtores de música. É assim
que majoritariamente produzem inovações na cena funk.
Além das vozes de Catra, Sandro colocou na “Olha a vibe” outros
“elementos funk” sobre o “sampler gringo” que, afirma, é possível perce-
ber que é “gringo”, estrangeiro, ao contrário do brasileiríssimo “tambor-
zão”. O interessante de um sampler é também ele ter sua origem reconhe-
cível. A sua condição estrangeira deve estar presente, pois torna evidente
a comunicação entre os estilos musicais. Esta mesma lógica da evidência
dos empréstimos estará presente nas paródias feitas por Mr. Catra, que
escolhe sempre “clássicos da cultura” para fazer suas versões funk. Os
“elementos funk” de que fala Sandro são, além do “tamborzão”, as sen-
tenças “êta pô!” e “a pedido”, o “gemido de mulher”, a palavra “chão” e o
“pontinho” do Planet Patrol. A palavra “chão” aparece na música de duas
maneiras: em “sequencial”, virando “tó, tó, tó, tó, tó”, ou a frase “oi chão”
que vira “oije, oije, oije”. É interessante notar que o que pode converter
algo em “elemento funk” é menos a sua autoctonia e mais a sua premência
ao estilo musical. A palavra “chão” não é um elemento funk incorporado
ao ritmo aleatoriamente. Esteve e continua presente nas performances
de MCs que, acompanhados de dançarinas ou dançarinos, comandam
as coreografias pedindo-os que rebolem “até o chão”, proferindo muitas
vezes somente a palavra em sequência ritmada: “chão, chão, chão!”.
Junto a esses “elementos funk” não “gringos” de que fala Sandro,
encontra-se reunido ainda um beat estrangeiro, o “pontinho” prove-
niente da música do grupo Planet Patrol, de miami bass. Samplers de

131
a estética funk carioca

miami bass por si só podem ser qualificados como funk na medida


em que são considerados por muitos como o ponto de partida para o
funk carioca, em especial a batida volt mix. Mas o “pontinho” do Planet
Patrol, que teria sido isolado pelo DJ Fábio, do Castelo das Pedras, casa
de shows da Zona Oeste da cidade, virou verdadeira febre no verão de
2008, compondo uma série de produções funk. A identificação entre o
elemento estrangeiro e o seu público acabou por nacionalizá-lo. Desta
maneira, se o conteúdo semântico das palavras não é capaz de por si só
revelar o significado que possuem na música e em sua letra, os elemen-
tos de linguagem transformados em som não são eleitos apenas por sua
sonoridade e musicalidade.
Essa não proeminência da palavra sinaliza o descolamento do social
que vem caracterizando a produção funk da primeira década de nosso
século. Indica ainda um caminho de análise pelo qual sigo, segundo o
qual a arte, mesmo que estudada por um cientista do social, não repre-
senta o real, mas revela “a verdade da convenção” (Weiner, (1997, p. 201).
As práticas artísticas, sejam elas produzidas em contextos mais ou menos
hegemônicos, “podem não ter nada a ver com o tornar a sociedade visível
e tudo a ver com o delinear dos limites da ação humana e do pensamento”
(Weiner, 2002, p. 7). Sandro diz que sempre começa a criar já com algo
“em mente”, e justifica: “porque tudo vem da cabeça”. O modo como essa
“mente” funcionará, por meio do pensamento analógico, se alimentando
do estoque de imagens que o mundo lhes oferece, é que trará a cultura
e a sociedade à tona, e não o inverso. É a lógica que rege a música funk
que determina a sua criação, e não o contexto social em que foi gestado
o ritmo. O funk, inicialmente dançado em formato de soul na privile-
giada Zona Sul do Rio de Janeiro, foi ressignificado nas favelas cariocas.
Contudo, esse mesmo contexto social não dá conta de seu sentido.
O que proponho é avançar na discussão da relação entre arte e cul-
tura sem que a necessidade de referenciá-la a um contexto de produção,
como defende Geertz (1997 [1998]), seja a única e necessária condição.
Em alguns momentos, é verdade, o contexto cultural parece ser mesmo
o fundo que permite explicar a figura, a criação musical funk, mas em
outros a arte se mostra autônoma do socius, de sua referência social, e
só a invenção e seus mecanismos são capazes de dar conta de si própria.

132
autonomia da arte, criatividade e difusão

Catra, o mestre das paródias, o mago na arte de equivocar o outro por


meio do uso que faz das palavras, é categórico. O que define o funk
é o BPM. 130 BPM de música eletrônica. [Mais do que letra, mais do que
sensualidade], é o beat. Porque o beat toca sozinho. Você sabe que é funk.
Você vem cantando uma letra sensual, depois entra o beat. É o beat que
dita (Mr. Catra).

Funk é em primeiro lugar música, feita dentro de certos limites


convencionados. É preciso se submeter ao seu beat. E as razões que o
move são também as da “arte pela arte”, o prazer da pura criação, do
exercício da invenção.
A gente fazia muita coisa em cima da base dos gringos. Agora a gente tem
que criar. E essa que é a melhor, a coisa mais gostosa (Mr. Catra).

a liberalidade das apropriações


A lógica apropriativa que rege a criação artística funk é extremamente
atuante, como notou Herschmann. A “estética da versão” – definida pela
“celebração dos princípios da paródia, do pastiche, da multiplicidade
estilística” – caracterizaria o funk em contraposição ao samba: enquanto
os agentes do primeiro reconheceriam em sua criação um “artefato cul-
tural”, aqueles envolvidos na engrenagem do último preservariam seu
“mito da autenticidade” (Herschmann, 2000, p.220). Contudo, ao
meu ver, não é a lógica apropriativa em si que oferece o diferencial do
funk, pois, além de caracterizar a música eletrônica como um todo, o
apropriar pode ser tido como um princípio geral da criatividade cultural
e artística bem como um dispositivo que aproxima as racionalidades das
produções do conhecimento antropológico e da arte contemporânea.
Claude Lévi-Strauss (1989) aproxima o modo de operar do artista
ao pensamento mítico através da figura do bricoleur, que inventa criati-
vamente, sejam obras de arte ou as transformações de mitos, a partir das
apropriações que faz dos elementos contidos pelo conjunto que forma
o repertório predeterminado sobre o qual elaborará. Arnd Schneider
(2006), interessada mais especificamente nas incorporações feitas por
artistas contemporâneos de elementos estrangeiros, condiciona a ativi-
dade apropriativa à própria qualidade de otherness, de estrangeirismo,
que deveria ter o elemento incorporado. Barbara Stafford (2007),

133
a estética funk carioca

igualmente lidando com contextos artísticos ocidentais, chama atenção


para o lugar central que ocupa a atenção visual na apropriação de ima-
gens pela mente que serão posteriormente convertidas em representações
mentais. Nicholas Thomas (1991) nos mostra como a troca interessada e
a posterior domesticação estética dos objetos incorporados pelos “nati-
vos” esteve desde cedo no horizonte das relações interétnicas, em parti-
cular aquelas levadas a cabo no Pacífico. George Marcus e Fred Myers
(1995), focando menos sobre a produção de arte e mais sobre as polí-
ticas que governam os mundos artísticos contemporâneos, igualmente
evidenciam o lugar que a alteridade possui, tanto para a arte como para
a antropologia, no mapear do modo pelo qual acontecem as trocas entre
as culturas. Por fim, James Clifford (2002) descreve o “mecanismo da
collage” como paradigmático da racionalidade que traz à luz os trabalhos
etnográficos. Os onipresentes “procedimentos surrealistas” consistiriam
em retirar “distintas realidades culturais” de seus contextos e submetê-las
“a uma perturbadora proximidade” (Clifford, 2002, p. 167).
É a especificidade do modo como se movimenta o mecanismo
apropriativo no funk que pode nos oferecer dados para o processo de
demonstração necessário para recortar esse complexo estilo musical.
Pois de um lado, o que nos dizem os sujeitos neste capítulo é que o que
fazem, ao fim das contas, é música. Mas, ainda assim, tratamos de uma
criação musical que não pode ser desvinculada de seu contexto de pro-
dução. Se o social não a explica, sem o social não a apreendemos.
A dinâmica expressa pela categoria nativa “rouba rouba”, empre-
gada para designar o ato de um músico se apropriar integral ou parcial-
mente da produção de outro, evidente no procedimento de feitura de
uma única montagem, é magnificada através da engrenagem de criação
funkeira como um todo, estando presente não apenas na elaboração de
suas bases musicais, mas igualmente nas letras dos raps, e engloba a difu-
são do ritmo. O que diferencia o funk carioca é a liberalidade que rege a
prática de sua lógica apropriativa e a concomitante velocidade com que
ela é colocada em marcha graças à informalidade que governa as relações
entre seus agentes. A informalidade garante a eficiência da produção fun-
keira, de suas apropriações, e igualmente alavanca a sua difusão. Entre
funkeiros, diferentemente do que ocorre com as produções de música
eletrônica realizadas no âmbito da indústria fonográfica mundial, não se

134
autonomia da arte, criatividade e difusão

pede autorização formal. Primeiro é feita a apropriação para então “dei-


xar rolar”, esperar para ver o que acontece. Como diz Sandro, “no funk
os cara ouve uma parada, já pum. Já faz o loop, já edita, já joga na música.
Já no eletrônico, no house, no baltimore, os cara são mais organizados”.
A velocidade é inerente ao funk, está presente em muitas de suas
instâncias, na “vida loka”, na vida “corrida”, e é muito valorizada pelos
funkeiros, artistas ou não. No que toca à produção musical ela não só é
afirmada e reafirmada pelas BPMs, as batidas por minuto, ou é viabilizada
pela informalidade que rege a conduta dos artistas e determina a eficiên-
cia das apropriações estilísticas. A própria materialidade do equipamento
que produz a música funk é facilitadora da velocidade com que os seus
artistas se deslocam pela cidade. Só o funk permite a seu artista realizar
tantas apresentações em uma única noite, afirma o produtor de even-
tos Magnus, com experiência também na realização de shows de outros
ritmos musicais. Munidos de um laptop ou uma MPC, o MC e o DJ pos-
suem reunidos os equipamentos necessários para realizarem suas per-
formances, ao contrário dos muitos instrumentos acústicos necessários
para que os muitos componentes de grupos de pagode romântico, como
Exaltasamba e Jeito Moleque, realizem suas performances musicais.13
Vimos no primeiro capítulo a alta velocidade com que a van que
transporta o grupo de artistas se desloca pelas pistas do Grande Rio.
Ainda assim o veículo pode ser considerado um entrave à aceleração, e,
não havendo visitantes ilustres para ciceronear pelos bailes, pode-se pul-
verizar o coletivo em alguns carros de passeio, que cruzam a cidade em
velocidade ainda mais alta, tornando as narrativas em torno das peripé-
cias de Catra pelo asfalto frequentes. E se o artista funk não quiser se fazer
acompanhar de seu “bonde”, bastará um único carro para carregar o MC,
o DJ e o motorista. Foi desta maneira que Beto da Caixa e Catra come-
çaram a trabalhar juntos. Beto era compositor, mas era também quem
dirigia o carro para Catra fazer seus shows. Passados muitos anos, Beto
voltou a trabalhar com Catra, compondo e dirigindo. Entretanto, esta
última atividade realizou menos para fazer frente às turnês profissionais

13 A comparação com o pagode romântico não é aleatória. O ritmo partilha parte do público do
funk, como mostro em minha dissertação de mestrado (Mizrahi, 2006b). A relação entre um
e outro ritmo ficou evidente também na pesquisa de doutorado. Muitos dos shows de Mr. Catra
acompanhados por mim foram antecedidos ou sucedidos por apresentações de grupos de pagode.

135
a estética funk carioca

do MC e mais para atender às necessidades da esfera mais doméstica da


vida do cantor. O funk, como negócio, cresceu e junto veio a necessidade
de transportar mais pessoas. Mas a ideologia da velocidade, associada ao
novo e à tecnologia, permaneceu. Nesse contexto, o fato de me acharem
“calminha” era frequentemente reiterado juntamente à pequena lenda
que Thamyris construiu em torno da pouca velocidade com que eu uma
vez dirigi o meu carro quando seguíamos de sua casa para o salão de
cabeleireiro em Madureira. Desacelerei de fato no esforço de registrar
mentalmente a conversa que travávamos no carro.
No que concerne à liberalidade, os artistas funk não só não pedem
autorização para a utilização de trechos em suas produções como a
informalidade com que são realizadas as apropriações é estimulada e
muitas vezes permitida de modo velado, o que, contudo, não livra o pro-
cesso de tensões. Do mesmo modo como Sandro produziu o seu “Olha
a vibe” oficialmente, no sentido que em acordo com a escala produtiva
da companhia na qual trabalha, se utilizando de samplers da voz ao vivo
de Catra em uma produção para o próprio artista, produtores contratam
e gravam shows para ter material ao qual de outro modo não teriam
acesso.14 Sandro acrescenta que não cabe a ele, nem a Catra e nem a
ninguém proibir a prática, pois além desta estar “ajudando a divulgar
o artista”, está também “ajudando o cara a tocar música”. Entretanto, há
um limite tênue e subjetivo, regido por uma certa lógica da camarada-
gem e um código de honra, para o modo como são feitas estas apropria-
ções e como elas serão posteriormente utilizadas.
Deixa os cara gravar porque ele sabe o que ele vai fazer. Ele não vai pegar a
música pra negociar. Ele vai pegar a música pra tocar, pra passar pra outro
DJ, pra jogar na internet, pra jogar na rádio. A divulgação no funk rola por
meio disso. Você pegando uma coisa de um, com uma coisa de outro. E aí
o DJ mesmo cria a seu modo a sua produção, e aí ele vai divulgando.

A rapidez e a informalidade foram ainda responsáveis por um dos


grandes sucessos de uma música funk que “estourou” no verão de 2008.

14 O tecno-brega, ritmo musical das “festas de aparelhagem” que acontecem em Belém do Pará,
também se alimenta das gravações que são feitas ao vivo durante os eventos. Esta prática, no
entanto, é mais assumida do que no funk carioca, sendo explicitamente incorporada à engre-
nagem de difusão e comercialização do ritmo. Os shows são gravados sistematicamente e seus
discos posteriormente vendidos ao público.

136
autonomia da arte, criatividade e difusão

O MC Rael, autor da pornográfica “Ai meu peru”, não estava cantando no


baile nem fazendo show, mas “improvisava” no Complexo do Alemão.
Gravaram então a sua voz à capela e fizeram a música.

Ai, ai, ai meu peru


Ela senta c’a xota
Ela senta com o cu
Ai meu peru [...]15

Criação e difusão estão de fato estreitamente relacionadas, e esta-


belecem ou ampliam os parâmetros do estilo musical. Retornando ao
processo de fatura da música “Olha a vibe”, digo a Sandro como a acho
instigante, e que no meu entender ele sabe lidar bem com o desafio de
fazer uma música “moderna”, que atenda ao gosto de plateias mais cos-
mopolitas, mas que permanece sendo funk, e faço referência a outros
DJs que em busca de recepção similar, acabaram por fazer produções
que ao meu ver não são mais funk. O selo alemão Man Recordings
adjetiva positivamente tais produções como “pós baile funk”.16 Sandro
concorda com a gravadora, mas de modo não tão otimista. Entende
que estas produções não são para este “momento” e referem-se a uma
música com a qual “as pessoas não vão se identificar”.17 Sandro mais
uma vez enfatiza a importância que possui na música que produzem
o vínculo entre a criação artística e sua audiência. Se o beat eletrônico
teria permitido inovar uma tradição que vem do samba, o consumo,
neste momento, colocou um limite para a inovação, norteando uma
busca por algo “novo”, “diferente”, mas com o qual a audiência se “iden-
tifique”. Mas nem sempre é preciso ser assim, e a audiência, ao invés
de constranger a inovação, pode conceder o seu norte, produzindo o
esgarçamento dos limites, de modo que a recepção e o consumo podem
indicar os caminhos para estas mesmas inovações.
A putaria, o subgênero de funk que em muitos aspectos pode ser
considerado o substituto para o funk proibido, como ainda detalharemos,

15 “Ai meu peru”, MC Rael.


16 Disponível em: <http://www.overmundo.com.br/overblog/funk-carioca-de-berlim>. Acesso
em: 26 de agosto de 2013.
17 O selo alemão produz EPs de música eletrônica, com especial foco no funk carioca, ou baile
funk, como o ritmo é conhecido na Europa, e lançou no mercado europeu discos individuais
de Sandro, Edgar e Sany Pitbull, dentre outros artistas do estilo musical.

137
a estética funk carioca

é uma inovação que surge em função da busca de seus agentes por uma
maior circulação do ritmo que se “encaixou” no gosto carioca e brasi-
leiro, como disse Rocha. Assim, se falas mais informadas por uma noção
que apreende produção e consumo em uma chave dual entendem que
o mercado “impõe” ao MC de funk que ele cante coisas “vergonhosas”,
vemos que foi a sintonia entre a sensualidade das letras e a expectativa
do público que produziu a novidade. Dessa perspectiva, a audiência
ampliou os limites para que a inovação ocorresse. Como coloca Sahlins,
não devemos ser ingênuos a ponto de acreditar em uma imposição do
gosto por meio de ações conspiratórias por parte dos produtores, mas
não podemos tampouco cair na “mistificação inversa” e crer que a pro-
dução capitalista é uma resposta exclusiva aos desejos do consumidor
(Sahlins, 2003, p. 184).
As contendas que as apropriações geram entre os artistas funk deri-
vam não do ato de incorporação propriamente dito, pois já vimos como
ele é mola propulsora da engrenagem de produção, mas quando um
destes, ao invés de “criar” algo “novo” com as partes tomadas de emprés-
timo, simplesmente incorpora a produção integralmente, mudando a
voz e declarando-a de sua autoria. Não produz assim algo “novo”. Desse
modo, se os discursos dentro do estúdio trazem à tona a relevância que
soluções cotidianas adquirem no processo de feitura de uma música,
se afinando com as perspectivas que descentram o poder do “gênio
criativo” e a inovação e privilegiam o aspecto processual como chave
para a elucidação do que rege a criatividade (Rampley 1998; Ingold
& Hallam 2007; Ingold, 2007a), os artistas funk afirmam toda a sua
pertença à modernidade e ao Ocidente ao explicitarem o valor que atri-
buem ao novo, à inovação e à tecnologia.
As rivalidades entre os artistas funk colocam uma interessante ques-
tão no que toca a autoria e o lugar da individualidade entre os mesmos.
Pois se as apropriações dos samplers acontecem livremente, a partir da
noção de que este é de domínio público, material disponível para a livre
criação, o resultado da ideia, da criação, é privado. De um lado, a música
funk pode ser considerada um “híbrido”, no sentido que detentora de
uma propriedade intelectual que deriva em uma rede que articula dife-
rentes donos, como contido na noção melanésia de propriedade e criati-
vidade (Strathern, 1999). Este traço pode ser notado em músicas que

138
autonomia da arte, criatividade e difusão

possuem mais de um dono: o DJ produtor, o MC que a interpreta e o seu


compositor. Mas já aqui as disputas têm início e um DJ, por exemplo,
pode não querer passar a sua produção para o MC que ainda colocará
nela a sua voz, ao temer que este se aproprie de sua produção, registran-
do-a à sua revelia e antes que o faça. De outro lado, a questão da pro-
priedade pode simplesmente não ser suscitada, como com os exemplos
dados por Dr. Rocha, ao início deste capítulo.
As disputas se tornam ainda mais evidentes quando somente DJs
são colocados em relação, explicitando a tensão que articula a criação e a
criatividade ao coletivo e ao individual.18 As bases das músicas são com-
postas de partes de culturas sonoras e musicais, e conformam assim um
“híbrido” no sentido de Clifford (2002). Entretanto, estas diferentes par-
tes não possuem dono até serem arregimentadas pelo DJ produtor. Desse
modo, a música só adquire identidade após ter suas partes reunidas por
seu criador individual, de modo que torna impossível tomar o DJ como
uma personagem sem “rosto” ou “continuidade narrativa” (Ferreira,
2006, p. 287). As narrativas em torno da criação musical funkeira estão
longe de configurar um autor anônimo. Nos ensinam, outrossim, que
para desconstruirmos a noção de indivíduo não é preciso reconstruir a
sua contrapartida simetricamente oposta, que precisamente por esta sua
condição lhe é complementar e dependente: o autor faceless, sem rosto.
Os artistas funkeiros sabem que para submeter-se ao coletivo não
é preciso abrir mão da criatividade individual. Ao contrário, a relação é
de interdependência, como bem nota Edward Sapir (1949). É a tensão
entre parte e todo, entre cultura e personalidade, tão bem elaborada pelo
antropólogo norte-americano, que garante a vitalidade de uma cultura,
a sua condição “autêntica”, “genuína”. É a própria possibilidade de ter o
potencial criativo individual exercido, a factibilidade de sua viabilização,
que previne uma cultura de se tornar “espúria”.
Uma perpetuação automática de valores padronizados, não sujeitos à cons-
tante remodelação de indivíduos desejosos de pôr uma parte deles mesmos
nas formas que recebem de seus predecessores, conduz ao domínio de for-
mas impessoais. O indivíduo se exclui, a cultura torna-se uma maneira e
não um modo de vida: ela cessa de ser autêntica (Sapir, 1949, p. 299).

18 Vídeo disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=7uFvgs9K4CE>.

139
a estética funk carioca

Entretanto, a consideração do indivíduo como sujeito criativo e não


mero atualizador não o deixa livre para inventar ao seu bel-prazer. A
criação se dá na articulação de padrão e norma, de convenção e inven-
ção. Como já notara o MC Jota, existe um “parâmetro” para a criação,
não se podendo inventar livremente.
Contudo, não é menos verdade que o indivíduo nada pode sem uma
herança cultural de que possa lançar mão. Não pode ele, com suas forças
espirituais desamparadas, tecer um forte instinto cultural com o ímpeto de
sua personalidade. A criação é a sujeição da forma à vontade de alguém,
não a manufatura da forma ex-nihilo (Sapir, 1949, p. 299).

A “individualidade (...) é para a cultura como o próprio sopro da vida”


(Sapir, 1949, p. 310). Mas individualidade não é sinônimo de individua-
lismo (Rapport, 1992, 1997; Rapport & Overing, 2000). O individua-
lismo é uma das possibilidades de conceptualização da pessoa individual
e refere-se ao modo como a individualidade foi concebida no Ocidente,
“um milieu sociocultural particular” (Rapport & Overing, 2000, p. 179).
A individualidade seria assim um traço universal do ser humano,
o humano a priori, a base física-psíquica sobre a qual todo o conheci-
mento do mundo e toda a criatividade humana que se dá no mundo se
assenta (Rapport & Overing, 2000, p. 186/187).

A “conflação” entre um e outro conceito é, de acordo com Rapport,


exigência necessária ao esquema conceitual de Foucault, não deixando
espaço para que o sujeito criativo emerja. A individualidade, além de
não se confundir com o individualismo, tampouco se opõe a ela.
Pertence ao nosso estar no mundo [being in the world], fruto de nossos
distintos prismas interpretativos, através do qual cada um de nós inevi-
tavelmente representa um lugar de consciência independente e através
do qual cada um de nós atua como agente ao trazer para a vida social e
dotar de significação o que de outro modo seria matéria cultural inerte
(Rapport, 1992, p. 21).

A busca por uma supressão da individualidade pode tornar menos


potente argumentações sobre a criação artística. Rampley (1998), ao
problematizar a relação entre o indivíduo criativo e os limites que lhe
são dados, de modo a produzir um conceito de criatividade que não
oponha o sujeito ao “sistema de regras”, excluiu do processo inventivo

140
autonomia da arte, criatividade e difusão

a intencionalidade do sujeito que cria e transferiu para o acaso, para a


“sorte”, a responsabilidade de um trabalho denotar ou não criatividade.
Rampley, como Ingold, enfatiza a relevância que possui o aspecto pro-
cessual na criação e desconfia da inovação como qualificadora de cria-
tividade, sugerindo que aquela estaria somente “marginalmente” rela-
cionada a esta. Mas, diferentemente, Rampley desloca para a sombra o
papel que os sujeitos criativos possuem no exercício da criação, papel
que mesmo não tendo sido enfatizado por Ingold (2007a) encontra-se
implícito ao seu argumento de que são as soluções cotidianas desenvol-
vidas por, por exemplo, operários que executam o projeto de um arqui-
teto de renome, que trazem à tona mecanismos criativos. A criatividade,
nessa perspectiva, não é subsumida mas pulverizada, reside na intenção
de muitos.

informalidade, difusão e o “estilo favela”


A informalidade beneficia não somente a produção, como também a
sua divulgação. Sandro acredita, inclusive, que a música não foi feita
para ficar em poder de poucos, ela deve circular, pois o funk “vive disso”:
“Eu sou DJ, eu tenho que trocar figurinha com outros DJs para tocarem.
Vamos supor, eu criei uma música nova do Catra... Aí faço uma parada
maneira... Eu tenho que passar porque eu tô divulgando a música do
Catra”. A música, enquanto está sendo executada, está se mantendo
“viva”, defende Dr. Rocha, ao falar do período em que ele interrompeu
sua carreira de MC, mas manteve suas produções com Catra para que
ele as trabalhasse: “Acho legal porque a música [“Líquido do Amor”]
não foi esquecida. Ele mesmo foi regravando, foi mantendo a música
viva”. Esta música, do início dos anos 1990, recebeu em 2008 mais uma
nova roupagem, a terceira ou quarta, feita por Sandro, que reconhece
que hoje “ela não é mais funk, mas a sua letra possui os “elementos” que
a mantém “direcionada para o funk”: a “sensualidade”, a “pornografia”
e o “duplo sentido”.
Procuro a todo tempo
Um jeito de encontrar
Palavras e gestos
Fazer você enxergar

141
a estética funk carioca

Entre quatro paredes


Nós vamos viver
Os mais felizes
Somente eu e você

Sussurros, gemidos na escuridão


Seu corpo todo treme, treme de tesão
Vou te fazer uma nova mulher
Que sabe o que faz, que sabe o que quer

Revigorada pelo líquido do amor


Te vejo agora como a mais linda flor
O mais lindo jardim que um dia enfim
Eu plantei só pra mim

Então vem amor...


Vem conhecer o prazer
Eu quero nha, nha
Te enlouquecer
Vem conhecer o prazer
Eu quero nha, nha
Te enlouquecer

Eu sou Catra amo e gosto de ser amado


A troca de carinho me deixa completamente alucinado
Mulheres sedutoras, gostosas
Com expressão gulosa, fogosa, dengosa

Tornam um simples momento em hora maravilhosa


Arranhando o meu peito, acariciando o meu sexo
Dizendo obscenidades, sem privacidade
Ação corporal, barbaridade
Uma linda e pequenina boca
Desliza em minha nuca, invade minha orelha
Faminta gata louca
Nessa hora nada importa
Entre quatro paredes vem saciar minha sede
Objetivo é fazer a gata se sentir mulher
Ficar dentro de você e explodir de prazer

Então vem...
Vem conhecer o prazer
Eu quero nha, nha
Te enlouquecer

142
autonomia da arte, criatividade e difusão

Vem conhecer o prazer


Eu quero nha, nha
Te enlouquecer

Na cama, no sofá, no chão, em qualquer lugar


Gata eu vou te amar, te abraçar, te acariciar
Te beijar, te morder
Vai sentir prazer vou ficar dentro de você
A gente vai enlouquecer

Vem conhecer o prazer


Eu quero nha, nha
Te enlouquecer
Vem conhecer o prazer
Eu quero nha, nha
Te enlouquecer19

A circulação da música e o afrouxamento na cobrança dos direitos


de execução e autoria mantêm “acesa a chama do funk”, diz Rocha. Pois
se artistas mais estabelecidos registram suas músicas antes de as “jogar
na pista”, antes de colocá-las em circulação, os direitos são cobrados mas
de modo a manter a flexibilidade do sistema, permitindo o seu funcio-
namento. Assim, a execução é cobrada quando tocada mecanicamente,
seja como repertório de casa de show, rádio ou televisão, mas não quando
é executada por um MC em seu show. O registro dá à música uma “iden-
tidade”, e a “música entra no mundo da música”, como explica Kapella,
mas o que não pode ocorrer é o engessamento da sua circulação.
“O que seria do funk se não fosse a Uruguaiana?”, pergunta Sandro,
se referindo ao papel que possui o Mercado Popular da Rua Uruguaiana,
centro de comércio informal conhecido pela mercadoria majoritaria-
mente pirateada que vende, na Zona Central da cidade. Kapella, com
malícia, diz que “a Uruguaiana até ajuda”: ajuda não apenas na divul-
gação e nos ganhos de execução decorrentes desta, mas principalmente
nos rendimentos que são alavancados pelas oportunidades de shows que
certamente surgem quando a música “vira”, quando ela alcança grande
sucesso. Como diz WF, quando a música de um artista “vira”, a sua vida
“vira” também: muda radicalmente, para melhor.

19 “Líquido do Amor”, de Dr. Rocha e Mr. Catra, produção DJ Sandrinho.

143
a estética funk carioca

O funk, ao invés de correr, como nos anos 1980, paralelamente


ao mercado formal, ocupando os “espaços deixados em branco pela
indústria cultural” (Vianna, 1988, p. 110), mostra a habilidade que
possuem seus agentes na manipulação das regras do mercado que
governa essa mesma indústria cultural. Os artistas funk se mostram
igualmente em sintonia com o movimento que vem regendo os ganhos
dos artistas da indústria fonográfica mundial, em que os rendimen-
tos com shows vem crescendo de importância face a desvalorização
monetária e mercantil do fonograma.
Black Ney, evidencia claramente o modo como a informalidade con-
vive lado a lado com o mercado formal ao alavancar a difusão do funk,
enfatizando o papel que possui, neste processo, a favela, uma das expres-
sões máximas da informalidade econômica no estado do Rio de Janeiro.
No funk é o seguinte: você faz um som, leva num DJ, se o DJ da favela
gostar do teu trabalho, o cara começa a executar na favela. Dali, mano, os
outros DJs da elite, que vivem mais pra baixo, lá na Zona Sul, começam a
copiar dos DJs da favela.

Buiú fala o mesmo, de modo ainda mais direto: a música “tem que
agradar ao DJ: é aí que o bagulho vira”. A favela não surge apenas como
fonte de autenticidade para o funk, mas ela age em sua difusão. É o
consumo que ela exerce que fará de uma música um sucesso ou não.
Rodrigo, o MC Novim, sobrinho de Mr. Catra, explica de modo simi-
lar a estratégia da qual ele, como outros artistas funk, se utilizam para
lançar uma música.
Pra tu fazer sucesso, primeiro tu tem que ter tuas música estourada nas
favela. Se tuas música não estiver estourada nas favela, tu não vai estourar
no Rio de Janeiro, e nem no Brasil.

Primeiro a música precisa ser sucesso nos bailes, e para que isto
ocorra o passo inicial é entregá-la a um DJ. É preciso que este goste da
música para que ele a execute na festa. Uma vez que isto tenha ocor-
rido, a audiência dos bailes irá dar o seu referendo. Se ela agradar, che-
gará aos mercados de comércio informal, como o da rua Uruguaiana,
no centro da cidade, Rio de Janeiro, e aí poderá chegar à TV, depois às
rádios e finalmente alavancar a contratação por shows. Este mecanismo
é a perfeita inversão das lógicas distintivas, como ilustradas por Simmel

144
autonomia da arte, criatividade e difusão

(1957) e Bourdieu (1984). Ao invés do trickle down effect simmeliano,


tão inspiradores do Distinction de Bourdieu, temos o bubble up process,
expressão utilizada pelo antropólogo Ted Polhemus (1994, p. 10) para
falar de como as tendências das ruas tornaram-se fundamentais para
constituição do alto gosto e da criação na indústria da moda europeia.
A favela age na divulgação da música e fornece os elementos para a
inovação no funk. Buiú, como Sandro, é morador de uma favela. O jovem
DJ, então com 20 anos, era morador da Favela do Jacaré à época do traba-
lho de campo e, também como Sandro, aprendeu o seu ofício sem curso
e observando o seu primo, DJ Novim, “um dos número um do Brasil”.
Além de acompanhar Jota em suas turnês, seu papel na “firma” era o de
trazer ingredientes novos para as produções de putaria, subgênero de
sua especialização, produzindo as bases e trazendo novos samplers. Estes
samplers, além de serem compostos a partir de pedaços de outras músi-
cas, eletrônicas ou não, possuem fontes inusitadas, como os sons de per-
sonagens de filmes de animação, como o Pica-Pau, da Universal Pictures,
a Cuca, do seriado Sítio do Pica Pau Amarelo, produzido pela TV Globo,
ou a campainha do aplicativo para comunicação on-line Messenger.20 A
rapidez com que Buiú faz as apropriações é explicada por sua juventude,
por ser menos ocupado do que Sandro e por estar “lá dentro” da favela,
“do Jacaré”. Como o próprio Buiú diz, ele é “doente”, obcecado por novos
samplers. Catra dizia com humor que Buiú “é um filho da puta”: escon-
dia-se nas proximidades dos terreiros de macumba para gravar “os batu-
ques”, novos sons de percussão que serão posteriormente sampleados.
Buiú, casado e com um filho, diz que vive “de aluguel” e se queixa da
pouca valorização do trabalho de DJ no funk desde que o lugar do MC
ganhou destaque com o surgimento das letras nacionais, nos anos 1990.
A favela se converte mesmo em elemento essencial para recortar
o estilo funk de música. Pois se o funk e a música eletrônica se asse-
melham pela velocidade e pela lógica apropriativa, o funk se diferen-
ciando entretanto pela eficácia com que são feitas estas apropriações, a
favela fornecerá de modo quase ideal, ou ideológico, uma outra fonte

20 Apesar de inusitadas, não são surpreendentes as fontes destes samplers. Obedecem à lógica que
explicitei acima sobre a inserção de samplers e a definição dos “elementos funk”. O termo “pica
pau” faz referência jocosa à sexualidade, mais precisamente ao órgão sexual masculino, e o uso
do Messenger era constante entre os jovens com os quais trabalhei.

145
a estética funk carioca

de distinção. Segundo Sandro, o que diferencia o funk do eletrônico de


modo amplo é a sutileza que reside na “batida”. Enquanto no último
ela é mais “centrada”, no primeiro ela é “mais favela”. Pergunto-lhe o
que significa ser “mais favela”, e ele fala do tamborzão, a batida made in
Rio mais distintiva do funk, a que mexe com o público e o coloca para
dançar. Sem os samplers tamborzão e atabaque, afirma Sandro, não há
funk. O que o tamborzão traz de novo, continua ele, não é somente o seu
aspecto sonoro, mas a “sujeira” que o acompanha, uma “baixa qualidade
sonora”, como diz, uma falta de equalização que “é o bacana da parada”.
A BPM em 130 permitiu ao funk se inserir em playlists cosmopolitas, e
assim aumentar a circulação do ritmo, inclusive em contextos globais,
pois o fato de possuir a mesma “velocidade” que o house, o techno e o
baltimore permitiu a sua mixagem com estes ritmos e a consequente
inclusão nas playlists dos DJs dos clubes noturnos europeus como mais
um set de música eletrônica. Contudo, foi a “sujeira” que deu-lhe um de
seus diferenciais, ao chamar a atenção de DJs e produtores estrangeiros,
garantindo a sua entrada em mercados estrangeiros.
O interessante, para Sandro e outros DJs, é usar “o que é original”
e “mostrar o que é o funk mesmo”, sem “botar lacinho” ou “enfeitar”.
Pergunto a ele se possui alguma versão “limpa”, equalizada, na “pasta”
que reúne inúmeras variantes do tamborzão em seu HD. Ele responde
negativamente, dizendo que o que fazem é “dar uma maquiada”. Por
outro lado, em outros gêneros musicais a construção de um beat é “per-
feita”. E se no funk os plug ins – recursos para equalizar o som, ajustar
a voz aumentando-a, deixando-a mais grave ou aguda – são instalados
diretamente na “máquina”, no computador, “lá fora os cara, com a mó
paciência do mundo”, equalizam e amplificam “manualmente”.
A “sujeira” que concede ao funk o estilo “favela” está novamente asso-
ciada à velocidade e à tecnologia, e o que começa a se afigurar aqui é o
modo como musicalmente é traduzida a estética hiper-realista que rege as
letras imagéticas do funk. O lugar que a favela possui no processo de cria-
ção funkeiro é fundamental: ela contém grande parte de seus consumi-
dores e produtores, age na difusão de suas músicas, concede a sua marca
estilística e fornece parte do repertório de imagens sobre o qual se elabo-
rará criativamente. Mas, mais do que isso, a favela proverá à estética funk,
e aí sim por oposição “à pista”, a sua porção hiper-realista. Através de uma

146
autonomia da arte, criatividade e difusão

estratégia do chocar, o funk, junto com seus agentes, elaborarão sobre o


real para torná-lo ainda mais real e visível; uma realidade hiper-real, tão
real que só é passível de ser representada através da arte, como defende
Bateson (1999), antecipando a discussão sobre mapa e território que mais
a frente inspirará Baudrillard (1994) e que aprofundarei mais adiante.
A porção hiper-real da estética funk relaciona-se ao que venho
chamando de não proeminência da palavra. O que pretendo com esta
proposição não é sugerir que a palavra não seja relevante em meu con-
texto de investigação, mas que a palavra não é usada de modo descritivo,
produzindo-se assim um descolamento do social. O que sugiro é que o
potencial de comunicação das letras reside menos nos valores semân-
ticos e aspectos linguísticos do que na estética engendrada por elas. As
letras são antes imagéticas, menos do que linguágicas. Pois não se trata
de uma polissemia da palavra, da abertura de seu significado. Veremos,
inclusive, que muitas vezes o que se busca é o uso mais explícito possível
desse significado. Não é o significado semântico que dá conta do funk
como manifestação estético-cultural. Tampouco é o social que o explica.
Como último exemplo, e antes de passarmos para o capítulo seguinte,
deixo a letra da romântica música composta no verão de 2009/2010
pelo mesmo MC Rael que compôs a quase fisiológica “Ai meu peru” no
verão anterior. O contraste entre uma e outra letra, acredito, ilustra bem
o ponto que procuro fazer. Como a primeira música, esta também fez
muito sucesso entre as moças, que desta vez se enfileiravam à porta de
sua casa, no Morro do Cantagalo, para ouvi-lo cantar.

Eu digo vem morena


Quero te namorar
Tu vai ficar comigo
Pra sempre eu vou te amar

O amarelo lembra ouro


O ouro lembra ladrão
Ladrão lembra você
Que roubou meu coração

Porque da uva faz o vinho


Do vinho se faz licor
Levanta a mão e grita
Só quem quer fazer amor

147
a estética funk carioca

Vem morena
Quero te namorar
Tu vai ficar comigo
Pra sempre eu vou te amar [...]21

21 “Vem morena”, MC Rael.

148
Capítulo 4
Englobamento e subversão

De agora em diante é só cultura.


Mr. Catra

Este capítulo tem duas ambições fundamentais. Uma delas é trazer


para o primeiro plano o artista Mr. Catra. Até o momento, o tomamos
como mais um dos que compõem a sua rede de relações, seja em seus
ambientes doméstico ou artístico. De outra maneira, intenciono mostrar
nesta sessão a sua especificidade artística, que deriva justamente de sua
capacidade de se fazer ao mesmo tempo exemplar e singular do funk.
Entretanto, será através de um movimento que alterna emersão e imersão
que se tornará possível delineá-lo. Em alguns momentos, Mr. Catra será a
figura a se destacar do plot que nos concede o funk. Em outros, Mr. Catra
submerge no fundo, e vemos a sua unicidade, a sua singularidade, como
passível de ser apreendida em contraposição a um fundo funk comum.
Diferentemente de outros artistas funk, Mr. Catra canta MPB, reggae,
hip-hop, pop, soul e samba. Este entrelaçar de diferentes gêneros musi-
cais se faz presente igualmente em seu cotidiano profissional, através de
seu trânsito por distintos universos sociais e estéticos cariocas, nacionais
e globais. Este traço característico é, inclusive, reconhecido por outros
artistas do meio, estejam eles envolvidos ou não no universo deste MC.
Alguns atribuem esta plasticidade à sua formação musical, à sua boa
escolaridade e ao modo como ele foi criado. Parece-me verdadeiro que

149
a estética funk carioca

ter sido educado no seio de uma família branca de classe média e ser por
ela adotado, permitiu a este negro, filho de uma empregada doméstica
e por ela simultaneamente criado, ter acesso a um conhecimento dife-
renciado. Mas a capacidade de mesclar diferenças e se reinventar é, ao
meu ver, um traço também próprio ao funk, de modo que este apresenta
a Catra a possibilidade de fazer música ao seu modo, reinventando e
inventando a si e à arte.
O segundo aspecto a ser evidenciado, diz respeito ao papel que as
imagens possuem no processo de criação funkeiro. Procurarei explicitar
como essa categoria “mente”, utilizada por todos, estejam eles envolvi-
dos na criação ou nos afazeres domésticos que fatalmente suportam a
criação, nos fala de uma qualidade de articulação e processamento do
“pensamento” que se faz fundamentalmente através das imagens. As
imagens entram e saem pela cabeça, e o que temos são imagens outras,
que podem ser verbais, como as expressas pelos artistas nas letras das
músicas, ou visualizáveis no processo da representação e apresentação
de si. Portanto, se, de uma perspectiva mental, será mais especificamente
a letra das músicas que privilegiaremos nesta parte da tese, o corpo se
fará inevitavelmente presente. Este capítulo oferecerá, assim, a amarra-
ção desse ir e vir de imagens que circulam pela mente e pelo corpo dos
sujeitos criativos desta tese.

as imagens e contra imagens


O funk possui dinâmica criativa tal que engendra uma constante pro-
dução de imagens e contra imagens. Estas imagens são suscitadas tanto
a partir de disputas internas quanto externas. Parece ser distintivo do
funk uma lógica subversiva que se constrói a partir de uma dinâmica
que toma o poder estabelecido oficialmente e o gosto a ele associado
de modo contrastivo. Em outros termos, parece ser próprio do funk se
construir por oposição ao que lhes parece representar “a sociedade”, que
surge mesmo como “externa”, “exterior”, ao mesmo tempo em que mani-
festa um claro fascínio sobre esta mesma “a sociedade” e suas produções.
Esta dinâmica criativa é presentificada pela estética, por sua forma
e conteúdo, resultante de sucessivos englobamentos e apropriações. A
lógica que rege a criação artística musical é ela mesma análoga àquela
que governa o gosto indumentário dos jovens frequentadores do baile

150
englobamento e subversão

funk, aspecto que analisei em outra ocasião (Mizrahi, 2006b; 2007a).


Assim, do mesmo modo que a cultura material resulta, como venho
mostrando, de uma mimesis que não é pura cópia (Taussig, 1993), a
criação musical funk opera por lógica apropriativa similar, onde o
“rouba rouba”, a categoria nativa empregada para designar o ato de um
músico se apropriar da produção do outro, parece ser inerente ao modo
de criação, sem que isto resulte em uma pura reprodução do trabalho
alheio. A viabilização da criação funk é altamente dependente da libera-
lidade com que são feitas estas apropriações, o que não isenta o processo
de brigas e disputas, como vimos no capítulo anterior. Ao contrário, a
rivalidade confirma a racionalidade da criação funkeira, uma vez que a
disputa, muitas vezes, está em seu cerne.
Esta lógica, no que toca a produção musical, fica evidente de dois
modos. A partir da musicalidade do ritmo e suas melodias, como já exa-
minado, e através das letras das músicas. No presente capítulo, ao me
deter exclusivamente sobre as letras, evidenciarei a importância que as
imagens e os tropos possuem nas mesmas (Lagrou, 2007b), de modo
a fazer ver a maneira pela qual as apropriações e a manipulação de sím-
bolos geram imagens outras, exclusivamente verbais, que se encontram,
por sua vez, em concordância com o próprio mundo imaginário daque-
les envolvidos na criação. A lógica apropriativa está presente em distin-
tas modalidades de funk, e gera inúmeras versões de músicas. Muitas
das “respostas” e “duelos” que dão título a músicas do ritmo musical
possuem as relações de gênero como tema. Assim, uma MC, uma can-
tora, pode “responder” a um MC, um cantor, que compôs uma canção
que “esculacha”, ofende as mulheres, com uma versão que a parodia ou
alude a esta através de sua narrativa, defendendo assim o gênero femi-
nino. Ou um “duelo” pode se estabelecer entre duas cantoras, uma can-
tando no lugar da esposa, a “fiel”, e a outra na posição da “amante”.
Assim, procurarei sublinhar como, ao mesmo tempo em que a
própria criação se revela dependente de mundos que são muitas vezes
representados como se em franca oposição, as suas fronteiras resultam
embaçadas. Veremos, assim, que juntamente à habilidade de desafiar o
outro rival, as oposições, ao invés de reificadas, tornam-se embaralhadas.
Um dos fios condutores da discussão que empreendo é concedido
pela formulação de Roy Wagner (1981 [1975]) segundo a qual a cultura

151
a estética funk carioca

se faz de modo análogo ao fazer artístico. O autor, a propósito da criação


inventiva e do ofício do antropólogo, defende que arte e antropologia
podem ser pensadas em uma mesma chave, ambas se alimentando dos
tropos e metáforas encontrados no mundo. A antropologia “inventa” a
cultura que estuda por meio de um processo de objetificação daquela rea-
lidade que o antropólogo está chamando de “cultura”. É na própria cons-
trução de conhecimento dessa “cultura” que a objetificação ocorre, de
modo que o trabalho de campo mesmo pode ser dito como o momento
de “invenção” da “cultura”. Por outro lado, os nossos interlocutores em
campo também inventam a nossa cultura, ao objetificarem as institui-
ções que entendem nos sintetizarem, como os “cargo cult”. Se para nós
muitas vezes torna-se factível apreender os nossos outros por meio de,
digamos, rituais de acesso ao mundo sobrenatural, para eles parece que
o que nos distingue é a nossa relação com os objetos materiais. O autor
está nos falando de como nós estamos presentes no mundo deles e eles
estão presentes nos nossos mundos, e como é ao compartilhar presenças
que descrevemos a nós enquanto “inventamos” a eles. Esta dinâmica é
precisamente o que torna possível esses mundos se relacionarem, já que
não são realidades estanques.
Como antecipei, Wagner permite-me avançar em minhas elabora-
ções sobre o funk, de uma perspectiva de viés mais sociológico para uma
que entendo como sendo mais propriamente antropológica. O termo
“avançar” faz sentido a partir de meu próprio percurso de pesquisa e
reflexão. Ao iniciar minha investigação de doutorado, carregava como
hipótese central a ideia de que a arte funk, para ser compreendida, teria
uma estreita relação com uma determinada cultura, em especial a locali-
zada na “favela”. A minha trajetória no campo foi aos poucos dando-me
evidência de que as complexidades a reger o universo funk eram muitas
para que eu o atrelasse ao ambiente da “favela”.
Ao deixar o baile e o campo onde fiz minha pesquisa de mestrado,
eu já havia compreendido que um contexto bem circunscrito não me
daria instrumentos empíricos para conceitualizar a estética funk. E foi
por este motivo que Mr. Catra me pareceu tão fascinante. Permitia-me
conciliar o estudo do funk com o desejo de desconstrução de noções rei-
ficadas sobre este universo, como asfalto e favela, ou centro e margem,
ao mesmo tempo em que possibilitava o desestabilizar de categorias de

152
englobamento e subversão

pensamento duais. Entretanto, o processo não foi simples nem rápido.


Evoluiu do mesmo modo lento, extenso e intenso com que se desenrolou
o meu trabalho de campo. E a maior resistência para que esta transposi-
ção ocorresse foi-me dada pelas letras das músicas. Eram tão explícitas
que não podiam estar falando de outra coisa. A imersão no estúdio de
gravação me possibilitou ver que de fato não falavam mesmo de outra
coisa. Falavam do mesmo mas em outro registro, no registro da arte.
Percebo hoje que a dinâmica criativa funk usa os símbolos da
“favela”, assim como os da “pista”, ou seja, as imagens que a “cultura”
oferece, como uma espécie de acervo imagético ou como um “conjunto
instrumental”, a fornecer o repertório sobre o qual o artista bricoleur tra-
balhará (Lévi-Strauss, 1989). Ao invés de a cultura explicar a arte, será
a invenção da arte a permitir ver como a cultura se “inventa”.
Vejamos a letra de uma música funk para que eu comece a ilustrar
o meu ponto.
FP me deu um papo
Deu um toque no radinho
Pediu uma XT
E também uma Dobló vinho

O bonde foi na pista


Nem quero falá mais nada
Me dá logo o segredo
Se não te jogo na mala

Os irmão tá ligado
Você vai ficá fudido
Se tivé cu criança
Tu vai passá batido

Já peguei sua chave


Seu segredo e o documento
Teu carro tá na Chatuba
Dentro do estacionamento
Se tu não tá ligado
Eu vou logo te explicar
Eu não tirei a roda
E nem tirei o ar,
Sabe por quê?

153
a estética funk carioca

É encomenda, encomenda
Não podemos arranhá
Encomenda, encomenda
Passa teu carro! [...]1

Temos nesta letra diversos elementos, representações que remetem


a esferas do cotidiano da cidade do Rio de Janeiro e a algumas de suas
localidades. A sua narrativa nos conta sobre a ação de um “bonde”, neste
caso um grupo de bandidos, que vai até a “pista”, o espaço exterior à
favela, roubar carros e motos, em sua maioria de marcas estrangeiras,
encomendados pelo chefe do bando. Nos fala de um universo que, assim
como a música que o narra, se constrói por oposição ao mundo oficial,
oposição esta presentificada pela agressividade com que se dá o encon-
tro, mas que se alimenta dessa mesma “pista”, de seus elementos, dos
objetos e imagens ali colhidos, para se inventar.
A música que reproduzi acima é um funk proibido. De modo sinté-
tico, podemos dizer que a expressão classifica e reúne canções que fazem
apologia ao crime organizado nas favelas, ao enaltecer o nome de seus
chefes, ou tematizam as relações com o inimigo, que pode ser a facção cri-
minosa vizinha ou o inimigo comum, a polícia. Estas canções são assim
prescritas pela polícia e fontes indicam ter sido ela mesma a criadora do
termo.2 Mas, da perspectiva dos funkeiros, estas músicas podem ser cha-
madas “funk de contexto”, o funk que versa sobre a “realidade” da vida
na favela. Este dado não é pouco importante, pois os funkeiros muitas
vezes têm a percepção de que não é apenas proibido cantar sobre o que é
legalmente proscrito, mas sobre uma assimetria de poder que envolve a
relação dos habitantes da favela com a polícia e a qual a sociedade formal
não teria interesse em conhecer aprofundadamente. É por este motivo
que Mr. Catra me disse que faria um disco chamado “Papo Reto não é
Proibido”, indicando com o título que falar “a verdade dos fatos”, o que
acontece no dia a dia da favela, não pode ser considerado ilegal.
Pinta um na sua frente
Abordando o negão Sebá
Pergunta se está portando
Por isso vai lhe revistar

1 “Toque no Radinho”, de MC Frank.


2 De acordo com a declaração do delegado de polícia no documentário Mr. Catra, o fiel.

154
englobamento e subversão

Ofendem, são intolerantes


Marginalizam só para variar
Dizendo favela é local suspeito
Por isso vai lhe interrogar
Responde Sebá...

Meu movimento é político-social


Meu tráfico é cultural
Meu movimento é político-social
Meu tráfico é cultural
Vem comigo...

Vamos traficar cultura


Desentoca dessa
Marca atividade
O negócio é plantar pra colher

Tem peito, tem branco, tem mofo, tem sim


Empenhado no seu bem-estar
A favela é socialista
Me deu overdose de consciência

Religiosidade, Fé em Deus
Trazemos no coração
Paz, justiça e liberdade
Guerra pelo bem e sem desunião

E responde Sebá!

Meu movimento é político-social


Meu tráfico é cultural
Meu movimento é político-social
Meu tráfico é cultural

Vem comigo...

Vamos traficar cultura


Desentoca dessa
Marca atividade
O negócio é plantar pra colher

[Essa parada. Sem neurose. Taí. Isso daí é a realidade do cotidiano. De


vários cidadãos que infelizmente habitam em nossas favelas.]3

3 “Sebá”, cantada por Mr. Catra.

155
a estética funk carioca

Outro traço fundamental do funk proibido, que teve seu auge na


segunda década dos anos 1990, é o fato de este possuir circulação restrita
não apenas por ser prescrito pela polícia mas por ser este, a princípio,
o intuito de seus produtores. Esta retórica esteve presente nas falas de
Mr. Catra e Kapella, ao definirem-nas como músicas criadas para serem
executadas nos chamados “bailes de favela”, de e para a favela, como uma
conversa interna que não deveria ter “saído para fora”. Mas, como disse
Jota, “não tem jeito”: é próprio da música vazar, “romper barreiras”. E
como o próprio Kapella reconheceu em outro momento, “antigamente”
fazia-se um proibido e a música “virava no dia seguinte”, fazia sucesso
imediato fora da favela. Portanto, o proibido era um modo de comu-
nicação consciente com a sociedade como um todo. Eu argumentaria,
assim, que o “romper barreiras” não se dá somente por uma causali-
dade natural da música, mas porque está no âmago do funk e ocorre por
intenção de seus produtores. Uma intenção de subversão que se mani-
festa esteticamente e está a serviço da conectividade.
Ao mesmo tempo em que a conversa que o funk proibido estabe-
lece possui caráter endógeno e se engendra por oposição à “pista”, ela
necessita do outro e da sua incorporação para que esta realidade fechada
se defina. Mesmo que a circulação do proibidão se desse de modo res-
trito ao ambiente interno à favela, a dinâmica de sua criação permane-
ceria necessitando do mundo exterior e dos elementos a ela associados
para se estabelecer. Portanto, os dois mundos estão incondicionalmente
comunicados, sem contar que não é preciso muito esforço para se ter
acesso a estas canções. As mesmas podem ser adquiridas no comércio
informal carioca, mesmo que a sua negociação assuma caráter sigiloso, e
seja, pela lei, proibida. Desse modo, retornaria aqui à ideia de que o funk
correria paralelamente ao mundo oficial e acrescentaria que ele corre em
paralelo e em relação. O aspecto relacional, implícito aos traços antro-
pofágicos que moveriam os funkeiros (Vianna, 1988, p. 101), foi mais
propriamente elaborado em estudo sobre a confluência de mundos que
originou o samba (Vianna, 2002 [1995]). Sugiro, entretanto, que esta
ideia é fortemente compatível com o universo em que pesquisei.
O funk carioca, mesmo que apresente uma estética do choque que
rompe com a malemolência da malandragem e da não ruptura mais pró-
pria ao samba, como chamaram atenção alguns autores (Herschmann,

156
englobamento e subversão

1997; Coelho, 2004), mantém como concomitante estratégia de ação


a troca com essa sociedade exterior. A conceptualização da sociedade
formal em seu sentido durkheimiano possibilita que a estética funk se
engendre menos de modo a mostrar como ela se impõe ao indivíduo e
mais no intuito de evidenciar como é possível ultrapassá-la como força
coercitiva. A objetificação da sociedade formal enquanto coisa cumpre
o papel de uma escolha e permite ao artista funk de fato não fazer parte
dela, mas participar da mesma apenas parcialmente. Esta concepção de
sociedade como exterior ao coletivo por sua vez informa igualmente a
habilidade que os sujeitos criativos funk possuem na manipulação das
relações com os de fora, de modo a atualizar essa relação simultanea-
mente independente e dependente que o funk constrói.
Essa “sociedade” pouco inclusiva é tematizada explicitamente pelo
funk proibido, alimentará a putaria e será relacionada de modo mais
ambíguo por meio das paródias que faz Mr. Catra. Por outro lado, figuras
como Catra, Rocha, Kapella, os DJs Edgar e Sany Pitbull e o empresá-
rio Juninho, para citar apenas alguns com os quais trabalhei ao longo da
pesquisa de campo, jamais viveram à margem da sociedade formal, mas
se aproximaram da “favela” na própria constituição do funk carioca. É
preciso notar que Catra, Sany e Edgar são expoentes do funk ativos em
sua cena há pelo menos duas décadas, mas ilustram uma dinâmica que
ficou mais associada ao “mistério” que constituiu o samba, enquanto as
músicas dos bailes permaneceram sendo representadas como “música de
gueto”.4 Se a expressão é utilizada pelos artistas funk, isto pode se dar
muito mais pelo poder de atração que a favela exerce como um todo do
que por sua exclusividade na produção do gênero musical. Evitar a cris-
talização que o representacionalismo ofereceu faz parte do mesmo ponto
que persigo, o de descolar a apreensão do funk de uma explicação social
ou, mais propriamente, sociológica. A partir dos anos 1990 não se pode
mais apreender o mundo funk e a engrenagem que ele coloca em funcio-
namento como “um movimento de mão única”, um mecanismo antropo-
fágico mas que nada devolve ao mundo (Vianna, 1988, p. 102). Ele não

4 Um exemplo do poder totalizador que muitas vezes se outorga à favela na produção da música
funk carioca é o modo pelo qual o interessante documentário Favela on blast retrata a indi-
vidualidade artística de diferentes MCs e DJs do gênero musical, vinculando-os ao espaço da
favela e às associações com a escassez e a violência que supostamente caracterizariam o coti-
diano de seus moradores.

157
a estética funk carioca

apenas devolve ao mundo as músicas funk que passaram a ser criadas


na virada da década de 1990 como articula diversas esferas da sociedade.
O funk carioca é produto desse ir e vir entre sociedade formal e
informal do qual Catra é, nesse sentido, um expoente. Esse espaço ambí-
guo, que Vianna sugeriu chamar de “Quarto Mundo”, une não apenas
“pobreza e alta tecnologia” (Vianna, 1988, p. 109), mas se constrói atra-
vés de uma retórica do englobamento do seu contrário que na prática
não se concretiza. Daí a produção de um senso estético que é dupla-
mente próprio do funk e pautado pela similitude. Diferentes mas iguais.
Reproduzo agora outras duas músicas, para seguir ilustrando o
meu ponto. As duas letras são de músicas que resultam de leituras e
releituras de outras produções funk, de modo que o exercício de devo-
ração do outro permanece atuando internamente. Estas composições
ilustram de modo acurado a maneira pela qual a dinâmica que rege o
processo criativo funkeiro se assemelha a uma usina de imagens, colo-
cada em movimento por meio de processos miméticos que se cons-
troem por oposição e simultâneo englobamento do outro. Mas agora o
outro não está mais fora e sim ao lado.

Sai da frente
Lá vem eles minha gente
Agora o chumbo é quente
Eles têm toda razão
Não fique aí
Se não quiser virar defunto
Ir pra cidade dos pés junto
Dentro de um lindo caixão
Um perdeu querido pai
O outro perdeu o irmão
Os dois querem os bandidos
Pra levá-los à prisão

Se os bandidos resistirem
atirarem de repente
Se sarve quem puder
Porque daí é chumbo quente [...]5

5 “Chumbo Quente”, de Leo Canhoto e Robertinho, em versão remix feita pela equipe Furacão 2000.

158
englobamento e subversão

***

Atenção
Sai da frente
Porque nóis não é a gente
Na Mangueira o chumbo é quente
Eles têm toda razão
Não fique aí
Se não quisé virá peneira
Esse é o bonde da Mangueira
Esse é o bonde do Gordão
ADA perdeu o pai
O treis cu perdeu o irmão
Porque aqui é nóis à vera
É os Quarenta Ladrão [...]6

A primeira música é de uma dupla sertaneja da cidade de Goiânia,


formada nos anos 1960, fornecedora de outros personagens para o funk,
dando origem às montagens “Homem Mau” e “Jack Matador”. De nome
“Chumbo Quente”, sua melodia remete às músicas dos filmes de faroeste
e sua letra é cantada com um sotaque peculiar, como o de um vaqueiro
de uma área rural e interiorana, o que concede certa graça à produção.
Esta versão já foi remixada. Recebeu batidas funk e samplers que repro-
duzem o som dos tiros de armas de fogo, o chamado “ponto de tiro”. Mas
esta música jamais foi considerada um proibidão.
A segunda música é um funk proibido e resulta da subversão da
anterior, que, por sua vez, já sofreu uma modificação prévia. Esta segunda
música trata de ações ilícitas em uma favela carioca, a Mangueira, e
possui uma outra versão, que enaltece a mesma favela da Chatuba, do
Complexo do Alemão, no bairro da Penha, mencionada no proibidão
“Toque no Radinho”, mais acima. Mas diferentemente da música que
lhe inspira, que fala da “bandidagem” de modo essencialmente cômico,
não há humor em sua narrativa. Além disso, para quem compreende o
dialeto próprio às facções, ela discorre explicitamente sobre grupos cri-
minosos rivais e seus principais chefes. Ao falar que “nóis não é a gente”
o MC está se distinguindo de seus antagonistas. “Nóis” é o termo que

6 “Chumbo Quente Treis Cu”, de MC Frank e MC Tikão, do álbum 38 Sucessos da Uruguaiana.

159
a estética funk carioca

os membros da facção criminosa Comando Vermelho utilizam para se


autodenominarem, enquanto “a gente” é o termo correspondente utili-
zado por um dos bandos rivais representado na música, o Amigos dos
Amigos, ou ADA (leia-se a-dê-a). O Terceiro Comando, outro bando
rival, é denominado “treis cu” na música. É interessante notar que as
três músicas que expus acima nos permitem visualizar a vida destas
pessoas como se construídas através de uma relação conflituosa com a
alteridade, o de fora, fato que aparece recorrentemente nas falas nativas.
Mas estas narrativas descrevem o outro inimigo mais como um rival que
estimula a disputa, do que como ameaça disruptiva.
Estas músicas, ao nos oferecerem a possibilidade de pensar o meca-
nismo de criação funk em proximidade com a lógica identificada por
Dumont (1992) entre as castas na Índia, onde a oposição entre o puro
e o impuro seria o princípio ideológico do sistema (Dumont, 1992, p.
83), mostram-nos como o “englobamento do contrário” parece mesmo
ser uma “ideologia”, que se reflete na arte e na estética funk. O conteúdo
semântico de suas letras imagéticas produz uma hierarquia expressa
pelos objetos materiais, pelos bens de consumo elencados ao longo da
narrativa. Novamente, esta hierarquia não é denunciada para ser desfeita,
mas é exposta como o mote da própria dinâmica cultural e artística.7
Os objetos materiais estão presentes no proibido que abre este
capítulo, naquele transcrito imediatamente acima, e que continua ilus-
trando a maquinária criativa funk na música abaixo. A letra desta con-
cede igualmente destaque diferenciado às imagens artefatuais e suas
marcas, e indica a recorrência de uma relação ambígua com o mundo
oficial que ao mesmo tempo renega o “asfalto” e dele se alimenta. A ver-
são que apresento é de uma gravação ao vivo, o MC que “puxa” a letra
faz uma pequena introdução.
[Essa daqui é pros cinco sete do bagulho, tá ligado? Os moleke boladão
que vai lá fora buscá. Lá no Centro, lá onde o couro come e ninguém vê,
tá ligado?].

7 Lagrou, a propósito dos povos de línguas pano amazônicos, nos fala de um modo não dicotô-
mico mas ainda assim dualista de operar a classificação da diferença, em que ser A não significa
não ser B, de modo exclusivo (Lagrou, 2001, p. 96). No caso específico kaxinawa, as oposições
presentes no pensamento e na ação existem para serem dissolvidas (Lagrou, 2001, p. 105).

160
englobamento e subversão

Bolado à vera, maior resignação


Ontem eu tava durinho
Hoje tô chei’de milhão
Por quê?

Se é pá roubar, irmão
Não deixe pra depois
A Mangueira é cinco sete
Cinco sete é vinte dois

Bolado à vera, maior resignação


Ontem eu tava durinho
Hoje? Chei’de milhão

Se é pá roubar, limpo
Eu não deixo pra depois
CDD é um cinco sete
E o Mangueirão é vinte dois

Civic, Honda, trago Audi, S10


Osklen, Cyclone, ando de Nike nos pés
Aquele Citröen Brasil que é demais
Cinco sete boladão, só anda de boné pra trás [...]8

O MC “puxador” chama então Mr. Catra para fazer uma partici-


pação, pedindo a ele para “mandá o refrão”. Dono de uma voz rouca
e melódica, que faz interessante contraste com outras vozes funk, Mr.
Catra faz esta sua participação entremeada por risos e gargalhadas, e em
seu tom podemos adivinhar a jocosidade de sua performance. Ele canta,
Civic Honda [ha, ha, ha]
Civic Honda...
Humildemente...
A minha boca é sinistra
Vende vários papéis [ééééé]
Humildemente
De 5 e de 10

8 Cinco sete, um cinco sete e vinte dois são, respectivamente, referências aos artigos do código
penal que concernem os crimes culposos de trânsito, o roubo envolvendo violência ou impos-
sibilidade de reação e o crime de coação irresistível e obediência hierárquica.

161
a estética funk carioca

Humildemente, eu vou dá um papo


Preste muita atenção
Eu vou dá uma ideia
Só pros bondes de ladrão
O bonde é sinistro
Com... ninguém se mete
Já falei
É o Bonde do cinco sete
Humildemente na onda
Eu vou falá pra você [ha, ha, ha]
A gente sai pa pista pode crê
O bagulho fica sério
Ha! Não dá não
A gente rouba burguês
Gaúcho e rouba patrão
Na rua é a gente que manda
Tu sabe como é que é
O bagulho é disposição
No nosso bonde não cola mané, então
Civic Honda, trago Audi S10...
(falando apenas, sem cantar)
Vou te dizer humildemente
Meu Nike tá no pé
Baseado na boca
Humildemente? Uísque e Red Bull...9

mr. catra e o funk – alterando a cultura


Mr. Catra introduz o riso, ausente até então nas outras músicas de
funk proibido. Introduz ainda a figura do patrão e do burguês, que
representam “a sociedade” à qual o artista e o funk se opõem de modo
ambíguo, conectivo.
Mr. Catra já foi um dos nomes mais representativos do funk proi-
bido, em uma época em que, me conta, havia “ideologia envolvida, ideo-
logia do coletivo”, e ser MC de proibido era um “estilo de vida”.

9 “157 Mangueira”, com Mr. Catra, Cidinho e Doca. “Uísque e Red Bull” refere-se a uma beberagem
excitante e estimulante, bastante consumida entre os funkeiros e resultante da mistura da bebida
de origem escocesa com alguma bebida energética, cuja marca mais conhecida é a Red Bull.

162
englobamento e subversão

Nunca deixei de cantar proibido, só que eu sempre cantei Proibido com


ideologia, então eu não cantava proibido, cantava um canto revolucioná-
rio. Hoje eu sei que eu nunca cantei proibido, eu sempre cantei revolucio-
nário, funk revolucionário.

Pergunto-lhe então o que o levou a “abraçar esta causa”, já que


Wagner, como é chamado no ambiente familiar, não teve uma infância
dura, nem passou por privações. Ele me diz que foi a sua “cor” e a sua
“fisionomia” que lhe levaram a buscar uma vida outra. Este “ponto de
vista” que o corpo lhe concede parece-me uma chave importante, espe-
cialmente porque questões de cor raramente são mencionadas e desta
vez foram expostas em um momento em que conversávamos a sós, na
sala de sua casa, o que era uma rara oportunidade. As crianças maiores
estavam na escola e Sílvia se recuperava no hospital de um mal-estar
que sentira em função de sua gravidez. Catra elabora a “perspectiva
do corpo” de um modo que desloca a discussão das questões de “raça”,
como categoria de pensamento sócio antropológico, promovendo a sua
desessencialização. Como ele mesmo diz, “estamos nos anos 2000” e
não será mais através de um discurso explícito da denúncia que se cha-
mará atenção para as discriminações que a cor da pele gera.
Havíamos deixado o estúdio após Mr. Catra ter dito para os músicos
e outros ali presentes que iria até a sua casa, em terreno adjacente, comer
algo. Já passavam das quatro horas da tarde e ele precisava, disse, aplacar
a fome repentina que lhe acometera. Mr. Catra chama-me então para
acompanhá-lo. Ele sabia que eu queria conversar e ele mesmo me avisara,
em minha chegada, que estava com especial vontade de falar. Saímos do
estúdio e fomos andando pela calçada gramada. Uma pequena multidão
se formava ali. Pais, muitos deles com suas bicicletas, aguardando a saída
de seus filhos de uma escola municipal próxima. Aquela aglomeração
chamou a minha atenção e Catra, talvez por isso, me disse que aquela
escola vizinha pesou na escolha daquela casa para viver. Eu lhe disse que
também gostava muito do alarido de crianças brincando em pátios esco-
lares, como eu mesma tivera nos fundos de minha casa.
Entramos pelo jardim e Noemi, então com três anos e a menor da
casa, veio até nós. Fomos passando pela cozinha e, já sentados na sala de
estar, Wagner pede a Célia, a empregada, que lhe traga algo para comer.
Célia lhe traz um pedaço de bolo e aproveita pra dizer à Noemi que saia

163
a estética funk carioca

de meu colo. Eu disse que não havia problemas, mas Célia insistiu, acre-
ditando que a pequena atrapalharia a conversa. Catra estava de fato ins-
pirado para falar e talvez por estar já muito ciente de que poderia fazer
declarações que pudessem comprometer a imagem do artista, controlava,
com o timbre de sua voz, a capacidade de registro de meu gravador digital,
programado para, na ausência de voz ou na presença de sons inapreensí-
veis, provocar uma pausa na gravação. Catra, conhecedor de sua voz e dos
equipamentos de captação de som, aproveitou sua habilidade para falar e
evitar o registro. Eu disse-lhe que ele precisava falar mais alto, porque ele
falava coisas importantes e assim nada seria registrado. Ele me respondeu,
com um riso sutil, dizendo que sabia e usou como justificativa o compro-
metimento pelo qual a “mística do Catra” poderia passar. Eu lhe perguntei
se ele não cogitava o fato de as ambiguidades que me revelava poderem
depor a seu favor. E ele me respondeu: “não existe gangster playboy”.
A inquietação que este duplo pertencimento parece gerar, e que
surge no corpo, pode ser traduzida por meio do contraste estabelecido
pelas figuras do “playboy”, do “favelado” e da “sociedade”, presentes
tanto nas falas cotidianas como na música funk como um todo. Catra
me disse, nessa mesma conversa, que é “um playboy fudido”, se refe-
rindo ao fato de nunca ter sido “favelado”, tornando evidente a oposição
entre um e outro personagem. O “playboy”, se não está tão presente nas
letras das canções, é representação onipresente nas falas dos jovens fun-
keiros, como pude notar em outra ocasião (Mizrahi, 2006b). A catego-
ria nativa designa os filhos da classe média carioca, os jovens “com con-
dições”. Ou nas palavras de Thamyris, eles são “os boys da Sul”, os garotos
bem nascidos da Zona Sul, área privilegiada da cidade. Cíntia, mora-
dora do Morro do Cantagalo, localizado na Zona Sul entre os bairros de
Copacabana e Ipanema, aprofunda a oposição ao dizer que “no morro
não tem playboy”, e que “mesmo tendo condições ele não é playboy, ele
é filho do cara”, filho do chefe local.
Pergunto a Catra como ele mesmo se define artisticamente, já que
canta outros gêneros musicais, devendo-se notar que o modo como
ele se relaciona com o hip-hop não pode ser considerado um flerte. Ao
contrário, o MC vem cada vez mais incorporando músicas do gênero
em suas performances. Catra responde que é funkeiro e concede fortes
elementos a justificarem sua afirmação. Reproduzo abaixo o trecho de
uma entrevista que fizemos, novamente na sala de sua casa, após um

164
englobamento e subversão

dia bastante intenso no estúdio. Era o início da noite, e ao contrário do


modo como deu-se a entrevista anterior, a casa estava movimentadís-
sima. Vários músicos o aguardavam na varanda que separa a sala do
jardim, inclusive Black Ney, que esperava com seu agente pela opor-
tunidade de entabular uma conversa apaziguadora com Catra. Sílvia,
que se arrumava para ir com as crianças à “igreja”, o “templo judaico”
comandando por um “pastor”, localizado nas imediações de sua casa, se
fazia presente através de pequenas interrupções, fosse para falar com o
marido ou para dar sua opinião em relação ao que conversávamos.
É muito interessante observar como Catra explicita a possibilidade
que a “cultura” funk lhe concede de fazer-se a si mesmo através dela ao
mesmo tempo que o permite “alterá-la”, bem aos moldes da dinâmica
que, segundo Edward Sapir (1949), viabiliza a constituição de uma “cul-
tura autêntica” e a pessoa individual que lhe corresponde.
Vou falá legal. Eu me considero funkeiro. É o som que me lançou, foi o som
com que me identifiquei, é a cultura que eu alterei, que eu tenho liberdade
para mexer. Do beat, até a dança, até as levadas, até o flow (...) Foi a cultura
que me abraçou, que me adotou. E se hoje eu tenho alguma coisa é graças
ao funk. (...) É a minha cultura de verdade, porque eu faço do meu jeito,
do jeito que eu quero fazer. Do jeito que a minha cultura me aceita. Porque
a minha referência no funk sou eu mesmo. Escolhi [o funk] em primeiro
lugar porque é o lance mais autêntico pra se fazer. Eu sabia que se eu fosse
alguém dentro desta cultura eu não seria mais outro. Eu seria alguém. Se eu
fosse alguém na cultura do samba, eu seria mais um do samba; do rock, eu
seria mais um do rock; do rap, eu seria mais um do rap. Você não tem espaço
para sobressair. Não tem como inventar um samba novo, um rock novo.

E quando lhe pergunto porque não escolheu ser “playboy”, ele diz:
É mais maneiro ser funkeiro. Porque [sendo] playboy, você só é playboy.
[Sendo] funkeiro você é ídolo. É melhor você dançar conforme a música,
ou você fazer a música pra você dançar?

Não é que Catra não tenha sido “playboy”, mas ser funkeiro lhe per-
mitiu ser “playboy” ao seu jeito. Um “playboy gangster”, como ele disse.
Catra confunde, subverte os papéis. Se ele é “playboy”, cantará em
nome da favela, mostrando que “favela também é arte”, como ele diz em
uma canção, levando “cultura” para as favelas.10 Seu “tráfico”, como ele

10 “Favela também é arte”, de Dr. Rocha e Mr. Catra.

165
a estética funk carioca

afirma na música Sebá, ao início deste capítulo, “é cultural” e seu “movi-


mento é político-social”. Esta possibilidade que a história pessoal deste
artista lhe oferece, como a de assumir tão diferentes pontos de vista, lhe
permitirá fazer pontes entre mundos, pinçando daqueles pelos quais cir-
cula os símbolos com os quais jogará, manipulará, conectando mundos
supostamente não comunicáveis. Foi isto que seu pai Edgard lhe ensinou
a fazer, misturas e mediações de um modo que, acredita Catra, é mais
próprio ao negro. Daí seu pai ser “mais preto do que muito preto”, pois
possui, como poucos, as habilidades necessárias à empreitada da media-
ção, uma “sofisticada capacidade de ambiguidade, justaposição e ironia”
que os “funkeiros (...) parecem cultivar”, como bem notou Herschmann
(2000a, p. 114). O funk revela como a arte é expressiva do que Bateson
(1973) chamou de “graça” ou “integração psíquica”, localizáveis não em seu
aspecto representacional mas na “informação psíquica” implícita em seu
“estilo, materiais, composição, ritmo, habilidade” (Bateson, 1973, p. 236).
É a partir da integração entre mente e corpo, como proposta por
Bateson, que Ingold (2000) define o conceito de skill, habilidade – uma
“forma de conhecimento” e uma “forma de práxis” [form of practice]
– e mais especificamente a segunda das cinco de suas dimensões, atra-
vés da qual o autor, ao criticar Marcel Mauss, postula que “a habilidade
[skill] não pode ser vista simplesmente como uma técnica do corpo”
(Ingold, 2000, p. 352) mas como uma propriedade “do campo total
de relações constituído pela presença do organismo pessoa, indisso-
luvelmente corpo e mente, em um ricamente estruturado ambiente”
(Ingold, 2000, p. 353). A partir do estudo das comunidades de caçado-
res e coletores, o autor desfaz as separações entre tecnologia, técnica e
meio ambiente, nestes incluídos as relações sociais, de um modo que me
remete ao funk, resultado de habilidades que tanto produzem a música e
a definem estilisticamente como conduzem a vida em sociedade.
O sucesso de seu modo de vida depende de possessões de habi-
lidades sensíveis de percepção e ação. Ainda assim, como proprieda-
des de pessoas, desenvolvidas no contexto de seu envolvimento com
outras pessoas ou agências pessoa-similares [person-like agencies] no
meio ambiente, as habilidades técnicas são em si constituídas dentro da
matriz de relações sociais (Ingold, 2000, p. 289).

166
englobamento e subversão

Catra diz que desde “moleque”, com cerca de onze anos, sabia que
seria músico. E foi na escola que montou sua primeira banda, de rock,
que se chamou O Beco. O rock era, para Catra, “a cultura mais maneira
do Brasil”. “Escutava tudo” e “gastava muito dinheiro com discos”:
“Ojerizah, Picassos Falsos, Biquíni Cavadão, Ultraje a Rigor, RPM, Ira,
Garotos Podres, Replicantes, As Mercenárias, Kid Abelha, Lobão”. Mais
tarde ele formou o grupo de hip-hop O Contexto. E depois, continua,
“o funk veio e me adotou”. Foi através do MC Duda do Borel, a quem
conhecia “desde criança” da área onde ambos viviam, que Catra chegou
ao funk. Duda desfez a dupla de MCs que formava com William, e lhe
“ofereceu” o funk. Formaram, com outros músicos, o grupo Caravana
do Borel, que durou pouco tempo.
Gosto de cantar pros manos
Muita gente não sabia
É no Morro do Borel que eu faço
Rap na marizia

E na Indiana, shock
No prédio Maracaí
Quando eu rolo pra você Ratinho
Rola para mim

Não é melhor e nem pior


Não temos pena, não temos dó
É lá de Pernambuco, é o bom
É da Cabrobó

Hey, lá, hey lá...


No Morro do Borel
Chapadão na rua São Miguel e na Conde Bonfim
Formiga, Usina e Catrambi

Se liga de processo
Esse rap está demais
Como diz o Pensador que veio
Com o cachimbo da paz

E continua a queimação
O half vai rolando na minha mão
Depois que eu torrar
Eu canto para os irmão

167
a estética funk carioca

Hey, lá, hey lá...


No Morro do Borel
Chapadão na rua São Miguel e na Conde Bonfim
Formiga, Usina e Catrambi

Um alô para os funkeiros


E orgulho em ser negro
Foi no Morro da Barão
Que eu conheci o ouro preto

Termino esse rap, shock


Pois chapadão eu refleti
Sou do Morro do Borel
Sou eu Duda MC

Hey, lá, hey lá...


No Moro do Borel
Chapadão na rua São Miguel e na Conde Bonfim
Formiga, Usina e Catrambi11

Pigmeu, empresário atual de Catra, já trabalhava no meio, inclu-


sive com Duda, e disse a Catra que quando ele decidisse seguir carreira
solo no funk que o procurasse. Pigmeu, conta-me Catra, foi o primeiro
empresário de Lobão e de Lulu Santos, respectivamente cantores do
rock brasil e do pop nacional, além de ter sido o DJ do debochado
Chacrinha, apresentador de um programa de auditório da TV Globo,
na década de 1980.
Uma nova tarde no estúdio da Sagrada Família, com uma breve pas-
sagem pela casa de Sílvia, reiterará a constante busca de Catra pelo cami-
nho da ambiguidade, da não explicitação e do não confronto. Através
do processo de tradução da letra de uma música funk, produzida em
contexto estrangeiro, anteciparemos a discussão sobre o duplo sentido,
mostrando-o como recurso fundamental para a mediação, e notaremos
a relevância que a oralidade possui nesse ambiente. Por fim, os even-
tos que se seguem oferecerão uma interessante ponte para tratarmos do
subgênero putaria.

11 “Rap da marizia”, Mr. Catra e Duda do Borel.

168
englobamento e subversão

Silvinha estava com cerca de vinte dias e a atmosfera da casa, clara e


de janelas abertas, já era bem diferente da que se formava na última vez
em que eu lá estivera, de pouca luz e introspecção, necessárias à recém-
nascida e incentivadas pela chuva. Catra recém-chegara da praia e cir-
culava de sunga em tom verde ácido, estampada por um grafismo tri-
bal na cor azul marinho em sua lateral traseira. Viera acompanhado do
rapaz muito claro, sem cabelo na cabeça e de corpo roliço que se sentara
ao sofá lateral. Era Sapinho, como supus, o carioca que se mudou para
Israel há cerca de dez anos e de policial passou a MC de funk carioca.
Fazia a sua visita anual ao Brasil, oportunidade para que ele e Catra
atualizassem sua relação de parceria, consolidada quando este esteve em
Israel no ano de 2001.
Quando entrei pelo portão da casa, os cães, soltos para que o canil
fosse limpo, escaparam, entraram na casa do outro lado da rua e supos-
tamente atacaram os cães vizinhos. A dona destes estava agora ao por-
tão da casa de Sílvia, na tentativa de obter satisfações, no que era aten-
dida pela funcionária da família. Catra, no interior da casa, se postara à
janela para acompanhar de longe o desenlace do entrevero, ladeado por
Sapinho. Eu, que já havia passado por momentos de tensão quando um
dos cães pit bull ficara lambendo minha perna até que abrissem a porta
da casa, me coloquei atrás dos dois, e fiquei, como eles, observando o
bate-boca à distância. Sapinho diz a Catra que ele terá que pedir que
prendam os cachorros, pois tem medo deles e não sairá da casa enquanto
estiverem soltos. Sílvia desce as escadas de seu quarto e, com olhar altivo
e certo desdém, passa por nós, sai pelo jardim e desfaz o mal-entendido,
enquanto os dois homens olhavam e davam ordens da janela. Sapinho se
mostra admirado com a coragem de Sílvia e, quando ela entra de volta
à casa, diz que ela é “palestina”, se referindo ao modo como ela agiu mas
sem que ficasse claro para mim o que o emprego do termo significava.
Sentado novamente ao sofá, Sapinho fala em tom alto que Sílvia
deveria falar para Thamyris voltar para casa, pois Cíntia já não está na
praia e Sílvia não pode deixar que a moça fique sozinha. Sílvia, irri-
tada, pergunta a ele como Thamyris “vai ferver com um sol daqueles”,
fazendo um trocadilho com a gíria “ferver” – que se refere aos excessos
no comportamento – e o calor excessivo que fazia na praia. Solidária,
comento com Sílvia se por acaso uma moça de quase dezessete anos

169
a estética funk carioca

não pode ficar na praia sem a companhia de pessoas mais velhas. Catra
está calado, sentado ao sofá grande, de frente para a televisão, e apenas
escuta a conversa. Sapinho insiste e diz que Thamyris ficará “azul”, com
tanto sol. Sílvia, em tom que mescla irritação e deboche, diz “pois é,
[azul] igual ao pai dela”. Sapinho não desiste facilmente e liga para Alan,
o filho mais velho de Catra, pois acredita que deve ficar “mais colado
nele”, para orientá-lo. Sapinho está também preocupado com a chave
do estúdio, que teria ficado com Thamyris, mas que já está em poder de
Catra, sem que aquele houvesse se dado conta.
Pergunto a Sapinho se ele vive há muitos anos em Israel, e ele me
responde que sim e explica que veio ao Brasil a trabalho, sempre presen-
tificando a proximidade que tem de Mr. Catra e de sua família como um
todo. Ele me pergunta então se sou judia, e eu respondo positivamente,
sem que minha resposta pareça a ele uma novidade, ainda que verbal-
mente ele expresse que sim. O que penso era novidade para a família
foi o fato de eu ter vivido alguns anos em Israel, como expliquei em res-
posta à pergunta de Sapinho, relatando os lugares por onde morei. Catra
continuava quieto, aparentemente assistindo a uma luta na televisão.
Catra começa a se movimentar para ir para o estúdio. Sai pelo
jardim enquanto veste uma t-shirt branca com dizeres em preto, da
RapSoulFunk, a empresa que gerencia artistas de hip-hop e funk e com a
qual ele tem conexões. No Rio a RapSoulFunk está a cargo de Juninho,
compadre de Catra e Sílvia, e em São Paulo é tocada por Primo Preto,
a quem Catra conheceu ainda quando cantava com Dr. Rocha. Catra
conta-me um tanto maravilhado que o “parceiro”:
... vem a ser irmão do Branco Mello! Os dois são filhos da Lu Brandão. Um
é preto e o outro branco, tá ligado? Muito louco! O Primo Preto faz para-
das de funk, hip-hop, enquanto o Branco Mello é rock n’roll.12

A admiração de Catra expressa o modo como ele aprecia os jogos


contraintuitivos que a cor da pele pode oferecer. Não lhe agrada cristali-
zar na aparência física as razões que lhe levaram a, por exemplo, seguir
pelo funk. Ele, como Primo Preto, é negro e escolheu o Rap, mas veio
de família em que conviviam brancos e negros. Como ele mesmo de um
certo modo me corrigiu quando lhe perguntei, quase afirmando, se a

12 Branco Mello é um dos componentes do grupo paulistano de rock Titãs.

170
englobamento e subversão

“identificação com o negro” não teria contribuído pra a sua escolha: “É,
mas eu fui criado numa família em que meu pai não era negro. Meus
irmãos não eram negros”. O que lhe interessa é esta possibilidade de
equivocar o outro com a sua própria aparência e brincar com as precon-
cepções que este possa vir a ter não apenas sobre a aparência física, mas
em torno de sua conjugação com classe social e educação formal. E isso
ele fará magistralmente no palco, ao executar as paródias musicais.
No estúdio, Buiú já está a postos. Sentado à mesa de gravação, o
jovem DJ tem entre as mãos uma MPC, uma “drum machine”, que até
então ele jamais manipulara. Conforme testa os pads, as teclas que pres-
sionadas emitem o som dos samplers, vai se dando conta da dificuldade
que enfrentará e, em um dado momento, desorientado com tanta novi-
dade, desabafa: “É muita informação, mané”. Catra ri de seu comentário
e lhe diz que ele vai ver o que é “muita informação” quando estiver no
palco com “aquele montão de mulher” gritando à sua volta e ele tiver
que improvisar ao vivo. Buiú até então trabalhara na manipulação de
sons por meio do uso de computadores portáteis.
Catra está sentado à direita de Buiú, afastado do DJ, e eu me
coloco recuada, ocupando o vão que ficou entre os dois, sentada sobre
o pequeno banco de assento partido, o único disponível. A tarde será
dedicada às produções de Sapinho, em especial o rap que fez recen-
temente e que a turma ainda não conhece. Ele canta a letra, acompa-
nhado de uma base formada por um beatbox de Catra e um “tambozão”,
colocada por Buiú.
Eu tô falando dos HB
Que agora eu vou quebrar
Pra quem não sabe o que é HB
É os homem-bomba boladão
Querendo se explodir
Por causa de uma facção

Não acreditam em Eloym


E nunca terão perdão
Eloym achi chashuv13
E eu posso te confirmar
Eu fui orar no muro
E vi meu sonho se realizar

13 De acordo com Sapinho, é tradução para “Deus é fiel”.

171
a estética funk carioca

Eu acho já tá na hora
De nóis botá a chalifá14
Pa nóis ir naquele lugar
Botar as mina pra nha, nha

Pra você me conquistar


E poder me convencer
Você vai ter que me mostrar
O que é o prazer

Eu sou rato de Israel


Já peguei as muçulmana
Agora vou botar
As palestina aqui na cama

Elas sabem muito bem


Que o meu bonde é só blindão
Eu vou meter com elas
De colete e cinturão

E pra finalizar
Vários toques pros irmãos
Daber she zé anachnu15
E um grande shalom

Esse papo que eu te dei


É a pura realidade
Vem pra cá pra Israel
Mas fique na atividade

Pois a onda do momento


Agora vou te falar
É o retorno de Jerusa
E o pitch chamudá

Bevakashá, bevakashá
Ttafzikim a milchamá.
Bevakashá, bevakashá
Tafzikim a milchamá16

14 De acordo com Catra, significa roupão.


15 Significa literalmente “fala que é nóis”, o lema associado à facção Comando Vermelho mas cujo
emprego ultrapassou seu contexto original e é utilizado como modo de reconhecimento mútuo
e afirmação de integridade moral.
16 Estes últimos versos significam “por favor, por favor, parem com a guerra”.

172
englobamento e subversão

Sapinho transpôs para a “realidade” israelense a lógica oposicional


cantada nos proibidões do funk carioca, que invariavelmente versa sobre
os embates travados entre as facções criminosas ou entre estas e a polí-
cia, e quer agora executar a música com Catra no Brasil. Mas Catra está
interessado não tanto nas polarizações entre opostos e sim nas ambi-
guidades e na mediação que eles oferecem. Ele refaz a letra com a ajuda
de Dr. Rocha, que a reescreve em uma folha de papel, corrigindo a sua
métrica. Rocha é uma figura mais fechada, introspectiva. É de alguma
maneira o intelectual do grupo, enquanto Catra é o filósofo. Rocha é
como o duplo do cantor, cuidando para que as ideias que compartilham
sejam passadas do modo que julgam adequado. Durante a entrevista
que fiz com Sandro e que forneceu muitos dos dados da reflexão no
capítulo anterior, Rocha esteve sempre presente, fazendo algumas inter-
venções. O mesmo se deu quando eu conversava a dois com Kapella e
em outros momentos. Mas só fui de fato notar sua presença no processo
de escrita, ao escutar as gravações em áudio que também a subsidiou.
Rocha, ainda que pouco ativo em sua faceta artística, é muito mais do
que o administrador do estúdio.
Catra diz a Sapinho que ele precisa rever o teor de sua letra.
Contrastando com a voz acelerada do ex-policial, que se defende dizendo
que não está “mentindo”, Catra argumenta pausadamente que “você não
pode fazer isso”, pois temos no Brasil “uma comunidade árabe gigante”.
Sapinho continua dizendo à Catra que “dos HB” ele “tem que falar” por-
que é “a realidade”. Ao invés de discutir, Catra lhe fala “olha só”, e com
humor vai amenizando a letra da música: “Pra quem não se ligou / Uma
pista eu vou te dar / Pra comer quarenta minas / Não precisa se matar”.
Eu demoro a me dar conta do que fala e pergunto “por que quarenta
minas?”, e Sapinho logo explica que a “realidade dos palestinos” é que
se “explodem” porque “lá no além vai tá todas esperando por eles”. E eu
digo, “ah, as virgens”, e Catra então dá o seu parecer: “Porra, que merda.
Pegar quarenta cabaços. Que problema...”. Eu rio, e ele se acaba de rir,
perguntando a Rocha se “tem seda aí?”, que responde negativamente
e acrescenta que “os cara já se mata pensando em arrumar mulher no
além”. Catra aproveita a deixa do parceiro e continua:

173
a estética funk carioca

“O problema é mulher a vida inteira pra [ainda] se levar na morte. Além de


ter problema com mulher a vida inteira, ainda arruma problema depois da
morte. Pô, [a pessoa] vai morrê, [ao] invés de pegar quarenta piranha, vai
pegar quarenta cabaços? Porra! Ainda vai ter problema meu irmão!? Porra...”.

Sapinho tem urgência e reclama que discutem em momento inapro-


priado sobre o estrago que a cadela teria feito em algum equipamento do
estúdio: “Cês querem colocar o bagulho da Verônica agora no bagulho
da música?”. Catra continua a procurar um caminho alternativo para a
música: “Pra quem não sabe / eu vou esclarecer / a ignorância de um
cidadão / querendo se explodir / por causa de uma facção”. Catra vai
fazendo os ajustes sempre com uma base funk por trás, submetendo a
nova letra ao beat do funk. Sapinho diz que reconhece “que o bagulho tá
pesado com as palestinas e as muçulmana”, mas que em relação ao resto
“ou você fica do lado do judeu, ou você fica do outro lado, parceiro”. E
Catra lhe responde dizendo que “os cara [os árabes] têm a mesma des-
cendência nossa [judeus]”. Mas Sapinho não se convence, e pergunta se
“os evangélicos escuta putaria?”, e Catra lhe diz: “Meu parceiro, esquece
os evangélicos. Isso daí não é religião, já começa por aí. Os evangélico
não é religião, não confunde as coisa, tá ligado?”. E Sapinho lhe pergunta
se “judeu e árabe não é religião, é o quê?”. E Catra explica que “isso daí é
religião. Isso daí, desde que o mundo é mundo que judeu é judeu e árabe
é árabe”. Solta então o “psiu” que usa quando quer receber atenção para
o que fala e diz “cristão, católico, isso é invenção de moda”. Enquanto
Sapinho e Catra discutem a “visão” diferenciada que possuem, Buiú
solta os samplers que reproduzem os sons dos tiros de armas de fogo.
Pelo rádio, Catra avisa à Sabrina que hoje quer um carro com
motorista, pois quer “beber” nesta noite, e cantarola o refrão de um
funk do Mágico MC.
Hoje eu tô facim, hoje
Hoje eu tô facim, hoje

Vem quebrando de ladinho


Vem quebrando de ladinho
Vem quebrando de ladinho
Pode vim que eu tô facinho

Hoje eu tô facim, hoje


Hoje eu tô facim, hoje

174
englobamento e subversão

Eu sou Mágico MC
Represento toda hora
Vou tirando devagar
É meu boneco da cartola [...]17

Em seguida Catra se vira para Buiú e reclama muito seriamente,


sem qualquer riso:
Tira a tua cara daí! Porra! Por que só você bota essa sua cara horrível ali,
cara? Ninguém quer ver tua cara não, cara. Porra, toda hora abre a porra
vem um feioso ali. Ainda tá sorrindo pra nóis. Porra, ninguém é obrigado
a ver tua cara toda hora não, meu irmão. Porra! Só homem no bagulho, mó
carona feia. Porra, bota uma paisagem, um bagulho que quer dizer Buiú...

Catra refere-se à imagem que o jovem DJ colocou como o ícone de


seu HD na tela do monitor do computador. Enquanto isso Sapinho está
aflito, quer entrar na cabine de gravação e fazer as alterações na letra
de improviso, conforme vai cantando. Catra lhe pede tranquilidade:
“Calma que a gente tem que terminar aqui agora. Eu tô fazendo o esboço
do bagulho. Pô, cê quer fazer os bagulho... Ali é o esboço da música.
Calma. Calma, cara. Pelo amor de Deus”.
Catra acrescenta mais um
verso à música: “‘E a palestina,
me amarro como ela dança’,
pronto, cabô! ‘Elas sabem muito
bem / que meu bonde é mó blin-
dão / e pra ter várias mulheres
/ tem que ter disposição’”. Buiú
completa então com deboche:
“e uma carteira de hambúrguer”.
Uma carteira recheada pelas
notas de dinheiro, que saem
pelas bordas como sairiam os
alfaces do sanduíche, e os “bol-
dinhos”, a erva que “é natural e
não faz mal”.

17 “Hoje eu tô facim_light”, MC Mágico.

175
a estética funk carioca

A letra está quase pronta e Catra diz a Sapinho que a dificuldade


está no fato de ele ter colocado em um mesmo rap diferentes temas:
Sabe qual é o mal, que é grande pra caralho. Aqui dá pra fazer três rap.
O Sapinho viaja. Você começa falando de um bagulho de religião, daqui
a pouco tá na putaria, daqui a pouco tá falando de maconha. Pô, você é
muito louco. No mesmo show dá pra fazer, mas na mesma música, par-
ceiro? É demais, parceiro. Você faz proibidão, putaria, gospel, consciente,
na mesma música?!.

A música fica pronta, e eles definem o trecho que será cantado por
Sapinho e a parte que caberá a Catra.
Vou te dar um papo
Você tem que ser fiel
Vim de longe pra caralho
Das colina de Israel

Para quem não me conhece


Sou Sapinho MC
Lá perto de casa
Tão querendo se explodir

Para quem não se ligou


Uma pista vou te dar
Pra comer quarenta mina
Não precisa se matar

E para quem não sabe


Meu mano vou esclarecer
A ignorância de um cidadão
Querendo se explodir por causa de uma facção

Não acreditam em Eloym

E nunca terão o perdão


Eloym achi chashuv
Eu posso te confirmar
Eu fui lá no Muro vi meu sonho se realizar

Eu acho já tá na hora
De botar a chalifá
Chamando as minas na paz
Ensinando o que é amar

176
englobamento e subversão

E para me conquistar
Vão ter que me convencer
Na noite de Jerusalém
O que é o prazer
Eu sou rato de Israel
Me amarro nas muçulmana
E as palestina
Me amarro como ela dança
Elas sabem muito bem
Que o meu bonde é só blindão
E pra ter muitas mulheres
Tem que ter disposição
E pra finalizar
Vai um toque pros irmãos
Daber che zé anachnu
E um grande shalom
Esse papo que eu te dei
É a pura realidade
Vim pra cá de Israel
Mas fiquei na atividade
Pois a onda do momento
Agora vou te falar
É o retorno de Jerusa
E o pitch chamudá
Bevakashá, bevakashá
Tafsikim a milchamá
Bevakashá, bevakashá
Tafsikim a milchamá

O restante da tarde foi dedicado à gravação desta e de outras músi-


cas de Sapinho.

o hiper-realismo no funk
Segundo Mr. Catra, são as mulheres que gostam de escutar putaria e
é fazendo referência a esta convicção que ele anuncia em seu show a
chegada do momento em que cantará tais músicas. Foi também baseado
nesta sua percepção que ele criticou o romântico funk melody que Jota
compôs e, empolgado, nos apresentava.

177
a estética funk carioca

Conheci ela no baile


Meu coração se apaixonou
Seu jeitinho bem stáile18
Que me impressionou
Fiquei admirado
A mina era um tesão
Perdi o rumo todo
Perdi a direção
Pra quem tava do lado
Se ligou então
Sentiu que eu tava louco
No meio do salão
Foi tão bom
Foi tão bom
Que a gente se empolgava
E aumentava a emoção
Foi tão bom
Foi tão bom
Que até cheguei em casa
Com marca de batom
Ela gamou, gamou
Se amarrou, marrou
Na noite que ela me amou19

Jota defende a sua criação dizendo que é uma música pra “rolar
no fim do baile”, música para ser tocada ao fim da noite, acrescentando
que com uma composição dessas você “leva a mina pra qualquer lugar”.
Catra diz que “isso já tá passado” e que hoje é a “piroca quem tá man-
dando”: “pau na buceta, buceta no pau”. Jota discorda dizendo que “isso”
é para ele que é “todo ôu! ôu! ôu!”, querendo dizer que Catra é abrupto
demais, imitando a sua voz grave e rouca.
As divergências entre Jota e Catra falam de diferentes percepções
em relação à circulação do funk e de seus distintos subgêneros. Jota
acredita que o melody, como é a sua nova composição, “entra em qual-
quer lugar”, ao passo que Catra atribui esta permeabilidade à putaria.

18 Do inglês “style”, significando que a menina tem estilo, é estilosa.


19 “Tão bom”, de MC Jota.

178
englobamento e subversão

Catra é tido como um dos “inventores” deste subgênero, que trata de


forma ora mais ora menos explícita do erotismo e da sexualidade. Ele
recebeu inclusive a alcunha de “Rei da Putaria”, e é mencionando-a que
muitas vezes é anunciada a sua entrada em cena.
O funk melody não possui presença expressiva em “baile de favela”,
onde a música romântica é tradicionalmente executada ao fim da noite de
duas formas: como modo de sinalizar que a festa está sendo encerrada ou
quando o público já é diminuto, acompanhando o esvaziamento gradual
da festa. O que comanda a seleção musical destes eventos é a alternância
entre as músicas de proibido e putaria. Estas últimas são anunciadas pelo
DJ que rege a festa como a “sequência da mulherada”, referindo-se ao fato
de que os jogos sexuais, quando explicitados nas músicas, é assunto que
concerne às mulheres, indicando a hora delas entrarem em cena. Assim,
após um conjunto de músicas cujas melodias são invariavelmente com-
postas por frases como “nóis qué traficá” e pelo som dos disparos das
armas de fogo, muitas vezes as nomeando, ouvimos refrões como “vem
mulher, vem rebolando” e “mas ela não se incomoda que a saia tá levan-
tando”. Outros refrões são menos sutis e não mais se referem ao erotismo
e à sensualidade mas descrevem o ato sexual de maneira quase fisiológica,
nomeando os órgãos sexuais, como faz o refrão a que fez menção Catra
ao defender a premência da putaria face ao melody em seu bate-boca
com Jota, e presente em diversas canções do subgênero.
A putaria apresenta traços de continuidade com o proibido.20
Similarmente, ela abarca cantores com vozes melódicas ou não, facili-
tando a adesão profissional ao ritmo, como antecipei no terceiro capítulo.
Além disso, ela retém o elemento transgressor do proibido. E, para que a
circulação estabeleça a ponte entre distintos mundos, como fez o proibido
na década de 1990, a explicitação na tematização da sexualidade deve ser
substituída pelo duplo sentido. As músicas invariavelmente possuem uma
versão “pesada” e outra “light”, de modo que a mesma música pode tocar
tanto no baile de favela como nos bailes de clube, nas boates da Zona Sul,

20 De fato é possível fazer referência às músicas explícitas do subgênero putaria como sendo
proibidos, indicando o seu conteúdo censurado, “x-rated”, como diz Catra. Contudo, entre
os músicos com os quais trabalhei, proibido é categoria que se refere às canções que versam
sobre ações ilícitas. Sem contar que a ressonância de um e outro subgênero, proibido e putaria,
marcam momentos distintos da trajetória histórica do funk.

179
a estética funk carioca

nas rádios e na televisão.21 O que variará será a sua versão. A música do


MC Mágico que Catra cantarolou na tarde em que anunciara a sua dispo-
nibilidade para os jogos sexuais possui assim uma outra variante.
Hoje eu tô facim, hoje
Hoje eu tô facim, hoje

Vou estourar seu cabacinho


Vou estourar seu cabacinho
Vou estourar seu cabacinho
Pode vim que eu tô facinho

Hoje eu tô facim, hoje


Hoje eu tô facim, hoje

Eu sou Mágico MC
Represento toda hora
Vou tirando devagar
É minha piroca da cartola [...]22

A putaria, como disse Cíntia, chega “para unir as facções”, e o duplo


sentido é utilizado para que ela “saia pra fora”. Passada a moda dos proi-
bidões, o elemento subversivo permanece atuante na putaria. Além
disso, proibido e putaria partilham o hiper-realismo estético com que
são construídas suas letras. Este hiper-realismo está diretamente rela-
cionado ao aspecto imagético destas músicas – como colocou Das Sete,
as músicas são como “clips” – e à estratégia do chocar de que se utilizam
seus produtores.
As letras imagéticas permitem não apenas visualizar a narrativa que
desfiam, mas possibilitam ao dançarino viver situações que na vida real
não lhe seria possível. Mas não se trata de fantasiar uma outra vida ou
de um “escapismo compensatório”, mas de fazer em um plano outro,
que aqui chamamos de arte – mas que poderia ser chamado também
de brincadeira ou jogo, como argumentará Bateson (1999); dançando e
cantando o que outros registros não tornariam possível.

21 As músicas possuem ao menos duas versões, pois são constantemente regravadas, muitas vezes
ao vivo, o que sempre acrescenta diferença à reprodução. Mas, ainda assim, nem sempre o funk
tem livre circulação.
22 “Hoje eu tô facim”, MC Mágico.

180
englobamento e subversão

Para Das Sete, músico que ficou apenas alguns meses trabalhando
com a Sagrada Família e que prefere escrever letras a cantar, o funk é
“a liberdade de expressão da vida”.23 O funk, acredita ele como Catra,
permite falar e vivenciar coisas como não seria possível de outro modo.
Das Sete exemplifica o seu ponto com a mulher casada que no baile
está dançando “tranquila” e ao mesmo tempo cantando coisas que se
um homem ouvir ou se falar para o seu marido ela “até assusta”. É desta
maneira que as músicas de putaria constituem a “sequência da mulhe-
rada”. O tricky das letras de funk reside nessa elaboração sobre o possí-
vel. O seu conteúdo de realidade faz com que mesmo uma empreitada
improvável seja vista como claramente passível de ocorrer.24 Junto com
Bateson (1973), busco menos o significado da mensagem codificada e
mais de que modo o código escolhido, seu estilo, em suma, pode nos
revelar sobre o sentido da expressão artística. É desta perspectiva que
esta feição mais real do que o próprio real, a feição hiper-real, se torna
relevante para o meu argumento.
Mas não se trata de um hiper-real construído para escamotear um
real não mais possível, como afirmou Baudrillard (1994) em sua inter-
pretação sobre o parque temático Disneyland. Nem tampouco resulta
de um social que não mais existe, produzindo um signo sem referente
e uma relação mapa território na qual o primeiro é precedido pelo
segundo, uma “precessão do simulacro” (Baudrillard, 1994, p. 1).
Denota, outrossim, como a música funk elabora a relação com a “socie-
dade”, no sentido durkheimiano que lhe é dado pelos sujeitos criativos
funk, a partir de seu descolamento do social. Por social não me refiro
aqui ao sistema formado pelos coletores de diferentes naturezas, como
proposto por Latour e utilizado em minha análise no primeiro capí-
tulo. Neste momento, aludo mais exatamente à noção de sociedade que,
sendo exterior ao indivíduos, se impõe sobre estes, moldando as suas
ações e criações.

23 O apelido de Das Sete faz referência ao endereço da casa em que viveu, de número sete.
24 Refiro-me às inúmeras histórias que circulam, muitas vezes informadas pelas letras das músi-
cas, constituindo uma espécie de ‘lenda urbana’ sobre a atividade sexual que supostamente
envolveriam os jovens dentro do local da festa. Como disse uma de minhas amigas em campo,
quem “quer fuder vai pro motel” e não para o baile. O baile é frequentado, outrossim, por aque-
les que querem dançar, como eu já havia notado na dissertação de mestrado (Mizrahi, 2006b).

181
a estética funk carioca

As relações mapa território no funk se dariam mais propriamente


de acordo com o modelo do “enquadre da brincadeira”, como proposto
por Bateson (1999), “um princípio explanatório” do qual o autor se uti-
liza para refletir sobre diferentes formas de comunicação, dentre elas a
arte. No frame da arte, mapa e território, realidade e representação, são
simultaneamente “neutralizados” e “diferenciados” (Bateson, 1999, p.
41). Pois a arte é uma linguagem metacomunicativa, que funciona a par-
tir de um código icônico, de acordo com o qual o objeto dos discursos é
menos o seu conteúdo semântico e mais a relação entre os falantes. Em
tal caso, como exemplifica Bateson, a mordida de brincadeira denota de
fato uma mordida, mas não denota o que a mordida de verdade denota-
ria. O funk fala de armas e sexo, mas não denota o que estes implicariam
em um embate com a polícia ou durante o ato sexual.
Se “o paradoxo do realismo consiste em inventar ficções que pare-
cem realidades” (Jaguaribe, 2007, p. 16), o funk vai produzir uma fic-
ção avassaladoramente real. Diante das descrições hiper-realistas que o
funk promove, as cores do real surgem “empalidecidas”, como seriam
também se comparadas à realidade como desenhada pelos jogos vir-
tuais que se desenrolam no ciberespaço (Jaguaribe, 2007, p. 186), tão
presentes nos momentos de ócio no estúdio e na casa de Sílvia. Além
disso, estas letras imagéticas são engendradas a partir de uma realidade
que não é apenas experienciada, mas muitas vezes informada através de
meios de comunicação que por sua vez já elaboram de modo realista
sobre o real.25 Falam-nos sobre a onipresença da imagem, seja através
da televisão, dos filmes, dos cartoons ou dos videogames, e do modo
pelo qual, como vimos ao início do capítulo, estas imagens alimentam o
repertório sobre o qual os sujeitos criativos elaborarão.26

25 Como quando, em uma tarde, Cíntia falava-me sobre a invasão da polícia, ocorrida na favela
em que vive, a partir dos relatos que lera naquela mesma manhã no jornal. Ela passava alguns
dias na casa de Sílvia e portanto não experienciara os acontecimentos, mas o fato de conhecer
todas aquelas pessoas presas dava-lhe autoridade para fazer seus relatos de modo que pareciam
não apenas verossímeis mas vivenciados por ela. Só ao ler a reportagem é que me dei conta
então que muitos dos detalhes que Cíntia me dera foram ali colhidos.
26 As imagens virtuais estiveram presentes ao longo do campo de diversas maneiras: através das
novelas que marcavam primeiro o início da tarde e depois o cair da noite; nos jogos virtuais
jogados tanto do lado feminino como do masculino; nos jornais populares e telejornais que
davam relatos de embates entre polícia e ladrão; nos programas de auditório dominicais dos

182
englobamento e subversão

Catra se diverte contando que o X9, o delator e figura mais odiada


nas narrativas sobre a favela, como ele cantou em um proibido, tem sua
alcunha derivada de uma série de animação japonesa da década de 1980.
O “corredor X”, de carro numero 9, possui identidade secreta e é o mis-
terioso irmão do também corredor Speed Racer, a quem acompanha de
longe, mantendo o seu anonimato.
Oi cachorro...
Quer din din?
Quer din din?
Pede um X9 pra mim

Quer din din?


Quer din din?
Traz um verme
Traz um ganso

Se faz de amigo só pra escoltar


Sujeito safado tem que apanhar
Por causa dele o meu mano morreu
Plantando o trabalho ele enfraqueceu

Causou muitas mortes deixando infeliz


Família dos manos que eram raiz
Os moradores já querem pegar
Até grampearam o seu celular

Patrão tava preso e mandou avisar


Com sua certeza vamo executar
Bala de AK!

Cachorro
Se quer ganhar um din din
Pede um x9 pra mim
Pede um x9 pra mim

Cachorro
Me entrega esse canalha
Deixa ele bem amarrado
Pega o dinheiro e rala

canais abertos de televisão; nos programas acessados por pacotes do tipo pay per view, como as
lutas de Vale Tudo e o reality show Big Brother Brasil.

183
a estética funk carioca

Sujeito safado já sabe de cor


O endereço, o contato lá do DPO
Comédia fudido que entrega o irmão
Se eu pego esse verme não tenho perdão

Eu pago quanto for mas me dá o canalha


Eu vou comer esse verme na bala
De qualquer modo não vai escapar
Tenho pra ele uma bolsa de AK

Cachorro
Se quer ganhar um din din
Pede um X9 pra mim
Pede um x9 pra mim

Cachorro
Me entrega esse canalha
Deixa ele bem amarrado
Pega o dinheiro e rala27

Jonathan Crary (1990), na esteira de Baudrillard, localiza no desen-


volvimento de máquinas miméticas que antecederam o surgimento
da fotografia, como o estereoscópio, a emergência, no século XIX, de
um novo tipo de “observador” compatível com as futuras “práticas nas
quais as imagens visuais não mais possuem qualquer referência à posi-
ção de um observador em um mundo ‘real’, opticamente percebido”
(Crary, 1990, p. 2). A passagem fundamental se dá da visão enraizada
na “verdade visual”, possibilitada pela “câmera obscura”, para uma outra
que o autor denomina como “visão subjetiva”, derivada de um novo modo
de experiência visual abstraída de qualquer referente (Crary, 1990, p.
14). Dessa perspectiva, os processos miméticos como esmiuçados por
Benjamin (1996) em “A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”
não teriam mais relevância na produção imagética atual, fundamental-
mente produto não da imitação e da semelhança que a cópia possibilita
mas da “equivalência e da indiferença” como produzidas pela “esfera do
simulacro” (Baudrillard apud Crary, 1990, p. 12).
Michael Taussig (1993), no entanto, não abandona o “problema da
mimesis” (Crary 1990, p. 12), mas recobra-o retornando a Benjamin e

27 “Cachorro”, de Mr. Catra. O termo “cachorro” é designação para o policial corrupto e segundo
o cantor esta música versa sobre a “instituição corrupção” de modo geral.

184
englobamento e subversão

reafirmando o poder que as imagens concedem àquele que as produz


ou controla. A mimesis, como conceitualizada pelo autor, está intrin-
secamente relacionada e resulta de processos imitativos que se estabe-
lecem com a alteridade mas não produz o idêntico. Nesses termos, a
cópia não produz o equivalente, mas através da semelhança, permite
que um se apodere das propriedades do outro. A partir desse esquema,
Taussig (1993) analisará fenômenos distintos como o desafio ao poder
colonial e o nazismo. É baseado no modo como Taussig analisa a magia
simpática que Gell (1998) formula seu conceito de “pessoa distribuída”,
como utilizado no primeiro capítulo desta tese. Por sua vez, Gonçalves
e Head cunham a noção de “devir imagético” para falar de um modo de
percepção mimético que se faz através das imagens, sejam elas captadas
a olho nu ou através de máquinas, permitindo “uma fusão [merging]
entre o objeto da percepção e o corpo do perceptor” (Gonçalves &
Head, 2008, p. 4). A abordagem que imprimo às imagens nesta tese
não se relaciona tanto com a “experiência visual”, como elaborada por
Crary, e mais com o modo como as imagens visuais entram pelo olho,
que, de acordo com Taussig, é também um órgão tátil, são processadas
pela mente e produzem imagens outras, verbais, como nas músicas, ou
artefatuais, como nos corpos.
Latour (2002) igualmente insiste no poder que possuem as imagens
enquanto produto do fazer humano e mediadoras de esferas outras das
quais são signos. Ao contrário do que acreditam os religiosos e os defen-
sores da ciência objetiva, Latour defende que é precisamente o fato de as
imagens serem resultado de mãos humanas que as torna tão potentes. O
iconoclash ocorre justamente quando atos de iconoclastia, de destruição
da imagem feita por humanos, produz simultaneamente uma prolife-
ração de imagens. A arte, a ciência e a religião oferecem três diferen-
tes padrões de “rejeição e construção de imagens [image rejection and
image construction]” (Latour, 2002, p. 8). A arte contemporânea, por
exemplo, quer a todo custo evitar os modos tradicionais de produção
de imagem e o que ela finda por produzir são novas imagens e mídias.
O conceito iconoclash dá nome e origem a uma exposição de objetos e
imagens e expressa o enigma que concilia uma “sociedade totalmente
anicônica” e a fabulosa proliferação de imagens que caracteriza as “cul-
turas tomadas pela mídia” [media-filled cultures] (Latour, 2002, p. 5).

185
a estética funk carioca

Um “enigma visual” colocado pela coexistência de expressões de icono-


clastia e de adoração das imagens.

o duplo sentido e as paródias musicais


As músicas de putaria de Catra nunca foram explícitas, sempre prima-
ram por uma certa gaiatice e humor, além do uso do duplo sentido.
Ratinho, o DJ da “firma” especializado no duplo sentido, diz que a eficá-
cia do dispositivo está no fato de só ver maldade nestas músicas quem
já tem “a maldade” dentro de si, já tem conhecimento sobre elas, per-
mitindo falar de modo velado o que de outra maneira não seria aceito
socialmente. Com as músicas de proibido “sufocadas” pela polícia, a
putaria surge como alternativa para os MCs, como Mr. Catra declara ao
início da gravação ao vivo de uma de suas músicas.28
Na maior diplomacia, na maior diplomacia, tá brabo da gente cantar proi-
bidão, mas liberaram a putaaaaariaaaaaa!

Diplomaticamente, Catra carregará no duplo sentido e no riso de


maneira a imprimir uma certa sutileza em suas produções, como nos
versos abaixo em que ele fala da conquista de um modo não convencio-
nal de relação sexual através da analogia que faz entre o piscar dos olhos,
o consentimento feito pela parceira e o movimento do orifício anal.
Rebolando até o chão
Rebolando até o chão

A gente só invade
Depois que a gata pisca
Bum bum não se pede
Bum bum se conquista29

28 Outros cantores representativos do proibido foram gradualmente abandonando o subgênero,


ou ao menos introduziram novos elementos ao seu repertório “neurótico”. O vociferante MC
Frank, autor da “Toque no Radinho” que abre este capítulo, música cuja execução assisti ser
performada pelo artista sem qualquer alteração na bem estabelecida casa de shows Fundição
Progresso, passou a se fazer acompanhar da dançarina Mulher Melão, cujo nome artístico
faz referência ao tamanho das próteses de silicone que moldam os seus seios. A MC Sabrina,
antes conhecida como Sabrina da Provi, e que durante minha pesquisa de mestrado eletri-
zava o público em suas performances com à ode que fazia à facção que controla o Morro da
Providência, sua localidade de origem, investiu no melody, através de parcerias com o MC
Buchecha ou com o MC Marcinho, como gravou músicas de putaria.
29 “Bum bum não se pede”, de Mr. Catra.

186
englobamento e subversão

Ou da forma como se refere à genitália feminina e seus efeitos sobre


o masculino, entremeando por gargalhadas a sua narrativa.
Gatinha assim você me assusta
Com o seu capu de fusca
Gatinha assim você me assusta [que delícia]
Com o seu capu de fusca

Aparada e limpinha
Coisa linda de se ver
Abre a tampa da fusqueta
Que eu faço você gemer

Triângulo do biquíni
Me deixou taradão
Tava úmida e quentinha
Batendo palma na minha mão

Eu me assustei
Mas tava preparado
Parecia um bolo
Aquele nêgo azul inchado

Movimento pélvico
Cara de sapeca
Me deixou louco eu não sou sapo
Mas me amarro em perereca

A moral do motivo
Toda peça se encaixa
Mexo no capô da fusqueta
Enquanto você passa a marcha

Gatinha assim você me assusta


Com o seu capu de fusca [que delícia]
Gatinha assim você me assusta
Com o seu capu de fusca [que delícia]30

Além do duplo sentido, Mr. Catra inserirá a “cultura” na putaria


através de paródias musicais. Conta-me, com voz de quem se diverte,
que muitas vezes a escolha da música a ser mimetizada é aleatória,
podendo ocorrer quando está escutando o rádio. Mas diz que tem

30 “Capu de Fusca”, de Mr. Catra

187
a estética funk carioca

especial preferência pelos “clássicos da cultura” de modo a, fiel à sua


ideia de trânsito cultural, “ensinar música” àqueles que não a conhecem.
Pois, ainda que desconheçam, “já escutaram a melodia” e “tão ligado que
aquela versão não é a verdadeira”.
É aí que chega a hora da cultura. A pessoa vai procurar um Tom Jobim,
que a pessoa vai procurar um Tim Maia, que a pessoa vai procurar saber
o quê que é, tá ligado? E o funkeiro tem muito disso. O funkeiro curte um
som que ninguém imagina.

Mr. Catra já fez paródias de músicas de Vinícius de Moraes, Legião


Urbana, Biquíni Cavadão, Alceu Valença, Vanessa da Matta, Kiko
Zambianchi, Chiclete com Banana. De alguns ele gosta mais, de outros
menos, podemos perceber.
Catra frequentemente avisa, já na metade de sua performance, em
um tom sutilmente jocoso, capaz de confundir aquele que o escuta pela
primeira vez: “De agora em diante é só cultura, é só MPB. Chega de funk.
Funk é tráfico de drogas... baderna... Não aguento mais essa vida de funk!”.
Pode então cantar, parodiando Vinícius de Moraes e Toquinho, a sua ver-
são erotizada de “Tarde em Itapoã”, como vimos no primeiro capítulo.
Esta é “a hora da cultura”, pois os espectadores, diz Catra, terão
que “procurar para saber que ‘uma mamada de manhã’ vem de ‘uma
tarde em Itapoã’, que é de Vinicius de Moraes e interpretada por Dorival
Caymmi. Isso que é legal”. Mas esta manipulação de símbolos é também
um ensejo para brincar com o público e engajá-lo em sua empreitada
com o riso. Como ele fez antes de parodiar o rock nacional na boate
Baronetti, localizada no privilegiado bairro de Ipanema e detentora do
ingresso mais caro dentre os locais pelos quais circulei com o artista.
Já passavam das duas horas da madrugada, e a casa estava lotada. Mr.
Catra, após cantar muita putaria, além das homenagens a Bob Marley e
a Marcelo D2 e o hino do time de futebol Flamengo, passa a falar sere-
namente, advertindo o público: “Agora, rapaziada... Agora chega. Para,
para. Chega de funk. Daqui pra frente, é só Legião Urbana”. Vaias e risos
são proferidos pela audiência, e ele, em tom de voz mais elevado, alerta:
“Se ficar de choradeira vou desligar essa porra! Vou cantar Legião Urbana
sim, o show é meu e eu vou tocar Legião Urbana!”. E completa dizendo
que “acabou a zombaria” e que era chegada a hora de “respeitar”.

188
englobamento e subversão

Toalhas e fronhas
Cama desarrumada
Essa noite a chapa ferveu
Ela me ligou
E quis me encontrar
Num apart hotel que é meu
Eu disse
Sobe agora
Tô com o boneco pra fora
Vem no colo
Pode vir de saia
Que eu tô firme aqui pra você
Vem sem medo
É um palmo e cinco dedos
senta devagar
não senta de um vez
O menino vai crescer
Pro seu espanto
Vai passar do meu umbigo
Por quê?
Ela só quer sentar
Cavalgando no boneco
Até de manhã
E se você parar
Com certeza pr’as amigas
Ela vai te explanar
Ela beija,
Lambe os beiços e tudo
É coisa de maluco
Ela quica e sabe gemer
Ela sabe fazer
O boneco crescer

Esta música é uma paródia da canção “Pais e filhos”, do grupo


Legião Urbana, composta de frases que se referem a um suicídio e pro-
feridas por jovens personagens em crise existencial que tratam das difi-
culdades das relações entre pais e filhos.

189
a estética funk carioca

Estátuas e cofres
E paredes pintadas
Ninguém sabe o que aconteceu

Ela se jogou
Da janela do quinto andar
Nada é fácil de entender [...]31

O grupo Legião Urbana fez parte da “infância musical” de Catra e


as músicas da MPB eram escutadas por seu pai Edgard e a esposa deste.
Com suas paródias, Catra faz operações mentais e realiza proje-
tos intelectuais similares aos que derivaram nos proibidões, resultantes
não apenas de versões e contra versos de si mesmos como de paródias
de músicas da MPB (Araújo, 2006). Como nos proibidos, ao tratar de
uma e outra cultura, a “clássica” ou hegemônica cultura brasileira e o
funk, Catra manipula os símbolos de um e outro lado. E evidencia mais
uma vez o aspecto englobante do funk. Mr. Catra novamente diz que
“é a coisa mais gostosa” a possibilidade que o funk lhe dá de não ape-
nas cantar “MPB como MPB, rock como rock”, mas transformar um rock
em um funk: “No funk você pode tocar rock, você pode tocar samba,
você pode tocar MPB. Tudo se encaixa nos beats, nas 130 BPMs”. Como
a música “Adultério”, que parodia “Tédio”, do grupo Biquíni Cavadão, do
rock brasil, que como funk virou sucesso nacional e foi posteriormente
transformada em forró.
Sabe esses dias que tu acorda de ressaca?
[Muito louco, doidão]
Sua roupa tá cheia de lama
E a cachorra tá na cama

É o dia que a orgia tomou conta de mim


Eu saio com o Brancão, Beto da Caixa, o Leo
Fumando doidinho
[Vamo pra onde?]

Na 4x4 a gente zoa


Uísque Red Bull
Quanta mulher boa

31 “Pais e filhos”, de Legião Urbana.

190
englobamento e subversão

O pau ficando duro


O bagulho tá sério
Vai rolar o adultério

Sua mina só reclama


E tira a sua paz?
Ela é chata demais

Procura a profissional
Meu mano
Que ela sabe o que faz

É uma coisa louca


Quica, quica
Em cima de mim
Antes, durante, depois
É tesão
Até o fim
Na 4x4 o tempo voa
Uísque Red Bull
Quanta mulher boa
O pau ficando duro
O bagulho ta sério
Vai rolar o adultério32

A música original trata do tédio que abate um rapaz que, mais uma
vez em crise existencial, cogita cometer o suicídio.
Sabe estes dias em que horas dizem nada?
E você não troca o pijama
Preferia estar na cama

Um dia, a monotonia tomou conta de mim


É o tédio
Cortando os meus programas
Esperando o meu fim [...]33

Catra se diverte ao manipular símbolos da cultura hegemônica, não


apenas no palco, gargalhando e quase perdendo a voz, mas também em

32 “Adultério”, de Mr. Catra.


33 “Tédio”, do grupo Biquíni Cavadão.

191
a estética funk carioca

seu cotidiano. Assim, após um baile, ele pode, no deslocamento entre um


e outro show, ter a irreverente ideia de criar uma “Barbie Prima” ou uma
“Barbie Bitch”, uma versão que transgride a bonequinha fundamental-
mente alva, loira, de traços faciais e padrão corporal caucasianos. A boneca
de Mr. Catra, como a original, traria consigo um imóvel. No entanto, ao
invés da “casinha” que acompanha o brinquedo fabricado pela multina-
cional Mattel e que remete à “mulher do lar”, a sua versão seria produzida
por uma empresa fictícia, de nome ainda não definido. Mr. Catra cogita
entre “Mettel” ou “Mottel”, e a bonequinha viria acompanhada de uma
“terminha”, local no qual trabalham as prostitutas, as “meninas”.
Catra, ao elaborar sobre o repertório que a cultura lhe oferece, pro-
duz o deslize presente no trabalho do bricoleur.
A poesia do bricolage lhe advém, também e sobretudo, do fato de que não
se limita a cumprir ou executar, ele não “fala” apenas com as coisas, como
já demonstramos, mas também através das coisas: narrando, através das
escolhas que faz entre possíveis limitados, o caráter e a vida de seu ator.
Sem jamais completar seu projeto, o bricoleur sempre coloca nele alguma
coisa de si (Lévi-Strauss, 1989 [2004], p. 36/37).

Como na mimesis, uma cópia que não é pura cópia. Mas o


deslize que a mimesis produz não apenas traz o novo, a diferença, mas
empodera o artista.
O ponto importante do que eu chamo de a magia da mimese é o mesmo
– a saber, que “de uma maneira ou de outra” a confecção e existência
do artefato que retrata algo concede poder sobre aquilo que é retratado
(Taussig, 1993, p. 13).

Homi Bhabha (1998), ao discorrer sobre o modo pelo qual o poder


colonial se torna refém de si mesmo graças ao deslize que a “mímica” de
sua própria autoridade produz, chama atenção para o efeito que o dis-
curso colonial finda por produzir sobre o próprio colonizador.
Quero voltar-me para esse processo pelo qual o olhar de vigilância retorna
como o olhar deslocador do disciplinado, em que o observador se torna
o observado e a representação “parcial” rearticula toda a noção de identi-
dade e a aliena da essência (Bhabha, 1998 [2007], p. 134).

192
englobamento e subversão

o riso conectivo e subversivo


Mr. Catra diz que não há ironia nas subversões que realiza de símbolos
da cultura hegemônica. Contudo, argumento eu, é através das operações
miméticas que realiza, bem como do modo como se utiliza do humor
e do riso, que ele se mantém coerente com o posicionamento político
que veio expressando ao longo da pesquisa e que surge implícito nesta
etnografia. A frase “paz, justiça e liberdade” e a cifra RL, que aparecem
em muitos proibidos, fazem referência a uma época em que “havia ideo-
logia” no mundo como se articulava então na favela, como Catra disse
ao afirmar que fazia um funk “revolucionário”. RL é abreviação para
Rogério Lemgruber, o fundador do grupo Falange Vermelha, embrião
da facção criminosa Comando Vermelho, que teria surgido da convi-
vência estreita de Lembgruber e outros presos comuns com presos polí-
ticos do regime militar que se instala no Brasil em 1964. Catra, ao longo
do trabalho de campo, falou frases como “você prefere vender a laranja
ou o suco?”, “você prefere vender a borracha ou o pneu?”, características
do ideário da esquerda da década de 1980 que via a industrialização do
país como alternativa para escapar à relação de subserviência ao capital
externo, ganhando autonomia interna face ao comércio exterior.
Ao criar a sua música e o seu modo de vida tão idiossincráticos,
Catra oferece-nos a sua versão ou a sua interpretação da dinâmica cultu-
ral carioca e brasileira. Age de modo análogo ao do antropólogo que, ao
inventar “uma cultura”, a cultura funk, finda por objetificar a sua própria
cultura, a cultura brasileira. O artista cria reflexivamente, como o antro-
pólogo inventa a cultura (Wagner, 1981 [1975]), e a paródia surge como
a objetificação desse movimento criativo reflexivo.
O aspecto político é peça fundamental para se compreender Mr.
Catra. É notório o show que o artista fez no Circo Voador, há alguns
anos, em que, ao mesmo tempo em que cantava “o Rio de Janeiro con-
tinua lindo...”, alternavam-se sobre o telão ao fundo do palco imagens
de uma praia de Ipanema lotada, com animações de armas de fogo e
do Caveirão, veículo blindado da polícia usado nos conflitos dentro da
favela. Parece querer fazer ver àqueles que se negam a isso, rompendo
assim como o mito da “cidade maravilhosa”. Dessa perspectiva, a ironia
nos fala da tipicamente brasileira aversão ao conflito e às explicitações
(Da Matta, 1997), e é tirando partido do “jeitinho brasileiro”, saída que

193
a estética funk carioca

evita o confronto, que Catra externalizará o seu desdém pela “hipocri-


sia” da “sociedade”, como costuma dizer. O humor lhe permitirá falar
de suas inquietações políticas e lhe permitirá rir do poder em espaços
tradicionalmente associados ao gosto oficialmente estabelecidos.
O riso, ao tornar palatável o que de outro modo pode ser percebido
como ameaçador, permite falar do proibido de modo menos chocante e
torna o funk ainda mais potente, ao permitir conectar e revelar a cone-
xão entre realidades que sob outra perspectiva poderiam parecer isola-
das. Esse riso conectivo remete a Mikhail Bakhtin (1999), à tão relevante
boca do corpo grotesco que através de seus orifícios se conecta com o
mundo, enfatizando as características de um corpo não individual, não
separado de seu meio ambiente.34
Coloca-se a ênfase nas partes do corpo em que ele se abre ao mundo exte-
rior, isto é, onde o mundo penetra nele ou dele sai ou ele mesmo sai para
o mundo, através de orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescên-
cias, tais como a boca aberta, os órgãos genitais, seios, falo, barriga e nariz
(Bakhtin, 1999, p. 23).

No entanto, esta definição de corpo, que de acordo com Bakhtin


predomina na Idade Média, tem seu auge no Renascimento e seria feita
“em oposição aos cânones modernos” (Bakhtin, 1999, p. 23), permeia
elaborações de autores como Latour (1994), Gell (1998) e Ingold (2000),
que buscam trazer para a reflexão ocidental um modo não dualista de
se apreender as relações sociais. O primeiro mostra que as purificações
feitas na chamada era moderna só puderam ser viabilizadas por conco-
mitantes processos de hibridização. De modo análogo com que o autor
pensou o iconclash (Latour, 2002), as separações entre domínios geram
novas misturas entre os mesmos, levando o autor a questionar a própria
validade de nos autodenominarmos modernos. Para Gell (1998), uma
antropologia da arte é também uma antropologia dos corpos, não apenas
porque o objeto, como aparece em sua análise da volt sorcery, seja o corpo
do representado em sua forma artefato, mas porque os objetos possuem
status de pessoas, são person-like, dotados de intencionalidade como

34 Para análises sobre o poder do riso e o rendimento cosmológico da ênfase bakhtiniana “nas
partes do corpo em que ele se abre ao mundo exterior”, ver para a cultura popular Carvalho
(2008) e para o contexto indígena Lagrou (2008).

194
englobamento e subversão

pessoas em seus corpos.35 Por fim, Ingold (2000) entende que a aquisição
das habilidades [skills] se faz não apenas por meio observação imitativa,
mas no processo de execução repetitiva que coloca em interação o corpo
com seu ambiente, entendido em seu aspecto biológico e social.
De modo similar ao contexto de Rabelais como delineado por
Bakhtin (1999), no funk o riso adquire permeabilidade e “significação
positiva, regeneradora, criadora” (Bakhtin, 1999, p. 61), graças à de
certo modo tradicional veia cômica que possui.36 Mas se na Idade Média
o riso manteve seu caráter não oficial e no Renascimento o riso penetrou
na “ideologia ‘superior’” (Bakhtin, 1999, p. 62), no funk o riso age das
duas formas: mantém seu caráter não oficial e penetra nos espaços do
gosto “superior”. O funk estabelece com o gosto hegemônico e com a
sociedade oficial um elo não tão “decisivo”, mas mais ambíguo, parcial e
conectivo, que, se não implica relações de ruptura, também não significa
uma convivência puramente pacífica. É preciso enfatizar que Bakhtin
não fala propriamente de uma fusão entre cultura oficial e não oficial,
mas de como o riso passa de “ninho não oficial” a ser “quase legal”, de
modo que cada festa possuía um aspecto oficial e um outro popular, car-
navalesco (Bakhtin, 1999, p. 71). O que me parece instigante no funk,
por sua vez, é como este constrói ativamente o seu caráter não oficial
por meio de um diálogo com a cultura e o gosto oficial, englobando-os.
É através do riso que o funk se torna apto a desestabilizar o poder,
falando muitas vezes do próprio local em que se encontra aquele que
não é apenas seu público-alvo como o alvo de suas provocações. O riso
simultaneamente penetra e se faz ouvir pelo “bom gosto” ao mesmo
tempo em que torna o funk apto assim a rir do poder a ele associado de
dentro de seus próprios redutos.37

35 Esta mesma associação entre arte e teorias da pessoa e da corporalidade vem sendo desenvol-
vida pela etnologia desde os anos 1980. Para uma síntese a respeito, ver Lagrou (2009b).
36 A dupla de funkeiros Gorila e Preto se utiliza ativamente das paródias musicais para compor
seu repertório, tendo como um de seus temas recorrentes a mulher feia. Foi também através do
riso que eu ouvi relatos que davam conta de aspectos mais propriamente trágicos do cotidiano,
como a invasão pelo veículo blindado da polícia Caveirão que, em suas incursões na favela,
avisava com uma risada macabra: “eu vim roubar sua alma”. Para a maneira como o riso acom-
panha acontecimentos cotidianos no contexto da favela, ver Goldstein (2003).
37 O DJ Sandrinho justifica que em casas noturnas “requintadas” e/ou localizadas na “Zona Sul”
não se pode ser tão explícito ao cantar putaria, ainda que, acredita, o público ali presente “faça

195
a estética funk carioca

Catra produz algo similar ao volt sorcery como descrito por Gell
(1998, p. 96-154), que por sua vez é inspirado pela teoria da mimesis de
Taussig (1993). Mesmo que Catra não confeccione um objeto artefa-
tual, que de acordo com o esquema de Gell é o corpo da vítima em sua
forma artefato, ou do deus em sua forma ídolo, que receberá e rema-
nejará para o representado a agência impingida na representação, a
paródia de Catra é construída a partir de um protótipo evidente, “os
clássicos da cultura”, que por sua vez remete a uma cultura e gostos ofi-
ciais, ou hegemônicos. Através do riso que provoca em si mesmo e nos
outros, ele se permite rir nesses espaços associados ao bom gosto e faz
a audiência desses espaços rir de sua manipulação de símbolos que são
também caros a eles, como o foram ao próprio Catra em sua infância e
juventude. Mas não é apenas isso. O feitiço não retorna somente para o
feiticeiro, mas se distribui e engaja também os funkeiros que, de acordo
com o esquema de Catra, adquirem acesso à “cultura” através destas
paródias e poderão agora não apenas conhecê-las mas rirem também
do modo como foram subvertidas. Deste modo é que o riso desempo-
dera o poderoso, pois, por meio da paródia, permite ao artista funk rir
do poder em seu próprio domicílio e concede também àqueles que não
possuem acesso a estes locais poder sobre a imagem de seus frequenta-
dores, objetificada pelo “clássico da cultura” subvertido.
Mas a eficácia da paródia não reside apenas em seu aspecto mimé-
tico, e, além de Taussig e Gell, devemos agora recorrer a Bateson para
refinar nosso argumento. Pois o que a paródia permite a Catra é que
ele estabeleça uma metacomunicação com seu público. Enquanto a
religião permite ao MC, em contextos preferencialmente particulares,
expor com mais clareza o nó de suas inquietações políticas, através
do riso Mr. Catra as deslocará para o palco e conversará sobre elas.
Conversará através de um código icônico, onde discursos importam
não apenas por seu conteúdo semântico, mas possuem como objeto
fundamental a sua relação com sua audiência.
Foi exatamente isso que presenciei quando, ainda ao início do traba-
lho de campo, o DJ Edgar, antes de Mr. Catra começar a sua apresentação

tudo” o que está sendo implicitamente dito na letra das músicas e tenha muitas vezes dançado
a versão original em baile de favela.

196
englobamento e subversão

no elitizado Jockey Club da Gávea, soltou o sampler que simulava o som


de uma rajada de fuzil, como descrevi no primeiro capítulo. O bicheiro
Luizinho, amigo pessoal de Catra, se encontrava em meio à audiência
branca como este último, que levava à boca seu charuto enquanto ges-
ticulava o outro braço, em apoio às palavras do MC. Catra, naquele ins-
tante, não apenas pedia “humildade” ao seu público, mas nomeava os
produtos de beleza da empresa norte-americana Victoria’s Secret e os
carros da montadora alemã Audi, dizendo que ia-se o tempo em que ape-
nas alguns possuíam privilégio sobre os referidos produtos, que seriam
hoje não apenas almejados mas consumidos por muitos. Estávamos
recuados, Dr. Rocha, LC – antigo funcionário da casa de Catra e que
participava também da produção musical – e eu, atrás do carro de som,
e os dois riam a valer com as palavras do MC, meneando com a cabeça
em sinal de aprovação. Já em outra ocasião, quando assistíamos a um
show na Baronetti, Rocha, indicando, novamente com a cabeça, o assé-
dio que Jota sofria de três moças brancas que o seduziram ao longo da
noite, me perguntava se agora eu entendia o que ele queria dizer com o
poder que o funk possui. E continuou falando que eles, se referindo a
ele mesmo, Catra, Jota, Sandrinho, Kapella, e WF, não teriam acesso a
ambientes e pessoas como aqueles se não fosse pelo modo como a arte
os empodera. Pela cor de suas peles “negras”, como explicitou, seriam
tomados apenas como bandidos.
Catra me disse uma vez que “tudo” pode ser feito através do funk,
qualquer ritmo cantado, qualquer letra inserida. E eu acrescentaria,
qualquer lógica subvertida. Mas subversão aqui não é utilizada “para
resistir e recusar participar das convenções de autenticidade literária do
Euromundo [euroworld]” como entende Feld (1995, p. 121) para o uso
do sampler digital pelos músicos de hip-hop norte-americanos. No funk
não se trata de resistir e tampouco de construir uma síntese, mas de
manter o seu aspecto não hegemônico e singular ao produzir diferença
através da mistura. Subversão e englobamento são as molas propulsoras
do funk. É a capacidade englobadora do funk que permite ao aspecto
subversivo ser tão atuante em sua dinâmica de criação, possibilitando a
Mr. Catra fazer coexistir criativamente na estrutura de suas performan-
ces religião, “clássicos da cultura” e putaria. Ao absorver em sua forma

197
a estética funk carioca

conteúdos que são a priori díspares é que a rápida e contínua passagem


da esfera sagrada para a esfera mundana torna-se viável.38
Pois o potencial político do funk reside não em um discurso explí-
cito da denúncia expresso verbalmente, mas no desafio que é produzido
por uma estética que, através de imagens muitas vezes cômicas do poder
oficial, o desestabiliza. Se o proibidão nos apresenta uma relação de con-
fronto com a alteridade, a ironia ressimboliza o conflito através de uma
relação de afrontamento do gosto alheio, subvertendo símbolos da alta
cultura, ou de esferas “sagradas” da cultura.

38 Essa lógica do englobamento através da qual opera o funk pode ser pensada junto ao modo com
que grupos indígenas domesticam esteticamente a alteridade, “pacificando o branco”, neutrali-
zando e se apoderando de suas potências (Lagrou, 1998, 2007b, 2009b; Albert e Ramos, 2002).

198
Parte III

As efígies, canoas, lanças, ou o que for, são ao mesmo tempo da


pessoa e mais do que a pessoa. Não é apenas que elas são exten-
sões integrais às relações que uma pessoa estabelece, e “instru-
mentos” nesse sentido, mas que o corpo físico é apreendido como
composto desses instrumentos como ele é composto de relações
Marilyn Strathern, 1991 [2004], p. 76.
Capítulo 5
Cabelos femininos e a confusão de símbolos

O importante, no Rio, é ter estilo.


Mr. Catra

Este capítulo continua pela trilha aberta no anterior, acompanhando a


manipulação de símbolos como feita pelo sujeito criativo funk, de modo
que, veremos, não é preciso ser artista, no sentido estrito do termo, para
possuir a habilidade de dominar o significado das representações. Mas
se em termos de operações lógicas e mentais o exercício apresenta con-
tinuidade com o anterior, o lócus de sua execução muda e ao invés do
resultado surgir em músicas e suas letras, ou em imagens verbais e vir-
tuais, as imagens surgirão agora materializadas no e pelo corpo. O exer-
cício, novamente, nos fará ver a impossibilidade de considerar uma cisão
entre corpo e mente, onde o corpo mostrará de modo ainda mais ativo
as suas capacidades agentivas, participando ele mesmo da construção do
que chamo de estética corporal funk. Não bastará aqui assumir o ponto
de vista do corpo, mas assumi-lo como criativo do mesmo modo como
fazemos com a mente. O corpo é sujeito de suas escolhas. Se vimos no
capítulo anterior que os homens, como as compositoras mulheres, facili-
tam a sua circulação ao manipular a palavra, aqui veremos as mulheres,
em contextos não artísticos, se produzirem com o mesmo tipo de preo-
cupação, ao considerar o entrar e sair de diferentes espaços da cidade.1

1 No funk, existem também compositoras mulheres, mesmo que em menor quantidade que os
músicos homens, e seus discursos podem ser considerados como “feministas” (Lyra, 2007;

201
a estética funk carioca

A presente narrativa será conduzida pelos cabelos femininos, que


nos guiarão por problemas relativos ao lugar que a aparência possui
no modo como são estabelecidas as relações sociais no Rio de Janeiro.
Semelhantemente ao que vimos a van fazer no primeiro capítulo, vere-
mos os cabelos articulando o ir e vir de distintos espaços sociais e geo-
gráficos. Mas, diferentemente daquele capítulo, neste as tensões, geradas
a partir das interações concretas e tradicionalmente subsumidas por
categorias como “raça” e “classe social”, virão à tona. Virão à tona não
através de embates evidentes, mas emergirão da escolha em relação ao
adorno adequado a ser portado e do julgamento do gosto.

objetos e sujeitos
Daniel Miller (1987) reinsere na agenda da disciplina antropológica a
discussão em torno dos objetos materiais, chamando atenção para o
rendimento analítico que estes oferecem bem como para o seu poten-
cial de produção de significados sociais e culturais. Ao conceder uma
abordagem alternativa para os objetos às abordagens semióticas e lin-
guísticas, Miller simultaneamente faz ver como aqueles podem possuir,
comparativamente à palavra e aos discursos verbais, maior acuidade na
expressão de pequenas diferenças. Está em jogo a sutileza com que o
universo material à nossa volta nos ordena ao mesmo tempo em que o
ordenamos. Esta “humildade dos objetos” (1987, p. 85-108; 1994a, p. 408)
reside na habilidade que possuem os itens de cultura material de nos
remeter silenciosamente à vida que emolduram ao mesmo tempo em
que são produzidos por ela.
É através do conceito de objetificação, desenvolvido a partir da teo-
ria hegeliana, que Miller busca “desenvolver um modelo não dualístico
das relações entre pessoas e coisas” (Miller, 1987, p. 18). Inerente a este
modelo está a indiferenciação inicial que ocorreria entre pessoa e coisa e
que, através de sucessivos processos de diferenciação, tomaria consciên-
cia do que ele não é até atingir uma total separação entre sujeito e objeto.
O sujeito toma consciência de si para então se reconhecer como um não

Sou feia, 2004). No capítulo 6 algumas destas letras serão trabalhadas e ao meu ver elas expres-
sam menos um feminismo do que remetem ao aspecto agonístico que marca as relações de
gênero quando tematizadas pela arte na esfera da festa.

202
cabelos femininos e a confusão de símbolos

outro (Miller, 1987, p. 22). É dessa dualidade que dependerá o modelo


dialético através do qual Miller irá então procurar desfazer o dualismo
da relação entre pessoas e coisas.
Assim, quanto maior a distância entre o sujeito e seu objeto, mais profun-
das as consequências da percepção final do sujeito da verdade de que o
objeto externo (...) é de fato o resultado das projeções do próprio sujeito
na história (...) e é portanto uma parte integral de si. É o entendimento
dessa verdade que permite ao sujeito incorporar aquilo que até agora era
externo, uma vez que a percepção de que algo é de fato sua própria cria-
ção é uma parte essencial de sua habilidade que se tem de reincorporá-lo
(Miller, 1987, p. 24).

É a própria possibilidade do sujeito reconhecer a si como diferente


do objeto que lhe permitirá superar a sua dualidade face ao mesmo. O
sujeito hegeliano, ao compreender o processo pelo qual externaliza a si
através do objeto para depois se apropriar dessa externalização, chega
à percepção final de que ele é em si produto desse processo. É esse
ponto que interessa a Miller, pois defende que “neste estágio qualquer
diferenciação latente entre o sujeito e o objeto é eliminada” (Miller,
1987, p. 26). A partir daí, o antropólogo chega ao conceito de objetifi-
cação, termo que utiliza em Material Culture and Mass Consumption
para reter o que chama de aspectos “positivos” da “alienação”, como foi
empregado pelo filósofo alemão:
Um processo dual por meio do qual um sujeito externaliza a si em um
ato criativo de diferenciação, e que por sua vez se reapropria dessa exter-
nalização através de um ato que Hegel chama de sublação. Esse ato eli-
mina a separação do sujeito de sua criação mas não elimina a criação em
si; ao contrário, a criação é usada para enriquecer e desenvolver o sujeito
(Miller, 1987, p. 28).

Contudo, segue Miller, este é um modo mais propriamente filosó-


fico de se apreender as relações sujeito-objeto e, para entendermos como
elas se dão na prática, devemos retomar o caminho da etnografia, onde
muitas vezes nossos sujeitos de pesquisa possuem como suas “noções de
senso comum” a radical distinção entre sujeito e objeto (Miller, 2007,
p. 10). O autor está se referindo mais propriamente ao debate que reflete
o campo de estudos disputado que a reinserção dos objetos materiais
como foco de pesquisa, a partir dos anos 1980, findou por produzir.

203
a estética funk carioca

Sinteticamente poderíamos resumir a contenda ao separar de uma


lado aqueles que defendem que agência e intencionalidade são qualida-
des que devem ser consideradas como relativas aos objetos, como o são
à pessoa, em contextos de relação social, e aqueles que entendem que
os objetos possuem rendimento analítico justamente pelas qualidades
diferenciais que a materialidade agrega às interações com o humano e às
análises mesmas dos antropólogos.
Neste último grupo inserem-se o próprio Daniel Miller (1987,
1994a, 2005) e Webb Keane (2005, 2006, 2009) que, entre outros tan-
tos, defendem que é o estatuto ontológico diferencial de sujeito e objeto
que não apenas concederá o rendimento analítico do segundo, e nesse
aspecto a sua qualidade física exerce papel central, como permitirá
superar abordagens dualistas que os envolvem. Miller sugere que essa
superação pode ser feita ao se abordar pessoas e coisas como constituí-
dos a partir de um único e dialético processo de objetivação, este sim o
movimento prévio ao surgimento de ambos e através do qual o sujeito,
ao mesmo tempo em que cria o mundo ao seu redor, é criado por ele.
Deve-se buscar o significado do objeto de maneira que se entenda por
que os objetos se tornam significativos para as pessoas, ao ponto de as
pessoas passarem a se identificar com os objetos ou até se indiferencia-
rem deles. Keane, por sua vez, defende que não é exatamente o represen-
tacionalismo que deve ser superado, ou seja, a diferença entre conceito e
coisa, mas o modo equivocado com que tradicionalmente apreendemos
os signos como dissociados da materialidade que representam (Keane,
2005). Em radical contraste com a abordagem que evidenciaremos no
parágrafo a seguir, o autor defende que “somente ao considerar a exis-
tência dos objetos independentemente das experiências, interpretações
e ações humanas” é que poderemos realizar o seu real potencial analítico
e teórico (Keane, 2006, p. 201).
Já Bruno Latour e Alfred Gell estão entre os que defendem o uso do
conceito de agência para acessarmos os efeitos que os objetos causam na
vida social. Ambos os autores enfatizam o aspecto relacional dos objetos
e a sua inserção em uma cadeia de relações sociais. No entanto, Latour
(2005), ao meu ver, parece se ater menos ao objeto e à intencionalidade
e mais aos efeitos que os objetos podem provocar estando em interação
com as pessoas. Parece advogar, assim, por uma indiferenciação entre

204
cabelos femininos e a confusão de símbolos

humano e não humano que configura um dispositivo quase que meto-


dológico e que permite ao analista ver, ao rearmar [reassemble] o social,
como os objetos possuem causalidades idênticas aos dos sujeitos em
eventos sociais, ponto que trarei à tona por meio da descrição empírica
do capítulo a seguir. Já Gell (1998) toma os objetos como foco de sua
análise e como detentores de qualidades person-like. Se empoderam de
uma agência causada por um agente primário humano – o artista ou o
artesão – que a partir de um protótipo cria o objeto que passa ele mesmo
a ser um agente secundário, repositório de intencionalidades causais
como o humano que o produziu.
Gell e Latour colocam as fundações para que se colapsem as dife-
renças entre conceito e coisa, como defenderão Henare, Holbraad e
Wastell (2007), os quais parecem manifestar uma discreta preferência
pelo conceito em relação à matéria. Os autores sugerem ainda um uso
apenas heurístico para o que possamos vir a chamar de coisa. Keane
(2009), por sua vez, retorna ao debate, e ao invés de advogar por um
desmantelamento da diferença entre sujeito e objeto ou conceito e
coisa, defende que a riqueza da materialidade está em sua capacidade
de cruzar mundos, e não a de ter seu significado colado a um conceito
que o circunscreve a um mundo e a uma ontologia particulares. Como
Appadurai (1986) já havia mostrado, a “vida social das coisas” coloca em
movimento objetos e contextos.
Ao longo de toda a tese, adoto as diferentes perspectivas sobre o
objeto material como destacadas acima. No entanto, o modo como
venho desenvolvendo a noção de estética presa por uma dessubstancia-
lização do objeto que envolve não exatamente o colapsar das diferenças
ontológicas que estes venham a ter com o humano, mas o modo como o
seu estudo é indissociável da vida que o produz. Ao meu ver, e ao modo
como meus interlocutores vêm mostrando, considerar que objetos pos-
suam naturezas diferenciais dos sujeitos não nos impede de os incorpo-
rarmos aos nossos corpos, nos fundirmos a eles e deles nos indiferenciar-
mos. Subjacente a esta abordagem está uma outra que toma a arte como
domínio não exclusivo daqueles considerados como artistas stricto sensu,
como coloca Lagrou para a produção dos objetos ameríndios.
Mas em vez de concluir que por esta razão não existe estética nem arte,
poderíamos também dizer que, se todos os membros ativos têm acesso

205
a estética funk carioca

ao processo de produção de objetos e à beleza resultante deste saber fazer,


impregnando o cotidiano de uma comunidade com um estilo particular,
todo membro dessa sociedade é artista. Neste caso estaríamos usando
uma definição mais ampla de ‘arte’, derivada da palavra ars em Latim
e anterior à especialização que a palavra sofreu durante o Iluminismo
(Lagrou, 2009b, p. 68).

Além das abordagens esmiuçadas acima, neste e no próximo capí-


tulos estará mais evidente o modo protético de relações entre corpo e
artefato, derivado da maneira como Strathern (2004 [1991]) incorpo-
rou o ciborgue ao seu modelo de análise do social. A ferramenta, que
Ingold igualmente define como estendendo a capacidade de um agente
(Ingold, 2000, p. 315), o faz somente a partir da posição em que a pes-
soa se encontra. A extensão não amplia as capacidades intrínsecas, mas
concede capacidades outras que a pessoa não possui. Dessa perspectiva,
não existe relação sujeito-objeto entre a pessoa e a ferramenta, somente
capacidades expandidas ou realizadas.

a pujança dos cabelos


Os cabelos estiveram sempre presentes nos momentos que antecederam
a festa, como possibilidade da transformação necessária para a entrada
em sua esfera. Ainda que estes sejam posteriormente carregados para
onde quer que o seu dono vá, é sempre na imanência da festa que são
desencadeadas as elaborações estéticas que os envolverão. A primeira
vez em que notei o seu poder transformador foi em Tina, como chama-
rei a moça que trabalhava na casa de Sílvia assim que iniciei meu campo.
Sílvia viera me buscar para que fôssemos ao baile do Tuiuti, uma favela
na Zona Norte da cidade. Entrei pela porta de trás do carro, e sentei-me
ao lado de Sílvia, Thamyris e uma outra moça que não reconheci. As
três riam muito e num primeiro momento atribuí o seu divertimento
à mistura de uísque e Red Bull que tomavam e preparavam ao virar no
copo plástico com gelo os conteúdos da garrafa de Black Label e das
latinhas de energético. Thamyris não bebia do uísque e talvez bebesse
o energético, mas ria igualmente, e Alex, o motorista, dirigia quieto e
sem beber, naturalmente. Alguns instantes depois olho novamente para
a moça ali sentada e reconheço nela Tina, mas uma Tina absolutamente
diferente da que eu conhecera alguns dias antes, quando vestia bermuda,

206
cabelos femininos e a confusão de símbolos

camiseta e uma touca de tricô na cabeça


que deixava apenas a franja de seu curto
cabelo à mostra, parecendo mesmo com
um menino. Nesta noite ela trajava um
vestido vermelho e trazia seus cabelos
negros alongados.
Os cabelos retornaram de modo
ostensivo nas vésperas do novo ano de
2008, que eram também anteriores ao
show de gravação do DVD de Catra. Eu
chegara na casa sem avisar, para mais
uma visita. Ir “à casa” significou sempre
ir à casa e/ou ao estúdio: dependendo
de qual dos lados estivesse em atividade
eu me atinha a um, a outro, ou a ambos.
Nesta tarde o estúdio estava inativo e
Catra se recuperava, fechado em seu
quarto, de um mal-estar súbito. Junto à grande mesa que fica em um dos
cantos da varanda que dá para o jardim estava sentada Tina, de cabeça
baixa, com seus cabelos sendo manipulados por Taninha, a “Taninha
do Mega-Hair”, que coloca as “extensões” na cabeça das “passistas da
Mangueira”, como me disseram.
Enquanto Tina tinha as mechas de seus cabelos alongadas, sen-
tamo-nos Sílvia e eu em um banco ao lado e conversamos sobre assun-
tos diferentes, dentre eles os cabelos no estilo “Black”, usado por algu-
mas atrizes brasileiras, os quais Sílvia não aprecia. Ao mesmo tempo, ela
reclamava com a filha pequena sobre o cabelo desta, que ao deixar a piscina,
tinha-os armados e desalinhados, diferentemente do usual, quando os
traz meticulosamente penteados e presos, em rabo de cavalo, maria-chi-
quinha ou chuquinhas várias.
Esta foi uma tarde interessante, pois junto aos cabelos emergiu o tema
da circulação pela cidade e do preconceito racial, mas de modo implícito,
como costumeiro, e de maneira indireta. Não relacionou os cabelos delas
à sua circulação, mas o modo como a minha aparência era facilitadora de
minha mobilidade, que era por sua vez intensificada por meu carro. Ao
me oferecerem um trago da cerveja que partilhavam, eu o recusei com

207
a estética funk carioca

a justificativa de que em breve


eu teria que dirigir de volta para
a Zona Sul, e que além de ter
a carteira de motorista com a
validade vencida, eu teria como
agravante, no caso de ser parada
por uma vistoria policial, a
acusação de haver consumido
substância entorpecente. Sílvia
me pergunta então: “e por acaso
você é parada?!”. Ela diz que
eu posso ficar “tranquila”, pois
nunca me intercederão. E imita
o modo como um policial agiria
ao me ver em uma blitz, incli-
nando a cabeça para olhar quem estaria no carro e fazendo com a mão
o sinal de “passa”, que era repetido por suas palavras. Não lhe perguntei
por que ela pensava daquele modo, mas retive a questão na mente, esco-
lhendo elaborá-la a posteriori, exatamente como ela a introduzira, através
da aparência e dos objetos materiais.
A pujança que possuem os cabelos no ambiente em que eu pesqui-
sava se revelou de fato para mim em uma terceira ocasião e relacionou
novamente a festa, em dois momentos distintos. Desta vez envolvia Cíntia,
a comadre do casal que eu sempre pensei ser branca mas que, como ela
me diria, não era branca. Era da “cor que os gringos gostam”, diferença
que ela mostrou-me ainda mais claramente quando em um Natal lhe dei
um gloss de presente e ela reclamou de sua coloração. Eu já entendera
que moças com a “boca preta” não gostam de brilhos labiais escuros, mas
os lábios de Cíntia eram, ao meu olhar, claros. Para que eu entendesse
melhor ao que se referia, ela levantou seus lábios para que eu visse em sua
gengiva que aqueles não eram claros como eu poderia pensar.
Cíntia manipulará a ambiguidade de sua aparência para entrar e
sair de espaços da cidade com uma habilidade ímpar. De certo modo, ela
faz jogo simétrico e oposto ao que Catra realiza: enquanto este se utiliza
de sua aparência para entrar e sair de espaços que não são tradicional-
mente franqueados aos membros das classes mais altas, ela usará o modo

208
cabelos femininos e a confusão de símbolos

como se apresenta para adentrar espaços que não são tradicionalmente


franqueados aos membros das classes populares. Juntos, Catra e Cíntia
confirmarão a riqueza que a ambiguidade oferece à produção de conhe-
cimento antropológico. Os cabelos estiveram todo o tempo presentes,
contudo foi em seu uso ambíguo que eles revelaram toda a sua potência.

Chegávamos à Fundição Progresso para a apresentação que Mr.


Catra faria logo a seguir, na Lapa, bairro no Centro da Cidade conhe-
cido como zona de confluência de distintas “tribos” e classes sociais.
Sílvia, em seu sétimo mês de gravidez, viera dirigindo desde sua casa
em Vargem Grande, bairro da Zona Oeste da cidade, e subira apressa-
damente as escadas do camarim em busca de um toalete. Inspiradas por
ela, resolvemos fazer o mesmo, mas achamos mais prático entrar em um
sanitário ainda no andar térreo. Eu já estava novamente fora da sala de
banhos, mas através de sua porta entreaberta observo Cíntia se olhando
no espelho. Ela fala que não gosta de si com o seu cabelo “daquele jeito”,
“enroladinho”. Tâmara, prima de Sílvia, diz que gosta do visual de Cíntia,
mas Cíntia continua a se olhar no espelho, e fazendo cara de desgosto
reafirma, também por meio de palavras, que não aprecia a imagem que
vê. Cíntia já me dissera, em outras ocasiões, que não lhe agrada levar
seus cabelos anelados, e pensando na vez em que eu a encontrara na
noite de gravação do DVD de Catra, nesta mesma Fundição, de tal modo
produzida que eu não a pude reconhecer, com cabelos lisíssimos e loirís-
simos e a pele dourada, pergunto-lhe por que viera então com o cabelo
daquele modo. Ela me olha, com um ar blasé, e diz que é porque veio
“representando”. Eu acho uma certa graça em seu comentário e dou um
riso seco. Ela me olha novamente e diz: “é verdade”, parecendo comuni-
car que não havia nada do que se rir ali.
Cíntia, uma mulher com cerca de 30 anos, mignon, de pele clara,
que ela já definiu como “encardida”, pernas grossas e cintura fina, ves-
tia um microvestido em malha rosa, ajustado ao corpo, com mangui-
nhas curtas levemente franzidas e adornado por aplicações localizadas,
feitas por cristal, por pequenos quadrados de espelho e ainda por uma
pequena estampa prateada. A grife da roupa, PXC, assim como a recor-
rência dos “brilhos” e a modelagem ajustada, são ícones do gosto e do

209
a estética funk carioca

estilo indumentário funk. A PXC é marca de roupa há muito bastante


popular entre os funkeiros e a presença do “brilho” é o grande traço do
estilo indumentário em voga entre as meninas no Baile, como antes foi
a “calça de moletom stretch” (Mizrahi, 2006b; 2010a).

Por outro lado, quando encontrei Cíntia com seus cabelos “pran-
chados”, justamente na noite de gravação do DVD de Catra, ela vestia
uma roupa de ares cosmopolitas. Igualmente curto, seu vestido era do
tipo tomara que caia e baloné: bufante e esvoaçante, solto no corpo e
preso às coxas por uma barra larga, na mesma visco lycra que compu-
nha a peça de roupa. Esta malha, fina, fria e mole, era estampada por
um motivo abstrato cujo estilo é inspirado nas estampas do designer
italiano Emilio Pucci, de ares psicodélicos e hit da moda europeia da
década 60. Sua releitura produziu uma das fortes tendências das cole-
ções do verão carioca de 2007/2008.2 Até então eu havia visto Cíntia
uma única vez, em uma tarde na qual, após breve parada no estúdio,
eu parti com ela e Sílvia rumo ao Barra Shopping, centro de com-
pras localizado na Barra da Tijuca, igualmente na Zona Oeste. Cíntia,
naquela tarde, estava sem maquiagem, com seus cabelos anelados pre-
sos em meio rabo, vestindo camiseta e uma “calça de moletom stretch”
da marca Gang. De modo que não a reconheci ao revê-la bronzeada,
com cabelos dourados e lisos, vestindo roupa de modelagem e estilo

2 Para maiores detalhes sobre o estilo da Pucci ver <http://www.emiliopucci.com>.

210
cabelos femininos e a confusão de símbolos

globais, complementados por seu glamour pessoal. Cumprimentei-a e


justifiquei minha demora em fazê-lo com o fato de não havê-la reco-
nhecido, o que lhe pareceu natural: “claro, naquele dia não era festa”.

Cíntia, através de suas roupas e cabelos, nos fala sobre sua habilidade
em manipular representações. Quando deseja ou lhe é conveniente se
apresenta como funkeira. E quando quer pode também passar por uma
jetsetter internacional. O “representar” é uma categoria nativa. Alguém
“representa legal” quando manda de modo convincente a sua mensagem
ao falar em nome dos seus. A expressão pode ser usada, por exemplo,
para aferir a performance de um MC – “ele representou legal” –, mas tam-
bém a performance de uma pessoa em seu processo de autoapresentação.
Em uma noite chegamos Cíntia e eu à casa de Sílvia para buscarmos
Thamyris e Luciana, outra das primas de Sílvia, e “fazer os bailes com o
Negão”. Luciana e Thamyris, prontas para sair, vieram ao portão. Cíntia,
em reação ao visual da primeira diz: “ih... representando mêmo”. Mas

211
a estética funk carioca

desta vez pude pressentir desdém em sua


fala. A morena Luciana trazia cabelos pre-
tos em corte chanel, de comprimento abaixo
das orelhas e lisos, e vestia um macacão
preto justo, formado por short e blusa com
decote v, do tipo frente única, lhe deixando
com as costas desnudas. Feito em jersey de
algodão, como o vestido rosa que Cíntia ves-
tia na Fundição quando ela mesma disse vir
“representado”, o macacão de Luciana com-
partilhava ainda com esta roupa de Cíntia a
marca PXC e as elaborações em brilho. Estas
se encontravam não apenas na logomarca
rebordada em cristal na altura do cóccix de
Luciana, como nas tachas e quadrados que
adornavam os bolsos frontais de sua roupa.
Estes últimos, ao invés de decorados por
espelhos, eram adornados por lantejoulas
prateadas. Ambas as roupas possuíam o
mesmo estilo.

a confusão de símbolos
Cíntia sabe bem como escapar às representações, às cristalizações que
estas podem produzir, e nessas horas escolhe um visual mais cosmopo-
lita, mudando estilos indumentários, cabelo e maquiagem, como vimos
mais acima, a partir da alternância entre indumentárias mais funks e
outras mais globais. Com isto, ela não está comunicando apenas como é
hábil na manipulação de símbolos, mas como domina os códigos estéti-
cos de diferentes ambientes, potencializando o seu trânsito entre eles. A
manipulação de símbolos e o domínio dos diferentes códigos estéticos
que povoam o Rio de Janeiro, como venho defendendo ao longo deste
livro, são habilidades [skills] próprias aos sujeitos criativos funk, parti-
lhadas por todos, sejam eles artistas no senso estrito ou não. E a fluidez
como se fazem as passagens entre diferentes mundos sociais é tamanha
que acaba por causar uma confusão de símbolos que gera agitação não

212
cabelos femininos e a confusão de símbolos

tanto na cabeça dos próprios, como supõe-se muitas vezes, quanto na


percepção do observador de fora e do antropólogo.3
Eu aguardava na porta da Fundição Progresso para que liberassem
a minha entrada no local.4 Saíra de casa sozinha e por acaso encon-
trara com Cíntia no portão do estacionamento da casa de shows, por
onde entram os convidados da casa e dos artistas. Cíntia estava impa-
ciente com a demora de Catra e decidira ir embora, mas antes de partir
reconhece o rapaz que saía de um táxi, após estacioná-lo. Ela diz que
é Renatinho, “amigo do Negão”. O rapaz se aproxima de nós, cumpri-
menta a Cíntia, que logo nos deixa.

Ficamos conversando, Renatinho e eu, e eu lhe pergunto se já não


havíamos nos encontrado, mas ele parece ficar na dúvida. Eu estou certa
que já o vira no estúdio. Renatinho me pergunta então se por acaso não

3 Algumas semanas antes de escrever este capítulo fui procurada pelo jornal O Globo para escre-
ver um ensaio para sua coluna Logo a propósito de visitas que jogadores de futebol cariocas
fizeram às favelas onde antes moraram (Mizrahi, 2010b). Uma das questões que a imprensa
se colocava era se esse ir e vir entre favela e asfalto não causaria confusão na cabeça dos jogado-
res ao se depararem com realidades que a mídia apreende como sendo radicalmente diferentes.
4 A dinâmica de acompanhamento dos shows de Catra se deu de distintas maneiras. Muitas
vezes, como aparece no primeiro capítulo, acompanhei o artista em suas turnês, do começo
ao fim da noite. Em outras ocasiões seguia com Sílvia e suas amigas. Neste caso assistíamos a
um único show e desfrutávamos do evento que o abrigava do começo ao fim. Em outros casos
ainda, eu seguia sozinha com o objetivo de observar, em apresentação específica, algum dado
pontual relevante para a pesquisa.

213
a estética funk carioca

era eu que lá estava no dia em que foram fazer umas fotos para a Osklen,
uma “Osklen pa Nêgo”. Eu disse que não estive lá nessa ocasião e, curio-
síssima, levo tudo aquilo muito a sério e pergunto se o pessoal da Osklen
esteve por lá. Ele diz, em tom já um tanto decepcionado, que acha que só
a fotógrafa estivera lá. Mas eu insisto na conversa, e ele diz que na ver-
dade acha que, como “o pessoal” sabe que ele “gosta de Osklen”, estavam
“zoando” ele. Sem ainda entender direito o que acontecera, pergunto-lhe
se esse lance de “Osklen pa Nêgo” era “zoação”, e ele diz que sim, que acha
que “tudo era zoação”, “até a fotógrafa”, e que “não teve Osklen nenhuma
lá”. Conclusão, nessa tarde, a suposta fotógrafa/estilista da Osklen era eu.
E o pessoal do estúdio, sabendo do interesse de Renatinho pela grife ipa-
nemense, de roupas muito caras e apreciada tanto por “playboys” como
por funkeiros, se utilizou de minha presença para pregar uma peça no
rapaz.5 Mas se eu fui usada para confundir Renatinho, ele também con-
fundiu-me com sua aparência.
Pois eu já havia ficado intrigada pela estampa do rapaz, que cir-
culava pelo estúdio com seu porte elegante em roupas caras de marcas
esportivas globais, o que fez com que eu me perguntasse quem seria ele,
pois não me parecera exatamente um funkeiro ou rapper. No estúdio, as
roupas usadas pelos músicos são mais propriamente as dos fabricantes
nacionais de roupas no estilo hip-hop, como a Manos, a XXL e a Blunt.
Renatinho parecia um empresário bem-sucedido do meio musical,
como eu já vira antes em Brancão, um homem branco e agente de um
MC de funk. Mas Renatinho, fico sabendo enfim, era um dos motoristas
de táxi que atendia a Catra e, a julgar por sua aparência, muito bem-
sucedido em seu ramo. Nesta noite em que nos encontramos na porta
da Fundição Progresso, ele vestia uma blusa da Osklen e uma calça da
Taco, rede de lojas que pratica preços bastante acessíveis. Nos pés trazia

5 A marca Osklen inspirou o nome de um grupo de cantores e dançarinos de funk, o Bonde da


Oskley. Essa subversão de seu nome causou espécie nos dirigentes da empresa de moda, como
notei em uma conversa com um de seus funcionários da área de comunicação. Entendem que
o jogo com o nome de sua etiqueta, que remete ainda ao de uma outra marca muito apreciada
por funkeiros, a Oakley, indica a incapacidade destes de proferir de forma correta o nome
Osklen. Mas, parafraseando o DJ Ratinho, Oskley já é um “nome outro”, derivado da caracterís-
tica dinâmica funk, que opera através de sucessivos englobamentos, realizando a incorporação
da estética alheia, produzindo diferença através de jogos miméticos.

214
cabelos femininos e a confusão de símbolos

um tênis da Puma, marca estrangeira de artigos esportivos, de preços


bastante elevados no mercado nacional.6
Mas a confusão não cessa aqui. Um grande e vistoso carro impor-
tado, do tipo caminhonete, preto e de vidros escuros, para ao portão
do estacionamento, onde aguardávamos para entrar. Me pergunto quem
poderia estar ali dentro, certamente um “playboy”, do tipo desprezado
pelos funkeiros. De repente Renatinho, muito à vontade, leva a mão à
maçaneta do carro, abre a porta e cumprimenta o motorista, apertando
a sua mão. Tratava-se de Juninho, padrinho de Noemi, filha de Catra
e Sílvia, e responsável pelo braço carioca da RapSoulFunk, a empresa
que agencia músicos de funk e hip-hop. Ele vestia uma calça social
preta, de pregas e pernas soltas, uma camisa também social, de listras
azul e branco, para dentro da calça, sobre uma blusa t-shirt de malha
branca, cuja gola careca aparecia pelo colarinho branco da camisa, de
punhos também brancos, que estava aberto. Nos pés, ele trazia sapa-
tos sociais pretos, lustrosos, do tipo inteiriço, que não possui amarração
por cadarço. O empresário bem sucedido do ramo musical mostrava-se
como o protótipo do empresário paulista.7
A música do MC Maiquinho, ao anunciar que a Zona Sul, área resi-
dencial ainda considerada por alguns como privilégio de poucos, é de fato
território de muitos, fala-nos simultaneamente sobre como hoje podem
ser tênues as fronteiras que separam o “playboy” e o funkeiro. Se antes
as oposições cantadas pelo funk proibido informavam sobre um mundo
que se construía a partir do englobamento dessas oposições, colocadas
para serem desfeitas, hoje os polos vão aos poucos se embaralhando, tor-
nando difícil identificar o que está “dentro” e o que está “fora”. O “nóis” já
não se define tanto por contraste com a “pista”. A oposição Zona Norte/

6 Na roupa que Renatinho vestia na Fundição Progresso estão duas marcas caras, a carioca
Osklen e a alemã Puma, misturadas à bem mais acessível Taco. Poderia se cogitar se as primei-
ras não corresponderiam a cópias dos originais, encontradas em centros de comércio informal
como o Mercadão da Uruguaiana. Entretanto, a empresa Osklen faz forte controle para evitar a
difusão de cópias no mercado e os tênis esportivos usados por funkeiros são preferencialmente
originais, mesmo que usem alguma peça de roupa “falsa”. As tensões entre o falso e o verda-
deiro na indumentária funk foram por mim estudadas na dissertação de mestrado (Mizrahi,
2006b), foram elaboradas em artigo posterior (Mizrahi, 2007a), são objeto de aprofundamento
em nova discussão (Mizrahi, 2010c) e retornarão no capítulo 6.
7 Juninho administra ainda negócios de sua família, sem qualquer relação com o funk, e mais
recentemente criou, em parceria com o MC Leonardo, da APA Funk, a produtora NKP.

215
a estética funk carioca

Zona Sul, antes central para entender a espacialidade carioca (Velho,


1989 [1973]) já não possui mais o mesmo sentido radical.
Eu tô fechado com o funk
Se tentar tu passa mal
A concorrência tentou
Podes crer que se deu mal

Eu sou MC Maiquinho
Sem cumprir vacilação
Quem tá tocando no baile
É o DJ com tambozão

No meu bonde é só psico


No meu bonde é só psico
No meu bonde é só psico
No meu bonde é só psico

No meu bonde é chapa quente


Só uísque e Red Bull
Tem gente que vem de fora
Curtir, na Zona Sul

Não vejo problema algum


Pelo menos é o que eu acho
Pode vir curtir direito
Nóis zoa nosso pedaço

Sou MC Maiquinho
Contra nóis não há quem possa
A Zona Sul n’é deles, a Zona Sul é nossa
A Zona Sul n’é deles, a Zona Sul é nossa [...]8

Estamos no carro novamente, Cíntia e eu. Depois de mais uma tarde


em Vargem Grande dirijo de volta para casa e Cíntia retorna comigo “pra
Sul”. Enquanto dá alguns telefonemas, ela me explica que a música do MC
Maiquinho da Zona Sul, como é o nome completo do cantor, é “pratica-
mente um hino lá no morro”. Maiquinho, como Cíntia, mora na Zona
Sul: ele na favela da rua Pereira da Silva, em Laranjeiras; ela no Morro
do Cantagalo, localizado na divisa de Copacabana e Ipanema. A música
fala “tem gente que vem de fora, curtir na Zona Sul”. De fora de onde?

8 “Zona Sul é nossa”, cantada pelo MC Maiquinho da Zona Sul.

216
cabelos femininos e a confusão de símbolos

De fora da Zona Sul ou de fora da favela? Não importa, diz Maiquinho.


Na favela ou no asfalto a “Zona Sul né deles; A Zona Sul é nossa”. Eles
quem? Os de fora da favela ou os de fora da Zona Sul? Novamente, não
importa, diz Maiquinho, porque “nóis zoa nosso pedaço”: curtimos no
nosso território. Território que é todo ele de Maiquinho e seus pares.
Cíntia está em busca de companhia para o show de Catra que assis-
tirá mais tarde na Katmandu, boate localizada na porção ipanemense do
entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas. Primeiro ela telefona para Bebel,
que está cansada e quer dormir cedo. Liga então para outra amiga, que
diz estar “loiríssima”, mas também não quer sair. Cíntia pergunta-lhe se
fez “tudo isso”, tingiu os cabelos de loiro, “pra ficar em casa?!”. A moça
diz que não fez escova nos cabelos, e que “o problema é que está loira,
e loira de cabelo duro não dá”. Cíntia desliga o telefone e reclama da
justificativa da amiga para sair, parecendo achar excessiva a sua preocu-
pação. Um pouco depois comenta que mais tarde fará uma escova com a
“tiazinha lá do morro”, uma senhora que atende perto de onde ela mora,
e deixara seus loiros cabelos lisos.
Chegamos ao Leblon, e decido seguir pela rota que margeia a praia.
Caímos no início da avenida Delfim Moreira. O tráfego está livre e
abrimos o vidro do carro. Cíntia solta um suspiro de satisfação, e eu a
acompanho. Ela diz que adora a Zona Sul e que tem imenso prazer em
adentrá-la daquela forma, pela praia do Leblon.

cabelos como extensões


Cíntia, diz Sílvia, “é uma piranha”: é abençoada por ter cabelos que não
precisam de extensões. Cíntia dá um sorriso de consentimento, pare-
cendo concordar que ela é mesmo agraciada com uma dádiva divina.
Mas insiste que seu cabelo, para chegar ao ponto em que chegou preci-
sou passar por “vários processos”. Mas, em compensação, ela “tá como?;
só jogando”. “Jogar” os cabelos significa tê-los longos a ponto de, ao virar
a cabeça de um lado para outro, eles acompanharem o seu movimento,
se deslocando na direção oposta. Por isto Cíntia é como se abençoada,
pois, apesar de ter feito “várias progressivas”, tem hoje seu cabelo, que era
“miojinho”, com textura suficiente para estarem longos e ainda possuí-
rem versatilidade para os momentos em que os quer anelados ou lisos.

217
a estética funk carioca

Pois nem sempre os cabelos resistem aos tratamentos relaxantes


que permitem a cabelos como os de Cíntia crescer, anelar ou serem ali-
sados. Pois, de tão finos, não resistem à “química” e “quebram”, os fios
partem ao longo do processo. É isto que os faz “não crescer” ou levar
muito tempo para que isso ocorra, a pouca resistência aos produtos para
alisar os cabelos e “relaxar” os cachos. Se gostassem de penteados no
estilo “afro”, seus cabelos cresceriam. E em vez de os usarem “baixinhos”
e “vazios”, como gostam, os trariam “armados”, “cheios” ou trançados.9
Mulheres como Sílvia, Thamyris e Tina recorrem, então, às exten-
sões capilares. Houve uma época em que muito invejaram as norte-a-
mericanas, pois pensavam que estas tinham acesso a tratamentos pode-
rosos para terem os cabelos longos, mas descobriram com o tempo “que
é tudo amarrado”. Dizem que a cantora Beyoncé, um ícone de beleza, já
nem se preocupa mais em esconder os nós de suas extensões. E falam
com orgulho de como hoje elas podem “ter os cabelos”. Acrescentam
ainda que muitos debocham de seus cabelos estendidos mas não des-
denham das “brancas” que também as usam, como as atrizes que par-
ticipavam da novela das oito que passava à época na Rede Globo de
Televisão: Suzana Vieira, Aline Moraes, e Juliana Knust.
A cabeleireira Taninha me explica que “antigamente” havia um tipo
de cabelo que era chamado de “100%”, mas que, sintéticos, embaraça-
vam muito. Os cabelos atuais são humanos e igualmente importados,
diz. Primeiro são tratados e lavados, pois “às vezes podem ter piolho”.
As extensões de cabelos, segue Taninha, existem há cerca de vinte anos e
ela mesma já as usa há mais ou menos treze anos. Aprendeu o seu ofício
junto com uma amiga, cada uma colocando extensões nos cabelos da
outra. Em cada cabeça coloca-se cinco a seis amarrados de cabelo. Se os
fios são longos, cada amarrado pesa cerca de 50 gramas cada um, e seu
custo em 2008 ficava em torno de cento e vinte reais.
Encontrei com Taninha na casa de Sílvia em três diferentes oca-
siões. Na primeira vez ela fazia os cabelos de Tina, como descrevi no
começo deste capítulo, tarde que corresponde a um momento mais ini-
cial da pesquisa de campo. As duas outras vezes também antecederam
as festas, e marcaram ainda minhas saída e retorno ao campo: quando

9 É preciso notar que os cabelos no estilo “afro” não são mais naturais ou menos feitos do que os
que passam por processos químicos ou são alongados por extensões.

218
cabelos femininos e a confusão de símbolos

parti para fazer a bolsa sanduíche, nas vésperas de mais um ano-novo, e


quando fiz minha primeira visita à casa de Sílvia ao retornar de viagem,
nas vésperas de mais uma festa de Luizinho, o amigo bicheiro, à qual eu
não poderia deixar de ir, me avisou Sílvia.
Os cabelos definitivamente precisaram ser olhados com cuidado,
mas eu vinha de um campo em que os mesmos não me pareceram tão
relevantes. Muito diferentemente do que aqui ocorreu, eles não clama-
ram por minha atenção.

A investigação de mestrado (Mizrahi, 2006b), como já mencionei,


transcorreu majoritariamente em um determinado baile funk. Ainda
que eu tenha acompanhado as moças e rapazes em incursões para com-
pras de roupas ou em visitas ao barbeiro, o foco principal da pesquisa foi
a produção para a festa, estando esta circunscrita a um contexto especí-
fico e a um evento particular. O trânsito por diferentes ambientes sociais
da cidade não foi problematizado, e de fato este não parecia muito inte-
ressar aos jovens com os quais trabalhei. Moradores de favelas cario-
cas, eles frequentavam um evento que, ainda que ocorresse fora de suas
comunidades de moradia, era de certo modo a extensão de suas casas,
ou de seu ambiente de residência. O Baile do Boqueirão, diziam, era o
“baile do oi”: podia-se encontrar tantas pessoas conhecidas que corria-
se o risco de passar a noite nos cumprimentos.
A marca estilística feminina que emergiu do conjunto indumentá-
rio arrolado neste ambiente foi a “calça de moletom stretch”, conhecida
na mídia como “calça da gang”. De fato eu já cheguei ao baile interes-
sada em problematizar os resultados de uma pesquisa anterior (Mizrahi,
2003), que seguiu o processo de ressignificação da “calça da gang” na
mídia, que por sua vez atribuía o sucesso da peça de roupa à sua capaci-
dade de “dar bunda” à sua usuária. A calça, segundo o discurso midiá-
tico, produziria em si mesma um corpo. No baile, como constatei, o
relevante não era a marca de seu fabricante mas a materialidade de seu
tecido, que emprestava o seu nome à categoria englobante que designou
o estilo: “calça de moletom stretch”. As propriedades físicas do objeto,
em sua interação com o corpo e seus atributos culturais, fizeram com
que as moças do baile se apropriassem da peça de roupa e criassem
assim um estilo, através do sentido que lhe atribuíram por meio de seu

219
a estética funk carioca

uso na festa. A calça não concedia atri-


butos corporais, mas realçava-os. Por
este motivo, moças de corpos magros
e poucas curvas elegiam peças de rou-
pas alternativas. A calça que vazou
para o “alto gosto” era criação delas
e não a produção individual resul-
tante de uma suposta fórmula mágica
encontrada para gerar belos corpos.
O estilo em questão referia-se a
uma calça elástica como as de ginás-
tica, mas de tecido que, após ser tin-
turado e lavado, adquiria o aspecto do
denim, simulando assim uma calça
jeans. Entretanto, estas calças femini-
nas eram feitas não do índigo blue, o
tecido plano que dá origem ao jeans
e pode adquirir alguma elasticidade
ao ser mesclado à lycra, mas de uma
malha – tecido circular que já é em si
elástico – que, misturada à lycra, fica
super elástica. Isto tornou a peça de
roupa super confortável para a dança,
que era em última instância o que
movia os jovens ali. Além disso, o moletom stretch, o tecido que compõe
o estilo, apesar de ser uma malha, era suficientemente resistente para
receber as ações embelezadoras que a fizeram peça de roupa apropriada
para a esfera da festa, com elaborações barrocas como bordados, cris-
tais, perfurações, tachas de metal, encaixes de outros tecidos, rendas e
telas. Por outro lado, esta malha era fina o suficiente para promover um
merge, uma fusão entre corpo e artefato, realçando e tornando ainda
mais sinuosos os corpos das moças em dança, que repetiam movimen-
tos circulares.
Havendo desvendado essa lógica, voltei a campo, desta vez tendo
como contexto de investigação a rede de relações de Mr. Catra. Meus
sentidos estavam em busca de outras discussões, e foi ao esquecer a

220
cabelos femininos e a confusão de símbolos

calça e as roupas feminina e masculina, no sentido de não tê-las como


foco central de minha atenção, que os cabelos me argolaram, ao mesmo
tempo em que trouxeram de volta a calça. Pois parece ter sido o próprio
processo de seu esquecimento que me fez ver os cabelos e entender que
a calça não aparecia no novo contexto de investigação não tanto por
não estar mais tão em voga, mas porque confirmava o que os cabelos
estavam me dizendo: que eles estendiam as pessoas, agiam em sintonia
com seu desejo de conectividade.10 A calça, por sua vez, localiza as usuá-
rias, cristaliza a sua identidade funkeira, operação que era precisamente
o que todas aquelas mulheres buscavam evitar.11 Escapar não ao funk,
mas a uma noção de identidade concebida como categoria que atrela as
identidades individuais a algum traço saliente comum, como o grupo ou
a etnia (Byron, 1996, p. 292).
Ao invés de circunscreverem as pessoas, os cabelos as magnificam,
as levam pela cidade, que era o que lhes interessava agora, mais do que
dançar. Pois a calça, se não impedia as moças de transitar pela cidade,
era retirada por elas na hora em que o faziam. Adriene e Lívia foram
minhas interlocutoras durante a pesquisa de mestrado. A primeira,
moradora da Cruzada, conjunto habitacional popular no Leblon,
bairro que possui, em média, o metro quadrado mais caro do Rio de
Janeiro, não usava suas diferentes “calça de moletom stretch” quando ia
ao adjacente bairro de Ipanema, onde ficava o salão de cabeleireiro em

10 O esquecimento a que me refiro diz respeito não a uma ausência de consciência em relação a
uma informação que inconscientemente guardamos, mas refere-se à operação cognitiva de
empurrar para um canto da mente um conhecimento que deverá ficar ali repousando até que
em algum momento, ou não, devamos a ele recorrê-lo. Em conjunto com a fina orientação de
Els Lagrou, foi possível converter este procedimento em método de investigação. Lagrou, em
sua pesquisa de doutorado, igualmente esqueceu o desenho kaxinawa para depois então recu-
perá-lo (comunicação pessoal), permitindo à estética falar em seu próprio moto sobre a vida
que lhe produz.
11 Na pesquisa de 2003 (Mizrahi, 2003), mostro que o fenômeno “calça da gang” produz um
trickle up de duas maneiras. De um lado, a marca Gang foi consumida por representantes do star
system e passou a compor o mix de lojas voltadas para um público de alto poder aquisitivo. De
outro, fabricantes nacionais voltados para o mesmo público destas lojas, se inspiraram em sua
modelagem para desenvolver suas calças jeans, excluindo das mesmas os adornos barrocos que
as faziam tão prementes ao Baile e substituindo o moletom stretch pelo jeans fino e misturado à
lycra, como na imagem da calça jeans que aparecerá logo adiante. O tecido, contudo, justamente
por ser a marca fundamental do estilo, foi o que definitivamente o vinculou ao baile funk e se
constituiu no elemento fundamental a ser evitado, como pude aferir por meio da investigação
de 2003 e como ressurgiu nas falas da pesquisa feita em torno da rede de relações de Mr. Catra.

221
a estética funk carioca

que trabalhava. A segunda, moradora do Morro da Coroa, no bairro do


Catumbi, Zona Central da cidade, tampouco usava sua calça ao dançar
nas boates do Centro da Cidade.
Foi precisamente essa preponderância do cabelo em relação ao
corpo e à roupa que Sílvia, Tina e Thamyris defenderam enquanto
assistíamos à novela da tarde. Eu lhes explicava sobre meu campo e
pesquisa anteriores e o fato de não haver explorado os cabelos femini-
nos. Explorara sim os cabelos masculinos, sobre os quais elaborarei no
capítulo a seguir. Tina se levanta e performaticamente me diz: “Gata,
sem cabelo a mulher não é nada... O cabelo é a coisa mais importante,
mapoa...”. De nada vale ter roupa e um belo corpo se você não tem
cabelo, dizem, acrescentando que se eu não havia ainda atentado para a
importância dos cabelos era porque eu os tinha. Por isso posso pensar
que a bunda é o mais importante. Falo que eu posso ter cabelo, mas que
não tenho o tipo de corpo que elas valorizam. E elas insistem que se eu
quiser posso tê-lo, que “é só malhar”. E eu insisto que não, e que para ter
um corpo como elas acham bonito eu teria que “tomar bomba”. Sílvia
acha que já fui longe demais: “Aí não. Aí você vai ficar com bunda, com
pelo no rosto, voz de homem, seu cabelo vai cair”.
Sílvia diz que em breve colocará “bastante cabelo enrolado”: quer
ficar “igual à Elba”.12 Lembro-lhe que quando a conheci ela usava cabelo
liso, e ela diz que são os mesmos cabelos enrolados, nos quais faz escova
e depois passa a prancha, para ficarem ainda mais lisos. Prancha não
é “chapinha”, explica. Esta era como uma tesoura com duas placas de
ferro na ponta, que se aquecia no fogo e depois passava-se no cabelo,
prática que estragaria o cabelo mais do que faz a prancha, defendem,
que é feita de plástico, é revestida de duas placas de metal e ligada
na eletricidade. Sílvia usa cabelos lisos somente no inverno, pois não
molha a cabeça todo dia, como no verão. E cachos bem alinhados exi-
gem que sejam molhados diariamente para depois receberem o creme
de pentear. Como resultado, as extensões permitem maior versatili-
dade, possibilitando escapar aos alisamentos que usaram no passado, e
eram mais ou menos definitivos.
Resolvi olhar mais de perto o processo de produção dos cabelos, sua
retirada, colocação, e o “relaxamento” das raízes entre uma e outra etapa.

12 Refere-se à cantora Elba Ramalho.

222
cabelos femininos e a confusão de símbolos

Fiz isso acompanhando Célia e Thamyris que, talvez para se diferenciar


da madrasta, resolveu que trataria de seus cabelos não com Taninha,
que vinha até a sua casa, mas em um salão em Madureira, ao qual fomos
diversas vezes em meu carro. Quando eu não as podia acompanhar, elas
seguiam de ônibus. As produções dos cabelos foram, contudo, acompa-
nhadas das produções por todo o corpo.

o corpo como sujeito


A primeira vez em que fui a Madureira com Célia e Thamyris foi
quase por acaso. Eu chegara na casa em uma tarde seguinte a uma noi-
tada de show no “puteiro”, e os músicos no estúdio estavam todos “der-
rotados” e tiraram a tarde para descansar. Catra, já acostumado com o
ritmo da vida funk, como disse Sílvia, era o único que “tava pra rua”.
Sílvia, tomada pelo mau humor que a cercou no início de sua gravi-
dez, também não estava muito interessada em conversar comigo. Célia
e Thamyris, por sua vez, arrumavam-se para sair. Eu decido então que
logo irei embora e aproveitarei o restante da tarde para resolver algumas
pendências pessoais. Antes de sair, acompanho a conversa delas com
Kátia, que dizia haver “domado” os seus cabelos no dia anterior, alisa-
ra-os. Thamyris diz que seu cabelo é “duro” e por isso não pode usar o
“creme alisante” que usa Kátia, pois ele “cairia”. Pergunto a Thamyris se
posso tocar seus cabelos, e ela diz que sim. O toque de seu cabelo em
nada corresponde com sua descrição. Acho-o macio, gostoso de tocar, e
falo isso a ela, que rindo diz: “não é nada”.
Sílvia sugere então que as moças venham comigo e que eu as deixe
em algum lugar ao longo do meu trajeto. Eu digo “ok” e acrescento que
irei até o Leblon. E Sílvia responde com sarcasmo: “não adianta nada
oferecer carona até o Leblon pra quem vai pra Madureira”. Pensando
retrospectivamente, aquele parece ter sido um modo seu de me colo-
car na direção dos cabelos, o mesmo modo indireto e não explícito que
muitas vezes pauta as comunicações verbais naquele ambiente. Pois
ocorre que em seguida lamento comigo mesma o fato de que as deixarei
no meio do caminho e penso que afinal de contas aquela poderia ser
uma boa oportunidade para acompanhar mais de perto a produção dos
cabelos. Resolvo ir com elas.

223
a estética funk carioca

Célia veste uma microssaia jeans da ACR e uma blusa roxa do tipo
“baby look”, um tipo de blusa t-shirt curta e ajustada ao corpo, da Puma,
com o contorno da pantera, a logomarca da empresa, gravada em cris-
tal sobre a parte frontal da blusa. Thamyris também vestirá uma “baby
look” da Puma, em vermelho, com a pantera estampada por vinil foto
refletor no alto do peito e na lateral da manga de um dos ombros da
blusa, e uma calça jeans capri, de comprimento acima do tornozelo, da
Abusiva, que, ela diz, não é marca de funkeira.
Já a ACR patrocina festas funk, como as noites de quinta-feira, dedi-
cadas ao ritmo, na Via Show, casa de espetáculos localizada na Rodovia
Marechal Dutra, na altura de São João de Meriti.13 Suas roupas eram
inicialmente vendidas por sacoleiras nas favelas cariocas, maneira atra-
vés da qual Sílvia adquiriu as primeiras peças da marca que, ao longo
do trabalho de campo, desenvolveu o seu alcance. Em minhas visitas a
Madureira vi a pequena loja neste bairro migrar de uma galeria para um
ponto central do seu comércio, ampliada em grande e vistosa instala-
ção. A empresa possui atualmente onze lojas, localizadas em bairros das
Zonas Norte e Oeste do Rio de Janeiro, no Centro da Cidade, em Niterói
e em municípios da Baixada Fluminense. O hit da marca no verão de
2008 foram as “sainhas” jeans super curtas e sem qualquer elasticidade,
soltas no quadril, como as que Célia vestia. Apesar de muito pequenas,
“não é nada que uma cruzada de pernas não resolva”, explicou Célia, ao
se sentar com calma e fineza de movimentos.14
Eu vou pro baile
De sainha
Agora eu tô solteira
E ninguém vai me segurar
[daquele jeito!]

13 Nestas ocasiões são tocadas também sequências de outros ritmos musicais, mas o carro chefe
da noite é o funk. Ao longo da pesquisa de campo, Mr. Catra era atração fixa da casa, e “convi-
dava” outros cantores do ritmo, que variavam a cada semana.
14 Na mesma época em que eu fazia trabalho de campo, a ACR compunha o figurino de uma
personagem da novela Duas Caras, da Rede Globo de Televisão. A personagem era uma mulata
de cabelos fartos e anelados e seu vestuário era composto não de “sainhas”, mas de diferentes
e vistosos modelos da “calça de moletom stretch”, confirmando a minha proposição e a per-
cepção de minhas amigas em campo de que quando se quer produzir uma representação con-
gelada sobre o feminino no funk recorre-se à calça. Lucilene, este era o nome da personagem,
simbolizava a moça fogosa da favela, caracterizada não apenas por sua indumentária mas pelas
músicas funk que apreciava.

224
cabelos femininos e a confusão de símbolos

Eu vou pro baile procurar o meu negão


Vou subir no palco ao som do tamborzão
Sou cachorrona mesmo e late que eu vou passar
Agora eu tô solteira e ninguém vai me segurar [...]15

As mulheres produzem a sua moda, como objetificado pela “calça


de moletom stretch”, e também as próprias marcas. Além da ACR, outra
marca muito presente durante o campo do doutorado foi a M&M, que faz
blusas e tops em malha elástica e sintética, sempre adornadas por brilhos,
como vimos nas roupas da PXC de Cíntia e de Luciana e como presente
na “calça de moletom stretch”. Estas blusas custavam entre cinco e vinte
reais e eram vendidas de porta em porta, em pequenas lojas e nas fei-
rinhas. Thamyris brinca que a sigla que dá nome à marca derivaria de
Manguinho-Mandela, duas comunidades que junto com uma terceira, a
do Jacaré, formam o complexo de favelas localizado na Zona Norte. As
blusas são mesmo produzidas naquela região, e a brincadeira de Thamyris
indica a produção de localidade que o gosto acarreta, atrelando-a à marca.
E mesmo que usem marcas globais, o corpo determinará a sua
modelagem, prática que novamente se afina com os resultados a que che-
guei com a pesquisa de mestrado. Em uma outra tarde em que saíamos
para o salão em Madureira, Thamyris vestia uma calça jeans bem justa,
certamente com elastano na composição do tecido, em índigo blue bem
leve e fino, produzindo efeito similar de fusão com o corpo como o mole-
tom stretch produz, real-
çando as formas corporais.
Pergunto-lhe onde com-
prou a peça de roupa, e ela
responde que comprou em
São Paulo, acrescentando
que é da Diesel, em tom
que me pergunta se eu não
percebia isso. A calça parece
ser uma “réplica” da marca
estrangeira, mas que resulta
de uma lógica interessante:

15 “De Sainha”, Gaiola das Popozudas.

225
a estética funk carioca

reproduz a marca apenas, mas não a modelagem. Esta é desenvolvida de


modo a atender o gosto local.
Essa particularidade do gosto feminino, não apenas de produzir sua
própria moda, mas de englobar através do corpo a marca e o gosto glo-
bais, foi-me posteriormente confirmada pelo próprio Mr. Catra. A pro-
pósito das roupas que Cíntia e Sílvia vendiam para a sua rede de relações
na favela, ele diz que aquelas direcionadas para as mulheres nada mais
são do que “cópias das nossas roupas com as marcas deles”. A modela-
gem é nossa, a marca é dos “gringos”. Não há aqui um protótipo único,
mas dois, que em relação originaram uma terceira coisa.
Os “gringos”, como também surgiu em Cíntia ao descrever a cor de
sua pele, não são apenas os estrangeiros não brasileiros, mas aqueles que
não possuem vínculo com a favela. Assim, as marcas copiadas podem
ser as italianas Dolce & Gabbana e Diesel, a alemã Puma, mas também
as paulistanas Carmin e Cavalera. Se com a roupa masculina, continua
Catra, “eles”, os estrangeiros, “partem na frente”, no que diz respeito à
roupa feminina, “o Brasil dita a moda”. Se na música funk o beat é sobe-
rano e submete a ele as inovações feitas, no que toca à indumentária das
moças, o que a conduz é o corpo. O gosto global precisa se submeter às
suas vontades. Esta mesma lógica produziu a “calça de moletom stretch”,
uma solução criada em terras brasileiras para o global jeans a partir das
exigências da corporalidade local.

a produção dos cabelos e a noção de pessoa


Thamyris nos conta sobre um ex-namorado que foi preso, e Célia diz
que “graças a Deus” ele é menor de idade, pois assim, logo que alcançar a
maioridade será solto. Ele não está exatamente na prisão, continua, mas
em um internato, o que não é tão ruim apesar da falta de liberdade. Ela
sabe o que fala, já que também foi presa e esteve em um desses interna-
tos, dizendo que agiu em “legítima defesa”. Célia, após ter saído de casa
aos treze anos, foi morar na rua, em Copacabana. E aos catorze anos,
com “o corpinho aflorando, os peitinhos crescendo”, um garoto, tam-
bém morador de rua, veio “mexer” com ela, mas ela conseguiu dele se
desvencilhar. Na noite seguinte, ele voltou e ela, para se defender, cortou
dois de seus dedos com um caco de vidro. A polícia chegou e pensou

226
cabelos femininos e a confusão de símbolos

que o ferimento tivesse sido causado por uma outra menina. Célia foi
até o policial e disse-lhe que era ela a autora dos cortes. E assim foi presa.
Célia, à época do trabalho de campo, estava com trinta e seis anos
e se dizia muito grata a Deus por ter o emprego em casa de Sílvia. Diz
que já fez “de tudo na vida”, mas que não há nada mais gratificante, com-
pensador, do que o trabalho. Fala que é um “dinheiro seu, limpo”, e que
isso lhe dá tranquilidade, pois “não deve nada a ninguém”. Eu desenvolvi
especial afeição por Célia, que era extremamente inteligente e sofisticada
em seus modos e ações, hábil com as palavras e no trato pessoal, e foi
especialmente sensível às minhas dificuldades de movimento naquele
campo tão denso, me acolhendo e defendendo sempre que pôde. Célia,
passado um tempo, começou a se transformar, deixou de ser doce, parou
de tratar de seus cabelos e foi aos poucos se ausentando, até desaparecer
da casa. Frequentemente perguntei por ela, até que me disseram que ela
havia se viciado em crack, droga tida como altamente letal e que volta e
meia ressurgia em narrativas que envolviam relações disruptivas. Como
apareceu em Tina, que um dia retornou para sua casa e a encontrou
vazia. Seu marido, também viciado nesta substância, havia desaparecido
com todos os seus pertences.
Chegamos a Madureira, após cinquenta minutos dirigindo.
Estaciono o carro e vamos em direção ao salão de cabeleireiro, mas antes
entramos em uma loja que vende cabelos. Nos dirigimos para o display
onde ficam os cabelos anelados e pretos. Na parede oposta estão os cabe-
los loiros, vermelhos e marrons, e também outros pretos. Parecem ser
de uma categoria mais lisa do que os que estão do outro lado. Célia é
atraída pelo cabelo loiro. Toca-o e diz que quando comprar os seus serão
daquele tipo, mais “macio”, mas os tingirá de preto. O aspecto loiro dos
cabelos despertou em Célia interesse por eles, que em seguida avaliou
a sua materialidade, e notou como eram agradáveis ao toque. Por fim,
considerou a possibilidade de incorporá-los ao seu gosto.
O que moveu Célia foi a oportunidade que vislumbrou de reali-
zar a mesma operação englobadora que viemos vendo reger a estética
funk, produto de estratégias miméticas de se relacionar com a alteridade
(Taussig, 1993), “domesticando”, tornando familiar e trazendo para o
interior do socius, o outro desconhecido ou ameaçador, modelo recor-
rente em sociedades amazônicas (Lagrou, 1998, 2007a, 2009b; Guss,

227
a estética funk carioca

1990; Albert, 2002; Buchillet, 2002; Howard, 2002; Van Velthem,


1992). Vimos ocorrer procedimentos equivalentes com os bonequinhos
de Sílvia, originalmente brancos e posteriormente pintados de preto, e
com a prima de cabelos e olhos negros que tingiu os primeiros de loiro
e os segundos por meio do uso de lentes de contato verdes. A prima deu
origem ao nome da cadela mais paparicada da casa, Verônica, a única
que tinha acesso ao interior do ambiente doméstico e do estúdio e que
possui como traços natos o pelo dourado e os olhos esverdeados.
Entramos em um pequeno e simples prédio. No primeiro andar há
um consultório dentário. Subimos as escadas estreitas e pouco ilumi-
nadas que contrastam com o interior muito amplo e claro do salão de
cabeleireiro, decorado em branco, azul celeste e azulão. Célia exclama:
“chegamos ao paraíso”. Penso que o seu bem-estar talvez fosse causado
pelo frescor que o ar-condicionado produzia no ambiente. Mas a sua
felicidade é porque terá seus cabelos tratados. Ela paga ao entrar qua-
renta e cinco reais, e Thamyris desembolsa um pouco mais do que o
dobro desse valor. Ela terá os seus apliques removidos e prefere fazer isso
na privacidade de uma “sala VIP”. O momento da retirada dos cabelos
é um tanto delicado, não é algo para ser feito na frente de todos e notei
que minha presença pode ter sido a princípio um tanto constrangedora.
Mas ao fim tivemos uma tarde em que compartilhamos conversas que
pareceu a todas nós muito interessar.
Aguardamos para que iniciem o relaxamento que será feito nos cabe-
los de Célia, que nos fala que os fios que dão mais trabalhos são os que
circundam o rosto, os “parentes”. Eu repito o termo, mostrando que não
entendi, e Thamyris ri, dizendo ser este o nome dado aos fios de cabelo
da parte frontal do couro cabeludo. E Célia traduz a metáfora: “são como
parentes, você não escolhe: bom ou ruim, você tem que aturar”. Célia per-
gunta a Thamyris se aqueles cabelos que tirará irão para a Tina ou pra ela,
e Thamyris diz que irão para Tina. Célia diz que está “tudo bem”. Quando
chegar a sua vez de receber os cabelos de Thamyris, o que ocorreria em
três meses, os seus cabelos já estarão tratados pelo relaxamento.
O processo de relaxamento é relativamente simples. A profissional
que cuidará inicialmente de Célia divide o seu cabelo e em seguida a
encaminha para a cuba onde são feitas as lavagens. Uma segunda pro-
fissional agora encarrega-se de distribuir com um pente fino o produto

228
cabelos femininos e a confusão de símbolos

relaxante sobre o cabelo, retirando-o logo em seguida com água abun-


dante. Faz isso em sucessivas vezes e aos poucos, aplicando o produto
em áreas pequenas de sua cabeça. O momento mais prazeroso, diz Célia,
é sentir a água fluindo sobre o seu cabelo, penetrando-o e escorrendo
em seu couro cabeludo.
Passa uma mulher com cabelos enroladinhos, cujo comprimento
chega ao meio das costas. Ela está “colocando cabelo”, explicam. No alto
de sua cabeça o seu próprio cabelo está preso e aguardando para ter
o restante das mechas implantadas. Comentamos sobre os cabelos da
profissional que atende Célia, e Thamyris diz que estes são relaxados
e foram alisados por prancha. Se assemelham aos cabelos que usava
Luciana, a prima de Sílvia, na noite em que a buscamos em casa com
Thamyris. Thamyris diz que já usou seus cabelos daquele modo, mas
hoje prefere levá-los enroladinhos.
Procuro entender melhor o tipo de cabelo que lhes agrada. Thamyris
diz que gostariam de ter um cabelo “liso”, e olha para o meu e fala, “não
tão liso assim”, mas que enrole. O meu cabelo me parecia especialmente
anelado naquele dia, pois estava recém cortado e o cabeleireiro havia
repicado-o mais do que o usual. Célia diz que se tivesse que pedir algo
pediria “um novo couro capilar”. Eu já havia escutado comentário simi-
lar de Thamyris que, na tarde em que assistíamos à novela com Tina
e Sílvia, disse que gostaria de ser uma “cientista pra inventar uma fór-
mula para mudar o couro cabeludo”. Inventaria uma cirurgia pra trocar
o couro por um que permitisse nascer um novo fio de cabelo. Sílvia se
engajou em seu voo imaginativo e diz que “não, cirurgia dói muito” e na
cabeça é “perigoso”. Ela, diz, inventaria um injeção. Seriam três aplica-
ções. “A primeira para preparar...” Thamyris a interrompe, insistindo na
cirurgia, pois se existe para colocar silicone nos seios, para diminuir a
gordura e a flacidez, porque não uma para “melhorar o cabelo?!”.
Subimos para o segundo andar, onde ficam as pequenas salas indi-
viduais. Na sala destinada a Thamyris há uma antiga e pequena televi-
são. Sentada em uma cadeira, a moça tem as suas mechas retiradas por
Renata, que corta com uma tesourinha o fino elástico que as prende aos
fios de cabelo originais. Thamyris diz que já imagina o “desespero” que
será para desembaraçar o seu cabelo. Joana, outra profissional, entra para
falar que será ela quem fará o relaxamento no cabelo de Thamyris, após

229
a estética funk carioca

a retirada das extensões. Joana


tem as unhas das mãos decora-
das por esmalte com um mini
cisne meticulosamente dese-
nhado em rosa, nadando sobre
um lago vermelho – a ponta de
sua “unha francesinha” – sob
a lua cheia e contra um fundo
escuro, como é a noite. Eu fico
fascinada pelo trabalho e seu
preciosismo. Quero fotografar, mas Célia me alerta, lembrando que na
última vez em que lá estivemos me disseram que eu não poderia fazê-lo.
Joana diz que não se preocupa com
isso, argumentando que as unhas
lhes pertencem e que eu posso sim
fotografá-las. Renata aproveita para
me mostrar a decoração na unha
do dedo grande de seu pé, uma
flor, motivo menos incomum mas
ainda assim feito de modo bastante
elaborado.
Joana me leva até a manicure no primeiro andar para que eu veja
melhor o trabalho artístico que ela faz. Célia, mais uma vez, me relembra
que eu não devo usar a máquina fotográfica, e eu lhe digo que não havia
nem cogitado tal coisa. A manicure mostra-me os desenhos que cria, ao
abrir uma cartela dupla, como a capa de um portfólio, forrada por tecido
acamurçado preto, semelhante aos mostruários de joias. Preenchendo
toda a superfície negra encontram-se unhas postiças decoradas e agru-
padas em ordem crescente. O efeito desse todo é fascinante. Não resisto
e pergunto se posso fotografar. A resposta, como previsto, é não.16

16 Negativas como estas foram uma constante ao longo de toda a pesquisa. As recebi quando ten-
tei entrevistar os produtores da ACR e da M&M e ao ser impedida de fotografar não apenas no
salão de cabeleireiros como na loja de cabelos e em feirinhas. Poderíamos cogitar que o receio
adviria da possibilidade de cópia, como no caso das decorações em unhas e das roupas, mas o
temor parecia ser também relativo ao mau uso que eu poderia fazer com a informação obtida.
No salão de cabeleireiros, por exemplo, foi deixado claro que temiam a ação de jornalistas

230
cabelos femininos e a confusão de símbolos

Já de volta à sala onde está Thamyris, Renata pergunta-me de onde


surgiu a ideia de meu estudo. Eu conto sobre a pesquisa em torno da
“calça da gang”, a subsequente investigação sobre a roupa no baile funk
que esta originou e por fim a pesquisa com Catra. Thamyris, referindo-
se a mim, diz que “parece que ela tá vendo um outro mundo”. Eu digo
que de certa maneira isso é verdade. Pois até então eu pouco sabia sobre
as extensões capilares, nem tampouco sabia reconhecê-las. Falo que o
cabelo de Renata, por exemplo, me equivocou, especialmente porque
a familiaridade que eu ainda possuía com as extensões era com aque-
las do tipo longo. Além disso, Renata possui sobre o alto de sua cabeça
um trançado diagonal, de umas cinco finas tranças pra cada lado, junto
ao couro cabeludo, do qual saem por fim as extensões, variação que eu
também não conhecia. Este desenho, ela me explica, é possível desfazer
e refazer de outro modo depois de os implantes terem sido colocados.
Diz que é prático, pois assim está “sempre arrumada”. Joana também usa o
mesmo tipo de trançado, e seu cabelo é ainda mais curto. Ela diz que pos-
sui aqueles cabelos, aquelas mechas postiças, há treze anos. Thamyris fica
surpresa, já que ela troca as suas a cada vez que refaz os amarrados, e “gasta
um barão”, mil reais, pois coloca cerca de quatrocentos gramas de cabelo.17
Renata fala que de fato “o modo de uma negra se arrumar é total-
mente diferente do de uma branca”. Elas, diz, são como que “montadas”,
e é nesse montar que começará a emergir mais claramente a noção de
pessoa que as diferencia das “brancas”, as que não precisam “sofrer para
ficar bonita”. A corporalidade é relevante como em contexto ameríndio
(Seeger, Da Matta & Viveiros de Castro, 1987 [1979]), mas, diferen-
temente do que ali ocorre, o que parece conceder a perspectiva do sujeito
não é tanto o que é ingerido e diluído internamente, produzindo os afetos
(Viveiros de Castro, 1996) mas a aparência e o que é adicionado a
esta, à superfície do corpo. Dessa perspectiva, o modo como a exteriori-
dade é relevante para a definição da noção de pessoa num contexto funk
é mais próxima do contexto caribenho (Miller, 1994b).18

mal intencionados que enfatizassem os possíveis efeitos colaterais que o mal uso dos produtos
químicos empregados poderiam gerar.
17 Nem sempre os cabelos de Thamyris eram integralmente trocados. Muitas vezes ela acrescen-
tava novas mechas às já existentes, repondo assim os fios que teriam caído com o uso.
18 Sonia Giacomini (2004) vincula estreitamente aparência e classe em sua análise de um con-
texto carioca. A propósito dos frequentadores do Clube Renascença, associação de classe

231
a estética funk carioca

No entanto, não são apenas as transformações na aparência que defi-


nem a pessoa, mas também uma capacidade que parece ser congênita ao
corpo, inata, que é categorizada por meio da aparência. A aparência e as
elaborações sobre esta, como ficará mais claro no decorrer desta narra-
tiva, confirmam as capacidades do corpo não branco. Dessa perspectiva,
as modificações na aparência de Cíntia não ocorrem em continuidade
com transformações em seus afetos, causados pela convivialidade e hábi-
tos alimentares estabelecidos em um modo de vida outro, como ocorre
com a jovem Yanesha que passa a viver na cidade e adquire modos e
costumes “brancos” (Santos-Granero, 2009). No funk não há tal cisão
clara entre mundos, e Cíntia, ao parecer branca, se utiliza da ambigui-
dade de sua aparência deliberadamente como meio de se empoderar do
poder do outro através da mimesis, se transpondo corporealmente para
sua imagem (Taussig, 1993, p. 40). Cíntia, ao “vestir uma roupa más-
cara”, não oculta ou altera a sua essência mas o faz de modo a “ativar os
poderes de um corpo outro” (Viveiros de Castro, 1996, p. 133).
A mimese produz esse pequeno truque de oscilar entre o muito igual e
o muito diferente. Um impossível mas necessário tema, de fato um tema
cotidiano, a mimese registra tanto igualdade como diferença, de ser como
e de ser Outro. Criar estabilidade dessa instabilidade não é uma tarefa
simples, ainda assim toda formação de identidade está comprometida
nessa habitualmente estimulante atividade na qual o assunto não é tanto
ficar o mesmo, mas manter a igualdade através da alteridade (Taussig,
1993, p. 129).

Renata diz que nós,19 as brancas, não temos “resistência” como elas,
e que eu não imagino o quanto elas sofrem para ficar bonitas. Nós não
temos resistência para colocar cabelo e unha como elas fazem, conti-
nua Renata, pois somos mais “meiguinhas”, delicadas. Thamyris, em
outro momento e a propósito de uma leve dificuldade de movimento

média que reunia negros “intelectualmente e economicamente capazes”, os investimentos na


aparência buscavam “bloquear um processo de contaminação da posição social pelas marcas
étnicas” (Giacomini, 2004, p. 37). No contexto funk, diferentemente, a importância da apa-
rência não pode ser recortada pela classe, como vemos a partir da etnografia que apresento, e
aponta para uma tendência que é da cultura brasileira como um todo.
19 Neste parágrafo, os termos que fazem referência à primeira pessoa do plural “nós” e “nos-
so(s)”, surgem sem aspas, significa que foram empregados por minhas interlocutoras como
“vocês” e “seu(s)”.

232
cabelos femininos e a confusão de símbolos

que tivera com seus lábios, disse-me que ela é atípica, pois “apesar de
negra é cheia de frescuras”. Digo que não é por ser negra que não pode
ser “fresca”. Mas ela insiste, argumentando que seu pai diz que o negro
tem anticorpos mais resistentes, e ela tem muita alergia à poeira e à
mordida de mosquito, e “agora isso”, “não pode tomar golpe de ar frio”,
evento que supostamente teria lhe causado o incômodo em sua face. A
ideia do branco como mais frágil do que os negros e a concepção do
negro como o potente e o englobador é também tematizada por meio
dos cachorros, todos da raça pit bull. Além de Verônica, a casa conta
ainda com Titi, o cão negro que fecundou Roberta e Paula, duas cade-
las nomeadas por Sílvia em homenagem a duas ex-mulheres de Catra
e ainda um outro totalmente branco e que frequentemente apresenta
problemas em seus pelo e pele. Ele é assim mais suscetível às doenças,
como seriam também as pessoas muito brancas.

De volta ao salão, Célia fala que “até o modo de colocar implante


de vocês é mais simples”. Os fios das extensões, contam-me, são gru-
dados na extremidade do cabelo da pessoa com uma pistola de “cola
quente”. Depois basta lavar a cabeça que o excesso de cola sai e passa-se
o pente normalmente, “como se fosse o seu cabelo”. Para Renata, o estilo
da “branca” se vestir é “paty”. O estilo “paty” é também para elas o modo
como as mulheres mais velhas ou casadas se vestem, as “tiazinhas”, como
colocou Sílvia, em outra ocasião, ao examinar uma das peças de roupa
que uma amiga de Cíntia trouxera para vender. Disse que a referida
blusa, pouco decotada e pouco adornada, era classificável tanto como
“tiazinha” quanto como “paty”, dependendo de quem a usasse. Dessa
perspectiva, o modo como as “brancas” se vestem equivaleria sempre à
indumentária de uma pessoa mais velha.
Pergunto à Renata se sou “patricinha”. Ela fica um tanto sem graça
com a minha colocação, mas acaba por responder positivamente.
Contudo, diz que ainda que sejam modos muito distintos de se vestir,
eles de alguma maneira se comunicam: “já há uma aceitação maior”, e
é mencionada a novela Duas Caras, que tem como um de seus núcleos
principais uma favela comandada por uma milícia, como é caracterís-
tico das favelas da Zona Oeste, onde se localiza a fictícia “Favelinha”
e o salão de cabeleireiro em que estamos. Pergunto então o que há de

233
a estética funk carioca

diferente, e dizem que se eu vestir a mesma roupa que elas não ficará
do mesmo modo. Eu pergunto se então é o corpo que faz a diferença,
e Renata fala que também não é o corpo, pois cada uma delas tem um
corpo diferente: Célia tem pernas e quadris finos; Thamyris tem cintura
fina, pernas grossas e quadris largos; Renata é alta e toda cheia.

Célia diz que a diferença está no “jeito”, e repete que o que eu visto
não ficaria igual nela e o que ela veste não ficaria igual em mim, acres-
centando que nem usaria as roupas que uso. No máximo a bermuda que
eu vestia – em jeans escuro, sem qualquer lavagem, detalhe ou contraste
de cor. Porém, não usaria com “aquele salto” – eu usava uma sandá-
lia de plataforma não muito alta, forrada de cortiça e tiras estreitas de
tecido acetinado preto que cruzavam sobre a parte da frente do pé –
nem usaria com aquela blusa – uma bata em tecido sedoso azul-royal.
Célia comenta que agora eu ao menos tenho usado bermuda, mas antes
eu “só aparecia de calça”. Falo que não posso ficar usando “sainha” no
estúdio, o que parece uma bobagem a ela: “e o quê que tem?!”. Digo que,
sim, uso minissaia e que Thamyris já me viu de shortinho, mas ela diz
que não, e eu a relembro que me viu usando tal peça de roupa em duas
ocasiões diferentes. E Célia fala que o “shortinho que fica bem em você
é daquele... baloné”. E eu falo que era esse modelo mesmo que eu vestia.

234
cabelos femininos e a confusão de símbolos

Ela fala: “viu?”, mas, continua, “você não usaria esses shortinhos jeans
pequenininhos”, como elas usam, e eu digo que ela tem razão.20
Renata retoma a palavra e diz que o que mais se nota em uma
mulher é o cabelo, se o cabelo está arrumado e tratado, mais até do que
a roupa, e mostra a fotografia de sua filha, com muito orgulho, prosa.
Célia e Thamyris fazem um “aaaaaaaaaaai” uníssono, mostrando como
acham a menina bela. E Thamyris fala que ela teve muita sorte com os
cabelos, que são cacheados e sedosos. Era isso que a imagem tinha de
especial, cabelos anelados, sedosos e pretos. Renata conta que a filha,
quando menor, usava uma pequena touca e, quando aproximavam-se
para falar com a menina, ela removia o adereço de sua cabeça e impres-
sionava a pessoa que, encantada e deslumbrada, festejava ainda mais
a bebê. A graça que a filha recebeu, acredita Renata, não foi aleatória:
“também, eu pedi muito quando ela tava na minha barriga”.
Joana, com as mãos no cabelo de Thamyris, conta que quando ela
era jovem sua mãe lhe aconselhava a não se casar com um homem negro
para não ter filhos com o cabelo “duro”. Ela respondia à mãe que a vida
era dela e aos doze anos saiu de casa para trabalhar na casa de uma
“família muito rica”, em Ipanema, casa do “Doutor João Fortes”. Até hoje
tem a fotografia que a mostra vestindo o uniforme que usava pra traba-
lhar, através do qual apareciam somente “seus olhinhos”, de tão grande
que era a roupa e de tão pequena que era Joana. Ela conta que começou
de “baixo” e foi galgando postos até chegar a cozinheira. Primeiro traba-
lhou como auxiliar de limpeza, depois como babá, em seguida passou a
auxiliar de cozinha e por fim a cozinheira. Digo que então ela deve cozi-
nhar bem, e ela afirma que adora cozinhar. Se casou e teve três meninas.
Todo dia, antes de mandá-las para a escola, passava o “pente quente”
em seus cabelos, e quando as meninas chegavam em casa, ao fim do
dia, seus cabelos estavam todos “cheios” de novo. Thamyris a interrompe

20 Nunca me privei de expor em campo o meu gosto pessoal em relação à moda de vestuário,
pois sabia que, assim como eu me interessava pelo modo como os meus interlocutores se
apresentavam, eles atentavam para a maneira como eu fazia o mesmo. Me utilizei, isto sim, do
modo como eu me vestia e adornava de duas maneiras: para provocar eventos e comentários
e para assegurar a confiança entre as mulheres da casa, o que foi adquirido com esforço con-
tínuo. Este era um equilíbrio delicado e preservá-lo garantiu a possibilidade de transitar com
liberdade em ambos os lados da casa, além de haver me permitido a própria possibilidade de
concretizar minha pesquisa.

235
a estética funk carioca

dizendo que “sabe bem o que é isso”. E Joana segue contando que foi
assim “obrigada” a aprender a cuidar do cabelo de suas filhas. Tomou
gosto pela atividade e acabou tornando-se cabeleireira. O modo como
as mulheres se capacitam para o cuidado dos cabelos parece diferente
daquele que forma os músicos no estúdio. Estes enfatizam como herda-
ram o ofício de algum parente próximo, imitando-os. As cabeleireiras,
por sua vez, reforçam que foi o fazer e o re-fazer que lhes ensinaram a
sua prática, um aprendizado que se desenvolve nos moldes como se dão
as aquisições das “habilidades” [skills] em Ingold (2000).
Renata diz que “esse cabelo implantado” é uma “cachaça”, um
“vício”. Que quando você não o tem, não pode pôr, fica “triste” e “não sai
de casa”. Célia intervém e diz que com ela não é assim. Pois houve uma
época em que esteve com um cabelo “enorme”, “até a cintura”, que teria
ganho de presente. Mas logo os vendeu porque “precisava de dinheiro”.
A prática de “dar” e “receber” cabelos é usual, como vimos na fila
de espera para os cabelos de Thamyris formada por Tina e Célia. Tina
começou a colocar cabelo ao trabalhar com Sílvia, quando esta ainda
morava no Catete, próxima à “favelinha” onde Tina mora até hoje.
Mesmo não trabalhando mais com Sílvia, Tina continua amiga da famí-
lia. Mas lamentava o fato de estar desempregada. Havia a promessa de
uma faxina, que lhe renderia cento e cinquenta reais. Já sabia o que faria
com o dinheiro. Cem reais usaria para colocar os cabelos que herdaria
de Thamyris, e os cinquenta reais restantes empregaria para comprar
comida para o filho e outras coisas das quais ele necessitava na prisão.
Célia diz que fica “triste” se não puder “tratar” os seus cabelos, e por
isso dá “graças a Deus” por ter “esse emprego”: “A tristeza da minha vida
é quando eu tô com esses cabelos duros. Pode faltar tudo, comida pra
comer, roupa pra vestir...”. Sem cuidar de seu cabelos ela não pode ficar:
“fico com vergonha, não saio”. A cabeleireira penteia os cabelos de Célia,
passando-lhes “creme de pentear”, próprio para serem aplicados após
lavados e enxaguados. Ela diz que o cabelo de Célia está “quebrando
muito”, e recomenda que ela use o conteúdo da ampola “AD forte”. Célia
fala, animada, que não importa-se que seu cabelo esteja “quebrando”,
pois comprará a ampola e seu cabelo ficará “dez”. Ela levanta-se e anda
em direção a um grande espelho. Vai rebolando, com as nádegas empi-
nadas e gingando o corpo, e diz que fará “sucesso” com “os novinho” de
onde mora. Em breve, diz, sua “bunda”, que chamaram de “murcha”, e

236
cabelos femininos e a confusão de símbolos

sua “canela”, que disseram ser “fina”, estarão “cheias”, graças, também,
ao emprego que Deus lhe providenciou. Os cabelos de Thamyris igual-
mente recebem o “creme de pentear” do salão, produto que ela decide
comprar para si e usar em casa.
O salão está prestes a fechar, e lá fora já é noite. Mas Célia e Thamyris
estão eufóricas. Querem passear pelo bairro. Atravessamos a rua e para-
mos em uma loja que vende presilhas para o cabelo. Enquanto olho o
que poderia levar, elas já escolheram, pagaram e estão a caminho da
rua. Vamos até o camelódromo de Madureira. Célia quer cumprimentar
seus colegas de tempos atrás, parece haver trabalhado naquela região.
Está sentindo-se especialmente bem, e quer mostrar isso aos outros.
Seus cabelos foram cortados, estão bem penteados e brilhosos, efeito
do “reparador de pontas” que Renata passou após o corte. Thamyris
também está contente. Fala que Joana lhe disse que seu cabelo cresce
bem, que sua a raiz é boa de ser “domada” e que em três meses estarão
no comprimento dos que estão os cabelos de Célia hoje. Pretende ficar
alguns meses sem os implantes, para deixar o couro cabeludo “respirar”.
Seguimos pela Estrada do Portela, em direção ao Madureira Shopping.
São quase sete horas da noite. Algumas lojas fecham e as barraquinhas
dos ambulantes vão tomando as calçadas. Entramos em uma grande loja
de xampus, cremes e esmaltes, chamada “Palácio da Mulher”. Buscam a
ampola recomendada à Célia e lhe informam que a mesma só é vendida
em farmácia. Voltamos para a rua e passamos por alguns camelôs, onde
elas compram brincos. E continuamos seguindo, até terminarmos nossa
incursão no shopping local, comendo pizza e bebendo guaraná.

a lógica da prótese
Os cabelos permitem acessar uma noção de pessoa que ao mesmo
tempo em que é específica, ao mostrar sua diferença em relação ao
“jeito” de ser do “branco”, desestabiliza uma concepção de identidade
negra fixa. Em pesquisa realizada em “salões étnicos” da cidade de
Belo Horizonte, rótulo que parecia ser evitado por Thamyris e Célia,21

21 O salão que Célia e Thamyris frequentavam chamava-se Bell Blue. Não distante dele ficava uma
filial da rede Raízes – Salão Afro, como anunciava o outdoor pelo qual invariavelmente pas-
sávamos no trajeto para Madureira. A toda vez que tentei estimular uma conversa sobre este
último salão, o que se manifestou foi desinteresse, tanto em relação ao referido estabelecimento

237
a estética funk carioca

Gomes (2006) defende que o aspecto político que reside nos processos
de embelezamento se faz sempre presente, na medida em que, “por mais
intervenções estéticas que realizem”, esses “sujeitos sabem que, mesmo
apresentando-se alisado, pranchado ou alongado, o seu cabelo sempre
será crespo e sempre remeterá à raça negra” (Gomes, 2006, p. 144). Com
Cíntia, Thamyris, Célia, Sílvia e Tina o aspecto político é atuante não
porque exista uma essência que a aparência esteja a camuflar, mas é o
aspecto político, móvel para as ações embelezadoras sobre os cabelos.
Não existe uma instância outra a “remeter” que não a comunicada pela
própria aparência física, antes ou depois das ações embelezadoras. Não
emerge dos seus discursos, orais e corporais, o desejo de se fazer “passar
por” branca. Ao contrário, desde o princípio o que se afirma é a dife-
rença, e as ações embelezadoras não surgem para camuflar ou minimi-
zar essa diferença, mas para reinscrevê-la de um modo que atenda ao
seu gosto. Pois se os cabelos eleitos para alongar as mechas originais
não são nunca lisos, mas sempre anelados, é por desprezarem também
uma época em que as possibilidades de embelezamento eram restritas.
Longos ou curtos, lisos ou crespos, estendidos ou não, os cabelos preci-
sam “sempre” ser tratados.
Edmund Leach destaca o potencial mágico dos cabelos, que não
apenas simbolizam poderes mas são efetivamente “potentes em situa-
ções mágicas” (Leach, 1983, p. 159). Os cabelos, nota o antropólogo
inglês, possuem uma quase universal presença em rituais de passagem,
mas, diferentemente do que ocorre no funk, eles seriam “mais proemi-
nentes em cerimônias de luto” (Leach, 1983, p. 163). Leach demonstra,
através de uma série de exemplos e comparações entre teses psicanalíti-
cas e dados etnográficos, que se o cabelo envolve sempre algum tipo de
mudança de status sexual é menos devido à existência de uma universal
relação, inconsciente, entre cabelo e impulsos sexuais, mas
é precisamente porque o comportamento do cabelo abrange um conjunto
ritualmente compreendido de simbolizações sexuais conscientes que ele
desempenha um papel tão importante em rituais do tipo rites de passage
que envolvem a transferência formal de um indivíduo de um status sócio
sexual para outro (Leach, 1983, p. 159).

comercial quanto em relação à conversa em si. As respostas às minhas provocações foram


sempre evasivas.

238
cabelos femininos e a confusão de símbolos

Poderíamos arriscar dizer, em analogia com o seu raciocínio, que


é justamente por saber conscientemente que o cabelo é estereotipica-
mente associado a uma identidade negra fixa que as moças o elegem
para desestabilizar tal identidade.22
Os cabelos resultam ainda de um consumo conspícuo, no sentido de
Thorstein Veblen (1983). Mas, ao contrário da conspicuidade dos objetos
indicar o ócio, ela enfatiza o valor atribuído ao trabalho. Isto fica muito
evidente em Célia, que, através de sua aparência, comunicava que sua vida
seguia por novos rumos. Mas não se trata apenas de conceder uma prova
visual de felicidade e da igualdade alcançada, como em Jean Baudrillard
(apud Crary, 1990, p. 11). O consumo ostentatório, mais evidente por
meio do gasto que envolve a compra e a colocação das longuíssimas
extensões de Sílvia e Thamyris, aproxima-as menos de classes hierarqui-
camente superiores, como era a classe ociosa à época em que escrevia
Veblen, em fins do século XIX, do que do movimento de diferenciação
e criação de modas como empreendeu a emergente burguesia ao buscar
inserção e visibilidade na Sociedade de Corte francesa (Elias, 2001).
Não quer-se aqui tanto passar por “branca”, mas tampouco perma-
necer com um cabelo que, entendem, as localiza em um lugar da falta e
da ausência. Daí os cabelos serem muitas vezes conspicuamente longos,
pois devem desfazer uma imagem da escassez, distanciando-as de um
“gosto da necessidade” (Bourdieu, 1984). O consumo pode não ape-
nas visibilizar inserção como promovê-la, argumenta Fry (2002). Ao
pesquisar cabeleireiros “étnicos” e o mercado dos produtos de beleza
para negros, o autor chama atenção para o potencial político que a
“preocupação individual com a aparência” pode possuir (Fry, 2002, p.
323). Ao identificar uma forte correspondência entre aparência e inner
self, Fry defende que as mudanças de representação e autoapresentação

22 Kobena Mercer (1994) afirma que o cabelo do homem negro deve ser considerado como “uma
forma de arte popular que articula uma variedade de ‘soluções’ estéticas para uma gama de
problemas criados por ideologias da raça e do racismo” (Mercer, 1994, p. 112) e é, depois da
cor da pele, “o mais visível estigma da negritude ” (Mercer, 1994, p. 113). Carol Tulloch (2004)
igualmente reconhece o papel que os cabelos tiveram como símbolo de opressão e resistência,
mas enfatiza a grande variedade de penteados oferecidos atualmente aos homens e mulhe-
res negros e lamenta que as extensões capilares sejam muitas vezes vistas como “fraudes” de
identidade negra (Tulloch, 2004, p. 92-93). Lívio Sansone (2000), por sua vez, aponta o
“cabelo negro” como um dos “novos elementos e objetos por meio dos quais a cultura moderna
negra se distingue dos meios culturais dos não negros e da cultura afro baiana tradicional”
(Sansone, 2000, p. 97).

239
a estética funk carioca

podem contribuir para a erradicação da discriminação e da desigual-


dade e gerar uma “sociabilidade intensa” que leve à “formação de uma
identidade ‘negra’ coletiva que pode ir além do interesse comum de
produzir beleza” (Fry, 2002, p. 324).
O modo como os cabelos podem ser facilitadores da circulação da
pessoa não foi, no entanto, explicitado, como fez Dr. Rocha ao afirmar que
a música funk lhes permite penetrar espaços que seriam a eles tradicio-
nalmente vedados. No caso dos cabelos, afirmações equivalentes tiveram
que ser lidas nas entrelinhas. Como quando uma “amiga do Negão”, de
cabelos curtos e lisos, relaxados e depois pranchados, como foram os de
Luciana e o da cabeleireira que atendeu Célia, causou estranhamento e fez
questionar a apreciação que teria tido Catra por uma moça com “aquele
cabelinho”, que findou por ser avaliada como tendo “cara de pobre”. Este
tipo de avaliação talvez explicasse ainda o tom sutilmente pejorativo que
notei quando se afirmou que Luciana estava “representando”.
Mas o que une estas moças todas, ao meu ver, não é tanto o cabelo
mas a lógica da prótese e da transformabilidade que estes cabelos evi-
denciam. Pois a mesma plasticidade que vimos no colocar e retirar
cabelos, vimos também nas unhas postiças de Joana, cujo uso visa não
necessariamente encobrir unhas feias ou fracas. As unhas de Sílvia, por
exemplo, sempre chamaram a minha atenção quando, em fase de troca,
eu podia ver que as originais eram longas e fortes. Não se trata, tam-
pouco, de um consumo puramente ostentatório, pois a mesma Joana das
unhas postiças possui as suas curtas mechas há treze anos.
Falamos da produção de uma estética corporal segundo a qual a
beleza não é tanto dada como feita. A beleza no funk não é produzida para
se transformar no outro, como nota Sonia Maluf para o transgênero, mas
está igualmente ligada ao “caráter artificial e fabricado” (Maluf, 2002, p.
148) do corpo na definição, em meu contexto de estudo, do feminino. O
manipular do corpo obedece à ideia de que este é resistente às interven-
ções que nele são feitas. A hipotética cirurgia que Thamyris sugeriu fez
coro assim com outras não fictícias que davam conta de dentes extraídos
ou implantados, seios e nádegas colocados, lipoaspirações realizadas.23

23 Alexander Edmonds (2002), a partir de pesquisa sobre intervenções cirúrgicas embelezadoras


realizadas tanto em clínicas particulares como em hospitais públicos, atribui o crescimento do

240
cabelos femininos e a confusão de símbolos

As efígies, canoas, lanças, ou o que for, são ao mesmo tempo da pessoa e


mais do que a pessoa. Não é apenas que elas são extensões integrais às rela-
ções que uma pessoa estabelece, e “instrumentos” nesse sentido, mas que
o corpo físico é apreendido como composto desses instrumentos como ele
é composto de relações (Strathern, 1991 [2004], p. 76).

As próteses aqui estendem a pessoa e se são “extensões do corpo”


(Santos-Granero, 2009, p. 486) não são por isso apreendidas como
“partes extra-somáticas” desse corpo (Erikson apud Santos-Granero,
2009, p. 486). Se aumentam a mobilidade do self, são também constitu-
tivas deste. Pois se os cabelos implantados são preferencialmente anela-
dos, escolher a sua coloração passa também por uma adequação à cor da
pele, como vi em Sílvia que, ao manusear as mechas que seriam poste-
riormente colocadas, dizia que as tingiria primeiro, acrescentando que
“o meu cabelo não é dessa cor”, da cor que as mechas compradas apre-
sentavam originalmente. E o cabelo, como disse Catra, “depois que você
colocou é seu, fiha”. O corpo é artefatual, mas as próteses fazem ver não
o seu aspecto não humano, mas a sua constitutiva relação com o corpo.

Sento-me à mesa de jantar, onde Taninha faz os cabelos de Thamara,


filha de Catra, mais nova do que Thamyris e filha de Neuma e outro
homem. Taninha mistura três diferentes tonalidades de cabelos na
cabeça de Thamara. E diz que foi a moça que “inventou isso”. De início
ela usaria somente os cabelos herdados de Sílvia, que são de tom aco-
breados e “combinam” com a pele de Thamara. Mas Thamara comprou
ainda mechas pretas e outras marrons. O efeito estava ficando bastante
interessante e pensei que aquele era um modo diferente de se tingir os
cabelos. Era como um jogo, onde o encaixe das diferentes colorações de
cabelo permitia que se tivesse uma visualização antecipada do resultado
a que se planejara chegar.
Taninha diz que as extensões, o mega hair, “fez com que os negros
pegassem os papéis principais”. Se refere às produções da TV Globo, e
em especial à Viver a Vida, novela que ia ao ar no chamado “horário
nobre” e que possui como personagem principal a atriz Thaís Araujo.
Era a primeira vez que um ator negro ocupava tal posição. Taninha diz

número destas intervenções bem como a democratização a seu acesso à redução e facilidade
de pagamento do custo destas cirurgias.

241
a estética funk carioca

que ao colocarem os cabelos “já não são mais negros”. Eu continuo a


escutá-la: “São morenos, mulatos... Mas não negros”.
Taninha segue falando sobre as angolanas que atende e me per-
gunta se Angola fica perto. Eu lhe repondo negativamente, dizendo
que existe, entretanto, uma rota de “sacoleiras” que parte de Angola
para comprar roupas no Brasil que serão posteriormente revendidas
em seus países de origem. Ela explica que, diferentemente das brasilei-
ras, as angolanas querem cabelos o mais liso possível. Alisam o cabelo
e ainda passam prancha, conta, acrescentando que elas não molham o
cabelo sob qualquer hipótese, como ela faz ao trabalhar as mechas na
cabeça de Thamara. Separa com uma pinça de alumínio o pequeno tufo
de cabelo desde a raiz do couro cabeludo e o umedece com um borri-
fador de água. Taninha diz que “aqui” todo mundo quer poder molhar
o cabelo e querem cabelos anelados. Acredita que as angolanas, por
terem “o cabelo tão duro”, querem-nos lisos a todo custo. Com a novela,
prevê, ao verem os cabelos da personagem principal – longos, fartos e
anelados – essa tendência deve mudar.
As mulheres no funk não apenas fazem a própria moda como a dis-
seminam pelo mundo, e distribuem assim a sua agência. Taninha rea-
firmou, nesta breve conversa que tivemos em meu retorno ao campo, o
poder que possuem os objetos de transportar as pessoas, de deslocá-las,
de levá-las para outros domínios.24 É isto que seguiremos vendo no pró-
ximo capítulo, mas de uma perspectiva outra. Uma que mostra como
os objetos não possuem apenas ações previsíveis, mas suscitam eventos
que não foram programados.

24 Em minha pesquisa de pós-doutorado sigo o caminho apontado por Taninha e acompanho a


circulação de estéticas e gosto entre mulheres brasileiras e angolanas tendo como fio condutor
as extensões de cabelos consumidas por umas e por outras.

242
Capítulo 6
Adereços masculinos e relações de gênero

Mulher pode tudo.


Mr. Catra

No capítulo anterior procurei mostrar como os símbolos e representa-


ções atrelados aos objetos podem ser manipulados de modo a relacio-
nar diferentes contextos sociais e como é possível, através desta mesma
manipulação, equivocar o observador. Neste capítulo trarei para a nossa
discussão uma dimensão outra da agência dos objetos: o modo como
eles podem desencadear eventos independentemente das ações e desejos
humanos. Em outros termos, procurei trazer à tona o modo pelo qual as
ações dos objetos podem produzir efeitos que estão fora do controle das
pessoas que o cercam. Ao mesmo tempo, discorrerei sobre os objetos
que circunscrevem o universo masculino funk e a maneira pela qual a
cultura material se configura em importante marcador de gênero. A par-
tir dos eventos desencadeados por um artefato específico, as balas das
armas de fogo disparadas em uma ocasião particular, traçarei o caminho
para a reflexão em torno de objetos materiais utilizados por Mr. Catra
e seus “parceiros”. E, como desdobramento desse foco empírico sobre
os objetos que proponho chamar de masculinos, seremos forçosamente
levados a tangenciar as relações de gênero. Continuo, assim, pela ver-
tente aberta em minha dissertação de mestrado – a cultura material que

243
a estética funk carioca

abrange os bailes funk – para promover uma discussão resultante do


material de minha pesquisa de doutorado.

a festa e a desambiguizadora estética corporal


Era aniversário do “de frente” do Morro do Borel. Como diziam os jovens,
era “dia de Borel show”, em comemoração ao aniversário do “responsá-
vel” pela comunidade, que substituía seu tio, o efetivo chefe do tráfico
da favela da Tijuca, preso há mais de vinte anos.1 O som na quadra de
esportes estava altíssimo, tão alto que ao vibrar no corpo produzia uma
incômoda sensação de coceira no canal auditivo, algo que eu nunca sen-
tira em todos esses anos de bailes. Consequentemente, a todo momento
precisávamos tapar os ouvidos para aliviar o desconforto que sentíamos.
Quem comandava a festa naquela noite era Sandrinho, o DJ número 1
da companhia de Mr. Catra, “cria” e morador do Borel. Com o passar da
noite, o espaço foi sendo ocupado pelos dançarinos, e os efeitos do som
diluídos. Moças e rapazes estavam belamente vestidos, com produções
esmeradas. Os meninos, portando suas variações da roupa de surfista,
ofereciam a sua versão do “playboy”, o filho da classe média carioca, e
serpenteavam em seus trens humanos, cortando a massa de dançarinos
enquanto empunhavam garrafinhas de Smirnoff Ice.2 As moças tam-
bém desfilavam em trens, mas em menor quantidade e de modo menos
performático e homogêneo. Dentro do baile, os rapazes se destacavam.
Eu estava acompanhada da filha mais velha de Catra, além de sua
irmã, seu primo e de alguns de seus amigos, bem como de sua mãe,
Neuma. Com a quadra tomada pelos jovens, Neuma preferiu sair.
Deixamos o grupo de adolescentes e fomos para a parte exterior de
uma pequena birosca que fica à beira da rua e de frente para o ginásio
que abriga o baile. Juntaram-se a nós algumas conhecidas de Neuma e
nossa conversa toma os caminhos da beleza e da aparência física. Maísa

1 O “responsável” por uma área ou favela no Rio de Janeiro é o seu “dono” ou aquele que o
“representa”, protegendo a localidade e encarregado-se de seus negócios. O “dono de morro”, o
chefe do tráfico de drogas de uma favela, pode ser “dono” de mais de uma comunidade, e cada
uma delas terá o seu “responsável”, figura que pode ser ainda instituída quando o “dono do
morro” é preso. Em situações nas quais o “responsável” é um substituto do “dono” ele é também
chamado de o “de frente” da área.
2 Bebida pronta à base de vodka e aromas de limão.

244
adereços masculinos e relações de gênero

nota que Neuma “passou henê”, e Neuma fala: “voltei para o henê”.
A amiga lhe diz que ela ficou bonita “com o cabelo assim” e Neuma
acrescenta que “não aguentava mais ter que”, naquele frio, “entrar no
chuveiro” com frequência para manter os cachos alinhados. De fato,
até então sempre que encontrara Neuma ela trazia seus cabelos curtos
cacheados e em tom acobreado. Nesta noite os cabelos de Neuma estão
similares aos de Luciana e ao da “amiga do Negão”, como descrito no
capítulo anterior: pretos e em corte Chanel, acima dos ombros, lisos e
escovados com as pontas viradas para dentro.
Conversava-se, bebia-se, dançava-se e flertava-se. Escutamos a
nova música do MC Didô vir do baile, e Neuma se empolga.
Bota uma rôpa
Bota uma rôpa
Fica cá bunda toda empinada
Os peito pontudo

Nóis pensa que ela é toda gostosa


Mas quando ela tira a roupa
Puta que pariu!
Cheia de furúnculo [...]3

Ela faz uma pequena performance, brincando com a música. Na


passagem em que é mencionada a “bunda empinada”, ela requebra
mimosamente os quadris, rindo. Quando os “peitos” são referidos, ela
novamente se vira em minha direção e balança o tronco, empinado o
tórax. E no momento em que o cantor grita “puta que pariu”, ela sim-
plesmente cai na gargalhada.
Em seguida é o próprio MC Didô quem passa, seguindo em direção
à festa, onde logo mais se apresentaria. Neuma o chama e me apresenta
a ele, dizendo conhecê-lo desde garoto, do morro. O rapaz é um mulato
claro, de pele morena e lisa, do tipo que fica acobreada com o sol. Seu
cabelo está cortado “baixinho” e descolorido em tom de louro. Veste
calça e jaqueta, um agasalho esportivo, em tecido impermeável fosco,
com diversos encaixes, nos tons vermelho, marinho e branco, e traz nas
costas uma mochila preta. Ele é bastante simpático e Neuma fica ani-
mada ao vê-lo, repetindo parte da performance que fizera anteriormente

3 “Bota uma rôpa”, de MC Didô.

245
a estética funk carioca

ao som de sua música. Ele a observa e fala “sossega, mulher”. Neuma é


uma mulher morena e pequena, de quadris largos e seios fartos. Veste
uma calça jeans da ACR bem justa, em tom escuro, com os bolsos trasei-
ros rebordados em linha bege acetinada, formando uma grande flor em
cada lado de sua nádega, e uma blusa solta, em malha “Bali”, com decote
canoa, mangas raglan, em tom de cinza também brilhoso. A blusa
esconde as “gordurinhas”, como diz, de seu abdômen e é estampada pelo
mesmo tom prateado que vemos em suas sandálias de salto baixo e fino
e nas grandes argolas que traz nas orelhas.
Da birosca, plantada sobre uma plataforma acima do nível da rua,
era possível observar o movimento dos jovens que subiam e desciam
a ladeira que dava acesso ao local da festa. Este ir e vir criava uma boa
oportunidade para as moças exibirem seus corpos expostos e realça-
dos por roupas aderentes e reluzentes, graças às aplicações de cristais e
metais. Subir a ladeira, inclusive, tornava ainda mais salientes as formas
arredondadas de seus quadris. Aqui, ao contrário do interior da festa,
eram elas que sobressaíam sobre a homogeneidade estética oferecida
pelo corpo e indumentária dos rapazes.
Thamara e sua amiga se aproximam de nós. Esta última veste uma
“calça de moletom stretch”, da mesma marca PXC que vimos em Cíntia
e Luciana, simulando um jeans em tom azul Royal e o cós rebordado
por cristais, com uma blusa em malha fria ajustada ao corpo com alças
formadas por correntes de metal prateado. A estampa da blusa é curiosa,
com motivo e cores que remetem às estampas de camuflagem, como
nas roupas militares e presentes na moda de vestuário. Mas, em vez de
ser formada por manchas disformes como ocorre tradicionalmente, o
motivo é composto por pois, discos do tamanho de uma moeda de um
real, como os confetes de carnaval, mas que por suas tonalidades – em
verde, cáqui e marrom – e disposição se assemelham às estampas camu-
fladas. Em suma, tratava-se de uma versão da estampa militar subvertida
pelos confetes de carnaval. Seu cabelo, em um tom de loiro levemente
avermelhado e penteado com bastante creme, passava de seus ombros e
formava muitos e pequenos cachos.
A parte posterior da calça da moça chamou minha atenção. Dos
bolsos traseiros – fechados por aba arrematada por um “diamante”,
uma pedra retangular, como um cristal prateado e leitoso, com as

246
adereços masculinos e relações de gênero

suas extremidades lapidadas como as pedras preciosas – pendia uma


pequena corrente prateada arrematada por pequenas letras PXC, unidas
e formando uma única peça também em metal prateado e com a letra X
cravejada de cristais. Eu pego na tal corrente pra ver melhor o que era o
objeto em sua extremidade e a moça diz que era para “entrar no clima”.
Ela dá uma rebolada, como só elas sabem fazer, remexendo o quadril
circularmente ao mesmo tempo em que jogando-o pra trás. Mostra-me
assim como a corrente fina com o objeto em sua extremidade “entra no
clima” da dança, se movimentando junto com ela, como um pêndulo,
não apenas indo e vindo, mas também rebolando. Thamara, muito mais
corpulenta do que a amiga, veste roupa de estilo similar, mas sem tantos
detalhes. A sua bermuda – bastante justa e feita em jeans propriamente
dito mesclado à lycra – também é rebordada por cristais, mas, talvez por
serem de outro tipo, não são tão reluzentes. E a blusa que traja, preta em
malha fria, é pouco decotada e não possui adornos.
Essa recorrência da roupa justa entre as classes populares cariocas
coloca questões interessantes quando a contrastamos com os universos
das classes médias. Joana de Vilhena Novaes defende que “as mulheres de
classes baixas” estabelecem uma “relação muito mais liberta, prazerosa e
lúdica” com seus corpos (Novaes, 2010), enquanto que as mulheres das
classes superiores se submeteriam ao “dever moral de ser bela” (Novaes,
2005). Mirian Goldenberg, por sua vez, argumenta que “o culto ao corpo”,
produto de “coerções estéticas”, como observado entre a classe média
carioca, vincula “sucesso pessoal” e “autonomia individual” à “exigência de
conformidade aos modelos sociais de corpo” (Goldenberg, 2002, p. 9).
Em minha dissertação de mestrado (Mizrahi, 2006b) mostro
como os corpos super trabalhados e definidos de dançarinas de gru-
pos como o Gaiola das Popozudas oferecem uma síntese de qualidade
superlativa do ideal de beleza no baile. Ao mesmo tempo, a lógica da
prótese identificada no capítulo anterior confirma que o culto à apa-
rência física e à beleza corporal estão longe de serem inexistentes no
ambiente em que venho investigando. O que ocorre, entretanto, é que
a sua existência não impede que as moças gordas, que não são raras no
baile, exponham e usufruam de seus corpos de modo similar à maneira
como se apresentam as magras. A roupa justa usada por todas comu-
nica não um modus vivendi livre de coerções estéticas, como um olhar
romântico pode querer crer, mas está à serviço da afirmação do poder

247
a estética funk carioca

do feminino e cumpre o papel de marcar radicalmente a diferença entre


o feminino e o masculino, que por sua vez é vestido pela roupa larga. É
esta mesma lógica que faz com que, numa noite fria como a no Borel, os
homens lancem mão de seus agasalhos – como vimos em Didô, como
veremos em Rodrigo, e como Catra usava na van que nos transportava
no capítulo 1 – ao mesmo tempo em que as mulheres usam roupas não
apenas justas mas decotadas e curtas. A mulher não deve estar “tapada”.
As potências do homem e da mulher, contudo, não residem apenas
em sua aparência. Como vimos no capítulo anterior, esta última reafirma
e remete às disposições agentivas do corpo. O poder do feminino, em dis-
cursos artísticos e cotidianos, surge estreitamente vinculado à sexualidade
feminina e à genitália da mulher, e o poder do masculino ao seu corre-
lato no homem. As diferenças morfológicas, por sua vez, estão fortemente
relacionadas ao estilo de roupa a ser usada. Por este motivo, diz Mr. Catra,
o homem não pode usar calças jeans justas, pois se o fizesse ficaria com
uma “piroca de tangerina”, com seu órgão sexual deformado pela roupa
que, em desacordo com as exigências do corpo, lhe surgiria estranha, alie-
nadora. Os corpos femininos superexpostos ou super-realçados eviden-
ciam e presentificam a sua potência ao se contrapor à estética dos corpos
masculinos, que, no ambiente funk, devem estar encobertos. A estética
corporal, no que concerne as relações de gênero, é desambiguizadora.

248
adereços masculinos e relações de gênero

Rodrigo, o MC Novim, primo de Thamara, passa por nós, dá um


aceno e finalmente se aproxima. Ele veste uma calça jeans ampla e uma
jaqueta cinza clara, com as costas estampadas por desenho em tom de
cinza mais escuro, o mesmo que vemos no avesso do capuz de seu aga-
salho. Rodrigo traz às costas uma mochila, em material emborrachado
branco, com leves riscos pretos e vermelhos, que parece absolutamente
vazia. Molda-se à sua roupa. Parece mais um detalhe de sua jaqueta do
que um acessório. Calça um par de tênis preto, sobre a cabeça traz um
boné vermelho e um pequeno brinco cravejado de cristais adorna uma
de suas orelhas. Indicando que notava o esmero de sua produção brinco
dizendo que “até de brinquinho” ele está. Ele ri e diz que não pode fre-
quentar a “casa do Wagner” usando brincos.

cabelos como ornamentos


Através dos brincos e da brincadeira que faz com os mesmos, Rodrigo
refere-se a toda uma estética indumentária que não agrada à geração de
Catra, que por sua vez define o seu estilo:
Rapaziada que é carecão não qué saber muito de caô não. Só bigodão,
cavanhaque que é o ritmo, pá, mais sério. Graças a deus a gente ainda tem
aquele tradicionalismo.

O gosto de Rodrigo se constrói a partir de uma estética menos ascé-


tica, que usa e abusa das elaborações feitas no próprio corpo, o que pode
ser mais bem vista a partir de seus penteados.4 Os “funkeiros”,5 como
Didô e Rodrigo, usam tipicamente uma bermuda de microfibra e uma
blusa t-shirt largas que recobrem suas finas silhuetas.6 Compõem ainda

4 O uso de tatuagens parece seguir uma lógica diferenciada da que rege a roupa e a estética cor-
poral. A sua dimensão de recurso potencialmente embelezador parece suplantada pelo aspecto
temporal. A incorporação de tatuagens é acompanhada pelo passar do tempo, de modo que
um corpo jovem, de pele lisa, tende a apresentar poucas tatuagens, ao passo que um corpo
maduro vai ganhando sucessivamente novas inscrições que são adicionadas como as próprias
marcas do tempo se fazem sobre a pele.
5 Sempre que o termo “funkeiro” surgir entre aspas é indicação que estou utilizando-o não
como designação para aqueles envolvidos na produção e consumo do ritmo funk e sim como
categoria para recortar um estilo indumentário e corporal particular.
6 Nesta noite de inverno os dois rapazes vestiam a peça de roupa típica do “funkeiro” quando as
temperaturas ficam menos altas no Rio de Janeiro: a jaqueta de marca esportiva. As calças que
ambos vestiam, no entanto, não eram vestidas somente pela variação sazonal, mas igualmente

249
a estética funk carioca

o seu look com tênis de marca internacional e adornos na cabeça. Estes


últimos podem ser os bonés, que igualmente reproduzem as marcas pre-
feridas, ou seus cabelos artefatuais.
O gosto que cultivam esses rapazes pela indumentária global não é de
hoje e já foi cantado em uma música que se tornou um clássico do Funk.
Qual a diferença entre o charme e o funk?
Um anda bonito, o outro elegante
Qual a diferença entre o charme e o funk?
Um anda bonito, o outro elegante

Eu no baile funk danço a dança da bundinha


Sou MC Dolores e criado na Rocinha
Eu no baile charme já danço social
Sou MC Markinhos muito velho em Marechal

Qual a diferença entre o charme e o funk?


Um anda bonito, o outro elegante
Qual a diferença entre o charme e o funk?
Um anda bonito, o outro elegante

Eu sou funkeiro, ando de chapéu


Cabelo enrolado, cordãozinho e anel
Me visto no estilo internacional
Reebok ou de Nike sempre abalou geral

Bermudão da Cyclone, Nike original


Meu quepe importado é tradicional
Se ligue nos tecidos do funkeiro nacional
A moda Rio funk melhorou o meu astral

Qual a diferença entre o charme e o funk?


Um anda bonito, o outro elegante
Qual a diferença entre o charme e o funk?
Um anda bonito, o outro elegante

Eu sou charmeiro ando social


Camisa abotoada num tremendo visual

sinalizavam um estilo emergente no baile, composto pela calça jeans ampla e por camisa pólo
listrada. À época de meu campo de mestrado, esse modo de se vestir era associado ao gosto dos
rapazes envolvidos com atividades ilegais que, ao invés de se vestirem como surfistas, a roupa
típica do “funkeiro”, se vestiam como homens de negócio. Hoje já não é possível mais fazer
tal divisão, mas o interessante é que a associação entre o gosto cosmopolita e a roupa ampla
permanece regendo as escolhas indumentárias dos rapazes na festa.

250
adereços masculinos e relações de gênero

Uma calça de baile e um sapato bem legal


Meu cabelo é asa delta ou então de pica pau

No mundo do charme eu sou sensual


Charmeiro de verdade curte baile na moral
Os new jack swing7 são a atração
Trazendo as morenas pro meio do salão

Qual a diferença entre o charme e o funk?


Um anda bonito, o outro elegante
Qual a diferença entre o charme e o funk?
Um anda bonito, o outro elegante

Eu no baile funk danço a dança da bundinha


Estou me despedindo mas sem perdê a linha
Eu no baile charme já danço social
Estou deixando um abraço muito especial

Qual a diferença entre o charme e o funk?


Um anda bonito, o outro elegante
Qual a diferença entre o charme e o funk?
Markinho anda bonito e o Dolores elegante8

Esta música reafirma o gosto por grifes estrangeiras e a conco-


mitante indústria da imitação que o acompanha. A “moda Rio funk”,
como descrita, apresenta poucas variações quando a comparamos com
a indumentária funk atual. O seu correspondente “estilo internacio-
nal” é muito similar ao seguido pelos garotos bem nascidos da classe
média carioca, os “playboys”. A categoria “playboy” designa ampla-
mente aquele de fora da favela, e mais especificamente os filhos bem
nascidos das camadas médias urbanas cariocas. O “playboy” é definido
por muitos dos rapazes com os quais conversei como aquele que “tem
condições”, graças à posição financeira da família, de levar uma vida
confortável e sem trabalhar, sem fazer “nada pra ninguém”: estudam,
vão à praia “surfar” e saem à noite para “curtir boate”.9

7 Tipo de ritmo musical tocado nos bailes charme.


8 “Rap da diferença”, de MC Dolores e MC Markinhos. Esta canção é considerada um funk clássico,
categoria na qual esta se encontra classificada no site da Big Mix (<www2.uol.com.br/bigmix>),
equipe de som do DJ Marlboro, o mais conhecido disc-jóquei de funk no Brasil, e cada vez mais
renomado internacionalmente. Para maiores detalhes sobre a trajetória do DJ, ver Matta (1996).
9 É preciso notar que a categoria “playboy” é bastante complexa para se chegar a uma definição
estrita da mesma, o que ficou sinalizado pela fluidez com o que o “nóis” hoje se define, como

251
a estética funk carioca

A diferença entre o gosto dos “funkeiros” e o “estilo internacional”,


no entanto, começa a se fazer notar quando deslocamos o foco do design
das roupas e o transferimos para a manipulação que é feita dos elemen-
tos “verdadeiros” ou “falsos” para compor sua estética. São as distintas
relações com a autenticidade que irão conceder a marca estilística da
indumentária masculina funk. Os “funkeiros” realizam poucas variações
na composição do conjunto de roupas trajadas, especialmente em com-
paração com a grande variedade de modelos que compõe o vestuário
feminino. O grande investimento dos rapazes recai sobre os acessórios,
aí incluídos os cabelos e os tênis, além dos bonés, chapéus, colares e apa-
relhos de telefones celulares. Os tênis devem ser, sempre que possível, de
marcas estrangeiras e genuínos. Só em último caso se recorrerá aos simu-
lacros oferecidos no mercado informal. Isto não significa que os jovens
não valorizem as marcas que trazem em suas roupas, muito ao contrário.
Contudo, ao eleger-se uma única peça indumentária para ostentar a grife,
a peça eleita é invariavelmente o tênis que trazem em seus pés.
A imitação de roupas e tênis é feita na base de uma busca pelo real,
uma cópia do protótipo a mais acurada e fiel possível. Deste modo, não
é apenas copiado o produto propriamente dito, como também as etique-
tas internas de tecido e as tags, as etiquetas externas feitas de plástico ou
papelão. O tênis, nesse contexto, sintetiza o esforço de atingir não apenas
o autêntico mas o idêntico. E, como as roupas, em sua maioria reprodu-
ções de originais compradas em mercados informais da cidade, poderiam
ter sido adquiridos em qualquer parte do mundo. Diferentemente, os
adornos feitos com os cabelos afirmam a particularidade de uma estética.
A base dos cortes usados pelos rapazes “funkeiros” é, de maneira
geral, uma só. A primeira etapa constitui em cortar o comprimento do
cabelo com a tesoura, mantendo a região do alto da cabeça mais densa,
em função do maior cumprimento de seus fios. Em seguida, são apara-
das as laterais, com máquina específica, para então se dar contorno ao
corte, ao se fazer o “pé” do cabelo e as costeletas, um trabalho minucioso,

mostrou a música do MC Maiquinho no capítulo 5. Contudo, é possível dizer que a categoria


designa amplamente aquele de fora da favela, e mais especificamente os filhos bem nascidos
das camadas médias urbanas cariocas. Esta noção fica clara a partir das declarações de Lívia
que, ainda no meu campo de mestrado, referia-se a um colega seu, morador de uma favela,
como “playboy” pois, filho único, era mimado e protegido de um modo mais comumente visto
em ambientes exteriores à favela.

252
adereços masculinos e relações de gênero

realizado manualmente com o uso da navalha. A aplicação de tintura,


quando realizada, é a etapa seguinte do trabalho. Inicialmente os cabe-
los são descoloridos, para que então seja aplicada a “tinta”, concedendo
ao cabelo o tom que se quiser: avermelhado, amarelado, branco, etc.
Pode-se ainda salpicar o cabelo por pontos descoloridos, e nesse caso é
necessário colocar sobre a cabeça do cliente uma touca de látex perfu-
rada, da qual são retirados, através de seus pequenos orifícios, os tufos
de cabelos sobre os quais se passará a mistura de pó descolorante e água
oxigenada, que retirará a cor do cabelo. O tom desejado será adquirido,
então, com o tingimento.

A concretização dos “desenhos” e “caminhos” se dá na parte final


do trabalho, após os cabelos haverem sido cortados e tingidos, se for o
caso. Nesta etapa, o barbeiro faz as elaborações sobre a cabeça dos rapa-
zes se utilizando de lâminas de barbear para retirar os fios das regiões
em que foram aparados por “máquina um”. Os motivos são variados –
“corrente”, “tribal”,10 “tribalismo”, que é um conjunto de “tribais”, “teia de
aranha” – ou reproduzem as marcas esportivas dos calçados masculinos.
Os cabelos possuem um aspecto conspicuamente falso, artificial,
artefatual, feito. E é nessa artificiliadade que é afirmada a singularidade

10 Idêntico aos desenhos das tatuagens de mesmo nome, que formam linhas sinuosas e espirala-
das, que se entrelaçam. Estas tatuagens são geralmente realizadas sobre o músculo do bíceps
dos braços masculinos ou na região do cóccix feminino.

253
a estética funk carioca

do gosto “funkeiro”. Tanto pelo aspecto feito que um cabelo loiro, ver-
melho ou branco denota sobre uma pele negra, mulata ou morena,
como pela ornamentação barroca dos desenhos. Pois, diferentemente
das mulheres, eles não buscam adequar a cor de seus cabelos ao tom de
suas peles, nem tampouco elegem como marca de localidade um objeto
removível, como fazem as moças com a “calça de moletom stretch”.
As mulheres constroem uma estética corporal mais ambígua quando
está em jogo a potencialização de sua circulação pela cidade. Os rapazes,
por sua vez, possuem um gosto que pode ser dito híbrido, pois funciona
em dois registros: as roupas e os tênis são imitativos mais em acordo com
a mimicry de Bhabha (1998) e os cabelos ao modo da mimesis de Taussig
(1993). De um lado, temos roupas que poderiam ser descritas como se
resultantes da chamada pasteurização que a indústria global produz
sobre as escolhas de consumo. De outro, seus cabelos, que não podem
ser retirados em sua circulação pela cidade, tendem a localizá-los em
uma identidade “funkeira”. E é esse hibridismo, que coloca lado a lado o
muito igual e o muito diferente, que desconcerta o olhar estrangeiro, o
olhar “gringo”, o olhar de fora. Como me disse Emanuel, ao imaginar o
modo pelo qual reagiria o “playboy” ao ver um “funkeiro” no Baile:
Por exemplo. Se eu chego no baile com meu cordão de ouro, tal. Minha ber-
muda cara, meu tênis caro. Eu vou ver um tênis igual ao meu, só que falso.
Pô, se eu ver um tênis igual ao meu falso, eu vou falar: “Caraca, que maluco”!

Os “playboys”, contudo, mesmo que os copiem em seu modo de


falar, dançar e andar, não podem, dizem os “funkeiros”, imitá-los de fato
graças às diferentes materialidades que possuem seus cabelos. Os primei-
ros trazem o cabelo “sempre cheio” e jamais ficará “baixinho” como usam
os “funkeiros”. Portanto, se os tênis poderiam fazer-nos pensar que a
indumentária masculina funk é calcada na imitação prestigiosa (Mauss,
2003), ou que obedeceria a lógicas distintivas (Simmel, 1957; Bourdieu,
1984), os penteados derivam de um processo simultaneamente mimético
e criativo, que produz a diferença através de uma cópia que não é pura
cópia. A materialidade dos cabelos evidencia a escolha de uma estética
que se define pelo aspecto artefatual dos penteados, demonstradora do
sentido de feito e fabricado, que por sua vez finda por conceder ao gosto
dos rapazes potência e autenticidade. Entre os cabelos dos rapazes, a

254
adereços masculinos e relações de gênero

cópia não tem papel espúrio, nem está por oposição ao autêntico, como
em Sapir (1949), mas é componente ativo do mecanismo criativo.
Latour (2002), ao tratar das diferentes percepções que o ídolo suscita
no encontro colonial, chama atenção para o papel que a condição de feito
possui para os efeitos que um objeto pode causar e para as atribuições de
agência que lhe são feitas pelos humanos. O poder da imagem religiosa,
defendem os “nativos”, reside precisamente no fato de a mesma ter sido
feita por mãos humanas, e não por ser produto do mundo sobrenatu-
ral, como preferiria a racionalidade cristã. Pois os jesuítas não podiam
suportar a ideia de um objeto simultaneamente feito e dotado de agência
divina. Ter sido fabricado pelo homem, diriam, tornaria os ídolos uma
farsa, uma vez que seus criadores, ao mesmo tempo em que reconheciam
que os mesmos não eram obra divina, simultaneamente acreditavam em
sua eficácia religiosa. Para os jesuítas, feito e falso andavam lado a lado e
não podiam ser dissociados. Para os povos não europeus, autenticidade e
eficácia residiam na própria condição de feito e não na de dado.11
Os cabelos dos rapazes, ao mesmo tempo em que conferem auten-
ticidade e concedem a marca estilística da estética indumentária mascu-
lina, se constituem no aspecto mais evidente da fabricação. Subvertem
o cabelo loiro do “playboy”, através de uma ação que imprime caracte-
rísticas falsas, no sentido que feitas e artefatuais, aos seus cabelos, como
os tons loiros, vermelhos e brancos que não possuem “originalmente”
e todos os cortes e recortes que são feitos sobre os pelos da cabeça. Os
cabelos dos “funkeiros”, ao persistirem no “detalhe que dá a impressão
de falso”, afirmam assim as “potências do falso” (Deleuze, 2005, p. 161).
Deleuze (2005), ao tratar da imagem no cinema, substitui o poder
da verdade pelo da autoridade falsificadora. O autor opõe dois regimes
de imagem: o orgânico e o cristalino. Se no primeiro ocorrem desenvol-
vimentos encadeados de maneira lógica e inseridos em contextos coesos
e preexistentes, onde a ficção, o falso, o sonho, surgem como dissocia-
dos da realidade concreta e sempre por oposição a esta, no segundo,
ficção e realidade se fundem para, ao borrar as suas fronteiras, afirmar
o poder do falso, inserindo em uma única e falsificadora narrativa rea-
lidades “compossíveis”, passíveis de serem unidas somente no plano das

11 Lagrou (2009a) aplica esta importância do fazer notada por Latour à sua análise da estética
ameríndia.

255
a estética funk carioca

imagens, como o cabelo liso e loiro do “playboy” e o cabelo crespo e preto


do “funkeiro”. Desta maneira, o falso permite ao cineasta, ao artista, ou
ao sujeito que manipula o repertório imagético, explicitar o seu ponto.
O falso e o verdadeiro são, assim, manipulados pelo “funkeiro” de modo
a expressar o sentimento duplo de fascínio e desprezo pelo “playboy”.
Uma relação ambígua que envolve simultaneamente cobiça pela vida
confortável e rejeição por aquele que depende do pai para viver.
O cabelo masculino funk, ao fazer uso da sua materialidade para
a concretização dos desenhos, produz uma releitura irônica do cabelo
parafinado surfista, que se não é louro impede a quem o olhe qualquer
certeza de seu aspecto feito. Os meninos “funkeiros”, ao contrário, são
assertivos ao comunicarem, por meio de sua estética, que se suas rou-
pas são idênticas ou muito similares às que também usam o “playboy”,
seu rival máximo, o seu gosto é imitativo até certo ponto. Pois a dife-
rença evidenciada por seus cabelos, que não são simulacros de cabelos
loiros, mas cópias miméticas, avisam que querem e podem ter as mes-
mas coisas, mas as querem ao seu modo (Mizrahi, 2007a). Os cabelos
não devem ser vistos como falsos, na medida em que não possuem a
intenção de simular a aparência de um protótipo. Mas, através da ação
falsificadora, que remete ao cabelo loiro e parafinado do surfista, e em
associação com outros elementos indumentários, é criada uma imagem
estética que afirma um posicionamento que pode ser entendido como
político. Se os elementos que compõem a indumentária dos rapazes
poderiam gerar a impressão que o seu uso produziria uma estética glo-
balizada e similar àquela também usada pelo “playboy”, os seus pentea-
dos constituem uma marca visual da diferença que buscam.
A tensão entre falso e verdadeiro que os cabelos epitomizam, ao
reter e materializar a marca de localidade (Appadurai, 1986), diferen-
cia o estilo funkeiro do “estilo internacional” e imprime autenticidade
à apropriação dos elementos tomados de empréstimo ao “playboy”, ao
gosto global e à “pista”, constituindo uma estética que presentifica o
modo pelo qual a modernidade global é reproduzida como diversi-
dade local (Sahlins, 2004).

256
adereços masculinos e relações de gênero

tiros que articulam o social


São quatro horas da manhã no Borel e a festa está chegando ao seu
auge. Inicia-se uma queima de fogos de artifício, formando chafarizes
de luz em tons de branco e vermelho, esta última a cor da facção que
controla as atividades ilegais locais. Ocorre uma pequena interrupção
e nova sequência de fogos acontece, desta vez composta por esguichos
dourados de luz que cortam o escuro do céu. Novo intervalo se estabe-
lece, acompanhado de um breve silêncio, se assim é possível dizer de um
local que margeia um baile funk, e começamos então a ouvir estouros
abafados. Alguém comenta que são ruídos de tiros de armas de fogo,
outra pessoa diz tratar-se do som de morteiros. Mas em seguida temos
certeza que ouvimos tiros. São esparsos, como se produzidos por pistola.
Maísa diz que não gosta de tiros. Neuma diz que “pra cima, adora”.
Maísa e Pamela, ambas residentes do morro e amigas de Neuma desde
o tempo em que esta ainda morava no Borel, retrucaram lembrando-lhe
que “tudo que sobe desce”. Maísa comenta que preocupa-se quando o
filho sai à noite, atribuindo isto ao “jeito que a polícia anda matando,
principalmente nessa área da Tijuca”. De dentro do baile ouço vir a voz de
Duda do Borel, MC famoso e “cria” da comunidade. Digo a Neuma que
gostaria de entrar para assistir ao show, mas ela não se mostra muito ani-
mada com a ideia. Diz que o que gosta mesmo é de ficar lá fora, bebendo
e “conversando com os amigos”. Como entendi que coube a Neuma a
função de me ciceronear naquela noite, achei que seria indelicado rom-
per com aquele código tácito de etiqueta e permaneci ao seu lado.
Logo os tiros recomeçaram, e desta vez soaram como rajadas de
fuzil. A minha vontade de entrar no baile recebeu estímulo adicio-
nal, mas mantive-me quieta. Maísa mostra-se apreensiva, e diz que o
som parecia vir “de baixo”, do início da rua. Mas Neuma diz que não,
que trata-se do eco produzido pela rua em curva e o modo como aco-
modam-se as construções. Como prova do que fala, ela nos mostra a
tranquilidade com que as pessoas se movimentam em frente aos bares
localizados abaixo. Mas eu fico inquieta, e Neuma percebe isso, dizendo
para Maísa que pare com seus comentários pois irá “assustar a minha
amiga”. Os tiros continuam, e Maísa insiste em evidenciar por meio da
fala o seu medo. Sugere-se então que passemos para o “pagodinho”,

257
a estética funk carioca

um pequeno salão luminoso, de pisos e paredes revestidos de cerâmica


clara, onde toca o “suingue”, o “pagode romântico”, uma espécie de
samba melódico e romântico. Na televisão acomodada em um suporte
preso ao teto, passa o vídeo da música que escutamos, e pelo salão evo-
lui um par de mulatas curvilíneas, dançando sinuosamente com seus
corpos enlaçados e ao som da canção.
Eu não relaxo. Estou aflita com os tiros. Penso que ali dentro, com
a música alta que embala a dupla de moças, é que será ainda mais difí-
cil perceber a evolução que os tiros poderiam ter. Digo a Neuma que
estou preocupada com o meu horário, e relembro-a que preciso estar às
seis horas da manhã no hospital, para render uma de minhas irmãs que
acompanha meu pai em um pós-cirúrgico, e que se tiver que esperar
para que voltemos todos juntos corro o risco de perder a minha hora.
Neuma duvida de minha justificativa, e me pergunta: “você jura que não
é por causa dos tiros?”. Eu, firmemente, disse-lhe que não eram os tiros
que me tiravam mais cedo da festa.
Vejo um táxi parado na subida da rua, e pergunto a Neuma se lhe
parece adequado que eu o utilize. Ela responde negativamente, expli-
cando que estes motoristas que vêm ao baile estão sempre “doidões”:
bêbados ou drogados. Neuma e Maísa dizem que é melhor que eu tome
a minha condução na “pracinha”, uma praça não tão pequena e loca-
lizada na rua Conde de Bonfim, uma das principais vias da Tijuca, o
bairro que abriga o Morro do Borel.
Descemos a pé pela rua que mais cedo cruzáramos de carro. Neuma,
aparentemente tensa com a via escura e deserta, pede a Maísa que ande
mais rápido, reclamando dela e de sua “bolsinha de piranha”, o objeto
que a amiga segura em uma de suas mãos por sua alça curta, ao mesmo
tempo em que procura equilibrar o seu corpo alto e amplo sobre os sal-
tos altos e finos de suas sandálias. Passamos por um mendigo que logo
ao início da noite eu vira circulando pelo baile. Em seguida, tomamos
um atalho à esquerda, cruzando uma espécie de galeria a céu aberto,
um “camelódromo”, onde ambulantes durante o dia recheiam de merca-
dorias as barracas que víamos vazias e formavam àquela hora um beco
escuro. Uma senhora vem em nossa direção. Não aparenta ser funkeira.
Está vestida e penteada como uma evangélica, com seus cabelos escuros
divididos ao meio e presos em coque baixo, sem qualquer adorno ou

258
adereços masculinos e relações de gênero

maquiagem. Ela, muito magra e parecendo bêbada, pergunta a Neuma


onde é o “samba”. Neuma lhe responde que não há “samba” algum por
ali àquela hora, mas um “funk”, lhe indicando o local.
Chegamos à “pracinha” e os tiros recomeçam. Maísa se apavora e nós
nos abrigamos na frente de uma banca de jornal que jazia solitária na ponta
do pequeno largo que se forma entre uma das extremidades da praça e
a rua Conde de Bonfim. O local parece-me suficientemente seguro, mas
não a Maísa, de modo que Neuma sugere que passemos para a frente de
um edifício na esquina da rua à nossa esquerda, reclamando com a amiga
que ela “nem parece cria”, nem parece criada no morro. E resmunga nova-
mente com sua voz manhosa: “assim você vai assustar a minha amiga”. Eu
digo a Neuma que fique tranquila, reforçando que eu saía em função do
horário e não do medo. De fato eu já estava menos tensa.
Um táxi, após desembarcar alguns passageiros na quadra anterior,
se aproxima de nós. Eu comento com minhas colegas que o carro não
possui qualquer número de registro pintado em sua lateral, como é cos-
tumeiro nos táxis que fazem parte de cooperativas. Maísa responde-me,
dizendo: “mas tem placa”. Neuma aproxima-se do carro e através da
janela entreaberta ao lado do banco do carona pede ao motorista “que
deixe a minha amiga direitinho em casa”. O motorista ri e diz a ela que
não se preocupe. Enquanto isso eu vou até a parte posterior do veículo
para registrar o número de sua placa, e Maísa avisa-me que “já está guar-
dado”, dando a entender que não era preciso eu ser tão explícita.
Entro no carro, acompanhada de novas recomendações feitas por
Neuma ao motorista para que este tenha cuidado no trajeto. Ele dá a
partida no motor e me diz que se conseguíssemos sobreviver ao tiroteio
que assolava a região chegaríamos em casa sãos e salvos. Procurando
acalmá-lo, disse-lhe que não haveria problema. E, fazendo minhas as
palavras de Neuma, acrescentei: “hoje é dia de festa”. Sentada no banco
do carro eu assumia um novo ponto de vista e traduzia assim para o
motorista o que poderia ser a perspectiva da favela. Mas eu veria ainda
que outras tantas eram possíveis, e as implicações dos tiros poderiam ser
muitas outras, articulando ainda tantos outros mundos.
Passei alguns dias pensando no que poderia ter causado-me tanto
medo. Pois os tiros que assustaram-me pareciam de fato uma ficção.
Como disse Neuma, era “dia de festa”, dando a entender que os tiros

259
a estética funk carioca

deveriam ser tomados como uma nova leva de fogos de artifício. E


seguindo o seu raciocínio poderia supor-se que do mesmo modo como
ali começaram, ali terminariam. Mas, como suas amigas alertaram, “tudo
que sobe desce”. Os tiros não caem no vazio e possuem consequências.
Eles não apenas causaram-me medo, como abreviaram a minha per-
manência na festa, desencadearam os acontecimentos na “pracinha” e
a minha conversa com o taxista. E teriam a possibilidade de produzir
novos eventos, como uma outra conversa deixaria claro.

Dois dias após a festa no Borel, fui até a casa de Sílvia fazer-lhe uma
visita de cortesia. Era seu aniversário e, de acordo com os meus cálculos,
faziam duas semanas que eu não aparecia por lá. Sílvia mora a cerca de
quarenta e cinco quilômetros de minha casa, na Zona Sul da cidade, o
que me rendia cerca de uma hora e meia dirigindo em meu carro, e a
outros tantos quilômetros da favela do Borel, na Zona Norte do Rio de
Janeiro. Mas Sílvia conhecia bem as realidades não tão estanques que
repousam por trás de rótulos que não apenas dividem a cidade em áreas
geográficas e sociais como alimentam o imaginário carioca. Junto com
Catra, ela morara em diferentes bairros da cidade, em imediações de
favelas ou não, e já tivera o seu salão de cabeleireiro instalado no Morro
do Jacaré. Sílvia era, em uma palavra, “contemporânea”, termo que ela
mesma gostava de empregar para descrever aqueles que transitam com
facilidade por diferentes ambientes estéticos e sociais.
Como de costume, eu estacionara meu carro sobre a calçada que
margeia o muro da casa. Sílvia acabava de sair de seu carro, estacionado
mais à frente e do mesmo modo que o meu. Ela vestia um dos vestidos
que vinha trajando desde o início de sua gravidez: em malha estampada
por motivos gráficos preto, branco e azul petróleo, de modelagem ampla
e sem mangas, fazendo o que a indústria da moda chama de “linha A”. Os
seus cabelos cacheados e acobreados estavam presos ao alto da cabeça
por uma “piranha” em um coque cujas pontas pendiam. Sílvia não esbo-
çou em sua face qualquer emoção ao me ver e, dando-me as costas,
seguiu falando com Das Sete que, além de ser músico, atendia à casa em
alguns momentos. Ela entrou pelo portão e aguardou na trilha do jardim
que eu cumprimentasse Das Sete que, com um skate na mão, perguntou-
me: “como vai a senhora?”, fazendo o convite para que eu mais tarde

260
adereços masculinos e relações de gênero

fosse até o estúdio ver a nova produção que realizava. Respondi-lhe que
não garantia que iria até lá, pois hoje a visita era para Sílvia.
Sílvia, malgrado o fato de “detestar” fazer aniversário, como dis-
sera-me, tirara a tarde pra fazer sobremesas. Depois da gelatina de uva,
preparava agora uma musse de maracujá, ao mesmo tempo em que
íamos conversando amenidades, que versavam desde as receitas que ela
executava até a última vez em que eu lá estivera, o que de acordo com
Sílvia havia ocorrido há três semanas.
O bolo que Sílvia batera está agora no forno e ela lava a leiteira onde
fervera a água para fazer a gelatina. Aproveito a casa calma e o clima rela-
xado pra dizer que estive na festa do Borel. E Sílvia, com a mesma expres-
são neutra que apresentara ao me receber, pergunta, em tom de quem
já sabe a resposta, se eu fui com Thamyris e sua mãe, e eu lhe respondo
afirmativamente. Com o mesmo ar indiferente ela diz: “aquele baile não
é seguro pra você” e acrescenta que Wagner, como chama o marido, não
deixa a filha ir até lá. Eu digo a Sílvia que pensei que Thamyris houvesse
consultado o pai antes de decidir ir à festa, mas vejo que não.
Continuamos a conversa e Sílvia explica que, como os chefes da
comunidade não “dão arrego”, não pagam propina, a polícia, ao ouvir os
tiros dados pelos bandidos, “sobe o morro”. E como o baile é ilegal “eles”,
os policiais, entram “dando tiro”, sem se preocupar com as pessoas na rua.
Ela acrescenta que o baile do Borel tem uma única entrada, o que torna
ainda mais complicado sair de lá em momentos de “guerra”. Ela mesma,
continua, já ficara presa ali em meio a um tiroteio. Este último detalhe,
venho saber depois, foi uma pequena fabulação a que Sílvia permitiu-se
para convencer-me dos perigos reais que ela acreditava que eu corria.
Sílvia continua em sua explanação. Explica que o Borel é separado
apenas por uma rua de um “morro alemão”, uma favela controlada por
uma facção rival. Os chefes deste último, por sua vez, ao ouvirem os
tiros entre policiais e bandidos inimigos, entendem que seus rivais estão
em posição vulnerável. A “invasão” da polícia se constitui assim em
desculpa para uma segunda “invasão”, feita pelos bandidos do Morro
da Casa Branca. O caos está armado.
A tarde passou assim, suave. E, entre uma ida e outra à cozinha,
sentei-me com Sílvia e a pequena Noemi ao sofá para elaborarmos mais
sobre a lógica da favela. Aproveito para dizer-lhe que quero ir ao Jacaré,
a favela na Zona Norte, ver o comércio informal local, que soube ser

261
a estética funk carioca

muito interessante e rico. Sílvia


novamente diz que “lá não é
seguro” para mim. Digo-lhe que
não fotografaria. E ela diz: “você
não fotografa, mas você olha”. Em
alguns momentos tivemos a com-
panhia de Verônica, a prima que
passava a semana em sua casa,
como fomos permanentemente
acompanhadas pelas imagens emitidas pela grande televisão de plasma
ligada na sala de estar.
Ao fim da tarde Catra chegou. Entrou pela cozinha e, ao passar por
Sílvia, que, de frente para o fogão, preparava agora a calda do bolo, disse-
lhe “oi, filha”. Sílvia, de costas para ele, de costas permaneceu, sem virar-
se para cumprimentá-lo. Ele cumprimenta-me com dois beijinhos, vai
até a sala e volta à cozinha, mostrando à esposa o fumo que trazia e,
sorridente, lhe dá os parabéns. Sílvia nada lhe diz, e as crianças inva-
dem a cozinha, recepcionando Catra efusivamente, inclusive a filha de
Verônica que, como as outras crianças, chamava-o de pai.
Ele senta-se à mesa de jantar e enquanto conversamos prepara o seu
cigarro. Aproveito para fotografar o boné que ele usa e que deixara sobre a
mesa. O boné é preto e traz rebordada em sua frente a frase “OTRA VIDA”,
em grandes letras brancas e sem a letra U que, de acordo com a norma
culta da língua portuguesa, deveria constar na primeira de suas palavras.
Sobre a frase em branco está bordado em preto um fuzil. Conforme foto-
grafo o boné, Catra segura-o com a mão, facilitando o meu trabalho ao
mesmo tempo em que insere na imagem que produzo o seu cigarro alter-
nativo. Uma outra vida construída por uma estética “otra”.
Catra logo sairá para mais uma de suas turnês noturnas, e Sílvia,
chamando-me de “nem” – corruptela de “neném” que converteu-se em
nome carinhoso utilizado tanto no trato com crianças como com adultos
quando quer-se abordar algum tema delicado –, pergunta se eu acompa-
nharia Verônica até o banco para que Catra tivesse mais tempo em casa
antes de sair para trabalhar. Eu respondi que sim, não haveria problemas.
Conversando com Verônica, aguardei Catra e Sílvia que serenamente
conversavam, sentados à mesa próxima à churrasqueira do jardim.

262
adereços masculinos e relações de gênero

Partimos para o banco.


Em meu carro íamos eu e
Verônica, além das quatro
crianças sentadas no banco
de trás, enquanto Catra
seguia só em seu veículo.
Cerca de vinte minutos
depois chegamos à agência
do banco, onde Catra sal-
tou do carro, foi até o caixa
eletrônico e voltou com um
maço de dinheiro na mão.
Verônica, a quem ele entre-
garia o dinheiro a ser dado
a Sílvia, sentava ao meu
lado, no banco do carona.
Mas Catra deu a volta pela frente do meu carro e, colocando-se ao meu
lado, contou as notas que segurava. Através de minha janela, esticou sua
mão em frente aos meus olhos e entregou o dinheiro nas mãos de sua
parente. Alguns meses depois, essa mesma presença do dinheiro nos
recepcionou de modo ostensivo ao chegarmos à favela da Mangueira.

outros adornos masculinos


Já amanhecia e, depois de haver feito seis shows, Catra nos propôs que
fôssemos até o baile funk da favela em São Cristóvão. Nesta noite, ao
invés de nos deslocarmos todos juntos em um único carro, como fazía-
mos quando saíamos de van, cruzamos a cidade divididos em quatro
diferentes carros de passeio.12
Ao chegarmos à Mangueira, Catra estaciona o seu veículo próximo
à rua que dá acesso ao baile, e nós estacionamos logo atrás. Ao sair do
carro eu pergunto a ele se pagaria agora ao guardador que nos cercava e
qual seria o valor adequado, para que eu tivesse um parâmetro sobre o

12 Nas ocasiões em que nos deslocávamos em um “bonde” de carros, meu carro poderia ser
dirigido por mim mesma, por meu companheiro ou ainda por um dos seguranças de Catra.
Invariavelmente eu levava comigo outros membros da entourage de Catra.

263
a estética funk carioca

que deveria fazer com relação ao meu carro. Sem emitir qualquer pala-
vra, ele tira do bolso de sua calça um gordo maço de notas de dinheiro,
composto por outros maços menores, presos por um elástico em cruz.
Segurando em uma de suas mãos e sem qualquer preocupação em
esconder o amarrado de dinheiro, ele leva a este sua outra mão e separa
uma nota de cinquenta reais. Em seguida pergunta ao guardador se ele
teria trinta reais para lhe dar de troco e paga por ele e por mim.
Vamos andando em direção à entrada do baile, que acontece ao ar
livre e ao longo de uma rua comum, cujas calçadas são ocupadas por qua-
tro diferentes e subsequentes “equipes de som”: paredões de alto-falantes
que emitem a música funk que é tocada por seus respectivos DJs. O início
da rua está vazio e estão postados em cada um de seus lados três garo-
tos, um atrás do outro e separados alguns metros de si. Vendem drogas.
Gritando, oferecem “papel de cinco e de sete”. Cada um deles segura
em uma de suas mãos sacos plásticos transparentes e incolores que nos
deixam ver o conteúdo resultante das transações feitas ao longo da noite.
A outra mão fica livre para entregar a droga e receber o dinheiro, que é
em seguida inserido no saco plástico. Catra para em frente a um desses
meninos, chamados de “vapores”, leva a mão ao bolso e novamente traz
à tona o seu bolo de dinheiro. Subimos a rua e ele pede a Cíntia que lhe
prepare um cigarro. Esta, além de assistir à Sílvia em casa, era também
uma espécie de braço direito de Catra.

264
adereços masculinos e relações de gênero

Atingimos o centro da festa. São quase seis horas da manhã, o dia


está claro e a rua lotada. Catra deixou no carro o chapéu de risca de
giz que usou ao longo da noite, sempre que subira ao palco para suas
apresentações profissionais. Sua careca escura e reluzente torna fácil
a tarefa de acompanhá-lo à luz do dia. A roupa que ele veste é mais
uma variante das que traja nas noites de turnê: porta um jeans escuro
amplíssimo e uma blusa t-shirt branca de mangas longas e em pro-
porções igualmente grandes. Usa o seu colar cuja corrente resulta do
encaixe de grandes placas de ouro, de formatos que alternam hexágo-
nos e estrelas de seis pontas, emoldurando ao centro a cara de um leão.
A estrela de seis pontas é uma estrela de Davi e o rosto ao centro do
colar é do “Leão de Judá”, referências ao fato de ele ser hoje “hebreu”.13
Em seu pulso esquerdo traz um grande relógio, também dourado, que
parece ser de ouro maciço, e em seu outro pulso carrega uma pulseira
feita das mesmas placas de ouro que formam o colar ao pescoço. Os
dedos são adornados por diversos anéis, sempre em ouro, como o que
traz ao topo a grande estrela de Davi cravejada de pedras brilhantes e
incolores, colocado ao seu dedo indicador, ou o que reproduz o rosto
de um leão, colocado no dedo anelar da mesma mão.
A indumentária de Catra, como de muitos MCs de funk, é inspirada
no visual dos cantores norte-americanos de hip-hop, no vestuário dos
jogadores da liga norte-americana de basquete e na moda skate, resul-
tando em peças muito amplas, muito mais do que as já amplas roupas
usadas pelos meninos “funkeiros” e pelos jovens MCs. Existe também
uma diferença nas marcas usadas. Catra e seu grupo privilegia as marcas
nacionais mais associadas ao hip-hop, como as paulistas Manos, Blunt e
Otra Vida. As marcas que usam os jovens “funkeiros”, por outro lado,
são preferencialmente “gringas” e associadas ao surfwear. Mas é certo
que existem pontos em comum. A marca Ecko Unlimited, por exemplo,
é usada por Catra e por seus parceiros e é ao mesmo tempo muito apre-
ciada pelos “funkeiros”. Como a marca Osklen, ela originou um grupo
de cantores e dançarinos, nomeado a partir do símbolo da marca, um
rinoceronte. Além da diferença de modelagem e marcas, há também

13 Mr. Catra afirma que não pode afirmar que é judeu pois não nasceu de “ventre judeu”
(Mattias, 2009).

265
a estética funk carioca

uma variação nas cores usadas. Em Catra e no hip-hop há um predomí-


nio do preto e dos tons metálicos, e a presença das cores básicas amarelo,
vermelho e verde. Já entre os “funkeiros” há um uso mais sóbrio das
cores, que gira em torno de azul-marinho, preto, branco, vermelho e
cinza. O repertório das roupas que Catra usa versa sobre elementos que,
novamente, parecem reproduzir o gosto estrangeiro. Contudo, os usos
locais produzem seus próprios deslizes.
Diferentemente das mulheres, que produzem sua própria moda, os
homens aparentam atualizar sobre seu corpo uma tendência global, seja
ao seguir o gosto hip-hop, seja ao imitar o surfista, como vimos mais acima.
No que concerne aos usos locais da indumentária hip-hop, os excessos
do estilo “bling”, que denomina o modo pelo qual os rappers norte-a-
mericanos se adornam, recorrendo a grossas correntes e grandes brincos
de diamantes, além de outras joias, assumem contornos particulares. De
modo que o chamativo “cordão” de Catra passa de adorno idiossincrático
a mais um elemento do corpus de objetos que define o estilo. Os estilos,
de acordo com Gell (1998, p. 155-220), são definidos em um domínio inte-
rartefatual, a partir da interconexão entre os artefatos e no qual qualquer
exemplar de um corpus estilístico remete ao todo. Não há um objeto ou
motivo do qual o todo estilístico derive, mas todos são transformações
uns dos outros. Como uma imagem holográfica, que possui a informação,
ainda que atenuada, da totalidade contida no holograma, o elemento per-
mite reconstruir o todo, que por sua vez não é visto como “uma coleção
de objetos separados, mas apenas um objeto com muitas partes distribuí-
das em vários lugares diferentes” (Gell, 1998, p. 167).
De pé sobre a calçada da rua que corta a Mangueira, dançamos,
curtimos e bebemos, observando o movimento e as pessoas, exata-
mente como ocorrera há três meses no Borel. Fazemos isso cercados
pela música funk, pelo cigarro que circula, e, em vez de cerveja, bebe-se
“uísque e Red Bull”, a famosa mistura da bebida de origem escocesa e
energético que invariavelmente está presente nas noites de Catra, como
já víramos com Sílvia, e é associada aos artistas do meio. O uísque, em
especial o Johnnie Walker Red Label, é outro importante componente
da cultura material que cerca o funk.
Ao nosso lado dança um “gerente do tráfico”, rodeado por duas
moças, ambas com seus olhos fortemente maquiados por sombra

266
adereços masculinos e relações de gênero

colorida e cintilante e desenhados por delinea-


dor e máscara pretos. O rapaz tem pele clara e
cabelos acinzentados e crespos. É forte e veste
uma calça jeans ampla e escura, mas não tão
larga como a que veste Catra, além de possuir
corte diferente. Se assemelha ao estilo “semi-baggy”, ou “carrot-cut”,
usado por hip-hoppers berlinenses (Ege, 2010), de cintura alta e ajus-
tada, pernas de corte amplo e afuniladas em suas extremidades. O seu
torso está desnudo, o que não é raro entre os rapazes musculosos que
frequentam o baile.
Sobre o torso definido, KC, como o chamarei aqui, veste um “cor-
dão” de aparência e espessura similares as dos cabos de aço que segu-
ram elevadores. Feito em material dourado, o colar dá três voltas em
seu pescoço, de onde pende uma medalha retangular de cerca de dez
centímetros de extensão, cinco centímetros de altura e um centíme-
tro de espessura. Sobre a placa leem-se as iniciais K. C., cravejadas em
pequenas pedras brilhantes e incolores. O rapaz traz em uma de suas
mãos um estilo de anel típico da indumentária punk, também conhe-
cido como “soco inglês”.
Este tipo de anel é tradicionalmente feito
em metal prateado e consiste em uma trava sob a
qual são fixadas duas, às vezes três argolas onde
são introduzidos os dedos, que ficam assim pró-
ximos e imobilizados. O anel de KC reúne quatro
de seus dedos, deixando livre apenas o polegar, e
é feito em metal dourado, ao passo que os punks
costumam usar adornos prateados. Seus braços,
talvez devido aos efeitos tensores que os exercí-
cios produzem
sobre os mús-
culos, estão levemente flexionados, e
o seu punho, graças a pouca mobili-
dade que o anel lhe impõe, está cerrado.
Mais acima há um outro rapaz musculoso como KC, que sobre o
torso veste apenas uma grande medalha redonda em metal dourado,
de cerca de nove centímetros de diâmetro. Toda a sua circunferência é

267
a estética funk carioca

adornada por pequenos cabochões, semiesferas de um cristal incolor e


translúcido. Em seu centro está gravada a letra C, o que pode ser uma
alusão ao seu nome pessoal como também ao “Comando Vermelho”,
ou simplesmente “Comando”, a facção criminosa que também controla
o tráfico na Mangueira. Usar um grande C como pendente é comum
entre aqueles que “fecham” com a referida facção, mesmo que a inicial
do nome próprio seja outra.
Estes rapazes de torso nu e calças “semi-baggy” se vestem como os
“bombados” que vemos no baile funk. Diferentemente dos “funkeiros”,
os “bombados” não atentam tanto para a marca de suas roupas já que,
como me disse um deles, “malham a semana inteira” para chegar na
festa e tirar a blusa, que deve ser justa o suficiente para, ao “menor movi-
mento”, mostrar o músculo. A sua indumentária e estética corporal estão
assim a meio termo das que cercam os “funkeiros” e das que envolvem
as moças. Possuem formas arredondadas, em seus torsos, que devem
ser realçadas pela roupa justa, como ocorre entre as últimas. Ao mesmo
tempo, suas pernas são finas “como as do sabiá”, como as dos pássaros,
e devem ser encobertas por calças largas, o que os aproxima do corpo
magro que ganha volume por meio das roupas, um sobre corpo, como
entre os “funkeiros”. Além disso, na festa rebolam como as moças, mui-
tas vezes recorrendo a trejeitos de deboche para delas se diferenciarem.
Mas há uma pequena diferença entre a estética dos “bombados” dos
bailes e a dos que vemos na Mangueira. Os colares aqui, ao invés de serem
em metal prateado, como é usual entre os “bombados” de maneira geral,
são feitos em ouro, de modo a denotar poder, também financeiro, como
denotam os carros, o uísque, as notas de dinheiro e as muitas mulheres
das quais cercam-se. Se a roupa justa expressou ao início do capítulo a
potência do feminino, aqui os objetos de valor dos quais cercam-se os
homens, nos falam também sobre as relações de gênero. O poder mas-
culino, que, segundo Catra, reside na “piroca”, como o vimos falar no
capítulo 4, é potencializado pelo poder financeiro, que por sua vez é obje-
tificado pelas notas de dinheiro e os outros objetos dos quais se fazem
acompanhar. O poder econômico é geralmente detido pelo homem, uma
ideia com a qual se é socializado. Assim, dois filhos de Catra, um rapaz
e uma moça com idades muito próximas, possuem autonomias diferen-
tes. O primeiro possui dinheiro para pagar a escova que uma potencial

268
adereços masculinos e relações de gênero

namorada quer fazer em seus cabelos, já a segunda deve pedir ao pai


autorização e dinheiro para ir ao salão cuidar de seus cabelos.
Na música abaixo, Catra fala do modo ambíguo como ele e outros
homens se relacionam com o potencial de atração que o poder monetá-
rio exerce sobre certas mulheres. Ao mesmo tempo em que ele diz que
se “libertou” da mulher “mercenária”, ele o faz rindo de si mesmo e em
uma versão recente da mesma música diz que “todo mundo tem a sua
mercenária”. É interessante notar ainda que o termo “peças”, que na letra
faz referência às joias de ouro como as que ele, KC e o outro rapaz usa-
vam no Baile da Mangueira, é denominação também para as armas de
fogo. A associação relaciona poder financeiro, potência sexual e poderio
bélico. A música de Catra é antiga, tem cerca de dez anos, mas a asso-
ciação permanece. Hoje, em 2010, uma outra música, de autor diferente,
hit nos bailes, possui refrão com base na mesma analogia: “é só pentada
violenta”. “Pentada” deriva do pente de balas, que é descarregado através
dos tiros de fuzil ou da atividade do órgão sexual masculino. E antes do
“pentada” existiu o “toma”, presente tanto em canções “eróticas” como
nas ditas “violentas”. O que estas associações nos dizem, contudo, é que
o erótico e o violento podem ser pensados não como aspectos diferen-
ciados mas em uma mesma chave.

[Então, meus amigos. Por favor, prestem atenção. A gente sofre pra cara-
lho, plantando, correndo pra lá e pra cá... e ela vem e leva o lucro! Leva o
malote, irmão. Então, por favor... por favor, DJ. Por favor...]
Irmãos, cuidado...
[Ela gosta de lanche do Bob’s. Lanche do Bob’s, quer toda hora, Bob’s. Quer
ir pro mirante, toda hora! Cento e cinquenta suíte!]
Que ela quer o seu malote
O que ela quer
Ela quer o seu malote
Atividade meu mano
Humildemente,
Eu me libertei!
Mercenária
Mercenária
Eu não sou um canguru
E você não está na Austrália

269
a estética funk carioca

Ela é sanguessuga
Tá pronta pra te dar o bote
Eu vou te dar um papo
Tá de olho no seu malote

Fica toda excitada


Doida para dar no couro
Quando bate de frente
Com tuas peças de outro

A libido sem
Safadeza é sua sina
E fica molhadinha
Quando sente cheiro de gasolina

Mercenária
Mercenária
Eu não sou um canguru
E você não está na Austrália

Se liga sangue bom


Ela raspa o seu bolso
E só te larga depois que te deixa no osso

Danadinha
Dá até sair sangue
Só pra comprar
Aquele traje da Gang

Tá bom, tá bom
Ficou ruim a coisa ficou feia
Se tu rodar
Ela te abandona na cadeia

Mercenária
Mercenária
Eu não sou um canguru
E você não está na Austrália14

O sol já está alto na Mangueira e penso que gostaria de ir embora,


mas Cíntia quer ainda aguardar por Catra e “as crianças”, os dois filhos
mais velhos do MC que vieram conosco, para colocá-los “na direção

14 Mercenária, de Mr. Catra. Esta música possui três diferentes versões. A letra que transcrevo
mescla as duas versões, ambas antigas, de modo a mostrar o modo jocoso e ambíguo com que
os homens se relacionam com a “mercenária”.

270
adereços masculinos e relações de gênero

de casa”. Diz que fica preocupada com Catra “e esses ouros todos”.
Mas logo partimos. Catra segue com os filhos na direção de sua casa
e eu sigo com Cíntia para Ipanema, onde a deixarei antes de ir para
minha casa. No carro ela fala satisfeita que Catra lhe pagou o salário da
semana, explicando que ele lhe entregou o dinheiro “no talento”, discre-
tamente, sem fazer alarde. E contente elogia-o, dizendo que ele a “apa-
drinha” para que ela, por sua vez, possa “apadrinhar” a filha dele. Com
o dinheiro que dele recebe ela pode comprar os presentes que dá à sua
afilhada, a pequena Noemi, e manter a relação de apadrinhamento que
a une à família. Mas o “no talento” de Cíntia nos fala ainda sobre uma
certa economia de gestos e palavras que coexiste com e parece mesmo
ser complementar à ostensividade dos objetos e ao modo como eles são
empregados, o que ficaria mais claro em mais uma noite, quando Cíntia
contava-me sobre a diferença entre o “escandaloso” e o “presepeiro”. A
narrativa a seguir nos dará ainda a oportunidade de conhecermos um
pouco do universo particular de Cíntia.

o “presepeiro” e o “escandaloso”
Havíamos deixado juntas Vargem Grande e seguíramos para a sua casa
em Ipanema. Eu saíra cedo da minha casa sabendo que a tão esperada
festa do amigo bicheiro aconteceria mais tarde, mas como não havia
conseguido falar com ninguém com antecedência, segui para Vargem
Grande com uma roupa de festa no porta-malas de meu carro, o que
muita graça causou em Cíntia. Mais tarde ela diria a Thamyris, que rea-
gira surpresa ao saber que eu “subira o Galo”: “Você precisa ver como
ela é danada. Veio até com roupa no carro”. Cíntia, por sua vez, deixara a
casa de Sílvia carregando o vestido que pegara emprestado a Thamyris,
mas queria “ir em casa” pegar seus “sapatinhos”.
Subimos o Galo pela entrada de Ipanema, e Cíntia pediu-me que
eu deixasse o farol do carro no modo lanterna, com a recomendação de
subir a ladeira que corta o morro, com a marcha na primeira posição.
Passamos por um grupo de jovens rapazes. Eles sorriem para ela, que,
por sua vez, lhes retribui com um sorriso malicioso e um meneio com
a cabeça que indica concordância com algo. Penso que ela é a perfeita
tradução da carioca que com seu jeitinho consegue o que quer. E era

271
a estética funk carioca

isso que os sorrisos marotos daqueles meninos pareciam dizer, que ela
sempre encontrava um modo de “se dar bem”, de usufruir das boas coisas
da vida sem ter que se submeter excessivamente às suas regras. Enfim,
Cíntia era “malandra” e o seu sorriso em retorno dizia que ela era mesmo.
Passamos pela quadra de esportes de onde vem o som de uma bate-
ria de escola de samba. Estacionamos o carro no alto do morro, perto do
“Criança Esperança”, a sede do projeto da Rede Globo de Televisão que
ambiciona “transformar a vida das crianças e jovens brasileiros”. Cíntia
desce do carro e pergunta à “tiazinha”, que está dentro de uma banca
em frente à vaga onde colocaríamos o carro, se a atrapalharíamos. A
senhora pergunta se demoraremos a retirar o carro, e Cíntia diz que
levaremos apenas “meia-hora”, e ela diz que então está “tudo bem”. Mas,
depois de já havermos deixado o carro a “tiazinha” quer agora que o
estacionemos de um modo que lhe parece mais adequado, pois atra-
palharíamos a eventual passagem de um caminhão para o canteiro de
obras do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento do governo
federal. Cíntia e eu sabemos que àquela hora nenhum caminhão passará
por ali, mas achamos melhor mover o carro.
Vamos descendo a pé a Ladeira Saint Roman, a principal via de
acesso ao Morro do Cantagalo, em direção à casa de Cíntia. Viramos em
uma ruela à direita e começamos a entrar em um cenário muito dife-
rente do de ar precário e decadente, trash, que acabáramos de deixar. Já
era noite, e as casas, talvez pela iluminação elétrica pouco feérica, pare-
ciam ter a mesma coloração cinza do concreto que revestia as ruelas e
suas laterais. Vermos no horizonte próximo que estávamos no alto de
uma montanha tornava a paisagem escura e monocromática com um
aspecto lunar, espacial. Tudo era muito simples e silencioso.
Continuamos andando, e um rapaz se aproxima, vindo de trás. É
um mulato magrinho, talvez de bigode, vestindo “blusa de time” larga,
bermuda igualmente solta em seu corpo e calçando chinelo de dedo.
Sobre uma de suas mãos ele equilibra uma embalagem cartonada de
pizza, como faria um garçom ao segurar uma bandeja. Cíntia para para
falar com ele e lhe pergunta algo como “pizza pras crianças...?”. Ele res-
ponde positivamente e lhe oferece um pedaço do petisco. Eu a observo,
curiosa para ver como ela se sairá. Cíntia levanta a tampa da caixa de
pizza com uma das mãos e retira uma de suas fatias. Mas não a pega

272
adereços masculinos e relações de gênero

toda para si, rasga, outrossim, uma tira de sua extensão. O rapaz oferece
a pizza a mim também, eu agradeço, mas não me sirvo. Ele segue na
nossa frente com passo acelerado e Cíntia vai usufruindo de sua porção.
Entramos à esquerda, subimos alguns degraus que logo nos deixam
na casa de Cíntia. Entramos pela sala, onde estão dispostas, lado a lado,
duas cadeiras de estrutura de metal tubular pintado de vinho e, perpen-
dicular a estas, um sofá de dois lugares. Ao fundo, com a luz apagada,
parece estar a cozinha, e ao lado desta vejo a porta do banheiro. No alto
da porta de entrada, do lado de dentro da casa, há uma imagem em três
dimensões de São Jorge sobre seu cavalo branco. Cíntia diz que irá “colo-
car um som do Negão”, e coloca uma música gravada em Paris com um
artista senegalês, faixa do CD de hip-hop que ficou recentemente pronto.15
Ela me chama para irmos para seu quarto e subindo as escadas bato com
o topo de minha cabeça na laje do segundo andar da casa. Cíntia olha-
me sem nada dizer. Passamos por uma sala antes de entrar em seu quarto
que, ela nota, está com a lâmpada queimada. Isto muito a irrita, pois quer
pranchar os cabelos e precisa de alguma iluminação. Ela cogita descer
para retirar a lâmpada de um dos cômodos inferiores, mas resolve o seu
problema ligando a televisão que ilumina o quarto suficientemente.
Começamos a nos vestir, e coloco o vestido que trouxera em meu
carro acompanhado de um par de leggings. Cíntia, quando eu lhe disse
que meu vestido era preto, achou ótima a escolha, pois era véspera de
Halloween e o vestido que ela usaria era igualmente preto, acrescentando
que “a ideia” era todos irem de preto naquela noite. Mas já vestida noto
que minha produção não lhe agrada, e ela logo diz que não é preciso colo-
car as leggings que eu visto. Eu lhe disse que o vestido era curto demais, e
tiro as leggings para que ela avalie. Ela diz que “assim está muito melhor”,
que o vestido não era “nada muito curto” e que a faixa que eu colocara
na cintura já estava “dando um pan”. Eu argumentei dizendo que meu
“marido” não acharia graça nenhuma em me ver chegando com o dia
claro e as pernas de fora daquele jeito. Rapidamente, ela retrucou dizendo
que então eu colocasse as leggings antes de entrar em casa, porque “nin-
guém precisa arrumar confusão com marido por conta de roupa”.

15 “May Day”, de Mr. Catra e outros.

273
a estética funk carioca

Cíntia prancha os cabelos com bastante cuidado, olhando-se no


espelho que fica sobre a porta do armário em seu quarto. Gosta de seus
cabelos bem lisos e reclama que precisa fazer nova “progressiva”, pois
nem a prancha consegue manter baixa a raiz de seu cabelo, explica.
Pergunta-me então se eu sei onde está o seu vestido e pede-me que o
traga até ela. É um vestido preto de malha pesada, saia godê que parte
do busto e decote nas costas do tipo “nadador”. A frente da roupa tem
“decote em U” e sem mangas, toda aplicada de paetês pretos, grandes e
brilhosos, sobrepostos de maneira a formar o efeito de escama. O seu
sutiã, na verdade um top, como ela diz, possui alças grossas que saem de
baixo do vestido, sobem pelos ombros de Cíntia e são amarradas atrás
de seu pescoço, ficando à mostra. Ela me pergunta se “ficou feio”. Eu
digo que não, que ficou parecendo um detalhe da própria roupa, e ela
diz que era essa a intenção. O termo “bonito” não é muito utilizado. Não
costuma perguntar-se ou afirmar que algo ficou “bonito”, mas usa-se o
“não ficou feio”. Pode-se ainda dizer, em sinal de aprovação, que “ficou
na moral”, mas evita-se o uso do “bonito”.
Por fim, Cíntia calça seu “sapatinho”: um modelo do tipo “boneca”
com ar retrô, como das melindrosas dos anos 1930, mas de salto ana-
bela. O seu sapato é revestido de material acamurçado em tom vinho e
é produzido pela Grendene, fabricante nacional de calçados plásticos,
detentora da marca Melissa, que vem adquirindo status de marca cult
e possui grande projeção no exterior.16 Ela diz que gosta muito deles, e
fala com carinho.
Resolvemos descer para o banheiro para nos maquiarmos, mas
antes ela me chama: “vem ver a minha laje”. Subimos alguns degraus e
chegamos ao teto de sua casa, onde estão ao fundo duas caixas d’água.
A vista que se tem é curiosa. De frente está um grande e alto edifício de
apartamentos, que se ergue da rua Barão da Torre e é um pouco mais
alto do que o morro. A sua fachada é sinuosa e muito ampla, larga, o que

16 A Melissa licencia ainda marcas europeias, como a inglesa Vivienne Westwood, mesmo nome
de sua estilista-chefe, associada ao estilo punk transgressor e nome hegemônico da indústria
da moda. Desse modo, o mesmo sapato em versão plástica vendido no Brasil e na Europa é
encontrado em sua versão de couro nas vitrines inglesas, como eu pessoalmente vi durante
meu doutorado-sanduíche.

274
adereços masculinos e relações de gênero

impede que, daquela perspectiva, a favela e o bairro de Ipanema se entre-


vejam. O restante da vista da laje de Cíntia se volta para a própria favela.
Eu me maquio rapidamente, pois Cíntia espera que eu termine para
que ela possa usar o espelho que fica sobre a porta do pequeno armário
sobre a parede do banheiro. Abaixo está a pia e ao seu lado um gaveteiro
de plástico branco. Eu lhe ofereço a maquiagem que trouxera: base, más-
cara, lápis e blush, que eu aprendera a usar com a própria Cíntia, em uma
outra noite em que saíra com Thamyris de Vargem Grande. E nesta noite
aprendo com ela novos “truques de maquiagem”. Ela acha graça no fato
de que a ofereço “base”, e me pergunta se eu já vi “quanta coisa ela passa
na cara”. Mas mesmo assim usa a minha base, que ela diz ser mais um
“corretivo”, pois as bases possuem uma cor mais escura, diz. Em seguida
ela passa sombra, máscara, lápis na parte inferior interna do olho, e com
o mesmo lápis marrom faz o contorno dos lábios, que é suavizado com
o próprio dedo. Não usa batom, diz, só “gloss”, brilho labial, que passa
em seguida. Também com o lápis ela faz duas pintas: uma na junção do
nariz com o início da bochecha e outra no canto inferior do lábio. Me
explica que são pintas que já possui e que só as realça. Apaga com o dedo
os sinais feitos pelo lápis, me mostra as pintas originais e os refaz.
Agora é a vez de Cíntia pedir minha opinião em relação ao cumpri-
mento de sua roupa. Eu lhe digo que sim, que seu vestido me parece um
pouco longo. Ela pega o alto da saia, e dobra-a prendendo-a por baixo
do sutiã que está sob o vestido. Já estamos próximas da porta para sair, e
Cíntia decide passar um esmalte incolor sobre suas unhas. Ela comenta
que as roeu e que estavam mais longas, e eu digo que suas unhas não
possuem aspecto de roídas, que geralmente ficam machucadas e com
peles soltas à volta. Ela reage dizendo que “também não é assim!”, acres-
centando que “rói no talento”. Partimos. Vamos andando pelas ruelas
que parecem passarelas que flutuam sobre o ar. Passamos pelos mesmos
meninos que acenaram para Cíntia ao chegarmos. Da quadra de espor-
tes chega agora o som de uma música funk.

Cíntia e eu aguardamos por Negão em frente à boate Katmandu, em


Ipanema, onde ele fará um show antes de seguir para a festa de Luizinho,
que será na badalada The Week, clube noturno de grandes proporções,
localizado na Zona Central da cidade, originalmente voltado para o

275
a estética funk carioca

público gay e que se converteu em reduto cosmopolita da música ele-


trônica, onde Catra também faria uma pequena apresentação. Como ele
demora mais do que o esperado, eu e Cíntia decidimos aguardar senta-
das no carro enquanto conversamos. Ela se senta no lugar do motorista
e pede que eu tire algumas fotos suas, para colocar em seu Orkut. Diz
que ficará com “cara de rica”.

Cíntia, descrevendo Luizinho, que até então eu vira uma única vez,
diz que não gosta de “homem perigoso” e que ele é do tipo “escandaloso”.
Peço-lhe que me detalhe melhor o que quer dizer com “escandaloso”, o
que ela faz por contraste ao “presepeiro”, como seria Catra. Ela explica
que este age como aquele que é “o cara”, como quem é seguro de si.
Se você lhe fala, continua Cíntia, “me dá aí cinco contos pra eu com-
prar ali alguma coisa para eu beber”, Catra irá “desfolhar todo aquele
dinheiro”, e Cíntia o imita calmamente passando os dedos pelas notas
de dinheiro. Acrescenta que ele fará isso “de preferência” com a mão
posicionada de modo que os seus anéis fiquem bem no seu campo de
visão, e imita-o, movimentando as mãos de tal modo que os seus anéis
de ouro ficam na altura de nossos olhos. Exatamente como ele fizera ao
se colocar ao meu lado quando estávamos em frente à agência do Banco
do Brasil, no Recreio dos Bandeirantes, ou quando pagara o guardador

276
adereços masculinos e relações de gênero

de carros à entrada do baile na Mangueira ou ainda quando se posicio-


nara em frente aos “vapores”, também na Mangueira.
Catra, continua Cíntia, faz “tudo isso”, “desfolha todo aquele
dinheiro”, para tirar dele uma nota de dez reais e dar à pessoa para que
ela mesma compre a bebida que quer. Já o “escandaloso”, segue Cíntia,
iria “gritar pra todo mundo ouvir que ele está te pagando a bebida”. Então
ela simula como agiria Luizinho, que diria: “vai lá minha filha, pega a
bebida!”. Ou chamaria o garçom: “aqui, ô garçom, traz uma bebida pra
ela aqui!”, gesticulando, apontando “pra mina” e “gritando”. Luizinho,
talvez por dominar menos intensamente o significado e os efeitos que
podem causar os objetos, recorre às palavras e aos gestos para fazer uma
explicitação excessiva e escandalosa de seu poder.

Pois o modo de um e outro se apresentar também varia, como dizia


Sílvia em outra ocasião. Desta vez Catra separava a roupa que usaria na
“festa da Gisele Bündchen”, a modelo brasileira de carreira internacio-
nal, que aconteceria na mesma The Week, por ocasião do Fashion Rio, a
semana de lançamentos de moda da cidade. Catra parecia um tanto des-
lumbrado com o convite que recebera e pedia a opinião de seus parceiros
sobre que roupa deveria usar. Ele aproveita para “gastar” Sílvia, falando em
tom de esnobação que iria para o “Fashion Week”. Ela entre aborrecida e
brincalhona diz que veio de “Bangu”, que já viu a “lama” e que não entende
desses assuntos mas, diz, o chapéu que lhe sugerem que use “não tem nada
a ver”. Ele pede a ela que lhe separe então a sua camisa de manga longa,
e leva a mão ao punho mostrando o seu comprimento. Sílvia, um tanto

277
a estética funk carioca

irritada com a insegurança do marido para escolher sua vestimenta, lhe


pergunta para que ele vai de “bicheiro” se “já é o cara”, e para que precisa
“vestir uma blusa cheia de correntes se todo mundo já sabe que ele é acor-
rentado?”, está sempre adornado por peças de outro. Eu já o vira usando a
tal camisa, que era em tecido de algodão azulão estampado por correntes
em amarelo ouro. Catra cede, mas diz que vestirá “ouro e preto” e pede que
separe duas de suas blusas t-shirts que possuem esta combinação.
Mas se aquele que é “o cara” e o que é “bicheiro” possuem gostos e
gestuais distintos, o modo como ambos se relacionam com as mulheres
e o dinheiro não é tão diferenciado, como canta Catra na música em que
homenageia Luizinho e outros de seus colegas. Ao parodiar a música
funk “De Sainha”, do grupo Gaiola das Popozudas, transcrita parcial-
mente no capítulo 5, a peça de roupa feminina que viabiliza o poder
do feminino, como expresso na letra, é substituída pelas máquinas de
pôquer, objeto gerador de grande parte da renda dos bicheiros e que
potencializa o masculino.
Eu fiz essa canção
Com a maior saudade
Do João Ratão, Seu Miro
E do Castor de Andrade

Vou te dar um papo


Cê tem que ser blindão
Crime é crime
Contravenção, contravenção

Crime é crime
Não é contravenção
Esse é o regime
Respeito e blindão

Tu tem que ser disciplinado


Para poder desfrutar
Dos carro importado
E vários fardo pa gastar

Pois cada um tem seu harém


Mas sem perder a linha
O lucro é garantido
No talão, na maquininha

278
adereços masculinos e relações de gênero

Se liga sujeito
Respeito é bom se ligar
Agora eu sou bicheiro
E ninguém vai me segurar

Eu fiz essa canção


Com maior saudade
Do João Ratão, Seu Miro
E do Castor de Andrade

Vou te dar um papo


Cê tem que ser blindão
Crime é crime
Contravenção, contravenção

Minha maquininha
Agora eu sou bicheiro
E ninguém vai me segurar
Olha o respeito

Mulheres gostam de dinheiro


Mas não se esquecem dos valores
Mulheres gostam de conforto
Mas não se esquecem dos amores

Mas o que elas querem mesmo


É o quê?
É o quê?
É o bonde dos contraventores

É dinheiro na laje
No chão
Na parede
Dinheiro pa cacete

Eu fiz essa canção


Com a maior saudade
Do João Ratão, Seu Miro
E do Castor de Andrade

Vou te dar um papo


Cê tem que ser blindão
Crime é crime
Contravenção, contravenção17

17 “Contravenção”, de Mr. Catra.

279
a estética funk carioca

as diferenças entre o homem e a mulher


Catra canta que é preciso ser disciplinado, “ter blindão”, ter conduta reta,
direita, para poder administrar tanto dinheiro e tantas mulheres. Em
suma, diz ele, não é fácil assumir a responsabilidade que envolve a vida
que escolhem. E essa conduta estreita, o “proceder”, que rege como um
“sente” que é correto agir, é acompanhado da estética relativamente ascé-
tica ilustrada pela citação ao início deste capítulo através da qual intro-
duzo a análise sobre o gosto indumentário dos rapazes. Retornemos à
sua percepção sobre os cabelos ornamentadores.
Ele começa argumentando que é por ser “nacionalista” que não os
aprecia, pois são “muito norte-americanos”, são “gringos demais”. Volto
então ao tênis Nike que ele acabara de me mostrar, orgulhoso, e que teria
sido concebido após um show em Berlim, quando conheceu uma desig-
ner da empresa de calçados esportivos.

280
adereços masculinos e relações de gênero

Pergunto se eles não são gringos também. Ele contra-argumenta


que os tênis são da marca norte-americana, mas fabricados na China,
em sua lateral estão as iniciais RJ, de Rio de Janeiro, e em sua frente
está gravado Mr. Catra. Pergunto-lhe então porque é que ele pensa que
os cabelos também não podem ser RJ, locais. Ele diz que “pode”, mas
que aqueles que os portam cantam “uma outra conversa” e trata-se de
uma questão de estilo: “é um estilo outro”. Menciono então o Bonde
da Oskley, que alude à marca ipanemense Osklen que caiu no gosto
da juventude carioca, seja ela favelada ou da “pista”. Catra demonstra
desprezo por eles: “eu não sei quem é Oskley, quem é Zoskley”. Vagner,
DJ do Jacaré, explica que é uma marca de roupas. Mr. Catra começa a
rir: “Tu ia me considerar se eu me chamasse Mr. Levi’s?”. Ele insiste,
gargalhando: “Tu ia me considerar do mesmo jeito se eu me chamasse
Mr. Nike?”. E além do nome há os cabelos, que em si fazem a diferença,
independentemente do que cantam: “Mas já é diferente, porque quem
tem cabelo preto, tem cabelo preto, quem tem cabelo descolorido, tem
cabelo descolorido. Não é igual. Você não vai me dizer que é a mesma
coisa que não é. Tô errado?”. É ele agora quem insiste: “Qual foi o preto
que nasceu de cabelo loiro, filha? Pelo amor de Deus! Onde foi que você
viu isso?! Me mostra um”. Argumento que no baile não faltam moças
com os cabelos tingidos de loiro, e aí ele lança o seu argumento final:
Mas mulher pode tudo... Mulher tem direito de fazer o que quiser... Pintar
[o cabelo] até de rosa... Mulher é mulher. Elas têm o direito de tudo...
Homem não tem direito. Homem não tem direito de nada. Homem tem
direito de trabalhar e ficar na moral. Viver na moral que não dói. E já tá bão.

Sabrina, à época produtora dos shows de Catra, entra na conversa


pra dizer que quem usa esses cabelos são bondes de “rebolação”. E Mr.
Catra enfatiza: “A gente não rebola. A gente não rebola”. Sílvia, do meza-
nino que leva ao quarto do casal, faz a sua breve e definitiva intervenção:
“Resumindo. Não tem veado”.
Os “bondes”, que podem se compostos e liderados por mulheres,
são grupos formados por um MC e três ou quatro dançarinos. Estes
últimos se esmeram no rebolado, muitas vezes retirando suas blusas e
simulando strip-tease. As moças, na plateia, ficam muito excitadas, e
aproveitam a oportunidade para tocar os rapazes, sobre suas roupas,

281
a estética funk carioca

preferencialmente em suas nádegas e áreas genitais. Sílvia tem a mesma


concepção que o marido: rebolar é para mulheres e não para homens.
De fato, os homens que rebolam na festa, como parcela de sua audiência,
são os “bombados” que, como mostrei, podem ser apreendidos como
híbridos das estéticas corporais feminina e masculina. Os “magrim”, ou
os “funkeiros”, realizam ao dançar movimentos retos e angulosos, que
apresentam continuidade com sua silhueta igualmente angulosa e ao
mesmo tempo se opõem aos movimentos sinuosos e corpos redondos
das moças (Mizrahi, 2006b, 2007a, 2008a, 2009a, 2009b, 2010a).
Vianna (2003) – a partir de Sansone (Herschmann & Freire
Filho, 1997 apud Vianna, 2003), que identifica no Rio de Janeiro uma
postura corporal “mais controlada, afinada e sinuosa”, representada pelo
“samba no pé” em contraste com o “samba na bunda”, caracterizado
pelo “requebrado, o rebolado e o jogo de cintura”, que predominaria em
Salvador – baseia-se na performance dos dançarinos dos bondes para
defender que no funk é produzida uma “sensualidade unissex” (Vianna,
2003, p. 115). A partir da etnografia que apresento, vemos, contudo, que
a sensualidade expressa pelos “bondes de rebolação” constitui mais uma
exceção na festa do que a manifestação de um costume generalizado.
A encenação que ocorre no palco não se reproduz pela audiência mas-
culina do mesmo modo como ocorre com as dançarinas profissionais
que acompanham os MCs femininos ou masculinos. Os frequentadores
do baile que rebolam são os “bombados”, que estão longe de constituir
maioria na festa. Chamam atenção mais por sua peculiaridade do que
por sua presença maciça. Além disso, as estéticas corporal e indumen-
tária dos dançarinos dos bondes é muito próxima das que apresentam
os “magrim”: usam cabelos adornados e, apesar de possuírem músculos
mais definidos, permanecem magros. O que estes dançarinos parecem
fazer é ousar exibir uma sensualidade no palco que não é permitida ao
seu correlato desempenhar quando se encontra fora do palco. Desse
modo, se aproximam da noção de masculinidade de Catra e de seus par-
ceiros: homem tem que “ficar na moral” e não pode “perder a linha”.
Mas se rebolar surge como uma atividade mais feminina, o mesmo
tipo de classificação exclusivista não se desdobra para organizar outras
marcações de gênero. Fry (1982a) identifica na década de 1980 na

282
adereços masculinos e relações de gênero

periferia da cidade de Belém papéis de gênero organizados a partir de


um polo sexualmente “passivo” feminino e outro “ativo” masculino, que
adquiririam ainda os sentidos de “dominação” e “submissão”. Ao gênero
masculino caberia idealmente o papel de dominar aquele que desem-
penha o gênero feminino, como está a “bicha” na área cultural pesqui-
sada. Don Kulick (2008) identifica o mesmo tipo de separação de papéis
de gênero onde a atividade sexualmente ativa de “comer”, ou penetrar
sexualmente, caberia ao polo masculino, enquanto “dar”, ou ser pene-
trado, caberia ao polo feminino e passivo da relação entre travestis de
Salvador, marcada igualmente por relações de poderio financeiro. Por
outro lado, se o universo funk pode ser lido a partir de relações tradi-
cionais entre os gêneros, este mesmo universo é possibilitador de uma
leitura mais subversiva. Pois a sobreposição entre dominação e sexuali-
dades mais ou menos ativas não é tão definitiva no funk. A mulher, fala-
se no palco e fora dele, “come” e “dá”, de modo que relações tradicionais
entre os gêneros não significam, no que toca a sexualidade, ausência de
agência nem tampouco a subjugação de um polo pelo outro.
De um lado, não é permitido às mulheres acumular os papéis de
“esposa” – a mulher “de fé” com quem, contudo, não é preciso estabele-
cer matrimônio legal –, “amante” – aquela com quem se mantém uma
relação extraconjugal relativamente duradoura – e “piranha” – com
quem se tem uma relação extraconjugal fortuita – enquanto os homens
não são organizados da mesma maneira. Mr. Catra, por exemplo, anun-
ciou no estúdio, como vimos no capítulo 4, que naquele dia estava
“facim”, disponível para os jogos sexuais extraconjugais. Pode assim
ser “marido” e “prostituto”, esta última uma denominação que pode
ter emprego pejorativo e não conota o sexo pago mas os homens que o
fazem indiscriminadamente, aqueles “fáceis”. Cabe ao homem, como vi
entre os parceiros de Catra, verbalizar as muitas mulheres com as quais
se diz relacionar, esteja ele casado ou não. Catra de fato possui muitos
filhos gerados com diferentes mães, aspecto que discuti no capítulo 2, e
elabora criativamente sobre essa ideologia masculina, reforçando-a com
as declarações públicas que concede aos meios de comunicação, dando
conta dos diversos e simultâneos matrimônios que manteria.18

18 Ver Bressane e Lessa (2009).

283
a estética funk carioca

A retórica que vincula masculinidade e relação com múltiplas


mulheres está presente em diversas músicas. Uma delas se tornou um
clássico que, por sua vez, dentro da lógica das imagens e contra ima-
gens que rege o funk, como venho mostrando, gerou uma “resposta” do
feminino. Esta última é muito apreciada pelas moças do baile, por as
defender perante os homens que “esculacham as mulheres”.

Tu é uma mina fiel


Valeu, o maior orgulho
Mas tu mexeu com as nossa amante
Eu tô comprando esse barulho
Se liga no meu papo
Que é tão interessante
Um homem de verdade
Tem que tê uma amante
Tem que tê
Tem que tê
Tem que tê
uma amante [...]19

***

O amigo deu papo


Que é muito interessante
Ele disse que um homem
Tem que tê uma amante
Se liga aí amiga
No que a Gaiola vai falá
Mulher de verdade
Qué um otário pra bancá [...]20

Na primeira música o cantor defende que o homem verdadeiro


tem que ter “muitas amantes”, arrolando outras categorias de mulher,
como a “fiel”, a “solteira” e a “mamada”. Refaz assim as classificações que
separam as mulheres em diferentes tipos que por sua vez relacionam
papéis que não devem ser sobrepostos. Pois, de fato, não é socialmente

19 “Tem que ter uma amante”, de MC Mascote.


20 “Um otário pra bancar”, do grupo Gaiola das Popozudas.

284
adereços masculinos e relações de gênero

franqueado a uma mulher casada o mesmo tipo de comportamento que


ao homem, que, se não o exerce, é permitido e valorizado que fale que o
faz. Além disso, se a mulher estabelece relações fora do casamento isso
deve ser feito de modo velado, não deve ser compartilhado em conver-
sas intra gênero e pertence ao campo da transgressão. Liberdade similar
à do homem terá talvez a “piranha”, que deve ser diferenciada da “pros-
tituta”, terminologia que designa a profissional do sexo.
Mas na peça seguinte a MC avisa que esse “homem de verdade”
não passa de mais um “otário” a fazer as vontades das mulheres. Esta
segunda música alude à fluidez com que as relações se dão. Pois, mesmo
na festa, aquela que o homem pensa ser uma amante potencial pode ser
também uma moça que o usará para conseguir o que quer e ao fim da
noite o deixar “na pista”, deixar o homem “a ver navios”, como se dizia.21
Dessa perspectiva, me parece ser possível ler agentividade do femi-
nino mais do que a sua subjugação por um polo masculino dominante
em representações consideradas como demonstrações de uma cultura
machista. Cechetto e Farias (1999), por exemplo, a partir da leitura da
letra da música “Capu de Fusca”, de Mr. Catra, identificam a mesma
como expressão de uma ideologia misógina. O que a letra diz literal-
mente, contudo, é que uma “gatinha”, uma mulher agradável, “assusta”,
portanto coloca em posição vulnerável, o homem a quem mostra o seu
“capu de fusca”, o seu órgão genital.22 Como coloca o famoso refrão, é
“pau na buceta, buceta no pau”. Ambos são agentes.
Parece ser essa complementaridade que tem unido em performan-
ces Mr. Catra e Valeska, a cantora da Gaiola das Popozudas. Se ele afirma
o poder da “piroca”, o que, no entanto, não o vi explicitar para o grande
público, Valeska sobe ao palco e grita de seu microfone para a sua audiên-
cia, múltipla como a de Catra, que “o poder da mulher tá na buceta!”.

21 A “periguete” – personagem surgida em um reggaeton baiano – foi incorporada ao repertório


funk e reflete esta fluidez. A moça é descrita como aquela que se deixa atrair pelo homem que
tem dinheiro, mas, diz o cantor, ela “não é amante, não é prostituta”, é ao mesmo tempo “fiel”,
o equivalente da esposa, e “substituta”, a que substitui a esposa.
22 Ver música Capu de fusca à página 184.

285
a estética funk carioca

A MC Kátia verbaliza de modo análogo em suas músicas a potência


do feminino.
Ex é sempre ex
Você foi caso antigo
Eu não tenho culpa
Se gamou na minha xóta
[Fazê o quê, né?] [...]23

É em relação a essa essencialização feita pela hiper-realista música


funk que deve ser entendido o aspecto desambiguizador e complemen-
tar que possuem as estéticas corporal feminina e masculina ao se encon-
trarem. Pois, com as muitas assimetrias que vemos, as relações entre
homens e mulheres pareceram-me, em diversas ocasiões, igualitárias.
Diferença aqui nem sempre foi sinônimo de dominação, mas modos dis-
tintos de ser que em certos momentos se aproximavam. E o mundo femi-
nino continente do masculino mostrou-se também independente dele.
Penso que era isso que Sílvia comunicava quando, após o banho
que tomara ao fim de mais um dia, desceu as escadas de seu quarto
em direção à sala, cheirosa, com seus cabelos longos molhados, pen-
teados e soltos. Sílvia estava em período intermediário de sua gesta-
ção e vinha alternando o uso de vestidos soltos com as bermudas e

23 “Ex é sempre ex”, de MC Kátia.

286
adereços masculinos e relações de gênero

calças que pegava no armário do marido. Nesta tarde ela veio de seu
quarto vestindo uma justa blusa regata, dobrada no alto de sua barriga,
acompanhada de uma parte de baixo que parecia ser de Catra. Ela se
senta à cabeceira da mesa de jantar, acende
seu cigarro artesanal, levanta a tampa de seu
laptop e me chama para que eu veja algumas
fotografias. A imagem que ilustra o plano de
fundo de seu desktop é composta por uma
única fotografia que está multiplicada nove
ou doze vezes, mas formando um quadro
só. Uma imagem refratada, como a holográfica, mas cujas partes são
idênticas. A foto, em preto e branco, mostra ela e Catra do busto pra
cima. Ele veste uma blusa t-shirt escura e não está especialmente ador-
nado. Sílvia tampouco está ornamentada. Está sem as suas extensões de
cabelo e provavelmente não calça sapato de salto alto, pois aparenta a
mesma altura que o marido, que não é muito alto, para padrões mas-
culinos. Já Sílvia é sim alta para padrões femininos. Estão próximos,
lado a lado, mas não abraçados. Um posicionado em diagonal ao outro,
talvez se tocando pelos ombros, sérios e sem sorrir. Ela, em especial,
possui um ar levemente desafiador.

“chapa quente é bico pro alto”


A narrativa que compôs este capítulo foi desencadeada pelos tiros dados
na noite de festa no Morro do Borel. Já no dia em que amanhecemos no
baile da Mangueira não houveram tiros, ao menos não enquanto esti-
vemos lá, mas pude sim ver armas. De onde “dançávamos e bebíamos”
víamos também o garoto que subia e descia a rua com seu fuzil para
o alto e, em vez do medo que senti ao início, desta vez pude perceber
as armas como um adorno. Um adorno poderoso, e é deste ponto que
gostaria de partir para algumas reflexões adicionais sobre a agência e
significação dos objetos.
Ao início vimos as balas disparadas pelos bandidos da favela da
Tijuca colocarem em jogo medo e fascínio. Ao abreviar a minha saída da
festa, o medo deixou evidente o meu não domínio daquele mundo bem
como o meu não pertencimento a ele. Era isto que Neuma comunicava
ao reclamar da amiga dizendo-lhe “nem parece cria”. O excessivo medo

287
a estética funk carioca

de Maísa, dizia a amiga, só poderia ser aceito em alguém que não havia
sido socializado naquele mundo, opinião que Sílvia não compartilharia,
pois vimos em suas falas que o medo é justificado não apenas pelo desco-
nhecimento mas também pela experiência do perigo. A explicação que
deu-me Sílvia na tarde de seu aniversário torna evidente que os objetos
podem precipitar eventos que estão fora de nosso controle, trazendo con-
sequências imprevistas e, nesse sentido, revelam mais uma vez como os
objetos possuem agência própria. É essa ideia que está expressa através da
fala “tudo que sobe, desce”, proferida por Maísa e Pamela ao ouvirem os
primeiros tiros no Borel. Os objetos participam da vida social, precipitam
acontecimentos e refazem constantemente o social e a cultura.
As armas e os tiros presentificaram uma alteridade que até então eu
não pudera identificar e promoveram a tomada de consciência de uma
face nem sempre aparente da vida social carioca, que não estivera visível
nem ao acompanhar Catra nem ao frequentar o “baile de clube” em que
fiz minha pesquisa de mestrado, que aos poucos percebi que “fechava”
com a mesma facção a comandar o Borel e a Mangueira. De fato, a
primeira vez em que participei de um baile com a presença maciça de
armas foi ainda em outra ocasião, quando, cerca de catorze meses antes
do baile no Borel, Sílvia me iniciou em um “baile de favela” que, como
ela recorrentemente frisou, é “muito diferente” dos “bailes de asfalto”. E
a grande diferença esteve sempre evidenciada pelas armas e seus tiros.
Pois, socializados ou não entre as armas, são estes mesmos objetos
que continuam exercendo fascínio sobre os de dentro e os de fora. Na
noite em que encerraríamos na Mangueira, Cíntia, Luciana e Thamyris,
todas familiarizadas com a “realidade da favela”, comemoravam a che-
gada à festa onde poderiam “ouvir uns proibidos”, as músicas que pre-
sentificam através de suas letras e de sua musicalidade as ações ilegais
dos chefes bem como as armas e os tiros aos quais recorrem para exercer
o seu papel. Por sua vez, Dudu, produtor de alguns dos shows de Mr.
Catra, se utiliza dos “bicos para o alto”, os fuzis em riste, para descre-
ver aos “gringos” que muitas vezes ciceroneia o diferencial que poderão
encontrar em um baile funk na favela.
Seja através do som “real”, produzido efetivamente pelas armas
de fogo, seja através do som que é simulado através de sintetizadores e

288
adereços masculinos e relações de gênero

transformados em melodias musicais, estes projéteis presentificam e


conectam a “realidade da favela” a outros domínios da cidade. As armas
tornam, se não visualizáveis, ao menos imagináveis realidades que pode-
riam passar desapercebidas para a cidade como um todo. A partir da des-
crição etnográfica vimos isto ocorrer de duas formas: quando dentro do
táxi “explico” ao motorista o que ele escuta mas não vê e quando na casa
de Sílvia esta me explica o que poderia ainda haver ocorrido. Torna-se
claro que, se os tiros são uma ficção, no sentido que encenados, eles não
estão livres de agência. Os tiros falam de um mundo para outro, falam da
favela pra o asfalto, conectando-os ao mesmo tempo em que revelam os
seus limites.
O adorno é uma dimensão da prótese (Strathern, 2004 [1991])
que remete à “fabulação sobre o real” (Gonçalves, 2008). O garoto
subindo e descendo a rua do baile da Mangueira remete-me a um dos
“seguranças de cinquenta merréis” que, de acordo com Das Sete, cir-
culam pelo baile da favela “só pra falar que é nóis”. Dizer que “é nóis”
indica pertencimento ao Comando Vermelho, e a exposição ostensiva
de armas, de dinheiro, ouro e bebidas afirma o poderio da facção ao
mesmo tempo em que a torna ainda mais poderosa. A mesma ideia é
expressa pela frase que dá título a esta sessão: os fuzis para o alto mos-
tram o poder ao mesmo tempo em que empoderam os seus portadores.
Mas os fuzis para o alto causam também frisson, compõem a festa.
Tratar do adorno traz ainda uma dimensão outra, a das relações
de gênero. Pois, curiosamente, ao me propor a falar dos objetos mascu-
linos, objetivo inicial e fundamental deste capítulo, pretendia ater-me
a eles como o fiz com os objetos femininos no capítulo anterior, mas
isto, contudo, não tornou-se possível. Falar do mundo masculino gerou
a exigência de falar das mulheres, ao passo que foi-me possível escrever
todo um capítulo sobre a estética corporal feminina sem mencionar os
homens. Se “as mulheres já nascem veadas”, como disse Catra, ele, como
outros homens de seu universo, expõe o seu sucesso através dos objetos
e da estética que partilha com a favela: dinheiro, ouro, roupas, armas,
bebidas e, não menos importante, mulheres. A mulher ocupa então em
alguns momentos esse lugar de adorno, mas um adorno que é muito
mais do que o acessório, apêndice ou “operação exterior ao objeto” como

289
a estética funk carioca

coloca Paim (2000, p. 10) a propósito da era modernista. O adorno é


de fato o que dentro da lógica da prótese agrega valor e significado ao
corpo, estendendo suas capacidades e mostrando como noção de pes-
soa, corpo e objetos estão vinculados.
Desse modo, se nesse neste contexto é possível ler a mulher como
“coisificada” (Kopytoff, 1986, p. 65), ela não parece despida de identi-
dade social. Fica claro que é inerente ao estatuto de masculino se fazer
cercar por mulheres. O homem, para afirmar a sua masculinidade, pre-
cisa da mulher ao seu lado, esteja ela visibilizada ou presentificada atra-
vés das conversas solidárias. As mulheres, por sua vez, não necessitam
se fazer cercar de homens, não necessitam da presença física masculina
nem visibilizá-la ou presentificá-la para afirmar a sua feminilidade.
Esta diferença está inscrita no próprio modo como um e outro
gênero se relaciona com os adornos. Nos homens, vimos, o seu uso é
sempre ostensivo, seja entre aqueles que fazem de seus cabelos orna-
mentos seja entre os que escolhem fazê-lo em objetos exteriores ao
corpo. As mulheres por sua vez, dão menos destaque a estes, o que
não é o mesmo que dizer que invistam menos neles. Os adornos mais
vistosos são os sapatos e unhas, e eventualmente as mais jovens usa-
rão brincos chamativos. A impressão de fusão [merge] rege os cabelos
estendidos e as roupas que, como epitomizado pela “calça de moletom
stretch”, se moldam ao corpo e próximas a ele, serão então adornadas
pelos muitos brilhos. Esse moldar ao corpo torna sutil o uso de ade-
reços. Sílvia, que gosta de se adornar para festa, é assim uma exceção
entre seu grupo de amigas, pois correntes, pendentes, anéis e pulseiras
tendem, de maneira geral, a ser pouco vistosos.

290
adereços masculinos e relações de gênero

O fuzil reúne todos estes planos de significação. Ele é em si a arma


da favela, ele é metáfora para o órgão sexual masculino, ele remete às
“peças”, ao ouro e ao dinheiro. E traz à tona os mecanismos que tornam
a estética um dispositivo poderoso. Funk e favela, ao manipularem a
circulação de símbolos e imagens que ressoam culturalmente na cidade
do Rio de Janeiro, dão visibilidade a si mesmos e se posicionam face à
sociedade envolvente.

291
Conclusão

No funk, a criação está à serviço da conectividade. Este conceito


é mais bem traduzido pela imagem com a qual encerrei o primeiro
capítulo, a de que a estética pode ser vista como uma massa fluida que
conecta as partes sociais e geográficas do Rio de Janeiro, manifestas atra-
vés de distintos gostos. Daí a importância que possui a ambiguidade no
funk, pois ao mesmo tempo em que sua singularidade é construída sobre
um senso estético próprio, ela é capaz de articular múltiplas diferenças.
Portanto, ao me propor a elaborar sobre o que chamo de Estética Funk,
não pretendi sistematizá-la ou chegar a um denominador comum que
dê conta de suas diferentes manifestações estéticas – como roupa, corpo,
dança, música, etc. – ou ainda objetificar uma estética total. A Estética
Funk, como a apreendo, é uma agência. Ela faz, não apenas representa,
ou remete, mas age. Acompanhá-la permitiu-nos ver diversos aspectos
da vida social em movimento, como em Latour.
Mas, se não abstraí uma lógica única, abstraí várias lógicas a
regerem esta estética. Uma delas trata da criação musical, e partindo
da dinâmica apropriativa, ou do “rouba rouba”, foi possível identificar
alguns mecanismos fundamentais. Um deles mostra como criatividade
e difusão estão estreitamente articuladas. Desse modo, ao invés de pen-
sarmos em uma subserviência ao mercado, vimos que é na relação com
a recepção, com o público, que a criação musical encontra os parâme-
tros para inovar e simultaneamente permanecer fiel ao padrão que dis-
tingue a música funk. Como bem colocou o tecladista Jota, existe uma

293
a estética funk carioca

vinculação entre circuito e padrão, e não é possível fugir a ela. O padrão


que recorta o estilo musical acompanha o circuito em que ele é consu-
mido. Portanto, não há possibilidade de pensar em um criador nos mol-
des da noção de “gênio criativo”, através da qual tantas vezes se explicou
a invenção em contextos ocidentais, artísticos ou científicos. Isso, con-
tudo, não é o mesmo que dizer que a individualidade não possua lugar
no funk. O que ocorre, ao contrário, é uma conversa entre as habilida-
des individuais e as demandas externas. Como mostrou Sapir, a cultura
autêntica é aquela que produz espaço para que as agências individuais
alterem a herança histórica.
Outro aspecto muito relevante que o trabalho de acompanhamento
da criação musical trouxe foi o modo como o funk, para seus criadores,
é antes de tudo música e como para compreender a importância desse
aspecto tivemos que amenizar a importância dada à palavra. Não porque
ela seja irrelevante, inclusive por todo livro vemos a letra das canções
informando o ponto que se quer fazer. Mas o fato de ela haver sido tão
privilegiada em outras análises do ritmo, acadêmicas ou não, fez com
que o aspecto sonoro fosse deixado em segundo plano, como se tratásse-
mos somente de poetas e não de músicos, ou como se a palavra pudesse
ser dissociada de seu som, cisão que Tim Ingold mostra como sendo
uma das especializações que a introdução da escrita impressa produziu.
O funk transforma a palavra falada em som, especialmente aquelas que
possuem ressonância em seu contexto de criação e circulação, os ditos
“elementos funk”. Este traço não é periférico, pois, ao mesmo tempo em
que vemos que o conteúdo semântico por si só não dá conta do sentido
ou do significado da palavra na letra da música, a palavra que é transfor-
mada em som não é eleita apenas por sua sonoridade, mas também por
sua premência histórica, no sentido da trajetória que o elemento eleito
possui na evolução do ritmo.
Uma outra feição trazida pelo foco em torno da criação musical
reside no fato de que a lógica apropriativa sozinha não a define, pois
vimos como esta é um componente da música eletrônica como um todo,
movimenta a criatividade cultural de modo amplo e relaciona ainda a
maneira como tanto a antropologia quanto a arte contemporânea fun-
cionam. O que distingue a sua lógica apropriativa é a liberalidade com
que são feitas estas apropriações, liberalidade esta que é viabilizada pela

294
conclusão

informalidade que rege as relações entre os agentes de sua cadeia pro-


dutiva. É a informalidade de sua engrenagem que permite velocidade a
estas apropriações e garante a sua eficiência, concedendo flexibilidade,
agilidade e vitalidade ao ritmo. A informalidade está presente ainda no
padrão estilístico que recorta o funk, pois a “sujeira”, como seus agentes
se referem à falta de equalização, que poderia ser associada a uma eco-
nomia outra de recursos técnicos que teriam os seus produtores, é tam-
bém “o bacana da parada”, o que dá à música o seu diferencial “favela”, de
modo que a restrição se converte em escolha, uma eleição incorporada
ao estilo. Mas a informalidade está presente não apenas na produção da
música, como também no momento de sua difusão. Pois é a recepção
no mercado informal da favela, no mundo dito não oficial, que testa a
permeabilidade ao grande mercado. É o gosto da favela que referencia o
potencial de circulação de uma produção funk individual pelos diferen-
tes gostos da cidade e determina seu processo de oficialização. O público
da favela faz a música “estourar” na sociedade formal. A favela age assim
invertendo exemplarmente as lógicas distintivas que nos acompanham
desde Veblen e Simmel e foram relidas por Bourdieu, deixando ver uma
capacidade que é própria da dinâmica da cultura brasileira: a de ressig-
nificar em símbolo nacional produtos de manifestações culturais popu-
lares, como Peter Fry chamara atenção ainda nos anos 1970.
Derivamos assim em um traço muito atuante no funk, que é o
subversivo. Com efeito, o funk se apresenta como se resultante de um
projeto de subversão. Não falamos aqui de subversão em seu sentido
político estrito, mas de uma subversão estética que parece sim carre-
gada de ideologia. Uma subversão utópica, mas que produz seus efeitos,
aproxima as partes e, mesmo que não dilua as diferenças – pois estas são
inerentes à vida social, como já mostrara Louis Dumont –, as ameniza.
Como disse a cabeleireira Renata, “hoje já há uma aceitação maior”. Foi
esse mesmo aspecto subversivo que produziu os “proibidos”, que produz
as “putarias” e que produz as paródias de Mr. Catra. É por este motivo
que a lógica apropriativa salta tanto aos olhos, e aos ouvidos, quando um
se depara com a música funk, visto que o fato do englobamento e dos
empréstimos tem que ser evidente, tem que ser explicitado.
Daí a importância de chamarmos atenção para o aspecto hiper-rea-
lista do funk. A palavra é importante e remete ao social, e expressa muito

295
a estética funk carioca

bem o modo pelo qual a arte está em direta conexão com a vida que a
produz, como argumentou Geertz. Isto, contudo, não é o mesmo que
dizer que a arte explica o social ou que este a produz. A arte não é um
espelho da vida, pois possui suas lógicas próprias. A do funk é a de elabo-
rar sobre o real e produzir uma ficção hiper-real, que carrega nas cores do
real. Esse é o aspecto tricky do funk, e Mr. Catra, como hábil trickster, tira
magistralmente partido das ferramentas que o funk lhe oferece.
A tensão entre parte e todo, entre indivíduo e sociedade, um dos
motes do livro, permitiu-nos um outro conjunto de elaborações. De
um lado vimos como Mr. Catra, a partir da noção de “pessoa holográ-
fica”, pode ser entendido como mais um dos elementos que compõem a
sua rede de relações familiares, não se tratando de dizer que são todos
iguais, mas que as relações que o compõem replicam-se nas outras pes-
soas da rede ao mesmo tempo em que nenhuma delas é exemplar dessa
rede, o todo tampouco é a soma dessas partes. A pessoa individual é um
e muitos ao mesmo tempo, ou melhor, é um através de muitos, como
ficou muito bem objetificado pela instalação de Sílvia. E nesse esquema
há espaço para que as individualidades emerjam.
Esta tensão entre individual e coletivo nos introduz também no estú-
dio de criação, e nos mostra que o funk é, para os membros da Sagrada
Família, um “ideal” ao mesmo tempo individual e coletivo. A etnografia
mostra que é possível ver o funk não apenas como um ritmo que abarca
com facilidade qualquer membro de sua comunidade, como uma alter-
nativa econômica, mas que ele se faz também dentro de uma tradição
musical, como vimos a partir de muitos dos profissionais que possuíam
uma relação anterior com a música, estabelecida através de familiares de
geração anteriores. Vimos também como é a relação entre ética e estética
que move muitos dos artistas em direção ao funk, um desejo de fazer
uma música que circule, que os coloque em relação com o todo da cidade.
Arte, para eles, é definida na medida em que ela circula, é consumida e
rompe a barreira do extraordinário, deixando de ser uma manifestação
apartada da vida social para fazer parte de sua articulação.
A marca de Mr. Catra, que inventa a sua própria tradição, emerge
da dinâmica de apropriações do funk, porque esta não nos fala apenas
de englobamentos e empréstimos culturais, mas de mediação. Da possi-
bilidade de ir e vir entre mundos que o funk faz e deixa ver em especial

296
conclusão

através das letras das músicas proibidas, que é constituinte da pessoa


de Catra e está presente na confecção das suas paródias musicais, ao
subverter os símbolos da cultura hegemônica e englobá-los. É dessa
união entre subversão e englobamento que a mediação se faz possível,
pois subversão aqui não significa recusar padrões euro-americanos, mas
englobá-los para se comunicar com eles. E é através do riso que Catra
estabelece essa comunicação já que é com humor que faz as suas trans-
gressoras paródias e engaja o espectador na operação mimética que rea-
liza. Dessa perspectiva, a imagem que ele faz de Israel nos interessou
menos por sua veracidade e mais pelo modo como a usa como anteparo
para falar, por contraste, sobre a sociedade em que vive.
A favela possui papel central no processo criativo funkeiro, ao con-
ter grande parte de seus consumidores e produtores, ao divulgar a sua
música, ao lhe conceder parte de sua marca estilística e ao fornecer
parte do repertório imagético e cultural sobre o qual seus artistas ela-
boram. Mas, de outro lado, a narrativa deste livro evolui ao mostrar que
essa mesma estética funk ganha força pela capacidade que possui de
articular diferentes ambientes sociais e estéticos cariocas. Assim, des-
locar o funk do contexto exclusivo da favela, representá-lo não como
“música de gueto” mas como “música eletrônica brasileira” envolve
evitar as cristalizações inerentes as representacionalismo. E o funk é
hábil em deixar ver como as representações podem ser falaciosas, ao
se revelar pouco sistematizável e ao mostrar como os símbolos podem
ser manipulados para equivocar o outro. É dessa capacidade mediadora
que deriva a força do funk e que o torna tão relevante para a cultura
carioca. Não só por ser o “grito da favela”, como querem alguns. Ele é
também “a voz da boca amordaçada”, como coloca Albert, B., mas é por
sua premência cultural que ele se faz escutar.
Outra de minhas fontes de abstração foi concedida pela abordagem
dos objetos materiais e do corpo, que conformam o que chamei de esté-
tica corporal. A ênfase sobre o objeto produziu de verdade a sua dessubs-
tancialização, na medida em que para apreender o seu significado foi
necessário articulá-lo não apenas aos sujeitos mas aos distintos domínios
do social, materiais ou imateriais. Além disso, seguir o fazer e refazer da
estética corporal deixou evidente a interação entre corpo e mente.

297
a estética funk carioca

Tivemos dois guias essenciais. De um lado, nos conduziram os


cabelos femininos. Acompanhá-los nos permitiu isolar uma lógica da
prótese a emergir das escolhas individuais e ver o corpo como instância
agentiva, que submete as escolhas de gosto ao seus desejos. A particu-
laridade do gosto feminino, de não apenas produzir sua própria moda
mas de englobar às exigências da corporalidade local a marca e o gosto
globais, ressoa com o modo como opera a música funk, onde o beat é
soberano e é a ele que a letra deve ser submetida. Mas não são somente
marcas e gostos que são submetidos ao corpo enquanto corporalidade.
As relações com a alteridade, com um gosto outro, são também viven-
ciadas no corpo, o que é feito através de operações mentais e projetos
miméticos que produzem a incorporação ou agencia potências outras.
A corporalidade é fundamental para a definição da noção de pessoa,
na medida em que as transformações na aparência para se chegar ao
que lhes parece o belo e agradável para a constituição do self se dão
em conjunção com capacidades que são representadas como inatas ao
corpo não branco. Estas capacidades distinguem as mulheres não ape-
nas pelo modo de se apresentar mas também pela força e resistência
que possuem os seus corpos para passar pelos processos metamórficos
inerentes à estética produzida.
Identificar essa centralidade da aparência, em especial a feminina,
nas interações sociais como estabelecidas no Rio de Janeiro, nos levou a
tangenciar questões relativas aos preconceitos de “raça” e “classe social”.
No uso ambíguo dos elementos que compõem a estética corporal femi-
nina revelou-se não somente a grande habilidade que possuem esses
sujeitos na manipulação de símbolos, de modo a serem melhor recebi-
dos em um ou outro espaço da cidade, como o seu domínio de diferen-
tes gostos e códigos estéticos. Como fez Thamara que, ao produzir os
seus cabelos, juntou àqueles herdados em seu ambiente familiar outros
de colorações diferentes pinçados aqui e acolá e, como em um jogo de
quebra-cabeça, chegou ao resultado final, baseado em um projeto pes-
soal e não em uma imagem externa e preconcebida. É do sucesso destas
manipulações que dependerá o bom trânsito por diferentes espaços da
cidade. A habilidade que possui o sujeito funk de, através de sua aparên-
cia, deslocar os significados da mensagem do código, nos remete nova-
mente à dificuldade de congelá-lo em representações e cristalizações e à

298
conclusão

ambiguidade, que garante a própria possibilidade da mediação. Por fim,


é preciso notar que esta centralidade que possui o modo como um se
apresenta não diz respeito somente ao funk, mas é característica do Rio
de Janeiro como um todo e é capaz de produzir diversos outros desdo-
bramentos em diferentes contextos sociais do Brasil urbano.
É interessante chamar atenção ainda para o fato de os cabelos femi-
ninos haverem revelado o seu significado em um contexto funk em que
o que estava em jogo era mais a circulação pela cidade do que o baile
funk propriamente dito. Isto nos remeteu à maior versatilidade que as
extensões de cabelos permitem às mulheres, tanto no que toca às pos-
sibilidades embelezadoras como no que diz respeito à sua mobilidade.
Pois as extensões permitem que os cabelos possam ser usados ora lisos
ora anelados, diferentemente da aparência permanentemente lisa que
os alisamentos definitivos concedem. Assim, são eleitos cabelos pre-
ferencialmente anelados que, em determinadas épocas, em especial o
inverno, são transformados em cabelos lisos, através da realização de
“escovas” e da utilização da “prancha”, como modo de evitar a sua lava-
gem frequente em épocas mais frias. Cabelos anelados para estarem bem
apresentados, devem ser constantemente molhados e em seguida pen-
teados com creme. Mas a escolha de cabelos anelados envolve uma outra
intenção, a de desestabilizar uma identidade negra fixa. Com isso não se
quer passar por branca, mas tampouco permanecer como representação
congelada do que é ser negro. Não se quer nem uma coisa, nem outra.
Os cabelos envolvem um consumo conspícuo como modo de mostrar o
valor atribuído ao trabalho e negar um gosto da necessidade que vincula
classe popular a uma estética funcionalista e puramente utilitária.
Mas o que une o gosto das mulheres com as quais trabalhei não é
tanto o cabelo, mas a lógica da prótese e da transformação que a materia-
lidade dos cabelos e sua produção permite ver. A beleza não é tanto dada,
como feita. Pode-se ser agraciada com o dom de cabelos idealmente
belos ou de dentes considerados perfeitos, mas quando uma não os tem,
os incorpora. E, se a lógica da prótese não desfaz inicialmente a diferen-
ciação entre sujeito e objeto, o objeto, depois de apropriado pelo corpo
biológico, “já é seu”: pertence ao corpo e à pessoa. Estes objetos corporais
possuem ainda uma dimensão de adorno, pois, como a roupa, o cabelo
pode ser retirado e pode se permanecer sem ele durante um período de

299
a estética funk carioca

semanas ou meses. O que reforça a ideia de que não se quer simular um


corpo outro ou passar por outro, mas se empoderar através dos objetos.
Mas, se acompanhar os cabelos femininos trouxe à tona o modo
com o qual os efeitos causados pelos objetos são passíveis de serem
manipulados, seguir as balas de armas de fogo nos mostrou como eles
podem produzir eventos que estão fora de nosso controle. Os tiros colo-
caram em relação diferentes partes da cidade ao darem visibilidade a
realidades sociais que poderiam passar desapercebidas e nos conduzi-
ram ainda aos adornos e à estética corporal masculinos, que por sua vez
nos levaram às relações de gênero.
Isolamos dois estilos diferentes de o homem se adornar. Um deles
tem como marca estilística os cabelos elaborados por meio de desenhos
e colorações, que são cortados baixinhos, próximos ao couro cabeludo, e
depois recortados e tingidos. Esse estilo se faz a partir da tensão entre o
falso e o verdadeiro e tem como aspecto central a artefatualidade desses
cabelos, o seu aspecto feito. Novamente a beleza aqui não surge como
dada, mas reafirma a condição de ser feita. Mas, diferentemente dos
cabelos femininos, os masculinos não são ambíguos, mas afirmam atra-
vés de seu aspecto de fabricado a identidade funkeira, representação esta
que resulta de uma indumentária híbrida que reveste o corpo por meio
do gosto global e veste a cabeça com cabelos locais.
Já homens como Mr. Catra constroem uma estética corporal que
pode ser definida ao se contrapor ao gosto dos rapazes mais jovens que
fazem de seus cabelos ornamentos. O homem, acredita Catra, tem que
seguir uma estética ascética, para se diferenciar da mulher, que “pode
tudo”. Dessa perspectiva, o homem também não pode rebolar. As estéti-
cas corporais feminina e masculina, ambíguas e conectivas quando está
em jogo a sociedade envolvente, são desambiguizadoras quando os gêne-
ros são colocados em relação. Mas as elaborações inscritas no corpo mas-
culino, como ocorre no caso dos cabelos funkeiros, são substituídas por
adornos que se destacam dele e parecem ser, aí sim, partes extrassomáti-
cas. A exibição ostensiva de objetos, como fazem Catra e outros homens,
remete a uma cultura da favela que afirma o seu poderio, avisa que a
“firma é forte”, através da exposição evidente de armas, dinheiro, ouro
e bebidas, de modo que os objetos substituem as palavras na expressão

300
conclusão

de poder e das pequenas diferenças, como ficou mais claro por meio das
imagens do “presepeiro” e do “escandaloso” oferecidas por Cíntia.
Catra participa assim de uma tradição de homens que igualmente
afirma o seu poderio ao mesmo tempo em que sente-se empoderado
por meio da exibição de objetos de valor. Mas ao falar dos homens é
preciso ainda acrescentar a mulher, que surge em momentos específicos
como mais um dos adornos com os quais homens como Catra se cer-
cam: dinheiro, ouro, roupas, armas, bebidas e, não menos importante,
mulheres. O que parece possível afirmar é que, a partir do que vemos
através do modo como são organizados os adornos corporais, a mulher
não necessita da presença do homem para afirmar a sua condição femi-
nina, ao passo que o homem surge como altamente dependente de sua
presença física ou de sua presentificação por meio de falas, para afirmar
sua condição masculina, o que não me parece irrelevante em um mundo
recorrentemente tachado como machista. Foi essa independência femi-
nina, e não um suposto feminismo das mulheres, que me permitiu
escrever todo um capítulo em torno delas e de sua estética sem precisar
contrastá-las aos homens ou invocá-los.
As diferentes noções de beleza nos levaram forçosamente a tangen-
ciar as relações de gênero. Pois se, como Strathern, partíssemos do pres-
suposto de que não há homem ou mulher, mas sim as categorizações de
diferença que findam por separar também os gêneros, as diferenças fun-
damentais estariam organizadas em torno da beleza e da aparência. O
adorno agrega valor e significado ao corpo, mostrando como noções de
pessoa, corpo e objetos estão vinculados. A pista para se tratar da sexua-
lidade e das relações de gênero, nesse universo, parece residir em uma
recusa às grandes categorizações sociais, e a estética corporal parece
sinalizar um caminho interessante para escapar a elas.

301
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