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Mylene Mizrahi
Coordenação Editorial
Isadora Travassos
Produção Editorial
Cristina Parga
Eduardo Süssekind
Rodrigo Fontoura
Sofia Soter
Verônica Montezuma
Victoria Rabello
2014
Viveiros de Castro Editora Ltda.
Rua Visconde de Pirajá, 580 – sl. 320 – Ipanema
Rio de Janeiro – rj – cep 22420-902
Tel. (21) 2540-0076
editora@7letras.com.br – www.7letras.com.br
programa de pós-graduação em sociologia e antropologia
instituto de filosofia e ciências sociais
da universidade federal do rio de janeiro
(ppgsa/ifcs/ufrj)
Conselho Editorial
Beatriz Maria Alasia de Heredia
Bila Sorj
Elina Pessanha
Felícia Silva Picanço
Glaucia Villas Bôas
José Ricardo Ramalho
Marco Antonio Gonçalves
Marco Aurélio Santana
Maria Laura V. C. Cavalcanti
Michel Misse
Mirian Goldenberg
Yvonne Maggie
UFRJ
Sumário
Agradecimentos15
Introdução19
Parte i
Capítulo 1 33
Uma etnografia da noite
Capítulo 2 63
Escapando pela válvula
Parte ii
Capítulo 3 103
Autonomia da arte, criatividade e difusão
Capítulo 4 149
Englobamento e subversão
Parte iii
Capítulo 5 201
Cabelos femininos e a confusão de símbolos
Capítulo 6 243
Adereços masculinos e relações de gênero
Conclusão293
Referências bibliográficas 303
Prefácio
Funk não faz amálgama, faz conexão
Els Lagrou
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a estética funk carioca
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prefácio
Mylene Mizrahi faz uma análise e exegese fina, tanto das letras des-
tes cantos, herméticos para uns e transparentes para outros, quanto das
estratégias do ocultar e mostrar utilizadas com maestria por Mr. Catra
nas suas trajetórias noturnas, nas quais cruza a cidade com velocidade
intensa, conectando geograficamente Norte e Sul, subúrbio e Centro,
asfalto e favela. Numa só noite Catra e sua equipe, acompanhados da
antropóloga, fazem uma costura musical, conectando pontos, fazendo
ouvir sua voz nos quatro cantos da Cidade.
Como dito na frase com a qual abri esta curta apresentação deste
denso trabalho: “sufocaram o proibidão mas liberaram a putaria”. Vemos
assim que é no gênero chamado, no mundo funk, de putaria, música
explicitamente erótica, mas não por isso menos figurativa e velada como
nos mostra Mizrahi, que Catra encontra mais liberdade para equivo-
car e divertir seu público do asfalto. Nos shows em lugares consagra-
dos da cultura carioca, Catra “vai debochar a ideia de cultura, a MPB”.
Anunciando em tom sério e com a musicalidade suave e sóbria do estilo
MPB que “agora é hora da cultura”, Catra executa sua versão funk do
clássico “Uma tarde em Itapuã” de Vinícius de Moraes para a diversão
geral do público. Esta é mais uma estratégia para produzir o equivoco
irônico resultante do encontro entre perspectivas, brilhantemente evo-
cado por Mizrahi. Como alerta a autora: “É a transgressão que permite a
Mr. Catra unir em um mesmo plano erotismo, religião e alucinógenos”.
Podemos perguntar: O que acontece quando a elite se olha ou se
ouve na voz de um Outro muito próximo, ou um Mesmo muito Outro,
que a desafia equivocando-a? A resposta de Catra é que a melhor
maneira de fazê-lo é fazendo-a rir de si mesma. Nas palavras de Mizrahi,
Catra “visa transformar o encontro de mundos e interpretações em algo
desafiador, que descentra, faz pensar, e antes de tudo faz rir”. É isso que
significa conectar sem produzir amálgamas, produzindo, poderíamos
dizer, poderosas figuras quiméricas onde a diferença não é dissolvida
mas potencializada, produzindo forte efeito estético, não no sentido
apaziguador do belo, mas no sentido perturbador de algo que afeta, que
age sobre o receptor que sai alterado da experiência.
A abordagem teórica do universo criativo funk proposta por Mylene
Mizrahi é inovadora e equivoca o leitor, como o faz seu interlocutor pri-
vilegiado, Mr. Catra. Como não podia deixar de ser, no entanto, e aí
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prefácio
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Agradecimentos
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agradecimentos
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Introdução
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introdução
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introdução
4 Em pesquisa sobre a cadeia produtiva do funk, realizada pela Fundação Getúlio Vargas (Simas
2008), a classificação por tipos de bailes é outra, diferenciando aqueles realizados nas favelas de
todos os outros.
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introdução
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5 A discussão que apresento nas próximas páginas se beneficia ainda dos dados empíricos reco-
lhidos em minha pesquisa de mestrado (Mizrahi, 2006), realizada ao longo de dezesseis
meses nos anos de 2004 e 2005, e daqueles recolhidos para a pesquisa A influência dos subúr-
bios na moda da Zona Sul (Mizrahi, 2003), conduzida entre 2002 e 2003.
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introdução
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introdução
de Mr. Catra, temos uma mostra do contexto social pelo qual circula
o funk no Rio de Janeiro ao mesmo tempo em que vemos o artista se
deslocando pelo espaço urbano em um carro coletivo, distribuindo sua
agência nos moldes da “pessoa distribuída” de Gell (1998), “refazendo
o social” no sentido de Latour (2005) e exercendo sua “conectividade”,
como em Strahern (2004 [1991]), ao colocar em contato as diferentes
partes geográficas e sociais da cidade. A narrativa deste capítulo intro-
duz ainda os temas a serem elaborados ao longo da tese como um todo:
criatividade, objetos, imagens, religião, ironia, raça, relações de gênero.
O capítulo 2 muda o contexto etnográfico para o espaço doméstico,
onde estão presentes o artista e seus familiares. Aqui está em foco a “pes-
soa fractal”, como em Wagner (1981 [1975]), que nos permite evidenciar
não apenas como muitos dos traços de Mr. Catra se replicam por seus
parentes e afins, mas também como existe uma noção de pessoa que
não é apenas “dividual”, mas divisível onde se é um através de muitos.
Por meio dos discursos em torno da religião e de sua trajetória familiar,
contextualizaremos o posicionamento político peculiar e transgressor
de Mr. Catra diante da sociedade envolvente e de uma cosmologia oci-
dental objetificadas respectivamente pelo que ele designa como “socie-
dade católica” e a “hipocrisia da sociedade”.
Na segunda parte do livro evidencio a dinâmica criativa funkeira e
seu traço fortemente subversivo, além de uma tensão entre parte e todo
através da qual vemos que ao mesmo tempo em que Catra é um artista
singular do funk, é o próprio funk que lhe oferece os instrumentos de
viabilização dessa sua singularidade. Assim, a discussão teórica a unir
os dois capítulos desta unidade é amarrada por Edward Sapir (1949) e o
inerente embate entre figura e fundo que governa a vitalidade cultural.
Veremos ainda uma atuante lógica do englobamento, como em Louis
Dumont (1992), na qual a noção de totalidade é premente, ao mesmo
tempo em que seremos conduzidos pelo próprio artista às abordagens
que buscam uma dissolução dos limites desta mesma totalidade.
O capítulo 3 possui como contexto etnográfico o estúdio Sagrada
Família, onde Mr. Catra grava suas produções bem como as de outros
artistas. A narrativa será conduzida pelos parceiros de criação do cantor,
que nos ajudarão a elucidar a lógica criativa da música funk. A discus-
são teórica versará em torno da criatividade artística e da apropriação
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Parte I
os deslocamentos
Estamos no carro, prontos para iniciar os deslocamentos que nos leva-
rão para as muitas performances que o artista funk executará em sua
jornada de trabalho. As noites começam em torno das vinte e uma horas
e terminam aproximadamente às sete horas da manhã seguinte.1 Como
1 A realização de muitos shows em uma única noite, com curto intervalo de tempo entre um e
outro, e a “correria” que deriva dessa estratégia para o cumprimento da agenda profissional são
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a estética funk carioca
características do artista de funk carioca, como mostra o especial para o canal de televisão MTV
Brasil (Funk Carioca 2005). Este traço gera uma pequena competição entre os artistas que dispu-
tam para ver aquele que mais apresentações consegue realizar em um único turno. Tati Quebra-
Barraco diz que fez dez shows seguidos, enquanto o DJ Marlboro conta doze apresentações con-
secutivas, como declaram no referido documentário. A equipe deste, por sua vez, acompanhou a
turnê do Bonde dos Magrinhos, que resultou em quatro shows. Nas noites em que acompanhei
Mr. Catra contei um número máximo de sete apresentações em uma única jornada.
2 Ao longo deste capítulo apresento diferentes mapas onde estão marcados os percursos feitos
durante a noite, onde A refere-se a Vargem Grande, B a Praça da Bandeira, C a Jardim Ideal, D
a Rocha Miranda, E a Vila da Penha, F a Bangu, G a Lapa, H a Nova Iguaçu e I a Gávea.
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uma etnografia da noite
3 Veremos ainda que o mesmo tropo, invadir, é utilizado para designar o ato literal de penetração do
corpo alheio, como exemplificado pela canção “Bum bum não se pede”, transcrita no capítulo 4.
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a estética funk carioca
em suas turnês são fornecidas por uma confecção paulista, que reproduz
a estética do vestuário masculino hip-hop. A Manos tradicionalmente
patrocina artistas de hip-hop, e Mr. Catra e seu grupo são os únicos fun-
keiros apoiados pela grife, o que me é revelado com um certo orgulho.
Continuamos nos deslocando a caminho do show. Passamos por
uma área de casas simples, casebres, e muitas biroscas, bares pequenos.
Com frequência vemos templos evangélicos e eventualmente igrejas
católicas. Mr. Catra avisa que “é aqui que o couro come”. Mais adiante
nos mostra a casa em que morou, contando que era “responsável” por
toda aquela área, acrescentando que cumpria a função montado a cavalo.
Nós estamos passando por Duque de Caxias, município da Baixada
Fluminense, mencionado na canção “Minha facção”, cuja letra veremos
adiante. Foi ali que Mr. Catra se tornou conhecido como “sinistro da
Baixada”, como diz a música. Deixou o lugar depois que o prefeito lhe
deu um prazo de setenta e duas horas para que dali se retirasse. Alguém
lhe pergunta se ele não negociou: “Negociei, ué. Saí”. E ele ri.
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uma etnografia da noite
Se liga rapaziada
Essa é que é a parada
Catra, O Fiel
Sinistro da Baixada
Catra, O Fiel
Maluco pode crê
Minha facção
Fortalece você
Humilde e sinistro
Representação
Minha facção
Fortalece você
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a estética funk carioca
Eu estô ligeiro
Sempre atento e esperto
Se ajoelhou
Tem que fechar com o certo4
4 Minha facção, de Mr. Catra. A grafia das palavras nas letras das canções reproduzem o modo
exato como estas são proferidas e escritas. O termo “nóis”, por exemplo, é escrito precisamente
desta forma. Como me disse o DJ Ratinho, não se escreve “nóis”, como outros termos, por
desconhecimento de um modo correto de escrita, mas sim porque trata-se de uma “palavra
outra”, ainda que seu significado tenha “a ver” com o significado de “nós”. Nesse sentido, a
escrita expressa mais um modo de, através da forma, de sua grafia, se opor a uma norma oficial,
a que rege a língua culta. O próprio Mr. Catra afirma no documentário Mr. Catra, o fiel (2007)
que hoje são falados dois idiomas no Rio de Janeiro, o do asfalto e o da favela. Este último é
designado como “favelês” pelo cantor de hip-hop MV Bill (2006) em sua canção “O preto em
movimento”. Eu mesma, no início do trabalho de campo, por diversas vezes tive dificuldade
de acompanhar as conversas, não apenas porque não dominava o assunto tratado, mas porque
ignorava muitos dos termos empregados e/ou seus significados
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a estética funk carioca
Se o Caveirão não fô
O bicho vai pegá
Se mexê com os carinha
Vai tomá só de AK [...] 6
5 A ideia de que a polícia forma uma quinta facção a disputar com os bandidos o controle das
ações ilícitas no Rio de Janeiro surge igualmente nas falas dos informantes de Alvito (2001).
6 “Caveirão”, de Fá do Tuiti.
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uma etnografia da noite
que eu devo ficar no carro. Nesse momento Ruan, amigo de Mr. Catra e
morador de uma favela na Zona Norte da cidade, se aproxima de mim,
perguntando-me o que eu gostaria de fazer. Digo a ele que gostaria de
ir junto, “se puder”. Ele diz “então vamos”, acrescentando que me dará
“cobertura” ao seguir atrás de mim, me protegendo. Fred já partira,
acompanhando Mr. Catra, Edgar e Sabrina.
No local do baile não há palco montado e Mr. Catra canta nova-
mente da mesa de som. Ele inicia a última parte do show, ao se diri-
gir ao DJ, em tom solene e jocoso, gradualmente assumindo um caráter
imperativo: “DJ Edgar... por favor... Que soem as trombetas da PU-TA-
RI-A!”. Um som de trombetas invade o espaço, acompanhado do ruído
do galope de cavalos, produzidos eletronicamente pelo sampler do DJ.
O MC então, usando toda a potência de sua voz, anuncia: “Vai começar
a Putariaaa...!”, se referindo à série de canções eróticas que usualmente
versam sobre os benefícios do sexo oral e a troca sexual com diversas e
simultâneas parceiras. Até o ano de 2006, este momento do show pro-
duzia a oportunidade para que muitas garotas do público subissem ao
palco e assim participassem da performance do artista, encorajadas pelo
MC e por canções como “Vem todo mundo”.
Ah…
Vem! Mariana, Juliana, Marieta, Julieta
Vem Aline, Yasmine, Jaqueline
Vem Andréia, vem Nilcéia
Vem Iara, vem Jussara
Vem a Claudia, vem Amana, vem Amanda
Vem todo mundo!
Para!
Só não vem aquela que fala demais
Tá ligado?
Aquela que fala demais pode ficá lá
Fica lá minha filha…
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a estética funk carioca
Saia da janela
Vê se tu se toca
Mulher de verdade
Gosta mesmo é de piroca
Então…
Então...
Ha ha ha! Vem, vem, vem nhanha
Vem, vem, vem
Vem, vem, vem
Com tudo dentro, hein?
Ha! vem, vem, vem nhanha
Vem, vem, vem
Ha! Vem, vem, vem
Ah...
Ha! vem, vem, vem nhanha
Vem, vem, vem
Ha! Vem, vem, vem
Ahhhhh.....
Ai eu quero namoro
Quero compromisso
Quero casamen...’
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uma etnografia da noite
Só se você rebolá
Ha ha! Com tudo dentro
Então...
Ha ha ha! Vem, vem, vem nhanha
Vem, vem, vem
Vem, vem, vem
Pode vir... 7
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uma etnografia da noite
É bom…
Uma mamada de manhã
Halls com sabor de hortelã
Pra relaxar dá dois no can8
Um natural de Amsterdam9
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uma etnografia da noite
O bagulho é desse jeito. Você tem que respeitar pra ser respeitado. Porque
ninguém é melhor do que ninguém. E a humildade é a essência da vida, tá
ligado? Quem é humilde aí?
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conta tanto do novo formato que deve ter o texto etnográfico quanto
para descrever em que consiste a criatividade cultural nesse mundo
pós-plural. Strathern pressente em autores como James Clifford e Ulf
Hannerz a “nostalgia de um holismo não problemático” (Strathern,
1992, p. 98), no qual o mundo, como o texto, resultaria em um conjunto
compósito, feito a partir de fragmentos tomados de empréstimo a outras
realidades. Mesmo que os elementos deslocados de outras realidades
não pudessem ser encaixados perfeitamente, ainda assim mundos totais
deveriam existir em algum lugar de modo a fornecer as partes a serem
recombinadas criativamente. As culturas, como o texto etnográfico e as
pessoas, seriam, dessa perspectiva, híbridos particulares resultantes da
recombinação de elementos pré existentes.
Bruno Latour (1994), por sua vez, entende que nós, modernos, jamais
isolamos efetivamente em domínios estanques o público e o privado, o
doméstico e o político, o corpo e a mente, a ciência e a magia. As imagens
de separação oferecidas por nossa ontologia ocidental servem-nos igual-
mente para falar da concomitante hibridização que a própria purificação
viabiliza. É ao criarmos mecanismos de purificação que tornou-se pos-
sível crer que hibridizamos. Latour (1994) expõe seu argumento ao dis-
secar a rede articulada pelos distintos domínios que percorre o repórter
de um caderno de economia para escrever um artigo corriqueiro e nos
informar sobre um assunto específico e cotidiano. O caráter processual
do social é posteriormente enfatizado pelo autor através da teoria do ator
-rede (2005), onde a rede não é uma coisa mas um conceito, um recurso.
A rede é uma ferramenta para ajudar a descrever algo, e não aquilo que
deve ser descrito. Para apreendermos o social, segue o autor, devemos
fazê-lo através da análise dos “matters of concern” e não através dos “mat-
ters of fact”, dados já feitos e que se refiram a uma versão hegemônica de
um fato prematuramente unificado (Latour, 2005, p. 115-118).
Latour, como Strathern, ao reconceitualizar o social, propõe igual-
mente um novo modo para a sua representação. E como o social é para o
autor uma questão de movimento e circulação, são necessários recursos
analíticos que permitam ao leitor visualizar o social novamente como
uma entidade circulante (Latour, 2005, p. 128). Desse modo, os ato-
res, em vez de tratados como “intermediários” – onde somente alguns
são causadores das ações desempenhadas por muitos (Latour, 2005,
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caminho este que deve ser não apenas o mais curto como o mais seguro.
As peculiaridades de sua pessoa igualmente lhe possibilitaram uma rela-
ção diferenciada com os consumidores de funk. As apreciações pejorati-
vas sobre a população de áreas pobres da cidade, como as que ouvimos ao
longo da noite descrita acima, jamais foram feitas por ele.
A riqueza de Mr. Catra reside precisamente em sua complexidade.
Através das ambiguidades que ele parece mesmo cultivar, ele desobriga o
antropólogo a delinear a sua análise por meio de categorias reificadas. Pois
as oposições entre favela e asfalto, a cidade ilegal e a cidade formal, não
possuem lugar fixo no mundo como articulado por Mr. Catra. Em alguns
momentos os contrastes parecem se firmar, em outros eles parecem dis-
solvidos e em outros ainda parecem fora do lugar. Foi ao seguir Mr. Catra
que tornou-se possível a mim evitar o uso de termos como centro, perife-
ria e margem, frequentemente utilizadas nas descrições do mundo funk.
Catra age como um “mediador cultural” mesmo sem oferecer um
“oposto sociológico do homem marginal esmagado entre dois mundos”
(Velho, 2003[1994], p. 81). Pois em sua retórica e produção artísticas,
como nas de outros artistas funk, o estar à margem da sociedade, do
sistema, surge reiteradamente como condição própria da pessoa funk.
Ainda assim Catra fará uma síntese singular desses mundos pelos quais
transita, produzindo a sua colagem pessoal e idiossincrática ao mesmo
tempo em que querendo fazer dela a norma, ponto que ficará mais claro
a partir das elaborações do capítulo a seguir.
Teorizando sobre o indivíduo contemporâneo e as sociedades com-
plexas ocidentais, Gilberto Velho enfatiza que a “maleabilidade e flui-
dez” são aspectos cruciais para a compreensão do sujeito em ambiente
urbano (Velho, 2003 [1994], p. 25). A capacidade de trânsito entre dois
ou mais mundos seria “uma característica generalizada da sociabilidade
contemporânea” (Velho, 2003 [1994], p. 23), tendo sido antes traços
característicos das elites na Idade Média. Por outro lado, meu material
etnográfico torna evidente o modo pelo qual o sujeito criativo funk
se utiliza de sua grande habilidade na manipulação de símbolos e de
sua percepção do conhecimento restrito que as classes médias e altas
possuiriam dos universos populares, de modo a facilitar o seu trânsito
pelos espaços da cidade, como veremos ao longo de todo o livro. A pers-
pectiva funk é a de que no Rio de Janeiro contemporâneo ocorreu uma
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Capítulo 2
Escapando pela válvula
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escapando pela válvula
Éramos vinte: dez dentro e dez fora”. Posteriormente ele passa a traba-
lhar como “matuto”: “eu pegava com os colombiano, os boliviano. Eu
traficava”.1 Mr. Catra sempre afirmou em minha presença a proximidade
que ele, como muitos dos seus parceiros de criação, possuiu com a mar-
ginalidade, dando visibilidade a esses traços de sua vida.
Catra conta-me essas passagens sentado à mesa de jantar da sala
de sua casa, voltado para a televisão que, malgrado o fato de “odiá-la”,
está invariavelmente ligada no ambiente doméstico. Do CD player, aco-
modado no mesmo móvel em que se encontra a TV, saem palavras em
hebraico de uma série de orações chamada tikun klali, e por perto está
Thamyris e o funk que sai de seu laptop. Sílvia se aproxima, coloca um
cigarro artesanal nas mãos do marido e se retira novamente. Era mais
uma tarde despendida no núcleo doméstico de Catra. A grande dife-
rença, entretanto, era dada pelo fato de que em dois dias eu partiria para
Londres, onde faria o meu doutorado sanduíche, o que de certo modo
configurava um desfecho no trabalho de campo. Catra, por sua vez, tra-
tou de aproveitar essas últimas conversas para me revelar dados novos,
reafirmando conhecimentos que me haviam sido passados de modo mais
indireto e que informam o todo desta narrativa. Diz que me fala “essas
coisas todas” porque eu tenho “uma noção muito clara do que é certo e
do que é errado”. O que ele queria, como assegurou nesta mesma tarde,
era “expor” suas “ideias”, porém, como já dissera em outra ocasião, “a
sociedade não está preparada”. Vai se expondo com emoção, a ponto de
em determinado momento me parecer ver seus olhos cheios de lágrimas.
Voltando à história de Mr. Catra e sua família de origem: Dona Elza,
nesse meio tempo, se aprimorava até tornar-se uma “cozinheira profis-
sional. Catra acrescenta que ela trabalhou ainda como “enfermeira”, de
modo que possuía renda suficiente para “ajudar as pessoas” e assim ter
“vários filhos de criação”. O mais presente deles, ao menos no que diz
respeito às narrativas da família Catra, é Cesar, um menino “branco”
que Elza encontra desprotegido nas ruas da Favela do Borel, nas imedia-
ções da Usina, bairro em que residia Edgard e seu núcleo familiar. Cesar,
1 Mr. Catra declara, no documentário Mr. Catra, o fiel (2007), que passou a “roubar banco e a
traficar” por não possuir dinheiro para seguir com seus estudos. A mim, além de evidenciar a
vida confortável que teve na juventude, justificou a mudança de posicionamento na vida ao ser
motivado por “uns negões” que teriam lhe roubado o seu casaco “da Disney”.
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como Catra, foi criado por Elza e Edgard, que o chamaria de “aquele
meu filho safado”, em referência à “vida errada” pela qual o outro filho
de criação enveredaria. Catra e Cesar se tornam bons companheiros.
Surfam nos mares da Barra da Tijuca, como qualquer “playboy” carioca.
Catra, inclusive, como conta-me Thamyris em tom de escárnio, passa a
alisar seu cabelo para “tirar onda” e “jogar” a parte frontal de seu cabelo,
como os surfistas costumam fazer.
Ao mesmo tempo em que se aproxima da ilegalidade, Catra passa
a dar andamento à sua carreira artística, e é ao cantar os “proibidos”, as
músicas que enaltecem as ações dos bandidos, que ele de fato firma a sua
trajetória profissional. A emocionante composição em homenagem a
JM, chefe do Morro da Formiga e líder do Bonde da Parma, que agregava
não apenas a Formiga, como o Borel, a Grota e o Morro da Fé, cantada
por um Catra ainda com voz jovem, marca, segundo o próprio artista,
esse momento de transição, que se dá acompanhado de decepção, amar-
gor e enlutamento, como podemos pressentir por meio de sua letra.
Foi num sábado de baile
Que a Formiga entristeceu
Completou sua missão
JM está com Deus
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Irmão JM
Eu canto de coração
Pra você, pro mano Charle
Pro Sapula e pro Torrão
Irmãos e o JM
Eu não canso de cantar
JM de processo
De fé, de fechar
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replicação e individualidade
Na próxima sessão passo a palavra a Sílvia Regina Alves que, ao nos con-
duzir por um pequeno detour etnográfico, nos descortinará outra parte do
mundo que aqui é designado como sendo de Mr. Catra. Mergulharemos
em mais uma tarde na casa da família Catra, e através de uma pequena
construção ela confirmará a nossa percepção da partibilidade das pes-
soas nesse universo ao objetificar uma noção de pessoa que rege a ela, ao
marido e a outros de sua rede de relações e que se aproxima da “pessoa
holográfica”, como conceitualizada por Roy Wagner (1991).
O modelo genealógico, de acordo com Roy Wagner, é o que melhor
concretiza como a “pessoa fractal” não é nem ser individual nem grupo,
mas “uma entidade composta por relações integralmente implicadas”
(Wagner, 1991, p. 163):
As pessoas existem reprodutivamente ao serem “carregadas” como parte
das outras, e “carregam” ou engendram outras ao se fazerem “fatores”
genealógicos ou reprodutivos destas. Uma genealogia é assim um enca-
deamento de pessoas, como se pessoas fossem mesmo vistas como se “bro-
tando” de outras, em uma descrição cinética acelerada da vida humana.
Pessoa como ser humano e pessoa como linhagem ou clã são cortes ou
identificações igualmente arbitrários desse encadeamento, diferentes pro-
jeções de sua fractalidade. (Wagner, 1991, p. 163)
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escapando pela válvula
uma totalidade conceptual; pode se ter tipos de great men como podem
existir variantes do mito” (Wagner, 1991, p. 173).
Por outro lado, o lugar do indivíduo e as idiossincrasias dos sujeitos
emergirão, de modo que ao mesmo tempo em que veremos a replicação
se desdobrando em moldes mais costumeiramente melanésios, nota-
remos atuante a pessoa individual, noção que conduz discussões mais
próprias a valores ocidentais. Contudo, trataremos da “individualidade”
e não tanto do “individualismo” a definir o indivíduo moderno. Como
em Rapport, o indivíduo criativo, o “indivíduo transcendente” [trans-
cendent individual] – a se distinguir do indivíduo transcendental, que
busca transcender as “amarras da sociedade” –, é aquele “que escreve
a si e, no processo, reescreve o seu entorno sociocultural” (Rapport,
1997a, p. 3). “Individualidade”, portanto, não se aproxima do “individua-
lismo” – “uma particular conceptualização histórico-cultural da pessoa”
(Rapport, 1997a, p. 6) – mas é universal e ubíqua, a que nos permite
um paralelo com a pessoa individual entre os amazônicos Piaroa, que
guardam uma noção de individualismo que se foca sobre a felicidade do
indivíduo vivente em sociedade (Overing, 1988). Mas a noção Piaroa
de individualismo se diferencia da nossa na medida em que, em vez de
tomar a sociedade como um objeto sobre o qual a pessoa individual
criará, e à qual o indivíduo criativo se oporá, o indivíduo Piaroa se
detém de impor o seu self sobre a sociedade e se realiza na medida em
que cria a sociedade à sua volta (Overing, 1988, p. 190).
É nesta tensão entre uma pessoa fractal que replica as partes ao
mesmo tempo em que e é replicada por elas e uma individualidade
idiossincrática que meu argumento se constrói. Pois deve notar-se que a
fractalidade da pessoa em Roy Wagner não diz respeito a uma replica-
ção como repetição idêntica, mas à derivação de uma pessoa em outras.
A imagem é holográfica, não espelhada. Cada uma das partes do holo-
grama contém a informação que compõe todas as outras – as “relações
integralmente implicadas” contidas em parte e todo, pessoa e agregado
– mas não originam partes iguais.
Através do desvio que se segue saberemos ainda sobre um terceiro
irmão de Catra, poderoso, e “branco” como César, mas que articula
narrativas que descrevem um mundo radicalmente diferente. E o que
parece diferenciar esses mundos não é tanto a sua cultura como o ponto
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de vista do corpo. Branco e negro se opõem aqui para nos falar de huma-
nidades distintas. Como em Viveiros de Castro (1996), a perspectiva
diferencial que o corpo oferece ao visualizar ontologias diferenciadas
não engloba todos os animais (Viveiros de Castro, 1996, p. 118), ou,
no caso que analisamos, todos os brancos, mas subsume aqueles “rivais”.
As diferentes perspectivas que o corpo possibilita deverão ficar mais cla-
ras nos capítulos em que trato das relações entre materialidade e corpo.
Entretanto, a noção de “frescura” que nos será oferecida a seguir permi-
tirá começar a notar a forte correspondência existente nesse universo
entre corpo e pessoa, como notaram em contexto ameríndio Seeger, Da
Matta e Viveiros de Castro (1987 [1979]). Desse modo, dialogaremos não
apenas com a teoria sobre a pessoa melanésia. Ao levarmos adiante o
estreito nexo existente entre corpo e pessoa, veremos que os mecanis-
mos que geram as concepções de personhood em um contexto funk e no
universo ameríndio mais se aproximam do que se distanciam.
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Depois fico sabendo que se trata de Lenora, que já trabalhou com Catra
como produtora e é mulher do MC Funk, que está naquele momento no
estúdio, junto com “todos os DJ’s”, como me disse Rocha na chegada.5
Cíntia, sentada à mesa da sala de jantar que fica logo atrás do jogo
de sofás, está de costas para a TV acendendo um cigarro. Ao me ver ela
solta um “iiiiiiih!” sorridente, me perguntando em seguida se eu fumo.
Antes que eu responda, Sílvia, do alto do mezanino que abriga o quarto
do casal, afirma em tom de voz firme e alto: “fuma!”, com a jocosidade
que é peculiar a ela e ao marido. Cíntia, ainda sentada, leva sua mão
em minha direção (eu estava de pé, já perto da escada que me levaria a
Sílvia), me oferecendo o cigarro.
Cíntia conta que falou em mim nesses dias. Eu pergunto o que fala-
ram, e Sílvia, sempre do alto, volta a provocar, dizendo que a amiga falou
mal de mim. Cíntia dá o seu sorriso pacífico e diz, na mesma levada, que
“não, claro que não”. Mas Sílvia reafirma o que dissera, e completa: “você
sabe que eu falo mêmo!”. E eu, imaginando elas falarem de mim, disse,
imitando-as: “Pô... Mylene não bota a cara...”. Cíntia sorriu de novo, desta
vez parecendo concordar comigo. E em seguida contou que estiveram
na Terê-Fantasy, tradicional festa à fantasia que acontece anualmente em
Teresópolis, cidade da região serrana do Estado do Rio de Janeiro, e que
sentiram minha falta, pois eu teria tirado ótimas fotos delas.
Subo para entregar a Sílvia a lembrancinha que eu trouxera para
o seu bebê e ela me dá feliz a notícia de que será uma menina. Sílvia
está especialmente agitada nesta tarde. O seu quarto está todo revirado,
graças à faxina que resolveu fazer, mesmo que a faxineira esteja pre-
sente. Sobre a cama de Sílvia, coberta por um lençol de estampa idên-
tica ao que forra o colchão do berço da filhinha que aguarda, estão o
banco revestido por couro marrom com estofamento do tipo capitoné,
os pufes de tecido, os tapetinhos e o enorme leão de pelúcia, que nor-
malmente ficam acomodados sobre o chão do quarto. Sílvia começa a
retirar as coisas que estão sobre a cama pra recolocá-las em seus lugares.
Eu faço menção de ajudá-la, e ela diz que “a Cíntia é assim também”:
não pode vê-la “pegando nada que quer ajudar”. Após colocar sobre o
chão o grande leão de pelúcia – que possui formato tal que fica como
5 MC é designação para o cantor de funk, e é também usada para denominar seu correlato no
hip-hop. DJ é aquele que toca e produz a música sobre a qual as letras serão cantadas.
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com o estilo que ele costuma vestir. Curiosamente, naquela tarde chu-
vosa e fria, Catra está no estúdio vestindo precisamente um conjunto de
moletom formado por calça preta e casaco de zíper, exatamente a roupa
que o boneco veste.
O boneco que representa Catra está rodeado dos muitos leões de
“que ele gosta”, como diz Sílvia. Um dos leões é bem grande, mais escuro
e está deitado, os outros são todos iguais e claros. Estes muitos leões,
penso, remetem aos companheiros de criação e vida de Catra. São os
Leões de Judá, “guerreiros a serviço do Criador”, como ele diz em uma
canção, e formam o “coletivo” Sagrada Família.
Na outra extremidade da montagem, em posição oposta e simé-
trica ao boneco que representa Catra, há uma boneca bem alta de corpo
voluptuoso e de pele cor de canela, como é Sílvia. Em torno desta boneca
maior há uma série de bonequinhos dos dois sexos, que se assemelham
a anjos, eu diria, mas representam crianças, de acordo com Sílvia. Ela
explica: “esse aqui já é o meu lado... porque eu sou mais mãezona”.
Mostra uma bonequinha na extremidade esquerda, abraçada a uma
outra boneca que representa uma mulher adulta e explica que Noemi,
então sua caçula, com quatro anos de idade, fala que aquela é ela “agar-
rada” à saia da mãe. Há outras três mulheres adultas na instalação: estão
ao centro rodeando uma fotografia de seu marido com um bebê. Tanto
essas três bonecas como a dupla de mãe e filha que está ao lado de Sílvia
têm um layout talvez africano, de todo modo distinto da grande boneca
que está ao canto esquerdo.
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6 Esta casa de espetáculos, localizada na Lapa, Zona Central da cidade do Rio de Janeiro, realiza
periodicamente o evento “Eu Amo Baile Funk”, dedicado a cantores em ascensão que são ao
fim da noite “fortalecidos” por artistas que já alcançaram projeção com o ritmo musical.
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recebeu o nome de Wagner, e ela diz que é porque Catra sempre quis um
filho com seu nome. Pergunto por que não Fernandinho, por exemplo,
já que é mais velho, e Sílvia explica que Fernando “já veio com nome”.
Catra, ao conhecer este filho, tomou conhecimento também de seu
nome, dado pela mãe biológica do menino sem a participação do pai.
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no nome deste filho que, por este motivo, o “ajuda”. Thamyris interpreta
de modo diferente. Diz que o “único” que ficou rico foi este tio, que
ao notar que o pai perdia dinheiro na “bolsa”, “passou tudo para o seu
nome”. Thamyris reforça que é com Catra que o avô tem mais afinidade:
“é o filho que melhor o entende”, acrescentando que é Catra quem o leva
para as boates de shows eróticos.
a família hoje
Sílvia e Catra estão juntos há mais de dez anos. Foram Catra e Sílvia
que assumiram Nêgo ainda bebê, entregue ao pai pela mãe, com quem
Catra tivera um relacionamento fortuito. O casal criou ainda Thamyris
e Fernandinho, pois a mãe deste último, então com onze anos de idade,
“não cuidava dele direito”. Nêgo chama Sílvia de “mãe”, Thamyris a
chama pelo nome e Fernandinho a chama de “tia”. À Thamara conheci
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7 Em entrevista a Revista Trip, edição de junho de 2009, Catra afirma que possui 18 filhos e que
é “casado” com cinco mulheres.
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Sílvia está magra. Veste um top bem curto e um short bem baixo,
em nylon preto. Achei-a mais jovial. Leve. Silvinha, por sua vez, está
linda. A mãe a penteou e vestiu com esmero. Fez várias chuquinhas,
dividindo assim o seu cabelinho preto e crespo, e aplicou na parte presa
bastante gel de cabelo, com o auxílio de uma pequena escova, dessas que
se usam para os dentes. O cabelo ficou impecável. Depois lhe passou
bastante óleo corporal e perfume. Sua pele negra ficou reluzente em um
vestido branco, sem mangas, com faixa na cintura em xadrez branco e
rosa e flores coloridas aplicadas.
O altar de Sílvia não está mais ordenado como quando o conheci.
Os únicos bonecos que permanecem no mesmo lugar são dois, aqueles
que representavam a ela e a Catra. Se Sílvia procurou garantir a ordem
em seu mundo através de algum tipo de volt sorcery, a própria vida tra-
tou de produzir seus efeitos sobre o seu objeto de arte. Se a vida é o
protótipo do objeto, ela então imprimiu sua agência sobre o mesmo. A
fotografia de seu marido com o filho pequeno não se encontra mais lá,
e as bonecas femininas que a rodeavam estão espalhadas pela base da
instalação. As crianças também estão espalhadas, e os leões que acom-
panhavam o boneco de Catra desapareceram. Há, porém, um leão extra,
que está levemente deslocado do centro. É feito de látex, e poderia ser
um brinquedo infantil. Tem traços hiper-realistas e a sua boca está lar-
gamente aberta, como se o animal desse um grande rugido.
Mas se os bonecos de Sílvia estão embaralhados em seu altar, a
ordem parece assegurada em sua cama. A colcha de plush que a cobre é
estampada por uma grande imagem de um casal de felinos abraçados,
aconchegados um ao outro. Na metade da coberta que corresponde ao
lado de Sílvia está reproduzida uma onça pintada, e do lado que corres-
ponde a Catra vemos um leão. Ambas as imagens possuem novamente
traços hiper-realistas e estão margeadas por um fundo vermelho sangue.
Sobre o travesseiro de Catra está recostado um macaco de tecido atoa-
lhado marrom escuro, e sobre o de Sílvia uma boneca de pano, de pele
clara e rosada e cabelos em lã amarelo claro, trançados.
Os bonecos felinos que estavam em sua mesa de cabeceira tam-
pouco estão presentes. E sobre a mesa correspondente a Catra estão dois
livros. Um deles é sobre o Comando Vermelho. O segundo, acomodado
abaixo deste, é a coletânea que lhe dei, onde consta um artigo de minha
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8 Esta mesma explicação ele concede no filme documentário Mr. Catra, o fiel.
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9 A reportagem da revista Trip, edição de junho de 2009, adjetiva a música “Facção”, também
chamada de “O fiel”, como “hino ao Senhor e às facções criminais”.
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vingar do assassino de seu irmão.10 Mas Mr. Catra explica que, mesmo
“evangélico”, possuía “muitas dúvidas, sobre muitas coisas”, e foi ao visi-
tar Israel e o Muro das Lamentações, em Jerusalém, que ele passa pelo
que pode ser considerado como uma segunda conversão. A sua ade-
são ao judaísmo possui, segundo ele, fundamento espiritual, místico e
simultaneamente político. Pois foi o que sentiu lá aliado à decepção que
sentiu ao chegar aqui que o modificou.
Botei papelzinho e o que eu senti lá [no Muro das Lamentações], eu não
consigo nem explicar.11 O que me transformou foi o que eu senti no Muro.
Aquela sensação boa, tá ligado? Saí de alma lavada. Foi do jeito que eu me
senti. Dá uma vontade de chorá. Mas é bom. Você não tá triste. Você tá se
fortalecendo. Você não sente tristeza. As pessoas não choram de tristeza.
Mr. Catra acredita que durante todo esse tempo foi enganado. Que
Jesus sofreu um “golpe de Estado”, pois como é possível que não haja
um Evangelho de Jesus, nem de Judas, “seu melhor amigo”? Por acaso,
pergunta, “Jesus de Nazaré, o Rei dos Judeus, rabino e criado no templo,
era analfabeto?”. Recentemente vem se perguntando “quem foi que usou
Jesus para dividir o tempo?”. Afirma que a sua religião é a de um “povo
que passou por vários holocaustos” e que aqui no Rio de Janeiro aconte-
cem holocaustos diários.
A fascinação e a admiração de Mr. Catra pela Terra Prometida
parecem estar relacionadas tanto à sua tradição religiosa como à feição
moderna do Estado de Israel, país cuja fundação, em 1948, foi feita em
bases socialistas, regidas por uma ideologia igualitária, e que, de acordo
com o que vivenciou Mr. Catra, não exclui nem oprime como nas cida-
des brasileiras. A leitura de Mr. Catra surge marcada por uma interpre-
tação que encontra explicação na própria cosmologia associada a uma
religião distinta da católica, que viabilizaria um respeito pelo outro, dife-
rente do que pode ser por ele experienciado no Rio de Janeiro.
10 Esta passagem da vida do artista está registrada no documentário Mr. Catra, o fiel (2005), em
que Catra conta que seu irmão foi morto por um colega da escola que, passado a policial, teria
“subornado” este irmão e, com medo de uma denúncia, armou-lhe “uma tocaia” e o matou.
Catra decide vingar a morte do irmão e matar o policial, que é antes morto por uma terceira pes-
soa. O MC vê no ocorrido uma intervenção divina, que o impediu de cometer um assassinato.
11 Refere-se ao costume de se colocar pequenos pedaços de papel nos quais são escritos os pedi-
dos ao deus. Estes bilhetes são dobrados e inseridos nas fendas do muro, formadas pela junção
de um e outro bloco de pedra.
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12 “Playboy” é a categoria nativa que designa os antigos “filhinhos de papai”, os filhos de pais “com
condições”, que não precisam trabalhar para garantir o seu sustento. A terminologia é utilizada
como categoria de acusação por funkeiros e favelados para deles se diferenciarem, dinâmica
que será aprofundada adiante.
13 Os “etíopes” formam um grupo de judeus negros que foram retirados de seu país de origem, a
Etiópia, onde viviam em situação muito precária.
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Catra com a “religião dos hebreus”, modo como ele denomina a crença
que constrói de maneira pessoal e particular.
Mr. Catra compôs em hebraico com seu parceiro Sapinho, um judeu
branco, nascido na Tijuca, o bairro no qual Catra viveu e que abriga a
favela do Borel, território pelo qual ele antes circulou. Sapinho hoje vive
em Israel e de policial passou a cantor de funk carioca.
Atem tzrichim leavin
Tzarich latet kavod
Bishvil lekabel kavod
Daber she zé anachnu
Baruch atah adonay
Eloym achi chashuv
Ichié baruch Yerushalaim
Na minha casa
O mal não vai entrar
Tem a Bíblia e o Alcorão
E na porta mezuzá
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Jerusalém
A melhor noite que tem
Jerusalém
A melhor noite que tem
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Catra explica a Sandro, o DJ, como lhe parece que a batida eletrônica a
acompanhar o refrão da versão da música deve ficar, e simultaneamente
se diverte com o resultado de sua criação, gargalhando. Sandrinho escuta
o MC e se dirige a Jota, o tecladista, preocupado que está em adequar o
timbre de sua bateria eletrônica ao tom do teclado na música “4x4”, tam-
bém conhecida como “Adultério”, versão parodiada da canção “Tédio”,
do grupo de rock Biquíni Cavadão. Mr. Catra pode-se fazer acompanhar
por mais de um músico a tocar instrumentos acústicos, mas nesta noite
só o teclado de Jota estará ao palco. Jota faz parte da Sagrada Família,
como o coletivo de músicos se autodenomina, que tem Mr. Catra como
seu componente mais conhecido. Apresentam-se em grupo ou indivi-
dualmente, mas estão sempre juntos, no mesmo “bonde”, que aqui não é
de bandidos, mas de parceiros de criação e de vida.
A passagem de uma música a outra é muito pouco formal, assim
como toda a atmosfera do ensaio. Parece mesmo uma reunião de ami-
gos, de modo que sou muitas vezes pega de surpresa. Mr. Catra inicia
uma pregação, com a voz grave como a de um pastor, mas simultanea-
mente bem-humorada: “Eu queria convidar vocês pra um momento
de reflexão nas suas vidas. Irmãos e irmãs... Nesse exato momento...,
agora... Abra seu coração, abra sua mente, e deixe tudo de bom entrar...
Então, irmão. Vem comigo...”. Levanta o tom de sua voz e, de modo vigo-
roso, fala: “Putaria que é bom!”. Eu dou uma gargalhada isolada e dis-
sonante, surpresa com o inusitado da cena, me dando conta de que o
que assisto será efetivamente performado no show que acontecerá mais
tarde. Em seguida, Mr. Catra grita: “Isso?! Nem no circo tem, nem no
circo tem!”, o que leva seus parceiros a produzirem um clamor de apro-
vação e, aí sim, soltarem a sua gargalhada. Mr. Catra dá sequência ao seu
louvor, sempre com a voz imposta, como a de um pastor: “Glorificado
seja o seu emprego...”, e gargalha. “Santificado seja o seu...”, e emite novas
gargalhadas. Jota acompanha a pregação com seu teclado, e Sandrinho
regula o som de sua bateria eletrônica de acordo com o tom que segue o
tecladista. E Mr. Catra finaliza: “Vamos orar agora por aquelas meninas
que estão naquele local... Naquele local!”. O MC desata o seu riso final, e
o DJ eleva o som das batidas eletrônicas.
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Parte II
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de seu contexto de produção, busco ver o que o funk tem para dizer de si
mesmo e de que modo é possível defini-lo como gênero musical. Dessa
perspectiva, isolarei a especificidade de sua lógica apropriativa, anterior-
mente referida como “um estilo da bricolagem sonora” (Vianna, 2007)
ou um “pegue e misture” (Herschmann, 2000a, p. 222), aprofundando
o seu sentido em minha exploração.
o estúdio de gravação
O Estúdio Sagrada Família fica separado por um muro da casa onde
vivem Sílvia e as crianças. É lá que Catra realiza as gravações de suas
canções bem como são efetivadas as produções de músicos de fora,
aqueles que não pertencem ao núcleo duro do “coletivo”. Este é com-
posto por Dr. Rocha, Jota, WF, Kapella, e Mr. Catra, além de Beto da
Caixa que, passado um tempo, se afastou do grupo. Trabalham juntos e
em separado, se apresentando em conjunto e mantendo seus trabalhos
individuais. As fronteiras desse “coletivo” são também fluidas e podem
abarcar “todos aqueles que fecham com a gente”. O estúdio poderia ter
seus ganhos incrementados por produções externas. Entretanto, só são
recebidos ali artistas que de uma forma ou de outra tenham afinidade
com o coletivo, que sejam “amigos”. Alguns destes possuem um vínculo
mais forte com Catra, estabelecendo com o artista uma relação que
poderia se chamar de apadrinhamento. O que coloca o estúdio em ação
são mais questões que concernem às relações sociais e à criação artística
do que o mero ganho monetário, ainda que, como mais tarde me diria
Dr. Rocha, o estúdio precisa em algum momento “dar um retorno finan-
ceiro”, pois por hora ele trabalha apenas “pra nós mesmos”.
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disputavam pra ver quem pularia o muro para abrir o portão do outro
lado. Por fim, com o tempo surgiu a possibilidade de ligar de fora para
o telefone móvel de algum dos músicos dentro do estúdio, o que, nova-
mente, não produzia resultados imediatos, pois os números telefônicos
eram recorrentemente alterados, os aparelhos telefônicos eram empres-
tados, eu poderia não dispor do número telefônico do profissional que
ali se encontrava, simplesmente não escutavam ou ignoravam a minha
ligação, a bateria do telefone poderia estar descarregada, e assim por
diante. O meio de comunicação mais eficaz era o uso de rádios do tipo
Nextel, que eu não possuía.
As minhas chegadas se faziam frequentemente no meio da tarde,
por volta das três horas, horário em que o estúdio de fato começa a fun-
cionar. Quem costumeiramente abria o portão era Tio Rocha, ou Dr.
Rocha, ou simplesmente Felipe, como só Catra o trata. Rocha, por sua
vez, pode referir-se a ele como Negão ou Catra, mas o usual é que cha-
me-o de Wagner. Os dois são primos e trabalharam juntos no início da
carreira de Catra, logo que este deixou o grupo Caravana do Borel. Mr.
Catra e Dr. Rocha formaram assim uma dupla de MCs, como era moda
na época. Escolheram seus nomes artísticos de modo a “homenagear” a
“localidade” de onde vieram. Ambos moravam na rua Rocha Miranda,
muito próxima à rua Doutor Catrambi, no Alto da Boa Vista. Esta última
rua deu origem ao nome artístico de Catra, que adicionou o Mister, tam-
bém em voga naquele momento, enquanto Rocha acrescentou o Doutor
ao primeiro termo do nome da rua em que moravam. Beto da Caixa,
também morador da mesma área, tem seu codinome em referência à
“caixa d’água”, um reservatório da Companhia de Águas e Esgotos do
Rio de Janeiro, CEDAE, localizada nas proximidades da comunidade
onde morava, no alto da rua Doutor Catrambi.
A origem dos nomes artísticos de Catra, Rocha e Beto reflete a
relevância que possui o território na vida dos jovens funkeiros, traço
especialmente evidenciado pelos bailes funk dos anos 1990, em que a
briga violenta e lúdica colocava em relação, através do embate, galeras
de distintos lados da cidade, como pode se aferir a partir de trabalhos
produzidos em meados da referida década.1 Hoje, essa mesma lógica da
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(...) ideal... Tanto que ele invadiu tudo. A música, independente da letra,
ela é forte. Invade qualquer lugar. E eu gosto disso. Acho legal isso. Podem
vir mil barreiras, mas o funk, ele passa por todas essas barreiras. Faz parte
do Rio de Janeiro. Ele mesmo se fixou. Tô aqui. Não saio mais daqui.
2 “É nóis no amor”, MC Kapella, música do CD Os brutos também amam, que reúne produções
da Sagrada Família.
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“situação” mais estável em sua trajetória artística ele reuniu “os amigos
dele que gostavam também da música” para com eles “dividir o fruto” de
seu trabalho e para que “seus amigos plantem e possam colher também”.
Encerra reenfatizando que Catra poderia “sozinho” seguir sua vida, “mas
ele, por dentro, ele é isso que você está vendo: os amigos, o trabalho”.
Ouço os pés que deslizam sobre a pedra brita. O portão que dá para
a rua se abre, e vejo o rosto de Rocha com seu sorriso largo e enigmático
me cumprimentando. Sorrisos, não risos, são pouco usuais nesse con-
texto. O estilo manda que se mantenha o cenho fechado ou indiferente.
Refaço com Rocha o caminho pela área externa que nos adentra efe-
tivamente no estúdio de gravação. Passamos pela antessala de piso de
pedras. O mesmo revestimento cobre o chão do corredor que nos leva
à saleta com uma grande televisão e que dá para um pequeno banheiro,
em frente ao qual há uma velha geladeira. Atravessamos a primeira
porta à prova de som, que nos coloca no corredor que dá acesso às duas
salas do estúdio propriamente. A partir daqui tanto piso como paredes
são revestidos de um material que se assemelha à madeira, e em alguns
trechos as paredes foram grafitadas por artistas de hip-hop, trazidos por
Kapella. Na primeira sala está Buiú, o DJ mais jovem da companhia, e
Harley, também chamado de WD e irmão de WF.
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É por este motivo que aquele que canta esta variante de funk rara-
mente possui voz apropriada para cantar um melody. Foi isto que cau-
sou a inadequação de voz e base presente na música em que o produtor
Kapella trabalhava. Como o cantor não possuía em sua voz a melodia
necessária para a execução de uma música do subgênero, acabou-se
por “exagerar” na melodia da base musical, e a produção resultou dis-
sonante de seu estilo.
O modo como a voz determina o tipo de funk que se irá cantar
fica evidente também através de outro exemplo. Passados vários meses
do início do trabalho de campo, Catra começou a se fazer acompanhar
em suas performances por uma dançarina, Yani de Simone. No show
de Catra, Yani apenas dançava, mas, antes de seguir por carreira solo, a
moça posou para uma revista de nus, voltada para o público masculino,
e gravou músicas no estúdio Sagrada Família. Algum tempo depois, com
Yani já seguindo rumo próprio, Sheila, como a chamarei, participou
como dançarina de algumas performances de Catra. Como Yani, Sheila
gravou canções no estúdio e muito chamou a minha atenção a beleza
e afinação de sua voz, o que comentei em voz alta. Sheila me explicou
então que ainda pequena cantava no coro da igreja que frequentava com
sua família e Catra adicionou que ela poderia cantar qualquer coisa, ao
contrário de Yani, que só “pode” cantar Putaria.
ética e estética
Jota conta-me a sua trajetória por meio de uma história musical de vida.
Ele hoje tem cerca de 34 anos, e diz que “curte funk desde moleque”.
Depois “virou cristão” e aos doze anos “entrou para a igreja”. Jota possui
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uma arraigada fé em Deus, e acredita que mais do que este, foi a música,
ou melhor, um objeto musical, que o levou para a Igreja de modo a colo-
cá-lo em contato com Ele.
Quando eu vi aquilo, que eu entrei na igreja que eu vi o teclado... Vamos
dizer..., não foi nem Deus, né? Deus falou: “olha pro teclado que tu vai me
ver”. Fiquei preso com aquilo ali.
Desde pequenininho
Eu vivi no meio disso
E pela hierarquia
Eu assumi o compromisso
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A autonomia que emerge das falas de Jota, Rocha e Black Ney rela-
ciona-se à independência que o funk possui da indústria fonográfica
formal, notada desde os seus momentos de fundação e se afina com as
exigências postas pela reestruturação da indústria fonográfica (Vianna
1988; Herschmann 2007). Mas, em vez de me ater a questões merca-
dológicas, me interessa seguir pela pista deixada por meus amigos em
campo e elaborar sobre a estreita vinculação que se estabelece no funk
entre arte, criatividade, difusão e circulação. Padrão estilístico e circuito
de consumo se equiparam. Continua Jota:
O funk precisa de harmonia, mas você não pode exagerar muito. Tem um
padrão. O funk tem um padrão, você não pode viajar. O padrão seria o que
vai tocar num circuito que já existe, favela, boate, se não você vai ficar com
um funk pra ficar escutando dentro de casa. Não vai ser comercializável.
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Me dou conta de como ele fala rápido, e ainda arfa graças ao cigarro
que fuma. A voz de Sandro, de uma potência que só os DJs possuem, me
deixa ainda mais descentrada. Mas recobro o prumo.
Catra está chegando da praia e pela primeira vez acho-o com cara
de rico, de “playboy fudido” como ele me dissera. Sua roupa não é em
si suficiente para me dizer porque o vejo deste modo. A informação
está na sutileza da diferença em relação às roupas que ele usualmente
veste. Traja uma blusa t-shirt branca relativamente comprida e ampla,
cobrindo os quadris, mas não oversized como as blusas da Manos, a grife
paulista que o patrocina, produtora de roupas no estilo hip-hop, de cores
fortes e estampas marcantes. A blusa que traja é estampada por uma
grande imagem, que cobre boa parte da sua frente, mas os desenhos e a
escrita em letra corrida, feitos de um traço fino e em tom de um cinza
meio claro, produzem um efeito de fading, em tom de preto esmaecido,
como se já bem desbotado pelo uso e pelo tempo. Ele veste bermudas de
microfibra estampada por desenho abstrato, em tons de marinho, verde
bandeira e branco, e calça um par de sandálias de dedo Havaianas. Não
usa óculos de sol, nem cordões, e traz um único anel no dedo anelar
direito, em ouro amarelo, com um reluzente cabochão engastado. Catra
parece mais magro, e a sua blusa t-shirt não o deixa nem com o look de
hip-hopper, como usualmente se apresenta, nem com o ar de pagodeiro
como o vimos na passagem de som da Fundição Progresso.
Ele me pergunta se eu “trouxe a música”. Na última vez em que eu
estivera no estúdio eles tentavam baixar a canção “O meu amor”, do
musical A ópera do malandro, com letra de Chico Buarque e interpre-
tada por Marieta Severo e Elba Ramalho. Sabe-se lá por que não con-
seguiram fazer o download, mas o que me parecera interessante foi o
fato de somente Catra e eu conhecermos a música que ele buscava. E
esta não era apenas uma questão geracional, já que Rocha, da mesma
faixa etária que a nossa, também desconhecia a música. Era, talvez, uma
questão de formação e circuito.
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Entrego-lhe o pen drive com a música, ele o repassa para Sandro, que
o “espeta” no computador. O computador do estúdio está configurado
para receber quatro HDs externos diferentes: o de Kapella, o de Sandro,
o de Buiú e o de Ratinho, funcionando como quatro diferentes compu-
tadores. Cada um deles chega e conecta o seu equipamento portátil, ou
“espeta” o seu pen drive para alimentar o seu acervo de sonoridades.
“Se liga na letra, Sandrinho. Esquece a música e se liga na letra”,
orienta Catra. Antes que a música se inicie eu falo que ela tem um ins-
trumental bem leve, e ele diz que “então essa é outra [versão]”, pois a
que conhece “tem um sax forte”, e cantarola o som do sax. Ele não tinha
certeza quanto às intérpretes, pois afirmara, então, que a canção era
cantada por Tânia Alves, o que eu lhe disse saber que não era verdade,
mas acertou em cheio quanto à sua musicalidade. A música começa
a tocar e entra um sax que eu reconheço ser importante, e justifico o
meu equívoco dizendo que pareço estar tão acostumada com o funk
que o referido instrumental me parecera muito leve. Ficamos ouvindo.
Catra fala agora para Rocha que ele preste atenção na letra, notando
como ela é “sensual” e “erótica”, e Rocha concorda. Pergunto a Catra
se ele fará uma paródia da música, e ele responde negativamente. Diz
que será como é “no original”. Catra parece querer mostrar que funk e
MPB não estão tão distantes assim, e que a sensualidade nas letras não é
privilégio do funk, como Rodrigo Faour mostra em seu História sexual
da MPB (2006). A música, a princípio, seria cantada por Yani, o que
acabou não acontecendo, talvez pelo fato de sua voz, como o próprio
Catra me diria “só se adequar à putaria”.
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca
Quando me beija a boca minha pele toda fica arrepiada
E me beija com calma e fundo até minha alma se sentir beijada, ai [...]8
123
a estética funk carioca
A gente veio do miami bass, que é originário do techno pop, que é o início
da música eletrônica, o Kraftwerk. Porque tudo começou em Stuttgart, e
veio pra cá pro Brasil como música eletrônica. Entrou com aquele suin-
gue novo e juntou naquele beat eletrônico. [Mas] passou primeiro pelo
Estados Unidos: Run DMC, Soulsonic Force, Afrika Bambaataa, que fize-
ram o miami bass e o eletro funk, tá ligado? E veio para o Brasil. No Brasil
a gente ficou vários anos dependendo da base dos gringos pra tocar.
124
autonomia da arte, criatividade e difusão
o irmão mais velho, que era também disc-jóquei. Sandro começou a dis-
cotecar aos quinze anos de idade, e hoje concilia o trabalho com Mr.
Catra com a carreira independente que lhe garante sólida presença na
Europa. Ele afirma que fez um trabalho pioneiro, abrindo caminho para
a penetração de outros DJs de funk carioca, que hoje fazem turnês bia-
nuais pelo velho continente, como o já mencionado Edgar.
Conversamos sobre a música “Olha a vibe”, recém produzida por
ele, e a primeira constatação a que chego é que a noção de “canção”, no
sentido de uma composição musical, popular ou erudita, para ser “can-
tada”, vai se tornando inválida para designar as produções funk.9 Rocha
já antecipara esta ideia, ao defender que o funk, hoje, depois do surgi-
mento das “montagens”, não permite mais letras longas, como o próprio
Jota falara, ao afirmar que o hip-hop não pode abarcar melodia e letras
tão simples como o funk faz. O que Sandro fará, entretanto, será manter
a simplicidade da letra, na verdade excluindo-a e transformando pala-
vras e fraseados em som, de modo a produzir uma longa “montagem”
funk altamente rica em conteúdo melódico, e ainda assim se manter fiel
ao ritmo musical no qual se engaja.
9 A discussão em torno do “fim da canção” não é nova e foi suscitada justamente pela potência
do rap. O pontapé inicial do debate teria sido dado por Chico Buarque, que em entrevista ao
Jornal Folha de São Paulo disse ver no rap uma forma de “negação da canção” (<http://www.
chicobuarque.com.br/texto/mestre.asp?pg=entrevistas/entre_fsp_261204c.htm>). Buarque
teria sido inspirado pela crítico José Carlos Tinhorão, que por sua vez afirmara que o rap viera
“restaurar a música da palavra” (apud Barros e Silva 2009). Por fim, José Miguel Wisnik
argumenta que já chamara atenção para a “grande novidade” que significou o rap no cenário
da música popular nacional (Wisnik, 2004, p. 319-333).
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a estética funk carioca
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autonomia da arte, criatividade e difusão
[Êta pô!]
Atenção, atenção!
130 BPM
[A pedido, a pedido]
[A pedido, a pedido]
Olha a vibe me’irmão!
[Ap, ap, a pedido]
Atenção, atenção!
Vamo comecá do jeito certo
Do jeito que tem que ser!
Aqui tá proibido! Tá proibido! Tá proibido!
Olha a vibe me’irmão!
Êta pô!
[Que isso. Como é que é o bagulho?]
[Êta pô!]
[A-a-a-a-a-a, à pedido]
[A pedido, a pedido]
Olha a vibe me’irmão!
[A pedido, a pedido, a pedido]
Para tudo
Vamo comecá do jeito certo
Do jeito que tem que ser!
Aqui tá proibido! Tá proibido!11
Rindo de minha pergunta sobre quem teria tido a “ideia” que ori-
ginou a música, Sandro me responde que “não teve ideia nenhuma” e
repassa comigo os procedimentos que tomou e lhe permitiram originá-la.
Chama assim atenção para o lugar que o processo de criação artística
possui na compreensão dos mecanismos que regem a criatividade, como
problematizado recentemente em dois diferentes trabalhos.
Matthew Rampley (1998), especialmente interessado na criação
artística, busca uma alternativa para a apreensão e definição de criati-
vidade que escape às definições kantianas de arte como pertencente ao
domínio do extraordinário e de “gênio criativo”, persona soberana de
toda fonte de criação. Rampley se volta para a teoria do “acompanha-
mento de regras” [rule-following], como elaborada por Wittgenstein,
127
a estética funk carioca
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autonomia da arte, criatividade e difusão
frases que queria usar. Fez também a base, um “corpo da música todo
eletrônico”, com samplers, sons tomados de empréstimo ao house.
Em seguida, Sandro colocou sobre a base de house, beats de funk,
bem como as vozes funk, “mais cantadas, mais suingadas, mais meló-
dicas” em contraposição à voz “mais sampleada” do house. A esco-
lha do house não é aleatória. Ocorre pelo fato de as músicas deste
ritmo possuírem a mesma “velocidade” que o funk, as mesmas bati-
das por minuto, em torno de 129 e 130 BPMs, dependendo do produ-
tor.12 Algumas produções de hip-hop também podem ser sampleadas
e incorporadas ao funk. Catra, quando da visita de um “DJ de fora”,
incorporou a base feita a partir do sampler de uma música do rapper
norte-americano Jay-Z a uma música sua funk. Conseguiu fazer isso,
explica Sandro, porque a música do norte-americano possui 65 BPMs
de velocidade, a metade das 130 BPMs que possui o funk, permitindo
assim o casamento de um e outro ritmo em uma mesma música funk.
Voltando à “Olha a vibe”, Sandro decide então “brincar” com a simi-
laridade e a diferença. A diferença com que as vozes são trabalhadas
em um e outro ritmo é presentificada pela voz cantada de Catra. Esta é
“suingada” e “melódica”, em contraste com as vozes “mais sampleadas”
do house. E com a fala e a voz de Catra são afirmadas as equivalências de
velocidades que possuem os ritmos: “130 BPM!”. A diferença na cadência,
no beat do house, que “é aquela coisa reta, que não tem virada” é sobre-
posta pelas “viradas loucas” do funk, que “vai, volta, vai, termina, volta”.
Sandro vibra com sua criação: “Parece uma escola de samba
entrando na avenida!”. Logo que Catra e Sandro começaram a traba-
lhar, ainda em 2000, o MC teria lhe dito que gostava de suas músicas
com muita “percussão”, algo incomum na época, o que levou Sandro a
perguntar se Catra era “macumbeiro”. Ao provocar Catra com a sua per-
gunta, pois ser chamado de “macumbeiro” nesse contexto pode ser uma
ofensa, Sandro denotava o seu estranhamento com a solicitação de Catra
para inserir elementos percussivos na música funk. Gostar de “batuque”
parecia-lhe incomum entre funkeiros e faria mais sentido entre aqueles
12 A velocidade das músicas funk varia de 129 a 130 BPMs, de acordo com o profissional que rea-
liza a produção. Sandro defende a unificação das velocidades para 130 BPM de modo a facilitar
o trabalho do DJ, tanto no momento da produção musical no estúdio, como nas mixagens
feitas ao vivo nas apresentações em casas noturnas.
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13 A comparação com o pagode romântico não é aleatória. O ritmo partilha parte do público do
funk, como mostro em minha dissertação de mestrado (Mizrahi, 2006b). A relação entre um
e outro ritmo ficou evidente também na pesquisa de doutorado. Muitos dos shows de Mr. Catra
acompanhados por mim foram antecedidos ou sucedidos por apresentações de grupos de pagode.
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a estética funk carioca
14 O tecno-brega, ritmo musical das “festas de aparelhagem” que acontecem em Belém do Pará,
também se alimenta das gravações que são feitas ao vivo durante os eventos. Esta prática, no
entanto, é mais assumida do que no funk carioca, sendo explicitamente incorporada à engre-
nagem de difusão e comercialização do ritmo. Os shows são gravados sistematicamente e seus
discos posteriormente vendidos ao público.
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a estética funk carioca
é uma inovação que surge em função da busca de seus agentes por uma
maior circulação do ritmo que se “encaixou” no gosto carioca e brasi-
leiro, como disse Rocha. Assim, se falas mais informadas por uma noção
que apreende produção e consumo em uma chave dual entendem que
o mercado “impõe” ao MC de funk que ele cante coisas “vergonhosas”,
vemos que foi a sintonia entre a sensualidade das letras e a expectativa
do público que produziu a novidade. Dessa perspectiva, a audiência
ampliou os limites para que a inovação ocorresse. Como coloca Sahlins,
não devemos ser ingênuos a ponto de acreditar em uma imposição do
gosto por meio de ações conspiratórias por parte dos produtores, mas
não podemos tampouco cair na “mistificação inversa” e crer que a pro-
dução capitalista é uma resposta exclusiva aos desejos do consumidor
(Sahlins, 2003, p. 184).
As contendas que as apropriações geram entre os artistas funk deri-
vam não do ato de incorporação propriamente dito, pois já vimos como
ele é mola propulsora da engrenagem de produção, mas quando um
destes, ao invés de “criar” algo “novo” com as partes tomadas de emprés-
timo, simplesmente incorpora a produção integralmente, mudando a
voz e declarando-a de sua autoria. Não produz assim algo “novo”. Desse
modo, se os discursos dentro do estúdio trazem à tona a relevância que
soluções cotidianas adquirem no processo de feitura de uma música,
se afinando com as perspectivas que descentram o poder do “gênio
criativo” e a inovação e privilegiam o aspecto processual como chave
para a elucidação do que rege a criatividade (Rampley 1998; Ingold
& Hallam 2007; Ingold, 2007a), os artistas funk afirmam toda a sua
pertença à modernidade e ao Ocidente ao explicitarem o valor que atri-
buem ao novo, à inovação e à tecnologia.
As rivalidades entre os artistas funk colocam uma interessante ques-
tão no que toca a autoria e o lugar da individualidade entre os mesmos.
Pois se as apropriações dos samplers acontecem livremente, a partir da
noção de que este é de domínio público, material disponível para a livre
criação, o resultado da ideia, da criação, é privado. De um lado, a música
funk pode ser considerada um “híbrido”, no sentido que detentora de
uma propriedade intelectual que deriva em uma rede que articula dife-
rentes donos, como contido na noção melanésia de propriedade e criati-
vidade (Strathern, 1999). Este traço pode ser notado em músicas que
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Então vem...
Vem conhecer o prazer
Eu quero nha, nha
Te enlouquecer
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Buiú fala o mesmo, de modo ainda mais direto: a música “tem que
agradar ao DJ: é aí que o bagulho vira”. A favela não surge apenas como
fonte de autenticidade para o funk, mas ela age em sua difusão. É o
consumo que ela exerce que fará de uma música um sucesso ou não.
Rodrigo, o MC Novim, sobrinho de Mr. Catra, explica de modo simi-
lar a estratégia da qual ele, como outros artistas funk, se utilizam para
lançar uma música.
Pra tu fazer sucesso, primeiro tu tem que ter tuas música estourada nas
favela. Se tuas música não estiver estourada nas favela, tu não vai estourar
no Rio de Janeiro, e nem no Brasil.
Primeiro a música precisa ser sucesso nos bailes, e para que isto
ocorra o passo inicial é entregá-la a um DJ. É preciso que este goste da
música para que ele a execute na festa. Uma vez que isto tenha ocor-
rido, a audiência dos bailes irá dar o seu referendo. Se ela agradar, che-
gará aos mercados de comércio informal, como o da rua Uruguaiana,
no centro da cidade, Rio de Janeiro, e aí poderá chegar à TV, depois às
rádios e finalmente alavancar a contratação por shows. Este mecanismo
é a perfeita inversão das lógicas distintivas, como ilustradas por Simmel
144
autonomia da arte, criatividade e difusão
20 Apesar de inusitadas, não são surpreendentes as fontes destes samplers. Obedecem à lógica que
explicitei acima sobre a inserção de samplers e a definição dos “elementos funk”. O termo “pica
pau” faz referência jocosa à sexualidade, mais precisamente ao órgão sexual masculino, e o uso
do Messenger era constante entre os jovens com os quais trabalhei.
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Vem morena
Quero te namorar
Tu vai ficar comigo
Pra sempre eu vou te amar [...]21
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Capítulo 4
Englobamento e subversão
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ter sido educado no seio de uma família branca de classe média e ser por
ela adotado, permitiu a este negro, filho de uma empregada doméstica
e por ela simultaneamente criado, ter acesso a um conhecimento dife-
renciado. Mas a capacidade de mesclar diferenças e se reinventar é, ao
meu ver, um traço também próprio ao funk, de modo que este apresenta
a Catra a possibilidade de fazer música ao seu modo, reinventando e
inventando a si e à arte.
O segundo aspecto a ser evidenciado, diz respeito ao papel que as
imagens possuem no processo de criação funkeiro. Procurarei explicitar
como essa categoria “mente”, utilizada por todos, estejam eles envolvi-
dos na criação ou nos afazeres domésticos que fatalmente suportam a
criação, nos fala de uma qualidade de articulação e processamento do
“pensamento” que se faz fundamentalmente através das imagens. As
imagens entram e saem pela cabeça, e o que temos são imagens outras,
que podem ser verbais, como as expressas pelos artistas nas letras das
músicas, ou visualizáveis no processo da representação e apresentação
de si. Portanto, se, de uma perspectiva mental, será mais especificamente
a letra das músicas que privilegiaremos nesta parte da tese, o corpo se
fará inevitavelmente presente. Este capítulo oferecerá, assim, a amarra-
ção desse ir e vir de imagens que circulam pela mente e pelo corpo dos
sujeitos criativos desta tese.
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a estética funk carioca
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englobamento e subversão
Os irmão tá ligado
Você vai ficá fudido
Se tivé cu criança
Tu vai passá batido
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a estética funk carioca
É encomenda, encomenda
Não podemos arranhá
Encomenda, encomenda
Passa teu carro! [...]1
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englobamento e subversão
Religiosidade, Fé em Deus
Trazemos no coração
Paz, justiça e liberdade
Guerra pelo bem e sem desunião
E responde Sebá!
Vem comigo...
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englobamento e subversão
4 Um exemplo do poder totalizador que muitas vezes se outorga à favela na produção da música
funk carioca é o modo pelo qual o interessante documentário Favela on blast retrata a indi-
vidualidade artística de diferentes MCs e DJs do gênero musical, vinculando-os ao espaço da
favela e às associações com a escassez e a violência que supostamente caracterizariam o coti-
diano de seus moradores.
157
a estética funk carioca
Sai da frente
Lá vem eles minha gente
Agora o chumbo é quente
Eles têm toda razão
Não fique aí
Se não quiser virar defunto
Ir pra cidade dos pés junto
Dentro de um lindo caixão
Um perdeu querido pai
O outro perdeu o irmão
Os dois querem os bandidos
Pra levá-los à prisão
Se os bandidos resistirem
atirarem de repente
Se sarve quem puder
Porque daí é chumbo quente [...]5
5 “Chumbo Quente”, de Leo Canhoto e Robertinho, em versão remix feita pela equipe Furacão 2000.
158
englobamento e subversão
***
Atenção
Sai da frente
Porque nóis não é a gente
Na Mangueira o chumbo é quente
Eles têm toda razão
Não fique aí
Se não quisé virá peneira
Esse é o bonde da Mangueira
Esse é o bonde do Gordão
ADA perdeu o pai
O treis cu perdeu o irmão
Porque aqui é nóis à vera
É os Quarenta Ladrão [...]6
159
a estética funk carioca
7 Lagrou, a propósito dos povos de línguas pano amazônicos, nos fala de um modo não dicotô-
mico mas ainda assim dualista de operar a classificação da diferença, em que ser A não significa
não ser B, de modo exclusivo (Lagrou, 2001, p. 96). No caso específico kaxinawa, as oposições
presentes no pensamento e na ação existem para serem dissolvidas (Lagrou, 2001, p. 105).
160
englobamento e subversão
Se é pá roubar, irmão
Não deixe pra depois
A Mangueira é cinco sete
Cinco sete é vinte dois
Se é pá roubar, limpo
Eu não deixo pra depois
CDD é um cinco sete
E o Mangueirão é vinte dois
8 Cinco sete, um cinco sete e vinte dois são, respectivamente, referências aos artigos do código
penal que concernem os crimes culposos de trânsito, o roubo envolvendo violência ou impos-
sibilidade de reação e o crime de coação irresistível e obediência hierárquica.
161
a estética funk carioca
9 “157 Mangueira”, com Mr. Catra, Cidinho e Doca. “Uísque e Red Bull” refere-se a uma beberagem
excitante e estimulante, bastante consumida entre os funkeiros e resultante da mistura da bebida
de origem escocesa com alguma bebida energética, cuja marca mais conhecida é a Red Bull.
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englobamento e subversão
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a estética funk carioca
de meu colo. Eu disse que não havia problemas, mas Célia insistiu, acre-
ditando que a pequena atrapalharia a conversa. Catra estava de fato ins-
pirado para falar e talvez por estar já muito ciente de que poderia fazer
declarações que pudessem comprometer a imagem do artista, controlava,
com o timbre de sua voz, a capacidade de registro de meu gravador digital,
programado para, na ausência de voz ou na presença de sons inapreensí-
veis, provocar uma pausa na gravação. Catra, conhecedor de sua voz e dos
equipamentos de captação de som, aproveitou sua habilidade para falar e
evitar o registro. Eu disse-lhe que ele precisava falar mais alto, porque ele
falava coisas importantes e assim nada seria registrado. Ele me respondeu,
com um riso sutil, dizendo que sabia e usou como justificativa o compro-
metimento pelo qual a “mística do Catra” poderia passar. Eu lhe perguntei
se ele não cogitava o fato de as ambiguidades que me revelava poderem
depor a seu favor. E ele me respondeu: “não existe gangster playboy”.
A inquietação que este duplo pertencimento parece gerar, e que
surge no corpo, pode ser traduzida por meio do contraste estabelecido
pelas figuras do “playboy”, do “favelado” e da “sociedade”, presentes
tanto nas falas cotidianas como na música funk como um todo. Catra
me disse, nessa mesma conversa, que é “um playboy fudido”, se refe-
rindo ao fato de nunca ter sido “favelado”, tornando evidente a oposição
entre um e outro personagem. O “playboy”, se não está tão presente nas
letras das canções, é representação onipresente nas falas dos jovens fun-
keiros, como pude notar em outra ocasião (Mizrahi, 2006b). A catego-
ria nativa designa os filhos da classe média carioca, os jovens “com con-
dições”. Ou nas palavras de Thamyris, eles são “os boys da Sul”, os garotos
bem nascidos da Zona Sul, área privilegiada da cidade. Cíntia, mora-
dora do Morro do Cantagalo, localizado na Zona Sul entre os bairros de
Copacabana e Ipanema, aprofunda a oposição ao dizer que “no morro
não tem playboy”, e que “mesmo tendo condições ele não é playboy, ele
é filho do cara”, filho do chefe local.
Pergunto a Catra como ele mesmo se define artisticamente, já que
canta outros gêneros musicais, devendo-se notar que o modo como
ele se relaciona com o hip-hop não pode ser considerado um flerte. Ao
contrário, o MC vem cada vez mais incorporando músicas do gênero
em suas performances. Catra responde que é funkeiro e concede fortes
elementos a justificarem sua afirmação. Reproduzo abaixo o trecho de
uma entrevista que fizemos, novamente na sala de sua casa, após um
164
englobamento e subversão
E quando lhe pergunto porque não escolheu ser “playboy”, ele diz:
É mais maneiro ser funkeiro. Porque [sendo] playboy, você só é playboy.
[Sendo] funkeiro você é ídolo. É melhor você dançar conforme a música,
ou você fazer a música pra você dançar?
Não é que Catra não tenha sido “playboy”, mas ser funkeiro lhe per-
mitiu ser “playboy” ao seu jeito. Um “playboy gangster”, como ele disse.
Catra confunde, subverte os papéis. Se ele é “playboy”, cantará em
nome da favela, mostrando que “favela também é arte”, como ele diz em
uma canção, levando “cultura” para as favelas.10 Seu “tráfico”, como ele
165
a estética funk carioca
166
englobamento e subversão
Catra diz que desde “moleque”, com cerca de onze anos, sabia que
seria músico. E foi na escola que montou sua primeira banda, de rock,
que se chamou O Beco. O rock era, para Catra, “a cultura mais maneira
do Brasil”. “Escutava tudo” e “gastava muito dinheiro com discos”:
“Ojerizah, Picassos Falsos, Biquíni Cavadão, Ultraje a Rigor, RPM, Ira,
Garotos Podres, Replicantes, As Mercenárias, Kid Abelha, Lobão”. Mais
tarde ele formou o grupo de hip-hop O Contexto. E depois, continua,
“o funk veio e me adotou”. Foi através do MC Duda do Borel, a quem
conhecia “desde criança” da área onde ambos viviam, que Catra chegou
ao funk. Duda desfez a dupla de MCs que formava com William, e lhe
“ofereceu” o funk. Formaram, com outros músicos, o grupo Caravana
do Borel, que durou pouco tempo.
Gosto de cantar pros manos
Muita gente não sabia
É no Morro do Borel que eu faço
Rap na marizia
E na Indiana, shock
No prédio Maracaí
Quando eu rolo pra você Ratinho
Rola para mim
Se liga de processo
Esse rap está demais
Como diz o Pensador que veio
Com o cachimbo da paz
E continua a queimação
O half vai rolando na minha mão
Depois que eu torrar
Eu canto para os irmão
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a estética funk carioca
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englobamento e subversão
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a estética funk carioca
não pode ficar na praia sem a companhia de pessoas mais velhas. Catra
está calado, sentado ao sofá grande, de frente para a televisão, e apenas
escuta a conversa. Sapinho insiste e diz que Thamyris ficará “azul”, com
tanto sol. Sílvia, em tom que mescla irritação e deboche, diz “pois é,
[azul] igual ao pai dela”. Sapinho não desiste facilmente e liga para Alan,
o filho mais velho de Catra, pois acredita que deve ficar “mais colado
nele”, para orientá-lo. Sapinho está também preocupado com a chave
do estúdio, que teria ficado com Thamyris, mas que já está em poder de
Catra, sem que aquele houvesse se dado conta.
Pergunto a Sapinho se ele vive há muitos anos em Israel, e ele me
responde que sim e explica que veio ao Brasil a trabalho, sempre presen-
tificando a proximidade que tem de Mr. Catra e de sua família como um
todo. Ele me pergunta então se sou judia, e eu respondo positivamente,
sem que minha resposta pareça a ele uma novidade, ainda que verbal-
mente ele expresse que sim. O que penso era novidade para a família
foi o fato de eu ter vivido alguns anos em Israel, como expliquei em res-
posta à pergunta de Sapinho, relatando os lugares por onde morei. Catra
continuava quieto, aparentemente assistindo a uma luta na televisão.
Catra começa a se movimentar para ir para o estúdio. Sai pelo
jardim enquanto veste uma t-shirt branca com dizeres em preto, da
RapSoulFunk, a empresa que gerencia artistas de hip-hop e funk e com a
qual ele tem conexões. No Rio a RapSoulFunk está a cargo de Juninho,
compadre de Catra e Sílvia, e em São Paulo é tocada por Primo Preto,
a quem Catra conheceu ainda quando cantava com Dr. Rocha. Catra
conta-me um tanto maravilhado que o “parceiro”:
... vem a ser irmão do Branco Mello! Os dois são filhos da Lu Brandão. Um
é preto e o outro branco, tá ligado? Muito louco! O Primo Preto faz para-
das de funk, hip-hop, enquanto o Branco Mello é rock n’roll.12
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englobamento e subversão
“identificação com o negro” não teria contribuído pra a sua escolha: “É,
mas eu fui criado numa família em que meu pai não era negro. Meus
irmãos não eram negros”. O que lhe interessa é esta possibilidade de
equivocar o outro com a sua própria aparência e brincar com as precon-
cepções que este possa vir a ter não apenas sobre a aparência física, mas
em torno de sua conjugação com classe social e educação formal. E isso
ele fará magistralmente no palco, ao executar as paródias musicais.
No estúdio, Buiú já está a postos. Sentado à mesa de gravação, o
jovem DJ tem entre as mãos uma MPC, uma “drum machine”, que até
então ele jamais manipulara. Conforme testa os pads, as teclas que pres-
sionadas emitem o som dos samplers, vai se dando conta da dificuldade
que enfrentará e, em um dado momento, desorientado com tanta novi-
dade, desabafa: “É muita informação, mané”. Catra ri de seu comentário
e lhe diz que ele vai ver o que é “muita informação” quando estiver no
palco com “aquele montão de mulher” gritando à sua volta e ele tiver
que improvisar ao vivo. Buiú até então trabalhara na manipulação de
sons por meio do uso de computadores portáteis.
Catra está sentado à direita de Buiú, afastado do DJ, e eu me
coloco recuada, ocupando o vão que ficou entre os dois, sentada sobre
o pequeno banco de assento partido, o único disponível. A tarde será
dedicada às produções de Sapinho, em especial o rap que fez recen-
temente e que a turma ainda não conhece. Ele canta a letra, acompa-
nhado de uma base formada por um beatbox de Catra e um “tambozão”,
colocada por Buiú.
Eu tô falando dos HB
Que agora eu vou quebrar
Pra quem não sabe o que é HB
É os homem-bomba boladão
Querendo se explodir
Por causa de uma facção
171
a estética funk carioca
Eu acho já tá na hora
De nóis botá a chalifá14
Pa nóis ir naquele lugar
Botar as mina pra nha, nha
E pra finalizar
Vários toques pros irmãos
Daber she zé anachnu15
E um grande shalom
Bevakashá, bevakashá
Ttafzikim a milchamá.
Bevakashá, bevakashá
Tafzikim a milchamá16
172
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173
a estética funk carioca
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englobamento e subversão
Eu sou Mágico MC
Represento toda hora
Vou tirando devagar
É meu boneco da cartola [...]17
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A música fica pronta, e eles definem o trecho que será cantado por
Sapinho e a parte que caberá a Catra.
Vou te dar um papo
Você tem que ser fiel
Vim de longe pra caralho
Das colina de Israel
Eu acho já tá na hora
De botar a chalifá
Chamando as minas na paz
Ensinando o que é amar
176
englobamento e subversão
E para me conquistar
Vão ter que me convencer
Na noite de Jerusalém
O que é o prazer
Eu sou rato de Israel
Me amarro nas muçulmana
E as palestina
Me amarro como ela dança
Elas sabem muito bem
Que o meu bonde é só blindão
E pra ter muitas mulheres
Tem que ter disposição
E pra finalizar
Vai um toque pros irmãos
Daber che zé anachnu
E um grande shalom
Esse papo que eu te dei
É a pura realidade
Vim pra cá de Israel
Mas fiquei na atividade
Pois a onda do momento
Agora vou te falar
É o retorno de Jerusa
E o pitch chamudá
Bevakashá, bevakashá
Tafsikim a milchamá
Bevakashá, bevakashá
Tafsikim a milchamá
o hiper-realismo no funk
Segundo Mr. Catra, são as mulheres que gostam de escutar putaria e
é fazendo referência a esta convicção que ele anuncia em seu show a
chegada do momento em que cantará tais músicas. Foi também baseado
nesta sua percepção que ele criticou o romântico funk melody que Jota
compôs e, empolgado, nos apresentava.
177
a estética funk carioca
Jota defende a sua criação dizendo que é uma música pra “rolar
no fim do baile”, música para ser tocada ao fim da noite, acrescentando
que com uma composição dessas você “leva a mina pra qualquer lugar”.
Catra diz que “isso já tá passado” e que hoje é a “piroca quem tá man-
dando”: “pau na buceta, buceta no pau”. Jota discorda dizendo que “isso”
é para ele que é “todo ôu! ôu! ôu!”, querendo dizer que Catra é abrupto
demais, imitando a sua voz grave e rouca.
As divergências entre Jota e Catra falam de diferentes percepções
em relação à circulação do funk e de seus distintos subgêneros. Jota
acredita que o melody, como é a sua nova composição, “entra em qual-
quer lugar”, ao passo que Catra atribui esta permeabilidade à putaria.
178
englobamento e subversão
20 De fato é possível fazer referência às músicas explícitas do subgênero putaria como sendo
proibidos, indicando o seu conteúdo censurado, “x-rated”, como diz Catra. Contudo, entre
os músicos com os quais trabalhei, proibido é categoria que se refere às canções que versam
sobre ações ilícitas. Sem contar que a ressonância de um e outro subgênero, proibido e putaria,
marcam momentos distintos da trajetória histórica do funk.
179
a estética funk carioca
Eu sou Mágico MC
Represento toda hora
Vou tirando devagar
É minha piroca da cartola [...]22
21 As músicas possuem ao menos duas versões, pois são constantemente regravadas, muitas vezes
ao vivo, o que sempre acrescenta diferença à reprodução. Mas, ainda assim, nem sempre o funk
tem livre circulação.
22 “Hoje eu tô facim”, MC Mágico.
180
englobamento e subversão
Para Das Sete, músico que ficou apenas alguns meses trabalhando
com a Sagrada Família e que prefere escrever letras a cantar, o funk é
“a liberdade de expressão da vida”.23 O funk, acredita ele como Catra,
permite falar e vivenciar coisas como não seria possível de outro modo.
Das Sete exemplifica o seu ponto com a mulher casada que no baile
está dançando “tranquila” e ao mesmo tempo cantando coisas que se
um homem ouvir ou se falar para o seu marido ela “até assusta”. É desta
maneira que as músicas de putaria constituem a “sequência da mulhe-
rada”. O tricky das letras de funk reside nessa elaboração sobre o possí-
vel. O seu conteúdo de realidade faz com que mesmo uma empreitada
improvável seja vista como claramente passível de ocorrer.24 Junto com
Bateson (1973), busco menos o significado da mensagem codificada e
mais de que modo o código escolhido, seu estilo, em suma, pode nos
revelar sobre o sentido da expressão artística. É desta perspectiva que
esta feição mais real do que o próprio real, a feição hiper-real, se torna
relevante para o meu argumento.
Mas não se trata de um hiper-real construído para escamotear um
real não mais possível, como afirmou Baudrillard (1994) em sua inter-
pretação sobre o parque temático Disneyland. Nem tampouco resulta
de um social que não mais existe, produzindo um signo sem referente
e uma relação mapa território na qual o primeiro é precedido pelo
segundo, uma “precessão do simulacro” (Baudrillard, 1994, p. 1).
Denota, outrossim, como a música funk elabora a relação com a “socie-
dade”, no sentido durkheimiano que lhe é dado pelos sujeitos criativos
funk, a partir de seu descolamento do social. Por social não me refiro
aqui ao sistema formado pelos coletores de diferentes naturezas, como
proposto por Latour e utilizado em minha análise no primeiro capí-
tulo. Neste momento, aludo mais exatamente à noção de sociedade que,
sendo exterior ao indivíduos, se impõe sobre estes, moldando as suas
ações e criações.
23 O apelido de Das Sete faz referência ao endereço da casa em que viveu, de número sete.
24 Refiro-me às inúmeras histórias que circulam, muitas vezes informadas pelas letras das músi-
cas, constituindo uma espécie de ‘lenda urbana’ sobre a atividade sexual que supostamente
envolveriam os jovens dentro do local da festa. Como disse uma de minhas amigas em campo,
quem “quer fuder vai pro motel” e não para o baile. O baile é frequentado, outrossim, por aque-
les que querem dançar, como eu já havia notado na dissertação de mestrado (Mizrahi, 2006b).
181
a estética funk carioca
25 Como quando, em uma tarde, Cíntia falava-me sobre a invasão da polícia, ocorrida na favela
em que vive, a partir dos relatos que lera naquela mesma manhã no jornal. Ela passava alguns
dias na casa de Sílvia e portanto não experienciara os acontecimentos, mas o fato de conhecer
todas aquelas pessoas presas dava-lhe autoridade para fazer seus relatos de modo que pareciam
não apenas verossímeis mas vivenciados por ela. Só ao ler a reportagem é que me dei conta
então que muitos dos detalhes que Cíntia me dera foram ali colhidos.
26 As imagens virtuais estiveram presentes ao longo do campo de diversas maneiras: através das
novelas que marcavam primeiro o início da tarde e depois o cair da noite; nos jogos virtuais
jogados tanto do lado feminino como do masculino; nos jornais populares e telejornais que
davam relatos de embates entre polícia e ladrão; nos programas de auditório dominicais dos
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englobamento e subversão
Cachorro
Se quer ganhar um din din
Pede um x9 pra mim
Pede um x9 pra mim
Cachorro
Me entrega esse canalha
Deixa ele bem amarrado
Pega o dinheiro e rala
canais abertos de televisão; nos programas acessados por pacotes do tipo pay per view, como as
lutas de Vale Tudo e o reality show Big Brother Brasil.
183
a estética funk carioca
Cachorro
Se quer ganhar um din din
Pede um X9 pra mim
Pede um x9 pra mim
Cachorro
Me entrega esse canalha
Deixa ele bem amarrado
Pega o dinheiro e rala27
27 “Cachorro”, de Mr. Catra. O termo “cachorro” é designação para o policial corrupto e segundo
o cantor esta música versa sobre a “instituição corrupção” de modo geral.
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a estética funk carioca
A gente só invade
Depois que a gata pisca
Bum bum não se pede
Bum bum se conquista29
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englobamento e subversão
Aparada e limpinha
Coisa linda de se ver
Abre a tampa da fusqueta
Que eu faço você gemer
Triângulo do biquíni
Me deixou taradão
Tava úmida e quentinha
Batendo palma na minha mão
Eu me assustei
Mas tava preparado
Parecia um bolo
Aquele nêgo azul inchado
Movimento pélvico
Cara de sapeca
Me deixou louco eu não sou sapo
Mas me amarro em perereca
A moral do motivo
Toda peça se encaixa
Mexo no capô da fusqueta
Enquanto você passa a marcha
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englobamento e subversão
Toalhas e fronhas
Cama desarrumada
Essa noite a chapa ferveu
Ela me ligou
E quis me encontrar
Num apart hotel que é meu
Eu disse
Sobe agora
Tô com o boneco pra fora
Vem no colo
Pode vir de saia
Que eu tô firme aqui pra você
Vem sem medo
É um palmo e cinco dedos
senta devagar
não senta de um vez
O menino vai crescer
Pro seu espanto
Vai passar do meu umbigo
Por quê?
Ela só quer sentar
Cavalgando no boneco
Até de manhã
E se você parar
Com certeza pr’as amigas
Ela vai te explanar
Ela beija,
Lambe os beiços e tudo
É coisa de maluco
Ela quica e sabe gemer
Ela sabe fazer
O boneco crescer
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Estátuas e cofres
E paredes pintadas
Ninguém sabe o que aconteceu
Ela se jogou
Da janela do quinto andar
Nada é fácil de entender [...]31
190
englobamento e subversão
Procura a profissional
Meu mano
Que ela sabe o que faz
A música original trata do tédio que abate um rapaz que, mais uma
vez em crise existencial, cogita cometer o suicídio.
Sabe estes dias em que horas dizem nada?
E você não troca o pijama
Preferia estar na cama
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englobamento e subversão
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34 Para análises sobre o poder do riso e o rendimento cosmológico da ênfase bakhtiniana “nas
partes do corpo em que ele se abre ao mundo exterior”, ver para a cultura popular Carvalho
(2008) e para o contexto indígena Lagrou (2008).
194
englobamento e subversão
pessoas em seus corpos.35 Por fim, Ingold (2000) entende que a aquisição
das habilidades [skills] se faz não apenas por meio observação imitativa,
mas no processo de execução repetitiva que coloca em interação o corpo
com seu ambiente, entendido em seu aspecto biológico e social.
De modo similar ao contexto de Rabelais como delineado por
Bakhtin (1999), no funk o riso adquire permeabilidade e “significação
positiva, regeneradora, criadora” (Bakhtin, 1999, p. 61), graças à de
certo modo tradicional veia cômica que possui.36 Mas se na Idade Média
o riso manteve seu caráter não oficial e no Renascimento o riso penetrou
na “ideologia ‘superior’” (Bakhtin, 1999, p. 62), no funk o riso age das
duas formas: mantém seu caráter não oficial e penetra nos espaços do
gosto “superior”. O funk estabelece com o gosto hegemônico e com a
sociedade oficial um elo não tão “decisivo”, mas mais ambíguo, parcial e
conectivo, que, se não implica relações de ruptura, também não significa
uma convivência puramente pacífica. É preciso enfatizar que Bakhtin
não fala propriamente de uma fusão entre cultura oficial e não oficial,
mas de como o riso passa de “ninho não oficial” a ser “quase legal”, de
modo que cada festa possuía um aspecto oficial e um outro popular, car-
navalesco (Bakhtin, 1999, p. 71). O que me parece instigante no funk,
por sua vez, é como este constrói ativamente o seu caráter não oficial
por meio de um diálogo com a cultura e o gosto oficial, englobando-os.
É através do riso que o funk se torna apto a desestabilizar o poder,
falando muitas vezes do próprio local em que se encontra aquele que
não é apenas seu público-alvo como o alvo de suas provocações. O riso
simultaneamente penetra e se faz ouvir pelo “bom gosto” ao mesmo
tempo em que torna o funk apto assim a rir do poder a ele associado de
dentro de seus próprios redutos.37
35 Esta mesma associação entre arte e teorias da pessoa e da corporalidade vem sendo desenvol-
vida pela etnologia desde os anos 1980. Para uma síntese a respeito, ver Lagrou (2009b).
36 A dupla de funkeiros Gorila e Preto se utiliza ativamente das paródias musicais para compor
seu repertório, tendo como um de seus temas recorrentes a mulher feia. Foi também através do
riso que eu ouvi relatos que davam conta de aspectos mais propriamente trágicos do cotidiano,
como a invasão pelo veículo blindado da polícia Caveirão que, em suas incursões na favela,
avisava com uma risada macabra: “eu vim roubar sua alma”. Para a maneira como o riso acom-
panha acontecimentos cotidianos no contexto da favela, ver Goldstein (2003).
37 O DJ Sandrinho justifica que em casas noturnas “requintadas” e/ou localizadas na “Zona Sul”
não se pode ser tão explícito ao cantar putaria, ainda que, acredita, o público ali presente “faça
195
a estética funk carioca
Catra produz algo similar ao volt sorcery como descrito por Gell
(1998, p. 96-154), que por sua vez é inspirado pela teoria da mimesis de
Taussig (1993). Mesmo que Catra não confeccione um objeto artefa-
tual, que de acordo com o esquema de Gell é o corpo da vítima em sua
forma artefato, ou do deus em sua forma ídolo, que receberá e rema-
nejará para o representado a agência impingida na representação, a
paródia de Catra é construída a partir de um protótipo evidente, “os
clássicos da cultura”, que por sua vez remete a uma cultura e gostos ofi-
ciais, ou hegemônicos. Através do riso que provoca em si mesmo e nos
outros, ele se permite rir nesses espaços associados ao bom gosto e faz
a audiência desses espaços rir de sua manipulação de símbolos que são
também caros a eles, como o foram ao próprio Catra em sua infância e
juventude. Mas não é apenas isso. O feitiço não retorna somente para o
feiticeiro, mas se distribui e engaja também os funkeiros que, de acordo
com o esquema de Catra, adquirem acesso à “cultura” através destas
paródias e poderão agora não apenas conhecê-las mas rirem também
do modo como foram subvertidas. Deste modo é que o riso desempo-
dera o poderoso, pois, por meio da paródia, permite ao artista funk rir
do poder em seu próprio domicílio e concede também àqueles que não
possuem acesso a estes locais poder sobre a imagem de seus frequenta-
dores, objetificada pelo “clássico da cultura” subvertido.
Mas a eficácia da paródia não reside apenas em seu aspecto mimé-
tico, e, além de Taussig e Gell, devemos agora recorrer a Bateson para
refinar nosso argumento. Pois o que a paródia permite a Catra é que
ele estabeleça uma metacomunicação com seu público. Enquanto a
religião permite ao MC, em contextos preferencialmente particulares,
expor com mais clareza o nó de suas inquietações políticas, através
do riso Mr. Catra as deslocará para o palco e conversará sobre elas.
Conversará através de um código icônico, onde discursos importam
não apenas por seu conteúdo semântico, mas possuem como objeto
fundamental a sua relação com sua audiência.
Foi exatamente isso que presenciei quando, ainda ao início do traba-
lho de campo, o DJ Edgar, antes de Mr. Catra começar a sua apresentação
tudo” o que está sendo implicitamente dito na letra das músicas e tenha muitas vezes dançado
a versão original em baile de favela.
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38 Essa lógica do englobamento através da qual opera o funk pode ser pensada junto ao modo com
que grupos indígenas domesticam esteticamente a alteridade, “pacificando o branco”, neutrali-
zando e se apoderando de suas potências (Lagrou, 1998, 2007b, 2009b; Albert e Ramos, 2002).
198
Parte III
1 No funk, existem também compositoras mulheres, mesmo que em menor quantidade que os
músicos homens, e seus discursos podem ser considerados como “feministas” (Lyra, 2007;
201
a estética funk carioca
objetos e sujeitos
Daniel Miller (1987) reinsere na agenda da disciplina antropológica a
discussão em torno dos objetos materiais, chamando atenção para o
rendimento analítico que estes oferecem bem como para o seu poten-
cial de produção de significados sociais e culturais. Ao conceder uma
abordagem alternativa para os objetos às abordagens semióticas e lin-
guísticas, Miller simultaneamente faz ver como aqueles podem possuir,
comparativamente à palavra e aos discursos verbais, maior acuidade na
expressão de pequenas diferenças. Está em jogo a sutileza com que o
universo material à nossa volta nos ordena ao mesmo tempo em que o
ordenamos. Esta “humildade dos objetos” (1987, p. 85-108; 1994a, p. 408)
reside na habilidade que possuem os itens de cultura material de nos
remeter silenciosamente à vida que emolduram ao mesmo tempo em
que são produzidos por ela.
É através do conceito de objetificação, desenvolvido a partir da teo-
ria hegeliana, que Miller busca “desenvolver um modelo não dualístico
das relações entre pessoas e coisas” (Miller, 1987, p. 18). Inerente a este
modelo está a indiferenciação inicial que ocorreria entre pessoa e coisa e
que, através de sucessivos processos de diferenciação, tomaria consciên-
cia do que ele não é até atingir uma total separação entre sujeito e objeto.
O sujeito toma consciência de si para então se reconhecer como um não
Sou feia, 2004). No capítulo 6 algumas destas letras serão trabalhadas e ao meu ver elas expres-
sam menos um feminismo do que remetem ao aspecto agonístico que marca as relações de
gênero quando tematizadas pela arte na esfera da festa.
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Por outro lado, quando encontrei Cíntia com seus cabelos “pran-
chados”, justamente na noite de gravação do DVD de Catra, ela vestia
uma roupa de ares cosmopolitas. Igualmente curto, seu vestido era do
tipo tomara que caia e baloné: bufante e esvoaçante, solto no corpo e
preso às coxas por uma barra larga, na mesma visco lycra que compu-
nha a peça de roupa. Esta malha, fina, fria e mole, era estampada por
um motivo abstrato cujo estilo é inspirado nas estampas do designer
italiano Emilio Pucci, de ares psicodélicos e hit da moda europeia da
década 60. Sua releitura produziu uma das fortes tendências das cole-
ções do verão carioca de 2007/2008.2 Até então eu havia visto Cíntia
uma única vez, em uma tarde na qual, após breve parada no estúdio,
eu parti com ela e Sílvia rumo ao Barra Shopping, centro de com-
pras localizado na Barra da Tijuca, igualmente na Zona Oeste. Cíntia,
naquela tarde, estava sem maquiagem, com seus cabelos anelados pre-
sos em meio rabo, vestindo camiseta e uma “calça de moletom stretch”
da marca Gang. De modo que não a reconheci ao revê-la bronzeada,
com cabelos dourados e lisos, vestindo roupa de modelagem e estilo
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cabelos femininos e a confusão de símbolos
Cíntia, através de suas roupas e cabelos, nos fala sobre sua habilidade
em manipular representações. Quando deseja ou lhe é conveniente se
apresenta como funkeira. E quando quer pode também passar por uma
jetsetter internacional. O “representar” é uma categoria nativa. Alguém
“representa legal” quando manda de modo convincente a sua mensagem
ao falar em nome dos seus. A expressão pode ser usada, por exemplo,
para aferir a performance de um MC – “ele representou legal” –, mas tam-
bém a performance de uma pessoa em seu processo de autoapresentação.
Em uma noite chegamos Cíntia e eu à casa de Sílvia para buscarmos
Thamyris e Luciana, outra das primas de Sílvia, e “fazer os bailes com o
Negão”. Luciana e Thamyris, prontas para sair, vieram ao portão. Cíntia,
em reação ao visual da primeira diz: “ih... representando mêmo”. Mas
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a estética funk carioca
a confusão de símbolos
Cíntia sabe bem como escapar às representações, às cristalizações que
estas podem produzir, e nessas horas escolhe um visual mais cosmopo-
lita, mudando estilos indumentários, cabelo e maquiagem, como vimos
mais acima, a partir da alternância entre indumentárias mais funks e
outras mais globais. Com isto, ela não está comunicando apenas como é
hábil na manipulação de símbolos, mas como domina os códigos estéti-
cos de diferentes ambientes, potencializando o seu trânsito entre eles. A
manipulação de símbolos e o domínio dos diferentes códigos estéticos
que povoam o Rio de Janeiro, como venho defendendo ao longo deste
livro, são habilidades [skills] próprias aos sujeitos criativos funk, parti-
lhadas por todos, sejam eles artistas no senso estrito ou não. E a fluidez
como se fazem as passagens entre diferentes mundos sociais é tamanha
que acaba por causar uma confusão de símbolos que gera agitação não
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cabelos femininos e a confusão de símbolos
3 Algumas semanas antes de escrever este capítulo fui procurada pelo jornal O Globo para escre-
ver um ensaio para sua coluna Logo a propósito de visitas que jogadores de futebol cariocas
fizeram às favelas onde antes moraram (Mizrahi, 2010b). Uma das questões que a imprensa
se colocava era se esse ir e vir entre favela e asfalto não causaria confusão na cabeça dos jogado-
res ao se depararem com realidades que a mídia apreende como sendo radicalmente diferentes.
4 A dinâmica de acompanhamento dos shows de Catra se deu de distintas maneiras. Muitas
vezes, como aparece no primeiro capítulo, acompanhei o artista em suas turnês, do começo
ao fim da noite. Em outras ocasiões seguia com Sílvia e suas amigas. Neste caso assistíamos a
um único show e desfrutávamos do evento que o abrigava do começo ao fim. Em outros casos
ainda, eu seguia sozinha com o objetivo de observar, em apresentação específica, algum dado
pontual relevante para a pesquisa.
213
a estética funk carioca
era eu que lá estava no dia em que foram fazer umas fotos para a Osklen,
uma “Osklen pa Nêgo”. Eu disse que não estive lá nessa ocasião e, curio-
síssima, levo tudo aquilo muito a sério e pergunto se o pessoal da Osklen
esteve por lá. Ele diz, em tom já um tanto decepcionado, que acha que só
a fotógrafa estivera lá. Mas eu insisto na conversa, e ele diz que na ver-
dade acha que, como “o pessoal” sabe que ele “gosta de Osklen”, estavam
“zoando” ele. Sem ainda entender direito o que acontecera, pergunto-lhe
se esse lance de “Osklen pa Nêgo” era “zoação”, e ele diz que sim, que acha
que “tudo era zoação”, “até a fotógrafa”, e que “não teve Osklen nenhuma
lá”. Conclusão, nessa tarde, a suposta fotógrafa/estilista da Osklen era eu.
E o pessoal do estúdio, sabendo do interesse de Renatinho pela grife ipa-
nemense, de roupas muito caras e apreciada tanto por “playboys” como
por funkeiros, se utilizou de minha presença para pregar uma peça no
rapaz.5 Mas se eu fui usada para confundir Renatinho, ele também con-
fundiu-me com sua aparência.
Pois eu já havia ficado intrigada pela estampa do rapaz, que cir-
culava pelo estúdio com seu porte elegante em roupas caras de marcas
esportivas globais, o que fez com que eu me perguntasse quem seria ele,
pois não me parecera exatamente um funkeiro ou rapper. No estúdio, as
roupas usadas pelos músicos são mais propriamente as dos fabricantes
nacionais de roupas no estilo hip-hop, como a Manos, a XXL e a Blunt.
Renatinho parecia um empresário bem-sucedido do meio musical,
como eu já vira antes em Brancão, um homem branco e agente de um
MC de funk. Mas Renatinho, fico sabendo enfim, era um dos motoristas
de táxi que atendia a Catra e, a julgar por sua aparência, muito bem-
sucedido em seu ramo. Nesta noite em que nos encontramos na porta
da Fundição Progresso, ele vestia uma blusa da Osklen e uma calça da
Taco, rede de lojas que pratica preços bastante acessíveis. Nos pés trazia
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cabelos femininos e a confusão de símbolos
6 Na roupa que Renatinho vestia na Fundição Progresso estão duas marcas caras, a carioca
Osklen e a alemã Puma, misturadas à bem mais acessível Taco. Poderia se cogitar se as primei-
ras não corresponderiam a cópias dos originais, encontradas em centros de comércio informal
como o Mercadão da Uruguaiana. Entretanto, a empresa Osklen faz forte controle para evitar a
difusão de cópias no mercado e os tênis esportivos usados por funkeiros são preferencialmente
originais, mesmo que usem alguma peça de roupa “falsa”. As tensões entre o falso e o verda-
deiro na indumentária funk foram por mim estudadas na dissertação de mestrado (Mizrahi,
2006b), foram elaboradas em artigo posterior (Mizrahi, 2007a), são objeto de aprofundamento
em nova discussão (Mizrahi, 2010c) e retornarão no capítulo 6.
7 Juninho administra ainda negócios de sua família, sem qualquer relação com o funk, e mais
recentemente criou, em parceria com o MC Leonardo, da APA Funk, a produtora NKP.
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Eu sou MC Maiquinho
Sem cumprir vacilação
Quem tá tocando no baile
É o DJ com tambozão
Sou MC Maiquinho
Contra nóis não há quem possa
A Zona Sul n’é deles, a Zona Sul é nossa
A Zona Sul n’é deles, a Zona Sul é nossa [...]8
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9 É preciso notar que os cabelos no estilo “afro” não são mais naturais ou menos feitos do que os
que passam por processos químicos ou são alongados por extensões.
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10 O esquecimento a que me refiro diz respeito não a uma ausência de consciência em relação a
uma informação que inconscientemente guardamos, mas refere-se à operação cognitiva de
empurrar para um canto da mente um conhecimento que deverá ficar ali repousando até que
em algum momento, ou não, devamos a ele recorrê-lo. Em conjunto com a fina orientação de
Els Lagrou, foi possível converter este procedimento em método de investigação. Lagrou, em
sua pesquisa de doutorado, igualmente esqueceu o desenho kaxinawa para depois então recu-
perá-lo (comunicação pessoal), permitindo à estética falar em seu próprio moto sobre a vida
que lhe produz.
11 Na pesquisa de 2003 (Mizrahi, 2003), mostro que o fenômeno “calça da gang” produz um
trickle up de duas maneiras. De um lado, a marca Gang foi consumida por representantes do star
system e passou a compor o mix de lojas voltadas para um público de alto poder aquisitivo. De
outro, fabricantes nacionais voltados para o mesmo público destas lojas, se inspiraram em sua
modelagem para desenvolver suas calças jeans, excluindo das mesmas os adornos barrocos que
as faziam tão prementes ao Baile e substituindo o moletom stretch pelo jeans fino e misturado à
lycra, como na imagem da calça jeans que aparecerá logo adiante. O tecido, contudo, justamente
por ser a marca fundamental do estilo, foi o que definitivamente o vinculou ao baile funk e se
constituiu no elemento fundamental a ser evitado, como pude aferir por meio da investigação
de 2003 e como ressurgiu nas falas da pesquisa feita em torno da rede de relações de Mr. Catra.
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Célia veste uma microssaia jeans da ACR e uma blusa roxa do tipo
“baby look”, um tipo de blusa t-shirt curta e ajustada ao corpo, da Puma,
com o contorno da pantera, a logomarca da empresa, gravada em cris-
tal sobre a parte frontal da blusa. Thamyris também vestirá uma “baby
look” da Puma, em vermelho, com a pantera estampada por vinil foto
refletor no alto do peito e na lateral da manga de um dos ombros da
blusa, e uma calça jeans capri, de comprimento acima do tornozelo, da
Abusiva, que, ela diz, não é marca de funkeira.
Já a ACR patrocina festas funk, como as noites de quinta-feira, dedi-
cadas ao ritmo, na Via Show, casa de espetáculos localizada na Rodovia
Marechal Dutra, na altura de São João de Meriti.13 Suas roupas eram
inicialmente vendidas por sacoleiras nas favelas cariocas, maneira atra-
vés da qual Sílvia adquiriu as primeiras peças da marca que, ao longo
do trabalho de campo, desenvolveu o seu alcance. Em minhas visitas a
Madureira vi a pequena loja neste bairro migrar de uma galeria para um
ponto central do seu comércio, ampliada em grande e vistosa instala-
ção. A empresa possui atualmente onze lojas, localizadas em bairros das
Zonas Norte e Oeste do Rio de Janeiro, no Centro da Cidade, em Niterói
e em municípios da Baixada Fluminense. O hit da marca no verão de
2008 foram as “sainhas” jeans super curtas e sem qualquer elasticidade,
soltas no quadril, como as que Célia vestia. Apesar de muito pequenas,
“não é nada que uma cruzada de pernas não resolva”, explicou Célia, ao
se sentar com calma e fineza de movimentos.14
Eu vou pro baile
De sainha
Agora eu tô solteira
E ninguém vai me segurar
[daquele jeito!]
13 Nestas ocasiões são tocadas também sequências de outros ritmos musicais, mas o carro chefe
da noite é o funk. Ao longo da pesquisa de campo, Mr. Catra era atração fixa da casa, e “convi-
dava” outros cantores do ritmo, que variavam a cada semana.
14 Na mesma época em que eu fazia trabalho de campo, a ACR compunha o figurino de uma
personagem da novela Duas Caras, da Rede Globo de Televisão. A personagem era uma mulata
de cabelos fartos e anelados e seu vestuário era composto não de “sainhas”, mas de diferentes
e vistosos modelos da “calça de moletom stretch”, confirmando a minha proposição e a per-
cepção de minhas amigas em campo de que quando se quer produzir uma representação con-
gelada sobre o feminino no funk recorre-se à calça. Lucilene, este era o nome da personagem,
simbolizava a moça fogosa da favela, caracterizada não apenas por sua indumentária mas pelas
músicas funk que apreciava.
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que o ferimento tivesse sido causado por uma outra menina. Célia foi
até o policial e disse-lhe que era ela a autora dos cortes. E assim foi presa.
Célia, à época do trabalho de campo, estava com trinta e seis anos
e se dizia muito grata a Deus por ter o emprego em casa de Sílvia. Diz
que já fez “de tudo na vida”, mas que não há nada mais gratificante, com-
pensador, do que o trabalho. Fala que é um “dinheiro seu, limpo”, e que
isso lhe dá tranquilidade, pois “não deve nada a ninguém”. Eu desenvolvi
especial afeição por Célia, que era extremamente inteligente e sofisticada
em seus modos e ações, hábil com as palavras e no trato pessoal, e foi
especialmente sensível às minhas dificuldades de movimento naquele
campo tão denso, me acolhendo e defendendo sempre que pôde. Célia,
passado um tempo, começou a se transformar, deixou de ser doce, parou
de tratar de seus cabelos e foi aos poucos se ausentando, até desaparecer
da casa. Frequentemente perguntei por ela, até que me disseram que ela
havia se viciado em crack, droga tida como altamente letal e que volta e
meia ressurgia em narrativas que envolviam relações disruptivas. Como
apareceu em Tina, que um dia retornou para sua casa e a encontrou
vazia. Seu marido, também viciado nesta substância, havia desaparecido
com todos os seus pertences.
Chegamos a Madureira, após cinquenta minutos dirigindo.
Estaciono o carro e vamos em direção ao salão de cabeleireiro, mas antes
entramos em uma loja que vende cabelos. Nos dirigimos para o display
onde ficam os cabelos anelados e pretos. Na parede oposta estão os cabe-
los loiros, vermelhos e marrons, e também outros pretos. Parecem ser
de uma categoria mais lisa do que os que estão do outro lado. Célia é
atraída pelo cabelo loiro. Toca-o e diz que quando comprar os seus serão
daquele tipo, mais “macio”, mas os tingirá de preto. O aspecto loiro dos
cabelos despertou em Célia interesse por eles, que em seguida avaliou
a sua materialidade, e notou como eram agradáveis ao toque. Por fim,
considerou a possibilidade de incorporá-los ao seu gosto.
O que moveu Célia foi a oportunidade que vislumbrou de reali-
zar a mesma operação englobadora que viemos vendo reger a estética
funk, produto de estratégias miméticas de se relacionar com a alteridade
(Taussig, 1993), “domesticando”, tornando familiar e trazendo para o
interior do socius, o outro desconhecido ou ameaçador, modelo recor-
rente em sociedades amazônicas (Lagrou, 1998, 2007a, 2009b; Guss,
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16 Negativas como estas foram uma constante ao longo de toda a pesquisa. As recebi quando ten-
tei entrevistar os produtores da ACR e da M&M e ao ser impedida de fotografar não apenas no
salão de cabeleireiros como na loja de cabelos e em feirinhas. Poderíamos cogitar que o receio
adviria da possibilidade de cópia, como no caso das decorações em unhas e das roupas, mas o
temor parecia ser também relativo ao mau uso que eu poderia fazer com a informação obtida.
No salão de cabeleireiros, por exemplo, foi deixado claro que temiam a ação de jornalistas
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mal intencionados que enfatizassem os possíveis efeitos colaterais que o mal uso dos produtos
químicos empregados poderiam gerar.
17 Nem sempre os cabelos de Thamyris eram integralmente trocados. Muitas vezes ela acrescen-
tava novas mechas às já existentes, repondo assim os fios que teriam caído com o uso.
18 Sonia Giacomini (2004) vincula estreitamente aparência e classe em sua análise de um con-
texto carioca. A propósito dos frequentadores do Clube Renascença, associação de classe
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Renata diz que nós,19 as brancas, não temos “resistência” como elas,
e que eu não imagino o quanto elas sofrem para ficar bonitas. Nós não
temos resistência para colocar cabelo e unha como elas fazem, conti-
nua Renata, pois somos mais “meiguinhas”, delicadas. Thamyris, em
outro momento e a propósito de uma leve dificuldade de movimento
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que tivera com seus lábios, disse-me que ela é atípica, pois “apesar de
negra é cheia de frescuras”. Digo que não é por ser negra que não pode
ser “fresca”. Mas ela insiste, argumentando que seu pai diz que o negro
tem anticorpos mais resistentes, e ela tem muita alergia à poeira e à
mordida de mosquito, e “agora isso”, “não pode tomar golpe de ar frio”,
evento que supostamente teria lhe causado o incômodo em sua face. A
ideia do branco como mais frágil do que os negros e a concepção do
negro como o potente e o englobador é também tematizada por meio
dos cachorros, todos da raça pit bull. Além de Verônica, a casa conta
ainda com Titi, o cão negro que fecundou Roberta e Paula, duas cade-
las nomeadas por Sílvia em homenagem a duas ex-mulheres de Catra
e ainda um outro totalmente branco e que frequentemente apresenta
problemas em seus pelo e pele. Ele é assim mais suscetível às doenças,
como seriam também as pessoas muito brancas.
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diferente, e dizem que se eu vestir a mesma roupa que elas não ficará
do mesmo modo. Eu pergunto se então é o corpo que faz a diferença,
e Renata fala que também não é o corpo, pois cada uma delas tem um
corpo diferente: Célia tem pernas e quadris finos; Thamyris tem cintura
fina, pernas grossas e quadris largos; Renata é alta e toda cheia.
Célia diz que a diferença está no “jeito”, e repete que o que eu visto
não ficaria igual nela e o que ela veste não ficaria igual em mim, acres-
centando que nem usaria as roupas que uso. No máximo a bermuda que
eu vestia – em jeans escuro, sem qualquer lavagem, detalhe ou contraste
de cor. Porém, não usaria com “aquele salto” – eu usava uma sandá-
lia de plataforma não muito alta, forrada de cortiça e tiras estreitas de
tecido acetinado preto que cruzavam sobre a parte da frente do pé –
nem usaria com aquela blusa – uma bata em tecido sedoso azul-royal.
Célia comenta que agora eu ao menos tenho usado bermuda, mas antes
eu “só aparecia de calça”. Falo que não posso ficar usando “sainha” no
estúdio, o que parece uma bobagem a ela: “e o quê que tem?!”. Digo que,
sim, uso minissaia e que Thamyris já me viu de shortinho, mas ela diz
que não, e eu a relembro que me viu usando tal peça de roupa em duas
ocasiões diferentes. E Célia fala que o “shortinho que fica bem em você
é daquele... baloné”. E eu falo que era esse modelo mesmo que eu vestia.
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Ela fala: “viu?”, mas, continua, “você não usaria esses shortinhos jeans
pequenininhos”, como elas usam, e eu digo que ela tem razão.20
Renata retoma a palavra e diz que o que mais se nota em uma
mulher é o cabelo, se o cabelo está arrumado e tratado, mais até do que
a roupa, e mostra a fotografia de sua filha, com muito orgulho, prosa.
Célia e Thamyris fazem um “aaaaaaaaaaai” uníssono, mostrando como
acham a menina bela. E Thamyris fala que ela teve muita sorte com os
cabelos, que são cacheados e sedosos. Era isso que a imagem tinha de
especial, cabelos anelados, sedosos e pretos. Renata conta que a filha,
quando menor, usava uma pequena touca e, quando aproximavam-se
para falar com a menina, ela removia o adereço de sua cabeça e impres-
sionava a pessoa que, encantada e deslumbrada, festejava ainda mais
a bebê. A graça que a filha recebeu, acredita Renata, não foi aleatória:
“também, eu pedi muito quando ela tava na minha barriga”.
Joana, com as mãos no cabelo de Thamyris, conta que quando ela
era jovem sua mãe lhe aconselhava a não se casar com um homem negro
para não ter filhos com o cabelo “duro”. Ela respondia à mãe que a vida
era dela e aos doze anos saiu de casa para trabalhar na casa de uma
“família muito rica”, em Ipanema, casa do “Doutor João Fortes”. Até hoje
tem a fotografia que a mostra vestindo o uniforme que usava pra traba-
lhar, através do qual apareciam somente “seus olhinhos”, de tão grande
que era a roupa e de tão pequena que era Joana. Ela conta que começou
de “baixo” e foi galgando postos até chegar a cozinheira. Primeiro traba-
lhou como auxiliar de limpeza, depois como babá, em seguida passou a
auxiliar de cozinha e por fim a cozinheira. Digo que então ela deve cozi-
nhar bem, e ela afirma que adora cozinhar. Se casou e teve três meninas.
Todo dia, antes de mandá-las para a escola, passava o “pente quente”
em seus cabelos, e quando as meninas chegavam em casa, ao fim do
dia, seus cabelos estavam todos “cheios” de novo. Thamyris a interrompe
20 Nunca me privei de expor em campo o meu gosto pessoal em relação à moda de vestuário,
pois sabia que, assim como eu me interessava pelo modo como os meus interlocutores se
apresentavam, eles atentavam para a maneira como eu fazia o mesmo. Me utilizei, isto sim, do
modo como eu me vestia e adornava de duas maneiras: para provocar eventos e comentários
e para assegurar a confiança entre as mulheres da casa, o que foi adquirido com esforço con-
tínuo. Este era um equilíbrio delicado e preservá-lo garantiu a possibilidade de transitar com
liberdade em ambos os lados da casa, além de haver me permitido a própria possibilidade de
concretizar minha pesquisa.
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dizendo que “sabe bem o que é isso”. E Joana segue contando que foi
assim “obrigada” a aprender a cuidar do cabelo de suas filhas. Tomou
gosto pela atividade e acabou tornando-se cabeleireira. O modo como
as mulheres se capacitam para o cuidado dos cabelos parece diferente
daquele que forma os músicos no estúdio. Estes enfatizam como herda-
ram o ofício de algum parente próximo, imitando-os. As cabeleireiras,
por sua vez, reforçam que foi o fazer e o re-fazer que lhes ensinaram a
sua prática, um aprendizado que se desenvolve nos moldes como se dão
as aquisições das “habilidades” [skills] em Ingold (2000).
Renata diz que “esse cabelo implantado” é uma “cachaça”, um
“vício”. Que quando você não o tem, não pode pôr, fica “triste” e “não sai
de casa”. Célia intervém e diz que com ela não é assim. Pois houve uma
época em que esteve com um cabelo “enorme”, “até a cintura”, que teria
ganho de presente. Mas logo os vendeu porque “precisava de dinheiro”.
A prática de “dar” e “receber” cabelos é usual, como vimos na fila
de espera para os cabelos de Thamyris formada por Tina e Célia. Tina
começou a colocar cabelo ao trabalhar com Sílvia, quando esta ainda
morava no Catete, próxima à “favelinha” onde Tina mora até hoje.
Mesmo não trabalhando mais com Sílvia, Tina continua amiga da famí-
lia. Mas lamentava o fato de estar desempregada. Havia a promessa de
uma faxina, que lhe renderia cento e cinquenta reais. Já sabia o que faria
com o dinheiro. Cem reais usaria para colocar os cabelos que herdaria
de Thamyris, e os cinquenta reais restantes empregaria para comprar
comida para o filho e outras coisas das quais ele necessitava na prisão.
Célia diz que fica “triste” se não puder “tratar” os seus cabelos, e por
isso dá “graças a Deus” por ter “esse emprego”: “A tristeza da minha vida
é quando eu tô com esses cabelos duros. Pode faltar tudo, comida pra
comer, roupa pra vestir...”. Sem cuidar de seu cabelos ela não pode ficar:
“fico com vergonha, não saio”. A cabeleireira penteia os cabelos de Célia,
passando-lhes “creme de pentear”, próprio para serem aplicados após
lavados e enxaguados. Ela diz que o cabelo de Célia está “quebrando
muito”, e recomenda que ela use o conteúdo da ampola “AD forte”. Célia
fala, animada, que não importa-se que seu cabelo esteja “quebrando”,
pois comprará a ampola e seu cabelo ficará “dez”. Ela levanta-se e anda
em direção a um grande espelho. Vai rebolando, com as nádegas empi-
nadas e gingando o corpo, e diz que fará “sucesso” com “os novinho” de
onde mora. Em breve, diz, sua “bunda”, que chamaram de “murcha”, e
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sua “canela”, que disseram ser “fina”, estarão “cheias”, graças, também,
ao emprego que Deus lhe providenciou. Os cabelos de Thamyris igual-
mente recebem o “creme de pentear” do salão, produto que ela decide
comprar para si e usar em casa.
O salão está prestes a fechar, e lá fora já é noite. Mas Célia e Thamyris
estão eufóricas. Querem passear pelo bairro. Atravessamos a rua e para-
mos em uma loja que vende presilhas para o cabelo. Enquanto olho o
que poderia levar, elas já escolheram, pagaram e estão a caminho da
rua. Vamos até o camelódromo de Madureira. Célia quer cumprimentar
seus colegas de tempos atrás, parece haver trabalhado naquela região.
Está sentindo-se especialmente bem, e quer mostrar isso aos outros.
Seus cabelos foram cortados, estão bem penteados e brilhosos, efeito
do “reparador de pontas” que Renata passou após o corte. Thamyris
também está contente. Fala que Joana lhe disse que seu cabelo cresce
bem, que sua a raiz é boa de ser “domada” e que em três meses estarão
no comprimento dos que estão os cabelos de Célia hoje. Pretende ficar
alguns meses sem os implantes, para deixar o couro cabeludo “respirar”.
Seguimos pela Estrada do Portela, em direção ao Madureira Shopping.
São quase sete horas da noite. Algumas lojas fecham e as barraquinhas
dos ambulantes vão tomando as calçadas. Entramos em uma grande loja
de xampus, cremes e esmaltes, chamada “Palácio da Mulher”. Buscam a
ampola recomendada à Célia e lhe informam que a mesma só é vendida
em farmácia. Voltamos para a rua e passamos por alguns camelôs, onde
elas compram brincos. E continuamos seguindo, até terminarmos nossa
incursão no shopping local, comendo pizza e bebendo guaraná.
a lógica da prótese
Os cabelos permitem acessar uma noção de pessoa que ao mesmo
tempo em que é específica, ao mostrar sua diferença em relação ao
“jeito” de ser do “branco”, desestabiliza uma concepção de identidade
negra fixa. Em pesquisa realizada em “salões étnicos” da cidade de
Belo Horizonte, rótulo que parecia ser evitado por Thamyris e Célia,21
21 O salão que Célia e Thamyris frequentavam chamava-se Bell Blue. Não distante dele ficava uma
filial da rede Raízes – Salão Afro, como anunciava o outdoor pelo qual invariavelmente pas-
sávamos no trajeto para Madureira. A toda vez que tentei estimular uma conversa sobre este
último salão, o que se manifestou foi desinteresse, tanto em relação ao referido estabelecimento
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Gomes (2006) defende que o aspecto político que reside nos processos
de embelezamento se faz sempre presente, na medida em que, “por mais
intervenções estéticas que realizem”, esses “sujeitos sabem que, mesmo
apresentando-se alisado, pranchado ou alongado, o seu cabelo sempre
será crespo e sempre remeterá à raça negra” (Gomes, 2006, p. 144). Com
Cíntia, Thamyris, Célia, Sílvia e Tina o aspecto político é atuante não
porque exista uma essência que a aparência esteja a camuflar, mas é o
aspecto político, móvel para as ações embelezadoras sobre os cabelos.
Não existe uma instância outra a “remeter” que não a comunicada pela
própria aparência física, antes ou depois das ações embelezadoras. Não
emerge dos seus discursos, orais e corporais, o desejo de se fazer “passar
por” branca. Ao contrário, desde o princípio o que se afirma é a dife-
rença, e as ações embelezadoras não surgem para camuflar ou minimi-
zar essa diferença, mas para reinscrevê-la de um modo que atenda ao
seu gosto. Pois se os cabelos eleitos para alongar as mechas originais
não são nunca lisos, mas sempre anelados, é por desprezarem também
uma época em que as possibilidades de embelezamento eram restritas.
Longos ou curtos, lisos ou crespos, estendidos ou não, os cabelos preci-
sam “sempre” ser tratados.
Edmund Leach destaca o potencial mágico dos cabelos, que não
apenas simbolizam poderes mas são efetivamente “potentes em situa-
ções mágicas” (Leach, 1983, p. 159). Os cabelos, nota o antropólogo
inglês, possuem uma quase universal presença em rituais de passagem,
mas, diferentemente do que ocorre no funk, eles seriam “mais proemi-
nentes em cerimônias de luto” (Leach, 1983, p. 163). Leach demonstra,
através de uma série de exemplos e comparações entre teses psicanalíti-
cas e dados etnográficos, que se o cabelo envolve sempre algum tipo de
mudança de status sexual é menos devido à existência de uma universal
relação, inconsciente, entre cabelo e impulsos sexuais, mas
é precisamente porque o comportamento do cabelo abrange um conjunto
ritualmente compreendido de simbolizações sexuais conscientes que ele
desempenha um papel tão importante em rituais do tipo rites de passage
que envolvem a transferência formal de um indivíduo de um status sócio
sexual para outro (Leach, 1983, p. 159).
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22 Kobena Mercer (1994) afirma que o cabelo do homem negro deve ser considerado como “uma
forma de arte popular que articula uma variedade de ‘soluções’ estéticas para uma gama de
problemas criados por ideologias da raça e do racismo” (Mercer, 1994, p. 112) e é, depois da
cor da pele, “o mais visível estigma da negritude ” (Mercer, 1994, p. 113). Carol Tulloch (2004)
igualmente reconhece o papel que os cabelos tiveram como símbolo de opressão e resistência,
mas enfatiza a grande variedade de penteados oferecidos atualmente aos homens e mulhe-
res negros e lamenta que as extensões capilares sejam muitas vezes vistas como “fraudes” de
identidade negra (Tulloch, 2004, p. 92-93). Lívio Sansone (2000), por sua vez, aponta o
“cabelo negro” como um dos “novos elementos e objetos por meio dos quais a cultura moderna
negra se distingue dos meios culturais dos não negros e da cultura afro baiana tradicional”
(Sansone, 2000, p. 97).
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número destas intervenções bem como a democratização a seu acesso à redução e facilidade
de pagamento do custo destas cirurgias.
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Capítulo 6
Adereços masculinos e relações de gênero
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1 O “responsável” por uma área ou favela no Rio de Janeiro é o seu “dono” ou aquele que o
“representa”, protegendo a localidade e encarregado-se de seus negócios. O “dono de morro”, o
chefe do tráfico de drogas de uma favela, pode ser “dono” de mais de uma comunidade, e cada
uma delas terá o seu “responsável”, figura que pode ser ainda instituída quando o “dono do
morro” é preso. Em situações nas quais o “responsável” é um substituto do “dono” ele é também
chamado de o “de frente” da área.
2 Bebida pronta à base de vodka e aromas de limão.
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nota que Neuma “passou henê”, e Neuma fala: “voltei para o henê”.
A amiga lhe diz que ela ficou bonita “com o cabelo assim” e Neuma
acrescenta que “não aguentava mais ter que”, naquele frio, “entrar no
chuveiro” com frequência para manter os cachos alinhados. De fato,
até então sempre que encontrara Neuma ela trazia seus cabelos curtos
cacheados e em tom acobreado. Nesta noite os cabelos de Neuma estão
similares aos de Luciana e ao da “amiga do Negão”, como descrito no
capítulo anterior: pretos e em corte Chanel, acima dos ombros, lisos e
escovados com as pontas viradas para dentro.
Conversava-se, bebia-se, dançava-se e flertava-se. Escutamos a
nova música do MC Didô vir do baile, e Neuma se empolga.
Bota uma rôpa
Bota uma rôpa
Fica cá bunda toda empinada
Os peito pontudo
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4 O uso de tatuagens parece seguir uma lógica diferenciada da que rege a roupa e a estética cor-
poral. A sua dimensão de recurso potencialmente embelezador parece suplantada pelo aspecto
temporal. A incorporação de tatuagens é acompanhada pelo passar do tempo, de modo que
um corpo jovem, de pele lisa, tende a apresentar poucas tatuagens, ao passo que um corpo
maduro vai ganhando sucessivamente novas inscrições que são adicionadas como as próprias
marcas do tempo se fazem sobre a pele.
5 Sempre que o termo “funkeiro” surgir entre aspas é indicação que estou utilizando-o não
como designação para aqueles envolvidos na produção e consumo do ritmo funk e sim como
categoria para recortar um estilo indumentário e corporal particular.
6 Nesta noite de inverno os dois rapazes vestiam a peça de roupa típica do “funkeiro” quando as
temperaturas ficam menos altas no Rio de Janeiro: a jaqueta de marca esportiva. As calças que
ambos vestiam, no entanto, não eram vestidas somente pela variação sazonal, mas igualmente
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a estética funk carioca
sinalizavam um estilo emergente no baile, composto pela calça jeans ampla e por camisa pólo
listrada. À época de meu campo de mestrado, esse modo de se vestir era associado ao gosto dos
rapazes envolvidos com atividades ilegais que, ao invés de se vestirem como surfistas, a roupa
típica do “funkeiro”, se vestiam como homens de negócio. Hoje já não é possível mais fazer
tal divisão, mas o interessante é que a associação entre o gosto cosmopolita e a roupa ampla
permanece regendo as escolhas indumentárias dos rapazes na festa.
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10 Idêntico aos desenhos das tatuagens de mesmo nome, que formam linhas sinuosas e espirala-
das, que se entrelaçam. Estas tatuagens são geralmente realizadas sobre o músculo do bíceps
dos braços masculinos ou na região do cóccix feminino.
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do gosto “funkeiro”. Tanto pelo aspecto feito que um cabelo loiro, ver-
melho ou branco denota sobre uma pele negra, mulata ou morena,
como pela ornamentação barroca dos desenhos. Pois, diferentemente
das mulheres, eles não buscam adequar a cor de seus cabelos ao tom de
suas peles, nem tampouco elegem como marca de localidade um objeto
removível, como fazem as moças com a “calça de moletom stretch”.
As mulheres constroem uma estética corporal mais ambígua quando
está em jogo a potencialização de sua circulação pela cidade. Os rapazes,
por sua vez, possuem um gosto que pode ser dito híbrido, pois funciona
em dois registros: as roupas e os tênis são imitativos mais em acordo com
a mimicry de Bhabha (1998) e os cabelos ao modo da mimesis de Taussig
(1993). De um lado, temos roupas que poderiam ser descritas como se
resultantes da chamada pasteurização que a indústria global produz
sobre as escolhas de consumo. De outro, seus cabelos, que não podem
ser retirados em sua circulação pela cidade, tendem a localizá-los em
uma identidade “funkeira”. E é esse hibridismo, que coloca lado a lado o
muito igual e o muito diferente, que desconcerta o olhar estrangeiro, o
olhar “gringo”, o olhar de fora. Como me disse Emanuel, ao imaginar o
modo pelo qual reagiria o “playboy” ao ver um “funkeiro” no Baile:
Por exemplo. Se eu chego no baile com meu cordão de ouro, tal. Minha ber-
muda cara, meu tênis caro. Eu vou ver um tênis igual ao meu, só que falso.
Pô, se eu ver um tênis igual ao meu falso, eu vou falar: “Caraca, que maluco”!
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cópia não tem papel espúrio, nem está por oposição ao autêntico, como
em Sapir (1949), mas é componente ativo do mecanismo criativo.
Latour (2002), ao tratar das diferentes percepções que o ídolo suscita
no encontro colonial, chama atenção para o papel que a condição de feito
possui para os efeitos que um objeto pode causar e para as atribuições de
agência que lhe são feitas pelos humanos. O poder da imagem religiosa,
defendem os “nativos”, reside precisamente no fato de a mesma ter sido
feita por mãos humanas, e não por ser produto do mundo sobrenatu-
ral, como preferiria a racionalidade cristã. Pois os jesuítas não podiam
suportar a ideia de um objeto simultaneamente feito e dotado de agência
divina. Ter sido fabricado pelo homem, diriam, tornaria os ídolos uma
farsa, uma vez que seus criadores, ao mesmo tempo em que reconheciam
que os mesmos não eram obra divina, simultaneamente acreditavam em
sua eficácia religiosa. Para os jesuítas, feito e falso andavam lado a lado e
não podiam ser dissociados. Para os povos não europeus, autenticidade e
eficácia residiam na própria condição de feito e não na de dado.11
Os cabelos dos rapazes, ao mesmo tempo em que conferem auten-
ticidade e concedem a marca estilística da estética indumentária mascu-
lina, se constituem no aspecto mais evidente da fabricação. Subvertem
o cabelo loiro do “playboy”, através de uma ação que imprime caracte-
rísticas falsas, no sentido que feitas e artefatuais, aos seus cabelos, como
os tons loiros, vermelhos e brancos que não possuem “originalmente”
e todos os cortes e recortes que são feitos sobre os pelos da cabeça. Os
cabelos dos “funkeiros”, ao persistirem no “detalhe que dá a impressão
de falso”, afirmam assim as “potências do falso” (Deleuze, 2005, p. 161).
Deleuze (2005), ao tratar da imagem no cinema, substitui o poder
da verdade pelo da autoridade falsificadora. O autor opõe dois regimes
de imagem: o orgânico e o cristalino. Se no primeiro ocorrem desenvol-
vimentos encadeados de maneira lógica e inseridos em contextos coesos
e preexistentes, onde a ficção, o falso, o sonho, surgem como dissocia-
dos da realidade concreta e sempre por oposição a esta, no segundo,
ficção e realidade se fundem para, ao borrar as suas fronteiras, afirmar
o poder do falso, inserindo em uma única e falsificadora narrativa rea-
lidades “compossíveis”, passíveis de serem unidas somente no plano das
11 Lagrou (2009a) aplica esta importância do fazer notada por Latour à sua análise da estética
ameríndia.
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Dois dias após a festa no Borel, fui até a casa de Sílvia fazer-lhe uma
visita de cortesia. Era seu aniversário e, de acordo com os meus cálculos,
faziam duas semanas que eu não aparecia por lá. Sílvia mora a cerca de
quarenta e cinco quilômetros de minha casa, na Zona Sul da cidade, o
que me rendia cerca de uma hora e meia dirigindo em meu carro, e a
outros tantos quilômetros da favela do Borel, na Zona Norte do Rio de
Janeiro. Mas Sílvia conhecia bem as realidades não tão estanques que
repousam por trás de rótulos que não apenas dividem a cidade em áreas
geográficas e sociais como alimentam o imaginário carioca. Junto com
Catra, ela morara em diferentes bairros da cidade, em imediações de
favelas ou não, e já tivera o seu salão de cabeleireiro instalado no Morro
do Jacaré. Sílvia era, em uma palavra, “contemporânea”, termo que ela
mesma gostava de empregar para descrever aqueles que transitam com
facilidade por diferentes ambientes estéticos e sociais.
Como de costume, eu estacionara meu carro sobre a calçada que
margeia o muro da casa. Sílvia acabava de sair de seu carro, estacionado
mais à frente e do mesmo modo que o meu. Ela vestia um dos vestidos
que vinha trajando desde o início de sua gravidez: em malha estampada
por motivos gráficos preto, branco e azul petróleo, de modelagem ampla
e sem mangas, fazendo o que a indústria da moda chama de “linha A”. Os
seus cabelos cacheados e acobreados estavam presos ao alto da cabeça
por uma “piranha” em um coque cujas pontas pendiam. Sílvia não esbo-
çou em sua face qualquer emoção ao me ver e, dando-me as costas,
seguiu falando com Das Sete que, além de ser músico, atendia à casa em
alguns momentos. Ela entrou pelo portão e aguardou na trilha do jardim
que eu cumprimentasse Das Sete que, com um skate na mão, perguntou-
me: “como vai a senhora?”, fazendo o convite para que eu mais tarde
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fosse até o estúdio ver a nova produção que realizava. Respondi-lhe que
não garantia que iria até lá, pois hoje a visita era para Sílvia.
Sílvia, malgrado o fato de “detestar” fazer aniversário, como dis-
sera-me, tirara a tarde pra fazer sobremesas. Depois da gelatina de uva,
preparava agora uma musse de maracujá, ao mesmo tempo em que
íamos conversando amenidades, que versavam desde as receitas que ela
executava até a última vez em que eu lá estivera, o que de acordo com
Sílvia havia ocorrido há três semanas.
O bolo que Sílvia batera está agora no forno e ela lava a leiteira onde
fervera a água para fazer a gelatina. Aproveito a casa calma e o clima rela-
xado pra dizer que estive na festa do Borel. E Sílvia, com a mesma expres-
são neutra que apresentara ao me receber, pergunta, em tom de quem
já sabe a resposta, se eu fui com Thamyris e sua mãe, e eu lhe respondo
afirmativamente. Com o mesmo ar indiferente ela diz: “aquele baile não
é seguro pra você” e acrescenta que Wagner, como chama o marido, não
deixa a filha ir até lá. Eu digo a Sílvia que pensei que Thamyris houvesse
consultado o pai antes de decidir ir à festa, mas vejo que não.
Continuamos a conversa e Sílvia explica que, como os chefes da
comunidade não “dão arrego”, não pagam propina, a polícia, ao ouvir os
tiros dados pelos bandidos, “sobe o morro”. E como o baile é ilegal “eles”,
os policiais, entram “dando tiro”, sem se preocupar com as pessoas na rua.
Ela acrescenta que o baile do Borel tem uma única entrada, o que torna
ainda mais complicado sair de lá em momentos de “guerra”. Ela mesma,
continua, já ficara presa ali em meio a um tiroteio. Este último detalhe,
venho saber depois, foi uma pequena fabulação a que Sílvia permitiu-se
para convencer-me dos perigos reais que ela acreditava que eu corria.
Sílvia continua em sua explanação. Explica que o Borel é separado
apenas por uma rua de um “morro alemão”, uma favela controlada por
uma facção rival. Os chefes deste último, por sua vez, ao ouvirem os
tiros entre policiais e bandidos inimigos, entendem que seus rivais estão
em posição vulnerável. A “invasão” da polícia se constitui assim em
desculpa para uma segunda “invasão”, feita pelos bandidos do Morro
da Casa Branca. O caos está armado.
A tarde passou assim, suave. E, entre uma ida e outra à cozinha,
sentei-me com Sílvia e a pequena Noemi ao sofá para elaborarmos mais
sobre a lógica da favela. Aproveito para dizer-lhe que quero ir ao Jacaré,
a favela na Zona Norte, ver o comércio informal local, que soube ser
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12 Nas ocasiões em que nos deslocávamos em um “bonde” de carros, meu carro poderia ser
dirigido por mim mesma, por meu companheiro ou ainda por um dos seguranças de Catra.
Invariavelmente eu levava comigo outros membros da entourage de Catra.
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que deveria fazer com relação ao meu carro. Sem emitir qualquer pala-
vra, ele tira do bolso de sua calça um gordo maço de notas de dinheiro,
composto por outros maços menores, presos por um elástico em cruz.
Segurando em uma de suas mãos e sem qualquer preocupação em
esconder o amarrado de dinheiro, ele leva a este sua outra mão e separa
uma nota de cinquenta reais. Em seguida pergunta ao guardador se ele
teria trinta reais para lhe dar de troco e paga por ele e por mim.
Vamos andando em direção à entrada do baile, que acontece ao ar
livre e ao longo de uma rua comum, cujas calçadas são ocupadas por qua-
tro diferentes e subsequentes “equipes de som”: paredões de alto-falantes
que emitem a música funk que é tocada por seus respectivos DJs. O início
da rua está vazio e estão postados em cada um de seus lados três garo-
tos, um atrás do outro e separados alguns metros de si. Vendem drogas.
Gritando, oferecem “papel de cinco e de sete”. Cada um deles segura
em uma de suas mãos sacos plásticos transparentes e incolores que nos
deixam ver o conteúdo resultante das transações feitas ao longo da noite.
A outra mão fica livre para entregar a droga e receber o dinheiro, que é
em seguida inserido no saco plástico. Catra para em frente a um desses
meninos, chamados de “vapores”, leva a mão ao bolso e novamente traz
à tona o seu bolo de dinheiro. Subimos a rua e ele pede a Cíntia que lhe
prepare um cigarro. Esta, além de assistir à Sílvia em casa, era também
uma espécie de braço direito de Catra.
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13 Mr. Catra afirma que não pode afirmar que é judeu pois não nasceu de “ventre judeu”
(Mattias, 2009).
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[Então, meus amigos. Por favor, prestem atenção. A gente sofre pra cara-
lho, plantando, correndo pra lá e pra cá... e ela vem e leva o lucro! Leva o
malote, irmão. Então, por favor... por favor, DJ. Por favor...]
Irmãos, cuidado...
[Ela gosta de lanche do Bob’s. Lanche do Bob’s, quer toda hora, Bob’s. Quer
ir pro mirante, toda hora! Cento e cinquenta suíte!]
Que ela quer o seu malote
O que ela quer
Ela quer o seu malote
Atividade meu mano
Humildemente,
Eu me libertei!
Mercenária
Mercenária
Eu não sou um canguru
E você não está na Austrália
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Ela é sanguessuga
Tá pronta pra te dar o bote
Eu vou te dar um papo
Tá de olho no seu malote
A libido sem
Safadeza é sua sina
E fica molhadinha
Quando sente cheiro de gasolina
Mercenária
Mercenária
Eu não sou um canguru
E você não está na Austrália
Danadinha
Dá até sair sangue
Só pra comprar
Aquele traje da Gang
Tá bom, tá bom
Ficou ruim a coisa ficou feia
Se tu rodar
Ela te abandona na cadeia
Mercenária
Mercenária
Eu não sou um canguru
E você não está na Austrália14
14 Mercenária, de Mr. Catra. Esta música possui três diferentes versões. A letra que transcrevo
mescla as duas versões, ambas antigas, de modo a mostrar o modo jocoso e ambíguo com que
os homens se relacionam com a “mercenária”.
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de casa”. Diz que fica preocupada com Catra “e esses ouros todos”.
Mas logo partimos. Catra segue com os filhos na direção de sua casa
e eu sigo com Cíntia para Ipanema, onde a deixarei antes de ir para
minha casa. No carro ela fala satisfeita que Catra lhe pagou o salário da
semana, explicando que ele lhe entregou o dinheiro “no talento”, discre-
tamente, sem fazer alarde. E contente elogia-o, dizendo que ele a “apa-
drinha” para que ela, por sua vez, possa “apadrinhar” a filha dele. Com
o dinheiro que dele recebe ela pode comprar os presentes que dá à sua
afilhada, a pequena Noemi, e manter a relação de apadrinhamento que
a une à família. Mas o “no talento” de Cíntia nos fala ainda sobre uma
certa economia de gestos e palavras que coexiste com e parece mesmo
ser complementar à ostensividade dos objetos e ao modo como eles são
empregados, o que ficaria mais claro em mais uma noite, quando Cíntia
contava-me sobre a diferença entre o “escandaloso” e o “presepeiro”. A
narrativa a seguir nos dará ainda a oportunidade de conhecermos um
pouco do universo particular de Cíntia.
o “presepeiro” e o “escandaloso”
Havíamos deixado juntas Vargem Grande e seguíramos para a sua casa
em Ipanema. Eu saíra cedo da minha casa sabendo que a tão esperada
festa do amigo bicheiro aconteceria mais tarde, mas como não havia
conseguido falar com ninguém com antecedência, segui para Vargem
Grande com uma roupa de festa no porta-malas de meu carro, o que
muita graça causou em Cíntia. Mais tarde ela diria a Thamyris, que rea-
gira surpresa ao saber que eu “subira o Galo”: “Você precisa ver como
ela é danada. Veio até com roupa no carro”. Cíntia, por sua vez, deixara a
casa de Sílvia carregando o vestido que pegara emprestado a Thamyris,
mas queria “ir em casa” pegar seus “sapatinhos”.
Subimos o Galo pela entrada de Ipanema, e Cíntia pediu-me que
eu deixasse o farol do carro no modo lanterna, com a recomendação de
subir a ladeira que corta o morro, com a marcha na primeira posição.
Passamos por um grupo de jovens rapazes. Eles sorriem para ela, que,
por sua vez, lhes retribui com um sorriso malicioso e um meneio com
a cabeça que indica concordância com algo. Penso que ela é a perfeita
tradução da carioca que com seu jeitinho consegue o que quer. E era
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a estética funk carioca
isso que os sorrisos marotos daqueles meninos pareciam dizer, que ela
sempre encontrava um modo de “se dar bem”, de usufruir das boas coisas
da vida sem ter que se submeter excessivamente às suas regras. Enfim,
Cíntia era “malandra” e o seu sorriso em retorno dizia que ela era mesmo.
Passamos pela quadra de esportes de onde vem o som de uma bate-
ria de escola de samba. Estacionamos o carro no alto do morro, perto do
“Criança Esperança”, a sede do projeto da Rede Globo de Televisão que
ambiciona “transformar a vida das crianças e jovens brasileiros”. Cíntia
desce do carro e pergunta à “tiazinha”, que está dentro de uma banca
em frente à vaga onde colocaríamos o carro, se a atrapalharíamos. A
senhora pergunta se demoraremos a retirar o carro, e Cíntia diz que
levaremos apenas “meia-hora”, e ela diz que então está “tudo bem”. Mas,
depois de já havermos deixado o carro a “tiazinha” quer agora que o
estacionemos de um modo que lhe parece mais adequado, pois atra-
palharíamos a eventual passagem de um caminhão para o canteiro de
obras do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento do governo
federal. Cíntia e eu sabemos que àquela hora nenhum caminhão passará
por ali, mas achamos melhor mover o carro.
Vamos descendo a pé a Ladeira Saint Roman, a principal via de
acesso ao Morro do Cantagalo, em direção à casa de Cíntia. Viramos em
uma ruela à direita e começamos a entrar em um cenário muito dife-
rente do de ar precário e decadente, trash, que acabáramos de deixar. Já
era noite, e as casas, talvez pela iluminação elétrica pouco feérica, pare-
ciam ter a mesma coloração cinza do concreto que revestia as ruelas e
suas laterais. Vermos no horizonte próximo que estávamos no alto de
uma montanha tornava a paisagem escura e monocromática com um
aspecto lunar, espacial. Tudo era muito simples e silencioso.
Continuamos andando, e um rapaz se aproxima, vindo de trás. É
um mulato magrinho, talvez de bigode, vestindo “blusa de time” larga,
bermuda igualmente solta em seu corpo e calçando chinelo de dedo.
Sobre uma de suas mãos ele equilibra uma embalagem cartonada de
pizza, como faria um garçom ao segurar uma bandeja. Cíntia para para
falar com ele e lhe pergunta algo como “pizza pras crianças...?”. Ele res-
ponde positivamente e lhe oferece um pedaço do petisco. Eu a observo,
curiosa para ver como ela se sairá. Cíntia levanta a tampa da caixa de
pizza com uma das mãos e retira uma de suas fatias. Mas não a pega
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toda para si, rasga, outrossim, uma tira de sua extensão. O rapaz oferece
a pizza a mim também, eu agradeço, mas não me sirvo. Ele segue na
nossa frente com passo acelerado e Cíntia vai usufruindo de sua porção.
Entramos à esquerda, subimos alguns degraus que logo nos deixam
na casa de Cíntia. Entramos pela sala, onde estão dispostas, lado a lado,
duas cadeiras de estrutura de metal tubular pintado de vinho e, perpen-
dicular a estas, um sofá de dois lugares. Ao fundo, com a luz apagada,
parece estar a cozinha, e ao lado desta vejo a porta do banheiro. No alto
da porta de entrada, do lado de dentro da casa, há uma imagem em três
dimensões de São Jorge sobre seu cavalo branco. Cíntia diz que irá “colo-
car um som do Negão”, e coloca uma música gravada em Paris com um
artista senegalês, faixa do CD de hip-hop que ficou recentemente pronto.15
Ela me chama para irmos para seu quarto e subindo as escadas bato com
o topo de minha cabeça na laje do segundo andar da casa. Cíntia olha-
me sem nada dizer. Passamos por uma sala antes de entrar em seu quarto
que, ela nota, está com a lâmpada queimada. Isto muito a irrita, pois quer
pranchar os cabelos e precisa de alguma iluminação. Ela cogita descer
para retirar a lâmpada de um dos cômodos inferiores, mas resolve o seu
problema ligando a televisão que ilumina o quarto suficientemente.
Começamos a nos vestir, e coloco o vestido que trouxera em meu
carro acompanhado de um par de leggings. Cíntia, quando eu lhe disse
que meu vestido era preto, achou ótima a escolha, pois era véspera de
Halloween e o vestido que ela usaria era igualmente preto, acrescentando
que “a ideia” era todos irem de preto naquela noite. Mas já vestida noto
que minha produção não lhe agrada, e ela logo diz que não é preciso colo-
car as leggings que eu visto. Eu lhe disse que o vestido era curto demais, e
tiro as leggings para que ela avalie. Ela diz que “assim está muito melhor”,
que o vestido não era “nada muito curto” e que a faixa que eu colocara
na cintura já estava “dando um pan”. Eu argumentei dizendo que meu
“marido” não acharia graça nenhuma em me ver chegando com o dia
claro e as pernas de fora daquele jeito. Rapidamente, ela retrucou dizendo
que então eu colocasse as leggings antes de entrar em casa, porque “nin-
guém precisa arrumar confusão com marido por conta de roupa”.
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16 A Melissa licencia ainda marcas europeias, como a inglesa Vivienne Westwood, mesmo nome
de sua estilista-chefe, associada ao estilo punk transgressor e nome hegemônico da indústria
da moda. Desse modo, o mesmo sapato em versão plástica vendido no Brasil e na Europa é
encontrado em sua versão de couro nas vitrines inglesas, como eu pessoalmente vi durante
meu doutorado-sanduíche.
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Cíntia, descrevendo Luizinho, que até então eu vira uma única vez,
diz que não gosta de “homem perigoso” e que ele é do tipo “escandaloso”.
Peço-lhe que me detalhe melhor o que quer dizer com “escandaloso”, o
que ela faz por contraste ao “presepeiro”, como seria Catra. Ela explica
que este age como aquele que é “o cara”, como quem é seguro de si.
Se você lhe fala, continua Cíntia, “me dá aí cinco contos pra eu com-
prar ali alguma coisa para eu beber”, Catra irá “desfolhar todo aquele
dinheiro”, e Cíntia o imita calmamente passando os dedos pelas notas
de dinheiro. Acrescenta que ele fará isso “de preferência” com a mão
posicionada de modo que os seus anéis fiquem bem no seu campo de
visão, e imita-o, movimentando as mãos de tal modo que os seus anéis
de ouro ficam na altura de nossos olhos. Exatamente como ele fizera ao
se colocar ao meu lado quando estávamos em frente à agência do Banco
do Brasil, no Recreio dos Bandeirantes, ou quando pagara o guardador
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Crime é crime
Não é contravenção
Esse é o regime
Respeito e blindão
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Se liga sujeito
Respeito é bom se ligar
Agora eu sou bicheiro
E ninguém vai me segurar
Minha maquininha
Agora eu sou bicheiro
E ninguém vai me segurar
Olha o respeito
É dinheiro na laje
No chão
Na parede
Dinheiro pa cacete
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calças que pegava no armário do marido. Nesta tarde ela veio de seu
quarto vestindo uma justa blusa regata, dobrada no alto de sua barriga,
acompanhada de uma parte de baixo que parecia ser de Catra. Ela se
senta à cabeceira da mesa de jantar, acende
seu cigarro artesanal, levanta a tampa de seu
laptop e me chama para que eu veja algumas
fotografias. A imagem que ilustra o plano de
fundo de seu desktop é composta por uma
única fotografia que está multiplicada nove
ou doze vezes, mas formando um quadro
só. Uma imagem refratada, como a holográfica, mas cujas partes são
idênticas. A foto, em preto e branco, mostra ela e Catra do busto pra
cima. Ele veste uma blusa t-shirt escura e não está especialmente ador-
nado. Sílvia tampouco está ornamentada. Está sem as suas extensões de
cabelo e provavelmente não calça sapato de salto alto, pois aparenta a
mesma altura que o marido, que não é muito alto, para padrões mas-
culinos. Já Sílvia é sim alta para padrões femininos. Estão próximos,
lado a lado, mas não abraçados. Um posicionado em diagonal ao outro,
talvez se tocando pelos ombros, sérios e sem sorrir. Ela, em especial,
possui um ar levemente desafiador.
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de Maísa, dizia a amiga, só poderia ser aceito em alguém que não havia
sido socializado naquele mundo, opinião que Sílvia não compartilharia,
pois vimos em suas falas que o medo é justificado não apenas pelo desco-
nhecimento mas também pela experiência do perigo. A explicação que
deu-me Sílvia na tarde de seu aniversário torna evidente que os objetos
podem precipitar eventos que estão fora de nosso controle, trazendo con-
sequências imprevistas e, nesse sentido, revelam mais uma vez como os
objetos possuem agência própria. É essa ideia que está expressa através da
fala “tudo que sobe, desce”, proferida por Maísa e Pamela ao ouvirem os
primeiros tiros no Borel. Os objetos participam da vida social, precipitam
acontecimentos e refazem constantemente o social e a cultura.
As armas e os tiros presentificaram uma alteridade que até então eu
não pudera identificar e promoveram a tomada de consciência de uma
face nem sempre aparente da vida social carioca, que não estivera visível
nem ao acompanhar Catra nem ao frequentar o “baile de clube” em que
fiz minha pesquisa de mestrado, que aos poucos percebi que “fechava”
com a mesma facção a comandar o Borel e a Mangueira. De fato, a
primeira vez em que participei de um baile com a presença maciça de
armas foi ainda em outra ocasião, quando, cerca de catorze meses antes
do baile no Borel, Sílvia me iniciou em um “baile de favela” que, como
ela recorrentemente frisou, é “muito diferente” dos “bailes de asfalto”. E
a grande diferença esteve sempre evidenciada pelas armas e seus tiros.
Pois, socializados ou não entre as armas, são estes mesmos objetos
que continuam exercendo fascínio sobre os de dentro e os de fora. Na
noite em que encerraríamos na Mangueira, Cíntia, Luciana e Thamyris,
todas familiarizadas com a “realidade da favela”, comemoravam a che-
gada à festa onde poderiam “ouvir uns proibidos”, as músicas que pre-
sentificam através de suas letras e de sua musicalidade as ações ilegais
dos chefes bem como as armas e os tiros aos quais recorrem para exercer
o seu papel. Por sua vez, Dudu, produtor de alguns dos shows de Mr.
Catra, se utiliza dos “bicos para o alto”, os fuzis em riste, para descre-
ver aos “gringos” que muitas vezes ciceroneia o diferencial que poderão
encontrar em um baile funk na favela.
Seja através do som “real”, produzido efetivamente pelas armas
de fogo, seja através do som que é simulado através de sintetizadores e
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Conclusão
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bem o modo pelo qual a arte está em direta conexão com a vida que a
produz, como argumentou Geertz. Isto, contudo, não é o mesmo que
dizer que a arte explica o social ou que este a produz. A arte não é um
espelho da vida, pois possui suas lógicas próprias. A do funk é a de elabo-
rar sobre o real e produzir uma ficção hiper-real, que carrega nas cores do
real. Esse é o aspecto tricky do funk, e Mr. Catra, como hábil trickster, tira
magistralmente partido das ferramentas que o funk lhe oferece.
A tensão entre parte e todo, entre indivíduo e sociedade, um dos
motes do livro, permitiu-nos um outro conjunto de elaborações. De
um lado vimos como Mr. Catra, a partir da noção de “pessoa holográ-
fica”, pode ser entendido como mais um dos elementos que compõem a
sua rede de relações familiares, não se tratando de dizer que são todos
iguais, mas que as relações que o compõem replicam-se nas outras pes-
soas da rede ao mesmo tempo em que nenhuma delas é exemplar dessa
rede, o todo tampouco é a soma dessas partes. A pessoa individual é um
e muitos ao mesmo tempo, ou melhor, é um através de muitos, como
ficou muito bem objetificado pela instalação de Sílvia. E nesse esquema
há espaço para que as individualidades emerjam.
Esta tensão entre individual e coletivo nos introduz também no estú-
dio de criação, e nos mostra que o funk é, para os membros da Sagrada
Família, um “ideal” ao mesmo tempo individual e coletivo. A etnografia
mostra que é possível ver o funk não apenas como um ritmo que abarca
com facilidade qualquer membro de sua comunidade, como uma alter-
nativa econômica, mas que ele se faz também dentro de uma tradição
musical, como vimos a partir de muitos dos profissionais que possuíam
uma relação anterior com a música, estabelecida através de familiares de
geração anteriores. Vimos também como é a relação entre ética e estética
que move muitos dos artistas em direção ao funk, um desejo de fazer
uma música que circule, que os coloque em relação com o todo da cidade.
Arte, para eles, é definida na medida em que ela circula, é consumida e
rompe a barreira do extraordinário, deixando de ser uma manifestação
apartada da vida social para fazer parte de sua articulação.
A marca de Mr. Catra, que inventa a sua própria tradição, emerge
da dinâmica de apropriações do funk, porque esta não nos fala apenas
de englobamentos e empréstimos culturais, mas de mediação. Da possi-
bilidade de ir e vir entre mundos que o funk faz e deixa ver em especial
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de poder e das pequenas diferenças, como ficou mais claro por meio das
imagens do “presepeiro” e do “escandaloso” oferecidas por Cíntia.
Catra participa assim de uma tradição de homens que igualmente
afirma o seu poderio ao mesmo tempo em que sente-se empoderado
por meio da exibição de objetos de valor. Mas ao falar dos homens é
preciso ainda acrescentar a mulher, que surge em momentos específicos
como mais um dos adornos com os quais homens como Catra se cer-
cam: dinheiro, ouro, roupas, armas, bebidas e, não menos importante,
mulheres. O que parece possível afirmar é que, a partir do que vemos
através do modo como são organizados os adornos corporais, a mulher
não necessita da presença do homem para afirmar a sua condição femi-
nina, ao passo que o homem surge como altamente dependente de sua
presença física ou de sua presentificação por meio de falas, para afirmar
sua condição masculina, o que não me parece irrelevante em um mundo
recorrentemente tachado como machista. Foi essa independência femi-
nina, e não um suposto feminismo das mulheres, que me permitiu
escrever todo um capítulo em torno delas e de sua estética sem precisar
contrastá-las aos homens ou invocá-los.
As diferentes noções de beleza nos levaram forçosamente a tangen-
ciar as relações de gênero. Pois se, como Strathern, partíssemos do pres-
suposto de que não há homem ou mulher, mas sim as categorizações de
diferença que findam por separar também os gêneros, as diferenças fun-
damentais estariam organizadas em torno da beleza e da aparência. O
adorno agrega valor e significado ao corpo, mostrando como noções de
pessoa, corpo e objetos estão vinculados. A pista para se tratar da sexua-
lidade e das relações de gênero, nesse universo, parece residir em uma
recusa às grandes categorizações sociais, e a estética corporal parece
sinalizar um caminho interessante para escapar a elas.
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