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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Rubens Carlos Vieira

Direito de ciência da imputação


no processo administrativo disciplinar

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO
2014
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP

Rubens Carlos Vieira

Direito de ciência da imputação


no processo administrativo disciplinar

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de mestre em
Direito do Estado, subárea de concentração em Direito
Administrativo, sob a orientação do Professor Doutor.
Clóvis Beznos.

SÃO PAULO
2014
Ficha CATALOGRÁFICA

Vieira. Rubens Carlos.


Direito de ciência da imputação no processo administrativo disciplinar
Dissertação de Mestrado – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC – 2014.
152p.
Orientador: Professor Doutor Clóvis Beznos
Área: Direito do Estado
Subárea: Direito Administrativo
Palavras-chave: Poder disciplinar. Processo administrativo disciplinar. Ciência da imputação.
Devido processo legal. Contraditório. Ampla defesa.
Banca Examinadora

__________________________________

__________________________________

_________________________________
Dedico este trabalho à minha esposa, Kaly, e à
nossa filha, Gabriela, pelo incentivo constante
e por jamais me deixar retroceder deste
objetivo de concluir o Mestrado.
AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais, Arlindo e Custódia, que nunca mediram esforços para
consolidar a educação dos filhos.
Minha profunda gratidão ao professor doutor Clóvis Beznos, pela firme e segura
orientação.
Agradeço também às professoras Sônia, Dalva e Milta, por me conduzirem nos
primeiros passos rumo ao maravilhoso mundo do conhecimento; e aos professores docentes
com quem convivi ao longo do curso. A todos eles, o meu profundo agradecimento e
admiração.
Um muito obrigado aos servidores e “concurseiros” das bibliotecas do Supremo
Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, pelo convívio fraternal durante a
elaboração deste trabalho.
Aos servidores da Corregedoria e da Diretoria de Infraestrutura Aeroportuária da
Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), órgão do qual fui titular por oito anos, pela
amizade e companheirismo.
Por fim, uma palavra de apreço aos doutores Flávia Cammarosano e Felipe Faiwchow
Stefam, pela grande amizade que nasceu durante o curso e se perpetuou no tempo.
RESUMO

O presente trabalho tem por objeto o estudo do direito de ciência da imputação no processo
administrativo disciplinar. Para o seu desenvolvimento, investigam-se, logo de início, o poder
disciplinar da Administração Pública, seu fundamento e natureza. Em seguida, considerando
a relevância para uma minuciosa compreensão da sistemática processualística do Direito
Disciplinar, examinam-se os princípios e garantias processuais previstos na Constituição da
República, com especial enfoque naqueles inerentes ao acusado. Na sequência, e após fixar
alguns conceitos principiológicos imprescindíveis, analisam-se os sujeitos afetados pelo
direito de ciência da imputação, sob a ótica daquele que deve fazer a imputação e daquele que
deve contrapô-la. São, nesta quadra, estudados e delimitados o conteúdo mínimo da
imputação que deve ser informada ao sujeito e o momento em que esta deve ser levada para
que se permita o seu exercício efetivo, tendo por base a realização dos princípios processuais
outrora discutidos. Por fim, coteja-se a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, com o
direito de ciência da imputação, visando averiguar a sua compatibilidade com os princípios
que devem orientar o processo administrativo disciplinar.

Palavras-chave: Poder disciplinar. Processo administrativo disciplinar. Ciência da imputação.


Devido processo legal. Contraditório. Ampla defesa.
ABSTRACT

This work aims to study the law regarding accusation in disciplinary actions. It begins by
investigating the disciplinary powers of Public Administration, their nature and principles.
Then, due to the importance of understanding the related process systematics of the
Disciplinary Law, the procedural principles and guarantees provided in the 1988 Federal
Constitution are analyzed, with special emphasis on those inherent to the accused. After
defining some essential concepts and principles, a detailed analysis is made of those
affected by the law of accusation, from perspective of the accuser and from that of whoever
responds to the accusation. The focus then passes to studying and defining the minimum
proportion of the accusation that must be reported to the subject involved and the right
timing for making the accusation known, to ensure due and effective application of the
abovementioned procedural principles. Finally, the provisions of Federal Law no. 8,112,
dated December 11th, 1990, are compared to the law governing the right to be informed of
the accusation, in order to verify their compatibility with the principles that should guide the
administrative disciplinary action process.

Keywords: Disciplinary powers. Disciplinary action process. Awareness of accusation


rights. Due process. Right of contradiction. Full defense.
 
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 11

I O PODER DISCIPLINAR DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA .................................. 13


1.1 TEORIA PENALISTA .................................................................................................. 17
1.2 TEORIA ADMINISTRATIVISTA ................................................................................ 21
1.3 APLICAÇÃO DO INSTITUTO: ESTADO DA ARTE .................................................. 23
1.4 NECESSIDADE DE APONTAR UMA DIRETRIZ NO DIREITO BRASILEIRO ........ 28
1.5 FUNDAMENTO DO PODER DISCIPLINAR DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ..... 30
1.5.1 A relação especial de sujeição ................................................................................... 31
1.5.1.1 Origem e objetivos ................................................................................................... 31
1.5.1.2 Estágio atual e aplicação ao poder disciplinar ......................................................... 34
1.5.1.3 Subsistência do instituto ........................................................................................... 36
1.5.2 A autotutela e a organização administrativa ............................................................ 38

II O EXERCÍCIO DO PODER DISCIPLINAR: O PROCESSO ADMINISTRATIVO


DISCIPLINAR E SUA MARCHA ............................................................................... 40
2.1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 40
2.2 OBRIGATORIEDADE DE REALIZAÇÃO DO PROCESSO PARA O EXERCÍCIO
DO PODER DISCIPLINAR ......................................................................................... 41
2.2.1 O poder-dever da administração na deflagração da persecução disciplinar .......... 41
2.2.2 Obrigatoriedade do processo para o exercício do poder disciplinar ....................... 45
2.3 NATUREZA JURÍDICA DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR:
PROCESSO OU PROCEDIMENTO? ........................................................................... 46
2.4 GARANTIAS PROCESSUAIS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE
1988 APLICÁVEIS AO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR ................ 49
2.4.1 Devido processo legal ................................................................................................ 50
2.4.1.1 Conceito ................................................................................................................... 50
2.4.1.2 Evolução histórica.................................................................................................... 52
2.4.1.3 Devido processo legal processual e devido processo legal substancial ..................... 55
2.4.2 Garantia à assistência jurídica gratuita ................................................................... 59
2.4.3 Princípio do juiz natural ........................................................................................... 61
2.4.4 Direito a razoável duração do processo .................................................................... 65
2.4.4.1 Origem ..................................................................................................................... 65
2.4.4.2 Efetivação do direito ................................................................................................ 68
2.4.4.3 Duração razoável do processo administrativo disciplinar federal ............................ 73

III DIREITO DE CIÊNCIA DA IMPUTAÇÃO............................................................... 78


3.1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 78
3.2 CONCEITO DE “IMPUTAÇÃO” .................................................................................. 82
3.3 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA IMPUTAÇÃO DISCIPLINAR E SUAS
RELAÇÕES COM O DIREITO DE CIÊNCIA DA IMPUTAÇÃO ............................... 83
3.3.1 Introdução ................................................................................................................. 83
3.3.2 Princípio acusatório .................................................................................................. 84
3.3.2.1 Separação entre órgão acusador e julgador ............................................................. 87
3.3.2.2 Não cabe condenar por fatos distintos nem pessoas distintas das dispostas na
imputação ................................................................................................................. 88
3.3.2.2.1 Correlação subjetiva .............................................................................................. 89
3.3.2.2.2 Correlação objetiva................................................................................................ 89
3.3.2.3 Imparcialidade do julgador ...................................................................................... 91
3.3.3 Princípio do contraditório ......................................................................................... 93
3.3.3.1 Conteúdo essencial ................................................................................................... 95
3.3.3.2 Necessidade de ser ouvido ........................................................................................ 97
3.3.4 Direito à ampla defesa ............................................................................................... 99
3.3.4.1 Conteúdo essencial ................................................................................................. 100
3.3.4.1.1 A autodefesa ou defesa material .......................................................................... 100
3.3.4.1.2 A defesa técnica ou formal .................................................................................. 101
3.3.4.2 Direito à produção de provas ................................................................................. 102
3.4 SUJEITOS DA INFORMAÇÃO .................................................................................. 103
3.5 O MOMENTO DA INFORMAÇÃO............................................................................ 105
3.6 CONTEÚDO DA INFORMAÇÃO .............................................................................. 107
3.6.1 Descrição fática ....................................................................................................... 108
3.6.2 Qualificação jurídica ............................................................................................... 111
3.6.3 Provas ...................................................................................................................... 114
3.7 DIREITO DE CIÊNCIA DA IMPUTAÇÃO E DIREITO AO AMPLO ACESSO AOS
AUTOS....................................................................................................................... 116
3.8 O PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR NA LEI Nº 8112, DE 11 DE
DEZEMBRO DE 1990, E O DIREITO DE CIÊNCIA DA IMPUTAÇÃO .................. 118
3.8.1 Evolução legislativa e jurisprudencial: da Lei 1.711/52 à Lei 8.112/90 ................. 118
3.8.2 A marcha processual na Lei nº 8.112/90 ................................................................. 122
3.8.2.1 A instauração do processo e a notificação do acusado ........................................... 122
3.8.3 A citação após a instrução processual e o direito de ciência da imputação........... 134
3.8.4 Necessidade de compatibilizar o processo administrativo federal com o direito
de ciência da imputação .......................................................................................... 136

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 140

REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 144


11

INTRODUÇÃO

O poder disciplinar busca assegurar o complexo de deveres a cuja observância está


obrigado quem pertence a dada instituição ou grupo social dotado de organização com caráter
de estabilidade e permanência, sujeição esta que, correlativamente, implica que haja nessa
instituição ou corpo social órgãos dirigentes aos quais são atribuídas competências para
reprimir, mediante a aplicação de sanções, a violação daqueles deveres, aplicação que atinge o
infrator membro de uma instituição ou corpo social com reflexos na sua condição de cidadão1.
Assim, o processo administrativo disciplinar é um instrumento coercitivo e de controle
à disposição da Administração Pública para fazer frente às condutas que atentem contra os
princípios norteadores do exercício da função pública. Ao mesmo tempo, constitui também
um conjunto de garantias para o próprio servidor público, ao marcar os limites da atividade
sancionadora da administração.
A República Federativa do Brasil, com a promulgação da Constituição Federal de 5 de
outubro de 1988, denominada Constituição Cidadã, se consolidou como Estado Democrático
de Direito ao determinar expressamente a aplicação do devido processo legal aos processos
administrativos (art. 5º, LV), até então aplicável somente à esfera jurisdicional.
Ademais, a liberdade, a justiça, a igualdade, o princípio da legalidade, a segurança
jurídica, a proibição de práticas arbitrárias pelo Poder Público e a responsabilidade civil do
Estado, a divisão dos poderes, a implementação e defesa dos direitos fundamentais, a sujeição
de todos os poderes à Constituição constituem, dentre outros, princípios gerais do
ordenamento jurídico que caracterizam o projeto político surgido com a redemocratização do
nosso país, transformando-o em verdadeiro Estado Democrático de Direito.
Desde a promulgação daquela Carta, assiste-se em nosso país a uma evolução
doutrinária, legislativa e jurisprudencial no sentido de adequar nosso Direito Processual Civil,
Penal e Administrativo aos princípios constitucionais, abandonando-se as concepções que não
mais se coadunam com o Estado Democrático de Direito instituído.
O presente trabalho tem como objetivo analisar se essa evolução alcançou o processo
administrativo disciplinar federal, espécie do gênero processo administrativo, no que concerne
ao direito de ciência da imputação.

________________________
1
À guisa de exemplo, faz-se referência à Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010, a qual retira do
cidadão, demitido da Administração Pública por infração disciplinar, a capacidade eleitoral passiva por um
período de 8 (oito) anos.
12

O direito de ciência da imputação não pode ser entendido isoladamente, sob pena de
sua efetividade e utilidade serem relativizadas, já que dito direito forma parte do conteúdo
essencial do devido processo legal e é, ademais, pressuposto indispensável para o exercício
dos direitos à ampla defesa e ao contraditório, uma vez que o acusado dificilmente pode ter
participação ativa no processo e exercer sua defesa ao longo daquele se desconhece aquilo
que se lhe imputa.
Iniciaremos por um estudo do poder disciplinar da Administração Pública, seu
fundamento e natureza, bem como sua relação com o Direito Penal e Processual Penal.
Avançaremos no estudo do processo administrativo e dos principais princípios constitucionais
a ele inerentes. Logo a seguir, analisaremos o direito de ciência da imputação, seu conteúdo
essencial e sua relação com os princípios processuais inerentes ao acusado.
No último capítulo, analisaremos a Lei Federal nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990,
o Estatuto dos servidores públicos civis da União, autarquias e fundações – na sua parte
processual, bem como a sua interpretação doutrinária e jurisprudencial –, de modo a
investigar se esse estatuto homenageia o direito de ciência da imputação e, em caso negativo,
como harmonizá-lo com a Constituição Federal.
Para terminar, serão delineadas as conclusões obtidas com este estudo.
Com este trabalho, pretendemos contribuir para uma reflexão sobre o processo
administrativo disciplinar federal e a importância que o direito de ciência da imputação tem
para o seu desenvolvimento como garantia essencial dos cidadãos e para marcar um processo
– penal, civil ou administrativo – como próprio de um Estado Democrático de Direito, sem o
qual não pode alcançar tal qualificação.
13

I O PODER DISCIPLINAR DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

O poder disciplinar existe em qualquer grupo social organizado, público ou privado,


com vistas a preservar a ordem interna da organização. A violação dessa disciplina gera a
infração disciplinar, e as penas aplicáveis por essa violação constituem as penas disciplinares.
Assim, segundo a doutrina majoritária, não há um monopólio judicial do poder
sancionador2, de modo que a Administração Pública e entidades particulares ostentam
faculdades sancionadoras próprias, inclusive a disciplinar.
Como elucida Rafael Munhoz Melo,

[...] o poder punitivo estatal, portanto, pode se manifestar através das sanções penais
e das sanções administrativas, as primeiras impostas no exercício de função
jurisdicional, as segundas no exercício de função administrativa, é dizer, tanto a
sanção penal como a administrativa são manifestações de um mesmo poder estatal, o
ius puniendi. Daí se falar em unidade do poder punitivo estatal, poder que abrange
tanto as sanções penais (Direito Penal) como as sanções administrativas (Direito
Administrativo Sancionador).3

Em relação aos agentes públicos, esse poder sancionador se manifesta através do


poder disciplinar, que previne e castiga a prática de condutas àqueles vedadas pelo

________________________
2
O Ministro Napoleão Maia Nunes Filho, ao proferir voto vencido no julgamento do Mandado de segurança nº
27.352/DF, anotou que: “Na verdade, a permanência, no âmbito administrativo, de potestade sancionadora
é sobrevivência exótica do período em que a função de julgar e punir estava inserida no âmago das funções
executivas, numa época em que a expressão direitos subjetivos não tinha o alcance que hoje se lhe reconhece;
como estima o eminente Professor NELSON SALDANHA, da Universidade Federal de Pernambuco,
os direitos subjetivos só adquirem significado jurídico após o surgimento da ideia de controle do poder
estatal, o que se fez pela via da jurisdição, permitindo-se afirmar que a noção de direitos subjetivos coincide
historicamente com o surgimento do Poder Judiciário:
‘O conceito de direito subjetivo, que parece ter faltado ao vocabulário medieval, emergiu dentro de
coordenadas onde se incluem o individualismo burguês e a diluição das estruturas medievais. Ele contradizia,
ao menos em potencial, a onipotência do Estado; ele armava o indivíduo de uma imagem juridicamente eficaz,
apta a alimentar suas pretensões, garantir sua dignidade, configurar sua qualidade autônoma. No indivíduo se
encontravam prerrogativas e valores intrínsecos, que eram em latência uma área que se asseguraria a si
mesma, agora, condições de afirmação institucional plena (Estado de Direito, Liberdades e Garantias, São
Paulo, Sugestões Literárias S⁄A, 1980, p. 63)’.
Na doutrina estrangeira, para Eduardo García de Enterria, é inconstitucional a atribuição de poderes
sancionatórios à Administração:“es evidente que estas declraciones de nuestros textos constitucionales-los que
resevan los assuntos penales a los Tribunais de Justiça están aludiendo a um concepto material de pena, no
puede admitirse la licitude de um fácil regateo da la imperatividad de estos textos por el argumento puramente
formalista de que las sanciones que administra o define la Administración no son delito, sino unas infraciones.
Esta, naturalmente, no es uma justificación, es posterius. Es um posterius para explicar precisamente la
alusión de um texto de la ley que justamente por su caráter constitucional no puede tener más que um sentido
perfectamente inequívoco”. Consideraciones jurídico-administrativas sobre las jurisdiciones punitivas
especiales apud ROMÁN CORDERO, Cristian. Derecho Administrativo Sancionador ¿ser o no ser? he ahí el
dilema, In: PANTOJA BAUZA, ROLANDO. Derecho Administrativo 120 años de cátedra.Santiago, Editorial
Jurídica de Chile, 2008. p. 107.
3
MELLO, Rafael Munhoz de. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador: as sanções
administrativas à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 45.
14

ordenamento jurídico. Para estes agentes, o estatuto disciplinar é o conjunto de normas


jurídicas que determinam os fatos ilícitos passíveis de serem cometidos no exercício da
função pública e preveem as sanções a serem impostas pela Administração Pública.
Hely Lopes Meirelles conceitua poder disciplinar da Administração Pública como

[...] a faculdade de punir internamente as infrações funcionais dos servidores e


demais pessoas sujeitas à disciplina dos órgãos e serviços da Administração. É uma
supremacia especial que o Estado exerce sobre todos aqueles que se vinculam à
Administração por relações de qualquer natureza, subordinando-se às normas de
funcionamento do serviço ou do estabelecimento que passam a integrar definitiva ou
transitoriamente.4

O poder disciplinar tem sua matriz constitucional nos artigos 5º, inciso LV e 41,
parágrafo 1º. No plano infraconstitucional, nosso objeto de estudo será o Estatuto Federal, Lei
nº 8112, de 1990, e a Lei nº 9784, de 19995, a ele aplicável subsidiariamente. Esses dois
diplomas legais são aplicáveis apenas aos servidores públicos civis da União, suas autarquias
e fundações, e subsidiariamente à Lei Orgânica da Magistratura (Lei Complementar nº
35/79),6 que regula a responsabilidade disciplinar dos Magistrados, à Lei Orgânica do

________________________
4
Direito Administrativo Brasileiro. 39. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 148.
5
Tendo em que a Constituição Federal outorga competência concorrente a União, Estados e Municípios para
legislar sobre servidores públicos (art. 24, inciso XI), cada ente federativo pode elaborar seu próprio estatuto.
6
Neste sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: “Recurso ordinário em mandado de segurança.
Magistrado. Processo administrativo disciplinar. Censura. Pretensão punitiva. Prescrição. LOMAN. Omissão.
Lei 8.112/90. Aplicação subsidiária. Precedentes. Suspensão. Prazo prescricional. Dois anos. PAD.
Instauração. Interrupção. 140 dias. Reinício. Penalidade. Revisão. Razoabilidade. Proporcionalidade.
Possibilidade. Precedentes. Conjunto probatório. Instrução. Deficiência. Prova pré-constituída. Ausência.
Direito líquido e certo não demonstrado. Recurso desprovido. I - De acordo com a jurisprudência deste e. STJ,
ante o silêncio da Lei Orgânica da Magistratura Nacional - LOMAN, devem ser aplicadas, em caráter
subsidiário, as disposições da Lei nº 8.112/90, mesmo em se tratando de magistrados estaduais, por exigir a
Constituição tratamento isonômico da Magistratura Nacional em todos os seus ramos. II - Assim, em se
tratando da penalidade de censura, o prazo prescricional da pretensão punitiva ocorre em 2 (dois) anos
contados da prática do ato tido por infracional, lapso correspondente àquele definido, na Lei nº 8.112/90, para a
pena de suspensão. Precedentes. III - Embora a instauração do processo administrativo disciplinar tenha o
condão de interromper prescrição, a fluência desta inicia-se após o transcurso de 140 (cento e quarenta) dias,
prazo tido pela jurisprudência dos e.e. Tribunais Superiores como necessário à regular tramitação e
encerramento do PAD. IV - In casu, o processo administrativo de que tratam os autos foi instaurado
em 23/12/2003, e a penalidade de censura foi aplicada à magistrada em 17/02/2006. Descontado, desse
intervalo, o prazo de cento e quarenta dias em que o reinício da prescrição ficou obstada, chega-se a um total
de apenas 644 dias entre um evento e outro, espaço de tempo inferior aos 2 (dois) anos fixados na legislação
para a prescrição da pretensão punitiva. V - No âmbito do regime disciplinar, inexiste discricionariedade para a
autoridade que aplica a sanção ao agente público, sendo amplo, por parte do Poder Judiciário, o controle do
ato, inclusive quanto aos aspectos de culpabilidade, proporcionalidade e razoabilidade. Precedentes deste e.
STJ. VI - Inviável, nesse aspecto, porém, o êxito do pedido da recorrente no sentido de se promover dita
reapreciação, porquanto não há nos autos a cópia integral do PAD, que se revela indispensável, na espécie,
para o exame da adequação da penalidade. Precedentes. Recurso ordinário desprovido”. (Recurso em Mandado
de Segurança nº 30.666/BA - Relator: Min. Félix Fischer - DJE de 21.05.2010”.
15

Ministério Público (Lei Complementar nº 75, de 1993),7 que regula as condutas vedadas aos
Membros do Ministério Público, dentre outros.
A Administração Pública está constitucionalmente vinculada à realização do interesse
público, e o poder disciplinar é um instrumento do qual dispõe para garantir esse objetivo,
reprimindo os agentes que não cumprem com suas funções ou delas abusam em detrimento da
finalidade pública.
Desde tal perspectiva, o poder disciplinar tem um âmbito, obviamente, muito mais
reduzido que aquele conferido ao Direito Penal, já que a ordem protegida é a organização
administrativa, a relação de serviço, e o destinatário da proteção é a própria Administração
Pública, uma vez que a relação laboral de Direito Público carrega uma série de obrigações
cujo cumprimento garante o bom funcionamento da organização e dos fins aos quais ela se
presta. O poder disciplinar conferido à Administração Pública persegue a salvaguarda do seu
prestígio e dignidade, bem como a correta atuação dos seus servidores.
Nesta ordem de ideias, leciona Themistocles Brandão Cavalcanti:

[...] o direito disciplinar é parte integrante do Direito Administrativo, e regula as


normas relativas às infrações dos regulamentos internos das repartições
administrativas e respectivas sanções. A manutenção da ordem jurídica, as medidas
de preservação contra as violações da lei, impõem ao Estado um certo número de
providências de caráter, intimidativo e repressivo que obriguem, pela exemplaridade
e rigor, o respeito ao direito.8

Com efeito, não se trata de uma imposição de normas de convivência social, nem da
análise de sua transgressão por qualquer cidadão, mas da observância dos deveres e
proibições do cargo, emprego ou função por parte de um agente público.

________________________
7
Neste sentido: Tribunal Regional Federal da 1ª Região: ADMINISTRATIVO. AUXÍLIO-FUNERAL. ART.
226 DA LEI 8112/90. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA AOS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO DA
UNIÃO.1. O auxílio funeral, nos termos da lei de regência dos servidores públicos federais, é devido à pessoa
da família do servidor, assim entendida, o cônjuge, os filhos ou outras pessoas que vivam às suas custas ou
constem de seus assentamentos funcionais. 2. A aplicação da Lei nº 8.112 /90 aos membros do
Ministério Público da União é expressamente permitida pela Lei Complementar nº 75 /93. 3. Afastada a
incidência do art. 227 da Lei nº 8.112 /90, vez que a Associação Nacional dos Procuradores da República tão-
somente adiantou os valores despendidos com o funeral, tendo sido prontamente ressarcida pela esposa do "de
cujus". 4. Comprovada a qualidade de cônjuge do membro do Ministério Público Federal, assim como o óbito
deste, há que ser deferido o auxílio funeral à recorrida, no valor equivalente a um mês de provento, em respeito
ao texto do art. 226 do normativo legal acima referenciado. 5. Apelação a que se nega provimento. Remessa
oficial parcialmente provida para determinar os índices de correção monetária e juros de acordo com o
entendimento desta Corte, mantendo-se a sentença em seus demais termos. 6. Sem honorários (Súmula 105 do
STJ e 512 do STF). (Apelação em Mando de Segurança nº 24415).
8
CAVALCANTI, Temístocles Brandão. O funcionário Público e o seu Regime Jurídico: comentários ao
estatuto dos funcionários públicos. Rio de Janeiro: Borsói, 1958, p. 223.
16

Constitui, assim, pressuposto para a aplicação do regime disciplinar laboral que se


ostente a condição de agente público, ainda que fora das suas atividades, já que também os
agentes que se encontram aposentados e em disponibilidade podem ser disciplinarmente
responsabilizados. Ao contrário, não é passível de responsabilidade disciplinar o agente
público após sua exoneração ou término de mandato.
Nesta linha, segue trecho de julgado do Supremo Tribunal Federal:

Cabe observar que, excetuadas as hipóteses de cassação de aposentadoria ou de


disponibilidade (Lei nº 8.112/90, art. 127, IV), a aplicação das demais sanções
punitivas, pelo Poder Público, supõe a atualidade da investidura funcional do agente
estatal em determinado cargo público.
Sem que haja, portanto, essa necessária relação de contemporaneidade entre o
exercício do ofício público e a instauração de processo disciplinar, não se legitima a
concreta atuação do poder disciplinar da Administração Pública, exceto se – como
anteriormente referido – registradas as hipóteses fundadas no inciso IV do art. 127
da Lei nº 8.112/90. Nesse contexto, a atualidade do vínculo jurídico-administrativo
revela-se pressuposto necessário à validade jurídica de eventual sanção disciplinar.9

Assim, o nosso estudo será sustentado na premissa de que o poder disciplinar é um


elemento do Direito Administrativo10 aplicável aos agentes públicos que mantêm vínculo
funcional com a Administração Pública; não se trata, portanto, de um ramo autônomo do
Direito Público.11
No item seguinte, analisaremos o fundamento do poder disciplinar da Administração
Pública.

NATUREZA DO PODER DISCIPLINAR E SUA RELAÇÃO COM O DIREITO


PENAL
________________________
9
Medida Cautelar em Mandado de Segurança n.º 32.335/DF, rel. Ministro Celso de Melo, DJe-198, de
07/10/2013.
10
O Direito Administrativo é o ramo do direito público que tem por objeto os órgãos, agentes e pessoas jurídicas
administrativas que integram a Administração Pública, a atividade jurídica não contenciosa que exerce e os
bens de que se utiliza para a consecução de seus fins, de natureza pública (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella.
Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 49). Celso Antônio Bandeira de Mello o define como
o ramo do Direito Público que disciplina o exercício da função administrativa, e os órgãos que a desempenham
(Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 29). Há quem, entretanto, incorpore à
definição o elemento sancionador, conceituando-o como o conjunto de normas jurídicas que se traduzem na
faculdade que possuem os órgãos da Administração do Estado para tutelar seus próprios interesses ou os da
comunidade, aplicando sanções aos particulares e servidores públicos, mediante um procedimento racional e
justo, por infração às regras e/ou deveres jurídicos predeterminados (CARCAMO RIHETTI, Alejandro. La
constitucionalidad y la necesidad del derecho administrativo sancionador correctivo en el complejo escenario
económico moderno. Gaceta jurídica, 2010. p. 8.)
11
Conforme ensina Clóvis Beznos, “o direito colombiano, a exemplo do que ocorre em outras plagas da América
Latina, trata o tema autonomamente, como uma disciplina própria e, portanto, com princípios que o informam
e que lhe dão fundamento”. Diz ainda que “[...] entre nós não passa de um tópico do Direito Administrativo,
pertinente ao tema ‘servidores públicos [...]’”. In: PAVAJU, Carlos Arturo Gómez. Fundamentos del derecho
disciplinario colombiano. Belo Horizonte: Fórum, 2012. Prefácio.
17

Em nosso ordenamento jurídico, destacam-se duas competências punitivas


decorrentes de infrações administrativas: uma a cargo do Poder Judiciário e outra
exercida pela Administração. A doutrina12 e a jurisprudência13 brasileira assentaram,
quase que à unanimidade, que o processo administrativo disciplinar guarda
independência e autonomia em relação a eventual processo civil e/ou penal
instaurado a partir dos mesmos fatos e em face da mesma pessoa14. A única exceção
a essa regra ocorre quando, na instância penal, for reconhecida a inexistência do fato
ou que o acusado não foi seu autor15.

Contudo, questão diversa e pouco debatida no Direito nacional é a natureza do poder


disciplinar e sua relação com o Direito Penal. Neste cenário, as principais teorias se reduzem a
dois grandes grupos: a penalista e a administrativa.
As consequências jurídicas da adoção de uma ou de outra estão bem sintetizadas na
lição de Fábio Medina Osório:

[...] a mais importante e fundamental consequência da suposta unidade de ius


puniendi do Estado é a aplicação de princípios comuns ao Direito Penal e ao Direito
Administrativo Sancionador, reforçando-se, nesse passo, as garantias individuais.16

Examinemos as teorias.

1.1 TEORIA PENALISTA

A concepção penalista considera que as sanções disciplinares têm uma identidade


substancial com as sanções penais, pelo que se aplicam àquelas os mesmos princípios a estas
aplicáveis. As diferenças entre o Direito Penal e o Direito Disciplinar são meramente
quantitativas. O Direito Penal cuida das sanções mais graves; e o Direito Administrativo, das
mais leves.17

________________________
12
Por todos, MEIRELLES, Hely Lopes. In: Direito Administrativo Brasileiro. 39. ed. São Paulo: Malheiros,
2013, p. 411.
13
No âmbito do Supremo Tribunal Federal confiram-se, dentre outras, as seguintes decisões: AI nº 807.190-AgR
SP, AI nº 521.569-ED PE, AI nº 783.997-AgR SP. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, encontramos,
dentre outros, os seguintes precedentes: MS nº 19.703-DF, MS nº 14.780-DF e MS nº 13.064-DF.
14
Esta posição doutrinária e jurisprudencial majoritária é criticada por Pierpaolo Cruz Bottini: “É comum que a
absolvição de investigado na seara administrativa seja ignorada na seara penal, e vice-versa, como se cada
segmento do Poder Público fosse uma unidade hermética e indevassável a valorações feitas em outros
terrenos”. In: Independência das esferas administrativa e penal é mito. Revista eletrônica Consultor Jurídico,
21 maio 2013.
15
Lei Federal nº 8.112/90:“Art. 126. A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de
absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria.”
16
Direito Administrativo Sancionador. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 54.
17
RICÓN, Jose Suay. Sanciones Administrativas. Madrid: Real Colegio de Espana, 1998. p. 34.
18

Para esta corrente doutrinária, o poder sancionador da Administração é um poder de


caráter jurisdicional, por isso não deveria ser conferido, em princípio, à Administração, mas
exclusivamente ao Juízo penal, a quem se atribui a função de julgar em um Estado de Direito.
Contudo, razões pragmáticas levaram o legislador a atribuir parte desse poder à
Administração, deixando o juízo penal de monopolizá-lo. Com efeito, este poder segue sendo
substancialmente penal, o que atrai a aplicação dos princípios informadores do Direito Penal e
Processual Penal.
A origem dessa teoria é atribuída a James Goldschmidt.18 Para este autor,

[...] crime em sentido penal será a ação declarada ilícita pela lei; ao contrário, delito
administrativo será somente o descumprimento de uma obrigação positiva que o
cidadão tem para com a Administração enquanto membro da sociedade e, portanto,
enquanto parte desta administração.19

No Brasil, a discussão não é nova. Para Nelson Hungria, um dos autores do


anteprojeto do Código Penal de 1940, naquilo que se refere ao ponto de vista de punição, não
há por que distinguir entre a esfera administrativa e a esfera penal. Inexiste, de jure conditio
ou de lege ferenda, qualquer fundamento plausível para que não vigorem, num e noutro caso,
os mesmos princípios, quer relativamente à imputabilidade, quer a respeito da culpabilidade.20

Aponta Themistocles Brandão Cavalcanti, valendo-se de lições de autores


estrangeiros, a tendência de adoção da teoria penalista:

Com o Direito Penal também tem o Direito Disciplinar relações muito íntimas,
porque o Direito Disciplinar é constituído essencialmente por um regime de sanções
e, por isso mesmo, sofre influência direta, imediata, do Direito Penal. Este capítulo
das relações entre Direito Disciplinar e o Direito Penal é bastante interessante pela
multiplicidade das doutrinas que se entrechocam.

________________________
18
O autor espanhol Alejandro Nieto Garcia (Derecho Administrativo Sancionador. 4. edición. Espanha: Tecnos,
2004. p. 175) é enfático ao afirmar que “la potestad administrativa sancionadora, al igual que la potestade de
los Jueces y Tribunales, forma parte de um genérico ‘is puniendi’ del Estado, que es único aunque se subdivide
em estas dos manifestaciones”.
19
MONTORO PUERTO, Miguel. La infración administrativa. Barcelona: Nauta, 1965. p. 264 apud OLIVEIRA,
Régis de. Infrações e sanções administrativas. São Paulo: RT, 1985. p. 46, 47. Diz este autor: “En términos
generales, Goldschmidt destaca los deberes que tiene el hombre como miembro de una comunidad, lo cual le
impone deberes en la prevención de peligros y en la promoción del bienestar, materias que están a cargo de la
Administración. Estos deberes se distinguen de aquellos que le corresponden al particular como individuo, en
donde se manifiesta su libertad o poder-querer (orden jurídico) y cuya infracción es sancionada por el
derecho penal judicial. Así es posible distinguir entre los deberes em el marco de un orden jurídico, que
supone la libertad de la persona, y los deberes que emanan de la Administración, que supone la pertenencia a
una comunidad y, por tanto, el deber de asegurar su buen orden. En el primer caso, el fin del derecho es
“proteger las esferas humanas de voluntad” y en el segundo la “promoción del bien público y estatal.”
20
HUNGRIA, Nelson. Ilícito Administrativo e ilícito penal. Revista de Direito Administrativo. v. 1. p. 31.
19

[...]
O Direito Penal procura absorver com seus princípios, sob a influência, aliás, de
ideias autoritárias, outras disciplinas jurídicas, especialmente o Direito
Administrativo e o Disciplinar, procurando uniformizar o regime de sanções e
penetrando na vida administrativa, no campo das contravenções e das infrações
administrativas, de um modo geral.

Celso Antônio Bandeira de Mello ensina não haver distinção substancial entre
infrações e sanções administrativas e infrações e sanções penais:

Reconhece-se a natureza administrativa de uma infração pela natureza da sanção que


lhe corresponde, e se reconhece a natureza da sanção pela autoridade competente
para impô-la. Não há, pois, cogitar de qualquer distinção substancial entre
infrações e sanções administrativas e infrações e sanções penais. O que as aparta
é única e exclusivamente a autoridade competente para impor a sanção, conforme
correto e claríssimo ensinamento, que boamente sufragamos, de Heraldo Garcia
Vitta. (Grifos nossos).21

Marçal Justen Filho adere a essa teoria ao afirmar que “o regime jurídico do Direito
Administrativo punitivo se vincula ao Direito Penal. Por isso, todos os princípios
fundamentais penalísticos são albergados pelo Direito Administrativo punitivo”.22
José dos Santos Carvalho Filho também enfatiza a aplicação de institutos do Direito
Penal e do Direito Processual Penal ao Direito Administrativo Sancionador, ao afirmar que
“como se trata de processo acusatório, deve reconhecer-se a incidência, por analogia, de
alguns axiomas consagrados no âmbito do Direito Penal e Processual Penal”.23

________________________
21
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros,
2011, p. 854.
22
Curso de Direito Administrativo. 6. ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2010. Em abono à sua tese, o
autor cita precedente do Superior Tribunal de Justiça, relatado pelo Ministro Napoleão Maia Nunes Filho. Eis a
Ementa da decisão: “DIREITO ADMINISTRATIVO. ATIVIDADE SANCIONATÓRIA OU DISCIPLINAR DA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DO PROCESSO PENAL COMUM. ARTS.
615, § 1o. E 664, PARÁG. ÚNICO DO CPP. NULIDADE DE DECISÃO PUNITIVA EM RAZÃO DE VOTO
DÚPLICE DE COMPONENTE DE COLEGIADO. RECURSO PROVIDO.
1.Consoante precisas lições de eminentes doutrinadores e processualistas modernos, à atividade sancionatória ou
disciplinar da Administração Pública se aplicam os princípios, garantias e normas que regem o Processo Penal
comum, em respeito aos valores de proteção e defesa das liberdades individuais e da dignidade da pessoa
humana, que se plasmaram no campo daquela disciplina.
2. Obediência aos postulados do Processo Penal comum; prevalece, por ser mais benéfico ao indiciado, o
resultado de julgamento que, ainda que por empate, cominou-lhe a sanção de suspensão por 90 dias, excluindo-
se o voto presidencial de desempate que lhe atribuiu a pena de demissão, porquanto o voto desempatador é de
ser desconsiderado.
4.Recurso a que se dá provimento, para considerar aplicada ao Servidor Policial Civil, no âmbito administrativo,
a sanção suspensiva de 90 dias, por aplicação analógica dos arts. 615, § 1o. e 664, parág. único do CPP,
inobstante o douto parecer ministerial em sentido contrário”.
23
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 22. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2009, p. 89.
20

Para Egberto Maia Luz, a corrente penalista é a que está com a melhor doutrina; eis
que se o Direito Administrativo Disciplinar possuiu mesmo alguma afinidade, esta define-se
perfeitamente com a identidade do direito de punir, que somente se encontra em duas esferas:
na criminal e na administrativa.24
Nesta linha de entendimento, manifestou-se o Ministro do Superior Tribunal de Justiça
Napoleão Maia Nunes Filho:

Afirmo, mais uma vez, no processo disciplinar atuam todos os institutos do processo
penal contemporâneo: presunção de inocência, in dubio pro reo, bagatela, proibição
de prova ilícita, direito ao silêncio, enfim, todo aquele conjunto de proteções criadas
pela civilização e pela cultura em favor dos acusados de crimes.25

Na sequência, citando lições doutrinárias de sua autoria, prossegue a afirmar que

Não há motivo para se recusar identidade ontológica entre os ilícitos administrativo


e penal, devendo ser reconhecido que é apenas dogmática essa distinção, insuficiente
para servir de base a tratamentos repressivos distintos; mas é evidente que se ao
ilícito administrativo não for atribuída concomitantemente a qualidade de crime (art.
1o. da LICP), então não se haverá de cogitar de identidade.
Em síntese, o dogma da separação das instâncias – ainda que se sustente a sua
permanência – não pode situar-se acima dos princípios que a Carta Magna acolheu,
dentre eles, no campo do Direito Sancionador, o que assegura a presunção de
inocência, de modo que o poder punitivo estatal, no domínio administrativo, não
está imune à sua força; se o réu obtém absolvição criminal, qualquer que seja a razão
da absolvição, sobre ele não há de incidir qualquer sanção decorrente do fato objeto
do processo criminal, salvo se – repetindo-se o óbvio – remanescer resíduo
administrativo passível de punição (Súmula 18 do STF).26

Por ter a mesma natureza jurídica, existe tão somente uma separação formal que se
deve a motivos históricos, políticos ou simplesmente de eficiência. Portanto, devem os
princípios norteadores do Direito Penal ser aplicados às infrações administrativas, posto que
estamos diante do Direito Penal.27
Essa teoria não é isenta de críticas. Critica-a Fábio Medina Osório:

Não parece razoável distinguir normas penais de normas administrativas a partir dos
valores tutelados ou da imoralidade inerente a umas ou outras infrações. Valores
éticos podem e devem ser protegidos pelo Direito Administrativo. Inexiste óbice
nesse sentido. Basta que a presença reguladora ou sancionadora do Estado seja
reclamada pela realidade social. E o Direito Penal, a seu turno, está cada vez mais
pragmático, tutelando interesses difusos e coletivos, muito mais centrado na defesa

________________________
24
Direito Administrativo Disciplinar: teoria e prática. 4. ed. rev., atual. e ampl. Bauru, SP: EDIPRO, 2002, p. 74.
25
Mandado de Segurança nº 17.515\DF. Voto vencido.
26
Mandado de Segurança nº 17.515\DF. Voto vencido.
27
RICÓN, Jose Suay. Sanciones Administrativas. Bolonia: Del Real Colegio de Espana, 1998, p. 34.
21

de direitos constitucionais do que propriamente na justificação moral de seus


preceitos proibitivos.28

1.2 TEORIA ADMINISTRATIVISTA

Em oposição à corrente penalista, situa-se a administrativista que considera que as


sanções disciplinares têm uma identidade própria que as singulariza em relação às sanções
penais.29
Para esta corrente doutrinária, as sanções administrativas constituem uma figura com
perfis próprios. Não existe uma identidade, mas uma autêntica diversidade substancial entre
uma e outra instituição, ambas a serviço de finalidades diferentes e que têm uma distinta razão
de ser. Com efeito, para o nosso estudo, as sanções administrativas estariam sujeitas a
princípios próprios e específicos, que não coincidem com os penais, podendo até estar em
contradição com eles30.
Para os adeptos dessa corrente, o poder disciplinar resulta de uma relação de
supremacia especial que se estabelece entre a Administração e certas categorias de personas
que justifica a atribuição à Administração de um poder disciplinar próprio – administrativo e
não penal – cujo fundamento é, assim, diferente do poder punitivo do Estado.
Para afastar o poder disciplinar dos princípios do Direito Penal, os adeptos dessa
concepção focam no caráter ético do poder disciplinar. Assim, estaria o poder disciplinar
vocacionado mais na correção do que na repressão, enquanto o Direito Penal possui caráter
eminentemente repressivo. A referência à ética serve também para descrever os objetivos
perseguidos por dito ordenamento: o bom funcionamento do serviço público e a preservação
da honra e dignidade corporativa. Consequentemente, a diferença para o Direito Penal é a de
que o poder disciplinar não presta tanta atenção à perturbação da ordem social ocasionada
pela conduta.31
Portanto, para esta corrente doutrinária e jurisprudencial32, seja por razões
quantitativas – intensidade da lesão sobre os bens jurídicos tutelados –, seja por razões

________________________
28
Direito Administrativo Sancionador. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 161.
29
RICÓN, Jose Suay. Sanciones Administrativas. Bolonia: Del Real Colegio de Espana, 1998, p. 34.
30
RICÓN, Jose Suay. Sanciones Administrativas. Bolonia: Del Real Colegio de Espana, 1998, p. 34.
31
Neste sentido: JALVO, Belen Marina. El Regimen Disciplinario de los funcionarios públicos. 2. ed. Madrid:
Lex Nova, 2001, p. 91.
32
Este teoria prevaleceu na Espanha até a promulgação da Constituição de 1978, conforme se depreende da
leitura da Sentença do Tribunal Supremo de 13 de março de 1985: “que si bien es certo que existe posibilidad
de aplicar y de no subsumir princípios de Derecho penal em âmbito de las infracciones administrativas, em
necessário destacar que son distintas em razón em razón de su natureza, es decir, com caráter sustanciavo el
22

qualitativas – distintos bens jurídicos que se tutelam, pelos sujeitos que podem realizá-las ou
pelo ordenamento infringido –, não cabe pretender uma mesma natureza para as sanções
administrativas e penais. As sanções administrativas têm natureza e fundamento distintos das
penais.
Esta teoria também não é imune a críticas da doutrina. Escreve Belén Marina Jalvo:33

Não é possível sustentar que o Direito Disciplinar tem um significado


predominantemente ético, em virtude do qual o principal objetivo de salvaguarda do
prestigio e da dignidade corporativa transfira para um segundo plano o fim de
restabelecimento da ordem violada, bem como a consideração de danos ou perigo
experimentada por direitos protegidos.
Em primeiro lugar, não cabe atribuir ao Direito Disciplinar fins de proteção
corporativa. Outra coisa é que o Direito Disciplinar pode sancionar condutas que
firam seriamente a dignidade ou o prestígio dos funcionários da Administração. Mas

________________________
cualitativo, la infracciones administrativas y las penales, diferencia que se pude estabelecer em uma
conjunción de elementos, y asi se pueden distinguir: 1) em razón al distinto ordenamento infringido; 2) junto a
la vuneración del ordenamento administrativo, la infracción se manifiesta el contiene uma lesión de interés,
cuyo cuidado se atribuye y compete a la Administración, em la infracion penal se lesionan los derechos
subjetivos del individuo, de la coletividade, del Estado e incluso puede afectar a interesses administrativos del
próprio Estado; 3) la diferencia em cuanto a la imputabilidade, sólo personas físicas para las infracciones
penales, y para las administrativas tanto pueden ser personas físicas como jurídicas.”
33
Texto original: “No es posible sostener que el Derecho disciplinario tenga un significado predominante ético,
en virtud del cual el fin primordial de salvaguarda del pretigio y de la dignidad corporativa haga pasar a un
segundo plano en fin de restabelecimento del orden quebrantado, asi como la consideración del dano el peligro
experimentado por los bienes jurídicos protegidos. En primer lugar, no cabe atribuir al Derecho disciplinario
fines de protección corporativa. otra cosa es que el Derecho disciplinario pueda sancionar las condutas que
danen gravemente la dignidad o el prestigio de los funcionarios el de la Administración. Pero ello no obsta a
admitir que las sanciones disciplinares, como las penas, en mayor el menor medida persiguen fines de
prevención y de repressión. Del mismo modo, por exigencia del principio de proporcionalidad, el dano sufrido
por los bienes jurídicos protegidos por ele Derecho disciplinario es un elemento fundamental para la
determinación de la gravedad de la infracción y de la sanción correspondiente. Es obvio que la garantía del
buen funcionamiento de la organización administrativa depende de la funcionalidad del Derecho disciplinario,
que ha de velar por la estricta ibservancia de los deberes funcionariales, sancionando conductas que - ya sea
por el grado de culpa exigible el por la entidad del ataque al bien jurídico concreto - no son ni pueden ser
susceptíbles de castigo penal. Sin embargo, esto no autoriza a sostener sin más que la responsabilidad
disciplinaria pueda ser objeto de valoración y reproche moral. La contundencia con que, a primeira vista,
fueron formuladas las teorias sobre la diversidad esencialrar el buen de ambos ordenamientos, no consigue
ocultar la parcialidad y el apriorismo de los planteamientos que se encuentran en su base. Las conclusiones
obtenidas no han derivado de una confrontación global de ambos órdenes, sino de la mera contraposición
aislada de algunos de sus elementos. Es más, en algunos casos, la diversidad esencial dentre Derecho penal e
Derecho disciplinario se ha hecho reposar en el simple dato de la diferencia de regimenes jurídicos, sin tener en
cuenta que la realidad es suscetible de cambiar. Atendidas estas consideraciones, resulta evidente la
inconsistencia de alguna de las diferencias apuntadas. Po un lado, es innegable que el Derecho disciplinario
protege bienes juridicos, como el resto del Derecho administrativo sancionador, si bien su determinación puede
resultar aqui más compleja. Lógicamente, frente al caráter fragmentario del Derecho penal, el Derecho
disciplinario podrá reaccionar frente a cualquier hecho susceptible de alterar el buen funcionamiento del
servicio, castigando, en consequencia, ataques más leves a bienes jurídicos el interesses menos relevantes y
más difusos. Por otro lado, las sanciones disciplinarias persiguen al igual que las penales fines de intimidación,
prevención, represión y correción. Sin perjuicio de las particularidades, nada desdenables, de cada uno de estos
ordenaminetos, es preciso senalar con caráter general que ambos constituen manifestaciones represivas, sus
ilícitos y sanciones respondem, en lo básico, a un mismo esquema. Nada obsta, en principio, a que los
principios del Derecho penal contribuyan a mitigar las deficiencias del Derecho dicisplinario.” (JALVO, Belén
Marina. El Regimen Disciplinario de los funcionarios públicos. p. 97 e ss.).
23

isso não impede de admitir que as sanções disciplinares, como as penas, em maior
ou menor medida perseguem fins de prevenção e repressão. Da mesma forma, por
exigência do princípio da proporcionalidade, o prejuízo sofrido pelos bens jurídicos
protegidos pelo Direito Disciplinar é um elemento fundamental na determinação da
gravidade da infracção e da sanção correspondente.
É óbvio que a garantia de bom funcionamento da organização administrativa
depende da funcionalidade do Direito Disciplinar, que tem de velar pela estrita
observância dos deveres funcionais, sancionando condutas que – seja pelo grau de
culpa exigido ou pela instituição do ataque ao bem jurídico concreto - não são nem
podem ser suscetíveis a punição criminal. No entanto, isso não autoriza sustentar
que a responsabilidade disciplinar pode ser objeto de avaliação e reprovação moral.
A contundência com que, à primeira vista, foram formuladas as teorias sobre a
diversidade essencial de ambos os ordenamentos, não consegue esconder a
parcialidade e o apriorismo das abordagens que estão nas suas bases. As conclusões
não foram derivadas de uma comparação detalhada das duas ordens, mas da mera
contraposição isolada de alguns dos seus elementos. Além disso, em alguns casos, a
diversidade essencial dentre Direito Penal e Direito Disciplinar foi feita para ficar no
simples fato da diferença de regimes jurídicos, sem levar em conta que a realidade é
suscetível de mudanças. Atendidas estas considerações, resulta evidente a
inconsistência de algumas das diferenças apontadas. Por um lado, é inegável que o
Direito Disciplinar protege bens jurídicos, como o resto do Direito Administrativo
Sancionador, embora a sua determinação pode ser mais complexa aqui.
Logicamente, frente ao caráter fragmentário do Direito Penal, o Direito Disciplinar
pode reagir a qualquer fato suscetível de alterar o bom andamento do serviço,
punindo, em consequência, ataques mais brandos a bens jurídicos ou interesses
menos relevantes e mais difusos. Por outro lado, as sanções disciplinares perseguem
tem os mesmos fins que as penas: intimidação, prevenção, repreensão e correção.
Sem prejuízo das particularidades nada insignificantes de cada um destes
ordenamentos, é necessário destacar que, em geral, ambos constituem manifestações
repressivas, seus ilícitos e sanções respondem basicamente a um mesmo esquema.
Nada obsta, em princípio, que os princípios de Direito Penal contribuam para
mitigar as deficiências do Direito Disciplinar.34

1.3 APLICAÇÃO DO INSTITUTO: ESTADO DA ARTE

Na Europa, a concepção administrativista vem sendo abandonada em favor da


concepção penalista no sentido da identidade substancial entre o ilícito penal e o disciplinar,
entendendo-se que o jus puniendi do Estado é único e, portanto, deve ser regido pelos
princípios do Direito Penal e Processual Penal.35
A aplicação dos princípios do Direito Penal e processo penal ao Direito Sancionador,
inclusive o Disciplinar, vem sendo progressivamente adotada também pelo Tribunal Europeu

________________________
34
Também Jose Suay Ricón critica a teoria administrativista, sendo a favor da tese penalista. Potestad
disciplinaria. (Potestad disciplinaria. Libro homenaje al professor José Luís Vilar Polosí. Civitas. 1989, p.
1325).
35
Por todos: BELEZA, Teresa Pizarro. Apontamentos de Direito Processual Penal. Lisboa: AAFDL, 1992, p.
99-102. Para esta autora, a correlação entre Direito Criminal e Direito Disciplinar coloca em dúvida se este não
será parte daquele e, inclusive, se a apreciação da infração disciplinar não deveria ser cometida aos juízos
criminais, uma vez que a sanção disciplinar pode ser mais grave que a sanção penal.
24

de Direitos Humanos, desde o julgamento do caso Ozturk36, quando incluiu dentro dos
conceitos de “infração” e “sanção penal” também as infrações e sanções de caráter
administrativo, partindo de um de conceito substantivo da matéria e não considerando
relevante a denominação da legislação na qual se encontra.37
O Tribunal Constitucional Espanhol navega no mesmo sentido, conforme se lê na
sentença de 18 de junho de 1981:38

Os princípios inspiradores de ordem penal são aplicáveis, com certas “matices”, ao


Direito Administrativo Sancionador, dado que ambos são manifestações do
ordenamento punitivo do Estado, tal como se refere a Constituição (Art. 25,
princípio da legalidade) e a reiterada jurisprudência do Tribunal Supremo.39

Contudo, Fábio Medina Osório observa que

[...] a proclamação enfática, tanto pelo Tribunal Supremo como pelo Tribunal
Constitucional espanhóis, da suposta unidade da pretensão punitiva do Estado, sofre
críticas, eis que tais decisões padeceriam de um grave defeito, qual seja, a
contradição entre o discurso retórico e a realidade de seus julgados. De fato,
observa-se que, na maioria, ou mesmo na totalidade dos julgamentos, as altas Cortes
espanholas sustentam a aplicação de uns princípios penais ao Direito Administrativo
Sancionador, porém sempre com ‘matizes’, a tal ponto que o fundamental resultaria
________________________
36
“El TEDH hubo de enfrentarse para resolver el caso com la custión central que el Derecho Administrativo
Sancionador tiene planteada em la atualidade: la de natureza e princípios generales de las sanciones
administrativas. Y, cogiendo diretamente el ‘toro por los cuerrnos’, sin ambiguedades e ningún tipo, como
debe hacerse, y tras um pormenorizado análisis de la cuestión, terminó decantándose clara y rotundamente por
lá ‘opción penalista’, rechazando em consequência, las teorias del Derecho penal administrativo (invocadas por
el Gobierno alemán de manera expressa) y cualescuiera otras fundadas em la existência de uma diversidade de
signo cualitativo entre las infracciones administrativas e penales. El TEDH há hecho suya abiertamente las
tesis de que la regulacion de las sanciones administrativas há de estar inspirada em los princípios próprios e
característicos del Derecho penal, y la ha generalizado a escala europea”. (RICÓN, Jose Suay. Sanciones
Administrativas. Bolonia: Del Colegio de Espana, 1998, p. 195 e ss.)
37
Neste sentido é a lição de Ana Carolina Oliveira: “O paradigma de reconhecimento empírico dessa
proximidade entre as duas áreas é a Sentença do TEDH (Tribunal Europeu de Direitos Humanos), de 21 de
fevereiro de 1984, no caso Oztürk, que assenta a interpretação repetida abundantemente pela doutrina
administrativista, que o direito administrativo sancionador deve ser entendido como um autêntico subsistema
penal, ou parapenal.” (OLIVEIRA, Ana Carolina Carlos de. Hassemer e o Direito Penal brasileiro: direito de
intervenção, sanção penal e administrativa. São Paulo: IBCRIM, 2013, p. 143-145).
38
Texto original: “Los princípios inspiradores del orden penal son de aplicación, com ciertos matices, al derecho
administrativo sancionador, dado que ambos son manifestaciones del ordenamento punitivo del Estado, tal
como refleja la Constituición (art. 25, principio de legalidade) y mui reiterada jurisprudência del Tribunal
Supremo.”
Esta sentença é comentada por Eduardo García de Enterría, no artigo “La incidência de la Constituicón sobre la
potestade Sancionadora de la Administración: importantes sentencias del Tribunal Constitucional, R.E.D.A,
29/1981, p. 362 e ss. Para este autor, “Los matices permiten adaptaciones funcionales, no derrogaciones
substanciales.” p. 364.
39
No mesmo sentido, manifestou-se o Tribunal Supremo na sentença 7316, de 08 de março de 1998:
“Efectivamente, em esta decisión histórica, como ha sido calificada, em este auténtico ‘leading case’, se decía,
com clara consciência de su alcance, que las contravenciones administrativas no pueden se aplicadas nunca de
modo mecânico, com arreglo a la simple enunciación literal, ya que se integram em el ilícito administrativo
como penal.”
25

ser conceituar e compreender adequadamente esses ‘matizes’, essas diferenças entre


um e outro regime jurídico.

E arremata afirmando que,

Desde logo, emerge da analise da jurisprudência mencionada uma inequívoca


conclusão: a unidade de pretensão punitiva do Estado é uma frágil construção
teórica, que se situa no campo retórico e não no mundo prático das concretas
relações sociais submetidas ao crivo dos julgadores.

Entretanto, analisando essas decisões das Cortes Espanholas, José Suay Ricón afirma
que os princípios de ordem penal são aplicáveis na ordem administrativa sancionadora.40
O autor Espanhol Alejandro Nieto é taxativo quanto à tendência espanhola e europeia:

[...] hoje já não se discute “se” os princípios penais devem ser aplicados ao
procedimento administrativo sancionador, mas sim quais princípios e em que
amplitude, uma vez que se reconhece a contribuição garantista dos princípios
penais.41

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)42 parece trilhar o mesmo


caminho. Ao apreciar o caso AGUIRRE ROCA, REY TERRY e REVOREDO MARSANO
versus PERU, a CIDH foi contundente ao afirmar que as garantias insertas no artigo 8.2 da
Convenção Americana de Direitos Humanos são de aplicação a todo processo, incluindo o
sancionador. Ainda que a norma em comento seja denominada “garantias judiciais”, deve ser
aplicada a qualquer instância processual, pois em todas elas o indivíduo tem o direito ao
devido processo legal.43

________________________
40
Diz este autor: “Aqui es menester hacer uma puntualizalización: la Constituición no obliga a incorporar a este
Derecho todos y cada uno de los princípios específicos del orden penal. Como bien disse el Tribunal
Constitucional: ‘Los princípios inspiradores del orden penal son de aplicación, com certos matices, al Derecho
Administrativo Sancionador’. Caben, por tanto, desviaciones al modo penal.” (El Derecho Administrativo
sancionador: perspectivas de reforma. Revista de Administração Pública, n. 109, 1986, p. 213.)
41
NIETO GARCIA, Alejandro. Derecho Administrativo Sancionador. Madrid: Tecnos, 2012, p. 146.
42
A Corte Interamericana de Direitos do Homem (ou de direitos humanos) é um órgão judicial internacional
criado pela Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica – e
foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. A
doutrina não chegou a um consenso sobre o seu grau hierárquico no direito interno. Há quem afirme que, tendo
em conta o disposto no § 2º do artigo 5º, da Constituição Federal, tem status constitucional. Contudo, o
Supremo Tribunal Federal, após o julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343/SP, consolidou sua
jurisprudência no sentido de que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil
possuem status normativo supralegal, ou seja, estão abaixo da Constituição, mas acima das leis.
43
“68. El respeto a los derechos humanos constituye un límite a la actividad estatal, lo cual vale para todo
órgano o funcionario que se encuentre en una situación de poder, en razón de su carácter oficial, respecto de las
demás personas. Es, así, ilícita, toda forma de ejercicio del poder público que viole los derechos reconocidos
por la Convención. Esto es aún más importante cuando el Estado ejerce su poder sancionatorio, pues éste no
sólo presupone la actuación de las autoridades con un total apego al orden jurídico, sino implica además la
26

A CIDH foi ainda mais incisiva ao apreciar o caso BAENA RICARDO e OUTROS
(270 TRABAJADORES versus PANAMÁ), em 2 de fevereiro de 2001, quando declarou que
as garantias previstas nos artigos 8º e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos não
são de aplicação imperativa somente aos processos penais, mas, ao contrário, são plenamente
aplicáveis a qualquer processo administrativo sancionador. Sua finalidade é permitir o
exercício pleno do direito de defesa do cidadão ante qualquer tipo de ato do Estado que possa
afetá-lo. Isso significa dizer que qualquer atuação ou omissão dos órgãos estatais dentro de
um processo, seja administrativo sancionatório ou jurisdicional, deve respeitar o devido
processo legal.44
Na jurisprudência brasileira, não é possível apontar uma tendência, uma vez que a
questão é pouco debatida. No âmbito do Supremo Tribunal Federal, a questão veio à baila no
julgamento da medida cautelar no mandado de segurança nº 25.647, impetrado pelo então
Deputado Federal José Dirceu de Oliveira e Silva contra ato emanado do Presidente do
Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, no qual uma das causas
de pedir, e que interessa para o nosso estudo, era a nulidade do processo pela inversão da
ordem de oitiva das testemunhas. Requeria o impetrante que fosse reconhecido o direito de
serem ouvidas as testemunhas de defesa somente após a inquirição das de acusação, conforme

________________________
concesión de las garantias mínimas del debido proceso a todas las personas que se encuentran sujetas a su
jurisdicción, bajo las exigências establecidas en la Convención.
69. Si bien el artículo 8 de la Convención Americana se titula “Garantías Judiciales”, su aplicación no se limita a
los recursos judiciales en sentido estricto, “sino el conjunto de requisitos que deben observarse en las instancias
procesales” a efecto de que las personas puedan defenderse adecuadamente ante cualquier tipo de acto
emanado del Estado que pueda afectar sus derechos.
70. Ya la Corte ha dejado establecido que a pesar de que el citadoartículo no especifica garantías mínimas en
materias que conciernen a la determinación de los derechos y obligaciones de orden civil, laboral, fiscal o de
cualquier otro carácter, el elenco de garantías mínimas establecido en el numeral 2 del mismo precepto se
aplica también a esos órdenes y, por ende, en esse tipo de materias el individuo tiene también el derecho, em
general, al debido proceso que se aplica en materia penal”.
44
“106. En relación con lo anterior, conviene analizar si el artículo 9 de la Convención es aplicable a la matéria
sancionatoria administrativa, además de serlo, evidentemente, a la penal. Los términos tilizados en dicho
precepto parecen referirse exclusivamente a esta última. Sin embargo, es preciso tomar en cuenta que las
sanciones administrativas son, como las penales, una expresión del poder punitivo del Estado y que
tienen, en ocasiones, naturaleza similar a la de éstas. Unas y otras implican menoscabo, privación o
alteración de los derechos de las personas, como consecuencia de una conducta ilícita. Por lo tanto, en un
sistema democrático es preciso extremar las precauciones para que dichas medidas se adopten con
estricto respeto a los derechos básicos de las personas y previa una cuidadosa verificación de la efectiva
existencia de la conducta ilícita. Asimismo, en aras de la seguridad jurídicaes indispensable que la norma
punitiva, sea penal o administrativa, exista y resulte conocida, o pueda serlo, antes de que ocurran la acción o
la omisión que la contravienen y que se pretende sancionar. La calificación de un hecho como ilícito y la
fijación de sus efectos jurídicos deben ser preexistentes a la conducta del sujeto al que se considera infractor.
De lo contrario, los particulares no podrían orientar su comportamiento conforme a un orden jurídico vigente y
cierto, en el que se expresan el reproche social y las consecuencias de éste. Estos son los fundamentos de los
principios de legalidad y de irretroactividad desfavorable de una norma punitiva.” (Grifos nossos).
27

prevê o Código de Processo Penal, uma vez que o regimento interno do Conselho de Ética e
Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados era omisso neste ponto.
Naquela assentada, afirmou o então Ministro Carlos Brito, Relator, não identificar
tanta proximidade entre o processo político-parlamentar e o processo judicial propriamente
dito, principalmente o de índole penal, pois cada qual dos processos tem sua ontologia.
Discordando desta posição, afirmou o Ministro Gilmar Mendes:

Gostaria de aqui registrar, desde logo a minha dissidência com Sua Excelência
quando tenta trazer ou propor uma ontologia diferenciada entre estes processos,
especialmente no que diz respeito ao contraditório e a ampla defesa. Tão grave
quanto à eventual sentença penal é a sentença de condenação por perda de mandato,
como perda de direitos políticos ou, às vezes, até mais grave, ainda que as causas, as
motivações sejam diferentes.

Embora tenha o Tribunal concedido em parte a medida liminar pleiteada, nos termos
propostos no voto do Ministro Cezar Peluso, tão somente para que, do relatório final do
Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, fosse suprimido o depoimento da testemunha de
acusação ouvida após as testemunhas de defesa, bem como todas as referências àquele
depoimento, não é possível afirmar com segurança que há uma tendência da Corte Suprema
de aplicar o Código de Processo Penal aos processos disciplinares.45
Dois órgãos de caráter administrativo, entretanto, adotam a teoria penalista: o
Conselho da Justiça Federal, no seu Manual de Processo Administrativo Disciplinar, o qual
anotou que Direito Disciplinar guarda relação com o Direito Penal, sendo então aplicáveis as
regras do Direito Penal e do Direito Processual Penal subsidiariamente ao processo
administrativo disciplinar e à apuração de sanções disciplinares46; e o Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil, por expressa determinação do artigo 68 do Estatuto da
Advocacia, Lei nº 8906, de 4 de julho de 1994, o qual dispõe que “salvo disposição em
contrário, aplicam-se subsidiariamente ao processo disciplinar as regras da legislação
processual penal comum e, aos demais processos, as regras gerais do procedimento
administrativo comum e da legislação processual civil, nessa ordem”.

________________________
45
O Ministro Marco Aurélio, adotando posição minoritária, concedeu a medida liminar para determinar a
suspensão do processo e determinar a reinquirição de todas as testemunhas de defesa.
46
PODER JUDICIÁRIO. Conselho da Justiça Federal. Brasília: Conselho da Justiça Federal, 1990, p. 03.
28

1.4 NECESSIDADE DE APONTAR UMA DIRETRIZ NO DIREITO BRASILEIRO

Entre nós, a importância do tema reside no fato de os processos disciplinares


tramitarem com um alto grau de informalidade. O processo administrativo disciplinar federal,
regulado pela Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, e objeto de nosso estudo nos
capítulos seguintes, dispõe de poucas regras de instrução processual, permitindo-se ao
julgador administrativo, segundo sua perspectiva pessoal, o preenchimento das lacunas ora
pelo Direito Processual Penal, ora pelo Direito Processual Civil, ou, não raro, pelo princípio
da informalidade moderada47, afetando o direito fundamental ao trabalho e à condição de
cidadão ao retirar do sujeito a capacidade eleitoral passiva.
Parece-nos que o Brasil vive o mesmo dilema da Espanha antes da Constituição de
1978, quando não se tinha clareza de quais princípios se aplicava ao Direito Administrativo
Disciplinar, até que, em 1972, por meio das sentenças de 2 e 5 de março, o Tribunal
Constitucional daquele país colocou um ponto final na discussão, afirmando que a
inexistência de disposições normativas claras e expressas no âmbito do Direito
Administrativo Sancionador não pode ser entendida como uma habilitação “em branco” para
a Administração, para que esta supra o vazio da maneira que lhe pareça mais oportuna, mas
como uma remissão tácita aos princípios próprios e característicos do Direito Penal.
Para Suay Rincón, trata-se de declaração de extraordinário alcance que fixou as bases
para a modernização desse setor do ordenamento e que, nos anos sucessivos, o Tribunal
Supremo repetiu à saciedade.48
Na Constituição de 1978 daquele país, foi prevista expressamente a aplicação dos
princípios do Direito Penal ao Direito Administrativo Sancionador. Nessa ordem de ideias,
sem defender a autonomia do Direito Disciplinar ou negar a autonomia das instâncias penal,
civil e administrativa, entendemos que o estabelecimento de acerca de quais princípios deve a
Administração Pública exercer seu poder disciplinar é, sem dúvida, uma das necessidades
mais urgentes, pelas seguintes razões:
a) o crescimento dos órgãos destinados à apuração de penalidades disciplinares,
notadamente com a criação do Sistema de Correição do Poder Executivo Federal49, bem como

________________________
47
Odete Medauar explicita que esse princípio “se traduz na exigência de interpretação flexível e razoável quanto
a formas, para evitar que estas sejam vistas como um fim em si mesmas, desligadas das verdadeiras finalidades
do processo”. (MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 13. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2009, p. 176.)
48
RICÓN, Jose Suay. Sanciones Administrativas. Bolonia: Del Real Colegio de Espana, 1998, p. 48.
29

grande número de pessoas punidas com a pena máxima: demissão e cassação de


aposentadoria;50
b) a atuação da administração deve ser necessariamente conforme o Direito, incluído
por certo o exercício do poder disciplinar, e para isso é mister que exista claridade ao menos
em torno dos princípios sobre os quais deve pautar seu exercício, sob pena de se delegar ao
administrador poderes além daqueles que lhe outorgara a Constituição Federal;
c) o agente público sujeito a um processo disciplinar é digno, e por isso deve ser
respeitado pela Administração ao exercer seus poderes disciplinares – por mais necessários
que estes sejam –, e por isso é uma necessidade de primeira ordem conformar seu exercício a
princípios claros, uniformes e garantistas;
d) a inexistência de princípios uniformes permite que distintos órgãos administrativos,
inclusive da mesma pessoa política, possam decidir de forma diferente diante de casos
idênticos, afetando o princípio da igualdade;
e) do mesmo modo, a ausência de princípios claros para o exercício do poder
disciplinar permite que entre quem é objeto, ao mesmo tempo, de uma persecução judicial –
na qual está amparado por garantias claramente delineadas – e uma disciplinar – na qual
impera o informalismo e não existe a mesma claridade quanto a suas garantias, ainda que

________________________
49
O Sistema de Correição do Poder Executivo Federal foi criado pelo Decreto nº 5.480, de 30 de junho de 2005,
e constitui-se de unidades voltadas às atividades de prevenção e apuração de irregularidades disciplinares,
desenvolvidas de forma coordenada e harmônica. A Controladoria-Geral da União (CGU) integra o referido
sistema na condição de órgão central. Há, ainda, as unidades setoriais, que atuam junto aos Ministérios e são
vinculadas técnica e hierarquicamente ao órgão central; as seccionais, que atuam e fazem parte dos órgãos que
compõem a estrutura dos Ministérios e suas entidades vinculadas (autarquias, fundações, empresas públicas e
sociedades de economia mista), com supervisão técnica das respectivas unidades setoriais; e a Comissão de
Coordenação de Correição, instância colegiada com funções consultivas, cujo objetivo de atuação é o fomento
da integração das diversas unidades, bem como a uniformização de entendimentos adotados no âmbito do
Sistema de Correição. Nesse sentido, a atividade de correição tem atuação preventiva e repressiva.
Preventivamente, às unidades da Corregedoria-Geral da União compete orientar os órgãos e 13 entidades
supervisionados – não só em questões pontuais, como também por meio de ações de capacitação na área
correicional –, e realizar inspeções nas unidades sob sua ingerência – o que permite visualizar, de um modo
geral, a qualidade dos trabalhos disciplinares na unidade inspecionada e as estruturas disponíveis (física e de
recursos humanos). Repressivamente, a Corregedoria-Geral da União realiza atividades ligadas à apuração de
possíveis irregularidades disciplinares, cometidas por servidores e empregados públicos federais, e à aplicação
das devidas penalidades. Ademais, ao órgão central compete padronizar, normatizar e aprimorar procedimentos
atinentes à atividade de correição, por meio da edição de enunciados e instruções; gerir e exercer o controle
técnico das ações desempenhadas pelas unidades integrantes do Sistema, com a avaliação dos trabalhos e
propositura de medidas a fim de inibir e reprimir condutas irregulares praticadas por servidores e empregados
públicos federais em detrimento do patrimônio público.A CGU também apresenta competência para
instauração de procedimentos disciplinares em situações de inexistência de condições objetivas para sua
realização no órgão ou entidade de origem, da complexidade e relevância da matéria, da autoridade envolvida e
da participação de servidores de mais um órgão ou entidade.
50
Segundo a Controladoria-Geral da União, o Governo Federal demite, em média, mais de um servidor público
por dia. (Jornal Folha de São Paulo, 14 nov. 2013).
30

pelos mesmos fatos – venha a ser condenado nesta e absolvido naquela por insuficiência de
provas, o que é constitucionalmente inaceitável;
f) a pena aplicada no processo disciplinar pode ser mais gravosa do que aquela
aplicada no âmbito judicial. Basta imaginar o servidor público processado por improbidade
administrativa pelos mesmos fatos:é possível que seja condenado no âmbito judicial, por
exemplo, à pena de multa e, no âmbito administrativo, à demissão a bem do serviço público, o
que o impede, para sempre, de retornar ao servido público federal.51

1.5 FUNDAMENTO DO PODER DISCIPLINAR DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Questão diferente da natureza do poder disciplinar - idêntica em todo poder punitivo


do Estado – é a relativa a seu fundamento. Para alguns, esse fundamento reside numa relação
especial de sujeição52 que se estabelece entre a Administração e o agente público, o que

________________________
51
Lei nº 8112/90: Art. 137. Parágrafo único. “Não poderá retornar ao serviço público federal o servidor que for
demitido ou destituído do cargo em comissão por infringência do art. 132, incisos I, IV, VIII, X e XI”. Trata-se
de pena de caráter perpetuo, vedada pelo artigo 5º, inciso XLVII, alínea “b” da Constituição Federal. A matéria
já foi levada ao Supremo Tribunal Federal por meio da ADI nº 2975, ajuizada pelo Procurador Geral da
República, mas ainda não há julgamento de mérito nem medida liminar deferida. Contudo, ao apreciar o RE nº
154134/SP, o STF afastou a incidência de norma semelhante, quanto à pena de inabilitação permanente para os
cargos de administração ou gerência de instituições financeiras impostas dos então recorridos: “DIREITO
CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. PENA DE INABILITAÇÃO
PERMANENTE PARA O EXERCÍCIO DE CARGOS DE ADMINISTRAÇÃO OU GERÊNCIA DE
INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS. INADMISSIBILIDADE: ART. 5º, XLVI, e, XLVII, b, E § 2, DA C.F.
REPRESENTAÇÃO DA UNIÃO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO: LEGITIMIDADE PARA
INTERPOSIÇÃO DO R.E. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. 1. À época da interposição do R.E., o
Ministério Público federal ainda representava a União em Juízo e nos Tribunais. Ademais, em se tratando de
Mandado de Segurança, o Ministério Público oficia no processo (art. 10 da Lei nº 1.533, de 31.12.51), e
poderia recorrer, até, como "custos legis". Rejeita-se, pois, a preliminar suscitada nas contra-razões, no sentido
de que lhe faltaria legitimidade para a interposição. 2. No mérito, é de se manter o aresto, no ponto em que
afastou o caráter permanente da pena de inabilitação imposta aos impetrantes, ora recorridos, em face
do que dispõem o art. 5 , XLVI, e, XLVII, b, e § 2 da C.F. 3. Não é caso, porém, de se anular a imposição de
qualquer sanção, como resulta dos termos do pedido inicial e do próprio julgado que assim o deferiu. 4. Na
verdade, o Mandado de Segurança é de ser deferido, apenas para se afastar o caráter permanente da pena de
inabilitação, devendo, então, o Conselho Monetário Nacional prosseguir no julgamento do pedido de revisão,
convertendo-a em inabilitação temporária ou noutra, menos grave, que lhe parecer adequada. 5. Nesses termos,
o R.E. é conhecido, em parte, e, nessa parte, provido.” (Grifos nossos).
52
José Suay Ricon critica essa posição: “La existência de uma relación especial de sujeción, como fundamento
de la atribuición a la Administração del poder disciplinario, se esta utilizando como pretexto para legitimar
todo tipo de desviaciones de los princípios generales del Derecho vigente em matéria sancionadora. Basta
invocar su nombre para que todo valga y para que la impunidad este garantizada. A veces, incluso, ni siqueiera
es necessario pronunciarlo de manera expressa, pues hasta esse punto esta arraigada esta ideia em la
consciência del operador del Derecho. – Em primer lugar, porque, como ya sinalamos, el concepto de relación
especial de sujeición resulta de muy difícil ou impossible aprehension, habiendo llegado a crear más problemas
que los há resultado. Por conseguinte, la cuestión es clara: si la relación especial de sujeición es um concepto
de tan enorme imprecisión, no cabe extraer de él consecuencia jurídica de ningún tipo, como, por ejemplo,
pudiese ser la aplicación de uno u outro principio jurídico. – Pero hay más, porque, aun cuando se conviniera
em que ele fundmanto del Derecho disicplinario está una relación especial de sujeición, estariamos em todo
caso haciendo referencia a lo que constituye su fundamento originario, pero eso no puede querer deci que
31

justifica a atribuição àquela de um poder disciplinar próprio que é diferente do poder estatal e,
todavia, na relação de hierarquia.

1.5.1 A relação especial de sujeição

1.5.1.1 Origem e objetivos

Como dito linhas atrás, parte da doutrina defende que o fundamento do poder
disciplinar reside em uma relação especial de sujeição que se estabelece entre a
Administração e o agente público53.
Cabe aqui, antes de avançarmos no tema, uma breve digressão histórica do instituto da
relação especial de sujeição, uma vez que, como será demonstrado, na sua origem, este não
homenageava o princípio da legalidade e o respeito aos direitos fundamentais.54
O conceito especial de “sujeição” surgiu na Alemanha como resultado do confronto
entre os princípios monárquico e democrático, em que o monarca reservava para si diversos
domínios, entre os quais a Administração Pública.
Otto Mayer, que foi o principal expoente desta teoria e responsável por disseminá-la
pela Europa, definiu “sujeição” como o vínculo de duas pessoas desiguais do ponto de vista
jurídico, cujo conteúdo é determinado pela pessoa superior.55
Dizia ainda o autor:

Nesse sentido, a relação entre Estado e súdito é um vínculo de sujeição importante.


Mas, principalmente, com essa palavra queremos designar uma relação de sujeição
________________________
Derecho se mantenga em iguales o siquiera parecidos términos hasta el presente; como muestra el hecho, no
sólo reconocido, sino reclamado por los próprios autores mantenedores de la diversidade Derecho penal-
Derecho disciplinario, de la jurisdicción progressiva de este último.” (Potestad disciplinaria. Libro homenaje
al professor José Luís Vilar Polosí. Civitas, 1989, p. 1326 e ss).
53
Para Rafael Munhoz de Mello, “a única diferença entre as relações de sujeição geral e as de sujeição especial,
no que diz respeito às sanções administrativas e à incidência do princípio da legalidade, é que no primeiro caso
a tipificação deve ser legal, enquanto no segundo admite-se a tipificação em regulamento. Tanto um quanto
noutro, porém, exige-se a tipificação e a anterioridade”. (Princípios constitucionais de Direito Administrativo
Sancionador. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 39).
54
Direitos fundamentais são aqueles devidamente positivados numa Constituição, ou em documento equivalente;
através deles, faz-se exsurgir uma necessária teia de relações entre a estatalidade e os seus cidadãos, tudo de
modo a assegurar os valores, os princípios e as regras de cogência inarredável no referido sistema jurídico.
Impende mencionar, agora, a tríade elementar dos direitos fundamentais, a saber, (a) o Estado; (b) o indivíduo;
e (c) o texto normativo regulador das relações entre o Estado e os indivíduos. Nessa senda, é oportuno repisar o
entendimento de que a noção de indivíduo é recente e, nessa qualidade, a partir do Estado moderno, alinha-se
todo um complexo de direitos a ele associado/vinculado em face de possíveis relações do Estado e, claro,
também de terceiros, donde exsurge o indivíduo como sujeito de direitos (DIMOULIS, Dimitri; MARTINS,
Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 21-23).
55
MAYER, Otto. Derecho Administrativo alemán. Parte General. Tradução do francês por Horacio H. Heredia e
Ernesto Krotoschin. t. I, Buenos Aires: Depalma, 1949, p. 145. Tradução livre para o português do autor.
32

criada especialmente para o súdito, ou melhor, para uma certa pluralidade de súditos.
É uma relação jurídica de direito público pela qual o indivíduo está vinculado em
relação ao Estado por efeito da obrigação geral de regular sua conduta conforme a
um certo interesse público. Em virtude dessa obrigação, a ele são dadas ordens
detalhadas. Essas ordens, que têm todas as qualidades de um ato administrativo,
apresentam a particularidade, já mencionada, de que podem ser emitidas sob a forma
de uma regra geral. E quando se trata de uma ordem especial, não emana
necessariamente de uma autoridade; são simples empregados do serviço público
interessado que têm esse direito de mando. É nesses dois aspectos, pois, que a
relação de sujeição, por sua natureza excepcional, apresenta particularidades.56

Otto Mayer menciona como exemplos de relações de sujeição especial as obrigações


do funcionário público, o poder disciplinador, o poder de direção nos estabelecimentos
públicos e o poder das corporações públicas sobre seus membros.57
Walter Jellineck, outro importante teórico da matéria, exclui o princípio da legalidade,
e consequentemente o da reserva de lei, das relações especiais de sujeição. Para esse autor, as
relações do Estado com seus organismos, como relações dentro do Estado, não são relações
jurídicas, e sempre e quando o Estado regule exclusivamente uma relação com seus próprios
agentes poderá proceder à sua regulamentação através de regulamentos desprovidos de
natureza jurídica, uma vez que um procedimento que permanece estritamente dentro de sua
personalidade e que por si só não produz efeitos em relação a terceiros não poderá nunca ser
qualificado como norma jurídica.58
Mediante as relações especiais de sujeição, justificava-se uma forte intervenção sobre
determinados sujeitos – sem respeito a seus direitos fundamentais nem ao princípio da reserva
legal – que seriam intoleráveis para os cidadãos que se encontravam em uma relação de
sujeição geral.
Hartmur Mauer explica que, em sua concepção original, a relação de poder especial
concernia a relações específicas entre Estado e o particular, decorrentes de determinados
âmbitos da Administração tais como escola, efetivação de pena, relação funcional e relação do
serviço militar. Essas relações eram associadas ao âmbito intra-administrativo, considerado
livre juridicamente, estando subtraídas aos direitos fundamentais, à reserva de lei e à proteção
jurídica. Assim, o Executivo podia promulgar regulações necessárias para a formação das

________________________
56
MAYER, Otto. Derecho Administrativo alemán. Parte General. Tradução do francês por Horacio H. Heredia e
Ernesto Krotoschin. t. I, Buenos Aires: Depalma, 1949, p. 145. Tradução livre para o português do autor.
57
MAYER, Otto. Derecho Administrativo alemán. Parte General. Tradução do francês por Horacio H. Heredia e
Ernesto Krotoschin. t. I, Buenos Aires: Depalma, 1949, p. 149. Tradução livre para o português do autor.
58
ANABITARE, Alfredo Gallego. Las relaciones especiales de sujeción y el principio de la legalidade de la
Administración. Revista de Administracion Pública, Madri, n. 34, p. 11-51, jan./abr. 1961, pág. 13 e ss.
33

relações de poder especiais (prescrições administrativas que, segundo a concepção da época,


não tinham caráter jurídico-externo) e ordenar intervenções sem autorização legal.59
Esse Regime, extremante cômodo para a organização administrativa e a gestão dos
serviços públicos se manteve durante a época de Weimar, durante o nacional socialismo e,
inclusive, durante a vigência da Lei Fundamental de Bonn.
As críticas doutrinárias60 que com o tempo foram-se avolumando – posto que se
considerava que tal excepcionalidade era incompatível com um autêntico Estado
Constitucional de Direito – encontraram ressonância na sentença do Tribunal Constitucional
Federal de 14 de março de 1972, na qual, pela primeira vez, se declarou expressamente que as
relações especiais de sujeição não escapam às garantias da reserva de lei, dos direitos
fundamentais e da proteção do Poder Judiciário.
O recurso (Reclamação Constitucional) foi motivado pela restrição à liberdade de
expressão de um preso que teve sua correspondência violada por um agente público do
presídio, com fundamento em uma disposição administrativa. Na decisão, o Tribunal afirmou
a vigência dos direitos fundamentais e do princípio da legalidade no âmbito das relações
especiais de sujeição, determinando que (i) os direitos fundamentais dos presos somente
podem ser restringidos por intermédio ou com base em uma lei; (ii) as intervenções nos
direitos fundamentais dos presos, sem fundamento legal, somente podem ser de caráter
provisório; (iii) a limitação dos direitos fundamentais dos presos somente pode ser
considerada quando tal for indispensável para alcançar os fins da sociedade, abrangidos pela
ordem de valores da Lei Fundamental; (iv) cabia ao legislador expedir uma lei de execuções
penais em conformidade com a concepção moderna de direitos fundamentais, que
contemplasse critérios rigorosos sobre as circunstâncias nas quais poderia haver intervenções
nos direitos fundamentais.61
A relação especial de sujeição constituía, portanto, uma figura jurídica que visava
estabelecer uma diferenciação entre os administrados, diminuindo os direitos daqueles que se
encontravam em determinadas situações de vínculo direto com a Administração Pública,
dentre eles o laboral.

________________________
59
Direito Administrativo geral. Tradução de Luís Afonso Heck. 14. ed. Barueri: Manole, 2006, p. 195.
60
Conferência sobre relações especiais de sujeição, realizada em Mainz, em 1956, relatada por Marianl Lopez
Benitez, in Naturaleza y presupuestos constitucionales de las relaciones especiales de sujeción. Madrid:
Civitas, 1994, p. 122 e ss.
61
SCHWABE, Jürgen. Cincuenta años de juriprudencia del Tribunal Constitucional Federal alemán. Trad.
Marcela Anzola Gil. Colômbia: Edições Jurídicas Gustavo Ibañez, 2003, p. 12-16. Tradução livre para o
português do autor.
34

Essa decisão do Tribunal Constitucional não eliminou a categoria; ela continuou a ser
utilizada na Alemanha e em outros países, mas com os novos contornos fixados naquela
decisão, ou seja, respeito aos direitos fundamentais, à legalidade e controle do Poder
Judiciário.

1.5.1.2 Estágio atual e aplicação ao poder disciplinar

No Brasil, Fábio Medina Osório sustenta que as sanções disciplinares são espécies do
gênero sanções administrativas, e se aplicam no âmbito de uma relação especial de sujeição
como decorrência da necessidade de proteção de uma ordem administrativa interna, de valores
de hierarquia, subordinação, coordenação, entre os múltiplos funcionários públicos ou sob a
tutela de peculiares deveres profissionais.62
Mais adiante, adverte o autor:

[...] o certo é que os princípios básicos que regem e animam o Direito


Administrativo Sancionador estão mantidos no campo das infrações disciplinares,
v.g., legalidade, tipicidade, non bis in idem (em medidas distintas), irretroatividade
das normas sancionadoras, culpabilidade, presunção de inocência e devido processo
legal.63

Embora não mencione o assunto da relação especial de sujeição, Maria Sylvia Zanella
di Pietro, ao fundamentar o poder disciplinar como decorrência da hierarquia, parece também
adotar o instituto da relação especial de sujeição para fundamentá-lo, mas com respeito aos
direitos fundamentais:

O poder disciplinar é uma decorrência da hierarquia; mesmo no Poder Judiciário e


no Ministério Público, onde não há hierarquia quanto ao exercício de suas funções
institucionais, ela existe quanto ao aspecto funcional da relação de trabalho, ficando
seus membros sujeitos à disciplina interna da instituição.64

Na Espanha, José Suay Rincón é ainda mais enfático ao lecionar que

[...] a existência de uma relação especial de sujeição não pode justificar a aplicação
em matéria disciplinar de uma série de princípios diversos dos que comumente
regem a atividade punitiva do Estado (seja aquela reservada aos Juízes e Tribunais,
seja aquela exercida pela Administração). Não é correto extrair consequências
jurídicas de um conceito cujo conteúdo dá lugar a tantos equívocos; nem tão pouco

________________________
62
Direito Administrativo Sancionador. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 137.
63
Direito Administrativo Sancionador. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 141.
64
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella di. Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 90.
35

cabe deduzir dele mais conclusões do que ele realmente tem. O primeiro seria uma
aventura; o segundo, indubitavelmente excessivo.65

Em Portugal, José Joaquim Gomes Canotilho trilha o mesmo caminho:

Ao contrário do defendido pela doutrina clássica das relações especiais de poder, os


cidadãos regidos por estatutos especiais não renunciam a direitos fundamentais
(irrenunciabilidade dos direitos fundamentais) nem se vinculam voluntariamente a
qualquer estatuto de sujeição, produtor de uma capitis deminutio. Trata-se tão-
somente de relações de vida disciplinadas por um estatuto específico [...] devendo
encontrar seu fundamento na Constituição (ou estar pelo menos pressuposto).66

A jurisprudência brasileira, por seu turno, vem rechaçando o afastamento dos direitos
fundamentais do princípio da reserva legal em matéria disciplinar e do controle dos atos
administrativos com fundamento na existência de poderes especiais da Administração
Pública.67

________________________
65
RICÓN, Jose Suay. Sanciones Administrativas. Bolonia: Del Real Colegio de Espana, 1998, p. 55.
66
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2003. p. 466-
467.
67
Supremo Tribunal Federal: Controle dos atos administrativo e reserva de lei para imposição de sanções
em matéria disciplinar: RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO.
PROCESSO ADMINISTRATIVO. DEMISSÃO. PODER DISCIPLINAR. LIMITES DE ATUAÇÃO DO
PODER JUDICIÁRIO. PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA. ATO DE IMPROBIDADE. 1. Servidor do DNER
demitido por ato de improbidade administrativa e por se valer do cargo para obter proveito pessoal de outrem,
em detrimento da dignidade da função pública, com base no art. 11, caput, e inciso I, da Lei n. 8.429/92 e art.
117, IX, da Lei n. 8.112/90. 2. A autoridade administrativa está autorizada a praticar atos discricionários
apenas quando norma jurídica válida expressamente a ela atribuir essa livre atuação. Os atos
administrativos que envolvem a aplicação de "conceitos indeterminados" estão sujeitos ao exame e
controle do Poder Judiciário. O controle jurisdicional pode e deve incidir sobre os elementos do ato, à
luz dos princípios que regem a atuação da Administração. 3. Processo disciplinar, no qual se discutiu a
ocorrência de desídia --- art. 117, inciso XV da Lei n. 8.112/90. Aplicação da penalidade, com fundamento em
preceito diverso do indicado pela comissão de inquérito. A capitulação do ilícito administrativo não pode ser
aberta a ponto de impossibilitar o direito de defesa. De outra parte, o motivo apresentado afigurou-se inválido
em face das provas coligidas aos autos. 4. Ato de improbidade: a aplicação das penalidades previstas na Lei n.
8.429/92 não incumbe à Administração, eis que privativa do Poder Judiciário. Verificada a prática de atos de
improbidade no âmbito administrativo, caberia representação ao Ministério Público para ajuizamento da de
competente ação, não a aplicação da pena de demissão. Recurso ordinário provido.” (Grifos nossos). (RMS
24.699/DF, Primeira Turma, Relator: Ministro Eros Grau, DJ de 1º/7/05).
Superior Tribunal de Justiça: Liberdade de expressão de policial Militar: “CONSTITUCIONAL -
ADMINISTRATIVO - MILITAR - ATIVIDADE CIENTÍFICA - LIBERDADE DE EXPRESSÃO
INDEPENDENTE DE CENSURA OU LICENÇA – GARANTIA CONSTITUCIONAL - LEI DE
HIERARQUIA INFERIOR - INAFASTABILIDADE - PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR -
TRANSGRESSÃO MILITAR - INEXISTÊNCIA - FALTA DE JUSTA CAUSA - PUNIÇÃO ANULADA –
RECURSO PROVIDO.
I - A Constituição Federal, à luz do princípio da supremacia constitucional, encontra-se no vértice do
ordenamento jurídico, e é a Lei Suprema de um País, na qual todas as normas infraconstitucionais buscam o
seu fundamento de validade.
II - Da garantia de liberdade de expressão de atividade científica, independente de censura ou licença,
constitucionalmente assegurada a todos os brasileiros (art. 5º, IX), não podem ser excluídos os militares em
razão de normas aplicáveis especificamente aos membros da Corporação Militar. Regra hierarquicamente
inferior não pode restringir onde a Lei Maior não o fez, sob pena de inconstitucionalidade.
36

Contudo, é possível encontrarmos, ainda nos dias de hoje, na doutrina e na


jurisprudência brasileira resquícios da teoria da relação especial de sujeição para afastar
direitos fundamentais em processos administrativos disciplinares, sob o argumento da
supremacia do interesse estatal.
Faz-se referência à admissibilidade da quebra do sigilo das comunicações telemáticas,
no âmbito do processo administrativo disciplinar, sem autorização judicial, em afronta ao
disposto no artigo 5º, X e XII da Constituição Federal, sob o único fundamento do poder
diretivo do empregador, in casu, a Administração Pública.
Neste sentido:

ADMINISTRATIVO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. PROCESSO


ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. VIOLAÇÃO DA INTIMIDADE PESSOAL
E DO SIGILO DE CORRESPONDÊNCIA. O e-mail corporativo ostenta a natureza
jurídica de ferramenta de trabalho, fornecida pelo empregador ao seu empregado,
motivo pelo qual deve o obreiro utilizá-lo de maneira adequada, visando à obtenção
da maior eficiência nos serviços que desempenha. Dessa forma, não viola os arts.
5º, X e XII, da Carta Magna a utilização, pelo empregador, do conteúdo do
mencionado instrumento de trabalho, uma vez que cabe àquele que suporta os
riscos da atividade produtiva zelar pelo correto uso dos meios que proporciona
aos seus subordinados para o desempenho de suas funções. Não se há de cogitar,
pois, em ofensa ao direito de intimidade. (Grifos nossos).68

Decisões deste jaez aproximam o poder disciplinar da concepção originária da relação


especial de sujeição, ao não garantir o direito ao sigilo das comunicações telemáticas sob o
único fundamento da existência de uma relação laboral de Direito Público.

1.5.1.3 Subsistência do instituto

Ainda que se aceite a relação especial de sujeição com outros contornos, diferente da
sua configuração originária, cabe indagar sobre sua subsistência no Estado Democrático de
Direito.
Diversas razões parecem apontar em sentido contrário. A primeira é histórica. O
conceito de “relação especial de sujeição” surgiu do confronto entre o princípio monárquico e

________________________
III - Descaracterizada a transgressão disciplinar pela inexistência de violação ao Estatuto e Regulamento
Disciplinar da Polícia Militar de Santa Catarina, desaparece a justa causa que embasou o processo disciplinar,
anulando-se em consequência a punição administrativa aplicada.
III - Recurso conhecido e provido. (Sem destaques no original). (Recurso em Mandado de Segurança nº 11.
587/SC. Relator Min. Gilson Dipp).
68
Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação nº 5003783. Relatora p/ Acórdão Vivian Josete Pantaleão
Caminha.
37

o princípio democrático. No Estado Democrático de Direito, em que toda a soberania, todo o


poder emana do povo e é este o único legitimador da democracia – parágrafo único do art. 1º
da Constituição Federal de 198869–, o conceito de “dupla legitimação” que constituía a base
fundamental da relação especial de sujeição resta alterado substancialmente.
Confira-se, a respeito da origem do instituto da relação especial de sujeição, a lição do
autor português José Carlos Vieira de Andrade: “[...] na realidade, pode afirma-se inclusive
que a figura das relações especiais de poder foi criada para subtrair esses domínios (direitos e
garantias constitucionais), considerados internos da Administração, ao princípio da legalidade
e a intervenção dos Tribunais.”70
Ademais, a ausência de reserva de lei, de respeito aos direitos fundamentais, do
controle judicial da Administração Pública, características da relação especial de sujeição, são
princípios básicos do Estado Democrático de Direito, ou seja, as características que se
apontavam como definidoras da relação especial de sujeição são incompatíveis com os
princípios do Estado Democrático de Direito.
Assim como ensina o português Luís Cabral de Moncada: “não há qualquer sentido
pretender que a Administração tenha a sua disposição domínios reservados onde somente ela
pode elaborar normas de comportamento com alcance restritivo aos direitos fundamentais”.71
De todo o exposto, não obstante alguns autores e a jurisprudência sigam admitindo a
figura da relação especial de sujeição, não é possível admitir a inaplicabilidade do princípio
da legalidade; ainda que o princípio da reserva legal sofra uma relativização, permitindo o
regulamento subordinado à lei, não independente, portanto, não constitui um campo no qual
não mais se apliquem os direitos fundamentais, ainda que estes também possam sofrer alguma
relativização – nem é possível pretender o afastamento do controle jurisdicional.

________________________
69
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,
nos termos desta Constituição.”
70
Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2. ed. Almedina: Coimbra: Almedina, 2001, p.
305, 306.
71
As relações especiais de poder no direito português. In: Estudos de Direito Público. Coimbra: Coimbra
Editora, 2001, p. 228, 229.
38

1.5.2 A autotutela e a organização administrativa

Para outros, o fundamento do poder disciplinar não reside na relação especial de


sujeição, mas deriva da necessidade de autotutela da administração com vista à persecução do
interesse público.
Aponta Miguel Sánchez Moron que

[...] o primeiro fundamento da existência de um regime disciplinar reside na


necessidade que a Administração tem, como organização prestadora de serviços, de
manter a disciplina interna e de assegurar que seus agentes cumpram as obrigações
derivadas do seu cargo.72

Sustenta Belén Marina Jalvo que o poder disciplinar não deve ser entendido como uma
manifestação de supremacia especial, mas como mais uma expressão do poder sancionador
administrativo, estreitamente vinculado ao poder de organização da Administração Pública. O
poder disciplinar serve à Administração para tutela de sua organização, de forma que esta
possa cumprir sua função de prestadora de serviço público eficaz, imparcial e com respeito à
legalidade. O poder disciplinar é, portanto, um instrumento que dispõe a Administração para
lutar contra os agentes públicos que descumprem ou abusam de suas funções em prejuízo da
coisa pública, dos direitos e liberdades do cidadão.73
Para nós, o fundamento do poder disciplinar é a necessidade de qualquer organização
administrativa de possuir uma regulação interna que lhe permita perseguir seus fins; no caso
da Administração Pública, aqueles fins constitucionalmente estabelecidos. Assim, o poder
disciplinar se presta a prevenir e corrigir condutas que perturbem o bom funcionamento do
órgão administrativo, prejudicando seus objetivos públicos.
A relação de sujeição especial ou hierarquia como fundamento do poder disciplinar é
inerente aos agentes públicos, entre os quais existe relação superior/inferior, mas não se faz
presente, por exemplo, no caso dos presidiários, que não são subordinados aos agentes
prisionais; nem aos estudantes, que não estão subordinados nem ao corpo docente nem ao
demais servidores dos estabelecimentos de ensino público.
Com efeito, o único elemento comum suscetível de fundamentar o poder disciplinar
atribuído a um órgão administrativo é a necessidade de uma estrutura organizada que lhe

________________________
72
Derecho de la Función Pública. Madrid: Tecnos, 2001, p. 279.
73
JALVO. Belén Marina. El Rigimen Disciplinario de los funcionários públicos. 2. ed. Lex Nova, 2001, p. 108.
39

permita realizar com eficiência e eficácia suas atribuições constitucionais e legais,


sancionando aqueles que perturbarem seu bom funcionamento, prejudicando seus objetivos.
No regime do Estado Democrático de Direito, nem relação especial de sujeição nem
qualquer outro fundamento que se busque para fundamentar o poder disciplinar pode servir de
sustentáculo para que se afaste a aplicação dos direitos fundamentais e dos princípios que
regem o exercício da atividade punitiva estatal, notadamente aqueles oriundos do Direito
Penal.
40

II O EXERCÍCIO DO PODER DISCIPLINAR: O PROCESSO ADMINISTRATIVO


DISCIPLINAR E SUA MARCHA

2.1 INTRODUÇÃO

O ato de coação é a própria essência da repressão. Convém, pois, considerar a


aplicação da sanção como o ponto culminante do processo repressivo. Nada será como antes:
o indivíduo passa de acusado a condenado; a autoridade repressiva pode, de agora em diante,
aplicar-lhe uma sanção. É necessário, todavia, não confundir o conjunto de atuação repressiva
estatal com a fase durante a qual um ou vários “juízes” – no sentido funcional do termo –
decidem sobre o destino da pessoa perseguida. Muitas vezes “os dados estão lançados” muito
antes da decisão.74
O Estado Democrático de Direito não pode permitir que essa situação se verifique.
Com efeito, uma das formas de alcançar o exercício equilibrado da autoridade conferida à
Administração Pública é o controle exercido pelos particulares, ou por órgãos da própria
administração, sobre a formação da vontade administrativa.
Esse controle pode ser realizado sobre todo o processo volitivo, o que permitirá a
verificação de sua legalidade, legitimidade e, em alguns casos, até mesmo a oportunidade de
colaborar na formação de um juízo de conveniência e oportunidade. Essas etapas devem,
necessariamente, ocorrer em momento antecedente à edição do ato final, tornando possível
abortar possíveis situações indesejáveis ou, mesmo, aperfeiçoá-las, de modo a melhorar a
eficácia das medidas administrativas.
Nesse ponto, a instituição de processos administrativos para o exercício da função
sancionadora pela administração, com todo o seu aparato técnico, composto por um conjunto
de normas que visam à regulamentação da aplicação da sanção administrativa – ou pela
declaração de inocência do acusado por parte da administração, permitindo acompanhar o iter
da formação da vontade estatal –, possibilita verificar se a relação jurídica de Direito Público
em que esta se formou permaneceu incólume.
Temos, assim, a racionalização do poder disciplinar conferido à Administração
Pública através de modelos jurídicos prescritivos de processos limitadores dele e seu
consequente controle pelos destinatários, ou seja, a comunidade passa a ter controle sobre o
exercício de tal poder, fiscalizando-o, restringindo-o e legitimando-o.

________________________
74 DELLIS, George. Droit pénal et droit administratif: l'influence des principes du droit pénal sur le droit
administratif répressif. Paris: Librarie Générale de Dorit et Jurisprudence, 1997, p. 332. Tradução livre.
41

Podemos dizer que essa racionalização constitui legado ideológico deixado pelo
liberalismo ao Direito moderno, pois temos necessidade de imposições negativas à atuação
estatal, deixando a salvo as garantias e liberdades individuais.
Nesse contexto, o processo administrativo disciplinar, ao exigir uma adequação entre a
aplicação da sanção ou absolvição pela Administração Pública e um modelo juridicamente
preestabelecido, indica limites à ação estatal e modos de assegurar os direitos dos agentes
públicos. E, ao proporcionar transparência ao agir administrativo, acaba por funcionar como
obstáculo impediente à possível utilização dessa capacidade sancionadora como meio de
vilipendiar, ainda que de forma subreptícia, os direitos e garantias fundamentais estabelecidos
pela Constituição.
Podemos dizer que, em virtude dessas garantias constituídas pelo processo
administrativo em prol do administrado, particularmente o de ser informado da acusação,
passa a ser um bem que se integra ao patrimônio jurídico deste, pois, segundo Celso Antônio
Bandeira de Mello75, é “um meio apto a controlar o iter de formação das decisões estatais, o
que passou a ser um recurso extremamente necessário a partir da multiplicação e do
aprofundamento das ingerências do Poder Público sobre a Sociedade”. Funciona, pois, como
obstáculo à produção de atos em desconformidade com o direito pela Administração Pública.

2.2 OBRIGATORIEDADE DE REALIZAÇÃO DO PROCESSO PARA O EXERCÍCIO DO


PODER DISCIPLINAR

A aplicação de uma pena disciplinar ou absolvição do acusado por uma falta


disciplinar resulta de um processo sujeito a formalidades. Antes de procedermos à analise
desse processo, importa saber se, ao tomar conhecimento da prática de uma conduta que, em
tese, constitua infração disciplinar, existe para a Administração o dever de instaurar um
processo disciplinar ou se será tratada como divindade discricionária.
É o que analisaremos em seguida.

2.2.1 O poder-dever da administração na deflagração da persecução disciplinar

De acordo com o art. 143 da Lei nº 8.112/90, a autoridade que tiver ciência de
irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante

________________________
75
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros,
2011, p. 311.
42

sindicância76 ou processo administrativo disciplinar.77 Com efeito, a apuração não é


discricionária, o que não impede, entretanto, a Administração de recusar denúncia carente de
qualquer fundamento.
Assim, previamente, dispõe a administração da investigação preliminar,78 cuja
finalidade não é outra senão verificar até que ponto existe base racional para estimar se houve
cometimento de infração disciplinar, a fim de evitar a existência de um processo sem
fundamento com os correspondentes efeitos desagradáveis e gravosos para o agente público.
Essa investigação preliminar, como não constitui sindicância ou processo disciplinar, que são
os instrumentos legais previstos em lei para a apuração de infração, não tem o condão de
interromper a prescrição, o que obriga a administração a realizar avaliação com celeridade.
O caso clássico de aplicação da investigação preliminar é para averiguar as denúncias
apócrifas, as quais, em princípio, não seriam idôneas para deflagrar a persecução
administrativa (Art. 14479 da Lei nº 8.112/90), conforme se depreende da leitura do Despacho
nº 396/200780, do então Advogado–Geral da União José Antônio Dias Toffoli:

c) O Poder Público, provocado por delação anônima (disque-denúncia, por exemplo)


pode adotar medidas sumárias de verificação, com prudência e discrição, sem
formação de processo ou procedimento, destinadas a conferir a plausibilidade dos
fatos nela denunciados. Acaso encontrados elementos de verossimilhança, poderá o
Poder Público formalizar a abertura do processo ou procedimento cabível, desde que
mantendo completa desvinculação desse procedimento estatal em relação à peça
apócrifa, ou seja, desde que baseada nos elementos verificados pela ação preliminar
do próprio Estado.

________________________
76
Inciso II do art. 4º da Portaria CGU nº 335/06 conceitua sindicância como o “procedimento preliminar
sumário, instaurada com o fim de investigação de irregularidades funcionais, que precede ao processo
administrativo disciplinar, sendo prescindível de observância dos princípios constitucionais do
contraditório e da ampla defesa”. Esta seria a sindicância prevista na Lei nº 8.112/90.
77
O conceito de processo administrativo disciplinar está positivado no art. 148 da Lei nº 8.112/90:
“Art. 148. O processo disciplinar é o instrumento destinado a apurar responsabilidade de servidor por infração
praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se
encontre investido.”
78
A Portaria nº 335/2006, da Controladoria-Geral da União define a investigação preliminar como é
procedimento administrativo sigiloso, desenvolvido no âmbito do Órgão Central e das unidades setoriais, com
objetivo de coletar elementos para verificar o cabimento da instauração de sindicância ou processo
administrativo disciplinar. (art. 6º).
79
“Art. 144. As denúncias sobre irregularidades serão objeto de apuração, desde que contenham a identificação
e o endereço do denunciante e sejam formuladas por escrito, confirmada a autenticidade”. Confira-se a respeito
da interpretação deste artigo, o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça: “A previsão do art. 144 busca
dar maior segurança ao servidor público, evitando que possa vir a ser denunciado caluniosamente por colega
ou terceiro protegido no anonimato. Mas isso também não significa que a denúncia anônima deva ser
absolutamente desconsiderada, acarretando, inclusive, nulidade na raiz do processo. É possível que ela venha a
ser considerada, devendo a autoridade proceder com maior cautela, de modo a evitar danos ao denunciado
eventualmente inocente.” (MS nº 7069. Relator: Ministro Felix Fischer, Terceira Seção, DJU de 12.03.2001, p.
86).
80
O referido despacho aprovou o parecer normativo Nº AGU/GV – 01/2007.
43

No mesmo sentido, é a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

Mandado de Segurança nº 24.369, do STF - Ementa: Delação anônima.


Comunicação de fatos graves que teriam sido praticados no âmbito da
Administração Pública. Situações que se revestem, em tese, de ilicitude
(procedimentos licitatórios supostamente direcionados e alegado pagamento de
diárias exorbitantes). A questão da vedação constitucional do anonimato (CF, art. 5º,
IV, “in fine”), em face da necessidade ético-jurídica de investigação de condutas
funcionais desviantes. Obrigação estatal, que, imposta pelo dever de observância dos
postulados da legalidade, da impessoalidade e da moralidade administrativa (CF, art.
37, “caput”), torna inderrogável o encargo de apurar comportamentos eventualmente
lesivos ao interesse público. Razões de interesse social em possível conflito com a
exigência de proteção à incolumidade moral das pessoas (CF, art. 5º, X). O Direito
Público subjetivo do cidadão ao fiel desempenho, pelos agentes estatais, do dever de
probidade constituiria uma limitação externa aos direitos da personalidade?
Liberdades em antagonismo. Situação de tensão dialética entre princípios
estruturantes da ordem constitucional. Colisão de direitos que se resolve, em cada
caso ocorrente, mediante ponderação dos valores e interesses em conflito.81

Cumpre fazer referência ainda à Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção,
incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 5.687, de 31/01/06,
portanto, posterior à Lei nº 8.112/90, na qual a República Federativa do Brasil se obrigou a
apurar denúncias anônimas, conforme se depreende da leitura do art. 13.2:

2. Cada Estado-Parte adotará medidas apropriadas para garantir que o público tenha
conhecimento dos órgãos pertinentes de luta contra a corrupção mencionados na
presente Convenção, e facilitará o acesso a tais órgãos, quando proceder, para a
denúncia, inclusive anônima, de quaisquer incidentes que possam ser considerados
constitutivos de um delito qualificado de acordo com a presente Convenção.

Assim, no Direito brasileiro, a deflagração de sindicância ou processo administrativo é


imperativo para a administração, ressalvados os casos de denúncias sem fundamento, as quais
devem ser recusadas.

________________________
81
Mandado de Segurança nº 24.369/DF. Relator: Ministro Celso de Mello, decisão publicada no DJU de
16.10.2002. No mesmo sentido: “Nada impede, contudo, que o Poder Público, provocado por delação
anônima (“disque-denúncia”, p. ex.), adote medidas informais destinadas a apurar, previamente,em
averiguação sumária, “com prudência e discrição”, a possível ocorrência de eventual situação de ilicitude
penal, desde que o faça com o objetivo de conferir a verossimilhança dos fatos nela denunciados, em ordem a
promover, então, em caso positivo, a formal instauração da “persecutio criminis”, mantendo-se, assim,
completa desvinculação desse procedimento estatal em relação às peças apócrifas. (HC nº 100042 MC/RO.
Relator: Ministro Celso de Mello, decisão publicada no DJE de 08.10.2009). A jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça não destoa do entendimento da Suprema Corte: “Não enseja a nulidade do processo
administrativo disciplinar o simples fato de sua instauração ser motivada por fita de vídeo encaminhada
anonimamente à autoridade pública, vez que esta, ao ter ciência de irregularidade no serviço, é obrigada a
promover sua apuração. (MS nº 12.429/DF. Relator: Ministro Felix Fischer, Terceira Seção, julgado em
23.05.2007, DJ de 29.06.2007, p. 484).
44

No Direito Comparado, o ordenamento jurídico espanhol é semelhante ao nosso:


conhecida a infração, nasce para a Administração o dever de apurá-la. Há semelhança
inclusive no que concerne à investigação preliminar, denominada investigação reservada
naquele país.82
O ordenamento jurídico português, entretanto, trata a questão de forma diferente.
Naquele país, o exercício do poder disciplinar não é um poder-dever. Entende-se que a
instauração da persecução disciplinar é uma faculdade da administração, devendo esta se
orientar pelos critérios de oportunidade e conveniência.83
Sustenta Marcelo Caetano que, ao contrário da repressão penal que deve ser exercida
sempre que se verifique a existência de um crime, a repressão disciplinar só tem lugar quando,
segundo o critério dos chefes, a vantagem da punição do funcionário é maior para a boa
ordem do serviço público do que o esquecimento da falta.84
Assim vem decidindo a jurisprudência administrativa daquele país:

No âmbito disciplinar nem a toda falta tem que corresponder a um procedimento,


nem toda falta neste apurada contra certo agente tem que corresponder
necessariamente a uma sanção disciplinar.85
A administração goza da faculdade de instaurar ou não o processo disciplinar de
86
acordo com o entendimento quanto a oportunidade e conveniência de tal medida.

Esta faculdade conferida à Administração de deflagrar ou não a persecução disciplinar


é criticada por Maria Teresa de Melo Ribeiro Helena. Para a autora portuguesa, encerra a
concepção de uma época em que se entendia que a administração gozava de amplos poderes
discricionários, designadamente no Direito Disciplinar, reflexo do entendimento da
discricionariedade administrativa como uma zona de liberdade da Administração Pública,
hoje em dia ultrapassada.87
O poder discricionário já não é concebido como algo que permita à Administração
fazer o que lhe apeteça, desde que não proibido; porém, o princípio da legalidade impõe que

________________________
82
JIMÉNEZ, J.M. Trayter. Manual de Derecho Disciplinario de los Funcionarios Públicos. Marcial Pons,
Barcelona, 1992, p. 316.
83
A respeito: ABREU, Luís Vasconcelos. Para o estudo do processo administrativo disciplinar português
vigente. As Relações com o processo penal. Coimbra: Almedina, 1993, p. 51 e ss.
84
Do poder disciplinar. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1932, p. 44.
85
Supremo Tribunal Administrativo. Rec. nº 2502, julgado em 25 de fevereiro de 1999.
86
Supremo Tribunal Administrativo. Rec. nº 21154, julgado em 30 de março de 1993.
87
RIBEIRO HELENA, Maria Teresa de Melo. O Princípio da Imparcialidade da Administração Pública.
Coimbra: Almedina, 1993, p. 245.
45

toda atividade da Administração esteja sujeita à lei e à Constituição e, em particular, em


respeito aos direitos fundamentais.

2.2.2 Obrigatoriedade do processo para o exercício do poder disciplinar

O poder disciplinar não pode ser exercido de plano, sendo necessária a instauração de
um processo prévio,88 pois a Administração deve observar a garantia constitucional do devido
processo legal, do contraditório e da ampla defesa,89 de modo que, para impor uma sanção a
um fato que constitua infração, ou decidir pela inocência do agente público, deve ajustar-se ao
procedimento legalmente estabelecido e ante o órgão competente.90 Não mais se admite no
Direito brasileiro o instituto da verdade sabida,91 assim entendida como o conhecimento

________________________
88
Neste sentido: Supremo Tribunal Federal, RMS 24.536: “PUNIÇÕES DISCIPLINARES - Imposição à
servidora pública municipal sem ser submetida a regular procedimento administrativo - Inadmissibilidade -
Aplicação de pena disciplinar com base na 'verdade sabida' ou em 'termo de declarações', a partir de mera
constatação ou comunicação do superior hierárquico, que não se compatibiliza com o ordenamento jurídico
vigente - Inarredável, 'in casu', o reconhecimento de que não houve imputação formal de qualquer ato
caracterizador de infração disciplinar e de que não foi oferecida oportunidade para o exercício da ampla defesa,
apresentando-se ainda as decisões punitivas despidas de motivação - Violação manifesta, destarte, do direito ao
contraditório e à ampla defesa - Reexame necessário e apelo da Municipalidade não providos.” No mesmo
sentido: RE nº 342.598/SP, RMS 17.093-GB (anterior à CF/ 88) e Ag 186.840 (AgRg)-RS.
89
O art. 41, § 1º da Constituição Federal preceitua que o servidor público estável só perderá o cargo: I - em
virtude de sentença judicial transitada em julgado; II - mediante processo administrativo em que lhe seja
assegurada ampla defesa; III - mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei
complementar, assegurada ampla defesa. Contudo, embora a Constituição Federal só garanta esta prerrogativa
ao servidor estável, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido da aplicabilidade do
devido processo legal e seus consectários, contraditório e ampla defesa, também aos servidores não estáveis.
Confira-se a respeito o seguinte julgado: “Embargos de declaração em agravo de instrumento. Conversão em
agravo regimental, conforme pacífica orientação desta Corte. Demissão de servidor público. Necessidade de
respeito aos princípios do contraditório e da ampla defesa. Precedentes. 1. A decisão ora agravada reflete a
pacífica jurisprudência desta Corte a respeito do tema, que reconhece a necessidade da observância dos
princípios do contraditório e da ampla defesa em procedimento de dispensa de servidor público. 2. Esses
postulados devem ser seguidos ainda que se trate de servidor contratado sob o regime celetista e mesmo que
ainda se encontre em fase de estágio probatório. 3. Embargos de declaração recebidos como agravo
regimental, ao qual se nega provimento”. (AI nº 634.719-ED/SP, Primeira Turma, DJe de 9/3/12, Rel. Min.
Dias Tofoli).
90
Neste sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: “Em se tratando de processo administrativo, a
Lei Federal nº 9.784⁄99, que estabelece, no âmbito da União, normas básicas sobre processos administrativos,
proíbe ao administrador a renúncia total ou parcial de competências, salvo se houver autorização por lei (art.
2º, parágrafo único, inciso II). A citada lei federal, no inciso VIII do mesmo parágrafo único, assegura aos
administrados "a observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos administrados", dentre
os quais se insere, por força da própria Constituição Federal, o direito de não ser processado nem
sentenciado senão por autoridade competente (art. 5º, inciso LIII da CR)”. (MS nº 10.908/DF). (Grifos
nossos).
91
Antes do advento da Constituição Federal, vários estatutos disciplinares previam este instituto de forma
expressa. À guisa de exemplo, a Lei nº 10.261 de 28 de outubro de 1968 (Estatuto dos Funcionários Públicos
do Estado de São Paulo), no seu artigo 271, previa a punição pela verdade sabida nos casos dos arts. 253 e 254
(respectivamente pena disciplinar de repreensão e suspensão, esta não excederá a 90 dias), já no Parágrafo
único deste artigo, traz no seu bojo o entendimento sobre o que é verdade sabida ‘o conhecimento pessoal e
direto de falta por parte da autoridade competente para aplicar a pena’”.
46

pessoal da infração pela própria autoridade competente para punir o infrator ou a infração
pública e notória, estampada na imprensa ou divulgada por outros meios de comunicação de
massa,92nem as apurações sumárias.
Anota Romeu Felipe Bacelar Filho:

Formou-se um consenso doutrinário acerca da inconstitucionalidade da verdade


sabida. A Constituição de 1988 exige, incondicionalmente, o processo
(procedimento em contraditório) para aplicação de sansão disciplinar de qualquer
espécie e seja qual for o conjunto probatório, que a Administração Pública disponha
para tanto.93

O processo administrativo se caracteriza pelo equilíbrio entre a garantia de proteção


dos interesses públicos, que são de todos os cidadãos conviventes na sociedade, atingidos pela
infração, e a necessidade de assegurar os direitos constitucionais do servidor público, pelo que
só no âmbito do processo será possível o servidor exercer sua defesa, cabendo sempre à
Administração provar sua culpa, conforme veremos mais adiante.
É que o servidor chega ao processo como inocente e só pode dele sair como culpado se
sua primitiva condição for desconstruída a partir de provas robustas carreadas pela
Administração.
Assim, a aplicação de uma sanção disciplinar ou a declaração de inocência só é
legítima no bojo de um processo.

2.3 NATUREZA JURÍDICA DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR:


PROCESSO OU PROCEDIMENTO?

Na linguagem comum e em várias legislações, não há distinção entre “processo” e


“procedimento”. Porém, afirma José Frederico Marques: “processo é o método, isto é, o
sistema de compor a lide em juízo por meio de uma relação jurídica vinculativa de Direito
Público, enquanto procedimento é a forma material com que o processo se realiza em cada
caso concreto”94.
Edmir Netto de Araújo afirma que processo e procedimento têm a mesma origem
latina (procedere), com significado semelhante (caminhar, progredir, marchar para a frente).

________________________
92
Conceito de Hely Lopes Meireles. In: Direito Administrativo Brasileiro. 39. ed. São Paulo: Malheiros, 2006,
p. 697.
93
Princípios constitucionais do processo administrativo disciplinar. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 232.
94
MARQUES, José Frederico. Instituições de Direito Processual Civil. v. I, Rio de Janeiro: Forense, 1958, p.
14.
47

Diz o autor que “não se atribui maior importância, na doutrina, à distinção entre ‘processo’
e ‘procedimento’, pois processo designa entidade que, em natureza, ontologicamente, em
nada difere da que se designa por procedimento: processo é o todo, procedimento as
diferentes operações que integram esse todo”.95
Prosseguindo com seu raciocínio, afirma:

[...] para os processualistas, entretanto, adotando uma postura de maior rigor técnico,
a noção de processo está limitada ao desempenho da atividade jurisdicional, em que
há uma pretensão resistida (contraditório), sobre a qual o Judiciário vai proferir uma
decisão que adquirirá força de coisa julgada quando ultrapassado o prazo recursal,
ou seu esgotamento, sendo obrigatória sua obediência pelas partes.96

Realmente, o termo “processo” esteve por muito tempo ligado à atividade


jurisdicional. Assim, Marçal Justen Filho defende que a atividade desempenhada pela
administração não possui jurisdição, elemento essencial ao processo, pelo que a atividade
administrativa é apenas um procedimento.97
Contudo, a doutrina administrativa majoritária entende que o conceito de “processo” é
aplicável para o exercício de outras competências decisórias do Estado, passando-se a
compreender que existe uma relação jurídica processual autônoma da relação de direito
material quando o Estado exerce outras funções relevantes, como a de legislar e a de
administrar. Teríamos, assim, o processo legislativo e o processo administrativo.
Nesta direção, leciona Hely Lopes Meirelles:

Afaste-se a errônea ideia de que decisão jurisdicional ou ato de jurisdição é privativo


do Judiciário. Todos os órgãos e Poderes têm e exercem jurisdição, nos limites de
sua competência institucional, quando aplicam o Direito e decidem controvérsia
sujeita à sua apreciação. Privativa do Judiciário é somente a decisão judicial que faz
coisa julgada em sentido formal e material, erga omnes. Mas a decisão judicial é

________________________
95
Curso de Direito Administrativo. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 864-865.
96
Curso de Direito Administrativo. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2006, p. 865.
97
Diz este autor: “O que dá uma identidade ao processo é uma composição totalmente peculiar e sem paralelo
em qualquer outro tipo de vínculo jurídico. O processo vincula três ‘sujeitos’, produzindo situações jurídicas
subjetivas favoráveis e (ou) desfavoráveis. O vínculo entre os três sujeitos apresenta-se com perfil totalmente
ímpar. Cada sujeito apresenta determinada posição no processo. Não é possível afirmar que as três ‘posições’
processuais sejam intercambiáveis entre si. São situações jurídicas infungíveis. Mais, ainda, um dos sujeitos
ocupa uma posição jurídica totalmente peculiar. O juiz participa do processo não na condição de parte, mas
com autonomia que é de essência e inafastável. O juiz é imparcial, não apenas no sentido de ser-lhe vedado
tomar partido, mas também na acepção de que ‘não é parte’. Ou seja, o juiz não tem interesse próprio no objeto
da relação jurídica. Em nenhum outro tipo de relação jurídica um dos pólos é ocupado por um sujeito que não
seja parte. O processo é a única hipótese em que tal situação ocorre. Tem-se uma relação jurídica com duas
partes e três pólos. Um dos pólos é ocupado por um sujeito que não é parte.” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso
de direito administrativo. 6. ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 655).
48

espécie do gênero jurisdicional, que abrange toda decisão de controvérsia no âmbito


judiciário ou administrativo.98

Assim, permanece a controvérsia também no campo administrativo sobre a diferença


entre processo e procedimento.99
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro,

[...] não se confunde processo com procedimento. O primeiro existe sempre como
instrumento indispensável para o exercício de função administrativa; tudo o que a
Administração Pública faz, operações materiais ou atos jurídicos, fica documentado
em um processo; [...]. O procedimento é o conjunto de formalidades que devem ser
observadas para a prática de certos atos administrativos, equivale a rito, a forma de
100
proceder; o procedimento se desenvolve dentro de um processo administrativo.

Diógenes Gasparini, entretanto, afirma que só há processo administrativo quando este


se destinar a resolver litígio; os demais, sem controvérsias entre interessados, decorrentes do
expediente administrativo, são procedimentos.

Assim, tecnicamente pode-se definir o processo administrativo como o conjunto de


atos ordenados, cronologicamente praticados e necessários a produzir uma decisão
sobre certa controvérsia administrativa. De sorte que somente os processos
administrativos que encerram um litígio entre a Administração Pública e o
administrado (recurso contra lançamento tributário) ou o seu servidor (aplicação de
pena disciplinar) são merecedores dessa denominação.101

Para nós, a razão está com Maria Sylvia Zanella de Pietro, de modo que o processo é a
sequência concatenada de atos administrativos interligados entre si e tendentes a um ato final

________________________
98
Direito administrativo brasileiro. 39. ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 453.
99
Daniel Müller Martins identifica cinco posições doutrinárias sobre o assunto e afirma que se trata de conceitos
distintos, sendo o procedimento “uma sucessão legalmente condicionada de atos administrativos relativamente
autônomos encadeados mediante relação de causalidade e instrumentalidade ordenados à concretização da
função administrativa”. O processo administrativo, por seu turno, ”é uma instituição jurídica de perfil próprio
e deve ser compreendido como conduto jurídico da relação jurídica administrativa mediante a sucessão
legalmente condicionada de atos e fatos administrativos relativamente autônomos, encadeados mediante
relação de causalidade e instrumentalidade ordenados à concretização participativa da função
administrativa”. (Aspectos jurídicos-temporais do processo administrativo: uma leitura à luz da garantia
constitucional da duração razoável. São Paulo: PUC, 2007, p. 73-75.)
100
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 530.
101
Direito Administrativo. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 799-800. Contudo, afirma este autor que “processo
administrativo, em sentido prático, é o conjunto de medidas jurídicas e materiais praticadas com certa ordem e
cronologia, necessárias ao registro dos atos da Administração Pública, ao controle do comportamento dos
administrados e de seus servidores, a compatibilizar, no exercício do poder de polícia, os interesses público e
privado, a punir servidores e terceiros, a resolver controvérsias administrativas e a outorgar direito a terceiros”.
49

a ser praticado pela Administração, havendo ou não litigiosidade. O procedimento é a forma


como esses atos serão praticados.102
Com efeito, como já vínhamos fazendo, usaremos o termo “processo”103 neste nosso
estudo.

2.4 GARANTIAS PROCESSUAIS PREVISTAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988


APLICÁVEIS AO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

A Constituição Federal de 1988 proclama garantias fundamentais de caráter


eminentemente processual, que se constitucionalizaram princípios básicos do processo penal
(aplicáveis ao processo administrativo disciplinar). Dentro desse catálogo normativo, o artigo
5º da CF ocupa um lugar central, aparecendo como texto-chave na constitucionalização das
formas processuais.
Jefferson Carús Guedes e Eliana Pires Rocha afirmam:

A Carta de 1988, ao contemplar inúmeros direitos e garantias fundamentais, atribuiu


caráter constitucional aos mais relevantes fundamentos dos direitos materiais e
processuais, alterando radicalmente o modo de construção da norma jurídica, que
tem agora a Constituição como o centro do sistema jurídico. Nesse fenômeno de
constitucionalização do direito infraconstitucional, o Texto destacou direitos e
garantias em diferentes partes, especialmente no Título II - Dos Direitos e Garantias
Fundamentais -, dando continuidade a uma tradição presente no direito
constitucional luso-brasileiro. Pois, não basta que o direito seja reconhecido e
declarado se não for garantido. Mas não há uma regra precisa que individue as duas
categorias, cabendo ao doutrinador localizá-las. E, embora não seja fácil estabelecer
a linha divisória que existe entre direitos e garantias fundamentais, já que, muitas
vezes, o direito fundamental se exterioriza por meio de uma garantia, a doutrina
ainda referenda a lição de RUY BARBOSA, que vê, nos direitos, disposições
declaratórias; já, as garantias, seriam disposições assecuratórias que, em defesa dos
direitos, limitam o poder. Ou seja, reserva-se à garantia um papel instrumental, pois
serve à efetivação dos direitos fundamentais que visa proteger e à legitimação das
ações do Estado para a defesa desses direitos, consistindo em um direito-garantia.104

________________________
102
Fabio Medina Osório leciona que “a preferência pelo termo processo não é inútil nem gratuita. Ao contrário, a
processuailidade das relações punitivas, estejam elas no campo administrativista, estejam no campo penal, é
uma das características marcantes do Estado Democrático de Direito. [...] Dentro das relações processuais há
procedimentos, ritos e formas ordenadas que conduzem à pretensão punitiva do Estado”. (Direito
administrativo sancionador. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 384.)
103
Embora utilize em sua obra as expressões indistintamente, Celso Antônio Bandeira de Melo ressalva que “se
fossemos nos prender aí que acreditamos melhor se afine à sua terminologia técnica, atribuiríamos o nome
‘processo’ ao fenômeno sub examine, reservando o rótulo ‘procedimento’ para designar a modalidade ritual
específica que cada qual possa particularizadamente apresentar”. (Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São
Paulo: Malheiros, 2011.)
104
Direitos fundamentais e processo civil no Brasil: algumas técnicas processuais compensatórias de
desigualdades sociais e a proteção judicial dos direitos fundamentais. Revista da AGU, Brasília, ano IX, n. 25,
jul/set. 2010, p. 87-120.
50

As garantias fundamentais processuais se caracterizam por serem de aplicação, direta


ou indireta, no processo.
A partir do estudo do artigo 5º como máximo expoente das garantias processuais,
podemos nele encontrar um conteúdo complexo, dividindo-o em dois grupos: o primeiro
proclama as garantias que tendem a fazer efetivo e pôr em marcha o processo; no segundo,
estão contidas garantias inerentes ao acusado no processo, explícitos e implícitos, velando
pelo seu adequado desenvolvimento.105
Vejamos, a seguir, quais são as garantias proclamadas no art. 5º em relação ao
processo. Iniciamos pelo estudo das principias garantias previstas no primeiro grupo. As
segundas, por serem inerentes ao acusado, serão estudadas conjuntamente com nosso tema
central: direito de ser informado da acusação.

2.4.1 Devido processo legal

2.4.1.1 Conceito

A doutrina e a jurisprudência não chegaram a um consenso quanto ao que se deve


entender como conceito106de “devido processo legal”. Parte, inclusive, questiona esse esforço
em conceituá-lo, pois poderia limitar o seu alcance.
Para Egon Bockman Moreira,

Os estudiosos não alcançaram unidade quanto à sua definição, conteúdo e limites. O


que, uma vez mais, demonstra a essencial amplitude do ‘due process of law’ é a
impossibilidade de seu enclaustramento em uma definição (acadêmica ou de direito
positivo) – no que estão a razão de ser da cláusula e o motivo de sua sobrevivência
através dos séculos. Tentar dizer, pontual e exatamente, o que significa o ‘devido

________________________
105
Não se pode negar a íntima relação entre ambos os grupos, no primeiro deles se constitucionalizam os
princípios essenciais, sem os quais não se pode falar em processo; no segundo, estão todos aqueles elementos
que caso não sejam respeitados viciariam o processo já existente. Contudo, a violação ao direito de ser
informado da acusação, por exemplo, violaria o direito ao devido processo legal, à ampla defesa e ao
contraditório. Os princípios da especificidade e separabilidade jurídica a que se referem o Tribunal
Constitucional espanhol (Sentença 176 de dezembro de 1985 e sentença 26 de 13 de abril de 1983) levam a que
não se possa se valer de um direito genérico quando há um específico que regula a situação concreta.
106
A respeito das dificuldades de conceituar o devido processo legal e definir seu conteúdo, é clássica a lição do
juiz Frankfurter da Suprema Corte Norte Americana: "due process não pode ser aprisionado dentro dos
traiçoeiros limites de uma fórmula... due process é produto da história, da razão, do fluxo das decisões
passadas e da inabalável confiança na força da fé democrática que professamos. Due process não é um
instrumento mecânico. Não é um padrão. É um processo. É um delicado processo de adaptação que
inevitavelmente envolve o exercício de julgamento por aqueles a quem a Constituição confiou o
desdobramento desse processo". (Voto no caso Anti-Facist Committee v. Mc Grath, 341 US 123, 95 L. Ed.
817 (1951), apud DÓRIA, Antonio Roberto Sampaio. Direito constitucional tributário e due process of Law. 2.
ed., Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 33.
51

processo’ é tarefa de pouca ou nenhuma utilidade, pois implicaria a limitação da


grandeza da garantia.107

Na mesma linha, ensina San Tiago Dantas que

[...] o ‘due process of law’ é um standard, pelo qual se guiam os Tribunais e, assim
sendo, ‘deve aplicar-se tendo em vista circunstâncias especiais de tempo e de
opinião pública em relação ao lugar em que o ato tem eficácia’. Daí não ser possível
aprisioná-lo num conceito teorético, sob pena de se lhe comprometer a elasticidade.
Uma definição aproximada há de ser extraída da sucessiva consideração de várias
hipóteses, nele incluídas ou dele excluídas pelos pronunciamentos.108

Para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o processo é um meio para


assegurar, na maior medida possível, a solução justa de uma controvérsia, ao qual contribuem
o conjunto de atos de diversas características geralmente reunidas sob o conceito de devido
processo legal. Neste sentido, ditos atos servem para proteger, assegurar ou fazer valer a
titularidade ou o exercício de um direito e são condições que devem cumprir para assegurar a
adequada defesa daqueles cujos direitos ou obrigações estão sob consideração judicial. Assim,
o devido processo supõe o conjunto de requisitos que devem observar as instâncias
processuais.109
Nesta toada, ao apreciar o caso Fermín Ramírez versus Guatemala, anotou aquela
Corte que o devido processo é um pré-requisito indispensável para a proteção de qualquer
outro direito, constituindo um verdadeiro limite à regulação do poder estatal em uma
sociedade democrática.110

________________________
107
Princípios Constitucionais e a Lei 9.784/99. 4. ed. atual., rev. e aum. São Paulo: Maheiros, 2010, p. 254.
108
POUND, Roscoe. The Administrative aplication of legal Standars Catinella, La Corte SupremaFederale,
Cedam, p. 60, apud DANTAS, San Tiago. Problemas de Direito Positivo. Rio de Janeiro: Forense, 1953.
109
Opinião Consultiva nº 09, de 06 de outubro de 1987. Parágrafos 117 e 118. No mesmo sentido, a Opinião
Consultiva nº 18/93: “conjunto de requisitos que deben observarse en las instancias procesales a efecto de que
las personas estén en condiciones de defender adecuadamente sus derechos ante cualquier (…) acto del Estado
que pueda afectarlos. Es decir, cualquier actuación u omisión de los órganos estatales dentro de un proceso, sea
administrativo sancionatorio o jurisdiccional, debe respetar el debido proceso legal […] para que exista
“debido proceso legal” es preciso que um justiciable pueda hacer valer sus derechos y defender sus interesses
en forma efectiva.”
110
Sentença de 20 de junho de 2005, parágrafo 78. Para aquela Corte, para que exista devido processo “es
preciso que um justiciable pueda hacer valer sus derechos y defender sus intereses en forma efectiva y en
condiciones de igualdad con otros justiciables. Al efecto, es útil recordar que el proceso es un medio para
asegurar, en la mayor medida posible, la solución justa de una controversia. A ese fin atiende el conjunto de
actos de diversas características generalmente reunidos bajo el cncepto de debido proceso legal”. (Opinião
Consultiva 16/92).
52

2.4.1.2 Evolução histórica

O devido processo legal é fruto de uma evolução histórica do sistema da Common


Law. Aponta a doutrina dominante que suas origens estariam na Carta Magna inglesa de
1215, com a denominação law of the land.111 Esta tem seu nascimento devido ao pacto
firmado entre o Rei João Sem Terra e os Barões Normandos, no qual se comprometeram a
respeitar uma série de direitos e garantias processuais.112
Mais tarde, essa garantia foi reconhecida por outros instrumentos normativos do
Direito Anglo-saxão, pela Petição de Direitos do Rei Juan Carlos I de 1628, o Bill of Rigths113

________________________
111
Contudo, relata Ademar Ferreira Maciel que a expressão due process of law remonta a mais de cinco séculos
antes da era cristã. Diz este autor que “na Antígona de Sófocles, peça estreada em Atenas, presumidamente no
ano de 441A.C., já se invocavam determinados princípios morais e religiosos, não escritos, que podiam ser
invocados à tirania das leis escritas. Édipo [...], quando descobriu que seus quatro filhos eram filhos dele com
sua própria mãe, num gesto de autopunição, vazou seus olhos e passou a vaguear pela Grécia, guiado pela
filha Antígona. Com sua morte, seus dois filhos, vale dizer, irmãos de Antígona, passaram a disputar o poder
político em Tebas. Numa batalha, um irmão matou o outro, e um tio deles, Creonte, assumiu o governo. O
primeiro decreto de Creonte foi proibir que dessesepultura a um dos irmãos mortos, Polinices, considerado
traidor da pátria. A pena pela desobediência seria a morte do infrator. Antígona, então, após invocar as leis
não escritas, que se perdiam na perspectiva dos tempos, retrucou que acima das leis do Estado, das leis
escritas, existiam as leis não-escritas, de cunho universal, que deviam prevalecer sobre as leis escritas, pois se
calcavam na natureza do homem. Pois bem, essa revolta da Antígona é apontada como sendo o germe do
Direito natural, do qual o direito de resistência seria uma variante.” (MACIEL, Adhemar Ferreira. O devido
processo legal e a Constituição brasileira de 1988: Doutrina e Jurisprudência. Revista de Julgados do Tribunal
de Alçada de Minas Gerais, v. 23, n. 68, p. 33-41, 1997.)
112
Para Miguel Satrústegui GIL-DELGADO, “En definitiva, lo verdaderamente sobresaliente de la Magna Carta,
lo que hace de ella una Ley diferente de cualquier otra del Medioevo no está en ella ni en su contexto, sino que
le fue añadido después. Es su destino, su proyección importante y duradera en el constitucionalismo inglés y
norteamericano, es el hecho de que su famoso Capítulo XXXIX, con el juicio por jurados y la “lex terrae”, siga
en vigor en Gran Bretaña hoy e indirectamente también en los Estados idos, al haberse incorporado a su
Derecho Constitucional. Y este destino sobresaliente lo debe la Carta, en gran medida, a su utilización y a su
instrumentación como un mito poderoso por parte de los agentes que llevaron a cabo la “revolución
constitucionalista” en Inglaterra, desde mediados del siglo XV hasta mediados del siglo XVII; esos agentes –
entre los que destacan grandes juristas como Sir Edward Coke- argumentaron con la Magna Carta y la
reinterpretaron para controlar el ejercicio de la prerrogativa regia e incluso para reforzar el poder del
Parlamento.36 Y aunque la “Gloriosa Revolución” de 1688 abrió, desde luego, un horizonte político y cultural
radicalmente distinto al de la Magna Carta, no hizo tabla rasa de ella, sino que la incorporó y la acomodó,
como un precedente a la vez tosco y venerable del nuevo paradigma constitucional britânico” . Resumiendo
esta idea, Lord Chatham dijo, en el siglo XVIII, que la Magna Carta, la Petition of Right y la Bill of Rights
forman la “Biblia de la Constitución Británica”. Pero habría que añadir que fue el triunfo de la revolución,
representado por la Bill of Rights de 1689, lo que dotó de proyección y expandió el significado del viejo
precedente –que, conforme a esta alegoría bíblica, podemos calificar de veterotestamentario- que es la Carta
Magna de Juan Sin Tierra de 1215.” (LA MAGNA Carta: realidad y mito del constitucionalismo pactista
medieval. Revista História Constitucional, Madrid, Editorial del Centro de Estudios Políticos Y
Constitucionales, n. 10, edición online, p. 243-262. Disponível em: <///C:/Users/Livia/Downloads/232-861-1-
PB.pdf>. Acesso em: 14 jul. 2014, às 14h).
113
Carlos Roberto de Siqueria Castro, valendo-se das lições de Bernard Schwartz, traça as diferenças entre o
entre os Bill of Rights inglês e norte-americano: “O conceito de declaração de direitos (Bill of Rights) inglês
em 1689 tende a obscurecer este fato. Todavia, exceto pelo nome, o estatuto de 1689 pouco tem em comum
com o documento americano posterior. Em primeiro lugar, o Bill inglês foi aprovado, como lei, pelo
Parlamento e estava, assim, em sentido jurídico, sujeito a ser emendado ou revogado à discriminação da
legislatura que a criara. A noção americana de um Bill of Rights incorpora garantias de liberdade individual
53

de 1689 e a Declaração de Direitos da Virgínia de 1776. Contudo, sua maior importância se


iniciou em 1791, com a incorporação de seus ditames à 5ª Emenda à Constituição Federal dos
Estados Unidos da América, na qual aparece pela primeira vez o conceito de “devido
processo”.
Eis o teor:
Nenhuma pessoa será detida para responder por crime capital ou hediondo, a menos
que apresentada ou indiciada por um grande Júri, exceto em casos levantados
perante as forças terrestres e navais, milícia, quando em efetivo serviço em tempo de
guerra ou perigo público; nem será pessoa alguma sujeita por duas vezes à mesma
ofensa, colocando em risco sua vida ou parte do corpo; nem ser compelida em
qualquer caso criminal a ser testemunha contra si mesma, nem ser privada da vida,
liberdade e propriedade, sem o devido processo; nem a propriedade privada ser
tomada para o uso público sem justa compensação.114

Posteriormente, no ano de 1868, a 14ª Emenda estendeu a aplicação do instituto, até


então aplicável somente ao Governo Central, a todos os Estados da Federação.
Eis a íntegra:

Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua


jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado em que residem. Nenhum
Estado fará executar qualquer lei que restrinja os privilégios ou imunidades dos
cidadãos dos Estados Unidos; nenhum Estado privará qualquer pessoa da vida,
liberdade ou propriedade sem o devido processo legal; nem negará a qualquer
pessoa dentro de sua jurisdição a igual proteção das leis.

Com precisão, ensina Leda Boechat Rodrigues:

A Emenda nº 5, portanto, protegia os direitos individuais dos abusos do governo


federal, ao passo que a Emenda nº 14 trouxe o devido processo legal como uma
garantia federal contra a ação arbitrária estadual que viesse a intervir nos direitos
individuais, passando toda espécie de legislação estadual à sujeição da Corte
Suprema, sempre que se levantasse a questão de ser ou não ela essencialmente
justa.115

________________________
a um documento constitucional no qual se define e limita as áreas de legitimidade da ação legislativa. Nesse
sentido, a Declaração de Direitos de Virginia de 1776, foi o primeiro Bill of Rights moderno, desde que foi o
pioneiro em usar uma Constituição escrita para imunizar direitos individuais dos ventos cambiantes dos
caprichos legislativos.” (O devido processo legal e os princípiosda razoabilidade e da proporcionalidade. 3. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 72).
114
Na língua original: “No person shall be held to answer for a capital, or otherwise infamous crime, unless on a
presentment or indictment of a grand Jury, except in cases arising in the land or naval forces, or in the Militia,
when in actual service in time of War or public danger, nor shall any person be subject for the same offense to
be twice put in jeopardy of life or limb; nor shall be compelled in any criminal case to be a witness against
himself, nor be deprived of life, liberty, or property, without due process of law; nor shall private property be
taken for public use, without just compensation.” (SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. Belo
Horizonte: Del Rey, 2001, p. 28).
115
RODRIGUES, Leda Boechat. A Corte Suprema e o direito constitucional americano. Rio de Janeiro:
Forense, 1958.
54

No âmbito do Direito Internacional, o devido processo é consagrado por diferentes


tratados. Entre eles, podemos destacar a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,
que o reconhece em seus artigos 10 e 11; e o Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos116, que faz referência ao instituto principalmente em seu artigo 14, mencionando
diversos direitos como igualdade ante os tribunais de justiça, presunção de inocência, direito
de defesa, possibilidade de recorrer das decisões condenatórias a tribunais superiores e a não
ser submetido a processo por um delito pelo qual já foi julgado anteriormente (non bis in
idem), dentre outros.
No continente americano, foi reconhecido pela Convenção Americana de Direitos
Humanos, a qual estabeleceu no seu artigo 8º as garantias judiciais, entre as quais se encontra
o direito de ciência da imputação formulada, que será objeto de estudo neste trabalho.
No Direito brasileiro, embora sem expressa previsão legal, sempre se observou o
princípio do devido processo legal, embora com alcance limitado, até ser expressamente
previsto como direito fundamental pelo artigo 5º, LIV da Constituição Federal de 1988.117
Neste sentido, a lição de José Afonso da Silva118

Não deixemos de mencionar, de passagem, que o princípio do due processo of law


não esteve propriamente ausente do nosso direito constitucional. Ele emergia de
algumas normas de garantia do processo e do direito de segurança inscritos entre os
direitos e garantias individuais. Seu reconhecimento dependia de pesquisa no texto
constitucional e de construção doutrinária. Agora ele está expresso. Basta à doutrina
compreendê-lo na evolução centenária que tanto o enriqueceu. E, sendo
limpidamente expresso, pode-se até reproduzir suas potencialidades em novos
avanços, mormente porque inscrito numa Constituição com tantas novidades que
hão de nele repercutir.

Para Nelson Nery Júnior, trata-se do princípio constitucional fundamental do processo


civil, uma verdadeira base sobre o qual todos os outros princípios e regras se sustentam. Com
efeito, bastaria a Constituição Federal de 1988 ter enunciado o princípio do devido processo
legal para que o caput e a maioria dos incisos do art. 5º fossem absolutamente despiciendos.
De todo modo, a explicitação das garantias fundamentais derivadas do devido processo legal,
________________________
116
Incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 592, de 6 de junho de 1992.
117
Maria Rosynete Oliveira Lima noticia a aplicação do devido processo legal em 1981, quando “o Ministro
Cordeiro Guerra do Supremo Tribunal Federal deparou-se com um caso, no qual o litisconsorte necessário em
uma ação de mandado de segurança não havia sido citado para integrar o litígio, havendo decidido que não
eralícito impedir que o terceiro participasse do devido processo legal, ou seja, ele reconheceu que o processo
exige que o beneficiário ou afetado, pelo ato impugnado, seja chamado ao feito (artigo 47 do Código de
Processo Civil brasileiro). E, não se observando esta regraprocedimental, o feito devia ser anulado a partir
daquele momento.” (Devido processo legal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p. 201).
118
SILVA, José Afonso. Prefácio. In: Castro, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios
da razoabilidade e da proporcionalidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. Prefácio.
55

como preceitos desdobrados nos incisos do art. 5º, é uma forma de enfatizar a importância
dessas garantias, norteando a Administração Pública para que possa aplicar a cláusula sem
maiores indagações.119
Essa lição é de suma importância para o nosso estudo, uma vez que, ao analisarmos os
demais princípios constitucionais nos itens e capítulos seguintes, trabalharemos os demais
princípios e garantias constitucionais não de forma autônoma, mas como concretizadores do
devido processo legal.

2.4.1.3 Devido processo legal processual e devido processo legal substancial

O princípio do devido processo legal relaciona-se não apenas com o princípio da


legalidade, mas também com a legitimidade, uma vez que o devido processo legal é aquele
estruturado mediante o qual se faz presente a legitimidade da jurisdição, entendida jurisdição
como poder, função e atividade.
Para Cândido Rangel Dinamarco, a Constituição teve os seguintes objetivos ao adotar
expressamente a cláusula do devido processo legal:

[...] (i) pôr esses valores sob a guarda dos juízes, não podendo eles ser atingidos por
atos não-jurisdicionais do Estado; [...] (ii) proclamar a autolimitação do Estado no
exercício da própria jurisdição, no sentido de que a promessa de exercê-la será
cumprida com as limitações contidas nas demais garantias e exigências, sempre
segundo os padrões democráticos da República brasileira.120

Ainda para esse autor, quanto ao devido processo legal,

[...] importa ainda reafirmação da garantia de igualdade entre as partes e necessidade


de manter a imparcialidade do juiz, inclusive pela preservação do juiz natural. Ela
tem também o significado de mandar que a igualdade em oportunidades processuais
se projete na participação efetivamente franqueada aos litigantes e praticada pelo
juiz (garantia do contraditório, art.5, inc.LV) [...]. Absorve igualmente a regra de
que as decisões judiciárias não motivadas ou insuficientemente imotivadas serão
nulas e, portanto incapazes de prevalecer (a exigência de motivação: Const., art. 93,
inc. IX [...]) e a de que, com as naturais ressalvas destinadas à preservação da ordem
pública e da intimidade pessoal, os atos processuais deverão ser dotados de
publicidade [...]121

________________________
119
In: Princípios do processo na Constituição Federal: processo civil, penal e administrativo. 11. ed. rev., ampl.
e atual. com as novas súmulas do STF (simples e vinculantes) e com análise sobre a relativização da coisa
julgada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 91.
120
Instituições de direito processual civil. v. I. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 249.
121
Instituições de direito processual civil. v. I. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 250.
56

A doutrina, nacional e estrangeira, usualmente divide o devido processo legal em duas


espécies: substancial e processual.
O devido processo processual é o princípio empregado em sua acepção estrita,
referindo-se tanto ao processo judicial quanto ao processo administrativo, assegurando-se ao
litigante vários direitos no âmbito do processo, a exemplo dos direitos à citação, à
comunicação eficiente acerca dos fundamentos da instauração do processo do qual é uma das
partes, o direito de ser informado da acusação da qual é imputado, à ampla defesa, à defesa
oral, à apresentação de provas na defesa de seus interesses, a ter um defensor legalmente
habilitado (advogado), ao contraditório, à contra-argumentação mediante as provas arroladas
pela outra parte (inclusive quando se tratar de prova testemunhal), ao juiz natural, a
julgamento público mediante provas lícitas, à imparcialidade do juiz, a uma sentença
fundamentada, ao duplo grau de jurisdição e à coisa julgada.
Paulo Fernando Silveira explica o que se pode entender como devido processual legal
processual:

[...] refere-se à maneira pela qual a lei, o regulamento, o ato administrativo ou a


ordem judicial são executados. Verifica-se, apenas, se o procedimento empregado
por aqueles que estão incumbidos da aplicação da lei, ou do regulamento, viola o
devido processo legal, sem se cogitar da substância do ato. Em outras palavras,
refere-se ao conjunto de procedimentos (como informar alguém do crime de que está
sendo acusado, ou seu direito de consultar advogado), que devem ser aplicados
sempre que de alguém for retirada alguma liberdade básica [...]122

Com efeito, a garantia do devido processo legal na sua acepção processual é um


continente de diversos direitos. Assim, aquele princípio estará atendido se ao jurisdicionado
forem asseguradas as garantias fundamentais do processo.
O devido processo legal substancial considera o direito material e requer uma
produção legislativa com razoabilidade, quer dizer, as leis devem satisfazer ao interesse
público, aos anseios do grupo social a que se destinam.
Para o doutrinador norte-americano Charles Cole,

O conceito de devido processo substantivo é uma teoria pela qual o governo é


limitado quanto ao modo pelo qual ele pode afetar a vida, liberdade ou patrimônio
de alguém, com o conceito estabelecendo limitações substantivas à autoridade
regulamentadora governamental. Essencialmente, o devido processo substantivo é
uma teoria pela qual o judiciário olhará para a substância das leis para ver se o poder

________________________
122
SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 201.
57

legislativo excedeu em sua autoridade. Assim sendo, o devido processo substantivo


é o conceito pelo qual o judiciário revê com independência a legislação para
determinar se o governo usou os meios apropriados, i. e., se a legislação promulgada
tem uma relação razoável com um fim governamental legítimo.123

Trata-se, assim, do princípio da razoabilidade que procura garantir ao cidadão a


inafastável elaboração legislativa comprometida com os reais interesses sociais, vale dizer, a
produção de leis razoáveis.124
Luís Roberto Barroso explica:125

Na primeira fase, a cláusula teve caráter puramente processual (procedural due


process), abrigando garantias voltadas, de início, para o processo penal e que
incluíam os direitos de citação, ampla defesa, contraditório e recursos. Na segunda
fase, o devido processo legal passou a ter um alcance substantivo (substantive due
process), por via do qual o Judiciário passou a desempenhar determinados controles
de mérito sobre o exercício da discricionariedade pelo Legislador e os fins visados,
bem como na legitimidade dos fins.

Com efeito, a lei que contenha direitos e normas que devam ser respeitadas em um
devido processo devem ser geradas de forma legítima e cumprindo com as regras
parlamentares, conforme o ordenamento constitucional, entregando ferramentas de proteção a
essas garantias.
Ademais, conforme registra Carlos Roberto de Siqueira Castro, essa nova concepção
do devido processo legal também realçou o papel do Poder Judiciário:

Inaugura-se, aí, a era do governo dos Juízes, com os Tribunais assumindo um papel
de censor da vida social, política e econômica da nação. O abandono da visão
estritamente processualista da cogitada garantia constitucional (procedural due
process) e o início da fase substantiva na evolução desse instituto (substantive due
process) retrata a entrada em cena de Judiciário como árbitro autorizado e final das
relações de governo como a sociedade civil, revelando o seu papel de protagonista e
igualmente substantivo no seio das instituições governativas. A dialética do poder e
as metafísicas questões do direito público encontram, enfim, no plano institucional,
a autoridade dotada de prerrogativa decisória (do final enforcing power) e revestida

________________________
123
COLE, Charles D. O devido processo legal na cultura jurídica dos Estados Unidos: passado, presente e futuro.
Tradução de Maria Cristina Zucchi. Revista da Associação de Juízes Federais do Brasil, ano 16, n. 56, p. 33-
43, 1997.
124
Charles Fried relata o caso Dred Scott v. Sandford (1856), julgado pela Suprema Corte americana,
entendendo esta que uma lei que retira de um cidadão a propriedade sobre seus escravos, pelo fato de levá-los a
outro território, é arbitrária e não razoável, sendo, por conseguinte, violadora do devido processo. O diploma
legal objeto de discussão era uma lei do Território de Missouri, de 1820, que proibia a escravidão e a servidão
involuntária, salvo em caso de punição por crime pelo qual a parte tenha sido regularmente condenada.
(FRIED, Charles. Saying what the law is: the Constitution in the Supreme Court. Cambridge: Harvard
University Press, 2004, p 172.)
125
Curso de Direito Constitucional contemporâneo: os conceitos e a construção do novo modelo. São Paulo:
Saraiva, 2009, p. 256.
58

dos predicados de intérprete derradeiro do sentido da Constituição: o Poder


Judiciário.126

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal127 é pacífica no sentido de que a


Constituição Federal de 1988 consagra o devido processo legal nos seus dois aspectos,
substantivo e processual, conforme se depreende do voto do Ministro Celso de Mello no
julgamento do Recurso Extraordinário nº 374.981:

Não se pode perder de perspectiva, neste ponto, em face do conteúdo evidentemente


arbitrário da exigência estatal ora questionada na presente sede recursal, o fato de
que, especialmente quando se tratar de matéria tributária, impõe-se, ao Estado, no
processo de elaboração das leis, a observância do necessário coeficiente de
razoabilidade, pois, como se sabe, todas as normas emanadas do Poder Público
devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do
"substantive due process of law" (CF, art. 5º, LIV), eis que, no tema em questão, o
postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria
constitucionalidade material dos atos estatais, consoante tem proclamado a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 160/140-141 - RTJ 178/22-24,
v.g.): "O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está
necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que,
encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos
normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da
proporcionalidade - que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas
constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive due
process of law - acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder
Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição
da própria constitucionalidade material dos atos estatais. A norma estatal, que não
veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da
proporcionalidade, ajustando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material,
o princípio do substantive due process of law (CF, art. 5º, LIV). Essa cláusula
tutelar, ao inibir os efeitos prejudiciais decorrentes do abuso de poder legislativo,
enfatiza a noção de que a prerrogativa de legislar outorgada ao Estado constitui
atribuição jurídica essencialmente limitada, ainda que o momento de abstrata
instauração normativa possa repousar em juízo meramente político ou discricionário
do legislador." (RTJ 176/578-580, Rel. Min. Celso de Mello).128

________________________
126
A Constituição aberta e os direitos fundamentais: ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e
comunitário. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 80.
127
Para Sérgio Mattos, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o devido processo legal substancial é
ampla e vaga. Diz este autor que “segundo a jurisprudência do STF, devido processo legal pode significar
desde a proibição de ‘leis que se apresentem de tal forma aberrante da razão’, passando pela exigência ‘de
que as leis devem ser elaboradas com justiça, devem ser dotadas de razoabilidade (’resonablenesss) e de
racionalidade (‘rationality’), devem guardar, segundo W. Holmes, um real e substancial nexo com o objetivo
que se quer atingir’, até a necessidade de ‘perquirir-se [...] se, em face do conflito entre bens constitucionais
contrapostos, o ato impugnado afigura-se adequado (isto é, apto a produzir o resultado desejado), necessário
(isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (ou
seja, se estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do
princípio contraposto”. (MATTOS, Sérgio Luis Wetzel de. Devido processo legal e proteção de direitos.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 97.)
128
Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira cita dois julgados do Supremo Tribunal Federal, anteriores à vigência
da Constituição Federal de 1988, nos quais aquela Corte de Justiça entendeu que a Lei injusta não era
inconstitucional: Agravo de Instrumento n. 19.747/DF, Primeira Turma, Relator Luiz Gallotti, J. 11/09/1958,
v.u; e STF, Primeira Turma, Recurso Extraordinário n. 47.588/Guanabara, Primeira Turma, Relator Ministro
Luiz Gallotti, j. 27/07/1961, v.u. O Devido Processo Legal Substantivo e o Supremo Tribunal Federal nos 15
59

O devido processo legal processual e substancial representa, por todo o exposto, o


núcleo central não da relativização, mas da integração do binômio direito e processo e procura
dar o máximo de eficácia às normas constitucionais para a efetivação do controle dos atos de
poder e da igualdade substancial das partes no processo.129
Com efeito, a corrente substancial não deixa de considerar o fato de que a garantia do
devido processo deve ter um conteúdo de direitos fundamentais básicos para o
desenvolvimento de um juízo justo. A grande diferença com a processual radica no fato de
que a substancial não entende como objeto do devido processo essa gama de direitos, mas a
garantia do devido processo como a justiça em si mesma.130

2.4.2 Garantia à assistência jurídica gratuita

Narra o jornalista americano Anthony Lewis, no livro Gideon’s Trumpet – que a


editora Forense traduziu e editou, em 1966, “A Trombeta de Gedeão” –, que Gideon,
condenado por um tribunal da Flórida, escreveu uma carta à Corte Suprema relatando que fora
condenado porque não teve dinheiro para pagar um advogado e o Estado não o pôde fazer. A
Corte tomou em consideração a carta de Gideon e instaurou o caso conhecido como Gideon
versus Wainwrigth, indicando o advogado Abe Fortas para representar o autor. No dia 18 de
março de 1963, a Corte Suprema anunciou sua histórica decisão: os juízes, por unanimidade,
revogaram a jurisprudência então vigente e determinaram que, daí para a frente, a 14ª Emenda
assegurava que acusados deveriam ser defendidos por advogado. É que a defesa tem aspectos
técnicos e científicos que somente um profissional do Direito, um advogado, é capaz de
compreender e realizar.131
A Constituição Federal de 1988 garante, no art. 5º, inc. LXXIV, que “o Estado
prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de

________________________
anos da Constituição Federal. Revista Jurídica virtual do Palácio do Planalto. Vol. 3, nº. 60, Brasília, maio de
2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 23 ago. 2014.
129
LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Devido Processo legal substancial. Disponível em:
<www.abdc.org.br>. Acesso em: 1 nov. 2014.
130
Eduardo Coutoure , se refere a esta garantia como “...de orden estrictamente procesal, que ha venido a
transformarse, com el andar del tiempo, em el símbolo de la garantia jurisdicional em sí misma. La garantía de
debido proceso consiste, en último término, en no ser privado de la vida, libertad o propiedad sin la garantía
que supone la tramitación de um processo desenvuelto em la forma que estabelece la ley y de una ley dotada de
todas lasgarantías del proceso parlamentário.” In: Estudio de DerechoProcesal Civil. Tomo I. 3° ed. Buenos
Aires, 1989, pág. 78.
131
Supremo Tribunal Federal, Mandado de Segurança nº 21.360/DF, julgado em12 de março de 1992, trecho do
voto proferido pelo Ministro Carlos Velloso.
60

recursos”. Regra semelhante consta das garantias judiciais do artigo 8.2.d132 da Convenção
Americana de Direitos Humanos.
Ao contrário do que se possa inferir à primeira vista, essa regra constitucional não se
aplica apenas aos processos desenvolvidos em juízo, mas a todos que possam acarretar
prejuízos aos interesses do sujeito; isso significa dizer que o agente público submetido a um
processo administrativo disciplinar tem direito a assistência jurídica integral prestada pelo
Estado na defesa dos seus interesses, desde que comprove insuficiência de recursos para
constituir advogado.133 Esse preceito constitucional guarda estreita relação com o direito à
ampla defesa, pois supõe uma limitação àquele por causas alheias à vontade do acusado
(insuficiência de recursos), com um consequente prejuízo aos seus direitos e interesses, sendo
por isso uma situação contrária à essência do processo.
Dissertando sobre a questão, leciona José Carlos Barbosa Moreira:

A grande novidade trazida pala Carta de 1988 consiste em que, para ambas as
ordens de providências, o campo de atuação já não se delimita em função do atributo
‘judiciário’, mas passa a compreender tudo que seja ‘jurídico’. A mudança do
adjetivo qualificador da ‘assistência’, reforçada pelo acréscimo do ‘integral’,
importa em notável ampliação do universo que se quer cobrir. Os necessitados
fazem jus agora à dispensa de pagamentos e à prestação de serviços não apenas na
esfera judicial, mas em todo o campo dos atos jurídicos. Incluem-se também na
franquia: a instauração e movimentação de processos administrativos, perante
quaisquer órgãos públicos, em todos os níveis; os atos notariais e quaisquer outros
de natureza jurídica, praticados extrajudicialmente; a prestação de serviços de
consultoria, ou seja, de informação e aconselhamento em assuntos jurídicos.134

Essa garantia constitucional não foi mitigada pela Súmula Vinculante 5, do Supremo
Tribunal Federal, cujo texto afirma que “A falta de defesa técnica por advogado no processo
administrativo disciplinar não ofende a Constituição.”

________________________
132
“direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de
comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor”.
133
No art. 1º da Lei Complementar nº 80, de 12/01/94, com redação dada pela Lei Complementar nº 132, de
2009, que organizou a Defensoria Pública da União nos Estados e nos Territórios, lê-se: “Art. 1º A Defensoria
Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão
e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos
humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma
integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição
Federal.” (destaques nossos). O art. 9º, IX, da Lei nº 988/06, que organizou a Defensoria Pública do Estado de
São Paulo é ainda mais explicito ao prever que entre as atribuições da Defensoria “assegurar aos necessitados,
em processo judicial ou administrativo, o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes”. (Grifos nossos).
134
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O direito à assistência jurídica: evolução no ordenamento brasileiro de
nosso tempo. Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, Rio de Janeiro, ano VI, n. 3, p. 197-211, 1º
semestre de 1992, p. 205.
61

Deve este verbete ser interpretado no sentido de que a ausência de advogado


constituído ou defensor dativo com habilitação, por si só, não importa em nulidade do
processo administrativo disciplinar, o que não elimina o direito de o acusado constituir
advogado ou, na ausência de recursos para fazê-lo, valer-se do dispositivo constitucional da
assistência jurídica integral. O que o verbete da Súmula coíbe é que o acusado, devidamente
intimado, permaneça inerte – não se defendendo diretamente, não constituindo advogado e
nem procurando a assistência jurídica do Estado –, esperando por uma nulidade futura.
Este, aliás, foi o entendimento expressado pelo Ministro Cézar Peluso ao consignar
que, caso o servidor não tenha condições de contratar um advogado para defendê-lo, deve
invocar a garantia constitucional que obriga o Estado a prestar assistência jurídica integral e
gratuita – integral no sentido de que apanha também a esfera administrativa.135

2.4.3 Princípio do juiz natural

A Constituição de 1988 prevê, no art. 5º, inc. LIII, que “ninguém será processado nem
sentenciado senão pela autoridade competente”.136 Regra semelhante está positivada na
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica):

“Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um
prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial,
estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal
formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter
civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.”137 (Grifos nossos).

Assim, ambas as regras consagram o princípio do Juiz natural.


Leciona Claudio Roza que

[...] o juiz natural é o que tem a competência abstratamente prevista, conforme a


Constituição, estabelecida antes da ocorrência do fato a ser colocado sob
julgamento. Desrespeita-se o princípio do juiz natural, quando forem instituídos
tribunais de exceção à regra predeterminada, criados post facto, instituídos ad
hoc para o fato em particular, concretamente determinado, que ensejam julgamentos
emitidos de modo que possam prejudicar ou favorecer pessoas ou interesses.138

________________________
135
Voto proferido no julgamento do Recurso Extraordinário nº 434059, o qual deu origem à SV 5. O relator foi o
Ministro Gilmar Mendes.
136
É possível se extrair esta garantia do Juiz natural também do no art. 5º, inc. XXXVII, que “não haverá juízo
ou tribunal de exceção.”
137
Artigo 8, I.
138
Processo Administrativo Disciplinar e comissões sob encomenda. Curitiba: Juruá, 2006, p. 69.
62

Aponta a doutrina que o princípio do juiz natural se aplica a qualquer processo civil,
penal ou administrativo, incluindo, por óbvio, sua espécie objeto do nosso estudo, o
disciplinar.139
Anota Angélica Arruda Alvim que “a cláusula inserta no inc. LIII do art. 5º não
distingue entre processo judicial e administrativo, sendo lícito concluir, portanto, que abrange
as duas hipóteses, abrangendo, por conseguinte, as autoridades administrativas, quando se
trate de procedimentos administrativos”.140
Para Nelson Nery Jr., no processo administrativo disciplinar, esse princípio garante
que “o servidor seja punido por ato de autoridade competente, entendida aqui como sendo
aquela a quem o servidor deva subordinação hierárquica e funcional, irrelevante esteja ele
prestando serviços à outra autoridade”.141
No âmbito do Poder Executivo Federal, a aplicação desse princípio é controversa. A
instauração e o julgamento se fazem por autoridade competente e previamente estabelecida
antes dos fatos, de modo que se pode afirmar que nessa fase há obediência ao princípio do
Juiz natural.
Nesse aspecto, discordamos da doutrina que afirma que a autoridade instauradora
funciona como acusadora e julgadora,142 uma vez que a instauração não implica acusação,
mas um mero ato de designação da comissão processante, sem relação com os fatos. Com
efeito, quem atua como acusador, na verdade, é a comissão processante. Some-se a isso o fato
de a autoridade julgadora não estar obrigada a acatar o relatório elaborado pela comissão
processante.143

________________________
139
Como anotamos no Capítulo I, a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos assentou que
todas as garantias previstas no art. 8 são aplicáveis aos processos administrativos disciplinares.
140
Princípios constitucionais do processo. Revista do Processo, São Paulo, n.74, abr./jun. 1994, p. 35.
141
Princípios do processo na Constituição Federal: Processo Civil, Penal e Administrativo. 9. ed. São Paulo:
RT, 2009, p. 130.
142
Anota Romeu Felipe Bacellar Filho que “o agente administrativo acusador não pode decidir o processo
administrativo disciplinar. Entretanto, a Lei 8112/90 deixa aberta a possibilidade da autoridade instauradora do
processo disciplinar julgar os recursos interpostos contra decisões da Comissão na fase instrutória (art. 107, da
Lei 8112/90) ou decidir ao final do processo (art. 166, da Lei 8112/90). Há infringência direta ao princípio do
juiz natural pois, objetivamente, o ofício da tese não pode ser confundido com o ofício da síntese;
subjetivamente, porque quem acusa não pode decidir”. (Princípios constitucionais do processo. Revista do
Processo, São Paulo, n. 74, abr./jun. 1994, p. 48).
143
Art. 168, da Lei nº 8.112/90: “O julgamento acatará o relatório da comissão, salvo quando contrário às provas
dos autos. Parágrafo único. Quando o relatório da comissão contrariar as provas dos autos, a autoridade
julgadora poderá, motivadamente, agravar a penalidade proposta, abrandá-la ou isentar o servidor de
responsabilidade.”
63

Contudo, a instrução processual que vai da instalação da comissão até o relatório final
é realizada por comissão ad hoc, designada discricionariamente pela autoridade competente,
posteriormente aos fatos. Neste ponto, é flagrante a ofensa ao princípio do juiz natural.
Leciona Romeu Felipe Bacellar:

Nesta seara, é de duvidosa inconstitucionalidade a previsão de Comissões


provisórias pela Lei 8.112/90. Nesse caso, a investidura de seus componentes é
posterior ao fato tido por irregular (art. 149), tendo-se, aqui, verdadeiro Tribunal de
Exceção. A Lei prevê a possibilidade de criação de um juízo posterior ao fato e
especialmente designado para a resolução de um caso concreto. De outro lado, não
há nenhuma regra objetiva para a “escolha” dos membros da Comissão, remetendo-
se este encargo ao puro “arbítrio” da autoridade competente para a instauração do
“processo disciplinar” ou da “sindicância” [...] abre-se perniciosa possibilidade da
designação dos membros direcionar-se para a condenação ou absolvição. O risco de
pré-julgamento é evidente, capaz de tornar ilusórios os efeitos de participação do
servidor acusado. O juiz acidental, ao contrário do permanente, gera presunção de
parcialidade.
[...]
Já é tempo das comissões serem designadas em caráter permanente e a investidura
de seus componentes antecederem ao acontecimento tido por irregular. Esta
providência, compatível com o princípio do juiz natural, a um lado diminuiria a
suscitação de impedimentos e suspeições e, por outro lado, evitaria as designações
dirigidas com o intuito preconcebido de punir ou absolver.144

Apesar das críticas doutrinárias, o Supremo Tribunal Federal tem decidido no sentido
de que a designação de comissão disciplinar posteriormente ao fato, por si só, não configura
violação do princípio do juiz natural, pois à autoridade se impõe a apuração somente a partir
da ciência de irregularidade, conforme o art. 143 da Lei nº 8.112/90.
Eis a ementa do julgado:

Recurso ordinário em mandado de segurança. Agente da Polícia Federal. Processo


administrativo disciplinar. Vício de incompetência da autoridade para
instaurar processo e para designar membros da comissão processante. Não
ocorrência. Possibilidade de delegação de competência. Recurso não provido. 1.
Delegação de competência para designar os membros de
comissão disciplinar amparada na legislação pátria, na medida em que não há
ressalva legal apta a impedi-la, além de ser evidente que a designação combatida não
se caracteriza como exclusiva (arts. 11, 12 e 13 da Lei nº 9.784/99). Precedente. O
Decreto nº 73.332/72 não extrapola os limites impostos pela Lei nº 4.878/65. Não
ocorrência de abuso do poder regulamentar. 2. A designação de comissão
disciplinar posteriormente ao fato, por si só, não configura violação do
princípio do juiz natural, pois à autoridade se impõe a apuração somente a
partir da ciência de irregularidade, conforme o art. 143 da Lei nº 8.112/90. Não
se faz evidente nos autos eletrônicos qualquer prejuízo à defesa do recorrente que

________________________
144
Princípios constitucionais do processo administrativo disciplinar. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 313,
314.
64

imponha o reconhecimento da nulidade por afronta ao disposto no § 2º do art. 53 da


Lei nº 4.878/65. 3. Recurso não provido. (Grifos nossos).145

Contudo, reconhecem o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça


que, caso haja no órgão comissão disciplinar permanente, como no caso dos policiais civis da
União e do Distrito Federal,146 a designação de comissão ad hoc fere o princípio do juiz
natural.
Neste sentido:

MANDADO DE SEGURANÇA. DELEGADO DA POLÍCIA FEDERAL.


PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. COMISSÃO PROCESSANTE
AD HOC. IMPOSSIBILIDADE. INOBSERVÂNCIA DO ART. 53, § 1º, DA LEI
N. 4.878/1965. NULIDADE.
1. A instauração de comissão provisória, nas hipóteses em que a legislação de
regência prevê expressamente que as transgressões disciplinares serão apuradas por
comissão permanente, inquina de nulidade o respectivo processo administrativo por
inobservância dos princípios da legalidade e do juiz natural (MS n. 10.585/DF,
Ministro Paulo Gallotti, Terceira Seção, DJ 26/2/2007). 2. Segurança concedida.147

Com efeito, é possível afirmar, malgrado a jurisprudência do Supremo Tribunal


Federal, que o princípio do juiz natural não vem sendo observado no que concerne às
comissões temporárias (ad hoc) previstas na Lei nº 8.112/90, em afronta ao disposto no artigo
5º, incisos XXXVII e LIII da Constituição Federal, bem como do artigo 8, I da Convenção
Americana para os Direitos Humanos.

________________________
145
Recurso ordinário em Mandado de Segurança nº 31207/DF, Relator Ministro Dias Toffoli. Julgado em
18.12.2012.
146
Lei nº 4878/65: “Art. 53. Ressalvada a iniciativa das autoridades que lhe são hierarquicamente superiores,
compete ao Diretor-Geral do Departamento Federal de Segurança Pública, ao Secretário de Segurança
Pública do Distrito Federal e aos Delegados Regionais nos Estados, a instauração do processo disciplinar. §
1º Promoverá o processo disciplinar uma Comissão Permanente de Disciplina, composta de três membros de
preferência bacharéis em Direito, designada pelo Diretor-Geral do Departamento Federal de Segurança
Pública ou pelo Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, conforme o caso.§ 2º Haverá até três
Comissões Permanentes de Disciplina na sede do Departamento Federal de Segurança Pública e na da
Polícia do Distrito Federal e uma em cada Delegacia Regional.§ 3º Caberá ao Diretor-Geral do
Departamento Federal de Segurança Pública a designação dos membros das Comissões Permanentes de
Disciplina na sede da repartição e nas Delegacias Regionais mediante indicação dos respectivos Delegados
Regionais.§ 4º Ao Secretário de Segurança Pública do Distrito Federal compete designar as
ComissõesPermanentes de Disciplina da Polícia do Distrito Federal”. (Grifos nossos). Este artigo foi
regulamentado pelo Decreto nº 59.310/66, o qual, em seu §1º prevê que Os membros das Comissões
Permanentes de Disciplina terão o mandato de seis meses, prorrogável pelo tempo necessário à ultimação dos
processos disciplinares que se encontrem em fase de indicação, cabendo o estudo dos demais aos novos
membros que forem designados.
147
Mandado de Segurança nº 13148/DF, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, julgado em 23.05.2012.
65

2.4.4 Direito a razoável duração do processo

2.4.4.1 Origem

A preocupação com a lentidão da administração da justiça não é nova. Dizia Ruy


Barbosa que “justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”.148 Para
Alcalá-Zamora, “a excessiva duração dos litígios constitui um dos maiores e mais velhos
males da administração da justiça.”149 Na Magna Carta Libertatum de 1215, o rei inglês se
comprometia a não denegar nem retardar direito e justiça.150 Em tempos mais modernos, o
problema foi preocupação da ciência jurídico-penal desde suas primeiras e embrionárias
manifestações. Beccaria, em 1764, afirmou que o processo deve terminar no mais breve
espaço de tempo possível, pois, quanto mais pronta e próxima do delito cometido seja a pena,
será mais justa, já que, sendo uma pena a privação da liberdade, não pode preceder à
sentença.151 Também Shakespeare, em sua talvez mais famosa passagem, colocou na boca de
Hamlet a lentidão dos tribunais entre as causas que podem aniquilar um homem.152
Uma das primeiras manifestações expressas desse princípio está na Declaração de
Direitos da Virgínia, de 1776, na qual ficou consignado que toda pessoa submetida a um
processo penal tem direto a uma sentença rápida perante um juiz imparcial (Seção 8ª). Esse
direito foi positivado na Constituição dos Estados Unidos por meio da 6ª Emenda nos
seguintes termos: “Em todos os juízos penais o acusado gozará do direito a um processo
rápido.”
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral
das Nações Unidas em 1948, embora tenha positivado direitos básicos de todo acusado, não
contemplou esse direito fundamental. Contudo, a Declaração Americana dos Direitos e
Deveres do Homem estabeleceu em seu artigo 25 que todo indivíduo que tenha sido privado
de sua liberdade tem direito a ser julgado sem dilações injustificadas.153

________________________
148
Oração aos moços. 6. ed. Rio de Janeiro: Simões, 1957, p. 61.
149
ALCALÁ-ZAMORA Y CASTILLO, Niceto. Estampas procesales de la literatura española. Buenos Aires:
Ejea, 1961, p. 62.
150
Na versão em inglês: “to no one we will sell, to no one deny or delay right or justice”. A regra não levava
numero originalmente. Atulamente é o artigo/capítulo 40 na maioria das edições e traduções. Seguimos aqui o
texto de PELÁEZ, Mariano Daranas. Las constituciones europeas. Madrid: Editora Nacional, 1979, t. I, p. 925.
151
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 12 e ss.
152
Ato Terceiro: The law’s delay.
153
Art. XXV: “Todo indivíduo, que tenha sido privado da sua liberdade, tem o direito de que o juiz verifique sem
demora a legalidade da medida, e de que o julgue sem protelação injustificada, ou, no caso contrário, de ser posto
em liberdade. Tem também direito a um tratamento humano durante o tempo em que o privarem da sua
liberdade.”
66

O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU, de 1966 (incorporado ao


ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992), também
regulou esse direito fundamental do acusado nos artigos 9.3154 e 14.3.155
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica)
estabeleceu:

Toda pessoa detida ou retida deve ser informada das razões da detenção e notificada,
sem demora, da acusação ou das acusações formuladas contra ela (art. 7.4) [...] toda
pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um
juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito
de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que
prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem
o seu comparecimento em juízo (art. 7.5) [...] Toda pessoa terá o direito de ser
ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou
Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei,
na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação
de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra
natureza (artigo 8.1).156

No Brasil, esse direito fundamental foi inserido na Constituição Federal por meio da
Emenda Constitucional 45/04, no rol dos Direitos e Garantias Fundamentais, inciso LXXVIII:
“a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do
processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.157
Essa emenda, conhecida como Reforma do Poder Judiciário, buscou corrigir a notória
morosidade da tramitação dos processos judiciais e administrativos no Brasil, admitida,
inclusive, pelos próprios membros do Poder Judiciário.

________________________
154
Art. 9.3: “Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem
demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito
de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam
julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que
assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário
for, para a execução da sentença.”
155
Art. 14.3. c: “De ser julgado sem dilações indevidas.”
156
Esta Convenção seguiu o modelo da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das
Liberdades fundamentais de 1950, que diz textualmente: “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja
examinada eqüitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial,
estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de caráter
civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela (6, a).”
157
No Direito Comparado, várias constituições incluem expressamente o direito do acusado a um processo penal
rápido. A Constituição do Canadá estabelece que toda pessoa acusada de delito tem direito a ser julgada dentro
de um prazo razoável (art. 11.b); a constituição do México prescreve prazos máximos entre 4 (quatro) meses e
1 (um) ano para a duração de processos penais (art. 20, VIII); segundo a Constituição do Japão o acusado tem
direito a uma decisão rápida e pública perante um tribunal imparcial (art. 37); a Constituição de Portugal
dispõe que o acusado deve ser julgado tão rapidamente quanto compatível com salvaguarda do exercício de
sua defesa (art. 32.2); a Constituição espanhola outorga a todas as pessoas o direito a um processo público sem
dilações indevidas (art. 24.2); por último, a Constituição italiana estabelece que a lei deve assegurar a duração
razoável do processo (art. 111).
67

No ano de 2000, o Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo


(IDESP) entrevistou 738 (setecentos e trinta e oito) juízes, de 11 Estados da Federação e do
Distrito Federal, atuantes no primeiro e segundo graus de jurisdição Estadual, Federal e do
Trabalho, com enfoque especial na tramitação processual. Para 74,6% dos entrevistados, o
Poder Judiciário é ineficiente e moroso, sobretudo por questões de ineficiência
administrativa.158
Mesmo antes da Emenda supracitada, a doutrina e a jurisprudência já reconheciam a
existência desse direito fundamental com decorrência da cláusula do devido processo legal e
do princípio da eficiência.
Leciona André Ramos Tavares:

Enfatiza-se, aqui, que tais direitos são inovações meramente formais, na exata
medida em que poderia encontrá-los no princípio mais genérico do ‘devido processo
legal’. Neste grau, pois, é possível considerar a inserção do inciso LXXVIII, pela
novel Reforma, como repetição e especificação desnecessárias (talvez admissíveis
numa cultura de massificação). Se todos têm direito a um devido processo legal, está
nele inerente a necessidade de um processo com duração razoável, pela abertura
conceitual daquela garantia plasmada constitucionalmente, conforme dito acima.159

Ao comentar a Lei nº 9.784/99, José dos Santos Carvalho Filho afirma que a
celeridade na tramitação do processo é um dos desdobramentos do princípio constitucional da
eficiência.

No processo administrativo, o princípio da eficiência há de consistir na adoção de


mecanismos mais céleres e mais convincentes para que a Administração possa
alcançar efetivamente o fim perseguido através de todo o procedimento adotado.
Exemplificamos com o aspecto relativo à produção de provas (arts. 29 a 47). É
necessário dar cunho de celeridade e eficiência nessa fase, com a utilização de
computadores, com a obtenção de documentos pelas modernas vias da informática e,
por que não dizer, por gravações de depoimentos para minorar o gasto do tempo que
ocorre nessas ocasiões.

________________________
158
PINHEIRO, Armando Castelar. O judiciário e a economia na visão dos magistrados. In: Tribunal de Alçada
Criminal do Estado de São Paulo. Os Juízes e a Reforma do Judiciário, São Paulo: CETAC, 2001, p. 51.
159
Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 706. No mesmo sentido, a lição do
Ministro Celso de Mello: “O exame da garantia constitucional do "due process of law" permite nela identificar,
em seu conteúdo material, alguns elementos essenciais à sua própria configuração, dentre os quais avultam, por
sua inquestionável importância, as seguintes prerrogativas; (a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder
Judiciário); (b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação; (c) direito a um julgamento
público e célere, sem dilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à
autodefesa e à defesa técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis "ex post facto"; (f)
direito à igualdade entre as partes; (g) direito de não ser processado com fundamentos em provas revestidas de
ilicitude; (h) direito ao benefício da gratuidade; (i) direito à observância do princípio do juiz natural; (j) direito
ao silêncio (privilégio contra a auto-incriminação); e (l) direito à prova.”(Supremo Tribunal Federal, Mandado
de Segurança 26358 MC/DF, relator Ministro Celso de Mello, publicado em 2/03/2007, grifos nossos).
68

A eficiência é, pois, antônimo de morosidade, lentidão, desídia. A sociedade de há


muito deseja rapidez na solução das questões e dos litígios, e para tanto cumpre
administrar o processo administrativo com eficiência.160

No mesmo sentido, pronunciou-se o Superior Tribunal de Justiça, em julgamento


realizado antes da Emenda Constitucional 45/04:

ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ANISTIA POLÍTICA.


ATO OMISSIVO DO MINISTRO DE ESTADO ANTE À AUSÊNCIA DE
EDIÇÃO DA PORTARIA PREVISTA NO § 2º DO ART. 3º DA LEI 10.559⁄2002.
PRAZO DE SESSENTA DIAS. PRECEDENTE DO STJ. CONCESSÃO DA
ORDEM.
1. O art. 10 da Lei n.º 10.559⁄2002 outorga competência única e exclusiva ao
Ministro de Estado da Justiça para decidir a respeito dos requerimentos em que se
postulam o reconhecimento de anistia política, podendo, para esse fim, utilizar-se,
para formar sua convicção, de parecer fornecido pela Comissão de Anistia de que
trata o art. 12. Exsurge claro que a Autoridade ora impetrada não está vinculada à
manifestação da referida Comissão, podendo, inclusive, dela discordar; por ser esta
instituída tão-somente para assessorar-lhe, servindo apenas como órgão consultivo.
2. Nada impede que o Ministro da Justiça venha a requerer novos esclarecimentos da
própria Comissão de Anistia ou consultar outros órgãos de assessoramento que
estejam ao seu alcance para solucionar questões que envolvam aspectos de
oportunidade ou certificar-se a respeito de possíveis divergências jurídicas.
3. Entretanto, em face do princípio da eficiência (art. 37, caput, da Constituição
Federal), não se pode permitir que a Administração Pública postergue,
indefinidamente, a conclusão de procedimento administrativo, sendo necessário
resgatar a devida celeridade, característica de processos urgentes, ajuizados com a
finalidade de reparar injustiça outrora perpetrada. Na hipótese, já decorrido tempo
suficiente para o cumprimento das providências pertinentes – quase dois anos do
parecer da Comissão de Anistia –, tem-se como razoável a fixação do prazo de 60
(sessenta) dias para que o Ministro de Estado da Justiça profira decisão final no
Processo Administrativo, como entender de direito. Precedente desta Corte.
4. Ordem parcialmente concedida.161

Para nós, esse princípio já estava em pleno vigor desde a incorporação da Convenção
Americana de Direitos Humanos ao ordenamento jurídico brasileiro.

2.4.4.2 Efetivação do direito

A expressão constitucional “razoável duração”, apesar de encerrar um conceito aberto,


próprio de toda regulação de direitos fundamentais, traz ao menos uma precisão ao

________________________
160
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo Administrativo Federal (Comentários à Lei nº 9.784, de
29/01/1999). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 60-61.
161
Mandado de Segurança nº 9420/DF, Rel. Ministra Laurita Vaz, julgado em 25.08.2004, DJ 06.09.2004. p.
163.
69

estabelecer uma ideia de prazo, conceito determinado com toda exatidão pelo direito
processual.162
Com efeito, é necessário investigar o alcance e as consequências jurídicas da aplicação
desse direito fundamental. Há que se atentar para o fato de que tal direito deve ser conciliado
com as demais garantias processuais, pois “[...] nem sempre o processo rápido traduz
processo justo. Impõe-se abreviá-lo para melhorá-lo, e, não para piorá-lo, sonegando outros
tantos direitos fundamentais a uma das partes ou a ambas.”163
No mesmo sentido, anota José Roberto dos Santos Bedaque:

A grande luta do processualista moderno é contra o tempo. Isso porque, quanto mais
demorar a tutela jurisdicional, maior a probabilidade de a satisfação por ela
proporcionada não ser completa. De outro lado, impossível a entrega imediata da
prestação, pois a verificação de efetiva existência do direito demanda exame
cuidadoso dos fatos alegados, o que não pode ser feito instantaneamente. Talvez o
maior problema enfrentado pelo operador e pelo consumidor do processo seja a
compatibilização entre estes dois valores opostos: a urgência na entrega de tutela e
necessidade de investigação dos fatos constitutivos do direito pleiteado.164

A doutrina e a jurisprudência brasileira têm se inclinado no sentido de que a expressão


“razoável duração” deve ser analisada ante o caso concreto, cabendo ao intérprete, num juízo
de ponderação, concluir se o processo está ou não sendo submetido a um trâmite razoável.
Neste sentido, a lição de Odete Medaur:

Evidente que a palavra “razoável” traz ínsitas as ideias de “equilíbrio”, de


‘ponderação’, de ‘dosagem’, de ‘justo’. Assim, por exemplo, para assuntos simples,
repetitivos ou sobre os quais incidem orientações firmadas, os prazos de tramitação
hão de ser curtos. Para os casos dotados de verdadeira complexidade, o lapso
temporal deve ser mais amplo, mas não infinito.165

Confiram-se, no mesmo sentido, dois julgados do Supremo Tribunal Federal: no


primeiro caso, foi reconhecida ofensa ao princípio constitucional em estudo; no segundo, a
decisão foi pela sua observância – tudo a partir de elementos vagos e imprecisos:

________________________
162
Para José Frederico Marques, "prazo é o espaço de tempo para o ato processual ser praticado". (MARQUES,
José Frederico. Instituições de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1958, v. I, p. 138.)
163
ASSIS, Araken. Duração razoável do processo e reformas da lei processual civil. In: FUX, Luiz; NERY
JÚNIOR, Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Processo e Constituição. Estudos em Homenagem ao
Professor José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: RT, 2006, p. 195-204.
164
Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização). 3. ed. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 114-115.
165
O Princípio da Razoável Duração do Processo. In: MEDAUAR, Odete; SCHIRATO, Vitor Rhein (Coord.).
Atuais Rumos do Processo Administrativo. São Paulo: RT, 2010. p. 100.
70

HABEAS CORPUS. EXCESSO DE PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA.


CARACTERIZAÇÃO. SITUAÇÃO INCOMPATÍVEL COM O PRINCÍPIO
DA RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO (CF, ART. 5º, LXXVIII).
CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. ORDEM CONCEDIDA. 1. A
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é no sentido de que a demora para
conclusão da instrução criminal, como circunstância apta a ensejar constrangimento
ilegal, somente se dá em hipóteses excepcionais, nas quais a mora seja decorrência
de (a) evidente desídia do órgão judicial, (b) exclusiva atuação da parte acusadora,
ou (c) outra situação incompatível com o princípio da razoável duração do
processo, previsto no art. 5º, LXXVIII, da CF/88. Precedentes. 2. No caso,
transcorridos mais de 4 anos sem que o paciente sequer tenha sido levado a
júri, é de se concluir que a manutenção da segregação cautelar representa
situação de constrangimento ilegal. 3. Ordem concedida, para que o paciente seja
posto em liberdade, salvo se por outro motivo estiver preso.166

HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSUAL PENAL. PRISÃO PREVENTIVA.


EXCESSO DE PRAZO. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA RAZOÁVEL
DURAÇÃO DO PROCESSO. NÃO CARACTERIZAÇÃO. COMPLEXIDADE
DA AÇÃO PENAL. INEXISTÊNCIA DE INÉRCIA OU DESÍDIA DO PODER
JUDICIÁRIO. LEGITIMIDADE DOS FUNDAMENTOS DA PRISÃO
PREVENTIVA. GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA.
PERICULOSIDADE DO AGENTE. MODUS OPERANDI. AUSÊNCIA DE
CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM DENEGADA. I – O prazo para
julgamento da ação penal mostra-se dilatado em decorrência da complexidade do
caso, uma vez que o réu e mais três corréus foram denunciados pela prática do crime
de homicídio triplamente qualificado em concurso material com o de furto
privilegiado. Ademais, várias testemunhas residem em comarca diversa daquela
onde tramita o feito, inclusive da defesa, o que demanda a expedição de cartas
precatórias e provoca a dilação dos prazos processuais. II – A jurisprudência desta
Corte é firme no sentido de que não procede a alegação de excesso de prazo
quando a complexidade do feito, as peculiaridades da causa ou a defesa
contribuem para eventual dilação do prazo. Precedentes. III- A prisão cautelar
mostra-se suficientemente motivada para a preservação da ordem pública, tendo em
vista a periculosidade do paciente, verificada pelo modus operandi mediante o qual
foi praticado o delito. Precedentes. IV – Ordem denegada.167

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao apreciar denúncia ofertada pelos


parentes do senhor Damião Ximenes Lopes,168 morto em uma casa de repouso pública em
razão de maus tratos durante tratamento psiquiátrico, alegando, entre outras questões, o
descumprimento pelo Estado brasileiro do dever de entregar a prestação jurisdicional em
tempo razoável, reconheceu que o Brasil havia violado a cláusula de duração razoável do
processo.
Nessa decisão, a Corte fixou os parâmetros que devem nortear a análise do
cumprimento da citada cláusula:

________________________
166
Habeas Corpus 108929/PE, Relator Ministro Teori Zavascki, julgado em 17.12.2013. Grifos nossos.
167
Habeas Corpus 114298, Relator Ministro Ricardo Lewandowski, julgado em 19.03.2013.
168
Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf>. Acesso em: 24 nov.
2014. O caso Ximenes Lopes versus Brasil foi a primeira condenação do Brasil por violações de direitos
humanos pela Corte Interamericana de Direitos de Direitos Humanos.
71

[...] 195. O artigo 8.1 da Convenção dispõe, como um dos elementos do devido
processo, que os tribunais decidam os casos submetidos ao seu conhecimento em
prazo razoável. A razoabilidade do prazo deve ser apreciada em relação com a
duração total do processo penal. Em matéria penal este prazo começa quando se
apresenta o primeiro ato de procedimento contra determinada pessoa como provável
responsável por certo delito e termina quando se profere sentença definitiva e firme.
196. Para examinar se neste processo o prazo foi razoável, nos termos do artigo 8.1
da Convenção, a Corte levará em consideração três elementos: a) a complexidade do
assunto; b) a atividade processual do interessado; e, c) a conduta das autoridades
judiciais.
[...] 197. Com fundamento no exposto no capítulo sobre fatos provados, bem como
nas alegações da Comissão, dos representantes e do Estado, este Tribunal considera
que este caso não é complexo. Existe uma única vítima, que está claramente
identificada e que morreu em uma instituição hospitalar, o que possibilita que o
processo penal contra supostos responsáveis, que estão identificados e localizados,
seja simples.
[...]
199. A demora do processo se deveu unicamente à conduta das autoridades judiciais.
Em 27 de março de 2000, o Ministério Público apresentou a denúncia penal contra
os supostos responsáveis pelos fatos e, transcorridos mais de seis anos do início do
processo, ainda não se proferiu sentença de primeira instância. As autoridades
competentes se limitaram a diligenciar o recebimento de provas testemunhais. Está
provado que a Terceira Vara da Comarca de Sobral demorou mais de dois anos para
realizar as audiências destinadas a ouvir as declarações de testemunhas e
informantes e, em alguns períodos, não realizou atividade alguma com vistas à
conclusão do processo (par. 112.29 supra). A esse respeito, esta Corte estima que
não procede o argumento do Estado de que o atraso se deva, entre outros aspectos,
ao grande número de declarações que teve de receber ou a ter tido de delegar a
outras repartições judiciais o recebimento das declarações de testemunhas que não
residiam em Sobral, ou ao volume de trabalho da repartição judicial que conhece da
causa.
200. O Estado também alegou que o atraso no procedimento penal se deveu a que o
Ministério Público, em 22 de setembro de 2003, aditou a acusação para incluir
outras duas pessoas. Neste ponto é importante ressaltar que o Ministério Público é
um órgão do Estado, motivo por que suas ações e omissões podem comprometer a
responsabilidade internacional desse mesmo Estado. Esse Ministério tardou mais de
três anos para aditar a denúncia para incluir os senhores Francisco Ivo de
Vasconcelos, diretor clínico, e Elias Gomes Coimbra, auxiliar de enfermagem,
ambos da Casa de Repouso Guararapes, apesar de ter sido o senhor Francisco Ivo de
Vasconcelos o médico que atendeu o senhor Ximenes Lopes no dia de sua morte e o
senhor Gomes Coimbra o enfermeiro que havia atendido a suposta vítima no
decorrer de sua internação. O Centro de Apoio Operacional dos Grupos Socialmente
Discriminados da Procuradoria-Geral de Justiça, do Ministério Público, em 25 de
maio de 2000, dois meses após o início do processo penal, declarou ao promotor
encarregado da causa referente à morte do senhor Damião Ximenes Lopes que, de
acordo com o acervo probatório recolhido para essa finalidade, a denúncia deveria
ser aditada, já que isso “constituía uma imposição institucional e legal”. A Corte
considera que a referida alegação do Estado não é procedente para justificar a
demora no procedimento penal.
201. Finalmente, após mais de dois anos do aditamento da acusação, o caso não
progrediu de maneira significativa.

202. O Tribunal faz notar que o Estado informou em suas alegações finais que “já
está concluída neste caso a fase de instrução da ação penal, devendo ser proferida a
sentença nos primeiros meses de 2006”. No entanto, ficou demonstrado pela prova
aportada pelas partes à Corte que o processo se encontra à espera de uma decisão
interlocutória sobre o pedido de suspensão da apresentação das alegações finais por
parte de um dos acusados originalmente e não está pronto para que o juiz profira
sentença definitiva no caso (supra par. 112.42).
72

203. O prazo em que se desenvolveu o procedimento penal no caso sub201.


Finalmente, após mais de dois anos do aditamento da acusação, o originalmente e
não está pronto para que o juiz profira sentença definitiva no caso (supra par.
112.42).
203. O prazo em que se desenvolveu o procedimento penal no caso subjúdice não é
razoável, uma vez que, após mais de seis anos, ou 75 meses de iniciado, ainda não se
proferiu sentença de primeira instância e não foram apresentadas razões que possam
justificar esta demora. Este Tribunal considera que esse período excede em muito
aquele a que se refere o princípio de prazo razoável consagrado na Convenção
Americana e constitui uma violação do devido processo.
[...]
206. A Corte conclui que o Estado não proporcionou aos familiares de Ximenes
Lopes um recurso efetivo para garantir o acesso à justiça, a determinação da verdade
dos fatos, a investigação, identificação, o processo e, se for o caso, a punição dos
responsáveis e a reparação das consequências das violações. O Estado tem, por
conseguinte, responsabilidade pela violação dos direitos às garantias judiciais e à
proteção judicial consagrados nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em
relação com o artigo 1.1desse mesmo tratado, em detrimento das senhoras Albertina
Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda.

Infere-se da leitura do julgado que a Corte Interamericana de Direitos Humanos


adotou três variáveis que norteiam a aplicação do direito à razoável duração do processo: (i) a
complexidade do assunto; (ii) a atividade processual do interessado; e (iii) a conduta das
autoridades judiciais.
Na Espanha tem prevalecido a tese de que a violação à razoável duração do processo
não se estabelece pelo descumprimento de um prazo, mas pela avaliação global da duração de
um processo concluído ou que está em tramitação.169
Com efeito, para a doutrina e jurisprudência dominante na Europa, a razoável duração
do processo não é um prazo em sentido processual que deve ser previsto abstratamente pela
lei, mas deve provir de uma pauta interpretativa aberta para estimar se a duração total de um
processo foi ou não razoável, analisando-se caso a caso, uma vez finalizado o processo e
globalmente, tomando-se em conta a complexidade do caso e a dificuldade probatória.170
Essa posição dominante não nos parece a mais abalizada. A duração razoável do
processo não pode ficar ao livre arbítrio dos tribunais. A lei deve individualizar as ferramentas
para garantir a eficácia desse direito fundamental. A regulamentação por lei é a única forma
de dar plena satisfação ao direito em análise, que persegue limitar a arbitrariedade do Estado.

________________________
169
BACIGALUPO, Enrique. Justicia penal y derechos fundamentales. Madrid-Barcelona: Marcial Pons, 2002,
p. 125.
170
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, a partir do julgamento do caso “Metzger”, introduziu o fator de
gravidade da culpabilidade do acusado, como um dos fatores a serem considerados na avaliação da razoável
duração do processo. (Metzger versus Alemanha sentencia de 31.5.2001).
73

É preciso que o legislador ordinário estabeleça com precisão o prazo máximo de


duração dos processos e as consequências jurídicas do seu descumprimento,171 uma vez que o
processo administrativo disciplinar regulado na Lei nº 8112/90 tem prazo máximo de
tramitação (art. 152 e 162), mas é constantemente descumprido, sem qualquer consequência,
como veremos mais adiante.172

2.4.4.3 Duração razoável do processo administrativo disciplinar federal

Analisando a Lei nº 8.112/90, infere-se que esse diploma fixou o prazo máximo para
conclusão do processo administrativo disciplinar. Da leitura conjunta dos artigos 152173e 167
daquele diploma, extrai-se que esse prazo é de 140 (cento e quarenta) dias, 60 (sessenta) dias
prorrogáveis por igual período para conclusão dos trabalhos da Comissão e 20 (vinte) dias
para decisão da autoridade julgadora. Este, portanto, é o prazo razoável para a duração do
processo, tendo essa norma sido recepcionada pela Emenda Constitucional 45/04.
Contudo, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de
Justiça vem decidindo que o descumprimento desses prazos não gera nulidade do processo,
salvo se o acusado demonstrar prejuízo.174

ATO DEMISSÓRIO DE RESPONSABILIDADE DA MESA DA CÂMARA DOS


DEPUTADOS. PRETENSÃO ANULATÓRIA DO ATO, À LUZ DO EXCESSO
VERIFICADO NO PRAZO PARA O ENCERRAMENTO DO INQUÉRITO.
INCONSISTÊNCIA DA ARGUMENTAÇÃO, VISTO QUE O ARTIGO 169, § 1º,

________________________
171
Hellmuth von WEBER, em seus comentários à Convenção Europeia de Direitos Humanos, afirma que “el
proceso debe ser rápido, esto es, debe ser realizado dentro de un plazo razonable (within a reasonable time).
Esta formulación deja un amplio campo de actuación a la discrecionalidad y, por ello, no será fácil, en el caso
concreto, demostrar la lesión de esta obligación (...) La ratificación del Convenio tiene que ser, por ello, un
estímulo, más bien dirigido al legislador, para la reforma del proceso penal y, no necesariamente en última
instancia, también con referencia a la aceleración del processo.” (apud BACIGALUPO, Enrique. Justicia penal
y derechos fundamentales. Madrid-Barcelona: Marcial Pons, 2002, p. 128.)
172
Adverte Francesco Carrara que “sería burlarse del pueblo el dictar preceptos de procedimiento dejando su
observancia a gusto del juez [...] Si el legislador dicta un procedimiento que pueda ser violado al arbítrio de los
jueces, no hace una ley, sino que se limita a dar un consejo”. (Programa de Derecho Criminal. Trad. de José J.
Ortega Torres y Jorge Guerrero. Bogotá, 1956, t. II, p. 277.)
173
Art. 152. O prazo para a conclusão do processo disciplinar não excederá 60 (sessenta) dias, contados da data
de publicação do ato que constituir a comissão, admitida a sua prorrogação por igual prazo, quando as
circunstâncias o exigirem.
Art. 167. No prazo de 20 (vinte) dias, contados do recebimento do processo, a autoridade julgadora proferirá a
sua decisão.
174
Não logramos encontrar nenhuma decisão na qual se logrou demonstrar prejuízo. Para nós, trate-se de prova
diabólica.
74

DA LEI 8.112/90 PROCLAMA NÃO SER, SEMELHANTE DEMORA, FATOR


NULIFICANTE DO PROCESSO.175

Ao votar acompanhando a tese vencedora, destacou o Ministro Sepúlveda Pertence:

Estou convencido de que o único efeito da superação dos prazos, tanto para o
encerramento de processo administrativo, quanto do seu julgamento pela
autoridade competente, é a cessação da medida cautelar da suspensão
preventiva do funcionário, acaso aplicada. O eminente ministro CARLOS
MÁRIO mostrou que, tanto no regime da Lei n. 1.711 - que creio corresponder
a resolução específica da Câmara dos Deputados - quanto na atual lei chamada
do Regime Jurídico, é isso o que está expresso, não apenas com relação ao
prazo de julgamento mas também ao do término do inquérito (Lei 8.112/90,
artigos 169, § 1º, e 147, parágrafo único; Lei n. 1.711/52, artigos 225, § 1º, e 215,
§ 1º)

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO


ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. OITIVA DE TESTEMUNHAS E
INTERROGATÓRIO DO ACUSADO. INVERSÃO. PRAZO PARA
CONCLUSÃO. EXTRAPOLAÇÃO. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. NULIDADE
DESCARACTERIZADA.
I- A inversão da ordem de oitiva de testemunhas e interrogatório do acusado, bem
como a extrapolação do prazo para conclusão do processo administrativo disciplinar
não acarretam a sua nulidade, se, em razão disso, não houve qualquer prejuízo para a
defesa do acusado.
Aplicação do princípio pas de nullité sans grief.
II - Na espécie, o recorrente compareceu a todos os depoimentos das testemunhas,
algumas por ele arroladas, tendo tido a possibilidade de reinquiri-las ou contraditá-
las; ofereceu defesa escrita através de advogado constituído; postulou pela produção
de provas; juntou os documentos que achava pertinentes, além de ter requerido a
dispensa do depoimento de uma das testemunhas.
III - O transtorno de personalidade do qual estava acometido na época da infração
funcional não retirou do recorrente a capacidade de entendimento e discernimento,
podendo, assim, responder pelos seus atos, razão pela qual não poderia influir no
julgamento do processo disciplinar.
IV - Não há previsão na Lei Complementar Estadual nº 122⁄94 quanto à necessidade
de intimação do servidor da conclusão do relatório final da comissão processante.
Recurso ordinário desprovido.176 (Grifos nossos).

O descumprimento dos prazos no processo administrativo disciplinar acarreta diversos


prejuízos ao servidor, obsta a exoneração do cargo,177 a aposentadoria voluntária (art. 172) e,

________________________
175
STF: MS Nº 21.949/DF, Tribunal Pleno, por maioria absoluta - 8 votos vencedores, contra o voto-vencido do
ministro MARCO AURÉLIO -, relator para o acórdão ministro FRANCISCO REZEK, publicado na RTJ
142/804.
176
RMS 21633⁄RN, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 24⁄04⁄2007, DJ 04⁄06⁄2007,
p. 382. No mesmo sentido: - “4. O excesso de prazo na conclusão de processo administrativo disciplinar, por
si só, não enseja a sua nulidade; para tanto, há de ser comprovado o efetivo prejuízo à defesa, não demonstrado
no caso concreto. Ademais, o prazo para contagem inicia-se quando da ciência dos fatos pela administração, e
não pela sua ocorrência. Rejeito a preliminar de prescrição. Precedentes: MS 16.567/DF, Rel. Min. Mauro
Campbell Marques, Primeira Seção, DJe 18.11.2011; e MS 15.462/DF, Rel. Min. Humberto Martins, Primeira
Seção, DJe 22.3.2011.” (STJ, MS 15810/DF, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, PRIMEIRASEÇÃO,
julgado em 29/02/2012, DJe 30/03/2012).
75

no caso da Advocacia-Geral da União, impede a cessão para ocupar cargo em comissão em


outro órgão.
Contudo, tem entendido a jurisprudência que, ultrapassado o período de 140 (cento e
quarenta) dias sem conclusão do processo disciplinar, o servidor deve ter seu pedido de
aposentadoria apreciado sem o óbice do artigo 172 da lei 8.112/90.
Neste sentido:

ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. INTERVENÇÃO DO


MINISTÉRIO PÚBLICO EM MANDADO DE SEGURANÇA.
SOBRESTAMENTO DO PEDIDO DE APOSENTADORIA EM RAZÃO DE
PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR.
1. Desde que regularmente intimado, a ausência de manifestação do órgão do
Ministério Público de primeiro grau acerca do mérito do mandado de segurança não
gera nulidade, máxime quando a Procuradoria Regional da República o faz.
2. Ultrapassado o prazo legal de 140 dias para a conclusão e julgamento do
processo administrativo disciplinar, não há mais motivo para o sobrestamento
do processamento de pedido de aposentadoria voluntária formulado.
Inteligência da conjugação dos artigos 172, 152 e 167, todos da Lei nº 8.112/90.
3. A administração não terá prejuízo, acaso sobrevenha decisão desfavorável ao
impetrante no processo administrativo disciplinar, pois poderá valer-se do artigo 134
da Lei 8.112/90.
4. Apelação e Remessa Oficiais desprovidas.178

A fixação de prazo é um avanço considerável, pois, como dito alhures, não deixa ao
livre arbítrio do julgador o conceito de “razoável duração do processo”. Contudo, é necessário
que esses prazos sejam cumpridos de modo a dar efetividade à norma constitucional.
Ademais, tem decidido a Suprema Corte que a extrapolação do prazo para conclusão
do processo disciplinar pode provocar a revogação do afastamento preventivo do agente
público afastado cautelarmente.
Confira-se a respeito o seguinte julgado:

É importante destacar que não se está a afirmar aqui a impossibilidade de


prorrogações de afastamento cautelar, de forma peremptória. O que se vislumbra no
presente caso é apenas a plausibilidade da alegação do impetrante, para fins de
concessão da medida liminar, quanto à desproporcionalidade entre a previsão legal
de afastamento da Lei Complementar estadual 25/98 e o período em que se encontra

________________________
177
“Art. 172. O servidor que responder a processo disciplinar só poderá ser exonerado a pedido, ou aposentado
voluntariamente, após a conclusão do processo e o cumprimento da penalidade, acaso aplicada”. Para a
Advocacia-Geral da União, “a Lei n.º 8.112/90, não veda, mas, ao contrário, permite a apresentação do pedido
de exoneração no curso do processo disciplinar (art. 172), embora só admita o deferimento "após a conclusão
do processo e o cumprimento da penalidade, acaso aplicada. (Parecer AGU nº GQ – 210)
178
Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Processo: 2003.70.00.058233-8/PR, Relator João Pedro Gebran
Neto, DJe de 08/10/2009. (Grifos nossos).
76

afastado, somada à circunstância de insegurança jurídica quanto à definição de um


prazo para julgamento definitivo do PAD em que figura como parte.179

É necessário também estabelecerem-se punições para os agentes que derem causa à


extrapolação dos prazos e medidas compensatórias para o acusado que se viu sujeito a um
processo além do tempo razoável.
A esse respeito, anota Odete Medaur:

Devem ser previstas consequências, para o agente público, ante o descumprimento


de prazos, tais como advertência, perda de ‘pontos’ em avaliação de desempenho ou
produtividade para fins de promoção ou acesso. Por outro lado, a consagração
constitucional do direito a razoável duração do processo pode ensejar, contra o
Estado, nos termos do art. 37, § 6º da CF, ação judicial de responsabilidade civil por
danos causados danos causados pela demora de processo administrativo, como já
ocorre em países como Espanha e França.

José Rogério Cruz e Tucci relata importante precedente da Corte Europeia de Direitos
Humanos que condenou o Estado italiano a indenizar um cidadão por danos morais sofridos
pela demora no desfecho de um processo judicial.180

________________________
179
Mandado de Segurança nº 32.788/GO. Relator: Ministro Gilmar Mendes. Na doutrina, em sentido, contrário,
entende Mauro Roberto Gomes de Mattos que “O Conselho Nacional de Justiça – CNJ ao determinar, no artigo
83de seu Regimento Interno, a aplicação da Lei nº 8.112/60 e da Lei nº 9.784/99, no que não for incompatível
com a LOMAN, ao processo disciplinar instaurado contra Magistrado, deu um importante passo para
amoralização e para a celeridade dos feitos administrativos, visto que existem regras objetivas que deverão ser
seguidas, excetuando-se a indesejada eindiscriminada discricionariedade da Comissão Disciplinar, que
eternizava arespectiva apuração, até o seu desfecho final. Este grande avanço resgata a credibilidade das
apuraçõesdisciplinares dos Magistrados, que antes do resultado final do julgamento, condenava o investigado a
um afastamento de suas funções ad eternum, emuma lenta apuração. Agora não é mais permitido o excesso
de morosidade nas investigações, devendo o procedimento ser concluído em até 140 dias e o Magistrado
acusado/investigado ficar ausente de suas funções por mais de 120 dias. (Grifos nossos). (In: Afastamento
da função jurisdicional de magistrado, em virtude deprocesso administrativo disciplinar, não poderá exceder
a 120 dias. Inteligência do art. 147 da Lei nº 8.112/90. Disponível em: <BuscaLegis.ccj.ufsc.br>. Acesso em:
nov. 2014).
180
TUCCI, José Rogério Cruz e (Coord.). Garantias constitucionais do processo civil. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999, p. 246-247. Eis o trecho da decisão: “[...] 36. Dispõe o art. Convenção: “Se a decisão da Corte
declara que um julgamento proferido ou uma medida ordenada por uma autoridade judiciária, ou qualquer
outra autoridade de uma das partes contratantes encontra-se inteira ou parcialmente em oposição às obrigações
estatuídas pela Convenção, e se o direito interno de tal parte não permite reparação integral dos danos oriundos
do julgamento ou da medida, a Corte concede, no caso, ao demandante lesado, uma satisfação equânime. Em
suas razões, de 28.05.86, a requerente reclamou uma indenização equivalente a 100.000.000 de liras, sob
vários títulos, entre os quais não se incluíam as despesas efetuadas neste processo. A partir das audiências, seu
procurador também deduziu, perante a Corte, a pretensão da sua constituinte de ser reembolsada, não somente
das custas despendidas nos tribunais italianos, mas, ainda, dos prejuízos decorrentes da deterioração do imóvel
litigioso e da tensão física e psicológica em virtude da demora – quase 11 anos – do processo. O requerido
insiste na desproporção existente entre a quantia aqui demandada e o valor do bem objeto de litígio. Aduz,
outrossim, que alguns danos alegados não estão compreendidos pelaregra do art. 50 e que, não especificados,
não resultam das falhas denunciadas. A comissão entende que a requerente tem direito a uma indenização por
dano moral. No que concerne ao prejuízo material, ela deixa à Corte a incumbência de fixar o montante.
37. No entender da Corte, o único parâmetro para a concessão de uma satisfação equânime pelo dano material
consiste na superação do tempo razoável previsto no art. 6.º, 2 (v. especialmente, o aresto Lecner e Hess, de
77

Outro precedente importante, oriundo da mesma Corte, é o caso Janosevic versus


Suécia, no qual o Estado sueco foi condenado a indenizar um cidadão a título de danos morais
em razão da demora no encerramento de um processo administrativo tributário.181
Assim, é possível apontar uma tendência dos tribunais internacionais de adotar a
reparação pecuniária como penalidade aos Estados que descumprem a cláusula da razoável
duração do processo. Espera-se, assim, que sirva de influência para a jurisprudência nacional.

________________________
23.4.87, série A, n. 118, §64). A delonga do procedimento incrementou as despesas da requerente nos tribunais
italianos e pode ter contribuído para outros danos. É preciso, pois, levá-lo em consideração. A requerente
provou, por outro lado, um prejuízo moral indenizável: ela viveu numa incerteza e numa ansiedade
prolongadas quanto ao resultado e às repercussões do processo.
Esses diversos aspectos em conjunto e, como se não se prestam, in casu, a um cálculo preciso. Apreciando-os em
conjunto e, como determina o art. 50, por equidade, a Corte concede à requerente uma indenização no valor de
8.000.000 libras. Por tal motivo, a Corte, à unanimidade, declara que houve violação ao art. 6.º, 1; Declara que
o Estado demandado deve pagar à requerente 8.000.000 de liras a título de satisfação equânime. Rejeita o
pedido de indenização acima da condenação ora fixada.”
181
Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-60628#{"itemid":["001-
60628">. Acesso em: nov. 2014.
78

III DIREITO DE CIÊNCIA DA IMPUTAÇÃO

3.1 INTRODUÇÃO

Uma vez examinados o poder disciplinar da Administração Pública, a obrigatoriedade


do seu exercício e o dever de fazê-lo por meio de um processo – com respeito à garantia do
devido processo legal e dos principais princípios constitucionais que lhe dão concretude –,
entramos na análise do direito de ser informado da acusação.
O direito a ser informado da acusação não poder ser entendido isoladamente, sob pena
de sua efetividade e utilidade restarem muito relativas, uma vez que dito direito forma parte
indissociável do conteúdo essencial do contraditório, e é pressuposto necessário do direito à
ampla defesa, porque o acusado dificilmente poderia ter participação ativa em um processo e
exercer solidamente sua defesa ao longo deste se desconhece aquilo que se lhe imputa ou
acusa.182
Trata-se de um direito de caráter processual que vincula todos os poderes públicos,
pelo que deve o legislador, ao regular o desenvolvimento do processo, manter seu conteúdo
inalterado. Dentro de cada processo concreto, obriga as autoridades que nele intervenham a
realizar uma prestação positiva de informação fundamental.
A ampla defesa é um dos elementos do devido processo legal; o exercício do
contraditório, um dos requisitos para o efetivo exercício da ampla defesa; e o direito de
ciência da imputação, o pré-requisito de todos – daí a importância do seu estudo.
O direito fundamental de ser informado da acusação constitui a célula mater do devido
processo legal. Estão inteiramente imbricados, de modo que a violação do direito fundamental
de conhecer a acusação implica, naturalmente, a inexistência de ampla defesa e contraditório,
que, por sua vez, afasta o devido processo legal. Trata-se de uma sequência de pilares em que
a violação de um deles repercute nos demais.
Nesta linha de entendimento, ensinam Sérgio Ferraz e Adilson de Abreu Dallari:

________________________
182
A jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol se pronuncia neste sentido: “Ninguna defensa puede ser
eficaz si el imputado no conoce com anterioridade los hechos em que se fundamenta la acusación, a fin de
oponer frente a ellos las oportunas excepciones y defensas.” (SSTC 297/1993)
Na StPO alemã, como consequência do dever de assistência (Fürsorgepflicht), contém uma série de disposições
cuja finalidade é assegurar que os participantes de um processo, especialmente o acusado, sejam informados de
diversos aspectos. Dentre estes, destaca a informação sobre a acusação e os direitos que com tal lhe
correspondem, para que possam efetivamente se defender. A maior parte da informação está estabelecida nos
§§136, 163-A e 243. (SCHIMIDT, E. Sinn und Tragweit des Hinweis auf die Aussagefreiheit des
Beschuldigten, NJW 1968, p. 1209 e 1220. apud GRAU, Verger. La defensa del imputado y principio
acusatório. Barcelona: Bosch, 1994, p. 184.)
79

[...] o primeiro requisito para que alguém possa exercitar o direito de defesa de
maneira eficiente é saber do que está sendo acusado. Por isso é essencial que
qualquer processo punitivo comece pela informação ao acusado daquilo que,
precisamente, pese contra ele.183

Não é difícil compreender essa equação. Sem uma adequada e oportuna informação
processual do inteiro teor da acusação com todas as suas circunstâncias, é materialmente
impossível a realização das exigências relativas ao princípio do direito de defesa e
contraditório, já que não se concebe defender-se daquilo que não se conhece.
Neste sentido, a lição de Juan Manuel Trayter:184

Mal pode alguém se defender se não está informado perfeitamente, com claridade e
rigor, dos fatos considerados puníveis, sua participação nos mesmos, as normas
infringidas e a sanções que podem lhe ser aplicadas. Resulta facilmente constatável a
importância e transcendência deste direito. A defesa se converte em uma patominia
sem eficácia alguma e sem nenhum rigor. O procedimento e suas concretas garantias
posteriores no tempo seriam derrubados como um castelo de cartas por falta de
consistência na base, nos cimentos sobre os quais sustentam direitos tão importantes
como o de audiência que se converterá em uma forma e inútil possibilidade de
alegar não se sabe o que, de rebater algo que se ignora ou do que não se tem pleno
conhecimento, situando o “acusado” na mais pura e impotente indefesa.

Não se pode, assim, deixar de reconhecer a vital importância do direito de ser


informado da acusação, especialmente pela relação deste com o direito de defesa e pela sua
configuração como elemento essencial da representatividade do devido processo legal,
cabendo, nesse desiderato, analisar os elementos constitutivos daquele.
Nessa contextualização, o artigo 8º da Convenção Interamericana de Direitos
Humanos, citado no capítulo anterior, pode ser considerado um marco amplo de garantias
aplicáveis aos processos em todas as suas vertentes no Direito brasileiro, inclusive na vertente
do Direito Administrativo. Essa norma exige, por parte dos Estados contratantes,185 o

________________________
183
FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 70.
184
Texto original: “Mal puede uno defenderse si no está informado perfectamente, com claridade y rigor, de los
hechos considerados punibles, su participación em los mismos, las normas infringidas y las sanciones que
pueden serle de aplicación. Resulta facilmente constatable la importância y transcedencia de este derecho. Sin
él todos los demás carecen de sentido. La defensa se convierte em uma pura pantomima sin eficácia alguna y
sin ningún rigor. El procedimento y sus concretas garantias posteriores em el tempo se derrumbarán cual
castillo de naipes por uma falta de consitencia em la base, em los cimentos sobre los que se sustentam derechos
tan importantes como el de audiência que se convertirá em uma forma e inútil possibilidade de alegar no se
sabe qué, de rebatir algo que se ignora o de lo que no se tiene pleno conocimento, situando al ‘acusado’
em la más pura e impotente indefensión. (Manual de Derecho Diciplinario de los funcionários públicos. p.
79. Marcials Pons, Madri, 1992, grifos nossos).
185
“[...] los Estados Parte tienen el deber de adoptar providencias de toda índole para que nadie sea sustraído de
la protección judicial y del ejercicio del derecho a un recurso sencillo y eficaz, en los términos de los artículos
8 y 25 de la Convención y, una vez ratificada la Convención Americana corresponde al Estado, de
conformidade con el artículo 2 de la misma, adoptar todas las medidas para dejar sin efecto las disposiciones
80

reconhecimento e a realização de um extenso rol de garantias que assegurem a efetividade do


direito ao devido processo legal, dentre elas, a garantia de ser informado da acusação, de
modo pleno e capaz de viabilizar o direito de defesa.
O direito de ser informado da acusação está também dogmática e intrinsecamente
vinculado à dignidade da pessoa humana. O barbarismo tirânico seria o estágio anterior, ou
seja, de pouco ou nenhum respeito pela dignidade da pessoa humana.
Neste sentido, ao proferir voto no Inquérito nº 3752, consignou o Ministro Gilmar
Mendes:

Quando se fazem imputações vagas, dando ensejo à persecução criminal injusta, está
a violar-se o princípio da dignidade da pessoa humana, que, entre nós, tem base
positiva no artigo 1º, III, da Constituição. Como se sabe, na sua acepção originária,
este princípio proíbe a utilização ou transformação do homem em objeto dos
processos e ações estatais. O Estado está vinculado ao dever de respeito e proteção
do indivíduo contra exposição a ofensas ou humilhações. A propósito, em
comentários ao art. 1º da Constituição alemã, afirma Günther Dürig que a submissão
do homem a um processo judicial indefinido e sua degradação como objeto do
processo estatal atenta contra o princípio da proteção judicial efetiva (rechtliches
Gehör) e fere o princípio da dignidade humana [Eine Auslieferung des Menschen an
ein staatliches Verfahren und eine Degradierung zum Objekt dieses Verfahrens wäre
die Verweigerung desrechtlichen Gehörs] (MAUNZ-DÜRIG, Grundgesetz
Kommentar, Band I, München, Verlag C.H.Beck , 1990, 1I 18). Não é difícil
perceber os danos que a mera existência de uma ação penal impõe ao indivíduo. Daí,
a necessidade de rigor e prudência por parte daqueles que têm o poder de iniciativa
nas ações penais e daqueles que podem decidir sobre o seu curso. Em suma,
denúncia imprecisa, genérica e vaga, além de traduzir persecução criminal injusta, é
incompatível com o princípio da dignidade humana e com o postulado do direito à
defesa e ao contraditório.186

Em concreto, resulta afetada essa dignidade quando a pessoa é submetida a qualquer


juízo – inclusive penal e administrativo – sem que lhe seja dada a oportunidade de conhecer
as razões que determinaram a sujeição.
No Estado Moderno, constitui Direito Público, estruturado em bases de uniformidade
e impessoalidade para ser exercido perante órgãos públicos: autoridades administrativas,
policiais, fiscais e judiciais. A sua estruturação evidencia caráter e exigência procedimental
que, para sua concretização, requer a existência de um processo, imune ao humor e às tênues
vontades dos que ocupam o poder.

________________________
legales que pudieran contravenirla, como son las que impiden la investigación de graves violaciones a derechos
humanos puesto que conducen a la indefensión de las víctimas y a la perpetuación de la impunidad, además
que impiden a las víctimas y a sus familiares conocer la verdad de los hechos.” (Caso Gomes Lund y otros
(«Guerrilha do Araguaia») vs. Brasil. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia del
24 de noviembre de 2010, p. 174).
186
Supremo Tribunal Federal, Inquérito nº 3752, julgado em 26.08.2014. Relator: Ministro Gilmar Mendes.
81

Na seara administrativa, o direito fundamental de ser informado da acusação constitui


o núcleo essencial do processo administrativo sancionatório, especialmente do que guarda
natureza disciplinar. Trata-se, a nosso ver, de algo imprescindível para o desenvolvimento de
um processo válido, legítimo e justo. Não importa o papel desempenhado pela Administração
– se na defesa do interesse primário (da coletividade) ou secundário (da sua autoridade) –, a
garantia fundamental de informar acerca da acusação é determinante para a validade e
legitimidade do processo.
Entender a razão desse direito fundamental, no campo administrativo disciplinar, exige
conhecer a finalidade do processo disciplinar. Não consiste o processo disciplinar, tampouco
se resolve este, exclusivamente na atribuição de uma falta ou sanção a um agente público
genérico ou na decisão pela sua inocência. O objetivo e a missão do agente público que
deflagra o processo disciplinar são outros, distintos e muito mais complexos: encontrar e
identificar o verdadeiro autor da infração investigada, mediante o estabelecimento da verdade
material ou verdade real sobre os fatos e condutas em apuração. Até porque, para se chegar à
verdade real, impõe-se compreender exatamente como se deram os fatos que infringiram as
normas administrativas nas quais se baseia a acusação.
No processo disciplinar, constitui obrigação da Administração informar ao acusado de
uma infração funcional todos os elementos fáticos e jurídicos que embasam a acusação, meio
necessário para permitir o concreto e eficaz exercício do direito de defesa. O conhecimento
dos elementos fáticos e jurídicos deve ser pleno, pois a garantia fundamental de conhecer a
acusação não tolera subterfúgios, surpresas ou armadilhas.
O Estado Democrático de Direito não se compadece com procedimentos secretos,
ocultos como os descritos na obra O Processo, de Franz Kafka:
Os documentos do tribunal, sobretudo o auto de acusação, permaneciam inacessíveis
ao acusado e à sua defesa. Por isso geralmente não se sabia, ou pelo menos não se sabia com
precisão, contra o que a primeira petição precisava se dirigir.187
Também no Direito português o conhecimento preciso da acusação constitui um
elemento essencial do direito de defesa, conforme os artigos 269.3188 e 32.10189 da
Constituição daquele país – e manifestação do princípio acusatório conforme consoante o art.

________________________
187
KAFKA, Franz. O processo. Trad. Modesto Carone. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 82.
188
“Em processo disciplinar são garantidas ao arguido a sua audiência e defesa.”
189
“Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao
arguido os direitos de audiência e defesa.”
82

32.5190 daquele Diploma fundamental. Ademais, as infrações devem ser suficientemente


individualizadas e referidas aos correspondentes preceitos legais sob pena de nulidade.
Neste sentido, leciona Marcelo Caetano:

A garantia de audiência significa que o arguido tem um direito de pronúncia sobre


os factos que lhe são imputados e pela prática dos quais se pretende sancioná-lo
disciplinarmente. Para que este direito de pronúncia se possa concretizar é
necessário, em primeiro lugar, que seja levado ao conhecimento do arguido uma
dada acusação, isto é, que lhe imputam factos que constituem um ilícito disciplinar,
pelo que será nulo o procedimento disciplinar cujo acto punitivo seja proferido sem
previamente se ter notificado o arguido da acusação contra ele formulado,
notificação essa que terá que revestir a forma legalmente prevista. Contudo, o direito
de pronúncia não se basta com a notificação da acusação, exigindo ainda que essa
mesma acusação seja formulada em termos que permitam ao arguido aperceber-se
dos factos que lhes são imputados, de forma a poder aceitar a sua veracidade ou
contraditá-los, seja negado a sua ocorrência, seja dando uma outra e diferenciada
versão do sucedido. Significa isto que a acusação deve primar pela clareza,
congruência deduzida em termos obscuros, que não permita ao acusado saber se lhe
é imputado, ou em termos insuficientes, que não compreenda os factos
indispensáveis para alicerçar o juízo valorativo formulado ou que são
imprescindíveis para o arguido poder tomar uma posição detalhada sobre os
mesmos. Assim, para que a defesa se efetive nos termos em que a lei a concede e é
de direito natural garantir, tornar-se necessário que a nota de culpa contenha com
toda individuação, isto é, discriminados um por um e acompanhados de todas as
circunstâncias de modo, lugar e tempo, os factos delituosos de que o empregado é
arguido.191

3.2 CONCEITO DE “IMPUTAÇÃO”

Em sentido amplo, entende-se por “imputação” a atribuição de uma conduta a uma


determinada pessoa com transcendência típica – penal, civil ou administrativa –, sem que
haja, necessariamente, um processo correspondente.192
Em sentido estrito, a seu turno, é o ato processual no qual se atribui a alguém a
condição de autor ou partícipe de um fato definido como crime ou infração administrativa, a
partir de indícios de autoria e materialidade.193 No processo penal, a imputação é vazada na
denúncia ou queixa, no processo administrativo disciplinar na portaria inaugural ou, como
veremos adiante, no termo de indiciamento.
Qualquer que seja a forma de imputação do sujeito, interessa sobre ela destacar dois
aspectos. O primeiro é sua essencialidade, pois se constitui em premissa básica para a

________________________
190
“O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a
lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.”
191
CAETANO, Marcelo. Poder Disciplinar. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1932, p. 181, 182.
192
GRAU, Verger. La defensa del imputado y principio acusatório. Barcelona: Bosch, 1994, p. 48.
193
GRAU, Verger. La defensa del imputado y principio acusatório. Barcelona: Bosch, 1994, p. 221.
83

deflagração de um processo; não se pode iniciar um processo contra alguém que previamente
não tenha sido informado acerca da imputação que lhe é feita. O segundo é sua condição de
garantia ao acusado:194a imputação faz nascer a condição de parte no processo, permitindo-lhe
o exercício de uma série de direitos para fazer valer seus interesses. Como requisito prévio ao
exercício daqueles, é necessário que ao sujeito sejam informados a imputação e os fatos que
lhe são imputados. Isso lhe permite adquirir um conhecimento primário e provisório, pois se
encontra nos momentos inicias do processo, dos fatos nos quais se fundam a imputação e aos
que se refere a investigação, e que, em especial, lhe permitirá defender-se e atuar contra
aquela, protegendo-se de acusações surpresa. Essa informação é completada com a instrução
dos direitos que lhe assistem.
Antes de passarmos ao exame do conteúdo essencial do direito de ser informado da
imputação, examinaremos os princípios processuais constitucionais inerentes ao acusado,
conforme deixamos consignados no Capítulo II.

3.3 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA IMPUTAÇÃO DISCIPLINAR E SUAS


RELAÇÕES COM O DIREITO DE CIÊNCIA DA IMPUTAÇÃO

3.3.1 Introdução

Deteremo-nos agora sobre os três princípios que são condições indispensáveis para a
compreensão do tema de que nos ocuparemos: o direito a ser informado da imputação.
Convém fazer uma referência do porquê de uma teoria dos princípios do processo disciplinar,
justificar que em cada estudo referente ao Direito Processual se faz referência a estes.
Deixando de lado o evidente interesse didático que representam, pelo tanto que
ajudam a uma melhor compreensão do que é o Direito Jurisdicional e permitem entender
facilmente a aproximação que existe entre o processo disciplinar e o processo penal,
queremos destacar que a partir destes podemos extrair as distintas garantias exigíveis em todo
processo, já que esses princípios encontram seus fundamentos e sentido no Estado de Direito,
apresentam-se essenciais àquele e “termômetros dos elementos corporativos ou autoritários
da Constituição”.195

________________________
194
GRAU, Verger. La defensa del imputado y principio acusatório. Barcelona: Bosch, 1994, p. 223.
195
GOLDSCHIMIDT, James. Principios generales del processo. 2. ed. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas
Europa-América, 1961, p. 110. Tradução livre. No original: “termómetros de los elementos oporativos o
autoritários de la Constituición”.
84

Configurando o processo disciplinar como o instrumento mediante o qual a


Administração Pública exerce seu poder disciplinar constitucionalmente atribuído, estabelece-
se uma série de garantias e princípios, tanto em nível constitucional como nas leis esparsas
que devem inspirar sua atuação.
A doutrina brasileira e a estrangeira já analisaram profundamente os princípios do
processo penal – aplicáveis ao processo administrativo disciplinar –, de modo que são muitas
as classificações. Dada a impossibilidade de poder analisar uma relação das distintas
possibilidades classificatórias, examinaremos aqueles que guardam maior relação com nosso
objeto de estudo.

3.3.2 Princípio acusatório

Costumeiramente, a doutrina para traçar as notas essenciais do princípio (ou sistema)


acusatório inicia seu estudo distinguindo-o do princípio (ou sistema) inquisitivo,196 adotando a
maioria a tese de que não mais vige nenhum dos dois princípios em estado puro, mas misto.197

________________________
196
Por todos: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e
sua Jurisprudência. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 18; ANDRADE, Mauro Fonseca. Sistemas
Processuais Penais e seus Princípios Reitores. Curitiba: Juruá, 2008, p. 466; MIRABETE, Julio
Fabbrini. Processo Penal. 17. ed. rev. atual. São Paulo: Atlas, 2005.
197
Para Paulo Rangel, “o Brasil adota um sistema acusatório que, no nosso modo de ver, não é puro em sua
essência, pois o inquérito policial regido pelo sigilo, pela inquisitoriedade, tratando o indiciado como objeto de
investigação, integra os autos do processo, e o juiz, muitas vezes, pergunta, em audiência, se os fatos que
constam do inquérito policial são verdadeiros... Neste caso, observe o leitor que o procedimento meramente
informativo, inquisitivo e sigiloso dá o pontapé inicial na atividade jurisdicional à procura da verdade real.
Assim, não podemos dizer, pelo menos assim pensamos, que o sistema acusatório adotado entre nós é puro.
Não é. Há resquícios do sistema inquisitivo, porém já avançamos muito”. (Direito Processual Penal. 7. ed. Rio
de Janeiro: Lumen Júris, 2003, p. 52.)
Adotando a mesma tese no sentido de um sistema misto no direito brasileiro, anota Guilherme de Souza Nucci
que: “[...] há dois enfoques: o constitucional e o processual. Em outras palavras, se fôssemos seguir
exclusivamente o disposto na Constituição Federal poderíamos até dizer que o nosso sistema é acusatório (no
texto constitucional encontramos os princípios que regem o sistema acusatório). Ocorre que nosso processo
penal (procedimento, recursos, provas etc.) é regido por Código específico, que data de 1941, elaborado em
nítida ótica inquisitiva [...]” (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 5.
ed. rev., atual. e amp. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 117. Na Europa ocidental, informa Mireille
Delmas-Marthy que “o modelo inquisitório e acusatório não vigoram atualmente, em estado puro, em nenhum
dos países da Europa Ocidental, sendo impossível classificar um processo como totalmente acusatório ou
totalmente inquisitório.” (Procédures Pénales d’Europe. Paris: PUF, 1995, publicado em inglês, com o título
“European Criminal Procedures”, Cambridge University Press, 2002, disponível em: <http://catdir.loc.gov>.
Dissertando sobre o direito português, Jorge de Figueiredo Dias afirma que o modelo europeu continental
“possui uma estrutura basicamente acusatória integrada por um princípio subsidiário e supletivo de
investigação”, e carrega, de acordo com o autor, “o estigma de um “inquisitório mitigado”, que lhe advém
sobretudo da existência de um acusador público” limitadoaos princípios da legalidade e da objetividade, ainda
que cada vez mais aceite o princípio da oportunidade do exercício da ação penal. Ainda, há o modelo
proveniente dos países anglosaxónicos, de estrutura estritamente acusatória, com o juiz no papel de árbitro de
um combate entre partes com igualdade de armas e que possuem ampla disponibilidade sobre o objeto do
processo, que vem admitindo cada vez mais a figura do Ministério Público autónomo e processualmente
85

Contudo, adverte Juan Montero Aroca, a alternativa sistema acusatório-inquisitivo não


tem sentido na atualidade. Os chamados sistemas processuais penais são conceitos do
passado, pois deles nenhum mais rege em sua pureza, o que só confunde o leitor e desloca o
princípio acusatório de seu lugar.198

________________________
objetivo, como se observa com o Crown Prosecution Service. (O problema penal português: problemas e
prospectivas. In: QUE futuro para o processo penal? Simpósio em homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por
ocasião dos 20 anos de código de processo penal português, coord. Mário Ferreira Monte, Coimbra: Coimbra,
2009, p. 820).
Em sentido contrário, Fernando Tourinho da Costa Filho afirma que no Direito brasileiro se adota o sistema
acusatório puro: “O processo é eminentemente contraditório. Não temos figura de juiz instrutor. A fase
processual propriamente dita é precedida de uma fase preparatória, em que a Autoridade Policial procede
investigação não contraditória, colhendo, à maneira do Juiz instrutor, as primeiras informações a respeito do
fato infringente da norma e da respectiva autoria. Com base nessa investigação preparatória, o acusador, seja
órgão do Ministério Público, seja a vítima, instaura o processo por meio de denúncia ou queixa. Já agora, em
juízo, nascida a relação processual, o processo torna-se eminentemente contraditório, público e escrito (sendo
que alguns atos são praticados oralmente, tais como debates em audiências ou sessão). O ônus da prova incube
às partes, mas o Juiz não é um espectador inerte na sua produção, podendo, a qualquer instante, determinar de
ofício, quaisquer diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante”. (Direito Processual Penal. 30. ed. rev.
e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 1, p. 132.)
198
Diz ainda este autor: “Este se puede entender como um construcción artificial del legislador para lograr um
justicia penal adaptada a sus necessidades y as piraciones, tratando de hacer compatibles la garantia
jurisdicional penal y la liberdad y derechos de los particulares afectados por el processo, ante ele fracasso de
los sistemas acusatório e inquisitivos em estado puro”. (MONTERO, Aroca, J.A. Princípios del processo penal.
Uma explicación baseada em la razón. Valencia: Tirant lo Blanc, 1997, p. 61). Em palestra proferida no “X
Congreso Nacional de Derecho Procesal Garantista” celebrado em Azul (província de Buenos Aires) entre os
dias 12 e 14 de novembro de 2008, sob o título “La inutilidad del llamado principio acusatorio para la
conformación del proceso penal”, este autor foi ainda mais incisivo: “El denominado “proceso inquisitivo”
nunca fue y, obviamente, no podría ser hoy, un verdadero proceso. Si éste se identifica de modo esencial con
que ante un tercero, independiente e imparcial, comparecen dos partes (y, por lo mismo, parciales) situadas en
pie de igualdad y con plena contradicción, para que aquél tutele un derecho y para que lo haga actuando el
Derecho objetivo, algunos de los caracteres que suelen indicarse como propios del sistema inquisitivo llevan
ineludiblemente a la conclusión de que ese sistema no puede permitir la existencia de un verdadero proceso.
Evidentemente no hay proceso si el acusador es al mismo tiempo el juez[3], pero tampoco hay realmente
proceso si el juez asume todos los poderes materiales en la dirección de la actividad pudiendo, por ejemplo, no
ya alegar hechos, sino incluso acordar prueba de oficio, independientemente de a quien acabe beneficiando
ésta.- El llamado “proceso acusatorio” sí es un verdadero proceso, por cuanto en él existen realmente un juez
tercero, independiente e imparcial y dos partes enfrentadas entre sí en pie de igualdad y con plena
contradicción. Adviértase, sin embargo, que no todos los caracteres que suelen incluirse como propios de ese
pretendido proceso acusatorio son necesarios para que exista un verdadero proceso, pues algunos de estos
caracteres podrían modificarse, sin que ello impidiera la subsistencia del proceso. Por ejemplo, nada dice
respecto de la esencia del proceso el que el juez sea profesional o popular o que el procedimiento sea oral o
escrito[4], pero sí afecta a esa esencia el que el juez sea efectivamente tercero, independiente e imparcial o el
que el acusado disponga de todos los derechos propios de la contradicción y que las partes estén en igualdad de
condiciones.- Así las cosas, creemos que se puede afirmar que los llamados sistemas procesales penales son
conceptos carentes de todo rigor técnico procesal, por lo que es necesario dejar muy claro que en determinadas
épocas históricas el Derecho penal no lo aplicaban en exclusiva los tribunales y que en otras épocas lo
aplicaron los tribunales, sí, pero no por medio del proceso, y hay que proclamar como conquista irrenunciable
de la civilización la garantía jurisdiccional, entendida en su sentido originario, esto es, asunción del monopolio
del ius puniendi (derecho de castigar) por los tribunales y exclusividad procesal de su ejercicio.- Toda la
confusión entre “proceso inquisitivo” y “proceso acusatorio” nace de la falta de precisión conceptual en torno a
lo que es proceso, pues sólo desde esa imprecisión ha podido concluirse que un sistema de aplicación del
Derecho penal tal y como se describe en las reglas básicas del inquisitivo pueda ser calificado de procesal.
“Proceso inquisitivo” es una contradictio in terminis, mientras que “proceso acusatorio” es un pleonasmo, esto
86

No ordenamento jurídico brasileiro, tal qual o espanhol199 e o alemão,200 considera-se


inspirado pelo princípio acusatório, configurando-se uma garantia do processo. Em que pese
esta importância, o princípio não está proclamado expressamente na Constituição Federal,
mas é possível extraí-lo do direito ao devido processo legal.201Na essência, o princípio
acusatório atende a imparcialidade do julgador, tanto mediante as partes como em relação ao
objeto do processo.202
Com efeito, o primeiro significado desse princípio é que não pode existir processo
legítimo sem imputação formulada por pessoa distinta de quem a julga,203o que será
examinado no próximo item.
Contudo, em que pese a posição ora exposta seja amplamente majoritária, adverte
Maria Teresa Armeta Deu que a essência do sistema acusatório reside, em primeiro lugar, não
tanto na estrita separação entre quem julga e quem acusa, mas na necessidade inevitável de
uma imputação prévia.204

________________________
es, una redundancia viciosa de palabras; el calificativo acusatorio no añade nada a la palabra proceso, por lo
menos si ésta se entiende correctamente.”
199
GÓMEZ COLOMER, J. L. El processo penal espanhol. 2. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 1997, p. 52. É
possível se chegar à mesma conclusão do autor a partir da leitura da sentença do Supremo Tribunal
Constitucional 18, de 30 de janeiro de 1989, no qual assentou que o principio acusatório não encontra previsão
expressa na Constituição daquele país mas entende-se que ele decorre das garantias expressas no art. 24.2, da
Constituição Espanhola de 1978.
200
§ 151 StPO“(Principio acusatório) La abertura de una investigación judicial estará motivada por ele ejercicio
de uma acción”. GÓMEZ COLOMER, J. L. El proceso penal alemán. Introdución y normas básicas.
Barcelona: Bosch, 1995, p. 73.
201
Anota Douglas Fisher que “[...] não há previsão expressa na Constituição Federal de 1988 de que o sistema
adotado no Brasil seria o acusatório. Mas tal circunstância não impede que, a partir da compreensão (aberta e
sistêmica) dos princípios, regras e valores insertos na Carta dirigente, possa ser extraída conclusão que o nosso
sistema se pauta pelo princípio acusatório. Com efeito, nos termos do art. 129, I, CF, compete ao Ministério
Público promover, privativamente, a ação penal pública. Portanto, o titular da ação penal (ressalvado os casos
específicos), de regra, é o parquet. E a função de julgar pertence ao Judiciário, observado o princípio
(fundamental) do juiz natural”. O sistema acusatório brasileiroà luz da Constituição Federal de 1988 e o PL
156. Revista Eletrônica do Ministério Público Federal.
202
Anota Luigi Ferrajoli que a prevalência de um sistema acusatório necessita da imparcialidade absoluta do
magistrado, da capacitação técnico-normativa, da independência, vinculação à lei e juiz natural. (Direito e
Razão: Teoria do Garantismo Penal. Trad. Ana Paula Zomer. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.
576.)
203
Neste sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: “Não se verificou, no caso concreto, a
indispensável separação entre o papel incumbido ao órgão acusador e ao julgador, principal característica do
sistema acusatório, pois a fundamentação exposta na sentença condenatória permite concluir que os elementos
do convencimento judicial recorreram, exclusivamente, de provas colhidas pelo julgador na audiência de
instrução, hipótese de nulidade insanável, não sujeita, portanto, à preclusão”. (Recusrso Especial nº 1259482,
Rel. Ministro Marco Aurélio Belizze, julgado em 04.10.11.)
Nesta mesma linha, decidiu o Tribunal Constitucional espanhol na setença 83 de 30 de jeneiro de 1992, ao
assinalar que “la existencia de uma contienda entre dos partes contrapuestas ha de resolverse por un órgano
imparcial con neta distición de las tres funciones processales fundamentales. La acusación será propuesta y
defendida po una persona distinta del Juez; la defensa gozará de las mismas faculdades que ele acusador y la
decisión corresponde a un órgano independiente e imparcial que no actúa como parte frente al acusado.
204
ARMETA DEU, Maria Teresa. Princípio acusatório e Direito Penal. Barcelona: Bosch, 1995, p. 40.
87

3.3.2.1 Separação entre órgão acusador e julgador

A formulação da imputação é condição e pressuposto do processo e, para manter a


imparcialidade, deve ser construída necessariamente por pessoa distinta e alheia ao julgador,
separando-se as funções acusatória e decisória.205
Neste sentido, tem-se o magistério de Aury Lopes Júnior:

[...] atualmente, um sistema acusatório é um imperativo do processo penal moderno,


frente à estrutura social e política do Estado. Implica num processo com evidente
separação entre acusador e julgador, pertencendo a iniciativa probatória às partes, as
quais têm igualdade de oportunidades no processo; o juiz é imparcial e sem qualquer
atividade de investigação; os procedimentos são, via de regra, orais e com plena
publicidade, com respeito ao contraditório e à ampla defesa; a sentença baseia-se no
livre convencimento motivado do juiz, com respeito à coisa julgada e atendendo a
critérios de segurança jurídica (e social), e ainda com possibilidade de impugnar as
decisões e observância do duplo grau de jurisdição. Desta forma, garante-se que o
órgão julgador não se contamine com as provas produzidas durante a
investigação.206

A função de acusador no processo penal brasileiro é exercida pelo Ministério


Público,207 mas não de forma exclusiva, pois o sistema contempla as ações penais privadas;208
e a de julgador ao Poder Judiciário. No processo administrativo disciplinar federal, objeto de
nosso estudo, cabe a uma comissão que instrui o processo e propõe à autoridade instauradora
a absolvição ou penalidade a ser aplicada ao agente público acusado.209

________________________
205
Neste sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: “Não se verificou, no caso concreto, a
indispensável separação entre o papel incumbido ao órgão acusador e ao julgador, principal característica do
sistema acusatório, pois a fundamentaçãoexposta na sentença condenatória permite concluir que os elementos
do convencimento judicial recorreram, exclusivamente, de provas colhidas pelo julgador na audiência de
instrução, hipótese de nulidade insanável, não sujeita, portanto, à preclusão”. (Recusrso Especial nº 1259482,
Rel. Ministro Marco Aurélio Belizze, julgado em 04.10.11.)
Nesta mesma linha, decidiu o Tribunal Constitucional espanhol na setença 83 de 30 de jeneiro de 1992, ao
assinalar que “la existencia de uma contienda entre dos partes contrapuestas ha de resolverse por un órgano
imparcial con neta distición de las tres funciones processales fundamentales. La acusación será propuesta y
defendida po una persona distinta del Juez; la defensa gozará de las mismas faculdades que ele acusador y la
decisión corresponde a un órgano independiente e imparcial que no actúa como parte frente al acusado.”
206
LOPES JR., Aury Celso Lima. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. v. I. 3. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Júris, 2008, p. 243.
207
Artigo 129, inciso I, da Constituição Federal; 24, 26, 27, do Código de Processo Penal e 100, caput e
parágrafo 1º, e 101, do Código Penal.
208
Art. 5º, inciso LIX da CF/88, art. 29 do CPP, bem como no art. 100, § 3º, do CP.
209
Aduzem Adriane de A. Lins e Débora V. S. B. Denys que “a composição da comissão também é requisito
essencial para a validade da portaria inaugural, considerando que as Comissões de Processo Disciplinar e de
Sindicância Punitiva têm que ser composta por ‘três servidores estáveis designados pela autoridade
competente, observado o disposto no § 3º do art. 143, que indicará, dentre eles, o seu presidente, que deverá ser
ocupante de cargo efetivo, superior ou de mesmo nível, ou ter nível de escolaridade igual ou superior ao do
indiciado’, conforme preceitua o art. 149 da Lei nº 8.112/90”. ”.(LINS, Adriane de Almeida; DENYS, Debora
Vasti S. Bomfim. Processo Administrativo Disciplinar: manual, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007).
88

3.3.2.2 Não cabe condenar por fatos distintos nem pessoas distintas das dispostas na
imputação

A determinação do conteúdo da imputação não pode ficar nas mãos do julgador, pois
se colocaria em perigo sua imparcialidade ante os fatos e sujeitos que deve julgar.210
Esse conceito-chave para a compreensão dessa exigência é o objeto do processo.211 O
objeto do processo é constituído por fatos que se imputam a uma pessoa determinada, a
qualificação jurídica e a pena a ser imposta em razão daqueles.
Consideramos que a essência do princípio acusatório reside na necessária existência
prévia de uma imputação, cujo objeto, em seus elementos essenciais, permaneça invariável ao
longo de todo o processo, e não exclusivamente na separação de funções (acusador e julgador)
à que a jurisprudência e a doutrina tradicionalmente se referem.212São precisamente a
preexistência e o conhecimento dessa imputação que permitem ao sujeito preparar e traçar
uma estratégia de defesa para contraditar a imputação, o que possibilita o exercício do direito
à ampla defesa e do contraditório.
Isto congrega uma certa, mas não absoluta, correlação objetiva e subjetiva entre
imputação e decisão.

________________________
210
Leciona Fernando da Costa Tourinho Filho que, "iniciada a ação, quer no cível, quer no penal, fixam-se os
contornos da res in judicio deducta, de sorte que o Juiz deve pronunciar-se sobre aquilo que lhe foi pedido, que
foi exposto na inicial pela parte. Daí se segue que ao Juiz não se permite pronunciar-se, senão sobre o pedido e
nos limites do pedido do autor e sobre as exceções e nos limites das exceções deduzidas pelo réu. […] isto é, o
Juiz não p ode dar mais do que foi pedido, não pode decidir sobre o que não foi solicitado". (TOURINHO
FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. v. 1, 30. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 153.)
211
“Em el processo penal la vigência de los princípios de necessidade y oficialidade determinan que las partes no
tengan el monopólio sobre a configuración del objeto do processo. Si el processo penal se pone em marcha
desde el momento em que consta la perpetración de unos hechos punibles por uma persona determinada, el
objeto del processo penal no puede ser outro que el hecho criminal imputado y la persona a quien se imputa.
Este Objeto se caracteriza por su inmutabilidad, pues no puede ser cambiado ni eliminado, es dicer, es
indisponible para las partes tanto desde el punto de vista fáctio y jurídico. Los elementos essenciales del objeto
del processo penal son, por tanto, el fato criminal imputado y la persona acusada”. (GÓMEZ COLOMER, Juan
Luis. Constituición y Processo Penal. Madrid: Tecnos, 1996, p. 94.)
212
De acordo com Luigi Ferrajoli, entre todos os elementos constitutivos do modelo teórico acusatório, “o mais
importante, por ser estrutural e logicamente pressuposto de todos os outros, indubitavelmente é a separação
entre juiz e acusação”. (op. cit., p. 454.) Na mesma linha, afirma Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró que “o
sistema acusatório relaciona-se à concepção de processo de partes, em que há uma nítida separação entre
julgador e acusador, o qual se contrapõe ao acusado em igualdade de posições”. (BADARÓ, Gustavo Henrique
Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.102-103).
89

3.3.2.2.1 Correlação subjetiva

A decisão da autoridade instauradora só pode se referir ao sujeito ou sujeitos que


previamente tenham sido acusados,213 ou, no caso do processo administrativo disciplinar
federal, que tenham sido acusados e indiciados.214 O agente público submetido a um processo
não pode ser considerado um objeto daquele no sentido de recair sobre ele as investigações e
as provas, mas que atua no processo como um sujeito a quem assistem determinados direitos,
entre eles e fundamentalmente o direito de defesa.

3.3.2.2.2 Correlação objetiva

A decisão da autoridade instauradora só pode condenar ou absolver por aqueles fatos


que constam da imputação e do termo de indiciamento e não outros distintos, pois só deles
terá o acusado se defendido. É, portanto, necessário para a efetividade da defesa o
conhecimento dos fatos que conformam a imputação com todas as suas circunstâncias. O
julgador não pode adentrar a fatos que não estejam referidos na imputação, sobre os quais o
acusado não pôde se defender por sobre eles não ter conhecimento; o julgador não pode
condenar por fatos distintos daqueles que integraram a imputação.
Diz Fernando da Costa Tourinho filho que,

[...] iniciada a ação, quer no cível, quer no penal, fixam-se os contornos da res in
judicio deducta, de sorte que o Juiz deve pronunciar-se sobre aquilo que lhe foi
pedido, que foi exposto na inicial pela parte. Daí se segue que ao Juiz não se permite
pronunciar-se, senão sobre o pedido e nos limites do pedido do autor e sobre as
exceções e nos limites das exceções deduzidas pelo réu. [...] isto é, o Juiz não pode
dar mais do que foi pedido, não pode decidir sobre o que não foi solicitado.215

Júlio Fabbrini Mirabete, por seu turno, esclarece que

[...] não pode haver julgamento extra ou ultra petita (ne procedat judex ultra petitum
et extra petitum). A acusação determina a amplitude e conteúdo da prestação

________________________
213
“Nadie puede ser condenado sin haber sido previamente acusado”. SENDRA, Vicente Gimeno. Derecho
Procesal Penal. Madrid: Colex, 1996.
214
Lei nº 8.112, de 1990: “Art. 161. Tipificada a infração disciplinar, será formulada a indicação do servidor,
com a especificação dos fatos a ele imputados e das respectivas provas. § 1o O indiciado será citado por
mandado expedido pelo presidente da comissão para apresentar defesa escrita, no prazo de 10 (dez) dias,
assegurando-se lhe vista do processo na repartição”.
215
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. v. 1, 30. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008,
p. 165.
90

jurisdicional, pelo que o juiz criminal não pode decidir além e fora do pedido em
que o órgão da acusação deduz a pretensão punitiva. Os fatos descritos na denúncia
ou queixa delimitam o campo de atuação do poder jurisdicional.216

A imparcialidade e o princípio acusatório impossibilitam ao julgador determinar por si


mesmo os fatos que se imputam e o sujeito ao qual se imputa. O que pode, isto sim, segundo a
doutrina e jurisprudência217, do que discordamos, é dar nova qualificação jurídica aos fatos e
impor pena diversa daquela sugerida pela comissão processante.
Para nós, a vinculação do julgador é dupla: por um lado, quantitativa, já que não pode
impor pena mais grave do que a sugerida pela comissão processante, mas apenas reduzi-la,
pois defendemos que a capitulação jurídica e a possível pena aplicada devem integrar a
notificação inicial, sobre ela incidindo a dilação probatória; de outro, encontra-se ante uma
vinculação qualitativa referida ao fato determinado sobre o que recaíram toda a atividade
probatória e a defesa.
A solução que mais se coaduna com a ampla defesa, o contraditório e o próprio
princípio acusatório é – caso entenda o julgador que a comissão processante incidiu em erro
no que concerne aos fatos e à qualificação jurídica, desde que fundamente218 adequadamente
sua decisão – anular os trabalhos realizados e determinar que uma nova comissão refaça o
processo.219

________________________
216
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. 10. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 81.
217
Superior Tribunal de Justiça: “O indiciado se defende dos fatos que lhe são imputados e não de sua
classificação legal, de sorte que a posterior alteração da capitulação legal da conduta não tem o condão de
inquinar de nulidade o processo”. Precedentes: (MS 14.045/DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho,
Terceira Seção, DJe 29.4.2010; MS 10.128/DF, Rel. Min. Og Fernandes, Terceira Seção, DJe 22.2.2010; MS
12.386/DF, Rel. Min. Felix Fischer, Terceira Seção, DJ 24.9.2007, p. 244” (STJ, MS 12.677/DF, 1ª Turma,
DJE, de 20/04/12.
Supremo Tribunal Federal: “Possível alteração da capitulação legal, pois o acusado se defende dos fatos, e não
da classificação jurídica. Basta que os fatos sejam minuciosamente descritos na indiciação, de molde a permitir
o exercício do direito de defesa pelo acusado. Não é necessária a abertura de novo prazo para a defesa no caso
de reenquadramento típico pela autoridade julgadora”. Recurso em Mando de Segurança nº 24526.
218
Neste sentido, a lição de Léo da Silva Alves: “Ademais, por ser um ato de julgamento, equipara-se o
administrador público, neste particular, ao magistrado a quem a Constituição Federal deu o dever de motivar os
seus julgados”. (ALVES, Léo da Silva. Curso de Processo Disciplinar. Brasília: Cebrad, 2008, p. 257.
219
Neste sentido a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: “Não é possível falar-se em vício procedimental
ou violação do direito de defesa quando o julgamento final da autoridade competente atribui peso maior ou
menor aos fatos comprovados pela investigação. Refiro-me aos seguintes precedentes, entre outros: MS
21.635, rel. min. Carlos Velloso, Pleno, DJ 20.04.1995; MS 22.791, rel. min. Cezar Peluso, Pleno, DJ
19.12.2003; RMS 24.536, rel. min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJ 05.03.2004; RMS 25.105, rel. min.
Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJ 20.10.2006”. (RMS 25.910, 2ª Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe
de 25/05/12.)
91

3.3.2.3 Imparcialidade do julgador

A garantia da imparcialidade do julgador se pretende conseguir, junto com as


exigências já analisadas, mediante a distinção entre as funções de instrução ou investigação e
de julgamento, que recaem necessariamente em pessoas ou órgãos distintos.220
Uma vez estabelecidas as notas definidoras deste princípio, cremos conveniente
realizar algumas considerações que podem servir para clarificar a confusão que às vezes se
faz entre este princípio e os do contraditório e da ampla defesa. Podemos considerar que, se
decide e aplica sanção com base em um elemento essencial do objeto do processo distinto ao
colocado na imputação, o julgador está violando o princípio acusatório, e não o do
contraditório, independentemente de as partes deles terem tido efetiva oportunidade de se
defender ou de a defesa deles ter servido tanto a um como a outro. Por outro lado, quando o
julgador se desvincula dos elementos que não são essenciais ao objeto do processo, não
vulnera o princípio acusatório, mas pode vulnerar o princípio do contraditório, desde que não
outorgue às partes possibilidade de manifestar-se e defender-se a respeito de ditos elementos.
Desde o momento em que nos deparamos diante de fatos nos quais pode haver
violação de um desses princípios – deixando totalmente a salvo o outro –, podemos afirmar
que estamos ante postulados diferentes que atendem a necessidade e finalidade diversas, se
bem que a conexão entre eles, como garantia do devido processo, é evidente.
Com efeito, o princípio acusatório tem validade se partirmos da premissa de que
aquele atende a atuação do órgão julgador mediante a parte (imparcialidade) e o objeto do
processo (vinculação a seus elementos essenciais). O princípio do contraditório se refere, por
seu turno, à intervenção das partes no processo, garantindo que conheçam a imputação que
pesa sobre elas, sejam efetivamente ouvidas durante a instrução processual e se lhes dê a
oportunidade de se defenderem a respeito de todas as matérias de fato e de direito que possam
influir na decisão do julgador.221

________________________
220
Ao apreciar o “caso De Cubber” (26 de outrubro de 1984), anotou o Tribunal Europeu de Direitos Humanos
que “La atividade instructora, em cuanto pone al que la lleva a cabo em contacto direto com el acusado y com
los hechos y datos que deben servir para averiguar el delito y sus posible responsables, puede provocar em el
ánimo del instructor, incluso a pesar de us mejores deseos, prejuicios o impressiones a favor o em contra del
acusado, que influyan a la hora de sentenciar. Incluso aunque ello no suceda, es difícil evitar la impresión de
que el Juez no acomete la función de juzgar sin la plena imparcilaidad que le es exigible”.
221
A imparcialidade do juiz ou julgador administrativo para conhecer de um caso foi definido pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos com maior claridade ao apreciar o caso Apitz Barbera e Outros vs
Venezuela, como aquele critério que “exige que el juez que interviene en una contienda particular se aproxime
a los hechos de la causa careciendo, de manera subjetiva, de todo prejuicio y, asimismo, ofreciendo garantías
suficientes de índole objetiva que permitan desterrar toda duda que el justiciable o la comunidade puedan
92

A noção de “imparcialidade” é ínsita à ideia de “justiça”, de modo que sua presença se


faz indispensável sempre que houver algum tipo de atividade judicante em qualquer área do
Poder Público. O fato de o comandante do batalhão ter apurado a alegada infração disciplinar
cometida por seu subordinado e, com base nisso, aplicado a sanção prevista no regulamento,
mesmo havendo entre ambos anteriores e sérias divergências, é motivo suficiente para que tal
procedimento revele-se comprometido desde o início.222
A Constituição Federal não enunciou expressamente o direito ao julgador imparcial,
mas a doutrina assevera que a ideia de imparcialidade integra o conceito de “juiz
natural”.223Vários tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil
consagraram expressamente este direito. O direito a um “tribunal imparcial” é assegurado
pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 14.1).224 De forma semelhante, a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos garante o direito a “um juiz ou tribunal
imparcial” (art. 8.1).225
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao apreciar o caso Apitz Barbera e
outros versus Venezuela, definiu a imparcialidade do juiz como aquele critério que exige
daquele que intervém no processo que se aproxime dos fatos da causa carecendo, de maneira
subjetiva, de todo prejulgamento e, assim mesmo, oferecendo garantias suficientes de índole
objetiva que permitam desterrar toda dúvida que o jurisdicionado ou a comunidade possam
albergar a respeito da ausência de imparcialidade.226

________________________
albergar respecto de la ausencia de imparcialidade”. (Caso Apitz Barbera y otros vs. Venezuela. Excepción
Preliminar, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia del 5 de agosto de 2008, párrafo 56.)
Em outro caso a Comissão Interamericana observou o aspecto objetivo da imparcialidade de um Tribunal no
Caso William Andrews vs. Estados Unidos, anotando que: “el señor Andrews no fue escuchado con
imparcialidad porque se manifesto una cierta “predisposición racial” entre algunos de los membros del jurado y
porque al omitir el juez de primera instancia el interrogatório de los miembros del jurado se inficionó el juicio,
dando como resultado la condena, la sentencia a muerte y la ejecución del acusado.” (Caso 11. 139, William
Andrews vs. Estados Unidos, del 6 de diciembre de 1996, p. 165).
222
Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Recurso em Sentido Estrito nº 2004.71.03.003370-4/RS, decisão de
26.07.2005, DJU de 10.08.2005, p. 823, Relatora a Desembargadora federal Maria de Fátima Freitas Labarrére.
223
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 529. Para nós, o
princípio da imparcialidade previsto no art. 37 da Constituição Federal já é suficiente para garantirum
julgamento imparcial pela Administração Pública.
224
“1. Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça. Toda pessoa terá o direito de ser
ouvida publicamente e com as devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial,
estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na
determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil”.
225
“1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um
juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de
qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter
civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.”
226
“Exige que el juez que interviene en una contienda particular se aproxime a los hechos de la causa
careciendo, de manera subjetiva, de todo prejuicio y, asimismo, ofreciendo garantías suficientes de índole
93

Nesta mesma toada, segue a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

O Processo Administrativo Disciplinar se sujeita a rigorosas exigências legais e se


rege por princípios jurídicos de Direito Processual, que condicionam a sua validade,
dentre as quais a da isenção dos Servidores Públicos que nele tem atuação; tanto é
assim que a Lei 9.784/99 veda, nos seus arts. 18 e 19 que participe do PAD quem,
por ostentar vínculos com o objeto da investigação, não reveste as indispensáveis
qualidades de neutralidade e de isenção.227

Com efeito, está garantida a todos, em processos judiciais e administrativos, a


imparcialidade do julgador.

3.3.3 Princípio do contraditório

Este princípio228 é uma das mais importantes garantias, quando não a mais importante,
que o Estado de Direito concede à pessoa submetida a um processo, já que se não responde às
exigências da contradição não pode ser qualificado como tal,229 até o ponto de poder ser
considerado como um princípio geral de Direito tendente a alcançar a harmonia da justiça
penal e administrativa.

________________________
objetiva que permitan desterrar toda duda que el justiciable o la comunidad puedan albergar respecto de la
ausencia de imparcialidade”. (Cf. ONU. Comité de Derechos Humanos. González del Río vs. Perú.
Comunicación N.o 263/1987. Decisión del 6 de noviembre de 1980). No mesmo sentido: Wlliam Andrews vs.
Estados Unidos, no qual se indicou que “el seño Andrews no fue escuchado con imparcialidad porque se
manifestó una cierta “predisposición racial” entre algunos de los miembros del jurado se inficionó el juicio,
dando como resultado la condena, la sentencia a muerte y la ejecución del acusado».87 Así también, un caso
parecido se presentó ante la Comsión para la Eliminación de la Discriminación Racial, Caso Narrainen vs.
Noruega, en el que también se concluyó cierta predisposiciónracial de parte del tribunal.” (Caso William
Andrews vs. Estados Unidos, de 6 de dezembro de 1996, p. 165.)
227
Mandado de Segurança nº 14.233. Relator Napoleão Maia Nunes Filho, julgado em 23.06.2010. No mesmo
sentido, confira-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo português: “O princípio da
imparcialidade está conexionado com o princípio da igualdade, exigindo aos titulares dos poderes públicos
que assumam uma posição isenta e equidistante em relação a todos os particulares, assegurando a «igualdade
de tratamento dos interesses dos cidadãos através de um critério uniforme de prossecução do interesse
público», ocorrendo a sua violação quando a atuação daqueles titulares não seja ditada pela prossecução
daquele interesse, mas influenciada pela intenção de favorecer ou prejudicar interesse privados. A violação
deveres impostos pelo princípio da imparcialidade não está dependente da prova de concretas atuações
parciais, verificando-se sempre que um determinado procedimento faz perigar as garantias de isenção, de
transparência e de imparcialidade, pois visa-se com ele evitar a prática de certas condutas que possam ser
tidas como suscetíves de afetar a imagem pública de imparcialidade.” (Processo nº 0551/09, julgado em
27.01.2010).
228
O princípio do contraditório ou audiência é expressado tradicionalmente por meio do brocardo latino
“audiatur et altera pars e nem inaudititus dammari potest, ou seja, ninguém pode ser condenado sem ser
ouvido em juízo.
229
CALAMANDREI Piero. Processo y democracia. Buenos Aires: Editoriales Jurídicas Europa-América, 1960,
p. 147. Qualificado como princípio fundamental do processo, sua força motriz, sua garantia suprema.
94

Sua importância é evidente, não só quando considerado elemento necessário de todo


processo próprio de um Estado de Direito, mas também por sua íntima relação com outros
princípios ou garantias como o direito de defesa,230 do qual é pressuposto de efetividade, e do
princípio da igualdade de armas (extraído da denominação alemã Waffengleichhit), que é o
seu complemento necessário.231
Leciona Eugenio Pacceli de Oliveira, ao tratar do processo penal – mas em tudo
aplicável ao processo disciplinar –, que

O contraditório, portanto, junto ao princípio da ampla defesa, institui-se como a


pedra fundamental de todo processo e, particularmente, do processo penal. E assim é
porque, como cláusula de garantia instituída para a proteção do cidadão diante do
aparato persecutório penal, encontra-se solidamente encastelado no interesse público
da realização de um processo justo e equitativo, único caminho para a imposição da
sanção de natureza penal.232

O contraditório não supõe só a possibilidade de intervir na conformação e no


desenvolvimento do processo, mas deve ser feito em condições de igualdade. O contraditório
só tem sentido quando se concede às partes os mesmos direitos e possibilidades, sem
privilegiar um ou outro.
No Direito brasileiro, o princípio do contraditório está proclamado no artigo 5º, LV233
da Constituição Federal e em diversas leis ordinárias, como na Lei Federal nº 9784, de 1999,
em seu art. 2º.234
Leciona Vicente Greco Filho que

[...] o contraditório se efetiva assegurando-se os seguintes elementos: a) o


conhecimento da demanda por meio de ato formal de citação; b) a oportunidade, em
prazo razoável, de se contrariar o pedido inicial; c) a oportunidade de produzir prova
e se manifestar sobre a prova produzida pelo adversário; d) a oportunidade de estar

________________________
230
São muitas as conexões que apresenta o princípio do contraditório com outros princípios do ordenamento
jurídico, tanto sem sentido geral como processual, porém sua analise excede obviamente os limites deste
trabalho. A doutrina Alemã, partindo da Lei Fundamental de Bonn, de 23 de março de 1949, analisou com
detalhes estas interações dos princípios constitucionais, com a dignidade da pessoa humana e com o Juiz
natural. (CATENA, Vitor Manuel Moreno. La defensa em el processo penal. Madrid: Civitas, 1992, p. 562.)
231
Para o Tribunal Constitucional Espanhol, “El derecho que todos tienen a ser informados de la acusación
formulada contra ellos es una garantía en favor del equilibrio entre acusador y acusado en el proceso penal. La
ruptura de este equilibrio en contra del acusado, al no conocer este en concreto cuáles son los hechos punibles
que se le imputan puede producirle indefensión.” (Sentença nº 9 de 21 de março de 1982).
232
Curso de Processo Penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 44.
233
“LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.” (Grifos nossos).
234
“Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade,
motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica,
interesse público e eficiência.” (Grifos nossos).
95

presente a todos os atos processuais orais, fazendo consignar as observações que


desejar; e) a oportunidade de recorrer da decisão desfavorável.235

Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, encontramos que são três os direitos


consagrados pelo princípio da ampla defesa e do contraditório:

(I) - direito à informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a
informar à parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele
constantes;
II) – direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defendente a
possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e
jurídicos constantes do processo (cf. Decisão da Corte Constitucional – BverfGE 11,
218 (218); Cf. DÜRIG/ASSMANN. In: MUNS-DÜRIG. Grundgesetz-Kommentar,
Art. 103, v. IV, nº 97);
(III) – direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf erucksichtigung), que
exige do julgador capacidade de apreensão e isenção de ânimo (Aufnahmefähigkeit
und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas (cf. PIEROTH,
Bodo; SCHLINK, Bernhard. Grundrechte – Staatsrecht II, cit p. 286; BATTIS,
Ulrich; GUSY, Christoph. Einführung in das Staatsrecht, cit. P. 363-364; ver,
também DÜRIG/ASSMANN. In: MAUNZ-DÜRIG. Grundegesetz-Kommentar,
Art. 103, v. IV, nº 85-999).236

A efetividade do princípio do contraditório pressupõe o conhecimento da imputação


formulada, assim como de todo o conteúdo dos autos do processo,pois a possibilidade efetiva
de se manifestar e intervir dele depende, garantindo o direito de informação sobre toda a
matéria processual.237

3.3.3.1 Conteúdo essencial

O princípio do contraditório exige do legislador ordinário, para sua concretização e


máxima efetividade, uma regulação do processo para que as partes disponham de plenas
faculdades de intervenção.
O processo penal, civil ou administrativo está presidido pelo princípio do contraditório
quando as partes – em igualdade de condições – têm a possibilidade efetiva de fazer valer
suas respectivas pretensões e resistências, mediante a introdução dos fatos que as
fundamentam e solicitando as práticas das provas correspondentes, assim como o
reconhecimento ao acusado do direito de ser ouvido previamente à imposição de uma pena ou

________________________
235
Direito Processual Civil Brasileiro. v. 2, 11. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 90.
236
Mandado de Segurança nº 22.693, Rel. Ministro Gilmar Mnedes. Julgado em 17.11.2101.
237
São muitos os aspectos dos quais se deve informar ao acusado, porém não corresponde neste trabalho o que se
denomina matéria processual, pois o objeto de nosso trabalho é só um deles: a informação da acusação.
96

sanção, dentro do qual tem cabimento, entre outros, o direito a falar por último, máxima
expressão do direito de autodefesa.238
No processo administrativo disciplinar, o interrogatório já era o último ato da
instrução239 antes da mudança na legislação processual penal. Contudo, defendemos em artigo
doutrinário que, caso o processo disciplinar esteja lastreado nas mesmas provas do processo
penal (prova emprestada), o interrogatório do acusado naquele não poderá ser realizado antes
de o ser neste, sob pena de ferir o direito à autodefesa, uma vez que no interrogatório
disciplinar o acusado se veria na necessidade de antecipar fatos ainda pendentes de instrução
no processo penal, sempre menos célere.

[...] caso o acusado seja chamado a dar sua versão dos fatos no processo
administrativo disciplinar antes mesmo que se inicie a instrução processual penal,
haverá, ainda que indiretamente, mas sem escapatória, desastrosa privação, no
processo criminal, do interrogatório como meio de defesa, e ferido de morte restará,
por via transversa, o seu direito ao devido processo legal e à ampla defesa
constitucionalmente garantido. E pior, justamente na esfera penal, a mais severa de
todas as instâncias, pois a controvérsia que nela se estabelece repercute sobre a
própria liberdade de ir e vir, bem supremo da vida.
Nem se lance a objeção de que o acusado, tanto na esfera administrativa quanto na
penal, detém o direito constitucional a permanecer calado. Permanecer calado é um
direito do acusado, que pode exercê-lo ou não. O acusado tem o direito de se
defender, de dar sua versão dos fatos em todas as instâncias, e para isso deve o
Estado lhe garantir seus direitos constitucionais ao devido processo legal e à ampla
defesa em sua plenitude, o que, in casu, não será alcançado se tiver que depor em
um processo administrativo sobre os mesmos fatos antes de ter se iniciado a
instrução do processo criminal correlato e no qual o legislador lhe garantiu o direito
de falar por último.
[...]
Portanto, o interrogatório na esfera administrativa, sobre os mesmos fatos, antes
daquele previsto na sobreveniente legislação processual penal (art. 400, CPP) – à
qual deve amoldar-se, dada a inevitável e expressiva imbricação entre os processos
________________________
238
No Direito Processual Penal brasileiro, o direito de falar por último só foi conquistado com o advento da Lei
Federal nº 11.719, de 20 de junho de 2008, que deslocou o interrogatório no processo penal ordinário para o
último ato da instrução probatória. Antes desse diploma legal, o interrogatório era o primeiro ato do processo,
incompatível com o pressuposto lógico-dialético dos postulados constitucionais do contraditório: a prerrogativa
do acusado de falar por último.
Ao apreciar o Habeas Corpus nº 135.841 anotou o Superior Tribunal de Justiça Habeas Corpus nº 135.841: “É
inegável que o interrogatório do acusado, em razão da reforma a qual foi submetido o Código de Processo
Penal, passou a ser reconhecido como instrumento de defesa, o qual será realizado ao final da audiência de
instrução, a fim de que o acusado possa realizar sua autodefesa, com a ciência de todas as circunstâncias
pronunciadas, no referido ato processual, a partir da oitiva das testemunhas”. (6ª T. Rel. Min. Vasco Della
Giustina (Des. Conv. do TJ/RS), DJe 01.02.2012).
Também no Supremo Tribunal Federal a novel legislação foi recebida com entusiasmo: “Ora, possibilitar que o
réu seja interrogado ao final da instrução, depois de ouvidas as testemunhas arroladas, bem como após a
produção de outras provas, como eventuais perícias, a meu juízo, mostra-se mais benéfico à defesa, na medida
em que, no mínimo, conferirá ao acusado a oportunidade para esclarecer divergências e incongruências que,
não raramente, afloraram durante a edificação do conjunto probatório”. (AP 528, Rel. Ministro Ricardo
Lewandowski).
239
“Art. 159. Concluída a inquirição das testemunhas, a comissão promoverá o interrogatório do acusado,
observados os procedimentos previstos nos arts. 157 e 158.”
97

administrativo disciplinar e criminal –, só trará prejuízos ao acusado, haja vista


que, se este apresentar sua versão dos fatos, estará abdicando do direito de
falar por último; se mudar a versão, a credibilidade do seu depoimento estará
comprometida; se ficar calado ou se abstiver de responder a tal ou qual
pergunta, estará renunciando ao seu direito de autodefesa. 240 (Grifos nossos).

Uma consideração ampla desse princípio levaria a enquadrá-lo em qualquer direito ou


faculdade concedida às partes no processo que lhes permita dele participar mesmo para, em
última instância, defender-se e poder influir na decisão final. Por isso, é necessário determinar
seu conteúdo essencial, que em concreto diz respeito à necessidade de ser ouvido.

3.3.3.2 Necessidade de ser ouvido

Nos processos penal e administrativo disciplinar, a presença do acusado é um dever


inevitável para o Estado e um direito irrenunciável para o sujeito afetado. Contudo, essa
presença obrigatória visa garantir a maior participação possível do acusado em defesa dos
seus direitos e interesses. Não podemos, entretanto, chegar à conclusão de que o acusado seja
obrigado a participar efetivamente, pois como contraponto lhe assiste o direito a não declarar
contra si mesmo e a não confessar-se culpado. O direito a ser ouvido é uma faculdade do
acusado, que pode exercê-la ou não, porém não pode ser obrigado a ele.
Neste sentido, o voto do Ministro Celso de Mello:

Mas, de qualquer maneira, o réu tem o direito de ser interrogado; pode,


eventualmente, calar-se; pode, eventualmente, abster-se de qualquer resposta. Mas,
de todo modo, tendo uma visão global de todos os elementos de informação até
então produzidos, ele então poderá estruturar melhor a sua defesa. E, ainda, devemos
ter em consideração que o processo penal é, por excelência, um instrumento de
salvaguarda dos direitos do réu. O Estado delineia um círculo em cujo âmbito torna-
se lícito ao Poder Público fazer instaurar a persecução penal e praticar todos os atos
que levem à comprovação lícita da imputação deduzida contra determinada pessoa.
O que não se pode é transpor os limites da circunferência, sob pena de o Estado, em
assim agindo, incidir em comportamento ilícito.241

Na mesma linha, anotou o Ministro Cezar Peluso:

[...] em essência, a autodefesa consubstancia-se nos direitos de audiência e de


presença ou participação: Com relação à autodefesa, cumpre salientar que se
compõe ela de dois aspectos, a serem escrupulosamente observados: o direito de
audiência e o direito de presença. O primeiro traduz-se na possibilidade de o

________________________
240
VIEIRA, Rubens Carlos. Diálogos entre as instâncias penal e administrativa sancionatória. Revista Jurídica
Consulex, n. 423, p. 51 e ss.
241
Habeas Corpus 104.673.
98

acusado influir sobre a formação do convencimento do juiz mediante o


interrogatório. O segundo manifesta-se pela oportunidade de tomar ele posição, a
todo momento, perante as alegações e as provas produzidas, pela imediação com o
juiz, as razões e as provas produzidas Também chamada de defesa material ou
genérica, a autodefesa é exercida mediante atuação pessoal do acusado, sobretudo no
ato do interrogatório quando oferece ele sua versão sobre os fatos ou invoca o direito
ao silêncio, ou, ainda, quando, por si próprio, solicita a produção de provas, traz
meios de convicção, requer a participação em diligências- e acompanha os atos de
instrução.242

O conhecimento desses aspectos permite ao acusado articular sua defesa, já que do


contrário o direito de defesa restaria vazio de conteúdo, sendo impossível o debate processual
que o contraditório garante. Essa exigência supõe uma sucessão temporal entre a imputação e
a defesa e necessariamente a obrigação de informação a respeito da imputação formulada.
A informação sobre as matérias de fato não apresenta problemas, pois o sistema
processual moderno está regulado de maneira, ao menos teórica, a garantir que não existam
obstáculos ao conhecimento efetivo pelas partes das matérias de fato alegadas pela parte
contrária carreadas aos autos do processo. Se o juiz ou administrador se valer de uma
alegação de uma parte que permaneceu secreta para a outra, estar-se-á diante de clara nulidade
processual.
Para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, o direito de ser ouvido exige não só
que o acusado seja ouvido por um juiz ou comissão processante, mas que possa participar
amplamente do processo.243Tampouco há problema também, em princípio, em torno dos
argumentos jurídicos esgrimidos pelas partes, pois estes, em virtude do princípio iura novit
curia, não vinculam o julgador, que pode inclusive formular sua própria qualificação dos
fatos, os quais deverão ser levados ao conhecimento das partes, oferecendo-lhes a
possibilidade de oferecer alegações em torno delas.
O princípio da audiência proíbe que qualquer das partes do processo se veja
prejudicada por uma decisão, notadamente uma sentença, sobre a qual não tivera
oportunidade de se defender nem se fazer ouvir. É, pois, evidente a relação entre direito de
defesa e o contraditório, porém, isto não pode levar à sua equiparação, já que nem toda
infração de uma norma jurídica que conceda ao sujeito possibilidade de atuação conveniente
para se defender no processo supõe vulneração da audiência.

________________________
242
Habeas Corpus 114.004.
243
Corte IDH. Caso Apitz Barbera e outros versus Venezuela: “Excepción Preliminar, Fondo, Reparaciones y
Costas. Sentencia del 5 de agosto de 2008, párrafo 78: “De este modo, la Corte declaró la violación del artículo
8.1, pues, en efecto, si bien los trabajadores accedieron a la Sala Tercera y fueron oídos por este Tribunal,
quedó evidenciado que esto no era suficiente para garantizar una participación amplia en el proceso. Así, no
bastó con solo ser oído por un Tribunal que no valoró dicha participación a lo largo del processo.”
99

Para o Ministro Cesar Peluso,

[...] o direito de ser ouvido pelo magistrado que o julgará constitui consequência
linear do direito à informação acerca da acusação. Concretiza-se no interrogatório,
que é, por excelência, o momento em que o acusado exerce a autodefesa, e, como
tal, é ato que, governado pelo chamado princípio da presunção de inocência, objeto
do art. 5º, inc. LVII, da Constituição da República, permite ao acusado refutar a
denúncia e declinar argumentos que lhe justifiquem a ação.

3.3.4 Direito à ampla defesa

O direito à ampla defesa proclamado no artigo 5º, LV da Constituição Federal de 1988


é, como os demais já citados, um princípio fundamental e garantia essencial do processo
disciplinar que implica um conjunto de garantias a favor do agente público submetido a um
processo, substanciais ao Estado Democrático de Direito. Neste sentido, implica para as partes
a possibilidade efetiva de fazer valer seus direitos e interesses dentro do processo, presidindo
sua atuação nos mesmos princípios do contraditório e da igualdade de armas.
Dessas considerações, infere-se a indiscutível relação dos direitos à ampla defesa e ao
contraditório. Estes direitos têm como pressuposto básico e condição de efetividade a
possibilidade de o agente público poder intervir efetivamente no processo em defesa dos seus
direitos e interesses legítimos, isso significa a oportunidade de uma real contradição do
acusado, que pressupõe, por sua vez, o conhecimento da imputação formulada.
A defesa aparece como a outra face da imputação.244 Mediante o direito de imputação
pela Administração Pública, o ordenamento jurídico próprio de um Estado de Direito deve
reconhecer um direito de sentido contrário: o direito de obter a tutela efetiva mediante a
defesa adequada.
A defesa é uma exigência do princípio do contraditório, entendida como Direito
Público Constitucional que assiste à parte processual dialeticamente oposta à imputação, e que
é exercida tanto pelo acusado como por seu advogado. Com efeito, outorga-se a seus titulares
um conjunto de garantias e direitos instrumentais suficientes para contestar a pretensão penal
ou administrativa e fazer valer eficazmente dentro do processo os direitos do acusado, o qual,
por não haver sido condenado, se presume inocente.

________________________
244
MONTERO ROCA, Juan. La garantia processal penal y el principio acuatorio. Granada: Comares, 1996, p.
48.
100

3.3.4.1 Conteúdo essencial

Robespierre, em seu discurso ante a Assembleia Constituinte de 1790, se perguntava:

[...] a quem pertence o direito de defender os interesses dos cidadãos? A eles


mesmos, é o direito mais sagrado. Se não é a mim mesmo permitido defender minha
vida, minha liberdade, minha honra, minha fortuna, ou bem recorrendo a quem
considero mais probo, mais iluminado, o mais fiel a meus interesses, então vocês
violam ao mesmo tempo a lei sagrada da natureza e a da justiça, e todas as noções de
ordem social.245

André Ramos Tavares discorre sobre as garantias que integram a ampla defesa:

Ampla defesa é o asseguramento de condições que possibilitam ao réu apresentar,


no processo, todos os elementos de que dispõe. Entre as cláusulas que integram a
garantia da ampla defesa encontra-se o direito à defesa técnica, a fim de garantir a
paridade de armas (‘par conditio’), evitando o desequilíbrio processual, a
desigualdade e injustiça processuais. Também integra a ampla defesa o direito de ser
informado da acusação inicial (o que é praticamente um pressuposto para que haja
direito de defesa), e de todos os fatos arrolados, assim como do impulso oficial e dos
demais atos da outra parte, o que envolve o direito à publicidade ou, no caso de
processos sigilosos, o direito de acesso (processo que corra em segredo de Justiça,
como algumas questões atinentes ao Direito de Família e menores).246

Afirma Celso Ribeiro Bastos:

[...] a ampla defesa só estará plenamente assegurada quando uma verdade tiver
iguais possibilidades de convencimento do magistrado, quer seja ela alegada pelo
autor, quer seja ela alegada pelo réu. Às alegações, argumentos e provas trazidas
pelo autor é necessário que corresponda uma igual possibilidade de geração de tais
elementos por parte do réu. O contraditório, por sua vez, se insere dentro da ampla
defesa. Quase que com ela se confunde integralmente na medida em que uma defesa
hoje em dia não pode ser senão contraditória. O contraditório é pois a exteriorização
da própria defesa. A todo ato produzido caberá igual interpretação jurídica diversa
daquela feita pelo autor. Dai o caráter dialético do processo que caminha através de
contradições a serem finalmente superadas pela atividade sintetizadora do juiz.247

O direito à ampla defesa apresenta fundamentalmente duas manifestações: a


autodefesa, também chamada defesa material, e a defesa técnica ou formal.248

3.3.4.1.1 A autodefesa ou defesa material

A autodefesa se exerce pelo próprio acusado participando dos atos processuais,


apresentando provas e requerimentos e exercitando medidas de impugnação. No processo
________________________
245
BATTISTA, Anna María. Robespierre, il Principi della democrazia. Clua: Pescara, 1983, p. 69. Tradução
livre.
246
Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 654.
247
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 227.
248
“A ampla defesa se dará pela autodefesa e pela defesa técnica, que não se confundem nem se excluem.”
(Superior Tribunal de Justiça. STJ, HC 9.750 SP, rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 19.02.01.
101

administrativo disciplinar federal, não se exige a capacidade postulatória, de modo que o réu
pode exercer todos os atos do processo sem estar representado por advogado.
Especial e fundamental manifestação de autodefesa é o direito de falar por último, que
permite ao acusado expor tudo que considere conveniente para sua defesa que ainda não tenha
sido suficientemente aclarado, ou simplesmente reiterar o que se tenha sido dito por seu
advogado, conforme tratamos nos tópicos anteriores. Diz Fernando Gómez de Liaño
González que a viva voz do acusado é um elemento personalíssimo e essencial para sua
defesa em juízo.249

3.3.4.1.2 A defesa técnica ou formal

A defesa técnica ou formal é a realizada por advogado sobre as questões jurídicas


materiais e processuais, além de esse profissional aconselhar e assessorar o acusado. O direito
a defesa técnica está proclamado na Constituição Federal250 e nas Garantias Judiciais da
Convenção Americana de Direitos Humanos.251
Entendemos que nosso ordenamento jurídico vai mais além, colocando a defesa como
um direito fundamental do acusado, que configura uma garantia essencial ao processo,
encontrando assim sentido e justificativa à defesa de ofício. Esta obrigatoriedade de não ser
processado sem advogado se converte em um mecanismo autoprotetor e legitimador do

________________________
249
GONZÁLEZ, Fernando Gómez de Liaño. El Proceso Penal ante el Tribunal del Jurado. Oviedo: Forum,
1992, p. 501.
250
Sobre esta questão, manifestou-se Alexandre de Morais no âmbito do Conselho Nacional de Justiça: “Caros
Conselheiros, conforme salientei na decisão monocrática a Constituição Federal, ao prever o dever do Estado
em prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, pretende
efetivar diversos outros principias constitucionais, tais como igualdade, devido processo legal ampla defesa,
contraditório e, principalmente, pleno acesso a Justiça. Sem assistência jurídica integral e gratuita aos
hipossuficientes, não haveria condições de aplicação imparcial e equânime de Justiça. Trata-se, pois, de um
direito público subjetivo consagrado a todo aquele que comprovar que sua situação econômica não lhe permite
pagar os honorários advocatícios, custas processuais, sem prejuízo para seu próprio sustento ou de sua família;
tendo sido, pois, imposto ao Poder Público o dever de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que
comprovarem insuficiência de recursos, inclusive pagamento de advogado quando da inexistência de órgão
estatal de assistência jurídica (STF -Pleno - RE. no 103.950-O/SP - Rel. Min. Oscar Corrêa, Diário da Justiça,
Seção I, 8 dez. 1985, p. 17.477) e honorários de perito (STJ - 3a T. - REsp. n 25.841-11RJ - Rel. Min. Cláudio
Santos - Ementário STJ, n. 9/551. PP - Pedido de Providências nº 793, julgado em 12.09.2006. O Tribunal
Europeu de Direitos Humanos garante aos acusados o direito “a una defensa adecuada, sea personalmente o a
traves de un abogado, derecho reforzado por la obligacion, que incumbe al Estado, de suministrar en algunos
casos uma asistencia letrada gratuita” (Caso Artico contra Itália, de 13 maio de 1980, parágrafo 33).A
Comissão de Direitos Humanos da Oficina do Alto Comissariado para os Direitos Humanos das Nações
Unidas, instou os Esatdos a garantirem que toda pessoa submetida a um processo tenha direito a ser julgada
pessoalmente e a defender-se por si mesma ou mediante advogado de sua própria eleição. (Resolução
2003/39).
251
Artigo 8.2.a: “direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua
escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor”.
102

sistema processual administrativo, já que o advogado vela pelo cumprimento das “regras do
jogo”, pelo desenvolvimento adequado do processo. Igualmente esgrime-se como um segundo
fundamento de direito a exigência de igualdade de armas, já que os membros da comissão
processante ou são profissionais do Direito ou contam com a assessoria jurídica destes,
enquanto o acusado não necessariamente ostenta formação jurídica, de modo que deve ser
assistido por um profissional que se pressuponha possuir idênticos conhecimentos jurídicos e
que possa fazer valer corretamente todos os direitos do seu defendido, salvo se expressamente
o dispensar.
Neste conteúdo essencial do direito à defesa técnica, tal e como se depreende da
Constituição Federal, podemos encontrar duas notas definidoras: 1) todo acusado em processo
disciplinar tem direito a um advogado que o defenda – esse direito se vê satisfeito seja qual
for a modalidade de designação (livre eleição ou defensor público, nos casos em que couber);
2) esse direito se exerce durante todo o processo, desde a notificação inicial do acusado até a
decisão final da autoridade instauradora.

3.3.4.2 Direito à produção de provas

Outro elemento essencial à ampla defesa e ao contraditório, inclusive nos processos


disciplinares, ressaltado pelo Supremo Tribunal Federal, é o direito do acusado à produção de
provas. Trata-se, também, de direito intimamente ligado ao direito de ser informado da
acusação – este é um pré-requisito àquele, pois não é possível produzir provas contra o que
não se conhece.
A produção de provas no processo administrativo ou judicial compreende dois
momentos distintos: o primeiro é a proposição para produção da prova, o qual será avaliado
pela administração ou pelo juiz quanto à pertinência para elucidação dos fatos; uma vez
deferida a produção, deve a administração ou o juiz encetar os meios necessários para a sua
produção, como, por exemplo, intimar uma testemunha.
O direito à produção de provas pode ser violado de três formas: ou porque não se
admitiu a produção de uma prova pertinente; ou porque não se admitiu sem motivar; ou
porque, embora admitida, não se permitiu a prática, pois não permitir a prática equivale a não
admitir.
103

Quem seja parte em um processo disciplinar tem esse direito. Contudo, as provas que
o acusado tem direito a propor à produção são as pertinentes, e este juízo de pertinência é
exercido pelo presidente da comissão, nos termos do art. 156, § 2º da Lei nº 8.112/90.252
O indeferimento de prova proposta pelo acusado deve ser motivado com razões
razoáveis, como a desnecessidade, a ausência de controvérsia sobre o fato sobre o qual recairá
a prova pretendida e as impossíveis de serem produzidas e as ilegais, sob pena de ferir direito
fundamental. Uma vez deferida a produção, o acusado tem direito à produção da prova.
Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento de que é direito do
acusado em processo disciplinar “ver inquiridas as testemunhas que arrolou em tempo
oportuno e dentro do limite numérico legalmente admissível, sob pena de inqualificável
desrespeito ao postulado constitucional do ‘due process of law’ ”.253

3.4 SUJEITOS DA INFORMAÇÃO

A informação sobre a acusação é um direito para todo sujeito passivo de um processo


disciplinar, tendente a lograr o equilíbrio entre acusação e defesa. Porém, também é uma
obrigação para os órgãos públicos que intervêm no processo. As autoridades públicas
encarregadas da persecução disciplinar, no âmbito de suas competências, e ao longo de todo o
processo, têm a obrigação de informar ao sujeito passivo a acusação existente em todos os
seus termos.

________________________
252
“Art. 156. É assegurado ao servidor o direito de acompanhar o processo pessoalmente ou por intermédio de
procurador, arrolar e reinquirir testemunhas, produzir provas e contraprovas e formular quesitos, quando se
tratar de prova pericial.
§1º O presidente da comissão poderá denegar pedidos considerados impertinentes, meramente protelatórios, ou
de nenhum interesse para o esclarecimento dos fatos”. A jurisprudência tem interpretado este artigo de forma
restrita, conforme se depreende da leitura dos seguintes julgados: “ADMINISTRATIVO - MANDADO DE
SEGURANÇA - PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR - PRODUÇÃO DE PROVA -
VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA. 1. Nos termos do art. 5º, LV, da Constituição
Federal aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. 2. Conquanto possa o Presidente
da Comissão denegar pedidos de produção de provas considerados impertinentes, meramente
protelatórios, ou de nenhum interesse para o esclarecimento dos fatos, verifico que nenhuma destas
hipóteses se amolda ao presente caso. 3. Correta a decisão do juízo a quo em determinar a suspensão do
processo administrativo até que sejam juntadas aos autos da sindicância as fichas financeiras ou certidões de
cada Superintendência Estadual da PRF que retratem se foi ou não efetivado o pagamento considerado ilegal
também nestes outros Estados. 4. Os impetrados são acusados de efetuar pagamento ilegais para policiais
federais rodoviário no Estado do Mato Grosso, tendo como tese de defesa a alegação de que em todo o país o
entendimento jurídico de ser devido o pagamento foi o mesmo, o que implicaria em falta de dolo,
influenciando diretamente na pena a ser aplicada. 5. Remessa não provida. Tribunal Regional da 1ª Região:
Recurso em Mandado de Segurança 0001846-54.2000.4.01.3600 / MT, Rel. JUIZ FEDERAL MARK
YSHIDA BRANDÃO, e-DJF1 p.450 de 27/01/2012.)
253
HC 96.905/RJ, Rel. Min. Celso de Mello.
104

A informação deve ser realizada por escrito, com comprovante de recebimento,


inclusive dos documentos que porventura a instruam. Não se admite informação verbal ante a
sua imprecisão e impossibilidade de comprovação nos autos de que o ato fora praticado
corretamente.
No ordenamento processual disciplinar federal, cumpre ao presidente da comissão dar
ciência ao acusado da acusação contra ele formulada, devendo fazê-lo imediatamente após a
instalação da comissão.
O receptor da informação é o sujeito passivo do processo contra quem se dirige a
acusação, que deve recebê-la pessoalmente, ainda que tenha advogado constituído nos autos.
Este deve ter conhecimento dos fatos que lhe são imputados para que possa se defender
efetivamente. O problema que aparentemente se instala nessa parte processual é a confusão
criada pelas diferentes denominações que a Lei nº 8.112, de 1990, lhe outorga – acusado (art.
159 e outros), indiciado (art. 162), dentre outros –, como consequência do fato de que o
sujeito pode passar por diversas situações ao longo do processo, de modo que não se pode lhe
dar um conceito unicompreensivo.
Isso não impede que a aquisição de qualquer desses estados afaste seus direitos e
garantias processuais, como um autêntico sujeito e não um mero objeto de prova ou
investigação. Com efeito, o problema é só aparente. Na processualista moderna, o
acusado/indiciado não é considerado exclusivamente como sujeito passivo de determinadas
medidas que deve sofrer, mas ocupa uma posição de participação processual ativa e efetiva. É
o duplo caráter o que configura a posição jurídica do acusado no processo.254
Em princípio, os procedimentos investigatórios preliminares podem ser deflagrados
sem que haja um acusado pelos fatos investigados, pois é função da Administração averiguar
a identidade do responsável e a efetiva ocorrência do fato.255 Todos os demais só podem ser
desenvolvidos se a parte passiva se encontrar concretamente determinada e identificada.

________________________
254
GÓMEZ COLOMER, J. L. El processo penal alemán. Introdución y normas básicas. Barcelona: Bosch,
1995, p. 78.
255
São eles: 1) A investigação preliminar, prevista na Portaria CGU nº 335/06, a qual, no inciso I do seu art. 4º,
assim a conceitua como ‘procedimento sigiloso, instaurado pelo. Órgão Central e pelas unidades setoriais, com
objetivo de coletar elementos para verificar o cabimento da instauração de sindicância ou processo
administrativo disciplinar; 2) A sindicância investigativa, preparatória ou inquisitorial, prevista no artigo 4º, II,
da Portaria CGU nº 335/06, definida como o ‘procedimento preliminar sumário, instaurada com o fim de
investigação de irregularidades funcionais, que precede ao processo administrativo disciplinar, sendo
prescindível de observância dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa’; e 3) a
sindicância patrimonial, destinada a apurar enriquecimento ilícito, tipificada no inciso VII do art. 9º da Lei nº
8.429/92 (lei de improbidade administrativa), prevista no Decreto nº 5.483, de 30 de junho de 2005, e na
Portaria CGU nº 335/06. Todos estes instrumentos prescindem da obediência ao contraditório e a ampla defesa
e não direito não há direito do acusado de ser informado da acusação, pois ainda não há acusado nem acusação.
105

Portanto, o primeiro conteúdo essencial do direito de ser informado da acusação é o de


que uma autoridade pública está obrigada a informar imediatamente sobre a acusação quando
exista ao menos um suspeito.

3.5 O MOMENTO DA INFORMAÇÃO

O segundo aspecto essencial que integra o conteúdo essencial do direito de ser


informado da acusação é o momento em que isso deve se realizar. Tendo em mira a
significação que o conhecimento acerca da acusação representa para a defesa do acusado, é
necessário que seja realizado imediatamente após a instalação da comissão processante.
O direito a ser informado dos fatos imputados na acusação somente é plenificado se
for observado na porta de entrada do processo, ou seja, no momento de sua deflagração,
mediante notificação prévia ou citação do acusado. De outro modo, passado esse momento, o
direito fundamental de ser informado da acusação perde a sua essência e o seu valor
instrumental para o exercício do direito de defesa. Conhecer tardiamente a acusação equivale
a dela não tomar conhecimento, a permitir a produção de provas de forma unilateral sem a
necessária fiscalização da defesa.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao apreciar o caso Tibi versus
Equador,256 decidiu que o artigo 8.2.b da Convenção Americana de Direitos Humanos exige
que as autoridades judiciais competentes devem notificar o acusado da acusação contra ele
formulada, suas razões e os delitos ou faltas pelas quais se lhe pretende atribuir
responsabilidade, de forma prévia à realização da instrução processual.257

________________________
Neste sentido: “A estrita reverência aos princípios do contraditório e da ampla defesa só é exigida, como
requisito essencial de validez, assim no processo administrativo disciplinar, como na sindicância especial que
lhe faz às vezes como procedimento ordenado à aplicação daquelas duas penas mais brandas, que são a
advertência e a suspensão por prazo não superior a trinta dias. Nunca, na sindicância que funcione apenas
como investigação preliminar tendente a coligir, de maneira inquisitorial, elementos bastantes à imputação de
falta ao servidor, em processo disciplinar subsequente”. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Mandado de
Segurança nº 22.791. Relator: Ministro Cezar Peluzo, Data de Julgamento: 13.11.2003, Tribunal Pleno, DJe de
19.12.2003).
“1.A sindicância que vise apurar a ocorrência de infrações administrativas, sem estar dirigida, desde logo, à
aplicação de sanção, prescinde da observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa, por se tratar
de procedimento inquisitorial, prévio à acusação e anterior ao processo administrativo disciplinar”.
(Superior Tribunal de Justiça. Mandado de Segurança nº 7.983. Relator: Ministro Hélio Quaglia Barbosa, Data
de Julgamento: 23.02.2005, Terceira Seção, DJe de 30.03.2005).
256
Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_114_esp.pdf>.
257
“Respecto al derecho a la comunicación previa al in culpado de la acusación formulada: 187. El artículo 8.2.b
de la Convención Americana ordena a las autorida des judiciales competentes no tificar al inculpado la
acusación formulada en su contra, sus razones y los delitos o faltas por los cuales se le pretende atribuir
responsabilidad, en forma previa a la realización del proceso. Para que este derecho opere en plenitud y
satisfaga los fines que le son inherentes, es necesario que esa notificación ocurra antes de que el inculpado
106

No mesmo sentido, ao julgar o Caso Castillo Petruzzi e outros versus Peru,258 aquela
Corte reconheceu a violação do direito de defesa em face da comunicação tardia dos fatos
imputados, uma vez que os acusados não tiveram conhecimento oportuno e completo do fato
que lhes era imputado. As condições em que atuaram os defensores foram absolutamente
inadequadas para seu eficaz desempenho e só tiveram acesso ao expediente no dia anterior ao
proferimento da sentença de primeira instância.259
Na mesma linha de entendimento, a Corte Europeia de Direitos Humanos estabeleceu
que a efetividade do direito a ser informado da acusação requer que esta seja rápida (Fox,
Campbell e Hartley versus Reino Unido, de 30 de agosto de 1990), completa (Lamy versus
Bélgica, 30 de março de 1989) e inteligível (Fox, Campbell e Hartley versus Reino Unido, 30
de agosto de 1990).
Para Luso Arnaldo Pedreira Simões,

O indiciado precisa conhecer da res in jure vocata para estruturar sua defesa. Não
basta ouvi-lo a respeito dos fatos inquinados de irregularidades. O conhecimento da
acusação tem de ser prévio, sem surpresas ou armadilhas. E isto porque, afinal, uma
possível sanção não o poderá alcançar pelo motivo de não ter sido formalmente
acusado e em face do que não se pôde defender.260

A razão para que o conhecimento da imputação se dê no ato de notificação é permitir


que o acusado tenha o tempo necessário para preparar e organizar sua defesa, acompanhando

________________________
rinda su primera declaración. Sin esta garantía, se vería conculcado el derecho de aquél a preparar debidamente
su defensa. 188. En el caso sub judice que dó demostrado que no se notificó a la presunta víctima del auto
cabeza del proceso ni los cargos que había em su contra. 189. En consecuencia, este Tribunal declara que el
Estado violó el artículo 8.2.b de la Convención Americana en perjuicio del señor Tibi.”
258
“140. La condena del señor Astorga Valdez pone aún más en evidencia la escasa posibilidad de ejercer una
defensa efectiva del inculpado. En dicho caso, el inculpado fue condenado en última instancia con base en una
prueba nueva, que el abogado defensor no conocía ni pudo contradecir. 141. La Corte estima que, la restricción
a la labor de los abogados defensores y la escasa posibilidad de presentación de pruebas de descargo han
quedado demostradas en este caso. Efectivamente, los inculpados no tuvieron conocimiento oportuno y
completo de los cargos que se les hacían; las condiciones en que actuaron los defensores fueron absolutamente
inadecuadas para su eficaz desempeño y sólo tuvieron acceso al expediente el día anterior al de la emisión de
la sentencia de primera instancia. En consecuencia, la presencia y actuación de los defensores fueron
meramente formales. No se puede sostener que las víctimas contaron com uma defensa adequada”.
Disponível em: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_52_esp.pdf>.
259
O Tribunal Constitucional Espanhol segue na mesma direção: “La imputación no ha de retrasarse más allá de
los estrictamente necesario, pues, estando obligado al nacimiento del derecho de defensa a la existencia de la
imputación se ha de ocasionar la frustración de tal derecho fundamental si el juez de la instrucción retrasa
arbitrariamente la puesta en conocimiento”. (Publicado no BOE n. 54, de 3 de março de 2000, seção
Suplemento do Tribunal Constitucional, p. 18-25).
260
SIMÕES, Luso Arnaldo Pedreira. Anotações sobre o processo administrativo disciplinar. Revista da
Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, São Paulo: Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, n. 16,
jun. 1980, p. 263.
107

a instrução processual dede o seu nascedouro, assim como para fiscalizar a regularidade de
toda a produção probatória.
A comunicação tardia impossibilita o exercício do contraditório e da ampla defesa,
pois, sem saber de quais fatos é acusado, o servidor não poderá exercer seu direito de defesa
em sua plenitude, como contestar provas, arrolar e reinquirir testemunhas ou requer perícias.
A comunicação da acusação tardiamente, seja no procedimento penal, seja no
administrativo sancionatório, não apenas acarreta a inviabilidade e a ineficácia da defesa, mas
revela – o que também é de extrema gravidade – a intencionalidade e a parcialidade estatal ou
do agente administrativo preposto de tentar atribuir aparência de regularidade e de
legitimidade ao procedimento utilizado para fins escusos.
Não é incomum, especialmente em pareceres administrativos, a expressão “foi
assegurado ao acusado o direito à ampla defesa e ao contraditório” pelo simples fato de ter
sido este (acusado) notificado da acusação. Muitas vezes essa expressão não guarda a menor
horizontalidade e verticalidade, ou seja, não avalia se a oportunidade em que a notificação foi
efetuada permitiu assegurar, de fato, o direito à ampla defesa e ao contraditório.
Significa, pois, que não basta dar ciência da acusação. É preciso que a notificação ou a
citação que dá conhecimento da acusação, para cumprir o seu desiderato, seja temporalmente
oportuna e capaz de viabilizar o exercício da ampla defesa e do contraditório.

3.6 CONTEÚDO DA INFORMAÇÃO

A oportunidade em que ocorre a informação não esgota o sentido e a eficácia do


direito fundamental de ser comunicado da acusação. Um segundo aspecto que conforma a
essência conteudística desse direito é o conteúdo do que se comunica ao acusado. Essa
informação deve versar sobre os fatos considerados puníveis e sobre os quais versará o debate
contraditório processual. São estes fatos, junto com a capitulação jurídica, as provas e a
pessoa do acusado, que determinam o objeto do processo.
Informar a acusação de maneira oportuna significa, pois, apenas a aparente
observância do aspecto temporal do direito fundamental de ser informado da acusação. É
preciso, entretanto, verificar o conteúdo da comunicação, no seu aspecto qualitativo.
O fato punível, ao qual faremos constante referência, é o conjunto de elementos fáticos
que a lei descreve como infração disciplinar, os quais integram a acusação.
O conteúdo da acusação a ser levada ao acusado deve permitir a ele conhecer toda a
extensão da acusação em igualdade de condições. A paridade de armas, neste caso, implica
108

permitir ao acusado, além do conhecimento da imputação, o acesso a todos os elementos e


meios de que se valeu a acusação. A garantia da ampla defesa e do contraditório somente
retrataria a igualdade de condições ou de armas se presentes três categorias de elementos
fundamentais e distintos, mas intimamente relacionados: o relato de todos os fatos
constitutivos da infração administrativa que se atribuem ao acusado e sobre os quais se vai
desenvolver o debate no processo sob o crivo do contraditório; a qualificação jurídica desses
fatos e a penalidade legalmente prevista; os indícios de prova do acontecimento do fato e de
ter sido o acusado seu autor (fumus boni juris).
Analisemos esses elementos.

3.6.1 Descrição fática

Iniciado o processo administrativo disciplinar por entender a autoridade que existem


elementos suficientes para a apuração dos fatos e sua autoria, deve-se comunicar ao acusado
todos os seus termos.261 Essa comunicação integra a pretensão punitiva disciplinar, contendo
uma descrição dos fatos puníveis, sua qualificação jurídica, bem como a suposta participação
do acusado e a pena que se entende correspondente à sua participação.
A determinação dos fatos constitui um elemento essencial da informação, para que se
efetivem os princípios acusatório, do contraditório e da ampla defesa. A acusação deve ser
redigida de modo claro e preciso, em linguagem comum, sem a utilização de termos jurídicos
alheios à cultura do homem médio, delimitando e fixando a matéria que será objeto da
instrução processual que se iniciará após a notificação.
A descrição dos fatos tidos por irregulares, além de ser detalhada e específica, deve
estabelecer adequadamente o objeto do processo. A contingência fática não pode ser genérica
ou conter lacunas e deve ser capaz de conduzir a uma relação de causalidade. A descrição de
fatos genéricos ou incompreensíveis não se harmoniza com a exigência do direito a uma
imputação detalhada e, por consequência, inviabiliza o exercício da ampla defesa e do
contraditório.

________________________
261
Neste sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao julgar o caso Fermín Ramírez versus
Guatemala, anotou como conteúdo da acuação que: “La descripción material de la conducta imputada
contiene los datos fácticos recogidos en la acusación, que constituyen la referencia indispensable para el
ejercicio de la defensa del imputado y la consecuente consideración del juzgador en la sentencia. De ahí que
el imputado tenga derecho a conocer, a través de una descripción clara, detallada y precisa, los hechos que se
le imputan”. (Sentença de 20 de junho de 2005, disponível em:
<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_126_esp.pdf>. Acesso em: 20 out. 2014).
109

Com efeito, é necessário estabelecer a concreta configuração do fato (lograr proveito,


inassiduidade, insubordinação grave etc.) e a parte individual que cada pessoa tenha realizado
em concreto. A imputação fática deve individualizar de maneira mais pormenorizada possível
a contribuição do autor, coautor ou autor mediato, com rigorosa precisão fática. Exige-se uma
clara e precisa relação do fato com suas circunstâncias precedentes, concomitantes e
posteriores.
Neste, cita-se decisão do Ministro Celso de Melo262 que, a despeito de proferida em
processo penal, é plenamente aplicável aos processos administrativos disciplinares, litteris:

O processo penal de tipo acusatório repele, por ofensivas, à garantia da plenitude de


defesa, quaisquer imputações que se mostrem indeterminadas, vagas, contraditórias,
omissas ou ambíguas. Existe, na perspectiva dos princípios constitucionais que
regem o processo penal, um nexo de indiscutível vinculação entre a obrigação estatal
de oferecer acusação formalmente precisa e juridicamente apta e o direito individual
de que dispõe o acusado a ampla defesa. A imputação penal omissa ou deficiente,
além de constituir transgressão do dever jurídico que se impõe ao Estado, qualifica-
se como causa de nulidade processual absoluta. A denúncia – enquanto instrumento
formalmente consubstanciador da acusação penal – constitui peça processual de
indiscutível relevo jurídico. Ela, ao delimitar o âmbito temático da imputação penal,
define a própria res in judicio deducta. A peça acusatória deve conter a exposição do
fato delituoso, em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias. Essa
narração, ainda que sucinta, impõe-se ao acusador como exigência derivada do
postulado constitucional que assegura ao réu o exercício, em plenitude, do direito de
defesa. Denúncia que não descreve adequadamente o fato criminoso é denúncia
inepta.

Nas palavras de Eugênio Pacelli e Douglas Fisher, o essencial em qualquer peça


acusatória, seja ela denúncia, seja queixa, é a imputação. Esclarecem os autores a necessidade
de que haja

________________________
262
RTJ 165/877-878. No mesmo sentido: "Não se pode perder de perspectiva, neste ponto, que a análise de
qualquer peça acusatória apresentada pelo Ministério Público impõe que nela se identifique, desde logo, a
narração objetiva, individuada e precisa do fato delituoso, que deve ser especificado e descrito, em todos os
seus elementos estruturais e circunstanciais, pelo órgão estatal da acusação penal. É preciso proclamar que a
imputação penal não pode ser o resultado da vontade pessoal e arbitrária do acusador (RTJ 168/896-897, Rel.
Min. Celso de Mello). Este, para que possa validamente formular a denúncia penal, deve ter por suporte uma
necessária base empírica, a fim de que a acusação não se transforme, como advertia o saudoso Min. Orosimbo
Nonato, em pura criação mental do acusador (RF 150/393). Uma das principais obrigações jurídicas do
Ministério Público, no processo penal de condenação, consiste no dever de apresentar denúncia que veicule, de
modo claro e objetivo, com todos os elementos estruturais, essenciais e circunstanciais que lhe são inerentes, a
descrição do fato delituoso, em ordem a viabilizar o exercício legítimo da ação penal e a ensejar, a partir da
estrita observância dos pressupostos estipulados no art. 41 do CPP, a possibilidade de efetiva atuação, em favor
daquele que é acusado, da cláusula constitucional da plenitude de defesa." (Habeas Corpus nº 84.409/SP,
Trecho do voto do Ministro Celso de Melo. Relator p/ o acórdão. Ministro Gilmar Mendes. DJ de 19 agosto.
2005, p. 57.
110

[...] a precisa atribuição a alguém do cometimento ou da prática de um fato bem


especificado. Esse, ou esses, os fatos devem ser descritos com rigor de detalhes, para
que sobre eles se desenvolva a atividade probatória. A exigência de delimitação
precisa do fato imputado encontra-se na linha de aplicação do princípio
constitucional da ampla defesa. Para que seja ampla a defesa é necessário, então, que
se saiba, com precisão, qual o fato que se diz ser o réu o autor, para que ele possa, na
maior medida possível, definir os meios de prova que se ajustarão à espécie,
segundo os seus interesses, bem como possa também dar a ele (fato) a definição de
direito que favoreça aos interesses defensivos [...]263

No processo administrativo disciplinar, da mesma forma, a descrição fática deve


indicar com precisão a conduta do servidor, inclusive com a razão da censura ou de sua
qualificação como irregular, dando ao acusado conhecer os contornos da acusação.
Neste sentido, tem-se a lição de Mauro Roberto Gomes de Mattos:

A Portaria inaugural, como especialmente o termo de indiciamento, deve


corresponder, por exemplo, como já dito, a uma denúncia penal, onde a descrição
dos fatos, fundamentos e a demonstração das provas, de forma explícita retiram a
inépcia da acusação. Ou seja, o fato apurado é esclarecido exatamente nessa fase,
onde o direito administrativo brasileiro saiu do inquisitório para o acusatório,
passando o investigado a ter direitos impostergáveis e indelegáveis, sendo que um
deles é tão fundamental tanto quanto os demais, consiste em saber do que é acusado
e como demonstrará sua inocência, pois a presunção de inocência milita a seu favor
e só uma acusação séria e concreta é que terá legitimidade de provar o contrário.264

A necessidade da clareza na descrição dos fatos ganhou maior relevo para a defesa do
acusado após a edição da Súmula Vinculante 5 do Supremo Tribunal Federal,265 que fixou o
entendimento de que a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo
disciplinar não ofende a Constituição. Com efeito, caso o acusado – inclusive aquele que não
ostente formação jurídica, não queira constituir advogado – atue na própria defesa, não se
pode admitir que a acusação seja reduzida em linguagem técnico-jurídica ou de difícil
compreensão. A ciência do conteúdo da acusação requer conhecimento sobre os termos em
que os fatos são descritos.

________________________
263
Código de Processo Penal e sua jurisprudência. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 104.
264
MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Lei nº 8.112/90 Interpretada e Comentada. 3. ed. Rio de Janeiro:
América Jurídica, 2006, p. 1030.
265
Embora não seja objeto do presente trabalho, manifestamos nossa contrariedade à edição da referida Súmula,
a qual fere de morte o disposto no artigo 8, 2, e da Convenção Americana de Direitos Humanos, que dispõe ser
direito irrenunciável do acusado ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não,
segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo
estabelecido pela lei.
111

3.6.2 Qualificação jurídica

Descritos os fatos, deve-se também, na mesma peça, qualificá-los legalmente e


determinar a infração disciplinar que constituem; isso significa subsumi-los à norma
correspondente, estabelecer a classe de infração, se esta foi ou não consumada, o grau de
participação do acusado e as circunstâncias agravantes. Se o acusado não conhece os termos
em que se funda a acusação, dificilmente poderá carrear dados e fatos para desarticular a
acusação, encontrando-se em clara situação de indefesabilidade e sem possibilidade alguma
de exercer um efetivo debate contraditório.
O direito de conhecer a acusação, conforme já assinalado, não se limita puramente aos
elementos fáticos relativos à infração administrativa imputada ao acusado, mas abrange
também a qualificação jurídica dos referidos fatos que, a nosso ver, deve constar da
notificação ou citação como parte imprescindível.
Este requisito, contudo, não tem encontrado ressonância na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal266 e do Superior Tribunal de Justiça,267 que reiteradamente afirmam que o

________________________
266
Por todos: “Recurso em Mandado de Segurança. 2. Anulação de processo administrativo disciplinar e
reintegração ao serviço público. Alteração da capitulação legal. Cerceamento de defesa. 3. Dimensão do direito
de defesa. Ampliação com a Constituição de 1988. 4. Assegurada pelo constituinte nacional, a pretensão à
tutela jurídica envolve não só o direito de manifestação e o direito de informação sobre o objeto do processo,
mas também o direito de ver seus argumentos contemplados pelo órgão julgador. Direito Constitucional
Comparado. 5. Entendimento pacificado no STF no sentido de que o indiciado defende-se dos fatos
descritos na peça acusatória e não de sua capitulação legal. Jurisprudência. 6. Princípios do contraditório e
da ampla defesa observados na espécie. Ausência de mácula no processo administrativo disciplinar. 7. Recurso
a que se nega provimento. (Grifos nossos).
267
Por todos, RMS 12677/DF: “ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. DEMISSÃO.
PRESCRIÇÃO. PRELIMINAR NÃO CONFIGURADA. ALTERAÇÃO DO ENQUADRAMENTO
PUNITIVO REJEITADA. PENA AMPARADA POR FUNDAMENTAÇÃO DA CONSULTORIA
JURÍDICA. POSSIBILIDADE. ALEGAÇÃO DE MALFERIMENTO DA PROPORCIONALIDADE E
RAZOABILIDADE. INEXISTÊNCIA, NO CASO CONCRETO. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E
CERTO.
1. Os impetrantes foram punidos administrativamente com a demissão dos seus cargos após a tramitação de três
processos administrativos disciplinares, sucessivamente. Os dois primeiros foram anulados pela Administração
Pública. Ainda, a penalidade foi agravada após a autoridade acatar o parecer da Consultoria Jurídica.
2. Preliminar rejeitada. Os processos disciplinares anteriores, quando declarados nulos, são excluídos do mundo
jurídico e, consequentemente, ensejam a perda de eficácia de todos os seus atos. Precedente: MS 12.767/DF,
Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Terceira Seção, DJe 20.5.2010.
3. O prazo prescricional da pretensão punitiva, no caso concreto, é de cinco anos, acatada a sua interrupção após
a instauração válida do inquérito; após a interrupção, o prazo volta a fluir por inteiro.
Precedente: MS 23.299/DF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 6.3.2002, publicado no
DJ em 12.4.2002, p. 55, Ementário, vol. 2.064-02, p. 302.
4. Preliminar rejeitada. O indiciado se defende dos fatos que lhe são imputados e não de sua classificação legal,
de sorte que a posterior alteração da capitulação legal da conduta não tem o condão de inquinar de nulidade o
processo. Precedentes: (MS 14.045/DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Terceira Seção, DJe 29.4.2010;
MS 10.128/DF, Rel. Min. Og Fernandes, Terceira Seção, DJe 22.2.2010; MS 12.386/DF, Rel. Min. Felix
Fischer, Terceira Seção, DJ 24.9.2007, p. 244.
112

acusado ou indiciado se defende dos fatos contra ele imputados, não importando a
classificação legal que lhes fora dada, pelo que o erro ou a mudança desta no curso do
processo ou ao seu final não é causa de nulidade nem importa ofensa aos princípios do
contraditório e da ampla defesa.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, embora minoritária, há opinião contrária
externada pelo Ministro Napoleão Maia Nunes Filho: no sentido de que é direito do acusado
se defender não só dos fatos, mas também da capitulação jurídica.

O segundo ponto é isso que se tem repetido numa insistência admirável e que é se
dizer que o imputado se defende dos fatos e não da tipificação. Tenho para mim que
essa afirmação não pode ser aceita, sem severíssimas reservas. Por exemplo, como
pode o imputado se defender da imputação alegando, por exemplo, a prescrição se
ele não sabe qual é a pena imposta, em tese?
Penso que a tipificação deve integrar modernamente o conceito de imputação. Os
processualistas têm distribuído a defesa dos processados em duas vertentes: a defesa
contra o processo e a defesa de mérito. A defesa de mérito depende somente dos
fatos, mas a defesa contra o processo depende também da tipificação; no caso, a
Administração, sistematicamente, descreve só os fatos e deixa para o Judiciário
afirmar que bastam os fatos. Eu penso que não bastam. Em nenhuma imputação, no
crime também, votava assim na Quinta Turma, vencido. Entendo que a tipificação é
indispensável à imputação, para que o sujeito possa se defender contra o processo.
Como ele pode alegar a prescrição de um crime, se não sabe qual é a pena em
abstrato? Ele tem que saber qual é a pena em abstrato que lhe é imputada, para que
faça o cálculo da provável prescrição.268

Diferentemente da posição jurisprudencial majoritária no Brasil, o Tribunal Europeu


de Direitos Humanos tem exigido que a qualificação jurídica dos fatos seja informada ao
acusado. Ao apreciar o caso Plissier e Sassi versus França,269 em 25 de março de 1999,
decidiu aquela Corte que a Convenção Europeia de Direitos Humanos reconhece ao acusado o
direito de ser informado não só da causa da acusação, ou seja, não só dos atos que

________________________
5. No caso concreto, houve observância, na espécie, de devida motivação do ato de demissão dos servidores
públicos, porquanto foram apontadas provas suficientes da prática de infrações previstas em lei; também,
foram indicados agravantes que justificam a aplicação da demissão. Precedente: MS 14.260/DF, Rel. Min.
Felix Fischer, Terceira Seção, DJe 25.8.2009.Segurança denegada”. (Destaques nossos)
268
Mandado de Segurança nº 17.515 – DF, julgado em 29 de fevereiro de 2012.
269
Disponível em: <http://hudoc.echr.coe.int>. “[…] El art. 6.3.a) de la Convención (Europea) reconoce al
imputado el derecho a ser informado no solo de la causa de la acusación, es decir, de los actos que
supuestamente ha cometido y sobre los que se basa la acusación, sino también de la calificación legal dada a
esos actos. Dicha información debe ser detallada, tal como correctamente sostuvo la Comisión.”
Esta mesma Corte, ao julgar o caso Dallos vs. Hungria (CEDH 197/2001), estabeleceu que: “el art. 6.3 a) del
Convenio (RCL 1999\1190, 1572) reconoce al acusado el derecho a ser informado no solo del “motivo” de la
acusación, es decir, de los hechos materiales de de los que se le acusa, sino también de la calificación jurídica
dada a estos hechos y de manera detallada”.
113

supostamente tenham cometido e sobre os quais se baseia a acusação, mas também da


qualificação legal dada a esses fatos.270
A despeito da jurisprudência majoritária, é preciso ponderar que no processo
administrativo federal, dada a sua precária configuração procedimental, que fica submetida ao
controle discricionário da comissão processante, podem ocorrer hipóteses exatamente como as
descritas pelo Ministro Napoleão Maia Nunes Filho, do Superior Tribunal de Justiça. As
condutas vedadas pela referida lei, descritas como deveres e proibições, podem ensejar
contingência fática de mesma natureza, mas tipificação distinta e com desdobramentos
relevantes para o direito de defesa, já que em alguns casos a defesa processual assume
importância determinante.
É o caso dos tipos inassiduidade habitual (art. 132, III) e abandono de cargo (art. 132,
271
II), cuja contingência fática importa em ausência ou falta ao serviço respectivamente por 60
(sessenta) dias intercalados ou 30 (trinta) consecutivos, especialmente quando se completa o
elemento temporal do primeiro (inassiduidade) com o elemento temporal do segundo
(abandono), ou seja, 30 (trinta) dias intercalados e 30 (trinta) dias consecutivos. Nessa
situação, os dois tipos restaram configurados no mesmo instante e levam à penalidade de
demissão. Ocorre que o tipo de abandono exige elemento volitivo para a sua configuração, o
que não ocorre na inassiduidade. A qualificação jurídica, neste caso, assume importante
relevância, pois pode significar a supressão da defesa processual.
Ademais, se o fato foi considerado irregular é porque se realizou um confronto com a
norma típica. E porque, além do fato, não levá-la também ao conhecimento do acusado? Qual
seria a dificuldade, então, em juízo de razoabilidade e proporcionalidade das garantias
envolvidas, de se formalizar a tipificação legal, conforme requerido pelo art. 161 da Lei nº

________________________
270
Confira-se, no mesmo sentido, decisão do Tribunal Constitucional espanhol: “La íntima relación existente
entre el principio acusatorio y el derecho a la defensa ha sido, asimismo, señalada por este Tribunal al insistir
en que del citado principio se desprende la a exigencia de que el imputado tenga posibilidad de rechazar la
acusación que contra él ha sido formulada tras la celebración del necesario debate contradictorio en el que haya
tenido oportunidad de conocer y rebatir los argumentos de la otra parte y presentar ante el Juez los propios,
tanto los de carácter fáctico como los de naturaleza jurídica (SSTC 53/1987, de 7 de mayo, FJ 2; 4/2002, de 14
de enero, FJ 3). De manera que ‘nadie puede ser condenado si no se ha formulado contra él una acusación de la
que haya tenido oportunidad de defenderse en forma contradictoria, estando, por ello, obligado el Juez o
Tribunal a pronunciarse dentro de los términos del debate, tal y como han sido formulados por la acusación y
la defensa, lo cual, a su vez, significa que en última instancia ha de existir siempre correlación entre la
acusación y el fallo de la Sentencia’ (STC 11/1992, de 27 de enero, FJ 3; 95/1995, de 19 de junio, FJ 2;
36/1996, de 11 de marzo, FJ 4; 4/2002, de 14 de enero, FJ 3)”.
271
Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos:
I – [...];
II - abandono de cargo;
III - inassiduidade habitual;
114

8.112/90? A informação da acusação com qualificação jurídica dos fatos, em juízo de


razoabilidade e proporcionalidade, só traz benefícios para a garantia de ampla defesa e do
contraditório. Sem ela, essa garantia é sensivelmente reduzida. A incapacidade ou a
dificuldade de se realizar a qualificação jurídica dos fatos denota fragilidade na própria
condução do procedimento, que impede o pleno desenvolvimento do devido processo legal e,
por consequência, do direito de defesa, até porque “o indivíduo possui direito fundamental a
uma acusação boa e justa”.272
Por outro lado, a posição dominante da jurisprudência não impede e não elimina as
convicções minoritárias, como a reiteradamente adotada pelo Ministro Napoleão Maia Nunes
Filho, favorável à necessidade de qualificação jurídica dos fatos.
Afinal, o Direito que hoje há, não o é pela repetição, mas pela inovação decorrente da
audácia, da coragem e da criatividade dos mais diversos segmentos de operadores de Direito.
A repetição não produz Direito novo, apenas consolida o existente. Tida como
elemento de segurança jurídica e como resposta à celeridade reclamada pela sociedade, a
repetição não pode deter a inovação, pois o Direito, assim como a vida, premido pelo
dinamismo social, sempre encontra um meio de evoluir.

3.6.3 Provas

Uma acusação legítima e que garanta a eficácia dos mandamentos constitucionais do


devido processo legal, contraditório e ampla defesa, requer, mais que a notícia oportuna, a
descrição detalhada dos fatos e suas qualificações jurídicas. É indispensável demonstrar um
suporte probatório mínimo de materialidade e autoria da infração funcional.273
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme neste sentido, embora
pronunciada em processos penais:

Não há justa causa para a instauração de persecução penal, se a acusação não tiver,
por suporte legitimador, elementos probatórios mínimos, que possam revelar, de

________________________
272
GUEDES, Néviton. O direito de ser bem acusado, ou nem tudo pode numa acusação. Revista Eletrônica
Consultor Jurídico, 8 set. 2014.
273
A doutrina penalista denomina estes dois requisitos – prova da materialidade do fato e indícios de autoria –
como justa causa, a qual “consiste na obrigatoriedade de que exista, no momento do ajuizamento da ação,
prova acerca da materialidade delitiva e, ao menos, indícios de autoria, de modo a existir fundada suspeita
acerca da prática de um fato de natureza penal. Em outros termos, é preciso que haja provas acerca da
possível existência de uma infração penal e indicações razoáveis do sujeito que tenha sido o autor desse
delito”. (Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas. Carta de Gramado, de 02-07-95. Jornal do
Criminalista/ACRIERGS, 1 ago.)
115

modo satisfatório e consistente, a materialidade do fato delituoso e a existência de


indícios suficientes de autoria do crime. Não se revela admissível, em juízo,
imputação penal destituída de base empírica idônea, ainda que a conduta descrita na
peça acusatória possa ajustar-se, em tese, ao preceito primário de incriminação.
Impõe-se, por isso mesmo, ao Poder Judiciário, rígido controle sobre a atividade
persecutória do Estado, notadamente sobre a admissibilidade da acusação penal, em
ordem a impedir que se instaure, contra qualquer acusado, injusta situação de coação
processual.274

Impedem-se, assim, acusações irresponsáveis, destituídas de lastro probatório,


arbitrárias, de caráter pessoal e dissociadas dos princípios que norteiam a Administração
Pública. Com efeito, de nada vale exigir a precisão de um fato se não há um lastro probatório
mínimo que o sustente. Admitir uma acusação sem lastro probatório é, às vezes, mais
perigoso que a acusação fática imprecisa.
A mera acusação, por si só, causa um gravame ao acusado.275 Quando destituída de
qualquer indício mínimo e razoável de prova, além de não legitimar a iniciativa, autoriza a
inversão do discrimem, pois passa a flertar com o campo da denunciação criminosa.
Para José Armando da Costa,276 a garantia do devido processo legal não só exige a
feitura do processo disciplinar previsto na lei (sindicância e processos ordinário e sumário),
como requer, por via de consequência, a exigência de elementos prévios que legitimem a
iniciativa.
Não há, obviamente, a necessidade de se realizar antes da investigação um controle
exaustivo das provas inerentes à acusação e que sustentam a deflagração do procedimento,
uma vez que essa tarefa importaria em prejulgamento, incompatível com o princípio da
imparcialidade que deve nortear a apuração disciplinar. O que se espera é que a acusação
tenha suporte em um conjunto mínimo e razoável de provas, que indiquem uma relação de
causalidade capaz de autorizar a deflagração do procedimento e a movimentação da máquina
pública em torno do interesse público de esclarecer o fato tido por irregular, com o
estabelecimento da verdade real.
Assim, pois, o direito de ser informado da acusação, com todos os elementos a ela
inerentes, não pode ser entendido de maneira isolada, já que constitui um pressuposto
________________________
274
Inquérito nº 1.978/PR. Relator Ministro Celso de Melo. Julgado em 13.09.2006.
275
Leciona Gustavo Henrique Righi Ivany Badaró que “a acusação deve estar carregada com os elementos
probatórios – geralmente extraídos da investigação preliminar – que fundamentem a admissão da acusação
‘devido ao caráter infamante do processo penal em si, em que o simples fato de estar sendo processado já
significa uma grave ‘pena’ imposta ao indivíduo’.” Caso não sejam suficientes os elementos probatórios -
trazidos pela acusação – para justificar a abertura do processo penal, o juiz deve rejeitar a acusação.”
(BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivany. Direito Processual Penal. v. 1. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p.
71).
276
Controle Judicial do Ato Disciplinar. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2009, p. 213.
116

necessário e fundamental do princípio do contraditório e do direito de defesa, posto que o


acusado dificilmente pode participar de forma ativa – exercendo seu direito de defesa – em
um processo que desconhece no todo ou em parte do que se lhe imputa.
Neste sentido, é possível concluir que o direito de ser informado da acusação
representa um direito público subjetivo, de natureza fundamental e de caráter processual, por
meio do qual o acusado em um processo disciplinar deve receber dos órgãos públicos
encarregados da sua condução, desde o momento inicial até sua conclusão, toda a informação
acerca do fato punível que lhe é imputado, com todos os aspectos constitutivos do direito
fundamental de conhecer a acusação, como meio necessário para o pleno exercício das demais
garantias constitucionais reconhecidas ao acusado.

3.7 DIREITO DE CIÊNCIA DA IMPUTAÇÃO E DIREITO AO AMPLO ACESSO AOS


AUTOS

Há que se fazer neste ponto uma distinção essencial. Não se pode confundir o direito
de ser informado da acusação com o direito de amplo e irrestrito acesso aos autos. Embora
tenham objetivos comuns, são direitos distintos e devem ser diferenciados, tanto em nível
teórico como prático.
O direito de ser informado exige que a Administração Pública desempenhe uma
atividade positiva dirigida e com o fim de dar conhecimento pleno ao acusado do
cometimento de uma infração disciplinar. Esse direito impõe uma ação, uma obrigação de
fazer e de realizar uma prestação determinada: informar na sua plenitude e de modo a
viabilizar o direito de defesa.
O direito de acesso aos autos supõe, por um lado, a faculdade de que o acusado tenha
contato com os autos e examine seus elementos, confrontando-os com a acusação que lhe foi
informada; por outro lado, a obrigação de a Administração Pública não dificultar ou limitar
desnecessariamente o acesso aos autos pelo acusado e seus defensores.
A obrigação de informar acerca da acusação antecede à obrigação de conceder acesso
aos autos. O dever de informar o acusado dos fatos, fundamentos e provas que lastreiam sua
acusação se cumpre no início do processo – aliás, só após seu cumprimento deve o processo
iniciar sua marcha. Por sua vez, o acesso ao expediente, positivado no artigo 7º, incisos XIII e
XV do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei n. 8.906/94),277 no

________________________
277
Art. 7º São direitos do advogado:
117

artigo 3º da Lei nº 9.784/99278 e na Súmula Vinculante 14 do Supremo Tribunal Federal,279 é


facultado ao acusado durante todo o trâmite do processo, cabendo à Administração Pública
evitar obstáculos e a imposição de restrição desarrazoada a esse direito.
São direitos independentes mas imbricados de tal maneira que se complementam e se
harmonizam entre si, à medida que o reconhecimento de ambos constitui o mecanismo
instrumental que garante a eficácia na preparação e organização da defesa. Essa harmonização
permite ampliar a proteção dos direitos fundamentais.
Esta harmonização, essencial ao direito de defesa e ao exercício do contraditório, já foi
ignorada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:280

PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO


ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. OMISSÃO. NULIDADE. CITAÇÃO.
INOCORRÊNCIA.
I – Verificada a ocorrência de omissão no acórdão, que não se pronunciou sobre a
nulidade da citação das servidoras no processo disciplinar, acolhem-se os embargos
declaratórios nesse ponto para sanar o defeito.
II – Improcedência, no entanto, da alegação, porquanto embora o mandado de
citação tenha sido omisso quanto aos fatos imputados às servidoras, tiveram elas, no
dia seguinte, vista dos autos, não se podendo aceitar a alegada ignorância sobre os
termos da acusação.
III – Não houve omissão quanto à nulidade do processo disciplinar por ter sido
deflagrado a partir de denúncia anônima, pois o tema foi expressamente abordado na
decisão.
IV – Também se rejeita a omissão quanto à nulidade na intimação das acusadas para
audiência de interrogatório e também por cerceamento de defesa, pois tais alegações
foram devidamente rechaçadas no julgamento do mandamus.

No corpo do acórdão, lê-se:

A nulidade apontada pelas servidoras na citação decorreria da ausência de menção


pormenorizada dos fatos a elas atribuídos, pois aduzem que não se pode deixar de
comunicar o servidor do quê está sendo acusado, a fim de possibilitar posa ele

________________________
XIII – examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da Administração Pública em geral,
autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estejam sujeitos a sigilo,
assegurada a obtenção de cópias, podendo tomar apontamentos;
[...]
XV – ter vista dos processos judiciais ou administrativos de qualquer natureza, em cartório ou na repartição
competente, ou retirá-los pelos prazos legais;
278
Art. 3º O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo de outros que lhe
sejam assegurados:
I – [...];
II - ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a condição de interessado, ter vista dos
autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas;
279
É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já
documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária,
digam respeito ao exercício do direito de defesa.
280
Embargos de Declaração no Mandado de Segurança n°7.069. Relator: Ministro Felix Fisher.
118

exercer com plenitude seu direito de defesa. Ocorre que, in casu, no dia seguinte ao
da citação, ambas impetrantes tiveram acesso aos autos do processo disciplinar,
conforme consta nas certidões de fls. 1051 e1052 (7o volume dos apensos). Ora, se
as servidoras puderam manusear à vontade todas as peças dos autos, conforme
atestam as referidas certidões, não cabe então reconhecer nulidade, porque não
se pode mais alegar que elas não tiveram conhecimento do teor da acusação. A
falta da menção dos fatos no mandado de citação, por si só, não pode
caracterizar nulidade, sendo necessário que se demonstre efetivamente prejuízo à
parte, no sentido de que não tomou conhecimento do teor da acusação. (Grifos
nossos).

Observa-se, da transcrição, o entendimento de que um direito pode afastar o outro,


orientação que não se amolda à melhor regra de hermenêutica e à pacífica e remansosa
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que impõe a ponderação como mecanismo de
harmonização das garantias fundamentais e não a exclusão de uma delas.
Ao contrário do que restou decidido no acórdão supracitado, não há fungibilidade
entre tais direitos e a garantia de um não supre nem afasta a necessidade de se garantir
também o outro.
Não se pode impor ao acusado escolher entre uma e outra garantia fundamental
inerente e essencial à existência do próprio direito de defesa. Elas devem ser harmonizadas
para que cada uma cumpra a sua função e o seu papel garantidor dos direitos abrangidos na
esfera de ampla defesa e do contraditório.

3.8 O PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR NA LEI Nº 8112, DE 11 DE


DEZEMBRO DE 1990, E O DIREITO DE CIÊNCIA DA IMPUTAÇÃO

3.8.1 Evolução legislativa e jurisprudencial: da Lei 1.711/52 à Lei 8.112/90

Chegou o momento de examinar se a Lei nº 8.112/90, que instituiu o regime jurídico


único dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas
federais, homenageia o direito fundamental de ser informado da acusação, na parte que trata
do processo administrativo disciplinar (Título V, art. 143 e seguintes).
Antes de adentrarmos no exame desse diploma legal, é oportuno estudar do Estatuto
que o precedeu – Lei nº 1.711/52, de 28 de outubro de 1952 –, no intuito de compreender a
evolução do direito fundamental de ser informado da acusação no processo administrativo
disciplinar federal.
Tratou aquele estatuto do processo administrativo disciplinar no seu título V (art. 217
e seguintes), dividindo-o em duas fases. A primeira fase era instrutória, inquisitiva; somente
119

após sua conclusão o funcionário seria citado para apresentar a defesa. Essa fase, portanto, era
meramente preliminar, tal qual a sindicância prevista no estatuto atual (art. 145).281
Concluída a primeira fase, caso se arregimentassem provas suficientes da
culpabilidade do servidor, citava-se este para, na qualidade de indiciado, apresentar defesa,
nos termos do art. 222: “Ultimada a instrução, citar-se-á o indiciado para, no prazo de 10
dias, apresentar defesa, sendo-lhe facultada vista do processo na repartição.”
O sistema adotado pelo artigo 222 se aproximava do processo penal do sistema
continental europeu, no qual também não há contraditório na instrução preliminar, embora
desenvolvida perante o juiz de instrução. A partir das conclusões da instrução preliminar,
abre-se o processo, aí sim com observância estrita das regras do contraditório.
Contudo, a Administração Pública interpretava este artigo de forma restritiva,
entendendo que, quando o legislador disse “defesa”, o fez referindo-se somente à defesa
escrita, de modo que não era dado ao acusado participar da instrução processual. Com efeito,
era negada ao indiciado a reinquirição de testemunhas, periciais e quaisquer outras
diligências.
Neste sentido,

A administração não está obrigada a interpretar o artigo 222 do Estatuto funcional


excluindo a interpretação literal. Se o preceito prescreve que, após encerrada a
instrução, deve o acusado apresentar defesa escrita, ilegalidade alguma haverá para a
Administração obedecê-lo, porque esta exigência não implica reconhecer que a
defesa só se limita a esse tipo, quando, na realidade, ela se manifesta no curso da
instrução do processo disciplinar, desde a ouvida do acusado para esclarecimentos
até o conhecimento que a este é dado das provas obtidas.
[...]
Os acusados tiveram ciência dos depoimentos que lhes atribuem condutas ilícitas, de
modo a confirmar que foi seguido o princípio do contraditório. É certo que não
presenciaram a inquirição das testemunhas por si ou seus advogados, mas isso não
invalida os depoimentos colhidos, porquanto inexiste no processo disciplinar
federal, antes de encerrada a instrução, procedimento previsto que garanta a
presença do acusado durante a inquirição de testemunhas, tomaram s acusados
conhecimento destes depoimentos, e é isso quanto basta para dar-se como cumprido
o princípio do contraditório.282

________________________
281
“Art. 145. Da sindicância poderá resultar:
I - arquivamento do processo;
II - aplicação de penalidade de advertência ou suspensão de até 30 (trinta) dias;
III - instauração de processo disciplinar.
Parágrafo único. O prazo para conclusão da sindicância não excederá 30 (trinta) dias, podendo ser
prorrogado por igual período, a critério da autoridade superior”.
282
Parecer jurídico inserto no processo administrativo disciplinar MF (Ministério da Fazenda) nº 0168-
13.819/79. Manifestação de igual teor foi ofertada pelo Ministério Público Federal no Recurso Extraordinário
nº 114.991, julgado em 17.08.1990. Uma observação histórica se impõe: A Advocacia-Geral da União foi
criada pela Constituição Federal de 1988, mas só foi instalada em 1999. Com efeito, à época deste julgamento
a defesa da União era atribuição do Ministério Público Federal.
120

Esta interpretação foi severamente criticada pela doutrina, notadamente pelo fato de o
acusado só ser citado após a fase de instrução.
Rubem Rodrigues Nogueira, em artigo publicado em 1977, alerta para a necessidade
de a Administração Pública garantir ao acusado o direito de ser informado da acusação:

Admite-se que a Administração Pública faça sindicância sem ouvir o indiciado, mas
a partir do momento em que formula uma acusação especifica com apoio nas
informações colhidas, isto é, uma vez instaurado o procedimento administrativo,
como base no uma pena disciplinar será ou não aplicada a um funcionário
determinado, este deve ser citado para fazer o que lhe pareça útil à sua defesa. A
defesa não será eficazmente produzida, ou pelo menos corre o risco de não o ser,
desde que ao funcionário e subtraia o direito de conhecer liminarmente a causação
formulada e acompanhar a produção de provas, reperguntar testemunhas ou
contradita-las, pedir diligências, requerer perícias, com vistas à sustentação de sua
inocência. Isto é uma coisa, e outra, muito diferente, entrar o acusado num
procedimento já cheio por iniciativa unilateral da Administração.
[...]
imputar a um funcionário a prática de ilícito administrativo, mediante a instauração
de procedimento administrativo disciplinar, cuja instrução, no entanto, começa e
chega ao fim sem a todos os atos respectivos estar presente o acusado, não cremos
que seja assegurar, mas antes golpear profundamente o princípio da ampla defesa,
pela Constituição, sem reserva alguma, garantido a todo acusado.283

Para o referido autor, a legislação, in casu a Lei nº 1.711/52, deveria ajustar-se melhor
ao preceito constitucional garantidor da plena defesa do acusado no procedimento
administrativo disciplinar.284
Também Sérgio de Andrea Ferreira alertava para a necessidade de ser o procedimento
disciplinar contraditório desde sua fase instrutória, sob pena de violação da garantia
constitucional da ampla defesa.

O procedimento disciplinar administrativo, a fim de que se assegure ao acusado


ampla defesa, deve ser, necessariamente, contraditório, desde sua fase instrutória.
[...] A legislação sobre processo administrativo disciplinar não tem seguido, com
rigor, o preceito constitucional.285

Ruy Cardoso de Mello Tucunduva, em tese apresentada no XII Congresso dos


Servidores Públicos do Brasil, defendeu:

________________________
283
Aplicação do principio da ampla defesa no processo administrativo disciplinar. Revista de Informação
Legislativa, n. 53, p. 239.
284
NOGUEIRA. Rubem Rodrigues. Aplicação do princípio da ampla defesa no processo administrativo
disciplinar. Revista de Informação Legislativa, n. 53, p. 241.
285
A garantia da Ampla Defesa no Direito Administrativo Disciplinar. Revista de Direito Público, v. 19, p. 60-
68.
121

Tendo em vista o princípio constitucional da amplitude de defesa, a similitude do


processo penal com o processo administrativo disciplinar e a lição dos
doutrinadores, o processo administrativo deveria ser iniciado, sempre, mediante
portaria. E esta, que seria a inicial do processo, deveria conter os seguintes
requisitos: 1º) a exposição do f ato tido como infração administrativa, com todas as
suas circunstâncias; 2º) a qualificação do servidor processado; 3º) o rol de
testemunhas da Comissão processante (observadas as regras de Processo Civil,
artigo 407 e parágrafo único), garantindo o mesmo número à defesa.286

A compatibilidade do art. 222 da Lei nº 1711/52 com a Constituição Federal foi


resolvida pelo Supremo Tribunal Federal em meados da década de 1980, ao apreciar este o
Recurso Extraordinário nº 107.553.Adotando verdadeira interpretação conforme a
Constituição,287 aduziu o Ministro Djaci Falcão:

[...] extrai-se da regra que a inteligência que a notificação do indiciado para


acompanhar o processo, não constituiu condição essencial ao exercício da ampla
defesa. Com efeito, somente ao final da instrução é que se opera a citação do
indiciado para, no prazo legal, oferecer a sua defesa. Então, ao indiciado é facultado
pedir a reinquirição das testemunhas ouvidas na fase de instrução.

A decisão restou assim ementada: “Processo administrativo disciplinar. A defesa é


assegurada ao indiciado após ultimada a instrução. É facultado então, ao indiciado, o pedido
de reinquirição de testemunhas, ouvidas na fase de instrução. Esta é a melhor exegese do art.
222, da Lei n. 1711/52.”
Esta jurisprudência, no sentido de reabrir a instrução sob o crivo do contraditório após
a citação do indiciado, se consolidou na Corte. Ao proferir voto no julgamento do Mandado
de Segurança nº 21.524, o qual, embora tenha sido julgado em 1991, apreciava processo
disciplinar concluído sob a égide da Lei nº 1711/52, o Ministro Octávio Galotti, ao citar o
Ministro Aldir Passarinho, afirmou:

O inquérito era normatizado no Estatuto dos funcionários públicos civis, no seu


título V. A sua primeira fase é instrutória, fase preliminar e somente após ela é que é
citado o funcionário para apresentar sua defesa. A primeira fase, assim, é meramente
preliminar. Concluída esta, citada o indiciado este terá oportunidade de ampla
defesa, podendo, requerer diligencias e reinquirição de testemunhas. Se essas

________________________
286
Aspectos da amplitude de defesa no processo administrativo. Justitia, v. 109. p. 67 e ss.
287
Para Paulo Bonavides, “Uma norma pode admitir várias interpretações. Destas, algumas conduzem ao
reconhecimento da inconstitucionalidade, outras, porém, consentem tomá-la por compatível com a
Constituição. O intérprete, adotando o método ora proposto [a interpretação conforme a constituição], há de
inclinar-se por esta última saída ou via de solução. A norma, interpretada ‘conforme a Constituição’, será
portanto considerada constitucional”. (Curso de Direito Constitucional. 29. ed. São Paulo: Malheioros, 2014,
p. 474.)
122

testemunhas, então, não forem ouvidas por negativa, no particular, da comissão de


inquérito, então, sim, o servidor poderá alegar cerceamento de defesa e que foi
prejudicado, mas não quando se trata apenas da fase preliminar. Esta tem um rito
próprio, específico. O Judiciário, aliás, sempre admitiu válidas as normas, a respeito
do estatuto, até porque, se assim não fosse, teriam elas de ser declaradas
inconstitucionais. Mas fora de dúvida, ainda que se tenha como abrangendo o § 5º
do artigo 153 da Constituição Federam também o processo administrativo (pois a
jurisprudência tem sido no sentido de que diz respeito ao processo penal), somente
se poderia considerar malferido aquele preceito se ao funcionário, após sua citação,
fosse cerceada sua defesa. A primeira fase, a rigor, é meramente investigatória.288

O legislador, no novo estatuto, sensível aos apelos doutrinários e na perspectiva de


harmonização com a nova ordem constitucional, fixou a notificação do acusado desde o início
do processo,289fato festejado pela doutrina.
Caio Tácito teceu comentários elogiosos ao novel diploma, realçando sua harmonia
com o devido processo legal, o que não acontecia com o estatuto anterior:

O advento da nova Lei do Regime Jurídico Único dos servidores públicos trouxe, a
par de outras inovações, o aperfeiçoamento do devido processo legal, fortalecendo a
garantia do direito de defesa. O Estatuto anterior (Lei n. 1.711/52), determinava e
exigibilidade de processo administrativo para a apuração de responsabilidade,
assegurando-se ao acusado ampla defesa (art. 217). Todavia, a citação do indiciado
somente se fazia após ultimada a instrução do processo, quando lhe era assegurada
vista do processo, para as alegações de defesa (art. 222). A fase instrutória se
constituía de forma unilateral, sem procedimento contraditório.290

Concluiu o autor que, após a edição do novo estatuto, o processo administrativo


disciplinar passou a afinar-se com o procedimento criminal.

3.8.2 A marcha processual na Lei nº 8.112/90

3.8.2.1 A instauração do processo e a notificação do acusado

No estatuto atual, o art. 151291 dispõe sobre as fases do processo disciplinar a ser
adotado na apuração das infrações disciplinares, desenvolvido em três fases: instauração, com

________________________
288
RTJ 118.334-5. Nesta mesma linha, confira-se: MS 21.402, julgado em 03.03.93, Relator Ministro Sepúlveda
pertence, MS 21.539, julgado em 25.3.93, Relator Ministro Francisco Resek.
289
Título V. artigos 143 a 182.
290
Comentário. Revista de Direito Administrativo, v. 196, p. 101, 102.
291
“Art. 151. O processo disciplinar se desenvolve nas seguintes fases:
I - instauração, com a publicação do ato que constituir a comissão;
II - inquérito administrativo, que compreende instrução, defesa e relatório;
III - julgamento.”
123

a publicação do ato que constitui a comissão; inquérito administrativo, que compreende


instrução, defesa e relatório; e julgamento.
De acordo com Ivan Barbosa Rigolin, essa divisão é arbitrária e antitécnica à luz da
teoria geral do processo, que não indica a necessidade dessa separação, sabendo-se que na
verdade as fases se sucedem natural e espontaneamente, sem momentos mais rigidamente
estanques, e em geral com poucas etapas preclusivas de direitos (como a divisão parece
indicar).292
Iniciada a instrução, a comissão processante inicia a produção das provas necessárias
ao esclarecimento dos fatos.293 Para tanto, é necessária a notificação do acusado para
acompanhar o processo pessoalmente ou por intermédio de procurador, facultando-lhe arrolar
e reinquirir testemunhas, produzir provas e contraprovas e formular quesitos, quando se tratar
de prova pericial,294 sob pena de nulidade.295
A partir da leitura do artigo 151, também infere-se que o processo tem início com a
publicação do ato que constitui a comissão processante (instauração – art. 151, I). Nada mais
disse o legislador sobre esta questão – por exemplo, sobre a necessidade de descrição do fato
a ser apurado constar da portaria inaugural, lacuna que, como veremos adiante, foi preenchida
por decisões judiciais e por atos normativos internos da Administração Pública Federal.
Neste ponto, não houve avanço em relação ao estatuto anterior, conforme observa José
Raimundo Gomes da Cruz:

________________________
292
Comentários ao Regime Único dos Servidores Públicos Civis. 3. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 255,
256.
293
“Art. 155. Na fase do inquérito, a comissão promoverá a tomada de depoimentos, acareações, investigações
e diligências cabíveis, objetivando a coleta de prova, recorrendo, quando necessário, a técnicos e peritos, de
modo a permitir a completa elucidação dos fatos.
294
“Art. 156. É assegurado ao servidor o direito de acompanhar o processo pessoalmente ou por intermédio de
procurador, arrolar e reinquirir testemunhas, produzir provas e contraprovas e formular quesitos, quando se
tratar de prova pericial”.
295
Neste sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: “MANDADO DE SEGURANÇA.
PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PERÍCIA MÉDICA. REALIZAÇÃO. INTIMAÇÃO DE
ADVOGADO CONSTITUÍDO. INEXISTÊNCIA. PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA
DEFESA. VIOLAÇÃO. - A Lei 8.112⁄90 reconhece ao acusado em processo administrativo o direito de
acompanhar pessoalmente ou por representante os atos do procedimento disciplinar.
- Inexistindo, no processo disciplinar, intimação na pessoa do acusado ou na de seu advogado, de perícia médica
pertinente à instrução dos autos, o ato torna-se viciado.
- O impetrante do mandado de segurança não é obrigado a fazer prova negativa, quando alega como prova a
inexistência de ato que deveria existir, sendo igualmente descabida a aplicação do art. 6°, parágrafo único, da
Lei 1.533⁄51.
- Regras sobre a intimação em processo administrativo, constantes da Lei 9.784⁄99, que exigem antecedência
mínima de 3 (três) dias da realização do ato.
- Segurança concedida”. (MS 8700⁄DF, Rel. Ministro Paulo Medina).
124

Tal dispositivo nem tenta disfarçar a inadmissível precedência da instrução em


relação à defesa, sem maior progresso em relação ao artigo 222 da Lei nº 1.711/52.
Instauração corresponde à publicação do ato que constitui a comissão processante,
no Diário Oficial. Falta qualquer referência do legislador à portaria inicial. Desde os
tempos do autor do livro Dos delitos e das penas, é lembrada a pergunta de alguém a
certa autoridade, diante de certo preso, em condições desumanas, com correntes e
tudo mais: ‘E este, o que ele fez?’ A resposta da autoridade também lembrada: ‘Não
sabemos, ele ainda não confessou’.296

A ausência de referência ao ato inaugural aludida pelo autor supracitado foi


preenchida pela Administração Pública por meio de parecer vinculante da Advocacia-Geral da
União.297Este determina que, após a publicação da portaria inaugural, deve a comissão se
reunir para iniciar os trabalhos e notificar o acusado para acompanhar todos os atos
instrutórios.

Em virtude dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, o


servidor que responde a processo disciplinar deve ser notificado da instauração deste
imediatamente após a instalação da comissão de inquérito e, em qualquer fase do
inquérito, cientificado dos atos processuais a serem praticados com vistas à apuração
dos fatos, de modo que, tempestivamente, possa exercitar o direito assegurado no
art. 156 da Lei nº 8.112, de 1990.

Contudo, esse mesmo parecer dispensa a comissão processante de informar ao acusado


de forma pormenorizada quais fatos pesam contra ele, delimitando o raio de apuração, sobre o
qual incidirá o contraditório.

Os princípios do contraditório e da ampla defesa [...] indicam a desnecessidade de


se consignarem, no ato de designação da c.i, os ilícitos e correspondentes
dispositivos legais, bem assim os possíveis autores, o que se não recomenda
inclusive para obstar influências no trabalho da comissão de inquérito ou
alegação de presunção de culpabilidade. É assegurada à c.i. a prerrogativa de
desenvolver seus trabalhos com independência e imparcialidade.

As opiniões doutrinárias tendentes a reconhecer a necessidade de se indicarem, nos


atos de designação das comissões apuradoras, os fatos que possivelmente teriam
sido praticados pelos envolvidos, como condição de validade processual pertinente à
ampla defesa, não se adequam ao regramento do assunto em vigor, mormente em se
considerando os comandos dos arts. 5º, LV, da Carta Magna e 153 da Lei nº
8.112/90, para que se observe o princípio do contraditório na fase processual de
inquérito.

O comando constitucional para que se observem o contraditório e a ampla defesa, no


processo administrativo, é silente quanto à fase processual em que isto deve ocorrer
(cfr. o art. 5º, LV). É tema disciplinado em norma infraconstitucional: a Lei nº

________________________
296
CRUZ, José Raimundo Gomes da. O controle judicial do processo disciplinar. São Paulo: Malheiros, 1996,
p. 299.
297
Parecer GQ-55/95, publicado no Diário Oficial da União de 02.02.1995.
125

8.112, de 1990, assegura a ampla defesa no curso do processo disciplinar e, o


contraditório, no inquérito administrativo (v. os arts. 143 e 153), que corresponde à
2ª fase do apuratório (art. 151, II). (Grifos nossos).

Adverte, entretanto, José Raimundo Gomes da Cruz que processo algum pode ser
iniciado sem a portaria, equivalente à denúncia no processo penal e à petição inicial no
processo civil. Desse modo, não será admissível falar em ampla defesa em processo no qual o
réu desconheça os fatos, enunciados com precisão, que servem de base para a acusação.298

No mesmo sentido leciona José Armando da Costa, de que a legitimação de qualquer


processo, seja qual for a seara do Direito considerada, somente ocorre quando, no ato
instaurador (peça inauguratória), imputa-se certo fato a determinada pessoa.299

Dissertando sobre a matéria, alerta Mauro Roberto Gomes de Mattos que a portaria
inaugural do processo administrativo disciplinar deve obedecer aos mesmos requisitos da
denúncia do processo penal:

A Portaria inaugural, como especialmente o termo de indiciamento, deve


corresponder, por exemplo, como já dito, a uma denúncia penal, onde a descrição
dos fatos, fundamentos e a demonstração das provas, de forma explícita retiram a
inépcia da acusação. Ou seja, o fato apurado é esclarecido exatamente nessa fase,
onde o Direito Administrativo brasileiro saiu do inquisitório para o acusatório,
passando o investigado a ter direitos impostergáveis e indelegáveis, sendo que um
deles é tão fundamental tanto quanto os demais, consiste em saber do que é acusado
e como demonstrará sua inocência, pois a presunção de inocência milita a seu favor
e só uma acusação séria e concreta é que terá legitimidade de provar o contrário.300

Sobre a denúncia penal, lapidar é a lição de Hugo Nigro Mazzili:

A denúncia ou a queixa deve descrever com clareza todos os elementos do tipo


penal cuja violação imputa ao réu, mencionando todas as circunstâncias fáticas
necessárias ao exercício da ampla defesa. Na peça acusatória inicial, devem, pois,
ficar respondidas as seguintes questões relativas à prática do crime: quem o fez,
quando o agente o fez, onde o fez, os meios que empregou, o que fez, por que o fez e
como o fez (CPP, art. 41).301

________________________
298
Parecer GQ-55/95, publicado no Diário Oficial da União de 02.02.1995.
299
Controle Judicial do Ato Disciplinar. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 136.
300
MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Lei nº 8.112/90 Interpretada e Comentada. 3. ed. Rio de Janeiro:
América Jurídica, 2006, p. 1030.
301
MAZZILLI, Hugro Nigro. Revista Justitia. Disponível em: <www.revistajustitia.com.br>.
126

Lembra-nos esse autor a clássica lição de João Mendes de Almeida Júnior, que,
remontando à lógica aristotélica, manifestou-se sobre a denúncia e a queixa no seguinte
sentido:

É uma exposição narrativa e demonstrativa. Narrativa, porque deve revelar o fato


com todas as suas circunstâncias, isto é, não só a ação transitiva, como a pessoa que
a praticou (quis), os meios que empregou (quibus auxiliis), o malefício que produziu
(quid), os motivos que o determinaram a isso (cur), a maneira porque praticou (ubi),
o tempo (quando). (Segundo enumeração de Aristóteles, na Ética a Nincomac, 1. III,
as circunstâncias são resumidas pelas palavras quis, quid, ubi, quibus auxiliis, cur,
quomodo, quando, assim referidas por Cícero (De Invent. I)). Demonstrativa, porque
deve descrever o corpo de delito, dar as razões de convicção ou presunção e nomear
as testemunhas e informantes.302

Esses requisitos da denúncia ou queixa penal foram albergados pela jurisprudência do


Supremo Tribunal Federal:

Inquérito. 2. Competência originária. 3. Penal e Processual Penal. 4. Corrupção


eleitoral. 5. Inépcia da denúncia. A denúncia deve projetar todos os elementos –
essenciais e acidentais – da figura típica ao caso concreto. No caso concreto, a
denúncia não passa por esse teste. Transcrição de interceptações, sem narrativa clara
da conduta tida por típica. Falta de explicitação dos limites de responsabilidade de
cada réu. Ausência de descrição do fim especial requerido pelo tipo penal – obter
voto. 6. Denúncia rejeitada por inepta.303

Após o advento da Lei nº 8.112/90, o mesmo entendimento foi aplicado pela


jurisprudência para a portaria inaugural do processo administrativo disciplinar, a qual, sob
pena de nulidade, deveria conter a descrição e a qualificação dos fatos e seu enquadramento
legal, de modo que restou afastada a interpretação da Administração vazada no parecer
vinculante da Advocacia-Geral da União.

________________________
302
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas
Bastos, 1959, v. 2, p. 183. In: MAZZILLI, Hugro Nigro. Revista Justitia. Disponível em:
<www.revistajustitia.com.br>.
303
Inquérito nº 3.752. Rel. Ministro Gilmar Mendes. No mesmo sentido: “1. AÇÃO PENAL. Denúncia.
Deficiência. Omissão dos comportamentos típicos que teriam concretizado a participação dos réus nos fatos
criminosos descritos. Sacrifício do contraditório e da ampla defesa. Ofensa a garantias constitucionais do
devido processo legal (‘due process of law’). Nulidade absoluta e insanável. Superveniência da sentença
condenatória. Irrelevância. Preclusão temporal inocorrente. Conhecimento da argüição em HC. Aplicação do
art. 5º, incs. LIV e LV, da CF. Votos vencidos. A denúncia que, eivada de narração deficiente ou insuficiente,
dificulte ou impeça o pleno exercício dos poderes da defesa, é causa de nulidade absoluta e insanável do
processo e da sentença condenatória e, como tal, não é coberta por preclusão. 2. AÇÃO PENAL. Delitos
contra o sistema financeiro nacional. Crimes ditos societários. Tipos previstos nos arts. 21,§ único, e 22 ,
‘caput’, da Lei 7.492/86. Denúncia genérica. Peça que omite a descrição de comportamentos típicos e sua
atribuição a autor individualizado, na qualidade de administrador de empresas. Inadmissibilidade. Imputação
às pessoas jurídicas. Caso de responsabilidade penal objetiva”. (HC 83.301/RS, Red. p/ o acórdão Min. Cezar
Peluso).
127

Neste sentido, confira-se a ementa das seguintes decisões do Superior Tribunal de


Justiça:

ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO


ESTADUAL. DEMISSÃO. ILÍCITO ADMINISTRATIVO. INQUÉRITO
DISCIPLINAR. INSTAURAÇÃO. DIREITO DE DEFESA ILEGALIDADE.
INEXISTÊNCIA. A instauração de processo disciplinar e efetuada mediante ato da
autoridade administrativa que tome ciência de irregularidades funcionais praticadas
pelo servidor publico, devendo conter os dados essenciais como a descrição e
qualificação dos fatos, a acusação imputada e seu enquadramento legal, além
da indicação da comissão de inquérito. - Instaurado o inquérito disciplinar
mediante resolução contendo o auto de prisão em flagrante e nele apurada a pratica
de ilícito administrativo, o que ensejou a submissão do servidor publico a comissão
disciplinar, em que se lhe assegurou o exercício pleno do direito de defesa, reveste-
se de legalidade o ato administrativo que o demitiu do serviço publico.304

No mesmo sentido,

Nula é a portaria instauradora do processo administrativo disciplinar que não


descreve, satisfatoriamente, os fatos ilícitos a serem apurados, apresentando-se de
forma genérica e imprecisa, não proporcionando ao acusado conhecimento pleno das
acusações que lhe são imputadas, impossibilitando-o de promover sua defesa.305

Essa também era a orientação jurisprudencial majoritária no Supremo Tribunal


Federal:306

O exame da garantia constitucional do “due process of law” permite nela identificar,


em seu conteúdo material, alguns elementos essenciais à sua própria configuração,
dentre os quais avultam, por sua inquestionável importância, as seguintes
prerrogativas: (a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário); (b)
direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação; (c) direito a um
julgamento público e célere, sem dilações indevidas; (d) direito ao contraditório
e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa técnica); (e) direito de não ser
processado e julgado com base em leis “ex post facto”; (f) direito à igualdade entre
as partes; (g) direito de não ser processado com fundamento em provas revestidas de
ilicitude; (h) direito ao benefício da gratuidade; (i) direito à observância do princípio
do juiz natural; (j) direito ao silêncio (privilégio contra a auto- -incriminação); e (l)
direito à prova”. (destaques nossos). No mesmo sentido, manifestou-se o eminente
Ministro Sepúlveda Pertence, em acórdão no qual o Pretório Excelso deliberou que é
nulo o processo administrativo disciplinar que omitir a substância de fato das
acusações na portaria e sua instauração. No seu judicioso voto anotou sua
excelência: “Ao contrário da decisão recorrida, convenci-me, data vênia, de que –
ainda quando se faça abstração de outras, quiçá não despidas de relevo -, há, pelo
________________________
304
Superior Tribunal de Justiça. Recurso em mandado de segurança nº 7318/PR. DJ 14/04/1997 p. 12803.
305
Superior Tribunal de Justiça. Recurso em mandado de segurança nº 71074/ES. DJ 30/03/1992 p. 3968. Ainda
nesta linha de entendimento: “O inquérito administrativo disciplinar instaurado para apuração da prática de
ilícito administrativo mediante portaria que não contém a descrição dos fatos imputados ao servidor público
contém grave vício de nulidade, porque afronta os princípios do contraditório e da ampla defesa”. (Recurso
em mandado de segurança nº 7186/GO. Rel Min. Cid Flaquer Scartezzini, julgado em 08.04.1997).
306
Recurso em Mandado de Segurança nº 28515/DF, Relator Ministro Celso de Melo.
128

menos, no processo disciplinar, uma omissão grave, que importou em insanável


violência à garantia constitucional da defesa: refiro-me à inexistência de imputação,
dado que nem a portaria, que convocou o Conselho Disciplinar, mencionou, sequer,
os fatos irrogados ao militar, nem, depois, se formulou o libelo acusatório, exigido
pela legislação local”.

Em arremate, aduziu o Ministro Celso de Melo que “não se cuida de ‘erro leve de
forma’, a que alude o acórdão, com invocação indevida da lição de Seabra Fagundes: a
ciência ao acusado da substância de fato das acusações é o pressuposto mais elementar da
garantia da ampla defesa”.
Ao acompanhar o Relator, destacou o Ministro Ilmar Galvão: “[...] conforme
demonstrou o eminente Relator, o processo se ressente de nulidade insanável, qual seja, a
ausência de indicação dos fatos e atos que foram imputados ao militar, em relação aos quais
deveria ele se defender”.
Com efeito, o novo estatuto, malgrado as críticas doutrinárias, parecia ter se
harmonizado com o devido processo legal, contraditório, ampla defesa e o direito de ser
informado da acusação.
Contudo, em meados dos anos 2000, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e
do Superior Tribunal de Justiça se direcionou em sentido contrário, isto é, de ser dispensável à
portaria inaugural ou à notificação detalhar os fatos a serem apurados ou a possível
penalidade a ser aplicada em caso de condenação.
A esse respeito, no Superior Tribunal de Justiça, destacamos:

MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO


DISCIPLINAR. SERVIDORES DO IBAMA. PRESCRIÇÃO. AUSÊNCIA DE
PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA SOBRE ANTERIOR PORTARIA DE
INSTAURAÇÃO DE PAD. AFASTAMENTO DA PRESCRIÇÃO MESMO QUE
CONSIDERADO O PRAZO QUINQUENAL. INFRAÇÕES DISCIPLINARES
TIPIFICADAS COMO CRIMES. INCIDÊNCIA DO ART. 142, § 2º, DA LEI
8.112⁄90. AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO MINUCIOSA DOS FATOS
INVESTIGADOS E CAPITULAÇÃO NA PORTARIA INAUGURAL.
DESNECESSIDADE. DESCRIÇÃO CONTIDA NO INDICIAMENTO. EFETIVA
INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA. AUSÊNCIA DE NULIDADE. ORDEM
DENEGADA.

1. Mandado de segurança contra atos da Ministra de Estado do Meio Ambiente, que


aplicou a pena de demissão a servidores do IBAMA, enquadrando-os nas infrações
disciplinares previstas nos arts. 117, inciso IX, e 132, incisos IV e XIII, ambos da
Lei n. 8.112⁄90.
2. [...]
3. [...]
4. A descrição minuciosa dos fatos se faz necessária apenas quando do indiciamento
do servidor, após a fase instrutória, na qual são efetivamente apurados, e não na
portaria de instauração ou na citação inicial do processo administrativo. Precedentes.
129

5. O Relatório Final da Comissão Processante e o Parecer da Consultoria Jurídica do


Ministério do Meio Ambiente individualizaram de forma consistente as condutas
imputadas aos impetrantes, subsumindo-as aos tipos legais utilizados para embasar a
sugerida pena de demissão.
6. Segurança denegada.307

No âmbito do Supremo Tribunal Federal, a jurisprudência aponta para o mesmo


sentido:

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. INCRA.


PROCESSO ADMINISTRATIVO. PORTARIA DE INSTAURAÇÃO.
REQUISITOS. COMISSÃO DISCIPLINAR. INTEGRANTE DE OUTRA
ENTIDADE DA ADMINISTRAÇÃO. Não se exige, na portaria de instauração
de processo disciplinar, descrição detalhada dos fatos investigados, sendo
considerada suficiente a delimitação do objeto do processo pela referência a
categorias de atos possivelmente relacionados a irregularidades. Entende-se que,
para os efeitos do art. 143 da Lei 8.112/1990, insere-se na competência da
autoridade responsável pela instauração do processo a indicação de integrantes da
comissão disciplinar, ainda que um deles integre o quadro de um outro órgão da
administração federal, desde que essa indicação tenha tido a anuência do órgão de
origem do servidor. Recurso conhecido, mas a que se nega provimento.308

Sustentada nessa jurisprudência, a Administração Pública Federal voltou a adotar a


orientação anterior e passou a deflagrar processos disciplinares por meio de portarias sem um
mínimo de conteúdo fático do que seria apurado na instrução, chegando a fazer referência a
“nomes” de operações policiais309 de onde vieram elementos de inquérito policial (prova
emprestada), só delimitando os fatos no indiciamento, quando já encerrada a instrução.

________________________
307
Superior Tribunal de Justiça: Mandado de Segurança nº 16.581/DF, julgado em 26 de fevereiro de 2014. Rel.
Ministro Benedito Gonçalves. No mesmo sentido: Mandado de Segurança nº 15.787/DF, no qual se lê na
ementa: “Esta Corte Superior de Justiça possui entendimento consolidado no sentido de que a descrição
minuciosa dos fatos se faz necessária apenas quando do indiciamento do servidor, após a fase
instrutória, na qual são efetivamente apurados, e não na portaria de instauração ou na citação inicial do
processo administrativo. Precedentes: RMS 23.974⁄ES, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, Sexta
Turma, DJe 01⁄06⁄2011; RMS 24.138⁄PR, Rel. Min. Laurita Vaz, Quinta Turma, DJe 03⁄11⁄2009; MS
13.518⁄DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Terceira Seção, DJe 19⁄12⁄2008; MS 12.369⁄DF, Rel. Min.
Feliz Fischer, Terceira Seção, DJ 10⁄09⁄2007.” (Grifos nossos).
308
Recurso em mandado de segurança nº 25.105/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, Segunda Turma, DJ 20/10/06
– grifos nossos. No mesmo sentido: STF: RMS 24.129/DF, 2ª Turma, DJe 30/04/2012: “Exercício do direito
de defesa. A descrição dos fatos realizada quando do indiciamento foi suficiente para o devido exercício do
direito de defesa. Precedentes: MS 21.721; MS 23.490”.
309
À guisa de exemplo: 1) Operação Poeira no Asfalto: ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO
FEDERAL. POLICIAL RODOVIÁRIO. PROCESSO DISCIPLINAR. OPERAÇÃO POEIRA NO ASFALTO.
CASSAÇÃO DAAPOSENTADORIA. PRESCRIÇÃO. NULIDADE DA PORTARIA.
INTERCEPTAÇÕESTELEFÔNICAS. PROVA EMPRESTADA. POSSIBILIDADE. MANUAL DE
TREINAMENTODA CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO. UTILIZAÇÃO. CERCEAMENTO DE
DEFESA.NÃO OCORRÊNCIA. FATOS PROVADOS. [...]
Generalidade da Portaria instauradora do PAD. A descrição minuciosa dos fatos se faz necessária apenas quando
do indiciamentodo servidor, após a fase instrutória, na qual são efetivamenteapurados, e não na portaria de
instauração ou na citação inicial do processo administrativo.(STJ, MS 17.535/DF, Rel. Ministro Benedito
Gonçalves, julgado em 10/09.2014.
130

Conforme se depreende da leitura do Manual de Processo Administrativo Disciplinar


da Controladoria-Geral da União, órgão de cúpula do Sistema de Correição do Poder
Executivo Federal,310 aos olhos da administração federal devem constar em uma portaria
instauradora de processo a) a autoridade instauradora competente; b) os integrantes da
comissão (nome, cargo e matrícula), com a designação do presidente; c) a indicação do
número do procedimento (PAD ou sindicância); d) o prazo para a conclusão dos trabalhos; e)
a indicação do alcance dos trabalhos, reportando-se ao número do processo e demais
“infrações conexas” que surgirem no decorrer das apurações.
No mesmo Manual,311 lê-se:

Não constitui nulidade do processo a falta de indicação, na portaria inaugural, do


nome do servidor acusado, dos supostos ilícitos e seu enquadramento legal. Ao
contrário de configurar qualquer prejuízo à defesa, tais lacunas na portaria
preservam a integridade do servidor envolvido e obstam que os trabalhos da
comissão sofram influências, ou seja, alegada a presunção de culpabilidade. A
indicação de que contra o servidor paira uma acusação é formulada pela comissão na
notificação para que ele acompanhe o processo como acusado; já a descrição da
materialidade do fato e o enquadramento legal da irregularidade (se for o caso) são
feitos pela comissão em momento posterior, somente ao final da instrução
contraditória, com a indiciação.312

________________________
2)Operação Diamante Negro: PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE
SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. POLICIAIS RODOVIÁRIOS FEDERAIS. OPERAÇÃO
DIAMANTENEGRO. PENA DE DEMISSÃO. ALEGADA VIOLAÇÃO DO ART. 53, § 1°, DA
LEI4.878/1965. INAPLICABILIDADE AOS POLICIAIS RODOVIÁRIOS FEDERAIS.PRECEDENTES
DAS 1ª E 3ª SEÇÕES DO STJ. INÉPCIA DA PORTARIA DEINSTAURAÇÃO DO PAD.
INOCORRÊNCIA. PRECEDENTES. INEXISTÊNCIA DEDIREITO LÍQUIDO E CERTO. SEGURANÇA
DENEGADA. Do exame da Portaria de instauração, observa-se que a autoridade administrativa determinou a
instauração de processo disciplinar afim de apurar os fatos contidos nos autos do processo 08669.002650/2009-
94 e definir a responsabilidade dos servidores,nos termos da informação da Corregedoria Regional 025/2008,
já que"os fatos encontram-se tipificados, em tese, nos termos da Lei8.112/1990". Desta forma, não prospera a
alegação de que a Portariainstauradora seria genérica, ainda mais quando a instauração do PADfoi motivada
por Ofício remetido pela Vara Federal de TrêsLagos/MS,relativos a fatos objeto de ação penal, que tinha como
réusdiversospoliciais rodoviários federais, entre eles os impetrantes, conformeconsta da denúncia criminal,
com a precisa discriminação dascondutas praticas pelos impetrantes e os delitos
penaissupostamentepraticados.(STJ: MS 19750/DF, Relator Ministro Mauro Campbel Marques, julgado me
10/08/2014.
310
Decreto nº 5.480, de 30 de junho de 2005.lt
311
Embora o Manual de Treinamento em Processo Administrativo Disciplinar da Controladoria-Geral da União
possua na tureza doutrinária e não de lei em sentido formal (STJ: MS nº 17.537/DF,Rel. Min. Arnaldo Esteves
Lima, DJe de 24.10.2011), serve de diretriz para toda a Administração Pública Federal.
312
Manual de Processo Disciplinar da Controladoria Geral da União. Disponível em:
<http://www.cgu.gov.br/Publicacoes/atividade-disciplinar/arquivos/manualpad.pdf>. p. 91.
131

Para José Armando da Costa, essa orientação oficial não só afronta as determinações
legais referidas, como destoa completamente do princípio constitucional do devido processo
legal (due process of law), o qual não contemporiza tais excrescências.313
Observa Mauro Roberto Gomes de Mattos que,

Desse modo, posiciona-se a Administração Pública no sentido de que a Portaria


inaugural do processo administrativo disciplinar poderá ser lacunosa, informando
apenas o número do processo, com a narrativa sumária dos fatos, sem nominar o
servidor investigado, bem como sem a descrição circunstanciada e detalhada da
infração disciplinar cuja prática é imputada ao servidor público acusado, com a
respectiva definição jurídica, ou seja, a atribuição da sua exata qualificação jurídico-
disciplinar (tipicidade), além de outros requisitos legais.314

Assim, o processo voltou a guardar semelhanças com o estatuto anterior no que


concerne ao direito de ser informado da acusação no aspecto temporal, pois, embora o
acusado seja notificado desde o início para acompanhar a instrução, não lhe são dados pleno
conhecimento dos fatos e qualificação jurídica sobre os quais incidirá o contraditório, o que só
se fará ao final da subfase de instrução, ou seja, quando se chegar à conclusão pela
desnecessidade de produção de novas provas e caso se conclua pela culpa do acusado.
Inaugura-se, com efeito, a segunda subfase, na qual a comissão elabora o termo de
indiciação e cita o acusado para apresentação defesa no prazo de 10 (dez) dias. Neste
momento, o agente público terá o direito a ser informado da acusação, com todas as suas
circunstâncias, conforme se depreende da leitura do Manual de Processo Administrativo da
Controladoria-Geral da União:

O termo de indiciação irá imputar ao servidor a prática de uma ou mais infrações


disciplinares. [...] Apesar de externar juízo de convicção preliminar da comissão
processante, o termo de indiciação é peça essencial para a defesa do indiciado. Isso
porque ela formalizará a acusação contra ele, e delimitará os termos da sua defesa
escrita e até mesmo do julgamento, como se verá adiante. Justamente por ser o
momento em que a comissão irá expor os motivos pelos quais se convenceu do
cometimento da(s) irregularidade(s), o termo de indiciação, além de qualificar o
indiciado com todos os seus dados, deve descrever suficientemente os fatos
ocorridos e, de forma individualizada, a conduta por ele praticada, apontando nos
autos as provas correspondentes. Não são admitidas indiciações genéricas dos
envolvidos nos fatos, isto é, sem que seja apontada a conduta praticada por cada um
dos indiciados.

________________________
313
COSTA, José Armando da. Controle Judicial do Ato Disciplinar. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:
Método, 2009, p. 225.
314
MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Lei nº 8.112/90 Interpretada e Comentada. 3. ed. Rio de Janeiro:
América Jurídica, 2006, p. 582.
132

É crucial que sejam narrados claramente todos os fatos provados na fase de instrução,
haja vista que, após a defesa escrita, não se poderá fazer qualquer acréscimo factual
relacionado à conduta do indiciado e o julgamento deverá ser baseado naquilo que tiver sido
mencionado no termo de indiciação, sob pena de nulidade.315
No que concerne à capitulação legal, entende aquele órgão que a lei não obriga que
conste do termo de indiciação, mas é recomendável que a comissão a indique, embora possa
alterá-la no relatório final.316Embora o entendimento esteja alinhado com a doutrina e também
a jurisprudência dos tribunais superiores no processo penal,317 no sentido de que o réu se
defende dos fatos, não da capitulação legal – como expusemos no capítulo anterior citando
precedente do Tribunal Europeu de Direitos Humanos –, a capitulação legal deve
obrigatoriamente integrar a acusação para, como reconhece a Controladoria-Geral da União,
facilitar a defesa dos réus, estando inserta, portanto, no conteúdo da ampla defesa.
Além da defesa escrita, o acusado, então já indiciado, não terá direito à nova dilação
probatória; poderá apenas requerer diligências reputadas indispensáveis, conforme previsão
contida no § 3º do art. 161 da Lei 8.112, de 1990.318
Veja que, quando realmente toma conhecimento dos fatos e seus desdobramentos e da
imputação que lhe é dirigida,o servidor já não pode mais produzir provas, pois a instrução já
se encerrou, devendo ele valer-se da prova que foi produzida de forma antecipada e que,
muitas vezes, pode mostrar-se desfocada da nova realidade, prejudicando sua defesa nas
vertentes processual e material.
Ao comentar a dinâmica desse procedimento, José Raimundo Gomes da Cruz conclui
pela total deficiência da Lei nº 8.112/90 ao regular a instauração do processo disciplinar,
________________________
315
CARVALHO. Antônio Carlos Alencar. Manual de Processo Administrativo Disciplinar e Sindicância: à luz
da jurisprudência dos Tribunais e dacasuística da Administração Pública. 3. ed. rev., atual. e ampl. Belo
Horizonte: Fórum, 2012, p. 185.
316
“Na presente fase do processo, a lei ainda não exige que seja indicada a hipótese legal na qual o acusado
incidiu (dentre aquelas dos arts. 116, 117 e 132 da lei nº 8.112/90). Porém, é usual e recomendado que já seja
feito esse enquadramento, porque auxilia na defesa pelo indiciado. Este enquadramento, entretanto, poderá ser
alterado no Relatório Final, visando uma melhor adequação da conduta às definições legais do Direito
Disciplinar, onde afinal também predomina o ensinamento de que o acusado se defende dos fatos e não da
capitulação legal. Os critérios a serem seguidos para se estabelecer o adequado enquadramento serão tratados
nos próximos tópicos”. (CARVALHO. Antônio Carlos Alencar. Manual de Processo Administrativo
Disciplinar e Sindicância: à luz da jurisprudência dos Tribunais e da casuística da Administração Pública. 3.
ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 186.
317
Neste sentido, para o Superior Tribunal de Justiça, “O réu se defende dos fatos que são descritos na peça
acusatória e não da capitulação jurídica dada na denúncia. Na hipótese, eventual equívoco capitulação da
conduta imputada não modificará a situação processual do paciente, que poderá formular sua defesa a partir
dos fatos narrados na exordial acusatória.” (HC 147.953/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA
TURMA, julgado em 13/04/2010, DJe 03/05/2010).
318
“Art. 161. Tipificada a infração disciplinar, será formulada a indiciação do servidor, com a especificação dos
fatos a ele imputados e das respectivas provas”.
133

destacando, no contexto, que somente após a instrução é que a peça inicial do referido
processo é elaborada.319
Ademais, sem conhecer detalhadamente os fatos, é possível prever uma série de
entraves para o acusado tornar eficaz seu direito à ampla defesa e ao contraditório.
À guisa de exemplo, o § 1o do artigo 156 da Lei nº 8.112/90320 reza que o presidente
da comissão poderá denegar pedidos considerados impertinentes, meramente protelatórios, ou
de nenhum interesse para o esclarecimento dos fatos.
Para José Raimundo Gomes da Cruz, com a precariedade da peça inaugural, sequer
mencionada pela Lei n.8.112/90, quanto à enunciação dos fatos caracterizadores de possível
infração disciplinar, ficará bem cômodo para o órgão de instrução tolher os movimentos do
servidor, de modo que a comissão poderá direcionar a instrução probatória como melhor lhe
convier.
Não obstante haja julgados do Supremo Tribunal Federal tornando objetiva e
limitando os poderes da comissão para indeferir provas,321 a jurisprudência majoritária no
Superior Tribunal de Justiça interpreta essa prerrogativa com grande elasticidade, aceitando
os mais diversos argumentos para o indeferimento de provas, notadamente as testemunhais
requeridas pelo acusado.

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA.


ADMINISTRATIVO. PROCESSO DISCIPLINAR. MAGISTRADO.

________________________
319
Op. Cit., p. 306. Na nota de rodapé 44, este autor faz uma comparação com o Direito português bastante
interessante: “Citamos Varela e Mendes, a propósito do questionário do processo civil português, comparando-
o com o disposto no artigo 451 do nosso CPC, infelizmente sem qualquer aplicação prática por aqui, pois,
quando se inicia a instrução, o nosso juiz, ‘ouvidas as partes’, não fixa os ‘pontoscontrovertidos sobre que
incidirá a prova’, isto é, sobre os fatos que dependem de prova. Se a falta do roteiro da atividade probatória já
se mostra criticável, que dizer, então, do processo disciplinar da Lei n. 8.112/90, em que a comissão
processante dispara sem rumo para chegar a formular a ‘petição inicial’, a ‘denúncia’, ou, mais exatamente
(embora a lei a ela se refira) a ‘portaria’ com que tal processo se instaura?”.
320
“Art. 156. É assegurado ao servidor o direito de acompanhar o processo pessoalmente ou por intermédio de
procurador, arrolar e reinquirir testemunhas, produzir provas e contraprovas e formular quesitos, quando se
tratar de prova pericial. § 1o O presidente da comissão poderá denegar pedidos considerados impertinentes,
meramente protelatórios, ou de nenhum interesse para o esclarecimento dos fatos.”
321
“Se a lei arrola os motivos do indeferimento, é inegável que eles devem ser declarados pelo agente público,
exatamente para possibilitar o controle da legalidade do ato, seja pela própria Administração Pública, seja pelo
Poder Judiciário. Ou seja: se somente tais motivos legitimam o indeferimento da produção da prova, é
imprescindível que o autor do ato exponha, ainda que No processo administrativo para a demissão de
funcionário público – o qual, especificamente, a Constituição assegurou a ampla defesa -, o princípio é o
direito do acusado à produção da provas que entender convenientes: o indeferimento é o excepcional, que há
de ser motivado, tanto mais quanto a lei enumerou, taxativamente, as razões que podem legitimar o
indeferimento, à vista das circunstancias do caso concreto. sucintamente, qual deles o levou a tomar tal
decisão. A produção da prova é um direito do acusado em processo disciplinar (art. 156, caput, da Lei nº
8.112/90), sendo desnecessário fundamentar o pedido. Mas o indeferimento da prova não prescinde da
indicação, mesmo que sucinta, do motivo.”
134

ADVERTÊNCIA. INDEFERIMENTO DE PRODUÇÃO DE PROVA


TESTEMUNHAL. MATÉRIA PRECLUSA. RECURSO ADMINISTRATIVO
NÃO DOTADO DE EFEITO SUSPENSIVO OU INTERRUPTIVO.
DECADÊNCIA CONFIGURADA. TESE DE NULIDADE POR CERCEAMENTO
DE DEFESA. DESCABIMENTO. DECISÃO DEVIDAMENTE
FUNDAMENTADA. [...]
3. Não se vislumbra cerceamento de defesa em face do indeferimento de produção
de prova testemunhal, a ensejar a nulidade do ato punitivo, quando devidamente
motivado por razões relevantes, como na espécie.
4. No âmbito do processo disciplinar, a produção de provas não constitui direito
absoluto do servidor processado, podendo ser perfeitamente negada pela Comissão
Apuradora, de forma válida e legítima, tendo em vista a ausência de justificativa
por parte do Requerente ou mesmo ante a desnecessidade de sua produção para o
deslinde da controvérsia. Precedentes.
5. Recurso conhecido, porém desprovido.322

ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE


SEGURANÇA. MAGISTRADO. PENA DE APOSENTADORIA
COMPULSÓRIA COM PROVENTOS PROPORCIONAIS AO TEMPO DE
SERVIÇO. INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE PRODUÇÃO DE PROVAS.
MOTIVAÇÃO SUFICIENTE. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.
OBSERVÂNCIA. RECURSO IMPROVIDO.
1. O indeferimento motivado de produção de provas, mormente quando se mostram
dispensáveis diante do conjunto probatório, não enseja cerceamento de defesa.
Precedentes.
2 e 3. [...]
4. Recurso ordinário improvido.323

3.8.3 A citação após a instrução processual e o direito de ciência da imputação

O direito de ser informado da acusação é próprio do processo sancionador,


administrativo ou penal. Constitui elemento instrumental do direito fundamental de defesa, já
que nenhuma defesa pode ser plena e eficaz se ao acusado não for dado conhecer com
anterioridade os fatos que lhe são imputados e que deram ensejo à deflagração do processo. A
comunicação prévia e oportuna tem por finalidade impedir um processo inquisitivo,
divorciado dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição.
O direito de ciência da imputação exige que no processo disciplinar a imputação se
realize sobre a base de uma concreção particularizada dos fatos e condutas imputadas, sem
que possa efetuar-se sobre excessiva generalização, já que esta impede ao acusado conhecer a
extensão plena da acusação e inviabiliza o exercício pleno do direito de defesa.
O processo administrativo disciplinar, como todo aquele que encerra caráter
sancionatório, pode tolerar surpresas, subterfúgios ou armadilhas, já que estabelecer a verdade
material acerca dos fatos em apuração constitui, talvez, o seu objetivo primordial, e que deve

________________________
322
Superior Tribunal de Justiça: RMS 16.008⁄RJ, Rel. Min. LAURITA VAZ, DJ 16⁄10⁄2006. (Grifo nosso).
323
Superior Tribunal de Justiça: RMS 23.334⁄AL, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJ de 7⁄2⁄2008).
135

ser alcançado em procedimento equilibrado, que exige o respeito pelo devido processo legal,
com as garantias a ele inerentes, de ampla defesa e contraditório.
Conforme tratado no item anterior, a portaria de instauração do processo
administrativo disciplinar e a notificação inicial do servidor dispensam a descrição minuciosa
da imputação e a capitulação jurídica desta, o que só ocorre no termo de indiciamento, após o
final da instrução processual.
Um dos aspectos que integram o conteúdo essencial do direito de ciência da imputação
é o momento em que esta deve ser realizada, conforme examinamos no capítulo III. A
informação acerca da imputação deve ser tempestiva, isto é, dentro do prazo que permita ao
acusado exercer plenamente sua defesa.
A informação deve ser plena; e a comunicação, oportuna. A comunicação tardia deve
ser tomada como inexistente, pois, da mesma forma, impossibilita o desenvolvimento de um
processo justo, uma vez que, sem conhecer os fatos e as imputações, o acusado não pode
exercer o direito de defesa em sua plenitude, nas vertentes processual e material.
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, no que concerne ao momento adequado
para comunicação da imputação ao réu, usa a expressão “no mais breve prazo”324; e o
Tribunal Constitucional espanhol, “com o tempo suficiente”.325 A informação, portanto, deve
ser levada ao acusado antes da instrução processual, pois com esses elementos o acusado pode
propor quantas diligências considerar necessárias para o desenvolvimento de sua estratégia
defensiva. A acusação deve estar à vista, não se admitindo que seja implícita ou tácita.
O direito de todo cidadão de ser informado oportunamente dos fatos que lhe são
imputados, podendo contra eles se insurgir por meio do devido processo legal, constitui
garantia insculpida no art. 5º da Constituição Federal de 1988, cujo sentido histórico remonta
à luta contra o processo inquisitivo. O escopo é o de impedir que o acusado seja submetido a
um processo sem conhecer em toda a abrangência os fatos que lhe são imputados. O direito a
ser informado de todos os fatos e termos da acusação constitui elemento essencial do moderno
processo sancionador. Não se tolera um sistema como o censurado por Kafka: "E o modo de
exercer a justiça que aqui se tem, exige que não somente se condene o inocente, mas que se
faça, além disso, sem que este saiba por quê.”326

________________________
324
CAAMANO, Francisco Domínguez. Algunas consideraciones sobre el derecho ser informado de la
acusación em la jurisprudencia del Tribunal Constitucional. La Constituición y la prática de los derechos.
Editorial Aranzadi Y BBV, 1999, p. 475.
325
Sentença 154, de 10 de julho de 1991.
326
KAFKA, Franz. O processo. Trad. Modesto Carone. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 82.
136

Neste ponto, a norma do processo disciplinar, na concretização indicada pela


jurisprudência e pelos órgãos da Administração, encerra uma ofensa ao direito fundamental de
ser informado da acusação, especialmente no que concerne à oportunidade dessa informação.
Ao tomar conhecimento do processo contra ele instaurado ou a que passa a integrar na
condição de acusado, este não tem a exata noção de quais as imputações a ele atribuídas, o
que só saberá ao final da instrução processual.
Há, assim, uma nítida inversão da ordem natural das coisas: quando o servidor
conhece com precisão os fatos que lhe são imputados e a correspondente capitulação, com as
circunstâncias a ela inerentes (termo de indiciamento), não pode mais produzir as provas
necessárias ao pleno exercício do direito de defesa.327
A sistemática fixada pela Lei nº 8.112/90 para o processo disciplinar, albergada pela
doutrina e pela jurisprudência, implica uma redução da capacidade de reação do acusado.
Com efeito, o processo administrativo disciplinar federal, no qual o acusado só é
informado da imputação com todos os seus elementos após o término da instrução processual,
afronta o direito fundamental de ciência da imputação no seu aspecto temporal. Não há como
ele se defender plenamente sem conhecer a imputação em toda a sua dimensão; após conhecê-
la (no termo de indiciamento), não mais poderá produzir provas pois a instrução probatória já
estará concluída.

3.8.4 Necessidade de compatibilizar o processo administrativo federal com o direito de


ciência da imputação

Infere-se das considerações anteriores que é preciso compatibilizar a Lei nº 8.112/90,


no que concerne ao direito de ciência da imputação tempestivamente, com a garantia
constitucional do devido processo legal, uma vez que, sem a descrição dos elementos fáticos e
jurídicos na portaria inaugural, não há possibilidade de efetivo contraditório e ampla defesa na
instrução.
A primeira solução possível é a reabertura da instrução após o indiciamento,
facultando ao servidor a produção de todas as provas em direito admitidas e não só defesa

________________________
327
Confira-se, neste sentido, decisão do Tribunal Constitucional espanhol: “El ejercicio de los derechos de
defensa y a ser informado de la acusacion em el seno de um procedimento administrativo sancionador
pressupone, obviamente, que el implicado sea emplazado o le sea notificada debidamente la incoación del
procedimento, pues sólo así podrá disfrutar de uma efectiva posibilidad de defensa frente a la infracción que se
le imputa previa a la toma de decision y, de alegar lo que a sua derecho convenga. (Sentença do Tribunal
Constitucional 54 de 24 de março de 2003, publicada no Repertório do Tribunal Constitucional 2003/91.)
137

escrita, tal qual fez o STF para compatibilizar o art. 222 do estatuto vetusto com a
Constituição de 1969, aproximando o estatuto atual e o sistema penal continental europeu, em
que não há contraditório na instrução preliminar, embora desenvolvida perante um juiz de
instrução. É a partir das conclusões dessa instrução, aí, sim, com observância estrita das
regras do contraditório, que se desenvolve o processo.
Esse ainda é o modelo adotado na Espanha. Naquele país, assim como no Brasil,
inicia-se o processo disciplinar com a designação por meio de portaria da autoridade
competente de um instrutor, que será o responsável pela colheita de todas as provas que
entender necessárias ao caso. Nessa fase, o acusado poderá acompanhar a instrução, mas dela
não participará ativamente, por exemplo, indicando provas. Após finalizada a instrução,
entendendo o instrutor pela existência de indícios suficientes de autoria e materialidade, é
lavrado o pliego de cargos– equivalente ao nosso termo “indiciamento” –, descrevendo os
fatos imputados com todas as suas circunstâncias, a suposta infração disciplinar cometida e a
possível sanção aplicável.328
Joaquím Ivars Ruiz e Rafael Manzana Laguarda comentam com precisão a
importância do pliego de cargos e sua relação com o direito de ciência da imputação:329

O “pliego de cargos” deverá ser redigido de modo claro e preciso, em parágrafos


separados e numerados por cada um dos fatos imputados ao funcionário, pois supõe
o ato através do qual se leva ao conhecimento do acusado a acusação que se
formula contra ele, delimitando e fixando a matéria a que se será objeto do processo,
impedindo que se possa sancionar por fatos não contidos naquele. (Grifos nossos).

Sucede que, ao contrário do nosso sistema, após a citação e entrega do pliego de


cargos, o acusado tem o direito de indicar todas as provas que entender necessárias para sua
defesa.330 Esse trâmite marca o início da instrução probatória e permite ao acusado o pleno
exercício de defesa.
A Lei nº 8.112/90 buscou se afastar desse modelo e aproximar-se do nosso sistema
penal, no qual pode ou não haver uma investigação preliminar e inquisitiva – o inquérito

________________________
328
Confira-se a respeito: RUIZ, Joaquím Ivars; LAGUARDA, Rafael Manzana. Responsabilidad Disciplinaria
de Los Empleados Públicos. Valencia: Tirant Lo Blach, 2008.
329
Responsabilidad Disciplinaria de Los Empleados Públicos. Valencia: Tirant Lo Blach, 2008, p. 160. Texto
original: “El pliego de cargos deberá redactar-se de modo claro y preciso, en parragrafos separados y
numerados por cada uno de los hechos imputados al funcionário, pues supone el acto a través del cual se da a
conocer al imputado la acusacion que se fromula contra el mismo, delimitando y fijando la matéria a que se
concreta la investigacion procedimental, impidiendo que se pueda sancionar por fatos no contenidos em el
mismo”. (Grifos nossos). Tradução livre.
330
Artigo 36 do Reglamento de Régime Disciplinario de los Funcionarios de la Administracion del Estado.
138

policial –, destinada a subsidiar o oferecimento da denúncia ou da queixa, que se


desenvolverá sob o crivo do contraditório. Contudo, para que se mantenha esse sistema na Lei
nº 8.112/90, faz-se necessário que a portaria descreva todos os elementos da imputação, como
deve fazê-lo a denúncia penal. Ademais, a sindicância se presta a este fim: recolher indícios
de autoria e materialidade para deflagração do processo disciplinar.
Ou a administração dispõe de elementos suficientes e deflagra diretamente o processo
disciplinar, descrevendo na portaria inaugural todos os elementos da imputação; ou instaura
uma sindicância investigativa para colhê-los; ou arquiva o expediente, no caso de a denúncia
ou suspeita se mostrar improcedente – de modo que nenhum argumento de fato ou de direito
justifica não informar a imputação na portaria inaugural.
Neste sentido, tem-se a lição de Antônio Carlos Alencar Carvalho:

Conquanto vigore orientação jurisprudencial no sentido de que a portaria de


instauração do processo administrativo disciplinar não deve expor os fatos objeto de
censura e que deflagraram a abertura do feito punitivo, mas somente quando
elaborada a indiciação, afigura-se possivelmente prejudicado o efetivo exercício do
direito de ampla defesa e contraditório ao longo da instrução processual, já que o
acusado não tem precisa e pormenorizada ciência, em muitos casos, sobre as causas
da instauração do processo apenador, modo pelo qual também não terá plenas
condições de averiguar quais meios probatórios são úteis ou pertinentes para repelir
a pretensão acusatória oficial.
Ora, se o processo disciplinar é instituído para o oferecimento de acusação de fato
certo, cuja autoria e materialidade já estão definidas (do contrário deveria ser aberta
sindicância para apuração pertinente), não se compreende o porquê de a
Administração não expor os elementos fáticos constitutivos da falta disciplinar
imputada.
Não se admite que o feito se torne em um instrumento de devassa e perseguição da
vida funcional inteira do acusado, uma “carta branca” para encontrar algo que
deponha contra o servidor e justifique uma punição qualquer. A instauração do
processo sancionador administrativo não pode ser um pretexto para punir de alguma
forma, mediante acusações montadas artificiosamente, determinado funcionário
antipatizado, nem como meio de dificultar a defesa pela sonegação de informações e
teses acusatórias. Não se trata de procedimento inquisitorial, mas de processo
contraditorial, em que vigoram os mandamentos da lealdade e da boa-fé processual
(art. 4º, II, L. 9.784/99), dos quais deriva a exigência de verídica e clara exposição
do pensamento da acusação e da defesa.331

Embora a repetição da instrução processual possa redundar em ofensa ao princípio


constitucional da eficiência, pois teríamos, injustificadamente, até três procedimentos –
sindicância, inquérito e nova instrução processual após o indiciamento –, caso a
jurisprudência e a postura da Administração se mantenham no estado atual, essa solução

________________________
331
Manual de Processo Administrativo Disciplinar e Sindicância: à luz da jurisprudência dos Tribunais e da
casuística da Administração Pública. 3. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 845.
139

prático-jurídica preserva os direitos fundamentais do acusado, notadamente o direito de


ciência da imputação.
A outra opção para harmonizar o sistema é a integração da Lei nº 8.112/90 pelo art.
26, §1º, inciso VI da Lei nº 9.784/99332, aplicável subsidiariamente aos processos
administrativos disciplinares naquilo em que for omissa,333 o qual determina que na
comunicação dos atos processuais devem constar os fatos e fundamentos da decisão. A
omissão da Lei nº 8.112/90 quanto a essa questão é pontada por José Raimundo Gomes da
Cruz ao afirmar que “falta qualquer referência do legislador à portaria inicial” naquele
estatuto.
Assim, a aplicação do art. 26, VI da Lei nº 9.784/99 harmonizaria o processo
disciplinar com o direito de ciência da imputação.

________________________
332
“Art. 26. O órgão competente perante o qual tramita o processo administrativo determinará a intimação do
interessado para ciência de decisão ou a efetivação de diligências.
§ 1o A intimação deverá conter:
[...]
VI - indicação dos fatos e fundamentos legais pertinentes”.
333
“Art. 69. Os processos administrativos específicos continuarão a reger-se por lei própria, aplicando-se lhes
apenas subsidiariamente os preceitos desta Lei.”
140

CONSIDERAÇÕES FINAIS

1. Não há um monopólio judicial do poder sancionador, o qual também é exercido


pela Administração Pública por meio da aplicação de sanções administrativas, nas quais estão
inseridas as disciplinares.
2. No Brasil, o Direito Administrativo Disciplinar não constitui disciplina autônoma,
mas apenas um tópico do Direito Administrativo relativo aos servidores públicos.
3. Em nosso país, não há uma definição por parte da doutrina e da jurisprudência
acerca da natureza administrativa ou penal do poder disciplinar, podendo-se falar numa
tendência em direção à segunda. No Tribunal Europeu de Direitos Humanos, no Tribunal
Constitucional espanhol e na Corte Interamericana de Direitos Humanos, entende-se que o
poder sancionador do Estado é uno, regendo-se pelos mesmos princípios garantistas oriundos
do Direito Penal e Processual Penal, donde o ordenamento punitivo do Estado tem uma dupla
manifestação: o Direito Penal e Processual Penal e o Direito Administrativo Disciplinar.
4. Essa concepção unitária leva a que todo o poder sancionador da Administração
esteja sujeito aos mesmos princípios constitucionais considerados fundamentais para o Estado
de Direito, entre os quais os do Direito Penal e Processual Penal.
5. É necessário se distinguir a natureza do fundamento do poder disciplinar. Há
quem defenda que seu fundamento reside na necessidade de autotutela organizacional da
Administração, com vistas a perseguir seus fins constitucionais; há, entretanto, quem defenda
que o fundamento reside nas relações especiais de sujeição. Todavia, entende-se que as
relações especiais de sujeição não podem servir de fundamento para afastar do exercício do
poder disciplinar os direitos fundamentais, a legalidade e o controle jurisdicional da
Administração.
6. As relações especiais de sujeição surgiram na Alemanha, em uma época em que
se enfrentavam o princípio monárquico, no qual o monarca reservava para si diversos
domínios, dentre os quais a Administração. Nesse contexto, as relações especiais de sujeição
não respeitavam os direitos fundamentais, o princípio da legalidade e o controle judicial da
Administração.
7. O advento do Estado Democrático de Direito, a consagração do princípio da
legalidade, dos direitos fundamentais, do controle jurisdicional da atividade administrativa
colocaram em crise o conceito de “relação especial de sujeição”.
8. Para uns, esse conceito não mais existe; para outros, permanece mas sem seus
traços originais.
141

9. Ainda que se admita a subsistência da relação especial de sujeição, seus traços e


fundamentos desapareceram; porque o único elemento legitimador do poder é o democrático
– o confronto entre os princípios democrático e monárquico não mais existe – e porque a
ausência do princípio da legalidade, de respeito pelos direitos fundamentais e controle judicial
da atividade da Administração – características originais da relação especial de sujeição – são,
atualmente, princípios básicos do Estado Democrático de Direito.
10. Desde o advento da Constituição Federal de 1988, o poder disciplinar deve ser
exercido no bojo de um processo administrativo disciplinar. Não mais se admitem as
apurações sumárias, como o instituto da verdade sabida.
11. A Administração Pública tem o poder-dever de deflagrar a persecução disciplinar
caso haja indícios da prática de infração disciplinar.
12. Os termos “processo” e “procedimento” não se confundem. Enquanto o primeiro é
uma sequência de atos concatenados e interligados entre si tendentes a um ato final, o
segundo é a forma pela qual esses atos devem ser produzidos no bojo do processo.
13. A Constituição Federal de 1988 consagrou a aplicação da garantia do devido
processo legal ao processo disciplinar e trouxe uma série de princípios processuais que lhe
dão concretude, como assistência jurídica gratuita e integral, juiz natural, duração razoável do
processo, contraditório e ampla defesa.
14. O devido processo legal teve origem na Inglaterra com um conteúdo formal, e se
desenvolveu no Direito norte-americano também no aspecto material, com o propósito de
coibir excessos do Poder Público, incluindo o Legislativo na sua função precípua.
15. O princípio da assistência jurídica gratuita ampara o agente público acusado em
processo administrativo disciplinar que comprove a insuficiência de recursos para contratação
de advogado.
16. O princípio do juiz natural garante um julgamento por autoridade com
competência estabelecida antes da ocorrência do ato posto em julgamento.
17. No processo administrativo disciplinar federal, esse princípio vem sendo
desrespeitado pela existência das comissões processantes ad hoc.
18. No processo administrativo federal, o princípio da duração razoável do processo
garante ao agente público acusado um tempo máximo de duração do processo. Contudo, a
jurisprudência não tem reconhecido consequências para o seu descumprimento, exceto a
cessação do afastamento cautelar.
142

19. A imputação certa é uma garantia a favor do acusado, essencial para a deflagração
do processo administrativo disciplinar e o seu conhecimento pelo acusado da condição
essencial para o exercício dos direitos à ampla defesa e ao contraditório.
20. O direito de ciência da imputação está intimamente ligado também ao sistema
acusatório, cujos elementos essências são imputação formulada por pessoa distinta da
julgadora; correlação objetiva e subjetiva da imputação; e imparcialidade do julgador.
21. O direito de ciência da imputação é essencial ao contraditório e à ampla defesa, e
lhes assegura efetividade.
22. A ampla defesa compreende a autodefesa, a defesa técnica e o direito à produção
de provas, os quais não poderão ser efetivamente exercidos sem que se saiba o teor da
acusação.
23. O direito de ciência da imputação é inerente a qualquer acusado e exercido em
face do Poder Público. Deve ser realizado por escrito e acompanhado de todos os documentos
que instruem o processo.
24. Por ser fundamental ao exercício dos direitos à ampla defesa e ao contraditório,
que, por sua vez, dão concretude à garantia do devido processo legal, deve a imputação ser
levada ao conhecimento do acusado o mais rápido possível e imediatamente após a
instauração do processo.
25. O conteúdo do direito de ciência da imputação compreende a descrição fática –
com todos os seus elementos e circunstâncias –, a qualificação jurídica e as provas que
embasaram a deflagração do processo. Entretanto, a doutrina e a jurisprudência majoritária
entendem que é desnecessária a qualificação jurídica, pois o acusado se defende dos fatos.
26. O direito de ciência da imputação e o direito ao acesso amplo e irrestrito aos autos
do processo, embora tenham objetivos comuns, não se confundem e não são fungíveis entre
si.
27. O Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União (Lei nº 1.711/52) que precedeu
o atual (Lei nº 8.112/90) não garantia o direito de ciência da imputação, o que impossibilitava
a ampla defesa e o contraditório, uma vez que o acusado só era citado para apresentar defesa –
escrita – após o término da instrução.
28. Esse procedimento recebia severas críticas da doutrina e só foi harmonizado com
a Constituição vigente à época após o Supremo Tribunal Federal conferir interpretação
conforme a Constituição ao art. 222 daquele estatuto, garantindo ao acusado, após a citação, o
143

direito de produzir todas as provas necessárias à sua defesa, e não só a defesa escrita como
entendia a Administração Pública.
29. O atual estatuto, ao dispor a notificação do acusado para acompanhar a instrução
processual e dela participar desse o início do processo, foi comemorado pela doutrina.
30. Até meados dos anos 2000, a jurisprudência dos tribunais superiores exigia que a
portaria inaugural do processo administrativo disciplinar regulado pelo atual estatuto
descrevesse de forma minuciosa e objetiva os fatos que seriam apurados ao longo da
instrução.
31. Contudo, atualmente, essa jurisprudência mudou radicalmente, permitindo a
deflagração de processos administrativos disciplinares a partir de portarias e notificações ao
acusado com descrições vagas e imprecisas. Defende esta jurisprudência – e o entendimento
foi encampado pela Administração Pública Federal – que a delimitação dos fatos só se faz
necessária no termo de indiciamento, após o final da instrução.
32. Esse entendimento fere o direito de ciência da imputação e retira a eficácia dos
princípios do contraditório e da ampla defesa, pois, após a lavratura do termo de indiciamento,
o acusado só tem direito a defesa escrita, sem possibilidade de produção de provas. Assim,
resta desatendido o direito de ciência da imputação no seu elemento temporal, pois o acusado
é informado da acusação tardiamente, quando não mais surtirá efeitos práticos.
33. Com efeito, voltou-se ao regime da Lei nº 1.711/52 – antes da interpretação que
lhe conferira o Supremo Tribunal Federal –, pois, embora seja notificado para acompanhar a
instrução, o acusado não sabe sobre quais fatos incidirá a dilação probatória.
34. É necessário harmonizar essa interpretação jurisprudencial com o direito de
ciência da imputação. A primeira solução é a reabertura da instrução processual após a
entrega do termo de indiciamento, facultando ao acusado a produção de todas as provas que
entender necessárias à sua defesa, inclusive a reinquirição de testemunhas já ouvidas. Outra
solução é a aplicação subsidiária da Lei nº 9.784/99, artigo 26, V, que determina que, na
comunicação dos atos processuais, devem constar os fatos e fundamentos da decisão à
deflagração do processo administrativo disciplinar da Lei nº 8.112/90, uma vez que esta é
omissa no que diz respeito à portaria inaugural.
144

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