Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
Introdução
De uma leitura simples do tipo penal do curandeirismo, podem-se extrair duas perguntas
iniciais: por quais motivos, em determinado momento, o poder legislativo brasileiro
decidiu criminalizar uma variedade de condutas relacionas a outras formas de cura? Será
que todos esses perfis enquadráveis no crime são vistos como perigosos e sofrem,
efetivamente, ação repressiva do estado? Tais questionamentos são os grandes vetores
de investigação do presente artigo, que busca desvendar a motivação real da
criminalização, a partir das tensões sociais instaladas em certo momento histórico. Para
isso, entende-se relevante atentar-se à conjugação entre medicina e direito, que
desencadeou o uso jurídico da expressão “saúde pública”, lastro da criminalização do
curandeirismo e substância do bem jurídico-penal tutelado. Busca-se verificar como a
teoria do bem jurídico-penal pode contribuir para desestabilizar tecnicamente a
legitimidade do tipo penal. Aliado a isso, a mobilização do conceito de saúde coletiva,
contraposto à saúde pública, se coaduna com uma perspectiva de coexistência de
diferentes práticas terapêuticas de cura.
Nesse mesmo período, o mundo ocidental vivenciava a ascensão das teorias eugenistas,
representada pelo positivismo criminológico no âmbito do sistema penal. A ideia de que
havia perfis biológicos com cargas genéticas superiores, identificadas com os brancos,
sobretudo os europeus, embasou uma série de práticas que buscavam justificar o
racismo sob o manto da cientificidade. O racismo científico era o argumento oficial
utilizado para promover o embranquecimento da população brasileira na virada do
século XIX para o XX. Esse projeto de construção de uma identidade nacional por meio
do branqueamento da negritude contou com o papel desempenhado pelo fomento à
imigração de mão de obra europeia. O incentivo estatal para a entrada de alemães,
espanhóis e italianos almejava compor uma limpeza moral e cultural ao mesmo tempo
que representavam a incorporação da modernização capitalista. Nascia então uma
brasilidade mestiça que, por ser resultado de um projeto político de clareamento do
fenótipo negro aqui tão presente, integrava a política embranquecedora. “O mestiço era
admitido como elemento transitório que levaria a constituição de uma nação de
brancos.” (SANTOS; SILVA, 2018, p. 266.) Percebe-se essa política enquanto
Página 2
Curandeirismo: o bem jurídico saúde pública a serviço de
uma política criminal racista
Em todos os principais centros urbanos brasileiros do final do século XIX, o temor das
autoridades em relação à delinquência, à vadiagem e a quaisquer expressões culturais
que contrariassem a implantação da modernidade republicana encontrou, na ideia de
contágio social, moral e mesmo físico, o respaldo teórico para se tornar uma prática
científica interventiva. (SCHRITZMEYER, 2004, p. 68.)
Vale ressaltar que a população explorada e oprimida pelo racismo estrutural resistia e
combatia as perversidades estatais. O período da Primeira República também foi
marcado por grandes insurreições populares: Revolta da Armada (1893-1894); Revolta
da Chibata (1910); Guerra de Canudos (1893-1897); Guerra do Contestado
Página 3
Curandeirismo: o bem jurídico saúde pública a serviço de
uma política criminal racista
Nesse contexto, o discurso médico hegemônico já refletia que tanto a vítima quanto o
suposto autor das práticas curativas extraoficiais deveriam ser encarados como
ignorantes, um retrato que buscava deslegitimar a sabedoria popular de origem indígena
e africana para justificar a exclusividade da competência da medicina oficial. Era
necessário forjar a percepção de que havia um baixo nível cultural em jogo, o que
provocava a tutela do estado para protegê-los da própria estupidez. Se, desde o
Império, a categoria dos médicos já pressionava por amparo legal da exclusividade do
exercício da cura de enfermidades, com a ascensão da República, estavam desenhados
os argumentos aptos a impulsionar um programa de criminalização a essas práticas
religiosas curativas. De um lado, médicos satisfeitos com o amparo estatal ao domínio
de sua categoria de um verdadeiro mercado de doentes; de outro, o projeto
desenvolvimentista racista saciado com o apoio de dois grandes braços para o controle
social dos indesejáveis: a medicina e o direito.
Foi assim que o poder punitivo oficial conferiu exclusividade de perícia técnica em
exercer a cura aos médicos por meio da criminalização de práticas que seriam
enquadradas no curandeirismo e nas figuras da prática ilegal da medicina e do
charlatanismo, todos tipificados no primeiro Código Penal (LGL\1940\2) republicano de
1
1890 . A união de juristas e médicos para combater condutas reputadas como ameaças
Página 4
Curandeirismo: o bem jurídico saúde pública a serviço de
uma política criminal racista
à saúde pública, fruto de uma cor que simbolizava o atraso e precisava ser apagada.
Assim:
Em alguns destes, o réu é indiciado apenas por bater candomblé sem a autorização do
delegado de polícia. Há, então, um elemento importante a ser considerado no tocante à
característica das práticas de repressão policial aos adeptos do culto afro-brasileiro em
Feira de Santana, constatado inclusive no caso de Lina: as prisões não eram realizadas
unicamente por bater candomblé, mas principalmente por exercerem os saberes
mágicos afro-brasileiros identificados como “feitiçaria”, “magia negra” e “curandeirismo”.
O candomblé era apenas um elemento agravante (OLIVEIRA, 2012, p. 59)
Embora outros cultos religiosos pudessem ser encaixados no tipo penal, a atuação
repressiva policial e judicial direcionava-se, desde o início, à parcela específica da
população, cristalizando a imunidade a outras figuras, como o exorcismo praticado por
sacerdotes, vinculado ao catolicismo, ou a circuncisão masculina realizada por rabinos,
atrelado ao judaísmo, ou mesmo o reiki, prática de origem budista que promove a cura
por meio da energia das mãos. Na pesquisa realizada pela antropóloga Ana Lúcia Pastore
Schritzmeyer (2004), foi possível verificar que entre 1900 e 1990, os julgados
analisados manifestavam o curandeirismo como tipo penal mais incidente (quando
comparado ao exercício ilegal da medicina e ao charlatanismo), tornando-se um
verdadeiro curinga. Mas, no jogo repressivo, essa carta era utilizada apenas em casos
vistos como necessários, identificados com práticas que expressavam uma mistura de
diferentes culturas, africanas, europeias e indígenas, vistas como um atraso, um mal a
ser controlado e punido.
Página 5
Curandeirismo: o bem jurídico saúde pública a serviço de
uma política criminal racista
Previsto no Capítulo III, que trata dos crimes contra a saúde pública, o tipo penal
apresenta como bem jurídico-penal tutelado a saúde pública. Antes de adentrar
especificamente nesse tema, que será analisado com mais profundidade no tópico
subsequente, entende-se relevante apresentar uma breve reflexão acerca de alguns dos
principais aspectos do tipo penal.
A pena cominada é de detenção de seis meses a dois anos. Caso incida a circunstância
qualificadora do parágrafo único, será o agente também será multado. Se do crime
doloso resultar lesão corporal de natureza grave, a pena será aumentada pela metade;
se resultar morte, aplicar-se-á em dobro a pena. A ação penal é a pública incondicionada
de competência dos Juizados Especiais Criminais (art. 61 da Lei 9.099/95
(LGL\1995\70)), sendo possível a suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei
9.099/95 (LGL\1995\70)).A atribuição da qualidade de crime de menor potencial
ofensivo (pena máxima é de até dois anos), na visão de Paulo César Busato, indica que
o fato deve ser descriminalizado: “Se a obediência aos princípios próprios do Juizado
Especial Criminal, que são precisamente os princípios do direito administrativo, bastam
para o caso, não há necessidade nenhuma de persistir a preservação dessa conduta sob
controle social de matéria penal.” (2017, p. 270)
Como ensina Ana Elisa Bechara, o bem jurídico-penal nasce da crítica à teoria da lesão
de direitos subjetivos de Feuerbach (2014, p. 89), visto como uma generalização ampla
e abstrata. No contexto pós-Revolução Industrial, os estados buscavam mecanismos de
incrementar sua ação no âmbito punitivo. Foi nesse cenário que o alemão Birnbaum
introduziu o conceito de bem jurídico-penal, em substituição à ideia de dano a direitos
subjetivos. Amparado pelo positivismo em ascensão, essa nova direção permitiu uma
expansão do alcance do sistema penal na sociedade.
Para Hassemer, o que importa não é a posição objetiva do bem e da conduta lesiva, mas
a valoração subjetiva, com as variantes do contexto social e cultural. Formula-se uma
doutrina realista do bem jurídico, ancorada em diretrizes político-criminais de ordem
racional (política criminal funcionalisticamente racional). As teorias sociológicas são por
ele classificadas conforme cumpram uma função crítica ou sistemática. As primeiras
situam a noção do bem jurídico além do Direito Penal, transcendem o sistema. De outro
lado, as sistemáticas reduzem-no a uma criação do legislador e são, por isso, imanentes
ao sistema (PRADO, 2011, p. 41).
Entende-se ser mais adequada a dimensão da teoria sociológica do bem jurídico que
enuncia que a eleição desses valores não pode se restringir à vontade do legislador, e
que deve se relacionar à ideia de danosidade social. Dessa forma, se a busca por tutelar
determinado bem jurídico causar mais danos a outro bem jurídico, não se verifica
danosidade social suficiente a sustentar a criminalização, como será exposto mais
adiante, no tópico sobre a descriminalização.
Helena Regina Lobo da Costa aborda a filiação do brasileiro Juarez Tavares à concepção
de bem jurídico calcada na centralidade da pessoa e com a função de limitação à
atuação estatal. “O bem jurídico – diz o autor – ‘é um elemento da própria condição do
sujeito e de sua proteção social, e nesse sentido pode ser entendido como um valor que
se incorpora à norma como seu objeto de preferência real’.” (COSTA, 2012, p. 139-140.)
A expressão “objeto de preferência real” sinaliza quais caminhos percorrer para
encontrar sua fonte, qual seja, as relações de poder em determinada sociedade.
Outro importante nome dessa corrente é o espanhol Santiago Mir Puig que entende que
a fonte do conceito do bem jurídico reside nas necessidades sociais, e não em uma
valoração moral e subjetiva. Nas palavras de Ana Elisa Bechara, o autor identifica bens
jurídicos enquanto “condições necessárias para um correto funcionamento do sistema
social, traduzidas em concretas possibilidades de participação do indivíduo nos processos
de interação e comunicação social” (2014, p. 133). A crença de que, sob a bandeira da
política criminal liberal, se possa utilizar a teoria do bem jurídico para limitar o poder
punitivo está presente em seus estudos (PUIG, 2011, p. 120).
O alemão Ulfrid Neumann também integra o conjunto dos penalistas que compõe a
teoria sociológica do bem jurídico-penal. Ele elucida que o papel da religião em
determinada sociedade pode gerar tipos penais que não se coadunam com uma ordem
jurídica secular, fundada no reconhecimento do indivíduo (2012, p. 521). Assim, sua
contribuição é valiosa no sentido de perceber como as relações desiguais de poder na
sociedade refletem na criminalização de condutas. Esse ponto parece fundamental para
compreender que a teoria do bem jurídico consiste em um modelo temporalizado, cuja
matriz sociológica precisa se vincular à dimensão democrática, de modo que ela “não
serve de parâmetro penal a um sistema de bases ideológicas, como num Estado que se
sustenta em determinada religião ou (por exemplo) numa ideologia racista” (2012, p.
522).
A relação com o modelo de Estado, sistema e forma de governo é muito bem salientada
por Helena Regina Lobo da Costa, que esclarece que não se pode esquecer de que essa
relação é inexorável para auferir o rendimento da teoria do bem jurídico-penal para
contenção do poder punitivo: “evidentemente, nem a mais perfeita teoria da limitação
do poder estatal poderia dar frutos em um contexto de absoluto autoritarismo estatal.”
(2012, p. 147.)
sobretudo nos últimos anos. De outro lado, essa é a teoria que volta os olhos para a
sociedade, diferentemente da vertente constitucional que busca em outra norma a fonte
para a reflexão tanto da legitimação quanto da limitação do sistema penal. Assim,
acredita-se que a corrente sociológica, em diálogo com a criminologia crítica, permite um
debate mais transformador no sentido de desestabilizar criminalizações e,
consequentemente, gerar descriminalizações.
Dessa forma, a tutela penal da saúde pública não se sustentaria por sua ausência de
delimitação de conteúdo, tendo em sua elasticidade conceitual a expressão de sua
ilegitimidade.
Ana Elisa Bechara, citando Hernán Hormazábal Malarée, esclarece que há de se exigir no
núcleo dos bens jurídicos coletivos a proteção de um bem jurídico individual, para
assegurar que tais bens não se transformem em proteção de interesses coletivos
próprios de regimes autoritários, que geralmente violam direitos individuais (2014, p.
226). Neste ponto, mais uma vez, percebe-se que a relação com a conjuntura social é
determinante para a configuração da cobertura concedida ao sistema penal.
Como visto, o termo saúde pública no âmbito do direito penal passa a ser incorporado
com a finalidade de garantir o monopólio da cura de enfermidades aos médicos e
reprimir determinados grupos que praticavam cultos mágico-religiosos também
almejando a cura de enfermidades. Então, para tentar desvendar essa polissemia
inerente à expressão, além do empenho dos juristas, resta ainda um esforço
interdisciplinar: acessar a produção da Medicina sobre o assunto. Aliás, foi justamente
essa categoria que, ao reivindicar a proteção legislativa para garantir o monopólio da
cura, aliou-se ao Direito, cunhando a expressão saúde pública para justificar a tipificação
do curandeirismo. Assim, investigar as origens e os significados produzidos por esse
outro campo parece útil também para a compreensão no âmbito jurídico.
Nas ciências médicas, nota-se uma contraposição que parece bastante pertinente à
reflexão sobre os fatores determinantes e o conteúdo do bem jurídico: a proteção da
saúde pública e de promoção da saúde coletiva. Conforme Luis Eugenio P. Fernandes de
Souza, há uma diferenciação ideológica e metodológica que separa as duas concepções.
A saúde pública nasce no projeto sanitarista e incide sobre problemas de saúde definidos
como doença, mortes e riscos ocorridos na esfera da coletividade, tendo como síntese de
seu conteúdo a ausência de doença (2014, p. 17). Por sua vez, a saúde coletiva emerge
de um movimento contra-hegemônico que critica o modelo sanitarista brasileiro,
filiando-se ao materialismo histórico. Assim, é concebida como uma área da medicina
social, que tem como objeto as necessidades da saúde, compreendidas enquanto todas
as condições, não apenas para evitar e curar doenças, mas sobretudo para melhorar a
qualidade de vida (SOUZA, 2014, p. 18). Essa atuação é necessariamente interdisciplinar
e intersetorial, considerando a relação material entre estrutura da sociedade e as
condições de saúde, de modo a visar a democratização da saúde no sentido da maior
participação popular em seus rumos.
Esse contraste entre saúde pública e saúde coletiva permite refletir sobre o papel do
Estado na promoção efetiva da saúde das pessoas, compreendendo a incidência de
outras questões da sociedade como fatores fundamentais para se pensar a qualidade de
vida, e não mais apenas a ausência de doença. No país, e principalmente nas grandes
metrópoles, a saúde coletiva se propõe a uma análise sistemática que envolve não
apenas o número de doentes, mas, também, o papel da precarização do trabalho na
saúde do trabalhador; o estresse acompanhado de alto índice de poluição do ar e
sonora; o tempo dispendido no transporte público caro e de qualidade ruim; a dupla
jornada para mulheres; a alimentação baseada em agrotóxicos; o sucateamento da
Página 10
Curandeirismo: o bem jurídico saúde pública a serviço de
uma política criminal racista
Dessa forma, entende-se que o conceito da saúde coletiva abre um caminho para
deslocar a proteção da saúde pública, sobretudo na esfera penal, para a promoção da
saúde coletiva, situada nas inúmeras políticas públicas necessárias à promoção de
direitos fundamentais à qualidade de vida. Não se busca, com isso, recair na legitimação
da proteção do meio ambiente pela via penal, como mais um bem jurídico coletivo digno
de tutela punitiva. Pelo contrário: acredita-se que todos esses fenômenos estão
ancorados no modelo econômico vigente, e que medidas administrativas reguladoras e
controladoras da atividade de grandes empresas e do próprio Estado, acompanhadas de
políticas públicas democráticas e efetivas, podem ter um desempenho muito mais eficaz
na contenção de danos provocados pelo neoliberalismo de cunho racista e patriarcal.
3. Rumo à descriminalização
articulação de uma análise crítica da realidade social, por meio da teoria sociológica do
bem jurídico-penal e da criminologia crítica, com princípios penais fundamentais, se
manifesta de modo interessante ao estudo. Entre os vários princípios, optou-se por
tratar de apenas três, tendo em vista a pertinência com o tema do curandeirismo e a
tutela da saúde pública: a ofensividade ou lesividade; a intervenção mínima; e a
proporcionalidade.
Levanta-se a hipótese de que o mote de proteção da saúde pública continua vivo, ainda
tendo como alvo preferencial a população negra, mas agora impulsionada por um novo
tipo penal: o tráfico de drogas. Acredita-se que há uma correlação da política de guerra
às drogas com a criminalização do curandeirismo em ao menos três fatores: a proteção
do mesmo bem jurídico-penal; o protagonismo da aliança entre medicina e direito para a
repressão; e a investida estatal contra a população negra brasileira.
A saúde pública, como bem jurídico-penal, também foi a justificativa oficial para a
criminalização das drogas no Brasil, explicitando a filiação dessa política criminal ao
projeto sanitarista racista propulsor da criminalização do curandeirismo. O papel
desempenhado pelos médicos em aliança com juristas foi fundamental para a criação de
mais um tipo penal: a exclusividade do manejo de políticas de saúde pública originária
da criminalização do curandeirismo impulsionou o controle médico sobre os que faziam
uso de drogas, cujo consumo foi tornado ilícito (BOITEUX, 2014, p. 85).
Página 13
Curandeirismo: o bem jurídico saúde pública a serviço de
uma política criminal racista
Como salienta Maurício Fiore, ainda que o conceito de drogas para a farmacologia seja
bastante amplo – ‘substância que, quando administrada ou consumida por um ser vivo,
modifica uma ou mais de suas funções, com exceção daquelas substâncias necessárias
para a manutenção da saúde normal’ – o proibicionismo direcionava-se, em sua gênese,
a determinadas substâncias psicotrópicas, notadamente ópio (papoula), maconha (
Cannabis) e cocaína (coca) (2014, p. 139). Essa escolha não é aleatória; manifesta uma
arbitrariedade movida por interesses políticos e econômicos, como o enriquecimento das
máfias, das polícias e dos bancos, como ensina Henrique Carneiro (2002, p. 126). Para o
autor, “a proibição mundial das drogas foi uma das invenções imperialistas que mais
permitiu especulação financeira e policiamento repressivo das populações no século XX”
(2002, p. 128). Também se constata o componente moral da proibição, considerando
que justamente algumas substâncias com alto índice de perigo à saúde são permitidas,
inclusive estimuladas ao consumo por meio de propagandas, como o tabaco, o açúcar e
o álcool. A semelhança com a reflexão sobre o curandeirismo é latente.
Segundo os últimos dados do DEPEN, em 1990, havia 90 mil pessoas presas no país,
crescendo de forma ascendente em todo o período, com a marca de 726 mil presos e
presas em 2016. Em 26 anos, houve um aumento da ordem de 707% em relação ao
total registrado no início da década de 90. Desse imenso contingente populacional, 64%
são negros (pretos e pardos) e 28% respondem acusações por tráfico de drogas. Para as
mulheres, o tráfico adquire um peso ainda maior, correspondendo à imputação de 62%
das mulheres presas. Para dar conta da dimensão do impacto e das ilegalidades que
permeiam a política de drogas, seria necessário um novo estudo, mas ressalta-se a
síntese de Maria Lúcia Karam: “estamos lidando com crimes sem vítimas, mas não com
uma guerra sem vítimas. A nociva, insana e sanguinária ‘guerra às drogas’, como
qualquer outra guerra, também é letal.” (2012, p. 691)
5.Considerações finais
Por fim, a constatação de que na atualidade o curandeirismo não exerce mais a mesma
potência punitiva em comparação ao seu surgimento sugere uma tendência à
descriminalização. Isso decorre sobretudo de uma nova conjuntura política e econômica,
que gera novas formas de política criminal, mas ainda calcadas no racismo estrutural.
Esse ponto parece importante para evitar que uma possível descriminalização seja
interpretada como fim ou mesmo mitigação do racismo no Brasil. O caráter estrutural do
racismo continua a pleno vapor, e hoje tem na política de guerra às drogas uma de suas
mais trágicas facetas, cujos resultados são devastadores para a população negra,
empurrada para a convivência com a lógica de cadeia ou caixão. Ainda há muitas feridas
históricas a serem curadas.
Referências bibliográficas
Página 15
Curandeirismo: o bem jurídico saúde pública a serviço de
uma política criminal racista
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12. ed. Rio de Janeiro;
Revan, 2011.
BECHARA, Ana Elisa Liberatore Silva. Bem Jurídico-Penal. São Paulo: Quartier Latin,
2014.
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2010.
BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte especial 2. São Paulo: Atlas, 2017. v. 3
COSTA, Helena Regina Lobo da. Considerações sobre o estado atual da teoria do bem
jurídico à luz do harm principle. In: GRECO, Luís; MARTINS, Antonio. Direito Penal como
crítica da pena. Estudos em homenagem a Juarez Tavares por seu 70º Aniversário em 2
de setembro de 2012. São Paulo: Marcial Pons, 2012.
KARAM, Maria Lúcia. “Guerra às drogas” e criminalização da pobreza. In: ZILIO, Jacson
Luiz; BOZZA, Fábio da Silva (Orgs.). Estudos críticos sobre o sistema penal. Curitiba:
LedZe, 2012.
NEUMANN, Ulfrid. Bem jurídico, Constituição e os limites do direito penal. In: GRECO,
Luís; MARTINS, Antonio. Direito Penal como crítica da pena. Estudos em homenagem a
Juarez Tavares por seu 70º Aniversário em 2 de setembro de 2012. São Paulo: Marcial
Pons, 2012.
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 5. ed. São Paulo: Ed. RT, 2011.
PRADO, Luiz Regis. Tratado de direito penal. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2017. v. III: parte especial.
PUIG, Santiago Mir. Derecho penal: parte general. 9. ed. Buenos Aires: B de F, 2011.
SANTOS, Juarez Cirino. A Criminologia Radical. 3. ed. Curitiba: ICPC: Lumen Juris, 2008.
SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal: parte geral. 6. ed. Curitiba: ICPC, 2014.
SOUZA, Luis Eugenio P. Fernandes de. Saúde pública ou saúde coletiva? Revista Espaço
para a Saúde. Londrina, v. 15, n. 4, out.-dez. 2014. Disponível em:
[www.escoladesaude.pr.gov.br/arquivos/File/saude_publica_4.pdf]. Acesso em: 17.06.
2018.
Art. 158. Ministrar, ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso interno ou
externo, e sob qualquer fórma preparada, substancia de qualquer dos reinos da
natureza, fazendo, ou exercendo assim, o officio do denominado curandeiro:
Si resultar a morte:
2 “Ide por todo o mundo, e pregai o Evangelho a toda a criatura. Quem crer e for
batizado, será salvo; mas quem não crer, será condenado. Eis os milagres que
acompanharão os que crerem: Expulsarão os demônios em Meu nome, falarão novas
línguas, pegarão em serpentes e, se beberem alguma coisa mortífera, não lhes fará mal;
imporão as mãos sobre os doentes, e serão curados.” (Trecho da Bíblia, Marcos, capítulo
16, versículos 15 a 18.)
3 Disponível em:
[www.brasil.gov.br/editoria/saude/2017/03/sus-passa-a-oferecer-mais-14-tratamentos-alternativos].
Acesso em: 17.06.2018.
4 Código Penal:
Lesão corporal
§ 6° Se a lesão é culposa:
6 Disponível em:
[https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3515262&disposition=inline].
Acesso em: 23.06.2018.
Página 19