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REPRESENTAÇÓES GEOGRÁFICAS

DA IDENIIDADE NACIONAL
O CASO NORTE-AMERICANO

&
Analisar a identidade nacional correlacionada a questão
das representações geográficas levou—me a estudar o tema da
fronteira no universo cultural norte-americano e a realizar
sua comparação com o caso brasileiro.1 A amplitude do tema, a
penetração e difusão da imagem do Oeste na cultura americana
obrigaram-me a demarcações mais precisas, e passei a pes-
quisar a narrativa de um importante historiador, Frederick
Jackson Turner, sobre o significado da fronteira na história
norte-americana.2 Seu ensaio com esse título foi apresentado na
reunião da American Historical Association que se realizou em
Chicago, em conjugação com a World's Columbian Exposition,
comemorativa do quarto centenário da descoberta da América,
em julho de 1893.
Narrativas fundadoras como esta de Turner estabelecem
liames entre passado, presente e futuro. Ao falar do passado,
ele lança mão de fatos, eventos aceitos como conhecimento
histórico. Ao mesmo tempo, este passado não é uma história
acabada, ele é relido e reinterpretado segundo as questões
do tempo próprio do historiador que esta narrando.
O final do século XIX corresponde a uma época em que a
história se pretendeu “científica” e procurou se desvincular
da literatura, marcada pela subjetividade. A história queria
valorizar a objetividade e, nesse sentido, se desvincular da
filosofia, já que esta envolveria julgamentos valorativos. A
história desejava recuperar os “fatos tais como aconteceram”,
e para tanto se voltava para a pesquisa de fontes primárias e
para o exame crítico dos testemunhos. Nos Estados Unidos,
este “sonho de objetividade” também incorporou a valorização
do estudo das forças econômicas, dos condicionamentos ambi-
ental e geográfico como determinante dos grandes movimentos
políticos, e se fez presente na “história progressista” da qual
Turner é um dos seus expoentes.
O texto de Turner, The Significance oftbe Frontier in American
History, não tem sentido estável, universal, congelado. Ele envolve
uma negociação entre o que está sendo dito e sua recepção. Há
regras, convenções, hierarquias da produção, assim como códigos
de recepção a serem decifrados. A narrativa histórica fundadora da
nacionalidade, como esta de Turner, está marcada por seu tempo
e espaço: os Estados Unidos do final do século XIX. Nela,
Turner não se refere somente ao Oeste, mas a toda a história
americana. A persistência deste grande modelo explicativo,
apesar de toda a crítica a que já foi submetido, é, por si só, uma
demonstração de seu poder como expressão do mito, dos
sentimentos e dos valores de muitos americanos em relação
à experiência nacional.
Pretender analisar o tema da fronteira na historiografia
norte-americana e relaciona-lo ã construção de identidade nacio-
nal parece ser um assunto distante do cotidiano e da corrente
principal da historiografia contemporânea nos Estados Unidos,
ocupada com temas do multiculturalismo e estudos de gênero.
Entretanto, a imensa bibliografia (composta por livros, teses,
artigos) que continua sendo produzida sobre a fronteira e a
versão de Turner parece mostrar a força e a persistência do
tema. Parte significativa das obras mais recentes sobre o assunto
é produzida por historiadores ligados a universidades situadas
em regiões do Oeste. Editoras universitárias destas regiões
reeditam Turner e Ray Allen Billington, discípulo de Turner,
considerados como os pais fundadores da história regional,
e publicam revistas diretamente vinculadas, como The Western
Historical Quarterly, Pacific Historical Quarterly, Mississipi Valley
Historical Quarterly.
A recuperação do tema da fronteira tem acontecido pelo
lado de historiadores preocupados com questões ecológicas,
ou melhor, ligados ao que se chama de história ambiental.3 Um
dos autores que se têm destacado nesta vertente de reinterpretar

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história regional e história ambiental é Donald Worster. Ele
procura definir Oeste como região, em oposição a Oeste Como
fronteira. E esta região, situada a oeste do Mississipi, teria uma
história marcada pela escassez de recursos naturais, em opo—
sição a outras regiões marcadas pela abundância.4 Por
outro lado, Patricia Limerick5 sugere que fronteira seja tomada
como processo, e Oeste como lugar. Desta maneira, a história
do Oeste ganharia outra feição, escapando da face mitológica
que ganhou nas telas de Hollywood.
Por fim, o tema da fronteira tem sido analisado e reinterpre-
tado por professores e intelectuais ligados à área de estudos
americanos e/ou aos departamentos de inglês de diferentes uni-
versidades norte-americanas. Nesta linhagem pode-se citar Henry
Nash Smith com seu famoso livro Virgin [and, de 1950,6 Leo
Marx com The Machine in the Garden, de 1964, e por fim
Richard Slotkin, com sua trilogia (Regeneration Through
Violence, 1975, The FatalEnvironrnent, 1986, e Ganfigther
Nation, 1992).7 Henry Nash Smith e Richard Slotkin são
autores que procuraram entender as relações entre cultura e socie-
dade, e compõem um grupo no qual pode ser incluído Sacvan
Bercovitch, com seu famoso texto TheAmericanjererniaa',8 assim
como Alan Trachtenberg e seu The lncorporation of America.9
Parece que os autores dedicados ao estudo da literatura têm mais
êxito ao descrever e analisar mitos nacionais, talvez por lida—
rem com o universo de romancistas e poetas. Este treinamento
também os capacita a tratar a própria produção historiográfica
tão imbuída dos mitos nacionais.
Lidar com a fronteira e lidar com um tema-mito da história
norte-americana. Nele estão imbricadas questões relativas à
democracia versus aristocracia, e à natureza ou barbárie versus
civilização. Fronteira é um tipo de junção de espaço simbólico,
ideológico e material. Representa a primeira onda de moderni-
dade a quebrar na terra intocada, e é caracterizada como
selvagem, primitiva, não regulada. Como se encontra a margem
do poder do Estado, ela cria sua própria lei e (des)ordem.10
Ideologicamente, a fronteira passa a representar o local onde se
encontra, onde se desenvolve o mais típico, o mais primitivo da
identidade nacional, já que seus habitantes não tiveram ainda
contatos com outros povos. Nesse sentido, a fronteira e o Oeste
possuem um poder mitológico fundamental.

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Um exemplo de como fronteira, Oeste ou natureza se
encontram imbricados com questões da democracia pode
ser observado na versão de Roderick Nash]1 sobre a criação
dos parques nacionais nos Estados Unidos. Para este autor,
esta foi uma invenção americana. O estabelecimento do Parque
Nacional de Yellowstone, em lº de março de 1872, foi a primei-
ra experiência de preservação da natureza em larga escala para
o interesse público. Quatro fatores tornaram possível esta inven-
ção: o primeiro tem a ver com a experiência “única” dos Estados
Unidos com a natureza em geral e com a wilderness ” em parti-
cular. Sem a existência de uma ideologia democrática, segundo
fator, a idéia de parque nacional seria inconcebível. A terceira
força foi a existência de quantidades razoáveis de terras não
utilizadas, no momento em que os dois primeiros fatores se
combinaram, produzindo o desejo de sua proteção. Por fim, a
afluência de riqueza permitiu o luxo de preservar a natureza
como valor não utilizável.13
Antes da invenção americana dos parques nacionais, a
palavra parque era sinônimo de jardim e envolvia a idéia de
controle, de domínio, de domesticação da natureza para o
usufruto do homem. Esta idéia se apresenta sob a forma de
pastoral e se opõe ao espaço natural selvagem que amedronta
o homem “civilizado”. Os colonos, nos tempos iniciais da Amé—
rica, obviamente não tinham idéia de preservar a natureza. Esta
deveria ser vencida, até por questão de sobrevivência, e repre-
sentava o caos a ser cristianizado e civilizado.
A compreensão de que a América era diferente da matriz ou
matrizes européias envolveu, mais tarde, a construção ideológica
na qual a wilderness assumiu parte essencial da identidade
americana, na qual a democracia havia vencido as raízes aris-
tocráticas européias.
Em meados do século XIX, desenvolve-se e espalha-se a
crença de que a natureza se opõe à civilização, e a virtude e
a dignidade estão do lado da natureza. O romantismo e as
idéias do transcendentalismo norte-americano se juntaram
para produzir um movimento de defesa da natureza que estava
se deteriorando rapidamente. Artistas e intelectuais se unem para
representar a natureza, para realizar campanhas de defesa, de
resistência contra a civilização que ameaçava o sublime isola—
mento e que fazia a América se tornar semelhante à Europa, o
que era considerado altamente indesejável.

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Ao mesmo tempo, a “civilização” (seja lá o que isto signifique)
já chegara ao Ohio Valley, atravessara o Mississipi e atingia a
Califórnia. Ia rápido e com voracidade, destruindo a natureza
primitiva. Definir a riqueza e a personalidade da América como
natureza que se opõe à cidade coloca problemas irreconciliáveis.
A identificação entre a nação e a natureza acaba por se reificar em
alguns acidentes geográficos: Niagara Falls, o Mississippi, as pra—
darias, por exemplo. Paralelamente, acontecia o esforço para
ligar a natureza a Bíblia, já que a natureza não é obra do
homem e sim de Deus. A cristianização da natureza se faz pre-
sente tanto nos hinos evangélicos como nos hinos patrióticos.
Esta natureza, que representava a voz de Deus e que garantia a
diferença da América frente ao mundo europeu, e' que estaria se
perdendo ã medida que avançava a civilização.“
Henry David Thoreau, figura central do transcendentalismo,
e Thomas Cole, intérprete mestre da paisagem americana, estão
entre as principais figuras que participam deste processo que
resulta no orgulho dos americanos em serem pioneiros e na
crença de que foi a wilderness que tornou possível seu pionei—
rismo. Thomas Cole pintou telas gigantes, intituladas Tbe Course
ofEmpíre. Elas mostram primeiro o estágio rude, bárbaro do
homem; depois uma cena da concepção pastoral com a qual a
América se identifica; uma civilização e, só no topo da montanha,
a natureza ainda persiste; os bárbaros dominando a cidade com
tumulto, fogo e pilhagem; por fim, todos os seres humanos ex-
tintos, os templos em ruínas, mas a montanha permanece fixa,
serena, frente ao panorama de total destruição.15 Essas telas
foram expostas em vários locais, em meados do século XIX, e
fizeram a consagração do pintor como intérprete máximo do
espaço e da paisagem americana.
Uma questão importante a se notar é que a apreciação da
paisagem, da natureza, da wilderness, aumenta à medida que se
percebe a ameaça de seu fim iminente. O processo de destruição
rápida também produz a apreciação e a luta pela preservação. A
idéia de criação de parques nacionais, lançada em 1832 e tornada
realidade 40 anos depois, tem a finalidade de preservar áreas, não
para jardim, mas como natureza selvagem. Naturezas selvagens,
assim como jardins, tinham uma longa história, mas eram sempre
áreas reservadas para a caça ou outro divertimento de uso pri—
vado do rei e/ou da aristocracia. Segundo Roderick Nash, o que
marca a questão dos parques nacionais nos Estados Unidos é

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que eles foram criados como pertencentes ao domínio público.
A prática de áreas comuns, e preciso lembrar, existia antes como
forma de reação ao monopólio feudal e ao sistema de enclosnre
europeus. A idéia de propriedade e uso comuns se fez presente
na América, por exemplo, na criação do Boston Common,
em 1634.
A existência da wilderness nos Estados Unidos e a época
de sua colonização foram fatores importantes, assim como o
padrão de ocupação do território, de leste para oeste. Foi
este padrão, segundo Nash, que permitiu que a parte onde a
civilização já estava estabelecida desenvolvesse o entusiasmo
pela wilderness e encontrasse áreas não desenvolvidas para
preservar. O autor expressa com perfeição a relação entre
democracia e natureza.
Fronteira, Oeste e wilderness significaram a possibilidade
de democracia e a realização do “homem comum”, longe e
livre dos constrangimentos do espaço europeu. No final do
século XIX, já estava configurada a crença de ser o Oeste,
dos Apalaches ao Pacífico, o mais rico presente jamais distri-
buído ao homem civilizado. Deste presente derivaria tudo o
que a América tem de distinto em sua história: instituições
democráticas, unidade nacional, vigorosa independência e
individualismo. Mas este presente, como diz Trachtenberg,16
teve que ser desembrulhado à força.
É surpreendente a pouca atenção dedicada a questões de
espaço, embora tópicos como localização e deslocamento de
grupos estejam presentes e sejam relacionados a identidades.
Lida-se com sociedades, nações, culturas, como se elas ocupas-
sem naturalmente espaços. Torna-se senso comum a associação,
por exemplo, da cultura (cultura americana) com o povo (os
americanos) e com o lugar (os Estados Unidos da América)]7
A associação entre lugar e povo é tão forte que se dá pouca
ênfase ao papel central desempenhado pelo nacionalismo,
tornando natural a ligação entre lugares e povos.
Vamos explorar como esta relação, hoje natural, entre povo
e espaço se constituiu na América e como o espaço se tornou
um lugar, os Estados Unidos da América.
“Os Estados Unidos da América foram um experimento geo—
político”, diz Meining.18 A confederação inicial foi uma aliança
incerta, e o país era uma vasta área a ser colonizada, o que
envolvia a formação de novos estados a serem incorporados à

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União. Durante o século XIX, uma questão geopolítica foi
fundamental: como manter e/ou restabelecer o equilíbrio
entre o Norte e o Sul, ou seja, entre estados escravistas e não
escravistas. Cada nova incorporação de espaço (seja território
ou república independente) a União implicou complicado e
acalorado debate no Congresso e envolveu questões de le—
gislação eleitoral, já que alterava o número e a distribuição
regional de cadeiras no Congresso e no Colégio Eleitoral,
afetando o equilibrio anterior.
Do ponto de vista ideológico, a expansão territorial ame-
ricana foi sempre interpretada como autopreservação. Esta
expansão foi feita de diferentes modos e envolveu tanto inte-
resses governamentais quanto privados.
Durante todo o século XIX, os Estados Unidos tiveram pro-
blemas de fronteira com a França, a Espanha e a Inglaterra.
Parte da Louisiana era considerada fundamental à segurança e
prosperidade norte-americana. Neste caso, aconteceu o exemplo
mais notável de expansão sem conquista, com a compra deste
imenso território da França pelo governo Jefferson. Napoleão
supunha que o acesso a este território fortaleceria o poder
dos Estados Unidos, poder este capaz de humilhar a tradicional
rival, a Inglaterra.
A incorporação deste espaço territorial (1803) envolveu
questões constitucionais e políticas relevantes, tais como:
necessidade ou não de emenda constitucional para ratificar
o tratado; necessidade ou não de obter o consentimento dos
habitantes. Teriam os habitantes do novo território imediata-
mente os mesmos direitos dos cidadãos americanos, mesmo
com língua, costumes e culturas diferentes? Estas questões
foram sendo resolvidas legalmente, ao mesmo tempo em que
acontecia uma rápida imigração de americanos para o novo
território da Louisiana e a proibição de “ampliar a legalidade
territorial” da escravidão.
Situação diferente acontece em parte da Flórida (objeto de lití-
gio entre a França e a Espanha), para onde colonos americanos
se mudam, onde ocupam o território, proclamam a república e
depois pedem a incorporação ã União.
A expansão do século XIX está sempre envolvendo a manu-
tenção do equilíbrio da federação, e o controle sobre a admissão
de novos estados foi central. Questões relativas a transporte e
comunicações foram também fundamentais, na medida em que

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o país era um teste histórico à tese de que a República só seria
viável para pequenos territórios e populações reduzidas.
Meining19 distingue as seguintes formas de expansão:
a) compra de novos territórios, gerando documento que
legítima a aquisição. Segundo este autor, os tratados com
os indígenas estão nesta categoria, além da aquisição da
Louisiana (1803) e do Alaska (1867);
b) áreas em litígio entre as potências mundiais, que são
acrescentadas por compromissos diplomáticos resultantes de
acertos de reivindicações;
c) conquista militar e anexação. Algumas ações tiveram
êxito, como o caso da guerra com o México, que resultou na
incorporação do Novo México, Califórnia e parte leste da
Flórida. Outras ações falharam, como foi o caso da invasão do
alto Canadá;
d) protetorado militar e eventual anexação. Principalmente
após a presença militar no México, quando existiu a alternativa
de impor protetorado sobre outras partes do México; parte oeste
da Flórida, Havaí e Cuba;
e) pirataria: Leste e oeste da Flórida;
f) anexação por solicitação do Estado ou da população:
Havaí;
g) colonização e secessão. A idéia de que colonos america-
nos se tornam a população majoritária, separam-se, tornam—se
independentes e pedem o ingresso na federação americana é
a versão oficial da expansão territorial dos Estados Unidos.
O grande exemplo desta categoria é o caso do Texas, fonte
histórica da versão oficial.
Ainda segundo Meining, os casos concretos muitas vezes
envolveram múltiplos tipos, mas podem ser agrupados em
duas categorias: compra e alguma forma de ação violenta (in-
vasão militar, pirataria, revolta).ªº
A imagem jeffersoniana de uma república democrática em-
basada na cidadania dos yeomen farmers é muito forte, e foi
em nome deste ideal que se justificou a contínua necessidade
de novas terras a serem ocupadas, garantindo o contínuo pro-
gresso da nação. A identificação entre o território da América
do Norte e os Estados Unidos corresponderia a uma lei da
natureza que se expressou na idéia de “destino manifesto”.

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Esta expressão, cunhada por John O*Sullivan, em 1845, oferece
uma inestimável legitimação ao mito do império. Produz uma
reconciliação entre democracia e império e justifica a ocupação
dos territórios de população não anglo (índios e mexicanos).
Estes novos espaços seriam ocupados para que o desenvolvi-
mento livre, o governo livre e, enfim, a livre empresa pudessem
conúnuan
A demanda é por terra, já que esta seria o pré—requisito para
o governo republicano e para uma economia e uma sociedade
baseadas na aquisição individual, na mobilidade geográfica
e social e em uma estrutura de classe fluida, pouco definida.
Estes pressupostos são fundamentais à política norte-americana.
Enquanto o território nacional se expandia como fruto da
ação das lideranças políticas e do governo, construía—se o
conceito de fronteira como um processo espontâneo que se
iniciara com os pioneiros.
As qualidades épicas da aventura dos pioneiros conferem
uma aura de santidade ao processo de expansão territorial e
obscurecem a dinâmica da construção de uma nação continental,
no que esta envolveu de politica e ação governamental. Os pio-
neiros, como exemplares do “homem comum”, eram a razão, o
motivo pelo qual o governo conquistava terras —— para obter
uma nação e um mundo melhores, baseados na liberdade
individual, no comércio livre e em uma coexistência pacífic'a.
Os recursos de novas terras permitiam aos Estados Unidos
melhorar suas instituições democráticas e mostrar ao mundo
a superioridade de seu modo de vida.
As novas terras, obtidas segundo os diferentes meios men-
cionados acima, envolveram um processo de ocupação em que
se combinaram as políticas dos poderes públicos e os fatores
econômicos e geográficos. A ação do governo federal foi
relevante, ainda que limitada pela doutrina do laissez-faire,
da qual todos partilhavam, e pela ação dos colonos e dos
grandes criadores.
Um exemplo de ação governamental pode ser visto na exis-
tência de expedições que antecediam e abriam um território a
colonização. A expedição de Lewis e Clark (1804-1806) ao terri—
tório da Louisiana e marco memorável no reconhecimento da
bacia do Mississipi, chegando até o Pacífico. Franceses, ingleses
e norte-americanos produziram grande quantidade de mapas, até

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porque isso era fundamental no estabelecimento de fronteiras
e nas disputas por territórios. Igualmente relevantes dentro do
território norte-americano, os mapas ajudaram a resolver os
confrontos e as disputas entre os colonos. As linhas retas que
marcam o mapa territorial dos estados americanos são impor—
tante indício da ação do governo da União. Mapas topográficos
foram fundamentais à Revolução Americana, ajudando o “teatro
da guerra”; depois da Independência, as antigas colônias mere—
ceram atenção quanto ao território.
A busca de caminhos até o Pacífico, o mapeamento das
trilhas, foi questão fundamental durante a primeira metade
do século XIX, permitindo o trabalho de uma longa lista de
engenheiros militares, pesquisadores e geólogos. A rede de
estradas de ferro, em seguida, também demandou novos conhe—
cimentos de topografia, geologia e levantamento de recursos
naturais de cada novo território a ser alcançado. Isto facilitaria
as possíveis rotas de estradas de ferro do Mississipi até o Pací-
fico. Diversas agências estaduais de mapeamento precisaram
ser coordenadas, até que, em 1879, foi criado 0 U. S. Geological
Survey, visando coordenar estes trabalhos.21
A expansão territorial e a atuação de agências governamen-
tais na construção do Estado Nacional são pouco enfatizadas
na bibliografia histórica norte—americana. Um dos livros que
tratam do tema da expansão territorial é o de Thomas Hietala
sobre o destino manifesto.22 Este autor se surpreende com a
pouca atenção dispensada à expansão territorial da era jack—
soniana, já que os Estados Unidos duplicaram seus domínios
em três anos, de 1845 a 1848.23 A junção de excepcionalismo
e império forneceu aos expansionistas poderoso argumento
para recusar qualquer direito de outra nação ou povo sobre
partes do continente norte-americano. Se o rival fosse forte,
nos diz Hietala, ameaçava a segurança da América e precisava
ser removido; se fosse fraco, era a prova da sua inferioridade,
o que justificava qualquer ação contra ele. Os expansionistas
em geral viam a incorporação dos povos não brancos ao país
como indesejável. O México enfraquecido, as tribos indí-
genas divididas, o declínio da França e da Espanha como
potências colonizadoras, o isolamento geográfico em relação
ã Europa foram fatores que favoreceram a construção de uma
nação continental.

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As preocupações quanto à escravidão e o racismo bloquearam
a caminhada dos Estados Unidos para o sul, não ocorrendo a
anexação das terras mais densamente povoadas do México. O
desejo de manter a paz com a Inglaterra impediu a expansão mais
para o norte.
ÍA ideologia jeffersoniana, em seu aspecto de agrarismo ro-
mântico, foi componente significativo do destino manifesto.
Como nos diz Thomas Hietala, de Jefferson a Jackson, as fa-
zendas fizeram nascer tanto cidadãos republicanos quanto
milho, algodão e trigo. Campos cultivados produzem cidadãos
virtuosos, síntese da união entre república e progresso.
O idealismo da expansão para o oeste, embutido no conceito
de destino manifesto, ajudou a reconciliar a ação norte-ameri-
cana no mundo com uma auto—imagem altamente favorável.
º_estabelecimento de instituições republicanas, acoplado ã
..Çxístência de oportunidades econômicas advindas da imensa
quantidade de terras disponíveis, colocaria a história ameri-
cana fora do padrão europeu. A América teria conseguido
afastar o conflito de classes. que a modernidade criou na
Europa, teria conseguido escapar da decadência que ameaça
as repúblicas Os americanos, movendo-se para o oeste e do-
minando a natureza, tornam-s-e um império da liberdade e da
regeneração da virtude. Podem deixar a história para trás e
construir seu destino no reino da natureza.24
A relação entre a história da nação e a identidade nacional
tem sido reconhecida. Feitos memoráveis, guerras, pais fun-
dadores e governantes são incorporados a um panteão de glórias
cívicas a serem comemoradas. A relação entre a geografia e a
identidade nacional, igualmente relevante, tem sido menos
lembrada, embora, no caso norte-americano, seja impossível
ensinar história sem levar em conta as transformações da
dimensão territorial do país. A geografia, por apresentar-se
comumente como uma forma “científica” de conhecimento
do mundo natural, é vista como distante dos objetivos políticos
dos povos e de seus governantes.
A literatura mais recente que trata deste tema25 está exatamente
questionando a objetividade dos conceitos de espaço, cultura,
identidade, e se move dentro do campo da pós-modernidade, da
pós-nacinalidade. Assim como se falava de imagined nation, agora
também se fala de imagined places.

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Diversos fatores estão trazendo a questão do espaço à
ordem do dia. As rupturas em nações pós-coloniais, o des—
mantelamento de Estados Nacionais com diferentes culturas
autônomas, algumas em territórios não contíguos, por um
lado, e, por outro, a hipermobilidade, o deslocamento, a
falta de moradia presentes no capitalismo avançado apresentam
desafios à identidade nacional, anteriormente baseada no
espaço territorial. As leis de mercado estimulam o fluxo de
capital sem barreiras, entretanto os serviços (nacionais) de imi—
gração tomam conta do fluxo de pessoas.
Redes sofisticadas de comunicação e informação, indústria
cultural de diversão e de lazer espalham—se pelo mundo, ao
mesmo tempo em que se desenvolvem novas formas de dife—
renças culturais. Todos esses fatores parecem indicar que se
perderam as raízes territoriais, que está havendo uma “dester-
ritorialização da identidade”. Pergunta-se sobre o sentido de
se falar em “terra natal” no final do século XX. O mundo da
diáspora, composto de refugiados, imigrantes, pessoas sem
lugar, sem Estado, parece ser o quadro deste final de século.
Entretanto, isto não está acontecendo da mesma maneira e
ao mesmo tempo em todos os lugares. Estes sinais permitem
apenas que se tome consciência da importância que o espaço
teve e tem como elemento fundamental da construção de
identidades nacionais. Esta tendência contemporânea permite
apenas que se possa ver mais claramente como “comunidades
imaginadas” se relacionaram com “lugares imaginados”.
O processo de globalização deveria permitir novas opor-
tunidades para forjar identidades transnacionais. Entretanto,
isto necessariamente não acontece seja pelo fortalecimento
do localismo, seja pela permanência da identidade nacional,
não tão enfraquecida como supõem e/ou desejam os analistas
e apóstolos da pós-modernidade.
J

(Publicado na revista Sociedade e Estado. Brasília, UnB, v.XI,


n.1, p.75-87, jan.-jun. 1996; e também no livro Discurso Histórico
e Narrativa Literária, organizado por Jacques Leenhardt e Sandra
]. Pesavento. Campinas: UNICAMP, 1998. p.51-66.)

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A AMÉRICA E A FRONTEIRA
TURNER E ROOSEVELT

O complexo processo histórico que tornou possível a for-


mação da nação norte—americana envolveu a construção de uma
ideologia nacional capaz de fornecer sentimentos comuns de
pertencimento a uma população que falava diferentes línguas e
pertencia a distintos grupos religiosos. Çomo nos diz Adams,l a
nação não foi. a mãe e sim a filha da revolução americana.__Neste
processo, a recorrência a mitos fundadores contribuiu para
_tornar comum o que era diferente e formar a trama de uma
nação que teve como questão central sua legitimidade e perma—
gência. Estes mitos foram se configurando no pensamento da
jovem nação e se apresentam nos sermões, nos panfletos
políticos, nas memórias e biografias, nas canções e poemas,
nos discursos oficiais, na correspondência pública e privada,
nos estudos históricos, nos manuais escolares, assim como nas
obras literárias. Élise Marienstras,2 ao analisar as origens do
nacionalismo americano, menciona os numerosos mitos da
América branca: 0 da ruptura e da criação; o dos grandes
espaços e da fronteira; o da civilização e da selvageria; o do
destino dos americanos e o da chegada do Milênio; o dos
ancestrais e dos heróis fundadores; e o grande mito político
de uma nação como resultando do contrato.
Segundo esta autora, o espaço, o wilderness é representado
por duas imagens antitéticas que se fazem presentes nos mitos
gregos, romanos e medievais. Uma, a da felicidade, a da ilha
bem-aventurada, a do paraíso, do lugar e do tempo antes do
pecado. A outra, a do inferno, da obscuridade, da morte, do
lugar vazio de homens, da solidão, do mundo das trevas. Estas
duas imagens do wilderness também estiveram presentes em
momentos distintos no mito dos grandes espaços e da fronteira
nos Estados Unidos.
O mito da fronteira é, assim, um dos mitos nacionais criados
na história americana dos séculos XVII até 0 XX. A idéia de
chegada à terra prometida, um Novo Mundo, além da crença
de ser o povo escolhido povoam o imaginário norte-americano.
A história deste povo é representada como a história de suces-
sos do homem branco, anglo-saxão e protestante. Os excluídos
desta “história oficial” foram, durante muito tempo, os índios e
os negros já que não se encaixavam em nenhum dos papéis
honrosos desta trama. No final do século XIX, outros “excluí-
dos” fazem sua entrada no cenário americano: são os operários
imigrantes que participam da fantástica revolução industrial
americana após a Guerra Civil.
A idéia de fronteira significou o espaço onde o homem
ocidental se encontrou, se defrontou com uma realidade, com
um outro que ele não conhecia, não sabia classificar. Saber
se o índio pertencia ao gênero humano ou partilhava das
qualidades atribuídas aos animais é uma das questões advin-
das com a chegada ao Novo Mundo. Se estes seres têm uma
natureza inferior ao europeu podem ser escravizados; se estão
atrasados podem ser convertidos. Por outro lado, podiam ser
vistos como um ramo diferente do homem europeu, com exis-
tência contígua à européia, o que justificaria a política de guerra
e de extermínio.
O movimento romântico durante o século XIX produz altera-
ções na forma de apreciar tanto a natureza quanto o indígena.
Se antes a natureza era apreciada quando alterada pela ação do
homem, a natureza transformada em jardim, agora ela passava a
ter um valor intrínseco, valor enquanto natureza.
Durante o século XIX, a literatura romântica já havia se
voltado para o tema da fronteira e vinha tratando a figura do
índio como símbolo das virtudes americanas, tornando-o herói.
O espaço e o índio constituíram o principal ingrediente usado
pela literatura norte-americana. Daniel Boone, figura da obra
Kentucky, de Filson, pode ser tomado como exemplo da relação
entre o homem branco, o indígena e a natureza. O homem
branco, caçador, vai para a natureza não para escapar à realidade
representada pela sociedade, mas para realizar um novo pacto
com a natureza. Este envolve uma autodescoberta e a aceitação
de obrigações sociais. Esta literatura, entretanto, ainda apresenta
os indígenas como perversos e cruéis caçadores.—"

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No final do século XIX estava configurada a crença de ser o
Oeste, dos Apalaches até o Pacífico, o mais rico presente jamais
distribuído antes ao homem civilizado. Deste presente derivaria
tudo o que a América tem de distinto em sua história: instituições
democráticas, unidade nacional, vigorosa independência e indi-
vidualismo. Este presente, como já mencionamos,4 teve que ser
desembrulhado à força. Envolveu uma guerra com o México
(1848) e a ação continuada para enfrentar a persistente e “fanática”
resistência dos índios americanos. O que foi chamado de terra
livre ou terra virgem envolveu, entre outras coisas, a destruição e/
ou a mudança compulsória dos habitantes originais.
A tese da fronteira apresenta, assim, uma dupla face. Há
os elementos explícitos: interação com o novo meio geográfico;
relacionamento entre a história local/regional com a nacional;
apresentação do chamado “homem comum” como centro da his-
tória norte-americana e expressão do caráter nacional. Por
outro lado, ela omite ou não enfatiza suficientemente: a questão
indígena, o papel do governo federal na ocupação/colonização
das novas terras e, por fim, a fantástica expansão territorial.
Se até a Guerra Civil o Oeste aparece no imaginário social
como um jardim pacifico, espaço aberto de terras virgens
disponíveis ao pequeno proprietário e garantia da tranquilidade
permanente, a partir deste momento a situação é outra. Os
Estados Unidos pós 1870 não viviam mais a sua era agrícola, e
sim sua fantástica revolução industrial. O Oeste era incorpo—
rado, com o apoio do governo, através de estradas de ferro e
linhas telegráficas, abrindo espaço à produção. A revolução
tecnológica mudava o caráter da empresa agrícola; a agricultura
de produção de alimentos entrava no mercado e se tornava
parte do sistema internacional, com capital intensivo e alta—
mente mecanizada.
Se a sociedade agraria tem como imagem do Oeste a do
jardim, a sociedade industrial vai transformar o Oeste em terra
do perigo, da aventura e da violência.
No final do século, lideranças intelectuais repensam a ques-
tão da fronteira e reelaboram seus símbolos em um novo mito
nacional. Slotkin,S um dos autores que mais analisaram o mito da
fronteira e do cowboy americano, nos mostra que, no século
XIX, os símbolos centrais da retórica política e da historio-
grafia são ofarmere o mundo agrário decorrente da pequena

129
propriedade. Entretanto, a ficção literária deste mesmo período
não colocava prioridade ou heroicizava o fazendeiro. O herói
da ficção era o caçador solitário.6 Ainda que o mundo agrário
fosse a força política e o orgulho nacional, a vida do fazendeiro
não serviu de inspiração para a literatura. Esta tratou mais de
tipos que se aproximavam ao empresário, ao capitão de in-
dústria, numa espécie de profecia do futuro mais do que
expressão do mundo agrário jeffersoniano. Como nos diz
Slotkin, os heróis da mitologia do Oeste são figuras contraditó-
rias: o homem branco que tem o saber do índio; o fora-da—lei
que se faz agente da justiça; o que tem origens plebéias, mas age
e pensa como membro de uma elite gerencial e de classe alta.
Slotkin vai dizer que o mito da fronteira em sua expressão
moderna — de valorização do cowboy, de expressão de um
jogo social com dois ou três papéis: o agressor, a vítima e o
vingador — é resultado do trabalho intelectual de um grupo.
Trabalhando na época do “fim da fronteira” como realidade
econômica, social e política, este grupo formulou o sistema
ideológico—mitológico desta fase da história americana, deu—lhe
forma sistemática e construiu uma teoria geral da história e
da política americana. Eles transformaram a democracia am—
bivalente, utilizando a bagagem literária do mundo agrário,
em um conjunto de doutrinas e fábulas que se encaixavam
com as necessidades ideológicas da economia industrial e da
política gerencial. Compõem este grupo, entre outros: o político
Henry Cabot Lodge, o conservacionista Gifford Pinchot, o histo-
riador Frederick Jackson Turner, o novelista Owen Wister, os
antropólogos Madison Grant e Henry Fairfield Osborn, além de
sua figura maior e central, Theodore Roosevelt. Seu entusiasmo
pelo Oeste e pela história dos pioneiros, sua ligação ao
“progressivismo”, permitiu atuar em papel fundamental na
elaboração da nova versão do mito da fronteira, versão
esta que permanece no imaginário americano durante o século
XX e que pode ser surpreendida em muitas manifestações cultu—
rais contemporâneas.
Vamos explorar mais detidamente as versões diferentes e até
divergentes de F. ]. Turner e de T. Roosevelt sobre a fronteira
como expressões da construção de uma identidade nacional
norte-americana.

130
'l'URNER E A FRONTEIRA

O texto de Frederick Jackson Turner, “O Significado da Fron-


teira na História Americana”,7 e considerado o mais influente
ensaio na historiografia norte-americana, influente não só para
os historiadores, mas também entre o público que nunca ouviu
seu nome. Apresentado na reunião da American Historical
Association que acontecia em Chicago (1893), conjugada ã
World's Columbian Exposition, comemorativa do quarto cen-
tenário da chegada de Colombo à América, esteve cercado
de múltiplos significados. A tese de Turner representa a con-
sagração da excepcionalidade americana para a academia
de historiadores que estava sendo criada. Esta tese faz uma
ligação simbólica entre a chegada do homem europeu a Amé-
rica e a ocupação do continente norte-americano. Apresenta
a influência do ambiente, do meio geográfico na configuração
do homem americano. Vamos por partes.
A tese da excepcionalidade pode ser assim resumida: a
América, ao criar um novo tipo de república democrática,
estaria livre das doenças do Velho Continente. A quantidade e a
“Qualidade, deterras “livres” preservariam o caráter democrático
da estrutura agrária e as instituições republicanas. A história
do país seria, assim, a progressiva realização da vontade de
' Deus e das virtudes originais: o individualismo, a democracia, o
autogoverno. A história como uma semente que se desenvolve e
se desdobra, explicando como a virtude pode se perpetuar.8 A
tese da fronteira vem em auxílio desta explicação. Em se mo-
vendo sempre para Oeste, os americanos poderiam escapar da
decadência e renovar sua virtude. Eles poderiam se desenvolver
no espaço mais do que no tempo.9
No século XIX, duas versões da história americana estavam
em voga. Uma tinha em Herbert Baxter Adams um dos seus expo-
entes. Adams, professor da john Hopkins University e de Turner,
quando este fez seu PhD, não via maior interesse em estudar as
instituições americanas em seu início, ja que elas se originavam
nas estruturas tribais teutônicas. Pretendeu demonstrar, com os
mais novos métodos científicos, que as instituições democráticas
da América eram expressão das práticas germânicas antigas dos
anglo-saxões.
A outra versão da história americana tinha em George Bancroft
sua figura maior. A América seria a sociedade democrática

151
de indivíduos livres e iguais. 1865 teria sido o ano da última crise
histórica; a vida simples e harmoniosa estaria garantida para sem-
pre aos americanos graças aos poderes míticos da terra virgem.10
Para Bancroft, assim como para Turner, a transformação do
plebeu europeu no cidadão democrata americano foi uma expe-
riência religiosa de renascimento que dependeu dos poderes
míticos da terra virgem.
Entretanto, entre a Guerra Civil e o final do século, os ameri—
canos experimentaram as maiores transformações econômicas e
sociais. Uma sociedade essencialmente rural se tornou, repenti-
namente, uma complexa sociedade urbano-industrial com todos
os problemas decorrentes desta transformação.
O dilema de Turner era o dilema da nação. A indústria e a
cidade tomaram o lugar da agricultura e da fronteira como forças
dinâmicas da sociedade. Como interpretar isto?
Esta nova força tinha que ser interpretada como expressão da
vontade de Deus, já que acontecia acima do controle humano.
Vontade de Deus, para Bancroft, ou leis de evolução, para
Turner, ela colocava questões difíceis para os pensadores e
intérpretes da história americana. Não poderia ser conside—
rada resultado de uma conspiração estrangeira para destruir
a democracia americana e introduzir a complexidade européia.
Turner, nos diz Noble, não podia escrever uma “Jeremiad” para
conclamar o povo a uma defesa purificadora do pacto nacional.
“Jeremiad” era uma forma original de sermão, comum aos puri—
tanos da Nova Inglaterra, no qual o pregador relembrava o pacto
de Deus com os crentes e os avisava que, se estivessem trans-
gredindo Sua lei, poderiam ser punidos coletivamente. A '
“Jeremiad” se torna uma forma ritualizada recorrente de purgação
dos sentimentos de culpa. Os traços da “Jeremiad” teriam se per-
petuado na oratória, na literatura, no nacionalismo patriótico e
contêm, em si mesmos, o segredo da identidade americana,
mesmo quando o puritanismo não é mais dominante.“
A indústria tinha que ser vista como natural. As trans—
formações decorrentes não violavam a imutabilidade do pacto
dos americanos com a natureza. Como reconciliar progresso
com primitivismo? Como provar que o pacto jeffersoniano com
o simples e a natureza era compatível com o progresso e'a
industrialização? Segundo Noble,12 Turner, como novo teólogo
e filósofo político da democracia, não foi capaz de realizar esta
proeza, conseguida por outro historiador, Charles A. Beard.

132
Turner aceita como verdadeira a tese do renascimento, ou
seja, os europeus, ao cruzarem os limites da Europa e chegarem
à América, seriam novos homens. A geografia oferece alternativa
à cultura européia. Turner seculariza as metáforas da teologia
puritana: todos se tornam o povo escolhido graças ao espaço
geográfico da terra prometida. A experiência do êxodo separa
a América do resto do mundo. O êxodo da Europa, no século
XVI, trouxe o povo escolhido para condições que tornaram
possíveis o reino da livre propriedade e o reino da democracia.
O que é único na América é o espaço sem tempo da natureza
física. Daí que, para Turner, a democracia americana nasceu sem
sonhos teóricos. O espaço americano era como terra virgem,
uma manifestação direta do estado da natureza em oposição a
história. Os êxodos para consecutivas fronteiras agrícolas permi-
tiram a criação de inúmeras comunidades políticas virtuosas. Cada
geração que se movia para o Oeste repetia o ciclo da corrupção
para a virtude. O progresso do povo escolhido caminha em
uma linha horizontal, do Leste para Oeste. Não teria sido a
Constituição, mas a terra livre a base necessária à construção
do tipo democrático de sociedade na América.
Como nos diz David Noble,13 Turner conjuga dois princípios:
a perspectiva que desde o século XVII associa história com
corrupção e a não história (a ausência do tempo) com a natu-
reza e a virtude; e a perspectiva evolucionista que supõe que
as forças impessoais da evolução influenciam o meio econômico.
Este segundo princípio faz Turner perceber que escapar do
tempo, escapar da história para o espaço americano era tem-
porário e que o tempo era mais poderoso.
Turner, Charles Beard e Parrington são alguns dos historia—
dores centrais na corrente historiográfica norte-americana
denominada progressivismo. Esta corrente marca o início
do século XX e perdura até a Segunda Guerra Mundial. Ela
pretendeu libertar o homem do passado, assegurar as quali—
dades do Novo Mundo em oposição ao Velho. Ao acreditar
nas qualidades básicas do novo, da nova terra, esta corrente
precisou considerar que quando algo não ia bem, forças não
. naturais estariam intervindo, ou seja, injustiças e interesses
reacionários estariam atrapalhando o desenvolvimento natu-
ral de um povo naturalmente democrático e de uma sociedade
justa. O progressivismo tem confiança no futuro.

133
Como explicar O caso de Turner nesta corrente? A parte de sua
Obra que trata da fronteira e de sua influência no caráter norte-
americano preencheria bem os requisitos desta corrente. Turner,
entretanto, não consegue explicar a democracia pós—fronteira.
Haveria assim dois Turner: um voltado a explicar as origens da
democracia americana, outro que falha ao mostrar que demo—
cracia iria naturalmente persistir nesta sociedade.
As categorias centrais do primeiro Turner podem ser assim
resumidas:14
CATEGORIAS GEOGRÁFICAS
Novo Mundo vs. Velho Mundo
Espaço aberto vs. Espaço fechado
Fronteira vs. Rotinas da civilização estabelecida
Expansão vs. Interdependência
Oeste vs. Leste

CATEGORIAS POLÍTICAS
Oportunidade vs. Resignação ou descontentamento
Liberdade vs. Servidão
Democracia vs. Estratificação
Individualismo vs. Coletivismo
Competição vs. Regulação
Governo fraco vs. Governo forte

CATEGORIAS DE TEMPERAMENTO OU CARÁTER


Renascimento perene vs. Hábitos rotineiros
Progresso vs. Persistência de padrões antigos
Otimismo vs. Resignação
Individualismo vs. Passividade e fraqueza
Auto—suficiência vs. Dependência
Retidão vs. Dissimulação

CATEGORIAS METAFÍSICAS
Natural vs. Artificial
Simplicidade vs. Complexidade
Ideais orgânicos vs. Doutrinas abstratas

134
Turner, ao trabalhar com categorias como estas, obviamente
identifica a América com a primeira coluna e nela o papel da
fronteira e fundamental. Por outro lado, ao fazer esta apologia
das crenças sobre a América e sua democracia, sobre a fronteira
e o progresso, torna—se mais do que um historiador, passa a ser
um profeta da democracia.
Uma questão importante é entender como Turner explica
a permanência do Oeste como fonte definidora da America e
dos americanos, quando o território do oeste já foi considerado
oficialmente como fechado. Como ele justifica a importância da
fronteira em um mundo de metrópoles? A resposta de Turner
considera que, se a fronteira não existe mais como fato físico,
ela ainda permanece como fato simbólico. O mundo da fron-
teira está associado simbolicamente ao mundo da aventura,
caracterizado pela independência vigorosa; coragem pioneira;
energia nervosa; gênio inventivo. Estes são os traços de caráter
que, para Turner, advêm do mundo da fronteira e são necessá—
rios aos novos tempos.
Os sinais dos novos tempos podem ser observados pelos visi-
tantes da World's Columbian Exposition, realizada em Chicago,
em 1893. O coração da grande exposição era a White City: cerca
de 400 prédios, canais, lagoas, jardins, área de reserva florestal,
um modelo do que deveria ser a cidade com perfeita coorde—
nação entre espaço e estruturas construidas. É uma cidade sem
moradias, mas quer ensinar como as famílias devem morar em
um futuro próximo. Ensina ao público a utilidade da beleza,
junta arte com mundo mecânico das estradas de ferro, do dí-
namo, das lâmpadas elétricas. A harmonia disso tudo seria
garantida pela Court of Honor, parte central da feira, pintada
de branco e em estilo neoclássico. A Court of Honor é o nú-
cleo em relação ao qual os outros prédios são posicionados,
é o centro em torno do qual todo o resto da White City se
organiza em degraus hierárquicos. A parte mais central da
feira é em estilo neoclássico, fazendo uso da arquitetura de
um grupo de Nova York treinado em Paris e deixando de
lado a arquitetura da escola de Chicago. A presença de outros
estilos de arquitetura se faz em outros prédios da feira, prédios
para exibições e eventos.
Eventos e encontros acontecem durante todos os meses da
feira e são organizados segundo grandes temas: temperança;

155
reforma moral e social; ciência econômica e social; trabalho;
religião; progresso da mulher, entre outros. Figuras intelectuais
e categorias sociais são nomeadas como representantes do
progresso, assim como as atividades são definidas como cons-
tituintes da sociedade civilizada. Grandes empresas, General
Electric, Westinghouse, entre outras, têm seus nomes ligados
aos objetos que são apresentados no evento. A firma Krupp,
por exemplo, mostrou seu mais novo e maior canhão.
Um lema da White City é a marca da exposição: “Not Matter,
But Mind; Not Things, But Men.” Como nos diz Trachtenberg,15
a substância da exibição oferece não só assuntos e coisas, mas
assuntos e coisas como produtos comerciais. Os bens podem
ser apresentados como progresso, como emblemas de um fu-
turo proveitoso, glorioso mesmo, que se tornará possível
pela aliança entre os homens de negócio, de cultura e de
estado. Neste sentido, a feira é um modelo da sociedade
capitalista moderna. Seu projeto e internacional. A idéia de con-
trole sobre o espaço, sobre a vida, estava em todas as feiras des-
de os meados do século XIX. Talvez a diferença da América para
os outros países seja que, na América, pelo menos naquele
espaço da cidade de Chicago, o sonho se tornou realidade.
Um dos textos mais interessantes sobre a World's Columbian
Exposition é o de Reid Badger. Tbe GreatAmen'can Fair16 apre-
senta a exposição de Chicago no conjunto de feiras que tem
início com a Feira Mundial de Londres, em 1852. As exposições
apresentam ao mundo a extraordinária mudança que está acon-
tecendo; ao mesmo tempo, expressam o esforço humano na
tentativa de controlar tais mudanças. A idéia que começa em
Londres se espalha pelo mundo afora, dando oportunidade
para cada nação mostrar suas realizações mais modernas e
representativas. É um evento que permite a demonstração,
na prática, dos mais modernos métodos de engenharia, os bara-
tos e rápidos resultados das novas tecnologias do aço e do ferro.
Em Chicago, um dos pontos notáveis é a “Ferris wheel”, a famosa
roda gigante, que era comparada a Torre Eiffel, construída para
a feira francesa de 1879. As feiras, de modo geral, não apre-
sentavam arquitetura nova, elas apresentavam o padrão do
belo já estabelecido; daí a escolha do neoclássico como versão
oficial. A exposição mostrou a junção do governo e das empre—
sas, produzindo uma atividade conjunta que reunia conforto,
instrução e divertimento.

136
A cobertura da imprensa para a feira é enorme, e seus eventos
são noticiados até em guias de viagem. Reformadores e edu-
cadores são também atraídos e começam a ver a ocasião
como ótima oportunidade para divulgar idéias e mudar ati-
tudes. O desenvolvimento das comunicações nos transportes
permite que ela seja visitada por muitas pessoas que vêm de
longe. Considera-se que de 5 a 10% da população norte-ameri—
cana visitaram a feira de Chicago.
1893 ensejou a oportunidade para a América proclamar
sua grandeza perante o mundo, mostrar que venceu sua in-
ferioridade cultural, comparar-se com Paris e mostrar sua
superioridade. Ao mesmo tempo, permitiu fortalecer o pa-
triotismo17 e forjar a harmonia em um período de grande
conflito interno.
O ritmo das mudanças no final do século XIX e a insegu-
rança social marcam o período. Chicago, uma cidade que tem
origem em 1839, é a segunda cidade do país em 1893. É uma
aldeia indígena às margens do lago Michigan que, em 50 anos,
passou de fronteira a metrópole. Em 1871, sofre um incêndio
que obriga e possibilita a sua reconstrução. Chicago tipificaria
o caráter nacional: metrópole do Oeste que se torna centro do
país. Ponto central da conexão das estradas de ferro que cortam
e atingem totalmente os Estados Unidos. É também a cidade
que recebeu enorme quantidade de novos imigrantes pobres,
que participam das transformações urbanas em curso, mas
não necessariamente de seus benefícios.
É neste contexto que se procura a tradição americana. Seria
o europeu transplantado, o puritano da Nova Inglaterra, o
sulista de antes da Guerra Civil, o homem da fronteira ou
aventureiro, o yeoman jeffersoniano, o urbano hamiltoniano,
qual seria afinal a tradição unificadora? É também neste con-
texto que se faz a releitura da chegada de Colombo a América.
Colombo passa a pertencer a galeria dos heróis americanos,
herói que, como Boone ou Crockett, aceitou o desafio do
desconhecido. Outros 0 seguiram e começaram a construir o
império americano.
A World's Columbian Exposititon pretendeu ser um modelo,
uma demonstração da reconciliação entre necessidades práticas
da grande cidade e desejo de beleza, conforto e diversão. A
área de lazer, concentrada na Midway Plaisance, onde ficava

137
a “Ferris Wheel”, reunia restaurantes e casas de espetáculo,
além de réplicas de ruas do Cairo, palácios mouros, bazares
japoneses, uma fabrica de vidros da Boêmia, todos juntos,
proporcionando ao visitante a experiência de ter em casa uma
parte do mundo. A descrição deste setor da World's Columbian
Exposition remete o leitor ao mundo de Disney World e EPCOT
Center que, anos mais tarde, serão construídos na Flórida. Ali
também se apresentou o “Buffalo Bill's Wild West”, espetáculo
sobre aventuras do Oeste e que agora recebia reconhecimento
como cultura nacional. William F. Cody, o Buffalo Bill, caçador
profissional que ajudou a exterminar o búfalo, principal fonte
de subsistência para os índios das planícies, apresentou seu
espetáculo para milhões de espectadores nos Estados Unidos
e na Europa.
O Midway Plaisance é a parte propriamente de popularização
da exposição. Nele estavam localizadas as exposições etno—
lógicas que confirmavam a visão americana e eurocêntrica
sobre o mundo bárbaro e infantil dos não brancos. O Japão
tem uma representação oficial do governo e aparece nos jornais
da época como a Grã-Bretanha da Ásia; já a China aparece
representada pelos chineses da América e com atividades
ligadas a divertimentos.18
Os congressos religiosos de educação, de arquitetura, de
história, entre outros, fazem a integração do evento com a
cultura universitária ou estabelecida no país. Tem-se a abertura
da nova Universidade de Chicago, exemplo de orgulho da vida
urbana e promessa de futuro glorioso.
Uma das questões centrais em relação aos povos não brancos
aparece no birô de assuntos indígenas, que preparou a exibição
de costumes dos índios da América do Norte e do Sul. A
ênfase em etnicidade, mostrando também esquimós e afri—
canos, exibe o primitivismo da cultura dos não brancos, dos
não europeus. O Departamento de Etnologia, sob a direção
de Frederic Ward Putman, e tendo como assistente Franz Boas,
pretendeu garantir a autenticidade das coleções apresentadas,
entretanto a exposição como um todo serviu para confirmar a
escala do mais atrasado ao mais adiantado. As questões raciais
aparecem não só na imagem apresentada sobre o índio ameri-
cano, mas também na demanda expressa para uma política de
imigração seletiva baseada na raça. Os negros não participam

138
de qualquer cargo de direção nas comissões organizadoras
da feira, e negros proeminentes, como Frederick Douglass,
organizam evento paralelo e nomeiam a White City de “se—
pulcro” branco.
A exposição representou o reconhecimento de Chicago e
do meio-oeste por toda a nação e a emergência dos Estados
Unidos como potência mundial. Pensada para estimular o cos-
mopolitismo e a paz mundial, a feira acabou por encorajar o
espírito nacionalista.
Ao operar em associação entre empresariado e Estado, a
exposição marca o declínio do laissez—faire como filosofia domi-
nante nos Estados Unidos. Entre os opositores ao evento estão
aqueles que condenam a cópia de modelos estrangeiros na
própria arquitetura da feira: os templos romanos, as vilas
florentinas, os palácios franceses, as igrejas góticas, o neoclás-
sico, ignorando o que já existia em Chicago, representado por
figuras como Louis Sullivan, entre outros. O irônico deste evento
é que este grandioso espetaculo se encerrou com episódios dra-
máticos. O prefeito de Chicago foi assassinado dois dias antes
do encerramento da exposição, e seus prédios foram ocupados
pelos desempregados sem casa que proliferavam em Chicago.
Incêndios, brigas entre a polícia, tropas federais e grevistas
marcam a destruição do que sobrara da feira gloriosa. Em 1894,
acontece uma das maiores greves dos trabalhadores de estradas
de ferro nos Estados Unidos. Por outro lado, o sonho imperial
americano se materializa com a invasão de Cuba e das Filipinas,
em 1898.
O significado da Exposição de Chicago em 1893 nos ajuda a
entender a importância do lugar onde F. ]. Turner apresenta seu
ensaio. Este espaço e este tempo caracterizam um momento
em que o sonho de um império agrário está sob grave ameaça.
Turner oferece uma versão coerente, integrada do início do
desenvolvimento americano, colocando em uma linguagem de
interpretação histórica a narrativa que estava presente em muitas
falas de pensadores, políticos e intelectuais. Mas, se a fronteira
promoveu a experiência básica do ser americano, o que será
feito agora em um tempo em que ela não mais existe? O que
acontecerá com a América em um novo tempo onde predomina
a cidade e não mais o campo?
Para Turner, ainda que a experiência da fronteira tenha
acabado, seus produtos ainda permaneceriam no caráter do

139
americano. A ocupação territorial do Oeste seguiu um processo
ritual de descer e ascender na escala civilizatória, levando a um
“contínuo recomeço” ou a um “renascimento perene”. Este ponto
de encontro, entre a selvageria e a civilização, torna-se a au-
têntica fonte do caráter do homem americano e do processo
que culmina com o crescimento industrial e urbano, que tem como
exemplo significativo a cidade. de Chicago. Se a quantidade
de terras livres era o que. assegurava a independência, e a
agricultura desenvolvida era o verdadeiro fundamento da ri-
queza nacional e da democracia, como interpretar o mundo
industrial e urbano? Como combinar isto com a outra crença
“científica” de que, pelas leis da mudança, o mais novo e mais
recente tem superioridade garantida sobre o mais antigo? Na
interpretação de muitos autores, esta dificuldade teórica, este
paradoxo do pensamento de Turner nunca foi resolvido.
O sonho de um império agrícola é apresentado a uma nação
que estava precisando de uma versão coerente e integrada de si
própria. A narrativa de Turner e um contraponto a uma nação
que estava vivendo um momento de desunião, de depressão
econômica, de greves operárias, de crescimento do número
de trabalhadores imigrantes urbanos e de grande empobreci-
mento dos proprietários rurais.
A tese da fronteira e a invenção de uma América una. É a
invenção de um mito reificado na palavra Oeste, como um lu—
gar no tempo que junta passado, presente e futuro e, acima de
tudo, como um lugar no espaço capaz de revitalizar as energias
nacionais.

FAZEDORES DE MITOS; OWEN WISTER E


THEODORE ROOSEVELT

O Oeste, como já foi mencionado, teve diferentes significados


durante o século XIX. Representou uma possível “passagem para
a Índia”, uma terra a ser cultivada, uma terra que conferia
grandeza à nação americana.19 Mas foi no final do século que
alguns intelectuais do Leste construíram novas percepções e
interpretações sobre o Oeste, demonstrando entusiasmo 6 or-
gulho pelas origens pioneiras.20 O crescimento da mitologia
sobre o Oeste, considerado como o cerne da nacionalidade

140
americana, acontece simultaneamente ao impacto da imigração
e ao aumento das hostilidades em relação aos imigrantes.
As imagens sobre o Oeste estiveram ligadas ao tipo de
sociedade que as produzia. A sociedade agrícola produziu a
idéia de jardim; a sociedade industrial via o Oeste como lugar
selvagem. Mas era frente a este lugar selvagem que a civilização
se afirmava. Era como se a civilização precisasse da selvageria
contra a qual ela se distinguiria. Ao definir o índio como selva-
gem já estaria decretado o seu destino. Era o estágio atrasado
que deveria ser superado pelo americano branco. Era o avanço
inevitável do mais baixo para o mais alto, do mais simples
para o mais complexo.
Esta complexa relação aparecia nas chamadas dime novels,
muitas mostrando como Buffalo Bill atravessava o Oeste, apre—
sentando a figura do cowboy como frio, rapido e eficiente no
uso, do revólver em defesa da propriedade. Na ficção popular,
o Oeste aparece ainda associado a liberdade, à possibilidade
de escapar dos constrangimentos sociais e principalmente
como lugar onde o homem “sem berço” pode mostrar seus
méritos individuais.
A questão é entender a permanência de um herói — o cowboy
— na literatura, na música, no cinema, na TV muito além de
qualquer experiência histórica que a tornava realidade. Vamos
mencionar algumas manifestações culturais que apontam a
permanência e abrangência deste herói:
1883 — Primeira apresentação de Buffalo Bill's Wild West.
1889 — Theodore Roosevelt publica 779e Rough Riders,
enaltecendo o cowboy.
1902 — Owen Wister publica Tbe Virgínians.
1914 — Primeira versão de 779e Virginians no cinema por Cecil B.
DeMille.
1916 — Última apresentação de Buffalo Bill.
1917 — Primeiro filme de Tom Mix.
1927 — Primeiro filme de John Wayne.
1930 —— Segunda versão de 779e Virgínians no cinema.
1962 — Versão de The Vz'rgínz'ans para a TV.21
O gênero far west voltou l'ecentemente ao sucesso com
Dances wítb Wolves e The Unforgiven, mostrando que o tema
não desapareceu, ainda que o tratamento atual não seja o
mesmo da fase heróica.

141
Muitos foram os que contribuíram para a difusão da figura
do cowboy no imaginário popular norte-americano. AlgUns
são figuras menores do ponto de vista literário e raramente
estão citados nas antologias da literatura americana, como, por
exemplo, Zane Grey que, nascido em Ohio, produziu cerca de
63 livros sobre o Oeste. Seu livro Riders of the Purple Sage,
publicado em 1912, o tornou famoso no gênero. Entre 1910 e
1925, seus livros (Tbe Border Legion, 1916; The Call of the
Canyon, 1924, entre outros) foram best-sellers e venderam
mais de 150 milhões de exemplares. Seus livros inspiraram
105 filmes baseados nas histórias simples ou simplistas, onde
os personagens são previsíveis e enfrentam sempre da mesma
maneira as pressões do século XX. Zane Grey pretendia estar
falando de sua vivência pessoal, das viagens que realizou ao
deserto do Arizona e de seu encontro com Buffalo Jones.22
Outra figura relevante para a difusão do cowboy e do ho-
mem de ação foi Frederick Faust. Entre 1926 e 1936, seus livros
(Destiy RidesAgaín,1930; 779e Oatlaw,1953; Soul/9 ofthe Rio Grande,
1956 entre outros) inspiraram filmes, principalmente seriados. Este
autor escreveu sob inúmeros pseudônimos: Max Brand, Frank
Austin, George Owen Baxter, Walter C. Buttler, George Charlles,
Evan Evans, P. H. Morland. Tornou-se famoso como autor do
seriado Dr. Kildare apresentado no cinema.23
Deixando a literatura chamada dime novel, temos Owen
Wister e seu famoso livro Tbe Virginians. Owen nasceu na
Filadélfia em 1860 e cresceu em um refinado círculo de pes-
soas ricas e cultas. Frequentou a Harvard Law School e passou
um ano estudando piano no Conservatório de Paris. Por pro-
blemas de saúde foi para Wyoming, onde começa a escrever
histórias sobre o Oeste. Incentivado por Theodore Roosevelt,
produz uma literatura de cunho realista que combina com a
nova imagem que está sendo elaborada sobre o Oeste. Para
Wister, o cowboy seria o descendente dos Cavaleiros da Távola
Redonda, e seu comportamento seria similar ao de seus ancestrais
saxões. Em seus textos aparecem diferentes cowboys, cada um
ilustrando uma das virtudes próprias ao tipo de vida. O ápice
desta literatura é Tbe Virginians (1902), produzido e publi—
cado em capítulos. Nesta obra, ele reúne e resume o cowboy
ideal que teria conhecido em suas visitas ao Wyoming, entre 1870
e 1900. Alto, olhos claros e bem apessoado, o cowboy escolhia

142
seus amigos por suas habilidades de beber, atirar e fazer os tra-
balhos do rancho.
A fluência verbal não é a característica fundamental do
tipo: ele fala pouco, mas suas ações mostram seu caráter e
suas qualidades, entre estas a modéstia. O ponto central desta
obra é o encontro deste homem rude, de origens simples, com
a professora oriunda da privilegiada civilização do Leste. A
aceitação do cowboy pela professora representa a admissão;"
pelo Leste, dos ideaisdemocraticosque ainda podem predo-
minar na vida nacional. E, Q qu e_ fundamental,_ohomem
é
deve ser conhecidoe reconhecido não por seu nascimento,
maspor sua capacidade, habilidade etalento. Estas qualidadezs,
entretanto, só podem ser encontradas no bom sangue saxão.2
Este tipo cavaleiro e guerreiro sobreviveu até o final do
século XIX e reúne os traços da verdadeira nação americana.
Uma nação com este tipo de ser humano não precisa entregar
seu destino aos homens de negócio, aos falastrões. Este ame-
ricano típico não gasta esforço tentando persuadir: sabe que
tem como recurso final sua habilidade com a pistola, como
ressalta Slotkin.
Tbe Vírgz'nians é dedicado a Theodore Roosevelt. Wister
e Roosevelt foram colegas em Harvard e viajaram juntos para
o Oeste. Roosevelt era um mentor de Wister. Referia-se à vida
em seu rancho como idílica, a mais importante experiência
educacional de sua vida. lioiamçperiência pelaqual—garisto—
crata se tornou democrata, confirmando assim o papel do Oeste
nesta metamorfose. O Oeste permitiu o encontro com o cowboy,
este ser que, a despeito de sua origem simples, mantém a
liberdade, a auto-realização e a autodeterminação, ou seja,
o homem que não foi corrompido pela complexidade da vida
da cidade.
Além das virtudes da vida do Oeste, Theodore Roosevelt
valorizará as virtudes cristãs do amor à casa, a mãe, ao País
e a Deus. Entre 1900 e 1910, ele defende estes valores como
forma deenfrentar a destruição da sociedade agrária, simples,
pura, atacada pelas forças do Mal. Interessante artigo de john
A. Barsness25 compara Theodore Roosevelt com Andrew Jackson.
Este, em 1812, obteve vitória em Nova Orleans e guerreou ata-
cando os privilégios da aristocracia; agora, em 1898, Theodore
Roosevelt também ganhava militarmente com a batalha de San

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juan Hill e vinha restaurar, devolver a América a seu povo.
Como jackson, Roosevelt provou, através da vitória militar, a su-
perioridade da democracia. Os dois expressam o mesmo credo
dos ideais americanos, o caráter que une os atributos do caçador
com os do cowboy.
As biografias dos dois homens públicos enfatizam os mes—
mos componentes: homens do destino, guiados por luz interior
que torna as vitórias inevitáveis, dispondo de vontade inflexível
e de absoluta autodeterminação. Igualmente relevante: ambos
são considerados amálgama da aristocracia com o ordinary
people, da natureza com a civilização, e tornam—se os arquétipos
por excelência do herói americano.
Em 1905, Theodore Roosevelt faz uma conferência na
Sorbonne e explica como a República americana conseguiu
evitar a decadência. Todas as repúblicas do passado falharam,
segundo Roosevelt, porque não conseguiram evitar o conflito
de classes; seus partidos se dividiam conforme a linha das
classes, e esta enfraquece a lealdadea República. Para ele, a
Constituição e os “pais fundadores” haviam construído um
instrumento perfeito, já que haviam tido sucesso ao permitir
que o Estado se expandisse territorialmente e fossem pre-
servadas a unidade nacional e a liberdade do indivíduo.
Para Roosevelt, a atividade voltada exclusivamente para o
comércio era problemática, já que não oferecia condições para
o desenvolvimento da coragem física e/ou moral. Os modernos
vícios da preguiça, da ansiedade, deveriam ser enfrentados
por quatro imperativos: o imperativo republicano de envolvi—
mento na vida política da nação; o imperativo marcial de
desenvolvimento das virtudes viris, como pegar em armas para
a defesa da honra nacional; o imperativo religioso (protestante)
de trabalho duro e esforço produtivo em benefício da nação; e
o imperativo biológico de procriar para que haja herdeiros da
terra semeada. Estas virtudes viris que regeneraram a América,
como se sabe, são exemplificadas na guerra contra a Espanha,
quando se tornou Porto Rico e Cuba.
Theodore Roosevelt e Frederick jackson Turner partilham
do significado da fronteira na construção dasinstitmçoes _áme—
ricanas e acham que valorizar este passado é importante para
enfrentar a crise da demºcracia do final do século XX.

144
Associam a conquista do Oeste com a ideologia do excep—
cionalismo americano e com a missão dos Estados Unidos no
mundo. Por volta de 1820, já era lugar-comum ver a conquista
do Oeste como a expansão da civilização contra a selvageria, da
democracia contra a tirania, assim como “válvula de escape”
(safety valve) que tornou a luta de classes desnecessária na
América. Agora, no final do século XIX, com o fim das terras
livres, com o fim da fronteira, havia novamente riscos para a
democracia, e é a partir deste contexto que vão ser construídos
novos significados para a experiência histórica da fronteira. O
significado que cada um dos autores irá construir será, entre-
tanto, diverso. Cada um deles faz uso de diferentes mitos,
dramatizam diferentes histórias e processos, assim como ações e
heróis.
Para Turner, as histórias exemplares têm a ver com o mundo
agrário eafigura central é o fazendeiro; para Roosevelt, o
que importa são as narrativas mitológicas sobre o OeSte.
Este valoriza as figuras do caçador solitário, do índio que
“lutava, cujas encarnações são Boone, Crockett, Kit Carson,
“Buffalo Bill. Slotkin26 trabalha com a dicotomia caçador/fa—
zendeiro para explicitar as diferenças entre o pensamento
de Turner e o de Roosevelt. Para este, o caçador é individualista,
_maisprimitivoe dinamico do que o fazendeiro, sente--se superior
ao trabalhºregular e livre de sentimentos de deferência
para com superiores, e plebeu de nascimento, participa da
democracia,,agrária.
Este desenho da mitologia e elaborado por Roosevelt a
partir de sua permanência, por dois anos, em seu rancho em
Dakota, para onde foi após a morte de sua esposa e de sua mãe.
Este tempo funcionou para restaurar suas forças e converte-lo à
nova missão. Volta para Nova York e, enquanto sua carreira
política está em gestação, publica vários livros centrais sobre
o seu Oeste. Começa a construir um processo de identificação
entre sua história de vida e seus livros. Publica, em 1885,
Hunting Trips ofa Rancbman; em 1889, Rome/9 Life and the
Hunting Trial; e, de 1885 a 1894, vários volumes de Winning of
the West. Nestas obras, o Oeste é mostrado como uma arena
onde raças se enfrentam e vencem as melhores. A guerra contra
os índios e perfeitamente justificada, assim como contra os
filipinos, já que estes são orientais e, enquanto tal, são também
índios ou primitivos.

145
É também esta ideologia que se faz presente no Rough
Riders, primeira cavalaria de voluntários recrutada para parti—
cipar da guerra contra a Espanha, que significou a ocupação de
Cuba e das Filipinas, e na qual Theodore Roosevelt foi tenente-
coronel. Roosevelt se identifica com o cowboy, depois torna—se
um cowboye vai lutar, de armas na mão, contra inimigo racial e
culturalmente inferior, em perfeita sintonia entre a literatura e o
novo papel da América como competidor por colônias e por
domínio internacional.
O Oeste passa a ser o grande teatro onde estaria sendo
encenada uma peça histórica. A conquista do Oeste é apre-
sentada como realização do “velho estoque” de americanos
que, imbuídos do sentido de destino manifesto agora, conquis-
tam novos territórios. Theodore Roosevelt, em The Winning of
the West (1889), coloca com clareza que, se a descoberta da
América foi o início de um novo período de expansão racial, a
conquista do Oeste comprova a superioridade saxã na América
e a americana no mundo.
Assim, o que era um campo comum de valorização da fron-
teira para a construção do caráter do americano, como nas teses
de Turner, ganha perspectiva nova pela crença na superioridade
inerente dos anglo-saxões e correspondente inferioridade de
outras raças. Nesta perspectiva, estava destruído o poder assimi-
lacionista da democracia americana e a força e valor da fronteira
forjando o homem comum. Os atributos do homem do Oeste,
que teriam construído a nação, seriam atributos de raça e ser-
viam para definir a nacionalidade americana como a fusão de
uma raça particular com condições ambientais específicas.
A exclusão dos novos imigrantes do papel de pioneiros, a
apresentação da conquista do Oeste como uma experiência
do “velho estoque” de americanos, oferece um sentimento de
identidade, oferece segurança e elementos de continuidade
em uma situação instável. A ênfase em valores derivados de
um código tradicional, de fácil compreensão, e a condenação
da vida mais complexa e urbanizada do Leste ajudam a simplificar
os julgamentos de valor e tornam mais fáceis as decisões neces-
sárias aos novos tempos. 5

A maior parte dos construtores desta nova versão do Oeste


pertencia ãs elites cultas, eruditas, do Leste. Como faziam a
exclusão dos imigrantes sabendo que a América era terra dos

146
imigrantes? Como marginalizavam os imigrantes da criação da
nação? Precisaram fazer a distinção entre velhos e novos imi-
grantes, precisaram separar os que vinham do norte daqueles
que vinham do sul da Europa. Os povos não arianos seriam
diferentes daqueles primeiros imigrantes e não seriam capazes
de se americanizar. As teorias darwinistas, a tese da imigração
como processo seletivo onde os melhores estariam vindo para
a América, a noção de raça suicida, as campanhas para aumentar
a fecundidade, são algumas das questões que marcam o debate
intelectual, político e ideológico destes tempos sombrios.27

147
LÚCIA LIPPI OLIVEIRA

AMERICANOS
REPRESENTACOES DA IDENTIDADE NACIONAL
ND BRASIL E NOS EUA

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Belo Horizonte
Editora UFMG
2000

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