Sunteți pe pagina 1din 19

CRÓNICAS – apresentações orais

Turma 3

Grupo 1: Afonso Correia, Francisco Duarte e Gonçalo Figueira

Sair do sério

Se eu pudesse deixar só um conselho a toda a gente do mundo, sem excepção, seria este: tente
não levar as coisas muito a sério. Digo "tente" porque é excessivo pedir às pessoas para não
levar as coisas muito a sério.
No entanto, tenho a certeza que é não levando as coisas muito a sério que se tem uma melhor
oportunidade de ser menos infeliz e gastar melhor o tempo.
A seriedade das coisas é subjectiva e todos nos lembramos de sermos crianças e de ralharem
connosco por não levarmos certas coisas a sério.
Infelizmente a cultura portuguesa é muito séria. Há uma permanente competição em que as
pessoas tentam convencer as outras que levam certas coisas importantes mais a sério do que
os adversários.
Isto leva a uma seriedade fraudulenta em que as pessoas fingem que são ainda mais sérias do
que são - o que é uma loucura.
Na cultura irlandesa, na inglesa e, que eu saiba, na escocesa é considerada ridícula e triste a
pessoa incapaz de deixar de ser séria. "Don’t take yourself too seriously" é mais um insulto do
que um conselho amistoso.
Acho que o próprio sentido de humor depende do grau de seriedade. Não levar as coisas
muito a sério implica flexibilidade e consciência da nossa subjectividade e da pobreza dos
nossos recursos para determinar a verdade verdadeira das coisas e das pessoas.
É acrescentar, depois de uma afirmação muito sério, "mas isso sou só eu". É preciso muita
prática porque o ser humano tende para achar que é o dono de duas ou três grandes verdades.
Esta, claro está, não foge à regra.

Miguel Esteves Cardoso, https://www.publico.pt/2018/09/06/opiniao/opiniao/sair-do-serio-


1843145

  1  
Grupo 2: Emma Silva, Isabella Hernandez e Claudia Carbayo

Esta semana, num jantar com pessoas de várias nacionalidades, dei comigo a refletir sobre o
quão importante é conhecermos a cultura dos outros povos e como consideramos importante
conhecê-los. Mas, curiosamente, muitas vezes não valorizamos as extraordinárias qualidades
que o nosso povo tem.
Como se pode caracterizar, ainda que de maneira genérica, o povo português? Somos
atenciosos, cordiais, flexíveis, facilmente nos moldamos à cultura do interlocutor e
dialogamos, sem reservas, sobre diversos temas de forma animada. Contudo, e ainda que
possamos achar uma certa piada às graças sobre os atrasos sistemáticos, para encontros, ou
sobre o não cumprimento de prazos, apreciamos que os nossos “brandos e bons costumes”
sejam respeitados!
Uma das grandes valências do povo português é a dedicação – algo que nos é muito
favorecedor; naturalmente gostamos de ver reconhecidos os nossos méritos. Respeitamos e
apreciamos que se respeite a idade a nível social e a hierarquia em situações profissionais.
Somos amistosos e calorosos mas ao mesmo tempo agimos com alguma contenção, nos
primeiros encontros.
Cumprimentamos de forma calorosa e sorridente e damos “dois dedos de conversa”, quase de
imediato, para quebrar o gelo. Apesar dos beijinhos se trocarem constantemente, a forma de
cumprimento mais ajustada no meio profissional ainda é o aperto de mão.
No âmbito do comportamento profissional, de uma maneira geral, os portugueses são
apontados como formais, podendo esta característica ser vista como uma barreira pelos
estrangeiros. Ao negociar, é frequente que se construa uma relação pessoal anterior à relação
negocial, da qual se exige entrega e confiança – não se espere que uma negociação decorra
com rapidez, pois gostamos de conhecer os nossos parceiros antes de estabelecer acordos
comerciais.
Raramente uma reunião tem início à hora marcada e toleramos, com facilidade, atrasos de
quinze minutos. Temos uma noção especial da passagem do tempo e uma grande paciência,
apesar de na génese não apreciarmos esperar pelo visitante! Somos excelentes anfitriões e
esforçamo-nos sempre por agradar, oferecer, mostrar e partilhar o que temos melhor. A
principal refeição de negócios é o almoço que decorre entre as 12h30 e as 14h00; já os
jantares iniciam entre as 20h30 e as 21h00. À mesa é de evitar a junção de 13 pessoas, pois
este número está conotado com a má sorte.
Em certas áreas de negócio existe um grande à-vontade no trato, sendo comum o uso do
primeiro nome ou do “tu”. Por outro lado, e em oposição, continuamos a usar amplamente o
título académico, em certos ambientes e em determinadas profissões. Somos frequentemente
referidos como um país de “doutores” e “engenheiros”.
A imagem profissional é conservadora em certos setores de atividade (Banca, Consultoria,
Advocacia...), onde os homens usam fato, com ou sem gravata. E, tal como noutros países,
adotámos a prática do “Friday casual”.
Para finalizar algumas características que “nos” definem de forma engraçada:
- Gostamos de desporto, nomeadamente de futebol, sendo este um dos tópicos comuns de
conversa.
- Não prescindimos de nos deslocar de carro para qualquer lado e o estacionamento, apesar de
escasso, não é normalmente um problema pois usamos a criatividade. Também neste ponto, o

  2  
mesmo acontece quando o sinal do semáforo fica amarelo: em vez de reduzir a velocidade,
aceleramos - estamos sempre com imensa pressa!
- “Tou sim? E para mim!!!” é mais forte do que nós: não resistimos a atender o telemóvel em
qualquer local, hora ou contexto!
- No verão quem nos tira o sol e o mar tira-nos tudo. E, sempre que possível, tudo isto
acompanhado de uma sardinhada, quem sabe até na mata mais perto.
- Quando surge um problema não há quase nada que nos impeça de o solucionar. Arranjamos
sempre uma forma de contornar o obstáculo, ou seja “damos um jeitinho”.
Somos um povo fantástico. Viva Portugal!

Susana de Salazar Casanova, https://www.sabado.pt/opiniao/detalhe/Nos,-os-Portugueses

  3  
Grupo 3: Morgana Santos, Carolina Silva e Sara Carvalho

Os quinze anos

O que está a acontecer à liberdade? Perguntam duas raparigas, uma com 14, outra com 15
anos. A resposta curta é: é preciso lutar por ela. Mas há duas perguntas mais compridas. A
primeira é: porque é que as pessoas que não têm 15 anos tratam mal as pessoas que têm? E a
segunda pergunta é: como é que podem resistir e sobreviver as pessoas que têm o azar de ter
15 anos?
É preciso perceber o que os 15 anos são, e o que custa e importa tê-los. Isso por um lado. Pelo
outro, quem tem o azar de ter 15 anos e estar rodeado por pessoas que não os têm necessita de
um pequeno guia de guerrilha familiar para ajuda-lo a combater o inimigo e a lutar pela sua
liberdade.
Há 15 anos que não tenho 15 anos e não tenho pena nenhuma. É uma idade para esquecer,
mas é inesquecível. Trataram-me muito mal. Qualquer pessoa é muito mal tratada se a
apanharem com 15 anos. É a idade em que parece haver qualquer coisa contra nós. O que é
concretamente? É o mundo inteiro. Ou melhor: é o mundo inteiro com a insidiosa
colaboração dos pais. E o pior é que é verdade. O mundo inteiro está mesmo contra nós. É
verdade.
É uma infelicidade e uma injustiça, mas 15 anos é uma coisa que se tem 24 horas por dia.
Sem remissão, 365 dias por ano. Sem tréguas. Parece um milagre conseguir chegar à bonança
dos 16 anos depois de tanto sofrimento. Aos 15 anos emerge-se da Idade do Armário, já
recomposto e refeito, um ser adulto novinho em folha, ansioso pela luminosidade solar da
vida, e o que é que se verifica? Que cá fora ainda está mais escuro do que lá dentro. Ninguém
dá um fósforo por nós. Ninguém empresta uma pilha. É só breu. Apetece vomitar. Mas a luta
continua.
Aos 15 anos o coração já cresceu, mas ninguém repara. Não o deixam bater como devia. As
crianças crescem e os adultos envelhecem. E o que faz o adolescente? Coitadinho, não tem
hipótese: adolesce. Aos 15 anos, o mal é este: nem se é tratado como adulto (como se queria)
nem se é tratado como criança (o que sempre consolaria). Não se é tratado. Ponto final. Os 15
anos são intratáveis. Os mais novos – a malta do armário, enfrentando o absurdo da
puberdade – não têm nada, mas nada a ver. Os mais velhos olham para quem tem 15 anos
como se olha para quem tem lepra. Restam apenas as outras pessoas com 15 anos, mas essas
estão demasiado ocupadas a ter 15 anos para poderem reparar nas outras almas com as quais
partilham tal aflição. Só apetece chorar. É o que se faz.
Chora-se muito. Aos 15 anos tudo é muito importante. É-se uma pessoa nova pela primeira e
única vez na vida e o mundo, difícil e grande, percebe-se e faz-se pesar tal qual ele é. (A
partir dos 16 anos já não se aguenta e finge-se que é mais fácil ou mais pequeno). Aos 15
anos tudo é muito tudo, e é tudo ao mesmo tempo. Há muitas coisas que se querem muito e
sofre-se muito por não as ter e brada aos céus o quanto se precisa realmente delas e parece
impossível que ninguém perceba. E é incrível como toda a gente se junta para nos impedir de
alcança-las. E é muito triste saber que há-de ser assim durante toda a vida, que é quanto dura
ter 15 anos. Mas a luta continua.
Aos 15 anos, tudo é tudo, simplesmente. Qual simplesmente! Complicadamente. Tudo é
muitíssimo. É preciso muito e é muito preciso. É tudo muito lindo e muito difícil e muito
injusto e muito urgente e pronto – será isto assim tão difícil perceber? O mundo é mesmo
como se vê quando se tem 15 anos, só que acabamos por desistir de vê-lo assim, porque custa
tanto.

  4  
Ter 15 anos é sempre igual, seja qual for a década ou o século. É a idade da verdade. Também
por isso é a idade mais solitária que há. A verdade – coisa confusa, caótica, massa de
insuportáveis oposições – é sempre difícil de suportar. Com 15 anos só apetece gritar, bater
com portas, suicidar. Menos que isso seria inapropriado, seria faltar à verdade.
Ser “novo” não tem graça nenhuma. (Ser velho também não, mas isso é outra história.)
Como fazer então? Como fazer quando se tem 15 anos? A primeira indicação de guerrilha é
psicológica. Mentalizem-se: quinze anos é muito tempo. É muito ano já. Ter vivido quinze
anos, ter chegado, já é qualquer coisa. Parabéns. Agora chega de peneiras. A luta continua.
Sim, o que está a acontecer à liberdade? É preciso lutar por ela. É preciso conquistá-la ao
inimigo. Neste caso o inimigo sofre a agravante de ser benevolente. É certo que os pais só
querem o nosso bem, só que não é bem o bem que nós queremos. Os pais têm de ser
encarados como ditadores que, por serem bem-intencionados, não deixam de ser fascistas. E
vice-versa, seguindo a melodia de “Por morrer uma Andorinha, Não Acaba a Primavera”; lá
por serem uns terríveis fascistas, opressores da liberdade, não deixam de ser quem eram.
É preciso conquistar a liberdade e é escusado estar com lirismos e com sinceridades porque o
que é preciso é usar da manha. Os pais também são manhosos e, por conseguinte, não há
razão para ter pruridos. A manha é extremamente importante e pertinaz.
MANHA N.º 1: O NÚMERO DA AGENDA.
Compre uma agenda. Prefira uma agenda enorme. Para comover os pais, que insistem em vê-
lo como uma criancinha, não esta mal uma agenda tipo Pantera Cor-de-Rosa ou Adrian Mole.
O número consiste em marcar todas as festas com uma antecedência perfeitamente estúpida.
Mais de um mês é excelente. Os pais gostam imenso da antecedência porque é tão rara na
vida real. (De véspera, só estão a dar oportunidades ao Inimigo de dizer que não!) Marque
festas a torto e a direito, indicando a hora e o local, procurando dar um ar profissional. Não é
preciso que sejam festas já combinadas – na hora podem cancelar-se as festas inventadas às
quais não foi possível arranjar alternativa, etc.
Agora, atenção à graxa. Os pais adoram. O Número da Agenda é preciso porque permite
marcar – vejam só a nojice completa da graxa – dias de estudo. Por exemplo, uma semana
antes de um “ponto” (marcado a vermelho), marque todas as noites “ESTUDO –
MATEMÁTICA”, excepto (eis o que é) a tal noite em que quer sair com os amigos. Fácil,
não é?
Marque tudo – dias de anos dos pais, com “CANCELAR FESTA DA HELENA” à frente
(para que eles pensem que vai ficar em casa de propósito); datas históricas importantes (“DIA
DA LIBERDADE DO ADOLESCENTE”), etc. A organização é a melhor amiga das lutas
políticas. A luta continua.
MANHA N.º 2: O NÚMERO CIA/KGB.
Os pais, sendo opressores naturais, têm uma sede totalitária de saber tudo acerca dos filhos e
filhas de 15 anos. A manha CIA/KGB consiste em prestar-lhes todas as informações como
bom delator que se é. Antes de ir a uma festa, satisfaça a curiosidade pidesca dos parentes
com uma folha enorme cheia de pormenores irrelevantes, como números de telefone, nomes
das pessoas que também vão, profissões dos pais, moradas dos hospitais e quartéis da Polícia
mais perto, resultados do totoloto, etc. Os pais devoram este tipo de informações. É a única
coisa que os tranquiliza e tem de ser. Inclua mapas, fotocópias dos bilhetes de identidade,
boletins de vacina – seja ambicioso: forneça-lhes um dossier.
A liberdade é um bem difícil que tem de ser conquistado. Não é só chegar ao pé das pessoas e
pedir. Os escravos dos EUA não conquistaram a liberdade andando com as mãos enfiadas nos
bolsos dos jeans, a dizer “Ó Mãe” e a bater com as portas. É preciso tempo, trabalho,
dedicação. E a luta continua.

  5  
MANHA N.º 3: O NÚMERO DO EXAGERO.
Vimos que 15 anos é a idade em que tudo é muito tudo. Há que aproveitar o balanço. É
preciso fazer muitas coisas muito. A manha ideal consiste em estudar imenso, para depois
exigir as justas regalias. Estudar imenso e gozar imenso não são atividades contraditórias.
Com uma série de notas altíssimas é até possível ser-se um pouco arrogante, passar junto à
mãe, tirar as chaves de cima da mesa e dizer: “Está-me a apetecer ir ler Camilo Pessanha para
Sesimbra. Vou levar o carro e volto para o mês que vem”. Quase que não reparem que não
tem carta de condução.
O Número do Exagero resume-se a exagerar nas chatices da vida, essas coisas em que os pais
sempre insistem, para depois carregar a sério nos divertimentos. Aqui não há como a velha
fórmula: “Quanto mais trabalho, mas preciso de me divertir – Quanto mais me divirto, mais
preciso de trabalhar”. Deve-se combinar o Número do Exagero com o Número da Agenda.
Com pais particularmente difíceis ou atentos, poderá ser necessário a tática da negociação
(“Se eu tiver positiva a Matemática, posso ir à festa da Joana? Sim? E se eu tiver a melhor
nota posso voltar pouco antes das cinco da manhã?”) Um bocadinho de chantagem nunca fez
mal a ninguém. E a luta continua.
MANHA N.º 4: O NÚMERO DO JUÍZO.
Os pais querem que os filhos de 15 anos tenham uma coisa acima de todas as outras: juízo.
Quase ninguém tem, mas está bem. Eles gostariam. É natural. O outro também gostaria de ter
um Ferrari. É muito difícil dar a impressão de ter juízo sem de facto o possuir o mínimo. Mas
deve-se tentar. Como? Primeiro, tem de se compreender o Filme de Terror que passa todas as
noites em sessão especial na imaginação dos pais. Neste filme, que é sempre o mesmo. Há
uma rapariga, ou um rapaz, de 15 anos que é enganado por um grupo de falsos amigos que o
convencem a drogar.se, prostituir-se, apanhar SIDA, integrar um governo do PRD, etcetera. O
filme é um porno-chachada do pior, melodramático, inverosímil e francamente mal realizado.
Mas é este o filme que os pais estão sempre a ver com os filhos nos principais papéis.
Por isso, a meio de um almoço ou de uma tarde, diga coisas muito ajuizadas, com um ar de
apaixonado, do género: “Não sei como há raparigas que aceitam cigarros de pessoas
desconhecidas e depois admiram-se que estejam drogadas”. Ou: “Não sei como há raparigas
que vão para a cama com rapazes e depois admiram-se de ficarem de balão”. Não sei se
repararam que está fórmula: “Não sei como… e depois admiram-se” é muito importante.
Outras frases úteis para conversação são: “Não sei como há jovens que dizem que não têm
medo da SIDA e depois admiram-se de estar cheios de comichão nas virilhas”. A comichão
nas virilhas não tem nada a ver com a SIDA, mas eis um tipo de ignorância dos que convém
transmitir.
Não exagere, caso contrário não funciona. Dizer “Não sei como há filhos que não respeitam
os pais e depois admiram-se que o mundo esteja no estado em que está” é levar a coisa longe
de mais. Ninguém gosta de dar à luz o género menino Adalberto que diz estas cretinices.
Apesar de ser verdade, note-se. Não é nada, mas a luta continua.
MANHA N.º 5: O NÚMERO DOS PAIS DOS OUTROS.
Esta manha é negativa. Nunca, mas nunca proteste “Mas os pais das minhas amigas deixam”,
porque todos os pais estão completamente a marimbar-se para os pais dos outros. Só há dois
tipos de Pais dos Outros; os Baldas, que deixam que os filhos sejam comidos pelo cancro da
promiscuidade, e os Tiranos, que batem nos filhos só por eles não serem adultos. Os Pais dos
Outros é para esquecer. Mencioná-los é como dizer que se vai jogar golfe com o diabo para
justificar não ir à missa. Ou são piores ou melhores que os nossos. Se são piores, não
interessam. Se são melhores, irritam.

  6  
A luta continua. As liberdades conquistadas são as mais saborosas. (Isto é mentira, mas
pronto.) Ao contrário das pessoas de 15 anos, que são poços sem fundo de razões e paixões,
os pais são criaturas muito primárias. Há que controlá-las, ternamente enrolá-las, tornar-lhes a
vida mais fácil, apaziguar-lhes aqueles brutos tremores. O lema ideal, todo muito “via original
portuguesa para o socialismo”, é LIBERDADE EM SEGURANÇA, SEGURANÇA NA
LIBERDADE. A ordem e o progresso, a evolução sem revolução, a prosperidade na paz, e
uma pomba na mão valem dois pardais a voar, qualquer coisa serve. O que é preciso é criar
uma imagem de marca, de um Filho Ajuizado e Seguro, pois prudente e Avisado, amigo do
Estudo sem desprezar o alegre convívio da família e dos amigos – enfim, um espécimen
revoltante que não tem nada a ver com filho nenhum, mas que mesmo assim tranquiliza a
imaginação traumática dos pobres pais. A luta continua.
E fazer tudo muito. Saber muito, amar muito, gozar muito, aproveitar muito. É a única
maneira de fazer passar mais depressa os 15 anos. A partir dos 15 anos ainda se fazem as
coisas muito, mas é muito menos. Felizmente ou infelizmente? É o que ninguém sabe.

Miguel Esteves Cardoso, Os meus problemas

  7  
Grupo 4: Matilde Baptista da Silva, Madalena Sousa Cabral e Leonor Távora

Da contiguidade de obrigados

Já não é a primeira vez que acontece. Chegamos ao aeroporto. O motorista do táxi passa-me a
máquina para eu marcar o código do multibanco e eu: obrigado. Depois ele recolhe a máquina
e eu: obrigado. Logo a seguir ele entrega-me o talão e eu: obrigado. E depois dá-me a factura
e eu: obrigado. No fim, deseja-me boa viagem e eu: obrigado. São cinco obrigados num
período inferior a 30 segundos. O que deseja ser reconhecimento toma a aparência de
zombaria. A educação transforma-se em falta de educação.
A pretexto de estarem mais preocupados com outras questões, os filósofos têm recusado
reflectir sobre o problema da contiguidade de obrigados. É mais fácil andar pelas ruas de
Atenas a tagarelar com Trasímaco acerca da definição de justiça do que dizer a uma pessoa o
que há-de fazer quando uma concentração de agradecimentos subverte a ideia de gratidão. E
depois admiram-se que sejam condenados a beber uma tacinha de cicuta.
Na minha opinião, quando confrontada com este tipo de problema, uma pessoa tem três
hipóteses, nenhuma das quais completamente satisfatória:
1 – Agradecer apenas uma em cada duas acções. A alternância de agradecimentos com
silêncio reduz a frequência dos obrigados, mas cria uma injustiça: certas acções passam sem
retribuição. No caso em apreço, eu teria agradecido apenas a oferta da máquina, a entrega do
talão e o desejo de boa viagem, e teria deixado sem agradecimento a recolha da máquina e a
entrega da factura. Esta conduta produzirá no meu interlocutor uma dúvida: porque é que
certas acções são merecedoras de agradecimento e outras não, sabendo que todas são
praticadas com o mesmo denodo? Uma inquietação que, com base na minha experiência
pessoal, o nosso interlocutor pode querer tirar a limpo com recurso à violência física.
2 – Esperar pelo fim e fazer apenas um agradecimento, talvez referindo que aquele obrigado,
embora singular, se destina a agradecer uma pluralidade de acções. Um agradecimento global,
digamos assim. No entanto, o facto de não agradecermos cada uma das acções individuais
poderá gerar no outro a ideia de que somos malcriados. Isso, por sua vez, levará a que ele vá
descurando progressivamente o empenho no serviço – o que, além do mais, fará com que o
obrigado final pareça irónico. E conduzir à violência física.
3 – Evitar a repetição de obrigados substituindo sucessivamente a forma de agradecimento
por um sinónimo. Obrigado, grato, agradecido, reconhecido, penhorado, e assim por diante.
Devo advertir, porém, que este comportamento é um cobertor que tapa a cabeça do ridículo
mas descobre os pés da parvoíce, e tem a capacidade de provocar nas outras pessoas uma
irritação que, em geral, tem tendência a aplacar-se apenas de uma única forma. Refiro-me a
violência física.

Ricardo Araújo Pereira, http://visao.sapo.pt/opiniao/ricardo-araujo-pereira/2015-12-17-Da-


contiguidade-de-obrigados

  8  
Grupo 5: Maria Beatriz Pereira, Maria João Silva e Sara Fonseca

Eletricidade comprada no chinês

Vamos imaginar que a dona Arminda vende flores. É uma ocupação bem digna e respeitável,
quer para a dona Arminda, quer para outra dona qualquer. Vem o furacão Leslie e destrói o
furgão da dona Arminda. No dia seguinte, os clientes perguntam: “A como são as rosas, dona
Arminda?” Diz ela: “Cem euros cada uma, para eu comprar outro furgão.” O mais provável é
que as pessoas se riam da dona Arminda. Em princípio vão comprar as rosas à banca do lado,
cujo proprietário não ficou sem o furgão, ou tinha o furgão no seguro. É possível que o caso
dê notícia (“Rosas valem mais que caviar? Esta feirante acha que sim”) e sirva de tema aos
comentadores dos jornais. Mais uma prova da falta de iniciativa do povo português, da sua
incapacidade de fazer face a um mercado competitivo, isto é tudo uma cambada que só quer
andar pendurada no Estado à caça do subsidiozinho, e tal.
Agora vamos imaginar que a dona EDP vende eletricidade. Ou melhor, não precisamos de
imaginar. De acordo com os jornais, a classificação do Leslie como “evento excecional” fará
com que a EDP não tenha de compensar os consumidores pela quebra do serviço. Além disso,
a lei prevê que sejam os consumidores a pagar à EDP os prejuízos provocados pelo furacão.
A não ser que seja o Governo a pagar, o que vai dar mais ao menos ao mesmo. Neste caso, os
consumidores não riem da dona EDP. Primeiro, porque têm mais vontade de chorar. Segundo,
porque não é muito evidente que possam ir comprar eletricidade à banca do lado. A diferença
entre os donos da EDP e a dona Arminda é que os primeiros usam gravata, pelo que se vê
logo que são grandes empresários. Não se penduram no Estado, fazem negócios em que o
lucro é sempre deles e o prejuízo é sempre nosso – o que é muito, muito diferente. Não são
como esses calões incapazes de competir no mercado, como a dona Arminda. Incrivelmente,
o consumidor ainda não tem de ir trabalhar de graça nas obras das barragens. Talvez isso
possa ser contemplado num próximo contrato ainda mais competitivo.
É preciso ter azar. As coisas que compramos aos chineses costumam ser baratas. A
eletricidade logo tinha de ir parar às mãos dos únicos chineses careiros. A EDP é uma espécie
de loja dos 300 da eletricidade. Só que é dos 300 milhões.

Ricardo Araújo Pereira, http://visao.sapo.pt/opiniao/ricardo-araujo-pereira/2018-10-25-


Electricidade-comprada-no-chines

  9  
Grupo 6: Inês Antunes e Mafalda Costa

Fidalgos, queques e betinhos

Os Portugueses têm algo de figadal contra todos os que tenham algo de fidagal. Como as
crianças, confundem muito a fidalguia, que é uma simples condição social, com a
aristocracia, que é um sistema político em que o poder pertence aos nobres. E, no entanto,
como diria Chesterton, não há mérito automático em ser fidalgo, nem vergonha em pertencer
decididamente (como eu) à ralé.
Em Portugal a nossa civilização deve muito a duas classes minoritárias. Ambas são gente
simples, com posses reduzidas e educação informal. Refiro-me, obviamente, à plebe e à
nobreza. O pretensiosismo dominante, seja proletário ou possidónio, seja triunfalista ou
disfarçado, encontra-se nas classes restantes, que constituem a grande maioria da população.
Mas um pastor ou um pescador é tão senhor como um fidalgo. Como ele, vê o mundo de uma
maneira antiga, em que cada coisa tem o seu lugar, o seu sentido e o seu valor. O pior é o
operariado, a pequena, média e alta burguesia: enfim, quase toda a gente. É esta gente que se
preocupa com a classe a que pertence. Enquanto o pastor e o conde se ocupam, os outros
preocupam-se. Os primeiros não querem ser o que são. Os outros adorariam. Os primeiros
aceitam o que são, sem vaidade. Os outros têm sempre um bocadinho de vergonha e por isso
disfarçam, parecendo vaidosos.
Quem é fidalgo e quem é que quer ser?
Em Portugal existem três classes distintas. Há a classe dos fidalgos – os meninos "bem". E
depois há duas classes falsamente afidalgadas. Há os meninos "queques", filhos de pais
"queques" mas com avós que não. E há os "betinhos", filhos de pais que, simplesmente, não.
O "menino bem" é aquele que não sabe muito bem em que século começou a fortuna da
família. Geralmente é pobre, com a consolação irritante do passado rico. É muito bem-
educado e jamais se lembraria de lembrar aos outros que é "bem". O "queque" sabe
perfeitamente que foi o avô ou o bisavô que abriu a fábrica ou a loja que enriqueceu a família.
Geralmente é bastante rico. Embora tenha frequentado os colégios correctos, tem sempre um
enorme complexo de inferioridade em relação aos "meninos bem", o que o leva a fazer-se
mais do que é. De bom grado trocaria grande parte da sua fortuna pela antiguidade e pelo
prestígio de um bom título.
Finalmente, o "betinho" é aquele cujo pai nasceu pobre, indesmentivelmente operário. O
betinho procura dar-se, em vão, com queques e meninos bem, mas a sua educação é formal e
institucional, não familiar. É o mais rico de todos, mas é também o mais envergonhado. O
betinho por excelência é aquele que não suporta a vergonha de um pai nascido entre o
povaréu. Evita apresentá-lo aos amigos. Tudo faz para ocultar a sua proximidade genealógica
ao vulgacho.
Tanto o queque como o betinho são o resultado de self-made man, homens que se levantaram
pelas próprias mãos, quantas vezes rudes e calejadas e tudo o mais. O menino bem, em
contrapartida, nem sequer compreende o conceito de self-made man. Porque é que um homem
se há-de "fazer a si próprio" quando houve sempre pessoal, criados e caseiros, para se ocupar
dessas tarefas desagradáveis?
Distinguem-se em tudo. A falar, por exemplo. O menino bem usa todas as formas de
tratamento, desde "a menina" – A menina vai levar o Jorge ou vai sozinha no Volvo? – até ao
"Psst, tu que fumas".
O queque, por ser menos seguro, trata toda a gente por "Você", incluindo os criados e as
crianças (o que não é correcto, mas parece). O betinho, a esse respeito, está em absoluta

  10  
autogestão. Tenta tratar mal aqueles que considera inferiores (demasiado mal) e bem aqueles
que considera superiores (demasiado bem). No fundo é um labrego engraxado que julga sinal
de aristocracia dizer os erres como se fossem guês.
O que caracteriza o menino bem é o seu total à vontade no mundo. Nunca se enerva, nunca
hesita, nunca está muito preocupado. Haja ou não dinheiro. O menino bem dá-se bem com a
pobreza e encara o sobe e desce da sorte com a naturalidade com que aceita a circulação do
sangue pelas veias. Por isso dá-se bem com toda a gente. Nada tem a perder ou a ganhar.
Os queques não são assim. Pensam que nasceram para o brilho baço do privilégio. Vivem
obcecados pelo dinheiro já que é o dinheiro que lhes permite comprar todos aqueles adereços
(relógios Rolex, automóveis Porsche) que consideram indispensáveis ao seu estatuto social.
Um menino bem, em contrapartida, nunca usa relógio – porque é que há-de querer saber as
horas? O queque só se dá com pessoas "do seu meio". Enquanto o menino bem tem aquele
rapport feudal com caseiros, varinas e pedreiros, que constitui uma forma multissecular de
intimidade, o queque aflige-se em "manter as distâncias" com esse gentião, precisamente por
serem tão curtas.
O betinho é uma pilha de nervos. Ninguém o respeita. Dá-se quase exclusivamente com
outros betinhos, do mesmo ramo de importação de electrodomésticos ou da construção civil.
Não gostam de sair da sua zona. Os de Lisboa, por exemplo, só quando há uma emergência é
que saem do Restelo. Ao contrário dos queques, evitam falar em dinheiro porque se sentem
comprometidos. Esforçam-se mais por serem meninos bem do que os queques, que julgam já
serem meninos bem. Andam sempre vestidos pelas lojas mais tradicionais (camisa aos
quadradinhos, casaquinho de malha, jeans novinhos e mocassins pretos com correiazinha de
prata ou berloques de cabedal), ao passo que os queques compram roupa mais moderna na
boutique da moda. Escusado será dizer que os autênticos meninos bem andam sempre mal
vestidos, com a camisola velha do pai e as calças coçadas do irmão mais velho. A única
diferença é que as camisolas e as calças que têm em casa duram cem anos. Os avós já
compram camisas a pensar que hão-de servir aos netos. Aliás, os fidalgos são sempre mais
forretas que a escória.
No que toca aos hábitos alimentares, os meninos bem comem sempre em casa. Como as
famílias são geralmente muito grandes (de resto, como sucede com o populacho), a comida é
quase sempre do tipo rancho, ou sempre servida com muito puré de batata.
Os queques estão sempre a almoçar e a jantar fora, em grupos grandes com muitos rapazes e
raparigas a exclamar: "Ai, já não há pachorra para o quiche lorraine!" Aqui se denunciam as
suas verdadeiras origens sociais. Para um menino bem, comer fora é uma espécie de solução
de emergência, quando não dá jeito comer em casa. Para um queque é um prazer.
Nas casas bem, a qualquer hora do dia, há sempre uma refeição a ser servida a um número
altamente variável de crianças, primos, criadas, motoristas, tias, etc.
Nas casas queques as refeições variam conforme os convidados. Nas bem são sempre
rigorosamente iguais. Os queques têm a manis dos restaurantes – conhecem-nos tão bem
como os meninos bem conhecem (e odeiam) as cozinheiras. E os betinhos? Os betinhos
tentam evitar as refeições o mais possível. Comem sozinhos em casa (os betinhos tendem a
ser filhos únicos) ou levam betinhas a jantar. Porquê? Porque têm a paranóia de serem
"descobertos" através dos modos de estar à mesa. Mas, na verdade, só são descobertos pelo
seu excesso de boas maneiras. Um betinho à mesa está sempre "rijo", atento, receoso de tirar
uma azeitona por causa do terror de não saber lidar com o caroço. Os queques comportam-se
como animais, espetando garfos nas mãos estendidas dos outros, soprando pela palhinha para
fazer bolinhas no Sprite e atirando os caroços para martirizar o cocker spaniel. Quanto aos
meninos bem, encaram as refeições como uma simples necessidade fisiológica. Comem e

  11  
calam-se. Falam só para dizer "passa a manteiga" ou "Parece que houve uma revolução
popular em Lisboa, passa a manteiga".
Não são, portanto, os fidalgos que dão mau nome à fidalguia – são os queques e betinhos.
Estes cultivam ridiculamente os "brasões" e as "quintas", fingindo que não gostam de falar
nisso. Em contrapartida, nas casas fidalgas, os filhos das criadas experimentam os lápis de
cera nos retractos a óleo dos antepassados. E ninguém liga.

Miguel Esteves Cardoso, Os meus problemas

  12  
Grupo 7: Joana Maia, Inês Ribeiro e Madalena Guerra

Os Meus Doze Anos

O meu neto Vicente fez cinco anos. Passou os quatro anos a queixar-se de não ter cinco e
agora diz que a coisa anda mais depressa: cinco, dez, quinze — num ápice já terá os vinte
anos que quer ter e será finalmente crescido.
Esta impaciência e este desejo louco de envelhecer despertaram em mim a memória dos meus
doze anos. Um teenager naquela altura era uma pessoa cuja idade acabasse em teen.
Começava-se aos treze anos e acabava-se em glória com dezanove.
Eu odiava os meus twelve anos, ardia com a injustiça de não serem twelveteencomo já no ano
anterior me senti roubado por não poder ter eleventeen. Pelas minhas contas era-se criança até
aos nove e depois entrava-se numa idade neutra - os dez - em que se contemplava de um lado
a infância inocente e do outro a adolescência rebelde, com todas os seus perigos e problemas,
praticamente adultos.
Nas capas dos paperbacks e dos discos, nas reportagens nervosas das revistas, só se
viam teenagers insolentes, ameaçadores, blasés e elegantes, com blusões de cabedal a
condizer com as atitudes.
Era um sofrimento ter doze anos e não me poder candidatar àquele mundo que era tão
obviamente feito para mim. E só porque os nomeadores dos números tinham guardado
o teen para os matulões de treze anos.
Não me lembro de ter treze anos mas lembro-me da desilusão que foi. É uma idade horrível.
Não acontece nada do que se quer. Ninguém nos respeita. Ninguém nos admira. Ninguém nos
convida para uma vida de depravação e de crime. Ninguém se apaixona por nós.

Miguel Esteves Cardoso, in https://www.publico.pt/2018/10/01/opiniao/opiniao/os-meus-


doze-anos-1845787

  13  
Grupo 8: Carlota Rodrigues, Joana Bettencourt e Maria Castanheira.

Orações soburdinadas

- António
e volto à infância. A minha prima Ana Maria, de braços abertos na rua
- Faço anos hoje não me perguntes quantos
e não te pergunto quantos, foste tão importante para mim em pequeno. Eras mais velha que
eu, levavas-me a correr de mão dada. O avô sentava-se numa cadeira de lona à entrada do
jardim, fechava os olhos e tu coçavas-lhe a cabeça. Isto ao fim da tarde, ele de casaco de
linho, depois do escritório. Tantos insectos naquele tempo, tantos canteiros, tantas flores. O
teu irmão Quim Zé passeava-me na Vespa por baixo da janela de uma menina de oito anos
por quem eu estava apaixonado. Tinha paciência para mim e foi morrer na guerra em Angola.
Lembro--me da chegada do caixão à Estrela, com a bandeira por cima. Gostava do Quim Zé e
da Ana e gostava do pai deles também, que tocava guitarra de Coimbra. Dava-se bem com o
meu pai, eram casados com duas primas direitas. Falei à Ana na chegada do caixão do Quim
Zé à Estrela, vai ela
- Dizem que o teu pai era distante mas não era
e pôs-se a contar que o meu pai abraçou o pai dela e depois lhe pegou na mão, a encostou à
sua bochecha e lhe deu um beijo. Fiquei a olhá-la de cara à banda, nunca vi o meu pai ter
manifestações dessas.
- Juro-te que é verdade
e eu parvo. Deve ser, a Ana Maria nunca me mentiu. O meu pai nasceu daqui a oito dias, este
é um mês amargo: demasiadas dores. Eu cá me entendo.
Curioso como as pessoas que conheci de toda a vida não mudam por fora nem por dentro:
para quê perguntar-te a idade se a sei perfeitamente, dez anos, onze no máximo. Maravilhado
a ver-te tocar piano eu que sempre tive dedos piores que salsichas, gordos, inúteis. O corpo
magro e os dedos gordos: das duas uma, ou o corpo ou os dedos são postiços. Ou então é tudo
postiço e sou outro que não sei onde pára. No caso de ser outro que corpo tem o outro, que
dedos? Sinto-me bem nesta casa: livros, quadros, pouco mais. Devo ter herdado esta nudez do
meu pai, este desinteresse pelas coisas, morar entre objectos imediatamente úteis. E preciso
que o mundo esteja ordenado porque a minha cabeça é um cafarnaum, um sótão cheio de
tralha inútil. Com essa tralha inútil faço os livros, vou alinhando o que os outros não querem
páginas fora. Na época em que me levavas a correr de mão dada, Ana Maria, não escrevia
ainda. Ficava a pensar na morte da bezerra. Mesmo hoje, nos intervalos dos livros, penso na
morte da bezerra ou seja não penso em nada, espero. A Vespa do Quim Zé despenteava-me e
eu com medo que a menina ficasse mal impressionada comigo. Nunca a vi na janela. O Quim

- Queres que pare?
e não valia a pena parar porque não reparava em mim. O que lhe terá acontecido? Casou?
Teve filhos? Ou continua no mesmo prédio, de tranças, sem me ligar nenhuma? Deve
continuar no mesmo prédio, de tranças, sem me ligar nenhuma, porque carga de água havia de
me ligar? Ligava o professor
- Escreve aí no quadro uma oração subordinada
e deu-me um estalo porque escrevi soburdinada. Até hoje acho soburdinada mais bonito. O
professor era uma besta de violência, distribuía chapadas pela aula e eu queria ficar grande
num instante para lhe aplicar uma sova. Quando fiquei grande procurei-o na lista telefónica

  14  
para lhe devolver os estalos: nunca o encontrei e ninguém sabia dele. Nos intervalos de bater
tirava pêlos do nariz ou mandava-nos comprar-lhe cigarros. Oxalá tenha tido uma morte
macaca. O apagador de giz voava, direitinho à gente, chamava-se senhor André e o cão dele,
um infeliz como nós, Pirata. O cão não escrevia no quadro orações subordinadas mas, tal
como nós, comia pela medida grande, pontapés atirados com alma. Uma tarde o pai de um
aluno foi à escola e enfiou um murro no senhor André, não tenho presente agora se no nariz
de onde ele tirava os pêlos. Era careca e com patilhas, disso recordo-me. Recordo-me
igualmente do ar sofrido da mulher. A escola ficava ao pé de um caneiro de que saíam
vapores nauseabundos e, no inverno, ratos a trotarem lá em baixo, nas pedras, enormes.
- Estás a pensar na morte da bezerra, tu?
- Não, senhor André
- Então vem aqui ao quadro escrever uma oração subordinada.
Tudo isto me regressou, num vómito instantâneo de imagens, mal a minha prima Ana Maria
- António
de braços abertos na rua, mais baixa que eu, que esquisito. Os olhos dela iguaizinhos,
redondos, uma festa que me soube tão bem na cara. Depois acenámos adeus e fui-me embora.
Entrei no carro, vim para aqui fazer isto. Acabei o livro, estou vazio. No meio da prosa
chegam traduções minhas em grego que a agência mandou por esses correios especiais em
que a gente tem de assinar um papel. Assino sempre na linha errada e o empregado diz
sempre
- Não faz mal.
Desta foi em grego, da última em macedónio ou polaco. E aparece logo o senhor André a
anunciar aos gregos, aos macedónios, aos polacos
- Escreve soburdinada, o camelo
num desprezo sem fim, e os gregos, os macedónios e os polacos a concordarem,
escandalizados. Devem achar os estalos merecidos:
- Soburdinada, que horror, anda a gente a publicar este artolas
e o artolas, distraído deles, a pensar na morte da bezerra. Não: o artolas, distraído deles, a
respirar o vapor do caneiro, espantado com os ratos. Não: o artolas a hesitar como se acaba
esta crónica. Não a acabes, artolas: fica assim.

António Lobo Antunes, http://visao.sapo.pt/opiniao/opiniao_antonioloboantunes/oracoes-


soburdinadas=f500531

  15  
Grupo 9: Luís Barata, Pedro Moreira e Rita Van Der Kellen

Crónica do falar lisboetês

De súbito, o homem do quiosque de Lisboa a quem eu pedira os meus jornais habituais


interpelou-me:- O senhor é do Norte, não é? Respondi-lhe que não, que nasci na Bairrada e
que resido há quase 40 anos em Coimbra. Fitou-me perplexo. Logo compreendi que do ponto
de vista de Lisboa tudo o que fique para cima de Caneças pertence ao Norte, uma vaga região
que desce desde a Galiza até às portas da capital. Foi a minha vez de indagar porque é que me
considerava oriundo do Norte. Respondeu de pronto que era pela forma como eu falava,
querendo com isso significar obviamente que eu não falava a língua tal como se fala na
capital, que para ele, presumivelmente, não poderia deixar de ser a forma autorizada de falar
português. Foi a primeira vez que tal me aconteceu. Julgava eu que falava um português
padrão, normalmente identificado com a forma como se fala "grosso modo" entre Coimbra e
Lisboa e cuja versão erudita foi sendo irradiada desde o século XVI pela Universidade de
Coimbra, durante muitos séculos a única universidade portuguesa. Afinal via-me agora
reduzido à patológica condição de falante de um dialecto do Norte, um desvio algo assim
como a fala madeirense ou a açoriana. Na verdade - logo me recordei -, não é preciso ser
especialista para verificar as evidentes particularidades do falar alfacinha dominante. Por
exemplo, "piscina" diz-se "pichina", "disciplina" diz-se "dichiplina". E a mesma anomalia de
pronúncia se verifica geralmente em todos os grupos "sce" ou "sci": "crecher" em vez de
"crescer", "seichentos" em vez de "seiscentos", e assim por diante.O mesmo sucede quando
uma palavra terminada em "s" é seguida de outra começada por "si" ou "se". Por exemplo, a
expressão "os sintomas" sai algo parecido com "uchintomas", "dois sistemas" como
"doichistemas". Ainda na mesma linha a própria pronúncia "de Lisboa" soa tipicamente a
"L'jboa".Outra divergência notória tem a ver com a pronúncia dos conjuntos "-elho" ou" -
enho", que soam cada vez mais como "-ânho" ou "-âlho", como ocorre por exemplo em
"coelho", "joelho", "velho", frequentemente ditos como "coâlho", "joâlho" e "vâlho". Uma
outra tendência cada vez mais vulgar é a de comer os sons, sobretudo a sílaba final, que fica
reduzida a uma consoante aspirada. Por exemplo: "pov'" ou "continent'", em vez de "povo" e
de "continente". Mas essa fonofagia não se limita às sílabas finais. Se se atentar na pronúncia
da palavra "Portugal", ela soa muitas vezes como algo parecido com "P'rt'gâl".O que é mais
grave é que esta forma de falar lisboeta não se limita às classes populares, antes é
compartilhada crescentemente por gente letrada e pela generalidade do mundo da
comunicação audiovisual, estando por isso a expandir-se, sob a poderosa influência da rádio e
da televisão.Penso que não se trata de um desenvolvimento linguístico digno de aplauso. Este
falar português, cada vez mais cheio de "chês" e de "jês", é francamente desagradável ao
ouvido, afasta cada vez mais a pronúncia em relação à grafia das palavras e torna o português
europeu uma língua de sonoridade exótica, cada vez mais incompreensível já não somente
para os espanhóis (apesar da facilidade com que nós os entendemos a eles), mas inclusive
para os brasileiros, cujo português mantém a pronúncia bem aberta das vogais e uma rigorosa
separação de todas as sílabas das palavras. A propósito do português do Brasil, vou contar
uma pequena história que se passou comigo. Na minha primeira visita a esse país, fui uma vez
convidado para um programa de televisão em Florianópolis (Santa Catarina). Logo me
avisaram que precisava de falar devagar e tentar não comer os sons, sob pena de não ser
compreendido pelo público brasileiro, que tem enormes dificuldades em compreender a
língua comum, tal como falada correntemente em Portugal. Devo ter-me saído airosamente do

  16  
desafio, porque, no final, já em "off", o entrevistador comentou: "O senhor fala muito bem
português." (Queria ele dizer que eu tinha falado um português inteligível para o ouvido
brasileiro.) Não me ocorreu melhor do que retorquir:- Sabe, fomos nós que o inventámos...Por
vezes conto esta estória aos meus alunos de mestrado brasileiros, quando se me queixam de
que nos primeiros tempos da sua estada em Portugal têm grandes dificuldades em perceber os
portugueses, justamente pelo modo como o português é falado entre nós, especialmente no
"dialecto" lisboetês corrente nas estações de televisão. Quando deixei o meu solícito dono do
quiosque lisboeta do início desta crónica, pensei dizer-lhe em jeito de despedida,
parafraseando aquele episódio brasileiro:- Sabe, a língua portuguesa caminhou de norte para
sul...Logo desisti, porém. Achei que ele tomaria a observação como uma piada de mau gosto.
Mas confesso que não me agrada nada a ideia de que, por força da força homogeneizadora da
televisão, cada vez mais portugueses sejam "colonizados" pela maneira de falar lisboeta. E
mais preocupado ainda fico quando penso que nessa altura provavelmente teremos de falar
em inglês para nos entendermos com os espanhóis e - ai de nós! - talvez com os próprios
brasileiros...

Vital Moreira, in https://www.publico.pt/2000/01/04/jornal/cronica-do-falar-lisboetes-138178

  17  
Grupo 10: Carlota Pessoa, Bárbara Brito e Maria Carvalhosa

Querido Portugal,

Temos de falar. Como sabes, o meu amor por ti tem resistido a tudo. Tu és pobre, sujo em
vários sítios e estúpido muitas vezes. Mas há em ti uma certa ingenuidade que faz com que
até os teus defeitos - e são tantos - me seduzam. Na maior parte das vezes não és mau, és só
malandro. E tens três qualidades que compensam tudo o resto: a comida, a língua e o clima.
Era precisamente sobre isto que te queria falar. Andas a desleixar-te. A comida já foi melhor.
Bem sei que a culpa não é só tua. A União Europeia proíbe umas coisas, os nutricionistas
desaconselham outras. Mas já não se encontram jaquinzinhos, os restaurantes receiam fazer
cabidela e a medicina parece ter arranjado um método infalível para determinar o que é
prejudicial à saúde: se sabe bem, faz mal.
A língua também já não é o que era. Não me entendas mal: continua a ser a tua maior virtude.
Não sei como é possível uma pessoa exprimir-se numa dessas línguas bárbaras que não
distinguem o ser do estar. Embora os franceses e os ingleses, aparentemente, não o saibam,
ser bêbado é muito diferente de estar bêbado. Mas, quando eu era pequeno, setores era o
nome que se dava aos professores. Hoje, setores é a versão actualizada da palavra sectores.
Na escola, os setores explicam o que os setores são. No meu tempo, o sector primário era a
área de actividade que compreendia a agricultura e outras formas de produção de matérias-
primas, e um setor primário era um professor do ensino básico. Agora, é tudo a mesma coisa,
assim como "être" e "to be" significam tanto ser como estar.
Outra coisa: isto do clima não pode continuar. Este verão foi muito fraco. Houve pouco sol e
a água estava fria. Não se admite. A gente tolera a corrupção, a injustiça, a inveja, o
subdesenvolvimento e tudo o mais que tu conseguires gerar. Mas tem de estar sol. Se é para
não haver verão, nem subtilezas linguísticas, nem papas de sarrabulho, mais vale irmos para a
Finlândia, onde as coisas funcionam. ?E a moral sexual das moças nórdicas é muito mais
relaxada. Tens de escolher: ou há regular funcionamento das instituições, ou há céu pouco
nublado ou limpo. Vê lá isso, por favor.

Um grande beijo,

Ricardo  
 
 
Ricardo  Araújo  Pereira,  in  http://visao.sapo.pt/opiniao/ricardo-­‐araujo-­‐
pereira/querido-­‐portugal=f797045  

   

  18  
Grupo 11: Mariana Lopes, Margarida Calheiros e Matilde Almeida

Quem fala assim não é gago nem gaga

Caros e caras leitores e leitoras,

Como todos aqueles e todas aquelas que têm estado empenhados e empenhadas no uso de
linguagem inclusiva bem sabem, há reaccionários e reaccionárias que persistem em falar e
escrever com evidente desrespeito pelo nosso esforço. Esses e essas, é importante dizê-lo, não
manifestam, com tal comportamento, uma mera discordância linguística: são verdadeiros
inimigos e verdadeiras inimigas da igualdade de género. Aqueles e aquelas que são
suficientemente teimosos e teimosas para não se conformarem ao novo modelo bem podem
alegar que isso não faz deles e delas obstinados adversários e obstinadas adversárias de uma
sociedade mais igual. Não é verdade. Podem dizer que também sonham com uma sociedade
mais igual mas menos ridícula. Não nos convencem. Bem sei que alguns e algumas linguistas
têm chamado a atenção para o facto de haver uma diferença entre género gramatical e sexo
biológico, mas estão errados e erradas. Quando afirmam que a gramática não é responsável
pelo machismo não estão a ser apenas ingénuos e ingénuas: estão a agir como criminosos e
criminosas. O nosso projecto, ao contrário do que dizem os mal intencionados e as mal
intencionadas, não é coisa de fanáticos e fanáticas. É uma tentativa de endireitar o mundo,
sintagma nominal a sintagma nominal, sintagma verbal a sintagma verbal.
O ideal era termos um idioma em que as palavras não tivessem género, como a língua persa,
falada no Irão, Tajiquistão e Afeganistão. Um facto que talvez explique os notáveis
progressos em matéria de igualdade de género que esses países registam. Por cá, teremos de
ficar satisfeitos e satisfeitas com esta língua enjeitada, que tem problemas difíceis de resolver.
Por exemplo, como tornar inclusiva a frase “O João e a Maria foram juntos ao cinema”? A
palavra “juntos”, no masculino, oprime obviamente a Maria. Mas a frase “O João e a Maria
foram junto e junta ao cinema” parece ser agramatical. Só vejo uma solução: que o João e a
Maria não vão ao cinema. Pelo menos até que estejamos habilitados e habilitadas a encontrar
uma forma de eles poderem assistir a filmes em liberdade e segurança.
Os ingleses e as inglesas obtiveram há pouco tempo uma conquista importante: o metro
deixou de saudar os passageiros e as passageiras dizendo “Good morning, ladies and
gentleman”, ou seja, “Bom dia senhoras e senhores”, e passou a dizer “Good morning
everyone”, isto é, “Bom dia a todos”, para não excluir as pessoas que não se identificam
como homem nem como mulher. O problema é que, em português, a frase “Bom dia a todos”
(que era, se bem estamos lembrados e lembradas, a forma primitiva de “Bom dia a todos e
todas”) exclui os mesmos indivíduos. Para superar essa dificuldade, a filósofa brasileira
Marcia Tiburi acaba de editar o livro “Feminismo em comum para todas, todes e todos”.
Percebendo bem que a formulação “todos e todas” não era completamente inclusiva, Tiburi
acrescentou a forma “todes”.
Só dizendo “todes” conseguimos incluir toda a gente (por enquanto). O que significa que os
algarvios e as algarvias sempre foram inclusivos e inclusivas, mesmo sem o saberem. Um
abraço para esse povo. Quem fala assim não é gago. Nem gaga.

Ricardo Araújo Pereira, in http://visao.sapo.pt/opiniao/ricardo-araujo-pereira/2018-02-22-


Quem-fala-assim--nao-e-gago-nem-gaga

  19  

S-ar putea să vă placă și