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Se tudo permanece válido no objetivo fundador do comunismo

PENSANDO COM MARX (I)


A compilação de textos que ora
marxiano, tudo mudou nas condições em que ele chega à ordem do
dia. O ponto decisivo é provavelmente este: não é mais apenas para se transforma em livro, foi escrita entre
emancipar o proletariado da exploração capitalista, mas para eman- 1998 até os dias atuais. Está inclinada no
cipar todo o gênero humano a um capitalismo que agora ameaça a
própria existência de um planeta habitável e uma sociedade vivível. A
CAPITALISMO DA MISÉRIA, ORGANIZAÇÃO REVOLUCIONÁRIA, sentido de mais evidenciar a caminhada
da formulação da nova organização ne-
causa revolucionária de modo algum perdeu sua dimensão de classe TRANSIÇÃO COMUNISTA E EMANCIPAÇÃO cessária e capaz de carregar com denodo
real - ela é e deve permanecer radicalmente anticapitalista -, mas está a velha e vital bandeira da emancipação
constantemente adquirindo um significado antropológico universal.
humana, no caso, do deus capital que se
Além de todas as nossas razões para lutar, e estamos em sua mais gri-
ergueu há séculos e hoje, do alto dos ape-
tante proximidade, lutamos para salvar o gênero humano do desastre
potencialmente final a que leva um capitalismo selvagem em loucura tites do estágio superior do capital finan-
derradeira. E é em se tirando todas as conclusões dessa formidável ceiro, depois do surgimento do novo ca-
mutação que, parece-me, é necessário reconstruir o revolucioná- pital produtivo de base microeletrônica,
rio pensamento-Marx do nosso tempo, tanto no objetivo histórico, vai devorando as conquistas de sua civi-
quanto na estratégia política e na concepção organizacional. lização, destruindo as bases territoriais e
Este é especialmente o tempo dos livros que lideram essa boa luta. fundamentos práticos e teóricos do pro-
Desejo de todo o coração este sucesso a este que vamos ler.
gresso nas cidadelas nacionais.
LUCIEN SÈVE
Os trabalhos, como não poderia
deixar de ser, tem como pressuposto essa
realidade histórica contemporânea, essa
avassaladora marcha do capital, teórica e
prática. Não se trata neles, portanto, de
Paulo Alves de Lima Filho um exercício pontual, historiográfico,
(1951), graduação e pós-graduação em descompromissado, porém, de desco-
Economia na Universidade da Amizade brir e revelar o tecido das relações entre

PENSANDO COM MARX


dos Povos “Patrice Lumumba”, Moscou. as classes e grupos na construção da sua

Paulo Alves de Lima Filho


Doutorado na PUC-SP, em Ciência Po- história, através dos quais pudéssemos
lítica e Pós-doutorado em Ciência Polí- vislumbrar os velhos e novos caminhos
tica na Unesp-Marília. Coordenador do da sua luta no sentido de aprofundar ou
IBEC – Instituto Brasileiro de Estudos mitigar a alienação ou a emancipação
Contemporâneos. Professor da FATEC humana.
Mococa - SP. Paulo Alves de Lima Filho

LUTAS ANTICAPITAL
Pensando com Marx (I)
Capitalismo da miséria, organização
revolucionária, transição comunista e
emancipação

Paulo Alves de Lima Filho


PAULO ALVES DE LIMA FILHO

Pensando com Marx (I)


Capitalismo da miséria, organização
revolucionária, transição comunista e
emancipação

1ª edição
LUTAS ANTICAPITAL E ARAMARANI
Marília – São Paulo - 2018
Editora LUTAS ANTICAPITAL

Editor: Julio Okumura

Conselho Editorial: Andrés Ruggeri (Universidad de Buenos Aires -


Argentina), Bruna Vasconcellos, Candido Giraldez Vieitez (UNESP), Dario
Azzellini (Cornell University – Estados Unidos), Édi Benini (UFT), Fabiana
de Cássia Rodrigues (UNICAMP), Henrique Tahan Novaes (UNESP), Julio
Cesar Torres (UNESP), Lais Fraga (UNICAMP), Mariana da Rocha Corrêa
Silva, Maurício Sardá de Faria (UFRPE), Neusa Maria Dal Ri (UNESP),
Paulo Alves de Lima Filho (FATEC), Rogério Fernandes Macedo (UFVJM).

Projeto Gráfico e Diagramação: Mariana da Rocha Corrêa Silva e


Renata Tahan Novaes
Capa: Mariana da Rocha Corrêa Silva
Revisão e organização do livro: Fábio Castro
Revisão final: Henrique Tahan Novaes

Impressão: Renovagraf

Lima Filho, Paulo Alves de.


L732p Pensando com Marx (I) /Paulo Alves de Lima Filho. –
Marília: Lutas anticapital; São Paulo: Aramarani, 2018.
280p.

Inclui bibliografia.

ISBN 978-85-53104-09-3

1. Marx, Karl – 1818-1883. 2. Engels, Friedrich –


1820-1895. 3. Comunismo. 4. União Soviética – Política
Econômica – 1986-1991. I. Título.

CDD 335.4
Ficha elaborada por André Sávio Craveiro Bueno CBR 8/8211
FFC – UNESP – Marília

1ª edição: novembro de 2018


Editora Lutas anticapital
Marília –SP
edlutasanticapital@gmail.com
lutasanticapital.com.br
Sumário

Prefácio – O futuro está do nosso lado..............................................7


Lucien Sève

Introdução.....................................................................................13

Parte I - Organização
1 – A organização necessária..........................................................23
2 – Carta aos camaradas................................................................53
3 - Uma palestra no núcleo do PSOL de Santa Cecília – São Paulo.97
4 – Nossos fundamentos...............................................................113
5 - Sobre o projeto de nossa revista e nosso inevitável movimento.123

Parte II - Revoluções burguesas e socialistas


6 - A falência da transição comunista e o retorno do capitalismo à
Rússia - a propósito do 100º aniversário da Revolução Russa......149
7 – Revolução tecnológica, crise do capital, desmoronamento do
Socialismo Real............................................................................177
8- Sobre as revoluções burguesas: fundamentos da sua dinâmica e
limites contemporâneos do capital................................................195
9 - A Poeira dos mitos: revolução e contrarrevolução nos capitalismos
da miséria....................................................................................233

Parte III - Revolução Cubana


10 - Che Guevara e a construção do homem novo na Revolução
Cubana........................................................................................249
11 - Decifrando a esfinge: Che Guevara e a Economia Política da
revolução cubana........................................................................259
A Expedito José dos Santos e aos que tombaram, lutaram e ainda
lutam pela causa da emancipação humana.
Pensando com Marx (I) | 7

Prefácio - O futuro está do nosso lado

Aqueles e aquelas que estão lutando para "transformar


o mundo" – há uma terrível necessidade disso - sabem por
experiência própria que essa luta tem, inevitavelmente, altos e
baixos, momentos faustosos e períodos infelizes e que mesmo
nos sucessos é possível haver fontes de falhas - é a
dialética. E há que reconhecer que hoje, no geral, esta batalha
de vital importância, atravessa em todo o mundo uma época
difícil.
Isso é verdade na Europa, onde durante décadas dominou
essa política neoliberal na qual Margaret Thatcher e Ronald
Reagan se engajaram no momento em que a União Soviética
afundava com todo o seu campo e onde os cantores do capital
proclamaram o “fim da história", estacionada definitivamente,
segundo eles, na "democracia ocidental". Mas em 2008, a
crise mais profunda do sistema capitalista em quase um
século, chegou ao fim, uma crise que muitos fatos mostram
que ela ainda não desapareceu, que se poderia até estar na
véspera de mergulhar nela ainda mais fundo. Sempre a
dialética! Mas não torna automática a ascensão das forças da
emancipação social, uma vez que sua própria crise política e
ideológica ainda não foi realmente superada. De modo que há
uma face terrível que faz parecer estarmos a reviver algo do
início do século XX, onde a crise memorável do capital, em
1929, não levou à revolução nos países mais avançados, mas
à instauração do fascismo e dos horrores da Segunda Guerra
Mundial. Na Europa de hoje, dez anos depois da grande crise
de 2008, é a extrema direita que vem ganhando novamente
em numerosos países, ameaçando os povos com pesadelos
inéditos.
Isso também é verdade na América Latina, onde, após um
período estimulante, marcado por muitas conquistas
democráticas e avanços populares, a contraofensiva das
piores forças conservadoras e reacionárias marca pontos por
toda parte, fortemente apoiada e até mesmo estimulada pelo
8|P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

grande capital estadunidense, que provisoriamente aumenta o


reinado de um dos piores políticos bilionários já criados pelo
cinismo dos ianques. Todos os progressistas da Europa
viveram como seu próprio drama o cenário apavorante do
golpe de Estado a frio que viveu o Brasil desde a demissão
sem fé nem lei da Presidente da República Dilma Rousseff e a
prisão exorbitante do grande estadista Lula até a eleição de
Jair Bolsonaro, uma farsa trágica que nos faz evocar aquela
eleição alemã de 1933, a partir da qual se assinala a data do
martírio de mais de um povo. Por isso, é com um intenso
sentimento de solidariedade com a luta corajosa liderada pelo
autor deste livro e todos os seus companheiros que escrevo
este prefácio.
Em momentos tão difíceis de viver, nada é mais
necessário para a efetiva busca da luta do que a calma análise
da situação histórica geral, sem embelezá-la ou enegrecê-la. E
para conduzi-la tão mais justa que possível, nada é mais útil
do que "pensar com Marx hoje", uma fórmula que nos une
intimamente através do oceano, já que é o próprio significado
deste livro e o título da tetralogia em que venho trabalhando
há quinze anos, e espero terminar em breve o último volume
dedicado ao comunismo.
Para dizer aqui apenas uma palavra e, portanto, muito
brevemente, pois requer análises muito mais vastas, a tese
desenvolvida neste último volume é a seguinte: o terrível
fracasso do que foi chamado de "socialismo" - a implosão da
União Soviética com todo o seu campo e a dissolução, no
essencial, da maioria do movimento comunista internacional -
foi em última análise, devida à prematuridade histórica ainda
persistente da transição do capitalismo para uma sociedade
sem classes. A passagem anunciada por Marx no Manifesto
Comunista, mas tão genialmente por ele antecipada, tomada
sem poder avalia-la dois séculos à frente do curso da história,
porque ainda se estava longe do que ele chamou de
"desenvolvimento universal de forças produtivas" e ainda mais
do desenvolvimento universal de capacidades entre a massa
Pensando com Marx (I) | 9

de indivíduos, sem as quais eles não poderão estar em posição


de tomar conta de sua própria história. A revolução política
provou ser possível em grandes países com desenvolvimento
retardado, mas por essa mesma razão a emancipação social
radical provou ser impossível - foi o drama que levou ao
stalinismo, ao abandono catastrófico de requisitos comunistas
sob o nome desde então usurpado de socialismo. E nos países
capitalistas avançados, foi a revolução política que se mostrou
impossível, porque o capitalismo ainda não estava no fim de
suas possibilidades. A ideologia dominante apresenta a todos
o século XX como aquele em que o comunismo foi ensaiado e
se mostrou irremediavelmente não somente criminoso como
inviável. Esta é uma maneira realmente estúpida de contar a
história, pela simples razão de que no século passado nada
poderia ter existido para o bem do comunismo, mas apenas
esse esboço seriamente deficiente e por essa mesma razão
muito inviável do que tem sido chamado de "socialismo", mas
que foi essencialmente uma tentativa estatista de alcançar,
em marcha forçada, o capitalismo avançado por parte dos
capitalismos retardatários, os quais, não casualmente,
acabaram quase todos voltando ao capitalismo.
A questão propriamente crucial a se colocar àqueles e
àquelas que estão lutando contra a selvageria da velha ordem
das coisas hoje é, então, a seguinte: a humanidade finalmente
terminou com a imaturidade histórica das condições de
passagem a um pós capitalismo, imaturidade onde é
permitido ver a fonte mais profunda dos dramas do século
XX? Eu vejo fortes razões para pensar que isso está em
andamento. Razões negativas primeiro: pela primeira vez, o
capitalismo se torna diretamente incompatível com o
progresso da humanidade, mesmo com sua sobrevivência. É
ele, é a sua loucura do lucro privado que ameaça a vida do
nosso planeta a curto prazo e, de modo menos falado, mas
não menos grave, a existência civilizada do gênero humano. E
um número cada vez maior de mulheres e homens está se
tornando consciente disso, tal como estamos experimentando
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agora na França com um movimento social inédito, ambíguo


no sentido de que nele participam lado a lado, pessoas muito
à direita e outros muito à esquerda, mas poderoso o suficiente
para perturbar um poder estatal que parecia inabalável. Rosa
Luxemburgo enunciou o grande dilema do século XX na
fórmula: socialismo ou barbárie; podemos expressar o que diz
o século 21: pós capitalismo ou catástrofe.
E há também razões cada vez mais positivas para
pensar que a prematuridade de uma sociedade sem classes
está chegando ao fim. Lembrei-me do que Marx defendia como
sendo os pressupostos fundamentais exigidos pela saída do
capitalismo. Mas no que diz respeito ao primeiro, o
desenvolvimento universal das forças produtivas, estamos
bem ali, com uma verdadeira explosão de conhecimento e
poderes humanos; e quanto ao segundo, o desenvolvimento
universal das capacidades individuais, o quadro é mais
contrastado, a gestão capitalista impede tanto quanto
estimula tal desenvolvimento, mas o movimento global
incessante pela emancipação das mulheres é por si só a prova
de que é também a tendência irresistivelmente profunda do
nosso tempo. Sim, realmente, o comunismo está finalmente
chegando - momento solene de toda a história humana - à
maturidade objetiva.
Cabe a nós, então, desempenhar nosso papel ativo e
inventivo nesses assuntos. Devido à imaturidade objetiva do
comunismo que até hoje lhe correspondeu, é crucial notar-se
bem, uma pouco evitável imaturidade do pensamento e
prática política correspondente. O gênio de Lênin não poderia
possibilitar que ele pensasse em revolução tal como ela está
na agenda nas condições do século XXI. E por que não dizer,
para a mesma escola de Lenin, que um revolucionário não
poderia cometer pior erro para esconder seus próprios
fracassos, colocando-se, assim, de modo incapaz de supera-
las: a força hoje demonstrada em todos os lugares pela reação
política em todo o mundo, em seus vários aspectos, incluindo
os piores, é em parte significativa feita da fraqueza de um
Pensando com Marx (I) | 11

pensamento ainda estagnado e, consequentemente, da prática


revolucionária que exige o nosso tempo. Pois, se tudo
permanece válido no objetivo fundador do comunismo
marxiano, tudo mudou nas condições em que ele chega à
ordem do dia. O ponto decisivo é provavelmente este: não é
mais apenas para emancipar o proletariado da exploração
capitalista, mas para emancipar todo o gênero humano a um
capitalismo que agora ameaça a própria existência de um
planeta habitável e uma sociedade vivível. A causa revolu-
cionária de modo algum perdeu sua dimensão de classe real -
ela é e deve permanecer radicalmente anticapitalista -, mas
está constantemente adquirindo um significado antropológico
universal.
Além de todas as nossas razões para lutar, e estamos
em sua mais gritante proximidade, lutamos para salvar o
gênero humano do desastre potencialmente final a que leva
um capitalismo selvagem em loucura derradeira. E é em se
tirando todas as conclusões dessa formidável mutação que,
parece-me, é necessário reconstruir o revolucionário
pensamento-Marx do nosso tempo, tanto no objetivo histórico,
quanto na estratégia política e na concepção organizacional.
Inclusive dando inventivamente vida a esta visão muito
penetrante de Gramsci: para a revolução vitoriosa se faz
necessário conquistar a hegemonia a mais ampla não só
política, mas ético-cultural em favor das transformações
sociais parciais que afetam a raiz da sociedade de classes,
fazendo expandir, assim, o irresistível processo de uma
revolução pacífica amplamente majoritária. Isto coloca
urgentemente na agenda uma batalha de ideias anti e pós
capitalista de amplitude e perseverança sem precedentes. A
arma absoluta contra a qual o pior fascismo fica impotente é a
tomada de consciência popular.
A luta é amarga, mas é o momento de pensar
corajosamente, falar com ambição, criar em toda parte a
motivação plena para a iniciativa transformadora.
12 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

Este é especialmente o tempo dos livros que lideram


essa boa luta. Desejo - de todo coração - sucesso a este que
vamos ler.

Lucien Sève*

Paris, 25 de dezembro de 2018

*Lucien Sève, filósofo francês, nascido em 1926, comunista,


membro do Comitê Central do PCF de 1961 a 1994. Autor de
vasta obra, escreve agora sua quadrilogia, Penser avec Marx,
à espera do livro IV (Penser avec Marx aujourd'hui. I. Marx et
nous, Paris: Éditions La Dispute, 2004; Penser avec Marx
aujourd'hui. II. L’homme? Paris: Éditions La Dispute, 2008;
Penser avec Marx aujourd'hui. III. La philosophie? Paris,
Éditions La Dispute, 2014). Em 2010 abandona o PCF, junto
com outros intelectuais, para fazer parte da Associação dos
Comunistas Unitários, casa comum dos comunistas, que por
sua vez, participa, desde 2013, da organização Ensemble, que
une todos os grupos comunistas, socialistas, ecologistas e de
gênero, atual primeira força política de esquerda da França
Pensando com Marx (I) | 13

Introdução

A compilação de textos que ora se transforma em livro,


foi escrita entre 1998 até os dias atuais. Está inclinada no
sentido de mais evidenciar a caminhada da formulação da
nova organização necessária e capaz de carregar com denodo
a velha e vital bandeira da emancipação humana, no caso, do
deus capital que se ergueu há séculos e hoje, do alto dos
apetites do estágio superior do capital financeiro, depois do
surgimento do novo capital produtivo de base microeletrônica,
vai devorando as conquistas de sua civilização, destruindo as
bases territoriais e fundamentos práticos e teóricos do
progresso nas cidadelas nacionais.
Os trabalhos, como não poderia deixar de ser, tem
como pressuposto essa realidade histórica contemporânea, a
avassaladora marcha do capital, teórica e prática. Não se trata
neles, portanto, de um exercício pontual, historiográfico,
descompromissado, porém, de descobrir e revelar o tecido das
relações entre as classes e grupos na construção da sua
história, através dos quais pudéssemos vislumbrar os velhos e
novos caminhos da sua luta no sentido de aprofundar ou
mitigar a alienação ou a emancipação humana.
Seu compromisso evidente é o de formular caminhos
para a emancipação humana, ainda repousando nos ombros
dos assalariados e de seus núcleos de trabalhadores mais
vitais para a reprodução do capital. É assim que abrem e
fecham esta coletânea os trabalhos que tratam da formulação
do que viria a ser a nova (e nem tão nova, a bem da verdade)
organização dos comunistas. Como pressuposto teórico, pois,
o diálogo com Marx, com as suas formulações nesse sentido e
do processo histórico que daria um salto fundante na
possibilidade de realização histórica da transição à nova
sociedade que transcenderia o capitalismo, da transição
comunista.
14 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

Sem demérito para com as demais vertentes da busca


teórica e prática por essa nova sociedade, a realização da
revolução teórica de Marx, ao trazer para as lutas terrenais o
campo vital da emancipação humana, ofereceu aos
materialistas em primeiro lugar e a todos os revolucionários,
de modo geral, um universo teórico capaz de nos garantir um
mínimo de efetividade desejada para a consecução e vitória da
luta de classes contra a alienação do capital.
Garantia essa que não repousa na capacidade de
seguir um código ou qualquer krestomatia, ou seja, um
compêndio de formulações capaz de traduzir o mais
corretamente possível o movimento histórico e as categorias
das relações sociais, de modo a sempre, em qualquer
circunstância, encontrar o resultado esperado na marcha
rumo ao futuro. Infelizmente, tal contorção metafísica passou
a imperar após a consolidação da revolução Russa, resultando
na criação de uma ideologia específica, um marxismo
bibliesco, distante de Marx.
Esta nova ideologia, mais além de sugerir-se um
código fechado, espraiava-se por décadas de história mundial,
das revoluções e da revolução russa, em particular, trecho
esse que exigia reinterpretação, de modo a libertá-lo de seu
traje metálico e fazê-lo novamente um tecido vivo, aberto à
investigação e às esperanças revolucionárias. Dentre outros
momentos decisivos, temos a teoria do partido revolucionário,
a emancipação e a transição comunista, o socialismo como
formação socioeconômica, a forma particular da entrada dos
países no sistema mundial capitalista e, como consequência,
sobre o caráter de suas revoluções burguesas conservadoras,
em particular o significado da invenção e realização do Novo
Mundo e sua projeção no sistema mundial do capital. Como
corolário, o impacto dessa realidade particular na luta
emancipadora de seus povos.
Dessas indagações surgirão tais categorias como o
capitalismo da miséria como forma histórica de realização dos
capitalismos do mundo ex-colonial ibérico; os dois conceitos
Pensando com Marx (I) | 15

centrais para a caracterização das revoluções, conservadoras


ou radicais em suas variantes americanas ou europeias; o
socialismo de matriz soviética como uma invenção fora do
universo teórico de Marx, transformada em axioma
interpretativo excludente da transição comunista, esta sim,
forjada por ele; o comunismo emancipacionista de Marx e seu
partido, distintos da tradição germano-russa do partido
lassalo-eisenachiano do Programa de Gotha e potenciado pela
pós-revolução Russa, dentre outras coisas depreciador
imanente do papel vital da teoria no movimento de
emancipação, concebido por Marx. Embora o partido
emancipador, concebido por Lenin em sua Carta a um
camarada sobre questões de organização, de 1902, seja filho
legítimo da visão de Marx, aquele que vingará, sob o
movimento predador de Stalin e acólitos, em nada se
assemelhará àquele, transformando-se em forma universal do
marxismo soviético e mundial.
Este e outros momentos desse período histórico que
fez nascer o marxismo, terão abrigo nos trabalhos que ora
vem a público sob a forma de livro. Sua intenção explícita foi
a de limpar a verdadeira estrebaria de Áugias em que se
transformou o comunismo oficial, que ainda bloqueia a
entrada das novas gerações na luta revolucionária sob a
bandeira comunista da emancipação, plena da generosa
aspiração libertadora da luta das classes oprimidas, de seu
movimento coletivo, solidário e consciente por emancipar-se
do poderoso deus capital.
Outros momentos vitais dessa luta, tal como aquela
contra a catástrofe ambiental, causada pelo capital, a
ameaçar os próprios fundamentos da vida humana no
planeta, e que torna a luta anticapital uma urgência
urgentíssima, surgirão nos próximos trabalhos que comporão
os futuros livros, já no prelo. Momento essencial dessa
catástrofe, aqui lançado e tratado sob vários ângulos, foi o
surgimento do quarto órgão da máquina, descoberto por
16 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

Sérgio Bacchi1, fato que fez emergir o novo capital produtivo


de base microeletrônica, essencial para a compreensão da
força e destrutividade do novo capital financeiro que o
absorveu, que põe em perigo a existência da vida humana no
planeta.
Importa dizer que este trabalho se soma a muitos
outros, ora em curso em vários países, por parte de
pensadores que se propõem a repensar, com Marx, a trajetória
teórica e prática do pensamento e da ação humanas no último
século, em especial a dos revolucionários e povos que se
jogaram na fogueira da transformação social em busca de
novos horizontes emancipados para si e para a humanidade.
Cumpre lembrar o esforço de Lucien Sève, do núcleo de
historiadores marxistas ingleses, e de tantos outros mais na
Europa e em outros continentes. 2
Por último, todos esses temas se encontram
entranhados ao tecido da interpretação da realidade brasileira
e da transformação de sua sociedade. Procura enfrentar essa
difícil tarefa, acossada, neste momento, pela quarta etapa de
sua contrarrevolução de longo ciclo, iniciada em 1964, com o
golpe que derrubou o presidente Jango Goulart, e instalou em
seu lugar uma ditadura civil-militar que se manteve no poder
até 1985. Muito embora tenha ocorrido uma transição
democrática e se alcançado a promulgação de uma nova
Constituição, em 1988, o estado e a economia da contrarre-
volução permaneceram intactos.
Ao confundirem a nova reprodução política da ordem,
ou seja, o fim da ditadura política, com o fim da

1 Bacchi, Sergio. La crisis final del capitalismo. El hombre y la máquina.


Santiago de Chile, Ernesto Carmona Editor, 2008.
2 Lucien Sève, nascido em 1926, escreve seu opus, a quadrilogia Penser

avec Marx, a desdobrar-se sobre a maior parte dos temas teóricos e


práticos problemáticos do século passado e presente. Na Rússia cumpre
lembrar o legado de Teodor Oizerman, recém falecido, sobre temas de
filosofia e testemunhos sobre a produção e reprodução da vida teórica na
URSS. A produção dos ingleses é bem conhecida por todos os
interessados, todos amplamente traduzidos no Brasil: Eric Hobsbawn,
Perry Anderson, E.P. Thompson, Christopher Hill, etc.
Pensando com Marx (I) | 17

contrarrevolução, as forças democráticas aceitaram habitar o


castelo do inimigo, coabitando com ele, na vã ilusão de
viverem uma situação de igualdade. De tal forma que a
terceira fase da contrarrevolução, ocorrida entre 1985 e 2016,
por ocasião do início da quarta fase desta, denominada por
mim de Revolução na Contrarrevolução - cujo ponto decisivo
foi o impedimento da presidente eleita, Dilma Rousseff -,
transcorreu sob o império de uma tabula rasa inexistente, o
que levou à estratégia mirabolante de estender sobre o
território da contrarrevolução econômica um projeto
neodesenvolvimentista, de ousar teorizar isso como se fosse
uma certa revolução silenciosa. Revolução essa, se
subentende, da qual o povo brasileiro não havia sido avisado,
uma revolução pelo alto, promovida pelo Estado e suas
políticas públicas.3 Revolução essa, que, supostamente,
conduziria o capitalismo nativo ao patamar pretendido de
modernidade, de capitalismo moderno. Esta estratégia
melhorista, de adensamento emancipador das políticas
públicas, sociais e econômicas, supostamente poderia saltar
por sobre a contrarrevolução e sair ilesa do outro lado,
espelhando sua glória, coisa que não poderia, como de fato
não ocorreu.
Não só a estratégia estava equivocada como a
contrarrevolução, alimentada pela ignorância dos promotores
dessa revolução silenciosa, desde o executivo, pode retomar
seu projeto original, de 1964, com ímpeto juvenil renovado.
Abertas as portas e janelas para a entrada da imensa
insatisfação de parcela importante do povo para com os
efeitos da crise econômica, souberam as classes proprietárias,
seu estado e mídia monopolista, operar uma fantástica
regressão que culminou com a eleição de um porta voz de
terceiro escalão da ordem contrarrevolucionária. Se a
revolução na revolução de 1964 dera lugar a um general ex-

3 Vide Reis Velloso, João Paulo e Roberto Cavalcanti de Albuquerque


(orgs). Verdadeira revolução brasileira. Integração de desenvolvimento e
democracia. RJ, José Olympio, 2008.
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cavalariano, Costa e Silva – motivo de chacota nacional –


agora a revolução na contrarrevolução deu lugar a um ex-
capitão, auto exonerado a pedido de seus superiores, de mal
com o saber letrado e a língua nativa, possuidor de uma
plataforma de intolerância ideológica vinda da Guerra Fria e
da repressão assassina da ditadura.
A revolução na contrarrevolução, manobra em leque
com vários componentes – e evidente apoio externo (como
obra da Operação Atlanta)4 -, que passam pelo Mensalão e
depois pela Lava Jato com conivência do STF, mídia e polícia,
opera a desmontagem dos pilares políticos da falecida Nova
República e repolariza as forças conservadoras e
contrarrevolucionárias em torno da forte liderança de um
homem medíocre, ou seja, altamente preparado para cometer
todo tipo de barbaridades regressivas, da entrega da
Amazônia às mineradoras e repressão aos índios e toma de
suas terras, à repressão ampla, proclamada em alto e bom
som, chegando até a alardear a necessidade de matar uns
trinta mil opositores, caso fosse necessário.
Pela segunda vez, uma no século XX e outra no XXI, a
burguesia nativa, associada e transnacional declararam em
alto e bom som, sua antipatia congênita à conquista da plena
emancipação econômica e política da nação. A ingênua
estratégia melhorista dos salvadores pequeno burgueses do
capitalismo, em seu afã de leva-lo pelo bom caminho da
modernidade, conseguiu ofertar ao bloco antidemocrático,
antinacional e antipopular a oportunidade de realizar seus
macabros sonhos neoliberais. Estamos testemunhando o seu
primeiro sono, o gigante ainda ressona suavemente. Estamos
à espera de seu ronco avassalador e seus escarros maléficos
nas demais fases.
Estes trabalhos apontam para a urgência de sairmos
dessa obscuridade e adentrarmos o dia ensolarado das lutas
de amanhã, quando saibamos construir a teia da unidade do

4 Vide https://www.cartacapital.com.br/politica/lula-e-a-joia-da-coroa-
do-plano-atlanta.
Pensando com Marx (I) | 19

povo, dos trabalhadores, dos sofredores da ordem, dos


humilhados e ofendidos seculares. Só então seremos dignos
dele, quando, enfim, saibamos ajudar a criar sistemática e
metodicamente o movimento de emancipação dos trabalha-
dores, tal como proclamava Marx e os trabalhadores
europeus, em 1864, ao criarem a Associação Internacional
dos trabalhadores.

Paulo Alves de Lima Filho

São Paulo, 18 de novembro de 2018


20 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O
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Parte I - Organização
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1 - A organização necessária
Um espectro ronda a emancipação dos trabalhadores
nos capitalismos da miséria da órbita ex-colonial. O
espectro da reiteração secular ininterrupta do
salvacionismo capitalista.

A vitória eleitoral do candidato da ultra-direita, ex-


capitão, político profissional, Jair Bolsonaro, tem múltiplos
significados.
O primeiro deles, a derrota do lulismo e o exacerbar-se
das contradições no seio do eixo popular da política oficial.
Completa-se o fim da Nova República nos marcos de um novo
caráter da reprodução política, após esboroarem-se os dois
eixos que controlavam a já agora velha Nova República, o eixo
do capital e o popular.
A crítica da estratégia do eixo popular é vital para a
criação de uma terceira força de emancipação, fora dos
marcos do salvacionismo capitalista. Um forte eixo popular
anticapital seria vital para a criação de um movimento de
emancipação dos trabalhadores. Capaz de inflexionar o
salvacionismo capitalista em seus polos mais socializantes,
conferindo, desse modo, àquele movimento uma força
redobrada, capaz de atropelar os marcos do capitalismo da
miséria.
O fim da Nova República é também o da primeira
Independência, esgotados os bons esforços burgueses em
realizar a revolução democrática e econômica nacional nos
marcos de um projeto capitalista. A recusa oficial da
burguesia em conquista-la, ao promover sua contrarrevolução
de 1964, continuada desde então e agora em sua quarta fase 5,

5 Entre Castello e Costa e Silva, ocorre uma ruptura, quando a linha


dura atropela e hegemoniza a contrarrevolução até 1985. Por isso, 4
fases. A bem dizer, após Bolsonaro, se abrirá uma quinta, pelo visto.
Veremos!
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nesta etapa da revolução na contrarrevolução 6, na qual o


retorno à plena liberdade do capital subordinado se torna
uma meta definitiva, indica havermos adentrado a fase
histórica da destruição do estado nacional e da entrada plena
da nação no palco da reversão neocolonial. 7
O esgotamento histórico da primeira independência,
mais uma etapa da longa revolução burguesa conservadora
portuguesa, conferirá ao Brasil o seguimento de seu curso
solidamente ancorado no passado colonial, escravista do e
para o capital. A nova etapa da luta social só poderá ser a da
conquista da Segunda Independência, que simultaneamente
realize a revolução democrática e nacional como revolução
anticapital e de trânsito à superação desta relação social.
O parafascismo neocolonial conseguiu organizar-se,
encontrar um guia e condensar-se em um programa e
alcançar o poder político pela via eleitoral. É preciso estar à
altura dos múltiplos desafios postos no nosso caminho.
Tal momento histórico crucial exige que ousemos
promover o surgimento do emancipacionismo dos trabalha-
dores no sentido da proposta de Marx, expressa no Manifesto
e na criação a AIT (Associação Internacional dos
Trabalhadores) em 1870. Somente assim arrancaremos as
lutas sociais de sua mesmice salvacionista capitalista que
assola o movimento dos trabalhadores a quase um século.

A teoria e o intelectual coletivo

Desde o princípio, o projeto NEC-IBEC se pôs como


vertente de ruptura com os padrões de reprodução do

6 Porque a destruição dos fundamentos políticos, econômicos e sociais da


3ª fase. Então, revolução. Assim como a transição de Costa e Silva é
chamada de revolução na revolução.
7 SAMPAIO JR, Plinio de Arruda. Crônica de uma crise anunciada: crítica

à economia política de Lula e Dilma. São Paulo: SG-Amarante, 2017.


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comunismo tradicional, vigente no século XX. 8 Era um projeto


teórico-prático que punha relevo na criação de um intelectual
coletivo dedicado a dialogar com Marx e alcançar, por meio
disso, jogar luz sobre os debates contemporâneos. Intelectual
coletivo que viesse a contaminar o processo histórico com o
resultado de suas conclusões e, assim, contribuir para o
avanço da emancipação dos trabalhadores. Processo que
alcançaria, inevitavelmente, o estágio de organização política,
de modo a mais eficazmente atuar na luta de classes e que,
sob qualquer hipótese, não abandonaria sua vinculação à
produção de teoria e que preservaria esta forma contra os
ventos e marés do militantismo partidário tradicional e do
inevitável assédio dos práticos. Organização que tivesse seu
sentido na capacidade de produção teórica e empenho na
busca de forjar um vasto movimento de emancipação dos
trabalhadores.
Na ausência de um centro de produção intelectual
revolucionária no campo Marx, de uma nossa universidade –
embora houvéssemos concebido e realizado o arranque do
projeto da universidade popular - as três primeiras gerações
de jovens militantes estavam compostas por alunos que se
dirigiram, em sua maioria, para a estreita vida acadêmica
nacional das universidades públicas.
A ruptura com o padrão reprodutivo do comunismo
tradicional estava na base do projeto. Tratava-se de criar um
intelectual coletivo como proposta de elevação permanente do
conhecimento e, consequentemente, da produção teórica
revolucionária.
Primeiramente, este novo ente social se realizaria no
diálogo permanente entre alunos e professores, de modo a
transformar cada um deles em desbravadores de campos
teóricos esquecidos ou pouco estudados após a morte de
Marx, ao mesmo tempo críticos das vicissitudes da teoria que

8 Ver Capítulo 5 deste livro e LIMA FILHO, Paulo Alves de. O PUP e o
marxismo para o século XXI: notas sobre uma práxis em processo. II
encontro brasileiro de educação e Marxismo. Curitiba: UFPR, 2006.
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se seguiu após a morte deste, assim como da experiência


histórica do movimento revolucionário, antes de tudo da
Revolução Russa. Campos esses que seriam sucessivamente
abordados por novos críticos de modo a conformar uma
legião.
Esta primeira fase estava dirigida a promover por todos
os meios possíveis a transição desses alunos da graduação
aos estágios da pós-graduação, culminando com sua entrada
na elite das universidades públicas. O lema natural dessa fase
era o de alcançarem a máxima perfectibilidade individual e
coletiva na construção desse trajeto do intelectual coletivo.
Tal movimento impunha, assim, um compromisso
ético entre seus membros, a ser prosseguido por todos em
todas as etapas de sua evolução. Ou seja, todos os seus
membros se transformariam, com o tempo, em agentes dessa
ação coletiva, de modo a prosseguir a seleção dos melhores
alunos e sua catapultagem à academia, enquanto o
movimento de emancipação não pudesse oferecer a esses
quadros um outro meio de sobrevivência material aliado à sua
obrigação de elevação teórica ininterrupta. Estabelecia-se o
processo de criação de um coletivo de produtores e
reprodutores de teoria.
O intelectual coletivo não estava, então, concebido
para ser um diletante estudioso simplesmente, mas um
pensador do movimento de emancipação, capaz de responder
às interrogações do passado e propor caminhos para este no
presente. Concebia-se como núcleo teórico do movimento de
emancipação dos trabalhadores a ser forjado no processo de
sua constituição e evolução. Destinava-se a alcançar o estágio
de instância de uma organização política revolucionária.
Esta organização, por sua vez, teria que superar as
mazelas de sua concepção nos dois séculos precedentes,
assim como os postulados teóricos que levaram a esses
descaminhos nada edificantes da proposta emancipadora
original de Marx. Teria, então, que ser, a um só tempo,
momento da máxima consciência teórico-prática possível e
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instrumento do movimento de emancipação, coisa que os


partidos anarquistas, comunistas e socialdemocratas haviam
de há muito deixado de ser. Seria a atualização do Manifesto
Comunista dos revolucionários dentro do movimento de
emancipação, muito além do binômio partido-sindicato que
passou a vigorar como quintessência do movimento
revolucionário dos trabalhadores. Mais além, portanto, do
legado socialdemocrata internacional, assim como do
comunismo oficial do século XX. Mais além da Carta a um
camarada, escrita por Lenin em setembro de 1902. 9

A questão da organização

Este trabalho de Lenin é o único onde as questões


teóricas da organização revolucionária, ou seja, do partido
revolucionário, estão tratadas. Nele, sucintamente, se observa
na organização revolucionária a existência e necessidade de
uma divisão do trabalho entre a teoria e a prática, entre
práticos e teóricos. Entre estes haveria tal interação de ações
de modo a conferir à organização a máxima eficácia
emancipadora. De modo que a produção de teoria estivesse de
tal modo vinculada à solução das questões práticas que a
solução destas estabeleceria marcos sucessivos na evolução
daquela.
Dessa interação dialética se alimentaria a organização
revolucionária. Dá-se como evidência que a produção da
teoria exigiria a livre produção desta e esta liberdade
pressupunha a livre circulação e debate dessas ideias dentro e
fora da organização, até que em etapas sucessivas esta fosse
se apossando ou rejeitando esta ou aquela interpretação. A
organização seria a realização do intelectual coletivo, mais
além do livre confronto e da produção teórica dos teóricos,

9LENIN, Vladimir Ilitch Uliánov. Carta aos camaradas sobre questões de


organização. Revista Nova Escrita Ensaio. Ano IV número 8. São Paulo:
1980. p.111 – 133. [Tradução de Paulo Alves de Lima Filho da Edição
Russa, OC vol. 6. Texto de 1902].
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como expressão de uma nova totalidade de interação,


incluídos nela os assim chamados práticos - categoria
encontrada nas organizações revolucionárias desde os albores
destas – e a massa dos militantes.
O partido revolucionário, assim concebido, minimizaria
a quantidade de erros táticos e estratégicos produzidos, assim
como, quando estes inevitavelmente ocorressem, poderia
rapidamente superá-los com o mínimo de desgaste possível.
Ao fazer brotar dessa livre interação a dinâmica da
constituição dos núcleos dirigentes teóricos e práticos os mais
naturalmente capazes – emergidos naturalmente do livre
debate interno -, gerava-se naturalmente uma capacidade
ímpar de atender às inevitáveis e súbitas guinadas da
conjuntura com respostas igualmente rápidas e qualificadas.
Nessa organização os práticos também se especializariam na
solução e encaminhamento das questões práticas, cuja
evolução caminharia pari passu com a capacidade dos
teóricos em apreender a realidade.
Exatamente o contrário do que veio a ocorrer entre o
final do século XIX e o século XX até o desmoronamento da
URSS.
O partido concebido por Lenin, hoje sabemos, não foi
forte e sábio o suficiente para barrar a ascensão de lideranças
predadoras da teoria e da prática revolucionária, de ambas as
funções vitais do partido revolucionário, e, como consequência
disso, permitir a ascensão da autofagia de um predador-mor,
capaz de galvanizar outros predadores e liquidar sistemática e
continuamente o núcleo teórico-prático historicamente
constituído até a ocorrência da revolução social.
O que faltou ao partido de Lenin para bloquear este
processo de desconstrução?
No nosso entender, faltou ao partido de Lenin conceber
e garantir a devida proteção desses núcleos dirigentes da
dinâmica imprevisível da luta social – teórico-prática -,
proteção essa que impedisse sua predação, sob qualquer
pretexto, assim como a predação das relações destes núcleos
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com a massa dos militantes e com a própria sociedade. O


estado maior revolucionário deve obrigatoriamente se proteger
e estar protegido de sua própria organização, como se exige de
qualquer estado-maior. Proteger-se, inclusive, de seus amigos
mais próximos e de sua própria revolução, de modo a não
ceder e sucumbir à voragem desta, assim como da ânsia
devoradora dos predadores.
No caso brasileiro – e de tantos mais – há uma lista
infindável de equívocos teórico-práticos cometidos, aliada à
sistemática depreciação da teoria. Esta, supostamente, estaria
sendo naturalmente produzida na URSS e, na base da
reiteração dessa errância trágica, estaria certa concepção de
organização, herdada da socialdemocracia e transmitida à sua
ala revolucionária, assim como a todas as demais organiza-
ções comunistas, transformada no cadinho da Revolução
Russa em nova teoria organizacional.
Nela se elimina a dialética do enfrentamento entre
teoria e prática e se impõe o poder burocrático de um comitê
central no qual, por designação igualmente burocrática, um
ou alguns pensadores se transformariam automaticamente
em líderes teórico-práticos da organização. Esta concepção já
se formalizara no recém-nascido partido operário social-
democrata alemão, fato que receberá as mais vivas críticas de
Karl Marx e Friedrich Engels.10
Elimina-se, desse modo, burocraticamente, a vida
teórica não organizada nesses partidos. Ela deixará de constar
como força reconhecida, livre e estimulada. De fato, Marx,
Engels e seus amigos mais próximos conformarão experiência
fundacional primeira e última da plena liberdade teórica de
líderes reconhecidos, venerados e dirigentes, livres, inclusive,
das exigências de militância burocrática em alguma
organização nacional.

10MARX, K. Crítica ao programa de Gotha. Moscou/Rússia: Progress


Publishers, 1970. (Redação: abril ou início de Maio, 1875; OC, Publicado
na revista Die Neue Zeit, Bd. 1, No. 18, 1890-91).
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Por sua vez, os supremos interesses da Revolução


Russa, interpretados de acordo com os interesses dos
sucessivos grupos dirigentes do PCUS, norteariam a evolução
teórica dos partidos nacionais. Esta fórmula conservadora e
antidialética só poderia resultar em catástrofes tremendas e
desprestígio teórico e prático cumulativo dos partidos
comunistas perante as massas,
Mesmo em casos excepcionais, quando a evolução
teórica apreende a particularidade da sociedade nacional
capitalista – como é o caso do Chile, por exemplo 11 – e logra
formular o momento singular revolucionário, ou seja, o
caminho ao poder, o bloqueio da relação dialética assinalada
impede a realização exitosa seja da revolução democrática –
necessariamente adiada – e da revolução econômico-política
da nação, ou seja, da emancipação econômica e política desta,
pois incapaz de responder rápida e qualificadamente às
exigências táticas derivadas dos corcoveios da conjuntura. No
mais das vezes, entretanto, é incapaz de formular o caminho
ao poder.
Os jovens revolucionários, vitoriosos na tarefa da
conquista do poder na revolução cubana, seguiram os rumos
já previamente traçados pelos revolucionários que os ante-
cederam, sobretudo os de José Marti, não pertencentes ao
eixo maior do marxismo oficial. Este caminho ao poder
escapava ao manual do marxismo oficial, em geral vinculado
exclusivamente ao exercício das tarefas orgânicas de primeira
ordem voltadas à emancipação dos trabalhadores, quais
sejam, aquelas vinculadas ao trabalho partidário e sindical.
Daí a suspicácia com que, de início, a ousadia daqueles
jovens revolucionários foi tomada pela maioria dos provados
revolucionários comunistas soviéticos e da América Latina.
Opinião posteriormente reformulada, a bem da verdade, por
ocasião da evidência da vitória da revolução cubana 12.

11WINN, Peter. A Revolução Chilena. São Paulo: Editora Unesp, 2010.


12SZULC, Tad. Fidel: um retrato crítico. São Paulo: Best Seller, 1987. p.
19-20.
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Sem uma teoria do caminho ao poder, entretanto,


como organizar um movimento revolucionário?

O caso brasileiro

Há quase um século de fundação do PCB (1922), a


realidade do movimento comunista se depara com o extremo
fracionamento desse seu antigo núcleo majoritário,
transformado em um partido reformista liberal (PPS), liderado
por remanescentes do Comitê Central do PCB, sobreviventes
do extermínio de onze de seus membros (mortos e
incinerados) pela contrarrevolução capitalista de 1º de abril de
1964, e em um novo pequeno PCB e uma miríade de
organizações comunistas derivadas do cisma e ainda não
conformes em fazer parte desse novo PCB, assim como de
outras expulsas de seu seio.
Supunha-se ser quase certo que, na última luta
interna do velho grande PCB, nos anos 70 e 80 do século
passado, Luiz Carlos Prestes, líder teórico-prático dessa luta
aberta, ao vir a contar com o apoio maciço dos quadros
intelectuais desse partido (e fora dele também), aceitaria
fundar um novo partido comunista, separando-se dos
reformistas, fato que, surpreendentemente, não ocorreu. Para
a perplexidade dos que lutaram ao seu lado, preferiu, ao fim,
recomendar aos comunistas entrarem no PT e PDT 13. Além
dos contingentes que seguiram seus conselhos, surgiu o novo
PCB e se multiplicaram outras organizações inconformadas
com esse destino e ainda incapazes de forjar algum tipo de
unidade.

13 PRESTES, Anita Leocádia. Luiz Carlos Prestes: o combate por um


partido revolucionário. São Paulo: Expressão Popular, 2012. p.266-269;
COSTA, Izabel Cristina Gomes. Uma rede prestista: os diversos fios dos
„filhos‟ da Carta aos Comunistas no PDT. In Perseu: História, memória,
política. Revista do Centro Sergio Buarque de Holanda da Fundação
Perseu Abramo. Nº 9, Ano 7, São Paulo, mai. 2013. Dossiê as esquerdas
e o comunismo nos séculos XX e XXI: conflitos e influências, p.145-172.
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Semelhante destino teve a antiga fração pró-Stalin,


que conservou o nome vigente sob a Internacional Comunista,
PC do Brasil, por ocasião de seu fracionamento após o XX
Congresso do PCUS, que denunciou os crimes de Stalin
(Relatório Khrushev). Boa parte de seus dirigentes foi
exterminada, à semelhança de seus camaradas do PCB
(Massacre da Lapa e outras detenções).
Igualmente exterminadas foram as frações aderentes à
luta armada, oriundas em grande medida do PCB, a maior
delas sendo a ALN, chefiada por Carlos Marighela, dirigente
do CC desse partido.
Marighela rompeu com a linha do PCB, aderiu ao
projeto liderado pelos revolucionários cubanos, centrado no
enfrentamento imediato e militar das classes proprietárias e
seus estados, através da guerra de guerrilhas. Este
movimento, apoiado abertamente pela Revolução Cubana e
liderado por Ernesto Che Guevara e seus mais próximos,
causou profundo impacto em todos os partidos comunistas e
socialistas da América Latina, resultando, de modo geral, em
um profundo cisma e conduzindo a graves perdas políticas e
humanas em sua rápida e generalizada derrota.
A interpretação equivocada da experiência histórica
cubana, em especial da vitória da revolução em seu ato bélico
final, por via da guerrilha instalada na Sierra Maestra e
depois alastrada ao interior do país, teve sua expressão
teórica maior, em certo momento, na obra do filósofo francês
Régis Debray, A revolução na revolução.14
Ela simplificava a experiência histórica cubana e
elevava o modus operandi do ato final guerrilheiro, em meio
universal e salvador da revolução latino-americana de seu
suposto estiolamento reformista, operado pelos partidos
comunistas pró soviéticos. Se, de um lado, a vitoriosa
revolução cubana, de fato, erguia-se como denúncia viva da
ausência de formulação do momento singular do processo

14 DEBRAY, Régis Révolution dans la révolution?: Lutte armée et lutte


politique en Amérique latine [ensaio], Maspero, 1967.
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revolucionário – do caminho ao poder -, de outro, criava a


ilusão de que a realização da revolução democrática e a
conquista da plena emancipação econômica e política da
nação através do socialismo estava ao alcance da mão,
instalada no curto prazo da história.
A apreensão teórica desse processo ainda não veio a
solucionar a ambas estas questões, embora a história tenha
se encarregado de destruir as ilusões imediatistas. As
revoluções democráticas e econômicas nacionais, na maioria
dos países latino-americanos, não conseguem realizar-se,
dentre outros fatores, pois indissoluvelmente ligadas à
ausência de formulação do caminho ao poder. A guerrilha, por
sua vez, uma das formas históricas universais da luta política
revolucionária, fortemente enraizada na experiência das
revoluções hispânicas, ao ser transportada para o mundo ex-
colonial ibérico, não seria, como de fato não foi e nem poderia
vir a ser, o abre-te Sésamo específico da revolução socialista
latino-americana e, muito menos, mundial. 15
Os capitalismos da miséria, forma histórica particular
das sociedades paridas do ventre da escravidão colonial,
desde sempre subordinadas ao capital, permanecem
sobreviventes como rochedos na orla capitalista, infensos à
transformação social revolucionária seja das burguesias,
voluntária e gostosamente adeptas da subordinação, seja das
classes trabalhadoras, hesitantes em abraçar sua própria
emancipação. Varando cinco séculos, conformam um caso
excepcional de emancipações castradas, prisioneiras do
salvacionismo capitalista.16
O extremo fracionamento do comunismo brasileiro (e
não só dele, não exclusivamente vinculado à sua experiência
histórica) teve como matriz as vicissitudes do movimento
comunista, em especial os desfechos e rumos das revoluções

15 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. La revolución en España. Artículos.


Moscou/Rússia: Editorial Progreso, 1974.
16 MACEDO, Rogério Fernandes O governo Lula e a miséria brasileira.

Araraquara: Unesp, Tese de doutorado, 2012.


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socialistas nacionais, muito particularmente os da Revolução


Russa, Chinesa e Cubana. Com raras exceções, incapazes de
formular as formas singulares da revolução socialista e
igualmente de interpretar as condições particulares da
evolução capitalista de suas nações, os partidos anarquistas,
comunistas e socialistas enfrentaram, com extremo insucesso,
as duríssimas condições de realização da luta política no
horizonte da emancipação política e social das classes
trabalhadores latino-americanas, sob forte repressão policial
interna e imperialista. A luta aberta e propriamente socialista
e comunista não foi a característica central de seu empenho
histórico. A emancipação econômica da classe trabalhadora,
momento central da emancipação dessa classe, jamais esteve
ali formulada como seu momento singular e central, em torno
do qual se organizassem os momentos da emancipação social
e política.
Por artes da história, o tema e exercício da luta pela
emancipação da classe trabalhadora, em âmbito mundial,
deixaria de ser o centro da luta de classes, que passaria a
orbitar no campo da perenidade do capital em torno do
socialismo – sua teoria e estado -, inventado pela revolução
russa, esquecida que foi a teoria da transição comunista
pensada por Marx.17
Por sua vez, a expressão orgânica do movimento
socialista e comunista permaneceu encerrada na gaiola buro-
crática da produção teórica e dominação política das suas
elites dirigentes, tal como já nascera concebida pela socialde-
mocracia alemã e consagrada em seus estatutos, em tempos
de Marx e Engels. Com o surgimento do partido operário
revolucionário alemão e dos sindicatos de trabalhadores sob
sua influência, abandonou-se a tarefa vital e prioritária da
gestação do movimento de emancipação dos trabalhadores,
concebida no Manifesto Comunista e realizada na AIT.

17 SILVA, Newton Ferreira. Transição comunista e ditadura do


proletariado na revolução cubana de 1959. Marília: Unesp, Tese de
doutorado, 2015.
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Processo de abandono conducente à irremediável estiolação


teórica e prática do movimento comunista e socialista, hoje
um fato universal incontestável e catastrófico para os destinos
da humanidade.
No caso brasileiro e da maioria dos países da América
do Sul, a reorganização mundial do capital imperialista, na
segunda metade do século XX, conduziu à irrupção
generalizada de um processo contrarrevolucionário de longa
duração que se expressou no surgimento de sangrentas e
duradouras ditaduras civis-militares, apressadas e
aprofundadas pela incapacidade do bloco democrático,
nacionalista e socialista desses países, de enfrenta-las e
derrota-las. Essa contrarrevolução antinacional, antidemo-
crática e antipopular, de caráter neocolonial, ainda está
vigente na esmagadora maioria dos países da América Latina.
As transições políticas pró-democráticas neles ocorridas nos
anos oitenta, ao findarem as ditaduras, nada mais foram, em
geral, que alteração da forma política de garantir a
continuidade dos projetos econômicos e sociais dessas
contrarrevoluções. 18
Os golpes de estado não foram entendidos como
contrarrevoluções preventivas e para a desgraça de seus
povos, o fim das ditaduras políticas foi confundido com o
término das contrarrevoluções. Tal fato causou e vem
causando terríveis equívocos teórico-práticos. Sem que se
houvesse derrotado as contrarrevoluções, as forças populares
passaram a conceber sua ação desconhecendo estarem, elas,
todavia, sob o cerco da contrarrevolução, sob o controle das
determinações derivadas de seus objetivos históricos

18FERNANDES, Florestan. Nova República? Rio de Janeiro: Jorge Zahar


editor, 1985. Vide capítulo III. Ver também: MACEDO, Rogério Fernandes
e CERQUEIRA, Roziane Ferreira da Silva. Florestan Fernandes e a
apreensão da contrarrevolução brasileira. In: Anais de Congresso, Marx e
o Marxismo 2011: teoria e prática Universidade Federal Fluminense –
Niterói – RJ – de 28/11/2011 a 01/12/2011. Disponível em:
http://www.niepmarx.blog.br/MManteriores/MM2011/TrabalhosPDF/A
MC334F.pdf. Acesso em: 21-10-2018.
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estratégicos. É evidente ser impossível gerar um processo de


revolução democrática e de conquista de plena soberania
nacional desconhecendo, e pior, supondo-os superados, a
vigência dos ditames da contrarrevolução neocolonial em
processo ininterrupto, em profundidade e extensão, da
situação neocolonial.
Lembremo-nos que, de modo radicalmente contrário, a
Europa democrática e soberana da segunda metade do século
XX até os dias atuais, só pode existir por obra da destruição
da herança contrarrevolucionária do fascismo e nazismo em
todas as suas dimensões, a saber, econômicas, sociais,
políticas e culturais.
O momento central dessa destruição foi a derrota
militar dos exércitos fascistas, momento político que abriu
campo para as demais emancipações necessárias e
obrigatórias para seus povos e classes trabalhadoras: a
liquidação do estado e a depuração do funcionalismo fascista,
a liquidação da legislação, as reformas políticas, educacionais,
culturais, científicas e econômicas, a punição das lideranças
genocidas e do aparelho de repressão, tortura e morte, a
destruição dos exércitos e polícias, o impedimento da
produção armamentista, a vigência das cláusulas de controle
à soberania dos derrotados pelas potências vitoriosas.
Ao invés disso, sem que a contrarrevolução prolongada
do mundo latino-americano houvesse sido derrotada, as
forças democráticas, populares e socialistas no Brasil (e não
só aqui) estiveram e permanecem até hoje em vão lutando em
território inimigo, contrariamente aos seus mais profundos
desejos, dando continuidade a essa contrarrevolução
capitalista19.

19 Para análise do caso específico do Partido dos Trabalhadores,


consultar: MACEDO, Rogério Fernandes. A miséria da política sob o
governo Lula. In. Revista Científica Vozes dos Vales, Universidade
Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Minas Gerais, Brasil, Nº
08, Ano IV – 10/2015. ISSN: 2238-6424. Disponível em:
http://site.ufvjm.edu.br/revistamultidisciplinar/files/2015/11/Rogerio.
pdf. Acesso em: 21-10-2018.
Pensando com Marx (I) | 37

Apesar dos ingentes esforços democráticos realizados


nas décadas posteriores à abertura política, hoje se processa
uma furiosa regressão neocolonial sob a bandeira ideológica
do neoliberalismo, concebido como retorno a um caráter da
reprodução política, social e econômica vigente no passado
colonial, de destruição capitalista do estado nacional por
subordinação irrestrita do capital financeiro mundialmente
dominante. Opera-se a destruição do estado nacional e do
sistema partidário, a desindustrialização, a liquidação das
liberdades protetivas da classe trabalhadora, a des-
constitucionalização da constituição e emersão de um novo
estado de exceção, de modo a transformar a dinâmica
histórica em revolução na contrarrevolução, chefiada pelo
complexo jurídico-policial-midiático e com a conivência e ação
do congresso e executivo. A real ditadura democrática do
capital aprofunda ainda mais seu caráter menos democrático,
ou o que dá no mesmo, seu caráter cada vez mais pró-capital.
Entramos em pleno na fase histórica da reversão
neocolonial.20
Para mal dos pesares, destruído o equilíbrio de poder
por obra e graça dos neoliberais inconformados em mais uma
vez perder as eleições, desta vez para o segundo mandato de
Dilma Rousseff, arranca-se do congresso o ato voluntário (mas
não gracioso) revolucionário21 do impedimento da presidente
democraticamente eleita, ato esse que é seguido de medidas
de guerra declarada contra os interesses populares, nacionais
e democráticos22. Dinâmica essa que deslocará,

20 SAMPAIO JR, Plinio de Arruda. Globalização e reversão neocolonial: o


impasse brasileiro. In: CAMPOS, Fabio (org.) Introdução à formação
econômica do Brasil: herança colonial, industrialização dependente e
reversão neocolonial. Marília: Lutas Anticapital, 2018. p. 87-97.
21 Revolução, pois momento decisivo do processo subsequente de

destruição das formas políticas, sociais e econômicas da Nova República,


que fenecerá. A categoria vige tanto no sentido reacionário quanto
revolucionário.
22 MACEDO, Rogério Fernandes. A ponte para o abismo da miséria

brasileira: notas sobre o golpe de 2016. In. Filho, Paulo Alves de Lima;
Novaes, Henrique Tahan; Macedo, Rogério Fernandes. (Orgs) Movimentos
38 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

irreversivelmente, o eixo da representação da ultradireita, até


então sob o controle do PSDB e coligados menores, em direção
de um boçal fascista neocolonial, que as burguesias todas
passam a reverenciar como sendo o salvador da pátria
colonial, ao qual se alia uma parte do proletariado des-
politizado, irado com o fato de o PT se haver contaminado com
o velho modo corrupto de governar, característico das velhas
classes dominantes e ele próprio contaminado pelas
mensagens mentirosas, genocidas, reacionárias, anticomu-
nistas e antisocialistas.
O parafascismo neocolonial emerge com força e causa
espanto e perplexidade naqueles que desconhecem o passado.
É expressão da ideologia colonial da hipersubordinação
nacional, antidemocrática e antipopular, que derruba os
marcos da primeira independência e joga o destino da pátria
para os tempos do mando e desmando exclusivos dos
proprietários e da potência imperial. Entra-se em pleno na
fase histórica da luta pela segunda e real independência.
Diga-se que a força desse barbarismo neocolonial
repousa na dinâmica e caráter da operação da contrarre-
volução, a adensar a sua trajetória por meio da nova
legalidade da ilegalidade que ela cria e que cada vez mais se
aprofunda.23
A função da operação Lava Jato se assemelha em tudo
à operação dos procuradores russos na construção da
caminhada dos contrarrevolucionários em direção ao centro
do poder do estado e do partido comunista soviético. A criação
sistemática do caos político, através da tricotagem da teia de
ilegalidades contra alvos políticos previamente escolhidos,
transformada em nova legalidade forjada por procuradores
plenipotenciários do poder central e ampliada pela mídia, foi

sociais e crises contemporâneas à luz dos clássicos do materialismo


crítico. Uberlândia: Navegando Publicações, 2017.

23 LIMA FILHO, Paulo Alves de. A legalidade da ilegalidade e os seus


defensores. Consolidação da revolução na contrarrevolução. São Paulo,
24 de setembro de 2018, mimeo.
Pensando com Marx (I) | 39

um método vitorioso de liquidação de um grande estado,


testado no desmoronamento da URSS.24 Nossa revolução na
contrarrevolução e seu golpe em marcha não é absolutamente
inovadora.
Com pesar constatamos que os nossos políticos
práticos, ex-guerrilheiros, assim como ex-comunistas
convertidos ao liberalismo, agora empenhados na criação de
uma democracia cada vez mais democrática, para nossa
infelicidade, não se dedicaram ao estudo das condições
históricas específicas nas quais eles colocavam os destinos
próprios, de seus partidos e de seus povos. A mais de três
décadas da transição democrática e três de promulgada a
nossa Constituição de 1988, hoje desconstitucionalizada, eles
supunham desde o início desse processo já estarem em um
capitalismo desenvolvido, ao qual faltaria, em muito, melhorar
a sua qualidade democrática para que entrasse na galeria dos
países de capitalismo moderno. 25
Quando, enfim, descobrem haverem estado na barriga
da sucuri e sobrevivido, mas moídos e já imprestáveis para as
mais altas sonhadas cavalarias, põem-se a pensar nas razões
do fracasso, mas lhes falta a apreensão das condições
históricas da luta.26 Mesmo quando, corretamente, se

24 RAZZAKOV, Fiodor. O caso que implodiu a URSS (Dielo vzorvavchee


SSSR). Moscou/Rússia: Algoritmo, 2012.
25 DIRCEU, José. Zé Dirceu: Memórias. Vol. 1. São Paulo: Geração

Editorial, 2018. - No epílogo do primeiro volume de sua autobiografia,


Dirceu define o capitalismo brasileiro e a situação atual como sendo “(...)
um processo incapaz de avançar na direção do desenvolvimento com
democracia, justiça e progresso social. Ele agrava o quadro de
desigualdade e pobreza, único em um país desenvolvido como o Brasil.
Deu-se um golpe, violou-se a Constituição, sustenta-se um governo
ilegítimo e impopular, “reformas” são feitas na direção de expropriar mais
renda de trabalho e do Estado em benefício do capital financeiro e
bancário” (itálico do autor, p. 452, cap. 35).
26 SINGER, André. O lulismo em crise: um quebra-cabeça do período

Dilma (2011-2016). São Paulo: Cia das Letras, 2018. - Somente em 2016,
Dilma descobre estar a burguesia nativa desinteressada na soberania
econômica e política do país... em seu esperanto: “ Eu [...]nunca percebi
a história, a não ser a posteriori, das classes mais enriquecidas do Brasil
em relação aos juros. Eu não percebi, também, qual era o nível de
40 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

propõem uma nova etapa de lutas, através de um ideário


conducente a uma prática digamos, correta, tal decisão não
deriva de crítica do ideário e prática anteriores, antes, porém,
derivadas da simples constatação do fim da era anterior. Uma
proposta pragmática, enfim.27

aversão deles a pagar qualquer parte da crise. E nunca percebi que eles
achavam correto arrebentar o Estado em relação a qualquer política de
conteúdo nacional mínima. Achei que elas tinham interesse efetivo num
projeto nacional de desenvolvimento, não no sentido nacionalista da
palavra. Por exemplo, que usar política de conteúdo nacional, recuperar
a cadeia de petróleo e gás, criar a cadeia de fármacos, colocar aqui uma
parte da estrutura da indústria automobilística através de toda aquela
política que nós fizemos de garantir que as grandes empresas viessem
para o Brasil - que se interessariam por isso. E o que eu vejo é que esse
processo é tão duro que eles não se interessam, não. Não se interessam e
a internacionalização ultrapassa as pessoas. A financeirização ultrapassa
as pessoas. Você pode ter um grupo que o seu dirigente perceba que isso
deva ser feito, mas o conjunto do grupo, não. ”, (itálico do autor, p. 61-
62, capítulo 1)
27DIRCEU, José. op.cit. - “ Abre-se um novo período, no qual devemos e

podemos, como estamos fazendo, lutar e retomar o governo. Mas, como


afirmei acima, com um novo programa, uma vez que, para toda a
América Latina, os programas reformistas que levamos adiante no início
do século XXI estão esgotados pela própria reação das forças
conservadoras e de direita. A hora é da reforma do próprio Estado e da
distribuição não apenas da renda, o que é sempre um avanço, mas
também da propriedade, da riqueza e do poder político, com todas as
implicações e consequências, novas formas de luta e de organização, nos
partidos de esquerda e nos movimentos sociais. Como a própria luta
esses anos todos tem demonstrado, é preciso ir ao povo trabalhador e
organizar sua luta social e política. Responder à radicalização da direita
com luta política e social e um programa, como eles fazem, que vá à raiz
da questão nacional, democrática e social.
Fazer a revolução brasileira inconclusa, retomar o conceito de revolução
social e política.
Não há como conciliar o país sem retomar o fio da história nacionalista e
democrática, sem que as elites aceitem o novo papel protagonista das
classes trabalhadores, como agente e ator político, sem dar aos que
produzem a riqueza do país sua participação mais do que justa nela.
Realidade que exige – insisto – uma ampla reforma tributária, bancária,
urbana, política, viabilizando o controle social do Estado, a distribuição
do poder político, da renda, da riqueza e da propriedade. ” (itálico do
auto, p.465-466)
Pensando com Marx (I) | 41

Mais grave ainda, os partidos que construíram – e falo


em especial do PT e PSDB – não estiveram à altura dos seus
desejos melhoristas, quanto mais das projetadas
transformações democráticas supostamente inadiáveis. O PT
se fragmenta em outras organizações e a maior delas, o PSOL,
não para de cindir-se (embora ainda sem fragmentar-se) na
voragem da pequena política. Acrescente-se a isso que, nos
dias que correm, somaram-se à revolução na contrarrevolução
os militares contrarrevolucionários, e seu vade-mécum passou
a ser vociferado por um novo chefe tribal dos predadores, o
espécime ainda não plenamente catalogado, o Bolnosauro
Rex.
Simultâneo a isso, as tensões políticas no STF se
exacerbam ao ponto do ridículo, do escandaloso. A sucessão
de decisões cassadas sucessivamente até a ilegalidade
suprema da cassação de decisão de Lewandovsky pelo recém
empossado presidente do STF, Dias Tóffoli – em série, no
intervalo de uma semana: Lewandovsky, Fuchs, Lewandovsky
- Dias Tóffoli – escancara a ilegalidade legal em torno do
direito do encarcerado de Curitiba poder ser entrevistado por
um de nossos jornalões, afinal inconstitucionalmente
negado.28

Enfim, a revolução venceu!

A revolução na contrarrevolução, esta última iniciada


em 1964, acaba de obter uma vitória indiscutível.
As mentiras bombardeadas a peso de ouro pelo
WhatsApp, os discursos de ódio e vingança proferidos pelos
golpistas e as suas vítimas, as mentiras posteriores negando
haverem dito o que de fato disseram e fizeram em escalada
incontível, os sucessivos atropelos à ordem constitucional sob
a complacência apoiadora da máquina golpista, coloriram a

28Naquele domingo, o desembargador da quarta região concede ao Lula


um habeas corpus de soltura, revertido pelo presidente da turma, sob
manifestação ameaçadora de Sérgio Moro, que se encontrava em férias.
42 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

ordem vigente com a balbúrdia de seus novos pontos sobre a


tela da revolução em marcha. Até que ontem, enfim,
ganharam as eleições presidenciais. O Brasil democrático,
popular e soberano viu-se minoritário.
Enfim, o Brasil projetou-se para um futuro de retorno
ao passado, às suas origens.
Nada de Estado a pesar sobre os negócios, nada de
poder central a comandar as províncias, nada de leis que
policiem a avidez pelo lucro máximo, nada de peias ao uso das
riquezas naturais, nada de leis que contemplem os supostos
direitos inalienáveis dos nativos, sejam índios ou indígenas,
nada de educação livre do controle da família, religião e
estado, nada de contenção legal às alianças com as potências
imperiais em detrimento dos vizinhos e irmãos coloniais, nada
de enfrentamento dos interesses dos capitais alienantes de
nossa soberania nacional. Tudo ao capital imperial na terra e
tudo ao deus celestial, tudo à ordem nesse progresso dos
negócios imediatos de primeiro grau. Até que enfim, pela via
democrática eleitoral, o capital realinha-se à sua ordem
matricial, à sua gênese colonial, às relações conformes à sua
plena liberdade. A vitória coube ao presidencialismo
neocolonial tutelado pela ordem castrense da
contrarrevolução e pelo complexo de poderes golpistas
oriundos da contrarrevolução de 1964, não derrotados e
continuados após a transição à democracia política,
legitimada com a Constituição de 1988.
Descobrimos que o país está habitado por uma maioria
de neocolonos antinacionais, antidemocráticos, antipovo. O
país está habitado por uma tropa de ocupação neocolonial
ainda liderada por uma casta que não retornou a Portugal
com a independência proclamada pelo príncipe da casa de
Bragança. Tropa que não retornou à metrópole e aqui ficou
cevando-se e multiplicando-se, aderida a sucessivas novas
potências imperiais. Tropa que exige a ferro e fogo a
continuidade do capitalismo da miséria, contra qualquer
veleidade de construção de um capitalismo moderno e demo-
Pensando com Marx (I) | 43

crático ao gosto dos sonhos dos pequeno-burgueses que


forcejam por fazer parir essa ordem social contrária aos
interesses dos capitalistas e burgueses nativos.
O capitalismo da miséria se exige ser uma sociedade
neocolonial, não há alternativa a ela desde as razões dos
capitais dominantes, por mais que os pequeno-burgueses se
esforcem em catequizá-los.
Faliu a experiência de alternância no poder,
experimentada na Nova República recém falida, entre as
forças da salvação do capitalismo da miséria e as de sua
transição a um capitalismo moderno, ou seja, civilizado e
democrático. O paciente colonial se nega a ser melhorado ao
ponto de civilizar-se na aceitação da realização das liberdades
que conferem aos proletários uma plena cidadania no palco
do capital. O capitalismo da miséria é e só pode ser uma
ordem singular de negação da revolução democrática social e
econômica.
A alternância democrática entre as duas vias
salvacionistas só faz exacerbar ao extremo o temor dos
bárbaros em se verem relegados à subalternidade histórica, o
que lhes leva à ira e desta ao ódio espumante e esbravejante
que periodicamente aflora em sua marcha contrarrevo-
lucionária contra os brasileiros que advogam a plena
independência nacional, tal como agora podemos constatar. O
ódio dos poderosos contamina o desespero dos sofredores da
ordem e os joga nos braços ora de uma, ora de outra salvação,
sem que nenhuma delas esteja capacitada para resolver os
males que os fazem desesperar. O problema de fundo da
transformação do capitalismo da miséria é a revolução
democrática e econômica nacional irrealizada.
A revolução democrática está para o capitalismo da
miséria, assim como o cristianismo primitivo para a Igreja
Católica e a emancipação dos trabalhadores para o socialismo
autoproclamado real. Somente a realização de suas premissas
resolverá os impasses históricos dessas realidades e projetos
sociais. Enquanto isso não ocorre, reinará o caos, a
44 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

indeterminação dos agentes históricos, a miséria em suas


facetas as mais anacrônicas e disparatadas. Reinará o
fantástico, como num estroboscópio em permanente
movimento. A cada giro, imagens distintas, imprevisíveis. A
miséria, contudo, em suas múltiplas dimensões, se manterá
como forma universal desses capitalismos sob longas,
longuíssimas e seculares revoluções burguesas conser-
vadoras. 29
O movimento político pendular dos miseráveis, nos
capitalismos da miséria, muito especialmente no caso
brasileiro, ora elegendo um Jânio ao lado de Jango, seu vice -
odiado pela ultradireita e deposto pelo golpe arquitetado pelos
liberais, depois atropelado pela ultradireita que permaneceu
no poder por 21 anos -, ora um Fernando Collor e depois um
Fernando Henrique Cardoso e depois Lula, seguido de sua
preposta Dilma Rousseff e agora Jair Bolsonaro.
Liquidar a translação dos miseráveis de um polo a
outro do espectro político, a fugir do fantasma da miséria
secular incompreensível e devastadora para debaixo das asas
dos salvadores e messias, em movimentos alternados recor-
rentes, somente com a realização da revolução democrática
visceralmente indesejada pelas classes capitalistas e
proprietárias em geral.
Para que as classes proletárias e os trabalhadores em
geral possam escapar a esta sina maldita, cumpre às suas
vanguardas politicas saber forjar um movimento capaz de
atropelar e liquidar a ordem capitalista miserável. Não há
nenhuma possibilidade de isso ocorrer sem responder à altura
à contrarrevolução permanente das classes proprietárias e
dominantes e suas revoluções nas contrarrevoluções, a não
ser com a revolução das maiorias e para estas.
Aqui está a chave da questão. As burguesias, na
ordem capitalista miserável, nada mais desejam que manter o

29 Ver Capítulo 8 deste livro e LIMA FILHO, Paulo Alves de. Nuvens
negras sobre a República: o paraíso em trevas: dilemas da emancipação
no Brasil. São Paulo, 2007, mimeo.
Pensando com Marx (I) | 45

seu capitalismo da miséria, o seu país, a sua pátria, a pátria


do capital em sua subordinação voluntária à ordem imperial
deste. A transformação, nestes pagos ex-coloniais, somente
pode ser feita contra a ordem do capital. Esta ordem
transformada somente interessa, de imediato, às classes
trabalhadoras, à parte antineocolonial, fora dos limites da
tropa de ocupação colonial.
Impossível construir uma nação sob ocupação colonial
ou neocolonial. As tropas de ocupação mantêm guerra
permanente contra os insubordinados. A insubordinação
somente pode avançar ao pôr-se contra a ordem miserável do
capital. “Todo lo que no avanza, retrocede”, nos diz Modesto.30
Pôr-se, contudo, contra a ordem neocolonial do capital,
significa ir criando, contra esta, um novo complexo de
relações sociais que passe a impor a ordem dos interesses das
maiorias trabalhadoras. De modo que a única maneira de
superar a ordem miserável do capital, sua mui específica
sociedade capitalista, está em rumar decididamente contra a
ordem capitalista em geral. Isto implica transitar a uma nova
sociedade simultaneamente anticapitalista e anticapital!
Eis o segredo da transição para além do capitalismo da
miséria, da transformação social nessas sociedades. Elas
inevitavelmente se projetam para além da sociedade do
capital, para além do assim chamado socialismo real. Sua
transição exige marcha serena e permanente ao comunismo.
Como? Comunismo? Isso existiria? Alguém já teorizou
isso? O capital não é, então, a última fronteira das relações
sociais? 31
Nos capitalismos da miséria, sociedades submetidas à férrea
ditadura do capital em seu manto colonial e neocolonial, em

30 GUERRERO, Modesto Emílio. El chavismo debate su destino. In:


Macedo, Rogerio Fernandes, Henrique Tahan Novaes, Paulo Alves de
Lima Filho (orgs.) Movimentos sociais e crises contemporâneas. Vol. 3.
Marilia: Lutas Anticapital, 2018. p. 215-228.
31 SÈVE, Lucien. Commencer par les fins. La nouvelle question

communiste. (Começar pelos fins. A nova questão comunista).


Paris/França: La dispute, 1999.
46 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

geral, impera a ilusão da eternidade capitalista e de sua


relação fundante, o capital, tomada em sua forma genérica.
Sem a apreensão da sua particularidade ex-colonial, de seu
escravismo submetido ao capital, de sua longa revolução
burguesa conservadora, não há como sair da armadilha
histórica da miséria e da catástrofe do capital a espraiar-se
por todo a órbita da reprodução social.
Para escapar à ordem capitalista miserável e às lutas sociais
cronicamente frustradas e frustrantes se exige forjar um polo
anticapital que avance em segurança em sua marcha contra a
ordem, até alcançar o ponto de seu enfrentamento vitorioso.
Quão mais forte ele se enraíze na massa miserável e passe a
informar as suas lutas, tão mais rápido e indolor será a
transição à uma ordem superadora da miséria.

O repto da revolução na contrarrevolução: a nova


organização necessária e o caminho ao poder

A revolução na contrarrevolução é uma declaração de


guerra às conquistas democráticas alcançadas na transição
democrática e constitui inflexão neocolonial aguda. 32 A
transição transada33 tomou, somente agora, o rumo ancestral
desejado pelos que a conceberam. Era uma arapuca muito
bem concebida, projetada a ceder os anéis da reprodução
política democrática, em presença e sob o controle da
contrarrevolução continuada, ou seja, do complexo
contrarrevolucionário não derrotado do estado, complexo
político e judiciário, sindicatos patronais, forças armadas
homogeneamente contrarrevolucionárias e seu sistema

32 LIMA FILHO, Paulo Alves de. O desmonte da nação ou a revolução na


contrarrevolução. IELA. 30 mar. 2016. Disponível em:
<http://www.iela.ufsc.br/noticia/o-desmonte-da-nacao-ou-revolucao-
da-contrarrevolucao> Acesso em: 10 out. 2018.
33. Chamou-se assim o grande acordo realizado entre os militares e as

oposições, em que estes e seu corpo civil parlamentar empresarial


impuseram vitais limites à abertura política.
Pensando com Marx (I) | 47

econômico da subordinação ampliada, gestados na


contrarrevolução de 1964.
É uma declaração de guerra ao povo brasileiro e sua
nação. Guerra que alcança seu estágio político mais delicado,
o de sua condensação em torno de um predador-chefe, que
passa a dispor de uma sucessão de arcos de alinhamentos de
forças de seu campo em torno de seu núcleo, capaz de
congregar a esmagadora maioria das burguesias e setores
predadores populares em torno do projeto da guerra
democrática contrarrevolucionária a partir da conquista do
poder pela via democrática. Guerra que acirra seu movimento
com a campanha presidencial e não tem qualquer vislumbre
de se deter após as eleições, qualquer que fosse o seu
resultado.
Desse modo, uma nova caminhada ao poder se põe
para as forças populares, democráticas, anarquistas,
comunistas, socialistas e patrióticas. Ao lado da sempre
necessária tarefa de criação de um movimento de emanci-
pação das maiorias trabalhadoras que ganhe as ruas, capaz
de congregar todos os partidos, organizações e interesses na
luta contra o capital, impõe-se também a tarefa de criação da
força necessária para o tratamento das relações com os
predadores. Não ceder as ruas às milícias, populares ou não,
do protofascismo neocolonial e, assim, defender o sentido
democrático do espaço público, e não ceder também à
violência do estado e suas promessas de perseguições,
torturas e assassinatos.
Como sabemos, quando a polarização dos predadores
da ordem burguesa e social em geral chega a adensar-se ao
ponto de se cristalizar e se pôr em trâmites de guerra em
torno do Chefe Salvador Mor, não há força da razão que os
reconduza à civilização humana a não ser a razão da força.
A nova organização política revolucionária, necessária
à emancipação, deverá lidar com mais esta tarefa, se quiser
fazer o movimento de emancipação chegar ao poder. Aos
comunistas e revolucionários em geral, caberá esta tarefa
48 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

como prioridade vital. Desde o Manifesto Comunista já se


sabia disso. Agora cumpre sem mais delongas nos
organizarmos como comunistas emancipacionistas e batalhar-
mos simultaneamente em todos os campos em que já
atuamos – a produção teórica qualificada e sua disseminação
entre a classe trabalhadora – assim como no campo político
da forja das alianças e acordos exigidos para a criação do
movimento no qual se congreguem todas as forças da
emancipação dos trabalhadores contra o capital e a criação
das novas forças da dissuasão, contenção e derrota dos
predadores organizados, armados e militarizados.

Dois campos das lutas de classes

Há dois grandes campos de atuação dos


revolucionários pela emancipação, o campo do exercício direto
da força da razão e o da razão pela força. No primeiro
observamos pelo menos quatro grandes blocos de atividades:
a atividade na política oficial, a essencial produção teórica e
as ações didático-pedagógicas daí derivadas e, por último, a
política unitarista, forma dominante do empenho na criação
do vital movimento de emancipação dos trabalhadores. E
como adentramos definitivamente na quarta fase da
contrarrevolução iniciada em 1964, se exige da política
revolucionaria a defesa dos espaços públicos, a impedir que
as hordas milicianas ainda espontâneas as dominem, assim
como a defesa da nação, seja quanto à defesa popular, a ação
estratégica e criação da força nacional que defenda os
interesses nacionais.

São Paulo, 2018.


Pensando com Marx (I) | 49

Referências

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anunciada: crítica à economia política de Lula e Dilma. São
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52 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O
Pensando com Marx (I) | 53

2 - Carta aos camaradas

Introdução

A proposta deste trabalho é demonstrar que as principais


questões teóricas colocadas pela história do marxismo e da
revolução comunista entre os séculos XIX até os dias atuais,
em grande medida já se encontravam em 1891, na evolução
das contradições entre os fundadores do materialismo crítico
– como Marx costumava denominar sua revolução teórica –
com os líderes do partido alemão, o mais poderoso dos
partidos vinculados à nova teoria. Quais questões? A teoria do
partido da emancipação dos trabalhadores, a afirmação da
teoria como momento universal não subordinado aos práticos,
a denúncia do culto à personalidade dos chefes práticos ou
teóricos, do aviltamento da teoria como máximo dano à causa
da emancipação, a necessidade da emancipação econômica do
partido da teoria frente ao partido prático, a declaração da
insuperável necessidade da teoria afirmar-se contra as
pretensões imperialistas da ideologia dos práticos e seus
funcionários mais importantes, o encastelamento destes na
órbita do núcleo dos eleitos na política burguesa, juizes
supremos e supostos guardiões da teoria. Outras, a questão
da vital necessidade do cultivo sistemático da teoria, de forma
a ela poder projetar-se na história sem hiatos, para garantir o
menor dano possível à causa da revolução emancipadora dos
trabalhadores; a transição econômica desta como momento
direta e irremediavelmente vinculado à emancipação política
da classe trabalhadora, emancipação essa inconcebível sem
crescente domínio, por parte desta, da expressão coletiva da
reprodução social de forma a que seja, de fato, perecimento
qualitativo do estado. Naquele exato momento, em 1891, já
emergira toda a gama de vitais questões futuras, a atravessar
os dois séculos posteriores e os inícios deste.
É claro que a plena apreciação do legado dos fundadores da
revolução teórica era impossível de ser feita logo no início do
54 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

século vinte, muito menos aquilo que a história não havia


permitido tomar a forma teórica. Neste início do século XXI
isso já não somente se torna possível, porém, obrigatório. As
questões relativas ao estatuto da teoria com relação ao partido
prático histórico, assim como a dos práticos e sua relação com
a teoria ou da transição comunista, hoje se vestem de mais de
um século de história e encontram-se dramaticamente
irresolvidas ou mal resolvidas na teoria oficial, embora
estejam, agora nos damos conta, claramente esboçados, em
grande medida, no legado pessoal dos dois camaradas
alemães.

I. A teoria e sua vital liberdade de ação

Engels escreveu em 19 de novembro de 1892 uma


carta a seu amigo August Bebel34, na qual abordava, dentre
outras coisas, a relação da teoria com o movimento prático,
assim como a questão da emancipação econômica dos
teóricos:
Querido August,
Desta vez o congresso do vosso partido35 transcorreu
não tão brilhantemente quanto antes. Os debates
sobre a questão dos ordenados tomaram um caráter
altamente desagradável, embora eu seja da opinião
que neste ponto os franceses e ingleses não se
comportariam melhor, com o que, diga-se, Luiza36
não quer concordar comigo. Eu há muito me
convenci de que essa é uma das manifestações da
estreiteza dos horizontes intelectuais dos
trabalhadores, derivada daquelas condições de vida

34 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Obras Completas. 2ª edição russa.


Moscou, URSS, Izdatelstvo Polititcheskaia Literatura, 1965. Carta 234,
tomo 38, pág. 441-442; Obs.: todos os itálicos, exceto os indicados como
nosso, são de autoria de Engels; tradução nossa.
35 Partido Operário Socialista da Alemanha. O congresso realizou-se

entre 14 e 21 de novembro de 1892 (idem, nota 399, abreviada, da edição


soviética, p.554; tradução nossa).
36 Luiza Kautsky (Strasser, em solteira).
Pensando com Marx (I) | 55

nas quais eles ainda se encontram. Os mesmos


indivíduos que acreditam ser totalmente natural que
seu ídolo Lassalle viva com os meios deles próprios
como um verdadeiro sibarita, acusam Liebknecht,
quando este, na qualidade de redator pago por eles,
vive com menos de uma terça parte desse dinheiro,
embora o jornal lhes ofereça ganhos cinco ou seis
vezes maiores (itálico nosso). Ser dependente, mesmo
que do partido operário, é um pesado destino. Mesmo
abstraindo-se o lado monetário da questão, ser
redator de um jornal pertencente ao partido é um
posto ingrato para quem tem iniciativa. Marx e eu
sempre estivemos de acordo em que nunca
ocuparíamos tal posto e que só poderíamos editar um
jornal economicamente independente até do partido
(itálico nosso).
Vossa “estatização” da imprensa37 pode ter grandes
insuficiências caso vá muito longe. A vocês é
necessário, sem dúvida, ter uma imprensa do
partido, diretamente independente da Direção e
inclusive do congresso do partido, ou seja, uma
imprensa que tenha possibilidade, nos limites do
programa e da tática adotada, manifestar-se
livremente sobre tais ou quais passos dados pelo
partido, assim como, não ultrapassando os limites
da ética partidária, submeter o programa e a tática à
crítica livre. Tal imprensa deve ser estimulada e
mesmo criada por vocês, enquanto Direção. Então
vocês terão mais influência moral sobre ela caso ela
surja pela metade contra a vossa vontade.
O partido expande-se para além dos limites da
severa disciplina existente até agora. Com dois-três
milhões de membros e afluxo permanente de
elementos “instruídos” 38 exige-se maior liberdade de

37 Engels tem em vista a proposta da Direção do POSA e sua fração no


Reichstag (Parlamento) dirigida ao Congresso Berlinense do Partido no
sentido de comprar todos os novos jornais partidários e transformá-los
em órgãos oficiais do partido. Esta proposta foi rejeitada pelo congresso
(Idem íntegra da nota 413 da ed. Soviética, p.560; tradução nossa).
38 No dialeto berlinense, “jebildeten”, no original,
56 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

ação do que aquela permitida até agora e que foi não


somente suficiente mas até ofereceu vantagem pois
colocou determinados limites. Quanto mais rápido
vocês próprios se adaptem e adaptem o partido a
esta situação em transformação, tanto melhor será.
E o primeiro que se exige é uma imprensa partidária
formalmente independente. Ela surgirá de todo o
modo, mas será melhor que vocês lhe dêem vida em
condições em que ela, desde o seu início, esteja sob a
vossa influência moral e não surja contrariando-os e
contra vocês (itálico nosso).

A teoria (ou seja, aqui significando a apreensão do


processo histórico em seu processo de transformação por
meio da produção intelectual de seus máximos
representantes) nunca poderia estar subordinada a nenhuma
organização - a não ser a si mesma - e o jornal do partido deve
ser formalmente independente deste (passada a fase
clandestina). É evidente que Engels e Marx, natural e
justamente, se concebem como partido da teoria, ao passo que
o partido, em sua acepção temporal, seria o partido prático. O
partido da teoria é autônomo com relação ao partido histórico,
o partido prático. Ambos os momentos não se confundem,
embora se necessitem e devam interagir, pois nascidos de
processos distintos e correspondendo a instâncias diferentes. A
gravidade histórica desta posição está em que, de lá para cá,
após Marx e Engels, os teóricos não se dedicaram a teorizar
sobre isso, ao passo que os práticos, desde então,
permaneceram encastelados em suas fortalezas estatal-
partidarias. Eis o que nos resta do século e tanto passados:
não haverá, pois, nesse ínterim, nem teoria nem
reconhecimento da legalidade histórica dessa relação imanente
entre a teoria e o movimento prático.
Isso ficará evidente no embate de Marx e Engels com o
partido alemão (POSA/SPAD) em torno da crítica de Marx ao
Pensando com Marx (I) | 57

programa de Gotha39 e, em particular, a Lassalle. Em 1891 as


duas instâncias se põem em campo e se chocam frontalmente.
O editorial de Vorwärts, órgão central do POSA, de 13 de
fevereiro 1891, trazia posição oficial da Comissão Executiva
do Partido, relativa à publicação da Crítica do Programa de
Gotha pelo Neue Zeit, condenava veementemente a crítica de
Marx a Lassalle e exaltava o Partido por haver aprovado o
projeto de programa, apesar da posição contraria de Marx. 40
Os senhores do partido ficaram possessos com a edição da
carta de Marx no dia 10 de fevereiro, no Neue Zeit, mas ao
final nada puderam contra ela e tiveram que também publicá-
la.
Observemos, em trecho do capítulo 3 desta obra, a
citação da carta de Engels a Bebel, de 1-2 de maio de 1891:

A experiência dos partidos da emancipação do


trabalho não esteve, contudo, com brilhantes
exceções efêmeras, plenamente à altura da necessi-
dade das revoluções, das necessidades que o seu
advento impunha. A história das duas Internaci-
onais, assim como a do partido modelar do século
XIX e início do XX, o partido social democrata da
Alemanha, atesta essa trajetória. As duas Internaci-
onais, por diferentes razões incapacitadas de
realizarem-se como expressão da ala esquerda na
revolução, foram impiedosamente encerradas por
Marx e seus camaradas, pois (para eles) não
(estavam) destinadas a ser, a todo o custo, partidos
profissionais e eternos. Estavam as duas Internaci-
onais condenadas à efemeridade dos ciclos
revolucionários e às transformações ideológicas e
políticas em suas fileiras. A crítica essencial e sem
contemplações de nenhuma espécie a não ser com a

39 O congresso do partido que passou a chamar-se após ele, Partido


Operário Socialista da Alemanha, realizou-se nos dias 22 a 27 de 1875.
40 O editorial chamava-se Der Marx’sche Programm-Brief (Carta de Marx

sobre o Programa), publicado no nº37 do Vorwärts, de 13 de fevereiro de


1891 e trazia a posição da fração do partido no Reichstag (idem.).
58 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

sua qualidade - a qual definiria a possível qualidade


do movimento prático - foi, porém, (tão
violentamente) censurada em vida de Marx e Engels,
ao ponto de Engels ameaçar, em 1891, a direção do
PSD alemão de denunciar publicamente seu veto à
publicação da crítica aos programas de Gotha e
Ehrfurt (vide a impressionante carta de Engels a
Bebel, datada de 1-2 de maio de 1891, na qual,
dentre outras maravilhas lê-se):
“Ainda mais isto: desde que vocês tentaram impedir à
força a publicação dos artigos e enviaram ao Neue
Zeit o aviso de que no caso de repetição de algo
semelhante ela teria, possivelmente, de ser levada ao
conhecimento do poder máximo partidário e
submetida à censura, - desde então as medidas de
conquista de toda a sua imprensa pelo partido a
contragosto se apresenta a mim sob uma luz peculiar.
Qual a diferença entre vocês e Putkamer, se vocês, em
suas próprias fileiras, decretam uma lei contra os
socialistas? Isso a mim, pessoalmente, pouco me
afeta: nenhum partido deste ou de outro país não
pode obrigar-me a calar se eu decidir-me a falar. Mas
a mim me gostaria de poder levá-los a pensar se não
seria por acaso melhor vocês não serem tão
suscetíveis e em seus atos um pouco menos
prussianos. Para vocês, ao partido, é necessária a
ciência socialista, mas ela não pode existir sem
liberdade de desenvolvimento. É necessário então
conformar-se com todos os aborrecimentos, e o melhor
é fazer isso com dignidade, sem nervosismo. Mesmo
uma pequena desavença, sem falar em uma cisão,
entre o partido alemão e a ciência socialista alemã
seria uma incomparável desgraça e vergonha” 41

41Conforme capítulo 3 desta obra: Carta de Engels a Bebel, nº 46, de 1-2


de maio de 1891, endereçada de Londres a Berlin.
Idem. p. 71-80. Tradução nossa.
Pensando com Marx (I) | 59

Eis uma afirmação inquestionável da relação da teoria


com o movimento prático e seu partido, da dialética especial
desta com o partido histórico assim como da sua essencial e
desse modo necessária emancipação das instâncias práticas,
tal como em geral exige toda e qualquer ciência, quanto mais
aquela destinada a ser instância determinante dos
trabalhadores para a sua própria emancipação.

II. O segredo da teoria do partido revolucionário

O embate de Engels com a direção do partido operário


socialista alemão revelará os elementos teóricos que
nortearam não somente a sua posição (reclamada como
conjunta com Marx), mas também da teoria do partido
revolucionário. Engels se insurge contra a direção do maior e
exemplar partido dos práticos, em nome da teoria, das razões
maiores da teoria com relação aos interesses práticos
imediatos, para impedir a incompatibilização a teoria com o
movimento de emancipação dos trabalhadores, a pior
catástrofe que, de acordo com ele, poderia ocorrer a este42.
Engels, de fato, proclama o estatuto primordial da teoria por
sobre as necessidades e vicissitudes do movimento prático.
Diz ele em sua já citada anteriormente carta a Bebel, de 1-2
de maio de 1891:

Durante os treze anos de império da lei contra os


socialistas43 não havia dentro do partido, entende-se,
nenhuma possibilidade de manifestar-se contra o
culto a Lassalle. Mas havia que por um ponto final
nisso e eu assumi essa tarefa. Eu não mais
permitirei que à custa de Marx se apóie e novamente

42 Idem.
43 A lei contra os socialistas, colocou o partido operário na ilegalidade e
foi promulgada pelo governo de Bismarck com o apôio da maioria do
Reichstag em 21 de outubro de 1878. A vigência da lei foi prorrogada a
cada 2-3 anos. Sob pressão do movimento de massa dos trabalhadores
essa lei de exceção foi abolida em 1 de outubro de 1890.
60 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

se faça renascer a glória mentirosa de Lassalle. Já


são poucas as pessoas que conheceram pessoal-
mente e endeusaram Lassalle. A todos os demais o
culto a Lassalle foi inculcado artificialmente e
inculcado graças ao fato de nós o havermos
suportado silenciosamente contra as nossas
convicções, de forma que ele não pode sequer ser
justificado pela afeição pessoal. Os interesses dos
inexperientes e novos membros do partido foram de
modo suficiente considerados, pois os manuscritos
foram publicados no “Neue Zeit”. Mas eu de forma
alguma posso concordar com que após quinze anos
de pacienciosíssima espera, a verdade histórica sobre
semelhante questão deva ficar em segundo plano
devido a considerações de decoro e possível
desagrado dentro do partido. 44

Sua batalha repõe a primazia da teoria e, assim,


defende o movimento e simultaneamente o núcleo teórico e
sua rede de apoios e simpatizantes contra a razão
administrativa dos funcionários do partido que ousa sobrepor-
se à história. Evidencia-se aqui a dimensão histórica dessa
contradição até agora não teorizada, embora realizada e
anunciada em atos e palavras por ambos os mestres
fundadores da teoria e também por outros revolucionários, ou
seja, a inevitável, a imanente tensão entre as duas instâncias
da revolução social - a da emancipação dos trabalhadores-,
entre a expressão do estado maior da revolução comunista
aglutinado em torno da teoria, de seus líderes intelectuais, e a
do partido prático da revolução, aglutinado em torno dos
chefes políticos deste. Duas instâncias que podem ou não
conviver no mesmo corpo e cujas funções podem estar
desigualmente distribuídas entre ambas. Este é o segredo da
teoria do partido revolucionário do comunismo e em grande
medida da própria revolução comunista. Questão que ainda
persiste irresolvida no século XXI, em torno da qual girou boa

44 Idem.
Pensando com Marx (I) | 61

parte das dissensões e incompreensões teórico-práticas dos


séculos XIX e XX. Não teorizada porque ainda não havia sido
posta a sua necessidade pela história. Questão óbvia demais
para os fundadores da revolução teórica em torno da qual se
aglutinaram as novas forças da revolução social, assim como
para os revolucionários dos universos do mundo eslavo e
oriental, no qual a vanguarda teórica e prática da revolução
era patrimônio das ordens letradas, da intelligentzia. A luta
chefiada por Vladimir Ilitch (e seus próximos) dirigiu-se à
fusão desses dois momentos imanentes ao processo
revolucionário45. Em ambos os casos, é o partido da teoria que
cria o partido prático, mas a fusão, o sincronismo desses dois
momentos impediu que eles formulassem uma teoria do
partido revolucionário.
A teoria materialista do partido revolucionário, do
materialismo dos fundadores, até o momento não foi
plenamente formulada. A teoria soviética pós-Lenin, por sua
vez, será a anulação do papel da teoria e, consequentemente,
do estado maior revolucionário comunista e de seu partido,
enquanto outras tentativas ainda não foram plenamente
exitosas. Outros importantes autores ousaram resolvê-lo,
sem, contudo, conseguirem formular uma teoria. Fiquemos
aqui com alguns exemplos significativos: Lenin, Rosa
Luxemburgo, Lukacs, Sweezy, Hobsbawn, Sarlo e Sève.
A nosso ver, o intento de Lucien Sève é o que mais se
aproxima de uma teoria46. No entanto é inequívoco caber e

45 LENIN, V.I., Carta a um camarada sobre nossas tarefas de


organização, Obras Completas (em russo), tomo 7, p. 5-32, tradução
nossa, publicada pela primeira vez na Nova Escrita Ensaio, ano IV, nº 8,
janeiro de 1981, p. 111-133. Nesse número, encontra-se importante
esforço teórico de José Chasin no sentido de desvendar o segredo da
relação da teoria com os práticos, na Apresentação do referido trabalho,
à página 113-116.
46 SÈVE, Lucien. Commencer par les fins - la nouvelle question

communiste Paris, La dispute, 1999 (a tradução portuguesa, no sítio


www.campo-letras.pt é questionável). O trabalho de MANDEL-dentre os
de outros autores-, La teoria leninista de la organisation, de 1970
(México, ed. Era, 1971), também não consegue resolver o imbroglio.
62 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

haver cabido à teoria (vide, p.ex. a experiência dos alemães e


russos) a criação do estado maior da revolução comunista. Este
enfeixaria, como já ocorreu na história, pelo menos seis
funções vitais: a produção e reprodução da teoria, a defesa do
estado maior, a defesa do movimento social, a guerra, a
sustentação econômica do estado maior, a construção do
corpo político (cuja evolução resulta no partido da revolução).
Por último, esse processo deveria e poderia construir o partido
da revolução. Sem a construção metódica e sistemática de
cada uma dessas funções não há como evitar a rota de
catástrofes nacionais e mundiais decorrentes do transcurso
das revoluções burguesas conservadoras, sustar e derrotar a
mão assassina do capital e seu estado a abater-se de modo
contínuo e cíclico sobre o processo da emancipação dos
trabalhadores. A construção desse estado maior revela-se
momento civilizatório vital, garantia contra os inevitáveis e
recorrentes retrocessos impostos pela contrarrevolução
permanente, latente nessas sociedades.
A construção sistemática do estado maior da revolução
comunista, o qual por sua vez constrói o partido
revolucionário, é o sentido das obras de Lenin sobre questões
de organização do partido revolucionário comunista (A que
herança renunciamos, Carta a um camarada e Que fazer) e do
que de fato foi a construção do partido bolchevique - da
maioria do partido social-democrata. Tarefa incompreendida
por Rosa Luxemburgo, diga-se. Ela e seus próximos pagariam
com a própria vida os descaminhos dessa relação. Já nesse
episódio revelar-se-ia a dimensão histórica potencial e
realmente catastrófica do cisma entre teoria e movimento,
proclamado teoricamente por Engels em 1891, cujos
desdobramentos históricos lhe dariam plena razão.
Engels caracteriza tal cisma como sendo o existente
entre “o partido alemão e a ciência socialista”, expressão
teórica merecedora de uma crítica acurada, não tanto pela
definição da teoria como ciência, mas, sim, como sendo ela
socialista, forma teórica desconhecida em Marx (mas muito ao
Pensando com Marx (I) | 63

gosto do movimento alemão e, aqui, para Engels, significando


teoria comunista). Nesta Carta nos é impossível dilucidar este
imbróglio, mas conste, para futuros estudos, que as
vicissitudes históricas da teoria transmutaram o comunismo
do Manifesto de 48 (que fazia questão de dissociar-s de todas
as demais correntes socialistas e comunistas anteriores a ele)
em socialismo, como sendo expressão daquele (Engels não é o
culpado dessa involução, diga-se). Fato que, de imediato,
conflitará com o próprio sentido histórico do caráter da
revolução social da teoria enunciado por Marx em sua própria
Crítica ao Programa de Gotha! Nele e em parte alguma Marx
falará em revolução socialista e muito menos em transição
socialista como ficaria sovieticamente consagrado na futura
teoria da revolução socialista, do socialismo, inexistentes em
Marx. Este, na Crítica... citada será explícito:

Entre a sociedade capitalista e a sociedade


comunista medeia o período de transformação
revolucionária da primeira na segunda. A este perí-
odo corresponde também um período político de
transição, cujo estado não pode ser outro que o da
ditadura revolucionaria do proletariado.
Mas o programa não se ocupa desta última nem do
Estado futuro da sociedade comunista. 47

O desaparecimento da teoria da transformação


comunista e, consequentemente, da emancipação dos
trabalhadores pelos próprios trabalhadores - como estava
implícito no Manifesto do Partido Comunista, usado como
referência por Marx nesse texto da Critica do Programa de
Gotha e explícito nos Estatutos Gerais da Associação
Internacional dos Trabalhadores de 1871, “(....) a
emancipação da classe operaria deve ser obra da própria
classe operaria”48- tem vínculos formais com a questão

47 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Obras Escogidas. Edição soviética


em castelhano. Moscou/Rússia: Ed. Progreso, 1976. Tomo III, p. 23.
48 Idem. Tomo II, p. 14.
64 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

tratada (suas determinações substantivas serão explicitadas


mais adiante). Em um único momento, quantas questões!
A observação central de Engels nos remete, para além
dessa questão, a duas formas de ser do movimento da
emancipação dos trabalhadores, a da teoria e suas obrigações
inarredáveis, o partido da teoria - o estado maior da revolução
comunista- e o partido prático, o partido político dos comu-
nistas. A cisão entre estas duas instâncias teria
consequências terríveis e por um longo período.

III. A derrota do estado maior bolchevique

A história de catástrofes do desenrolar-se da revolução


burguesa (conservadora) na Alemanha, além de duas guerras
mundiais, consegue arrebanhar a maioria do partido alemão e
transforma-la em aliada da burguesia e seu estado, contra sua
minoria comunista - assassinando sua vanguarda teórica e
prática -, fazendo refluir a instância máxima do estado maior
comunista a um novo centro. Este, supostamente capaz, a
partir de então, de ser o indissociável representante do estado
maior da revolução comunista mundial e do seu partido
prático, operação essa que obviamente não resolverá o cisma.
Logo mais, a revolução russa, dilacerada em suas múltiplas
determinações e contingências - em sua solidão mundial, a
trágica e prematura morte de seu único líder inconteste, a
urgência de suas tarefas imediatas, a guerra civil e a
intervenção militar de dezenas de potências capitalistas-, fará
ressurgir, nessas condições dramáticas, a disputa fratricida
entre os dois momentos imanentes da revolução, cuja forma
externa se apresentará como a disputa pelo poder entre Stalin
e Trotsky (este, aliás, com as devidas reticências, apoiado por
Lênin, tal como consta nas suas Últimas cartas e artigos49). O
drama permitirá fantasiar-se a contradição imanente como
sendo a da luta da teoria correta da revolução contra a teoria

LENIN, V. I. Ultimas Cartas e Artigos: 23 de dezembro de 1922 a 2 de


49

março de 1923. Moscou/URSS, Politizdat, 1971.


Pensando com Marx (I) | 65

errada e, de forma geral, de luta entre teorias. Tal fato


mascara - para os seus polos e para o mundo-, desse modo, a
contradição entre as forças do dividido estado maior da
revolução comunista (materializadas na figura de Trotsky) e
as forças do partido prático (encabeçadas por Stalin). Vencido
o estado maior, paulatinamente exilados e liquidados
fisicamente (lembremo-nos do semelhante destino deste na
evolução alemã) os seus expoentes, se formulará a nova teoria
do partido comunista, radicalmente contrária ao sentido da
história do bolchevismo, do legado de Lênin e da posição da
dupla dos velhos mestres. Estava mais uma vez explicitada a
dimensão catastrófica da cisão entre a teoria nascida da
revolução teórica dos fundadores e o partido prático, desta vez
em dimensão mundial e, com igual e mundial caráter
devastador e negador da instância histórica imanente do
estado maior da revolução comunista. As consequências são
nossas conhecidas.
É de se anotar que a maioria das revoluções vitoriosas,
embandeiradas de socialistas, camponesas ou proletárias,
ocorreu, em geral, como expressão do desrespeito de suas
máximas lideranças, explícito ou não, às determinações
teórico-práticas emanadas do centro mundial. Estas ousaram
constituir estados maiores construtores de partidos práticos,
tal como o foram, por exemplo, os casos da China, Vietnã,
Iugoslávia e Cuba, o que nos diz sobre as imensas limitações
desses estados maiores em realizarem-se em ambiente
mundial impróprio para a livre discussão de suas vicissitudes
nacionais e muito menos das internacionais.
Inúmeras seriam as consequências devastadoras
resultantes dessa cisão entre o estado maior da revolução
comunista e a centralidade da instancia soviética a manter a
ferro e fogo as órbitas teórico-práticas nacionais dos partidos
comunistas e, posteriormente, a reprodução dessa forma na
prática das outras revoluções socialistas. Ao ponto de, hoje, a
segunda maior potencia econômica capitalista mundial ser
66 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

dirigida por um partido comunista. Isso exige investigação


teórica mais aprofundada, mas evidencia o tamanho da cisão.

IV. O Brasil e o estado maior da revolução comunista -


saindo do impasse

Não tratando aqui de outros casos, a experiência


brasileira é testemunha eloquente dessa tragédia. No Brasil, a
cisão entre os dois momentos característicos da revolução
comunista nos levou a esta situação de extremo
fracionamento do partido prático, assim como suas projeções
majoritárias na órbita das polaridades políticas principais do
capital monopolista, PSDB e PT. Além disso, ao que sabemos,
até o momento, nenhuma das frações minoritárias do
comunismo nativo se apresenta como possível estado maior, o
que nos obriga a tomar essa tarefa em nossas mãos. Isso
significa construir o estado maior através da teoria, cujas
principais vertentes, por nós cultivadas, nos distanciam da
miríade comunista oriunda do ciclo da revolução russa e das
demais no século XX. Nos distinguimos delas por termos
chegado a sínteses importantes no que tange aos três desafios
teóricos desse ciclo: a teoria do partido revolucionário da
revolução comunista, a teoria da revolução comunista e a da
particularidade do desenvolvimento capitalista e suas
implicações para a revolução. Esses três momentos
determinantes do impasse teórico, se colocam ao lado do
abandono do cultivo da dialética, aliado ao estudo sistemático
do legado dos fundadores e ao livre desenvolvimento da teoria.
Da experiência histórica, sabemos que a teoria deve se
assumir como instância vital e indeclinável, o que exige o seu
cultivo sistemático, de tal forma que a criação do estado maior
e seu desenvolvimento conformam ação permanente e
insubordinável a qualquer ordem de circunstância prática. A
teoria e suas decorrentes funções, devem ser cultivadas pela
ordem da teoria, aquela que garantirá a continuidade e
qualidade de seu desenvolvimento, aquela que já
Pensando com Marx (I) | 67

denominamos, até que encontremos um nome melhor, de


ordem carlina (de Carlos Marx).

Sobre o partido da revolução comunista: a nossa


experiência

Creio que no nosso caso, o estado maior criará o


partido de modo concomitante ao da sua própria criação,
dado que podemos usufruir da nossa própria experiência. A
organização que faz a grande política, tal como então
dizíamos, está vinculada às grandes dimensões
emancipatórias, não seria outra que não, em linhas gerais,
nosso trajeto NEC-IBEC-PUP.50 O que éramos nós senão o
estado maior embrionário gerando em seu trajeto
emancipador os núcleos de partidários práticos de uma
empolgante empreitada? Sendo ainda um estado maior
embrionário da ordem carlina, não pode criar
sistematicamente o partido porque sequer sabia ser esse
estado maior.
Por sua vez, é evidente que esse partido não é o do
molde tradicional, do poder central vertical e alienante, mas o
da multiplicação de todas as dimensões das tarefas
emancipatórias e sua coordenação. Exige centralismo - pois
coordenação e planejamento de suas múltiplas e
crescentemente ampliadas dimensões-, mas de igual modo,
democracia, livre discussão e decisão sobre os rumos dessas
dimensões. De igual modo, de forma a garantir especialização
dessas dimensões, voltadas para a transformação social. Ora,
este é, em grandes linhas e no essencial, o partido de Lênin,
assim como o desejado pelos pais-fundadores. É evidente que
nas condições específicas de vigência das liberdades civis, ele
tomará a forma a mais adequada a tal situação. O mais pleno

50Respectivamente, Núcleo de Estudos Contemporâneos, Instituto


Brasileiro de Estudos contemporâneos, Projeto Universidade Popular.
68 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

poder da teoria sobre a transformação prática da história


exige um partido determinado pelas lutas emancipatórias, de
tal forma que o processo do seu crescimento contamine e
rompa o controle capitalista sobre a reprodução social. Será o
processo de construção do estado maior comunista o centro
criador das condições necessárias para o surgimento do
partido da revolução comunista.
No nosso caso, fizemos um longo périplo no campo da
educação como momento crucial da emancipação social. O
PUP esbarrou na limitação insanável dos movimentos sociais
e, agora, deverá privilegiar nosso crescimento entre os
sofredores da ordem capitalista miserável.

V. O projeto dos refundadores comunistas franceses

Outra não é a proposta de Lucien Sève, em seu livro de


1999, onde se lê que a tarefa dessa organização é
essencialmente:

[...] começar a superar de modo concreto o


capitalismo mais desenvolvido [Sève está falando da
França contemporânea] e, com ele, todas as grandes
alienações históricas nas suas formas atuais,
trabalho de que não há exemplo e é doravante de
vital necessidade e para que aponta a própria
palavra comunismo. A elaboração (obs. nossa:
melhor seria criação) de uma força deste tipo, sendo
inseparavelmente reflexão teórica e experimentação
prática, obriga a uma extrema ousadia tanto na
crítica como na invenção, do mesmo modo que
obriga a uma inteira publicitação, tal como convém a
um empreendimento que diz ao mais alto ponto
respeito à coletividade cívica e que responde ao
desafio, não menos público, dos gatos-pingados do
comunismo. Sim, está em gestação um comunismo
novo e contra o qual o velho anticomunismo vai
descobrir a sua impotência...A ousadia não exclui,
bem pelo contrário, recomenda, a prática associada
Pensando com Marx (I) | 69

do “princípio da precaução” baseado nesta rude


experiência da história comunista recente: nesta
matéria é bem mais fácil destruir do que
reconstruir51. Este princípio é tanto mais oportuno
quanto não há qualquer possibilidade de que a
formação deste comunismo de nova geração seja
bem vista- e certamente ainda menos em França do
que noutras paragens, tendo em conta a sua
peculiar situação política- por aqueles que se
arrogam o cuidar da boa ordem dos assuntos
nacionais e mundiais; seria imperdoável ingenuidade
não ter consciência disto. Quanto mais sólidas
garantias se possui contra os riscos de um erro fatal,
tanto mais se é livremente ousado. E que melhores
garantias se pode ter contra o erro do que o
pluralismo refletido e a transparência democrática
da postura? A grande aventura da refundação
comunista é uma parada demasiado alta para que
possa ser conduzida de maneira aventureira, tal
como é demasiado necessária para se acomodar com
uma atitude timorata. 52

O projeto de Seve e seus camaradas implicava na


conquista intelectual e consequentemente política do PCF. Ao
partido do absolutismo centralista, alienador e liquidador da
instância teórica reitora, do estado maior da revolução
comunista, tal como o chamamos aqui, vigente no comunismo
político tradicional, surgido depois dos anos vinte na URSS e
universalizado pela Internacional Comunista a todo o
movimento mundial, propunha um partido da grande política,
dedicado às grandes dimensões da emancipação e em grau
subalterno às injunções da pequena política burguesa. Seu
projeto de refundação comunista via reconstrução do PCF viu-
se ser impossível. Ele e seus camaradas, centenas deles

51 Sève empenhou-se há mais de uma década na autotransformação do


PCF e acaba, ao lado de centenas de outros camaradas, de sair do
partido. A reconstrução foi, portanto, impossível.
52 Sève, Lucien Commencer par les fins, tradução portuguesa, op. cit. p.

209-210.
70 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

abandonaram o partido em abril deste ano, às vésperas do


34º Congresso. No documento que lançaram em 14 de abril de
2010, em seu nome e de Roger Martelli, dentre outras coisas,
diz-se:

Nossa cólera é incomensurável devido ao desperdício


de um quarto de século. Por não haver ousado levar
adiante sua renovação comunista, o PCF esterilizou
um componente maior da alternativa pós-capitalista.
Ele era uma casa comum possível desde o instante
em que aceitava ser uma co-propriedade. Por
desgraça ele escolheu ser o espaço fechado de um
aparelho que sempre pretendeu saber de antemão o
que “desejavam os comunistas” e que, em nome
desse saber aceitou que centenas de milhares de
comunistas fossem expulsos de um partido ao qual
pertenciam a tal ponto que a maioria deles jamais
encontrou outra habitação política que os acolhesse.
Nosso sonho é que surja essa casa comum dos
comunistas, assim como o de uma comunidade
durável de todas as sensibilidades de alternativas.
Esse objetivo continua a dar sentido ao nosso
combate.53

O núcleo teórico da refundação comunista francesa


empenhou-se a fundo na reconstrução do PCF, sem, no
entanto, formular uma teoria da organização comunista que
passasse pelo papel reitor da teoria no sentido usado por
Engels. Esta somente poderia mesmo surgir entre nós, onde o
processo de desintegração do comunismo político atingiu tais
proporções que não há mais o que salvar a não ser recomeçar
tudo de novo. A história nos favoreceu, embora o processo e
questões semelhantes às nossas tenham ocorrido em
condições históricas bem mais favoráveis na Venezuela, onde
o fracasso da democracia burguesa – “democracia petrolera” -

53Documento escrito por Lucien Sève e Roger Martelli em nome do


movimento refundador do PCF (anexo 1).
Pensando com Marx (I) | 71

no capitalismo da miséria abriu caminho ao atual


anticapitalismo bolivariano. 54
Em certa medida, ainda que não tenha vislumbrado e
nomeado a questão do estado maior da revolução comunista,
está claro, para Sève, a imperiosa centralidade da teoria, tal
como se encontra no primeiro volume de sua trilogia 55. Aliás,
o espírito dessa sua empreitada é o de um verdadeiro
manifesto da teoria: a síntese da atividade teórica de sua vida,
aquela que o levou à luta pela refundação do PCF.

54 GUERRERO, Modesto Emilio. Quién invento a Chavez? Buenos Aires:


ed. B, 1997.
55 Uma breve citação, creio, servirá para ilustrar essa minha afirmação:

“Por meio de todos esses desenvolvimentos o pensamento de Marx se


prolonga então naquilo que eu atualmente tenho costumado chamar de
pensamento-Marx. E para alcançar de fato essa posição ele deve ainda ser
operatoriamente marxiano – exigência última que muito bem se poderia
ter como primeira, comandada por uma questão na qual se resume o
espírito dessa teoria prática à qual se remete o nome de Marx: o que se
pode fazer com ela? Ao examinar sem qualquer condescendência a longa
experiência de atividade marxista coletiva que tive desde os anos
cinqüenta do século passado, devo dizer que um de seus traços mais
funestos- ela não teve mais que esses- foi o de nos fazer consagrar muito
tempo aos debates internos assaz esterilmente repetitivos sobre Marx ao
invés de investigações poderosamente inventivas em vários domínios com
Marx: uma tendência ao confinamento em uma obra toda dirigida para a
intelecção e transformação do mundo, o que diz muito bem sobre a
dramática involução do qual esse nomeado marxismo foi em grande
parte o emblema. Se o pensamento marxiano quer hoje fazer a prova de
que é mais do que nunca pensamento deste mundo não somente para os
já de antemão convencidos mas para os que devem ser convencidos, ele
não alcançará isso unicamente- ainda que seja muito necessário- ao
saber falar de si melhor do que nunca: bem mais indispensável ainda é
que ela saiba se mostrar simultaneamente judiciosa e profícua em
investir em todo o espectro do conhecimento científico e campos
culturais contemporâneos, sobre todos os terrenos da crítica social do
mais próximo ao mais planetário, em todas as iniciativas em favor de
uma política ao mesmo tempo crítica e visionária de superação radical do
capitalismo, delineando uma resposta comunista à grande questão- qual
humanidade desejamos vir a ser no século XXI? Reconstruir a evidencia
de que Marx é produtivo, esse é o objetivo da nova relação que se deve
estabelecer com ele. ” (p. 197-198, tradução nossa).
SÈVE, Lucien. Penser avec Marx aujourd’hui I: Marx et nous (Pensar com
Marx hoje I: Marx e nós). Paris/França: La Dispute, 2004.
72 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

VI. A questão da transição comunista

A questão central das revoluções comunistas dos


séculos XX e XXI, nos universos das revoluções
burguesas conservadoras, está não somente no fato
de elas carregarem a obrigação de resolverem as
tarefas burguesas herdadas do caráter dos capitalis-
mos dos quais elas nascem, mas de que todas essas
tarefas compõem um verdadeiro rol de revoluções a
competir não somente umas com as outras, mas
todas com a revolução especificamente comunista.56

No capítulo 8, abre-se o tema da transição comunista


com a frase acima. Após desenvolver uma proposta de síntese
das questões teóricas vinculadas às duas categorias históricas
do desenvolvimento capitalista (as revoluções burguesas
radicais e conservadoras), entro no tema das transições
comunistas, que não casualmente ocorreram e continuam a
ocorrer no universo das revoluções conservadoras. Sem poder
desenvolver com maior detalhe a questão, tentarei aqui situar
os seus momentos decisivos.
Por nos encontrarmos no universo histórico das
revoluções burguesas conservadoras, na arena da
simultaneidade das múltiplas revoluções conflitantes nelas
latentes, existe – ou melhor, pesa sobre elas - a possibilidade
da preponderância da revolução econômico-social sob o
capital, ou simplesmente, da revolução do capital, de tal
forma que não só a revolução comunista seja rapidamente
derrotada, como também de que a revolução vitoriosa se faça
passar pela revolução derrotada. Ou seja, a autodenominada
revolução socialista no universo das sociedades oriundas das
revoluções burguesas conservadoras corre o perigo mortal da
transmutação da revolução, quando a revolução da plena
emancipação social é derrotada por uma (ou mais de uma:
não há regra única) das revoluções da emancipação relativa

56 Vide Capítulo 8 desta obra.


Pensando com Marx (I) | 73

(ou mesmo da desemancipação), revolução (ou revoluções) sob


o capital, de tal forma que a emancipação relativa ou a
desemancipação se faz passar por forma necessária da
emancipação radical, comunista, forma da transição
comunista. Entenda-se aqui por revolução comunista o
processo da transição comunista (tal como expressa na Crítica
ao Programa de Gotha), guiada, portanto, pelo seu objetivo
central, a emancipação dos trabalhadores pelos próprios
trabalhadores, como se diz no Manifesto Comunista.
A transmutação da revolução política socialista tem
dois momentos característicos e necessários, a revolução
econômica sob o capital - sendo então do capital - e a revolução
popular. Elas sobressaem sobre as revoluções democrática e
comunista devido aos processos imanentes às formações
capitalistas paridas do solo burguês conservador. A miséria
capitalista exacerbada (e hiperbólica nas de matriz colonial
ibérica) e sua urgência por bens materiais e serviços, suas
imensas carências sócio-econômicas (já resolvidas e
universalizadas pela civilização capitalista do pequeno núcleo
de nações saído das revoluções burguesas radicais e seu
universo semi-colonial), assim como o caráter desemanci-
pador das burguesias dos capitalismos da miséria e o
consequente caráter exclusivista-burguês de suas demora-
cias, constituem, ambos, processos imanentes a essas
sociedades. Elas fundamentam tanto a contrarrevolução
socialista (ou anti-comunista) quanto a contrarrevolução
absolutista (ou anti-democrática), em favor da revolução
econômica do capital e da revolução popular, as quais então
realizam e se realizam na revolução republicana. Enterram a
revolução comunista e calibram as revoluções democrática e
cultural nos limites da dinâmica interna a seus dois
momentos determinantes (democrático-popular e nacional).
Muito embora o polo comunista do estado maior da
revolução política seja em geral decisivo (à exceção de
algumas, tais como em Cuba, Venezuela, Bolívia, Portugal,
assim como nos movimentos de libertação anticoloniais
74 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

africanos - como é o caso daqueles do império colonial


português - e na África do Sul), nas revoluções políticas de
caráter democrático, popular, republicano e anticapitalista
ocorridas nos capitalismos da miséria e outros universos
capitalistas particulares da revolução burguesa conservadora,
no momento seguinte à sua vitória o estado maior da
revolução comunista se vê de imediato mergulhado no
turbilhão das múltiplas, concomitantes, encavaladas,
conflitivas e concorrentes revoluções eclodidas, embutidas na
ordem capitalista conservadora e miserável. Turbilhão que
objetivamente desloca a revolução comunista do centro das
determinações revolucionárias e a coloca em perigo mortal
(evidência recente dessa questão encontramos na revolução
sul-africana57 ou mesmo nas das ex-colônias portuguesas58).
De igual modo, essas múltiplas revoluções têm nítida
expressão social burguesa (antes de tudo pequeno-burguesa),
ou seja, das classes não-revolucionárias e contrarrevo-
lucionárias. São revoluções postergadas (incubadas ou
incompletas) nascidas das lutas populares em solo burguês,
não são propriedade exclusiva de nenhuma classe e tem
amplo vínculo histórico tanto com as classes burguesas como
com as classes proletárias (sempre estiveram presentes nas
lutas dos trabalhadores). Revoluções tanto de classes
amplamente minoritárias quanto das classes majoritárias,
revoluções emancipadoras, etapas da emancipação social.
Mas, atenção, atentar para esta trágica particula-
ridade: o fato de o estado maior da revolução vitoriosa ser ou
dizer-se socialista ou comunista não indica naturalmente ser
a classe revolucionaria uma ampla maioria das classes
trabalhadoras, muito menos ser o estado maior propriamente
comunista no sentido teórico de Marx. Mais, o tempo histórico
que deveria ser o da transição à condição de ser a classe

57 KLEIN, Naomi. The Shock Doutrine: the rise of disaster capitalism.


New York: Picador, 2008.
58 ADAM, Yussuf. Escapar aos dentes do crocodilo e cair na boca do
leopardo. Maputo: Ed. Promédia, 2006.
Pensando com Marx (I) | 75

revolucionaria a maioria da classe trabalhadora, é o mesmo


das urgências da revolução econômica e da revolução popular
que impõem-lhe sua marca fatal, deletéria. Espremido entre
tempos históricos conflitivos e concorrentes, o estado maior
da revolução comunista (ideologicamente comunista a la Marx
ou socialista a la século XX) encontra-se diante de opções
dilacerantes. A classe trabalhadora revolucionária, não sendo
a classe numericamente majoritária não pode natural e
indolormente impôr-se como regente da nova ordem transitiva.
Desse modo, o estado maior da revolução vê-se
tentado a manter a iniciativa na revolução popular vitoriosa
da qual ele foi a vanguarda, apoiado na (real) minoria
revolucionária (embora, é claro, com a aprovação declarada e
ativa das amplas maiorias). Subitamente advertido, pela
evidência histórica, de sua fragilidade, acossado pelas demais
revoluções eclodidas e incontroláveis, assim como pela
onipresença ameaçadora do invisível porém sempre
devastador estado maior do imperialismo (e suas forças
internas aliadas) o estado maior da revolução buscará resolver
o quanto antes e pela força (em geral) seus dilemas
democráticos, populares e econômicos. Ele transforma-se
natural e inexoravelmente em núcleo dirigente do novo estado
revolucionário e, enquanto estado, se esforçará por resolver a
questão política democrática tanto através da atração seja dos
outros estados maiores revolucionários como das lideranças
das demais revoluções eclodidas rumo à criação de um único
partido da revolução, assim como pela repressão das
lideranças ou estados maiores das contrarrevoluções ou
núcleos não-revolucionários, mas agora partícipes
indesejados, convidados de pedra da revolução.59
Enfim, impõem-se naturalmente, nas revoluções
políticas de caráter popular, democrático, republicano e
anticapitalista, as marcas de origem geradas pelas revoluções
burguesas conservadoras, e, acima de tudo, a hipostasia

59 A experiência das revoluções cubana e venezuelana são exemplares.


76 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

revolucionária, a transmutação da revolução comunista em


revolução econômica do capital, incapaz de escapar desta
relação e transitar ao comunismo porque é negação teórica e
prática desta relação. A ordem transitiva socialista, da
específica teoria da revolução socialista do século XX -
expressão teórica da ordem hipostasiada-, não é etapa da
transição comunista, mas simples desdobramento da ordem do
capital, cuja impossibilidade de ser plenamente livre tal como
o capital sempre o deseja, pois fortemente controlada pelo
estado pós-capitalista, forcejará por liquidá-lo e restabelecer o
seu império e retorno à ordem capitalista. Tal ocorreu com a
esmagadora maioria das revoluções socialistas no século XX,
com a solitária exceção de Cuba, onde as dimensões da
emancipação social e nacional não sufocaram plenamente o
caráter anticapitalista e especificamente antiimperialista da
revolução.

VII. Sobre a dinâmica própria da sociedade


comunista

Como então poderia partir da hipóstase revolucionária


a natural emanação da dinâmica comunista da reprodução
social? Essa a esfinge contra a qual Che Guevara debateu-se,
tentou febrilmente decifrar e fracassou. Ele partia de uma
questão real e vital, a da continuidade da reprodução social a
transcorrer, na infindável transição socialista, via
permanência e determinação dos estímulos materiais, ou seja,
da produção social das mercadorias (e da força de trabalho
enquanto tal) e do dinheiro como mercadoria universal.
Partia, portanto, com toda a razão, da contradição antagônica
da permanência e centralidade do mundo da mercadoria e
suas dimensões, ou seja, do capital (afinal, salário, preço,
lucro e juros são estas dimensões, como sabemos) com a
transição comunista. Expunha, sem o dizer, o caráter
radicalmente distinto das duas transições, pois a transição
Pensando com Marx (I) | 77

comunista é, para Marx, aquela que marcha através, mas


contra e para além do capital 60.
A dinâmica comunista, em Marx, cria naturalmente
forças produtivas anticapital, ou seja, a classe revolucionária
natural e tranquilamente se associa para a destruição, para a
eliminação do trabalho social para o capital, para a sua
transformação em trabalho para a emancipação social, ou
seja, mais ainda, contra a escravidão do trabalho assalariado
e das forças multiplicadoras da produção, subordinadas a
essa escravidão. Aqui falamos da liquidação do sistema do
controle social do capital sobre o trabalho assalariado (estado
e capatazia privada) e do sentido social da ciência e da
tecnologia impostos pelo capital. 61 Na transição comunista,
os coletivos de trabalhadores, voluntária e conscientemente
organizados, proprietários diretos dos meios de produção,
naturalmente se dedicarão a comprimir ao máximo e o mais
rapidamente possível, a jornada de trabalho, de forma a
produzir cada vez mais produtos para atender mais e melhor
as necessidades humanas, através de uma ciência voltada à
produção de tecnologia subordinada a essas tarefas, ou seja,
tanto à desmercantilização e à emancipação do trabalho,
quanto à de trabalhadores cada vez mais emancipados do
capital (o que de forma alguma significa imediata abolição da
mercadoria). Ao invés da promessa de um mundo protestante
e sua moral de muita disciplina, trabalho e dedicação infinita
às mercadorias, a ser apreendida teoricamente na escola e
praticamente nos locais de trabalho e, quando, à força de
muito exemplo positivo, vigoraria a promessa da dedicação
coletiva, voluntária e consciente, a invenção de formas de
condução e redução ao mínimo do trabalho socialmente

60 Como bem nota Mészáros, em seu Para além do capital.


61 O livro do nosso camarada Felipe Luis Gomes e Silva A fábrica como
agência educativa (saído da sua tese de doutorado), assim como o esforço
do professor Renato Dagnino em Neutralidade da ciência e determinismo
tecnológico demonstram que essas questões, já postas por Marx,
mantêm-se atuais nas inquirições acadêmicas, com projeções vitais para
a transformação social.
78 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

necessário e à produção do ócio, ou seja, de trabalhadores


cada vez mais emancipados, cultivadores de suas infinitas
capacidades. 62
Ao invés da contemporânea repauperização universal
imposta natural e inexoravelmente pelo pleno domínio do
capital monopolista sobre a produção mundial recolonizada e
os demais elementos da reprodução social, necessários para
que isso ocorra - a despolitização universal, a guerra infinita a
impor a destruição-reconstrução como adendo irracional do
capital à produção destrutiva do complexo industrial-militar,
escalas progressivas da violência social e da ruptura em igual
escala de padrões civilizatórios a compor a nova barbárie
universal, o iletrismo, o trabalho precário (superxplorado), a
boçalização infantilista e a obesidade como epidemias, altas
taxas de desemprego crônico e crescente em faixas etárias
determinadas como forma estável de reprodução do trabalho
para o capital e, por último, a incontida corrida mundial à
liquidação das bases da reprodução da vida-, a força social da
dedicação coletiva e consciente à criação da liberdade
solidária, fraterna e igualitária mundial através da criação das
novas forças produtivas necessárias à liquidação do salariato.

VIII. A contrarrevolução pequeno burguesa no Brasil

A transição democrática pós-ditadura manteve intacto


o estado maior da contrarrevolução capitalista e seu universo
de relações sociais, assim como o poder político do congresso
em mãos de uma maioria proprietária e seus representantes.
Nenhum dos cinco atributos do estado maior burguês foi
derrotado ou perdeu poder substantivo. As maiorias
burguesas já haviam aderido às conspirações para a
realização do golpe de 1964 e, depois deste, à ditadura. Os
estratos majoritários da nova pequena burguesia, ao sofrerem
com a crise iniciada em 1974, na esteira do fim do ciclo

62 Tal como queria o genro de Marx, Paul Lafargue em seu Direito ao ócio,
elogiado por aquele.
Pensando com Marx (I) | 79

mundial ascendente do capitalismo desde o pós - II Guerra,


estreitou a possibilidade de manter incólume a reprodução
política da ditadura. A crise e a ditadura freiam seriamente a
ascensão social dessa classe, pois esta naturalmente projeta-
se para o estado, a política e a administração capitalista dos
negócios. Sua indignação conservadora catapulta os partidos
antiditatoriais da ordem e os coloca no poder, embora não
contra e, muito ao contrário, a favor da dominação inconteste
do capital monopolista. A contrarrevolução capitalista iniciada
em 64 tem sua continuidade no período democrático no que
respeita a ordem econômica, e as questões democráticas e
republicanas embora alarguem seu campo através das
mudanças permitidas pela nova ordem, não alteram o padrão
da reprodução política no que tange ao poder popular na
democracia e muito menos a expressão do seu pólo
anticapitalista. A transição incorpora, inclui a pequena
burguesia ao poder burguês e barra a projeção da
autoorganização das maiorias trabalhadoras ao colocá-las
fortemente atadas a novas lideranças burguesas e pequeno-
burguesas da ordem, muitas delas oriundas da nova
esquerda, do comunismo e sindicalismo recente.
O comunismo político prossegue sua fragmentação em
suas várias alas históricas e, em sua maioria, salvo raras
exceções, não só adere à ordem e abandona o campo da
revolução, como transita de armas e bagagens aos partidos
daquela, mantendo ou não as antigas denominações. A
ditadura, ao promover o amplo e eficaz extermínio seletivo das
lideranças revolucionárias e burguesas do bloco derrotado em
1964, privará a revolução de seus melhores e experientes
quadros, criará, com isso, sérias barreiras à retomada da
organização das maiorias trabalhadoras. O descalabro teórico
e prático dessas forças, carreado pelo menos desde os anos
trinta, mais o fracasso das revoluções socialistas, ampliará
sobremaneira o fosso de onde a revolução deverá renascer.
80 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

A nova pequena burguesia letrada, mais aquela


sobrevivente dos escombros da industrialização, sofredora do
resultado da crise geral iniciada em 74 e, depois, da catástrofe
neoliberal da transição democrática, dividir-se-á entre
manter-se fiel ao capital monopolista desalojado do poder
absoluto no estado e desejoso de manter-se senhor exclusivo
deste - vigente sob a sua regência empresarial-militar - ou
pelejar para conquistar o estado e, sem discutir as ordens dos
patrões monopolistas, prosseguir timidamente as reformas
democráticas necessárias para manter-se como esperança
mudancista para as maiorias, inclusive as trabalhadoras, ou
seja, empurrando o campo das emancipações. Sua expressão
mais nítida são respectivamente o PSDB e o PT. Continua a
contrarrevolução capitalista iniciada em 1964 seja aderindo
ao status-quo monopolista absolutista empresarial-militar
vigente desde o Golpe ou assumindo-se como classe burguesa
com projetos melhoristas do status-quo monopolista.
O corpo antidemocrático e anticomunista das Forças
Armadas (esteio da velha pequena burguesia reacionária)
manteve-se desde o golpe dividido (e antes dele, é claro),
grosso modo, entre democratas-liberais, ou seja, antidemo-
cratas pontuais (eles se veem assim), democratas sem povo -
pois este, para eles, conspurca a democracia -, pró-
americanos (“damos um golpe para impedir o bloco popular-
democrático de ascender ao poder, o alijamos do poder e
depois convocamos eleições que coloquem no poder ou a nós
próprios ou forças mais conjugadas conosco”. Castelo Branco
era seu máximo líder, udenista) e fascistas de toda a ordem
(pró-alemães, italianos, etc., camisas verdes, etc.), não-
liberais, desenvolvimentistas (Costa e Silva e todos os demais
generais da ditadura, até o “mais democrata” deles, o
Figueiredo).
Na fase pós-ditadura, os militares pró-desenvol-
vimentistas estão muito enfraquecidos e os udenistas
anticomunistas liberal-democratas se unem aos liberais anti-
ditadura, do PMDB (e surge o PSDB). Os militares desenvol-
Pensando com Marx (I) | 81

vimentistas se unirão ao bloco não-liberal anti-ditadura


(PMDB, PT e demais). As clivagens permanecem as mesmas
como se pode ver. Ou seja, a contrarrevolução pequeno-
burguesa tem essas duas vertentes. O velho projeto liberal,
escrito pela dupla Bulhões - Gudin, foi seguido pelos novos
liberais, cuja matriz paulista (local sede das multis e seu
corpo diretivo) é dominante, FHC à frente, ao lado de
Giannotti e Serra (neo-adepto da ala direita da AP, pois
quando jovem, era de sua ala esquerda). Como presidente da
UNE discursou veemente no fatídico 13 de março de 1964, na
Central do Brasil, no Rio de Janeiro). Daí termos Belluzzo e
Delfin escrevendo na Carta Capital do Mino Carta.
A nova pequena burguesia está composta
majoritariamente pelos filhos dos trabalhadores assalariados
e pequenos burgueses, letrados nas escolas e universidades,
dentro e fora do funcionalismo público (Serra, Belluzzo,
Giannotti, Montoros, Delfin, Varela, etc.), assim como pelos
filhos da elite militar (FHC, Mercadante, Jabor, Malan, etc.),
das velhas elites industriais (Matarazzo, Suplicy, etc.), aliados
aos neo-grandes capitalistas (Maggi, Gomes, Jereissatis, etc).
É a nova elite orgânica do capital financeiro em ambos os
pólos majoritários, cujas máximas expressões são o PT e o
PSDB.
A reprodução política nesta fase da nossa revolução
conservadora aparenta estabilidade pró-monopolista. Mas não
se confunda a glória lulista como sendo o seu padrão
definitivo. A nova ideologia de futuro - a do país da nova
classe média (o novo sonho brasileiro, cópia tardia dos EUA
do pós - II Guerra), seguindo-se à do milagre brasileiro da
ditadura e do milagre neoliberal na segunda fase desta,
transcorre em terreno minado. Seja pela crise geral capitalista
e seus reflexos, dos quais não se pode manter a economia
plenamente incólume; seja pela mediocridade gritante das
lideranças burguesas e pequeno-burguesas a sucederem o
binômio FHC-Lula; seja pelo tenebroso e catastrófico
paradoxo de estarmos mergulhados em ciclo de expansão
82 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

extrativista do petróleo – incensado como o novo mito redentor


da miséria - concomitante à fatal catástrofe do aquecimento
do planeta exatamente em essencial medida devido à matriz
energética de base fóssil da reprodução econômica capitalista;
seja pela escala e dinâmica da devastação de novos biomas e
imensos territórios em prol da sede infinita da nova
reprodução mundial do capital financeiro, seja pelos
renovados e aprofundados horizontes da miséria e seu séqüito
de mazelas contra os quais o tíbio esforço emancipador do
neo-desenvolvimentismo não tem o dom de poder vir a
superar. Esses horizontes de profunda alienação são um
desafio à nossa luta pela emancipação, exigirá do povo
brasileiro e dos povos latino-americanos ainda novos e
insuspeitados desafios e tragédias. A revolução conservadora
é, simultaneamente, revolução e contrarrevolução, ambas
calibradas ao regime da luta de classes nas várias escalas
territoriais e políticas possíveis. A contrarrevolução
capitalista, que determina a falência do bloco democrático,
social e nacional oriundo da revolução de 30, é revolução
capitalista para o capital monopolista nativo e seus parceiros
multinacionais e as várias vertentes da ala direita da
revolução de 30 a compor o novo bloco vitorioso antinacional,
antidemocrático e anti-popular, ao passo que a
contrarrevolução social caminhava em ritmo bem menos
acelerado, embora não menos radical no longo prazo. Esse
movimento assincrônico instaura, hoje, ao lado da
continuidade e plena estabilidade da dominação política
monopolista, elementos contrarrevolucionários alarmantes e
nunca vistos ao nível da reprodução ideológica em esferas
sociais tais como a educação. A massa pequeno burguesa,
incluídas as camadas das classes trabalhadoras aspirantes ao
salto mortal para o mundo burguês, está encadeada ao brilho
da mercadoria, ao passo que a miséria na qual se encontram,
elas e a massa trabalhadora, é desprezada como sendo
indigna de atenção.
Pensando com Marx (I) | 83

Esse horizonte, aliado à internacionalização do capital


monopolista nacional e aos ímpetos truculentos da burguesia
nativa, assim como aos renovados apetites de relançamento
do Brasil Potência (com a sua ala nuclear fortalecida e tudo o
mais) agora sob apoio e aplauso dos partidos da ordem e sua
intelectualidade orgânica, conferem ao futuro uma alta dose
de complexidade e perspectivas de lutas sociais violentas.
Devemos estar atentos aos desafios que nos esperam. Os
tempos presentes e futuros não são os das perspectivas as
mais radiantes.

IX. Forjando as bases do Movimento de Emancipação


dos Trabalhadores
Conclusões

Esta carta foi sendo paulatinamente escrita ao longo


dos últimos quatro meses. Busca sintetizar a nossa trajetória
teórico-prática dentro das limitações da forma epistolar-
ensaística. Difícil comprimir quatro décadas de indagações
(desde 1964) e buscas, no tempo e no espaço, de solução das
questões vitais do projeto da emancipação comunista. Outros
textos explicitam mais pormenorizadamente essas mesmas
questões, mas nenhum as abarca e amarra em uma mesma
fieira. Mesmo buscando ser ao máximo sintético, já não são
poucas as páginas. Espero que o esforço em lê-las seja
proveitoso e a partir de então iniciemos uma nova e mais
empolgante jornada coletiva. Creiam que todos e cada um dos
camaradas e amigos está aqui presente em pensamento e
ação. Sem vocês não haveria este momento. Os amigos de
longa data sabem que estamos conversando sobre essas
questões desde meados dos anos sessenta e os que vieram
antes de nós desde os finais do século dezenove. Estou firme
na convicção de havermos chegado a bom porto e que a luta
não passou em vão. Continua e agora em novo e mais alto
mirante. Espero que dele possamos ver as novas terras da
liberdade.
84 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

O marxismo oficial está para a revolução teórica assim


como o Novo Testamento está para o Velho, mas com o sinal
trocado. A ideologia da revolução dos pobres e,
consequentemente, a história que ajudou a construir, cujo
início data da Revolução Russa de 1917, subverte de tal modo
a revolução teórica de Marx, ao repor a seita e sua virulência
bárbara, que se apresenta como indiscutível retrocesso. Da
liberdade da teoria na primeira fase transitou-se à
subordinação desta à férula das seitas nacionais, onde ela
não resistiu e nem poderia, às imposições dos dogmas,
enclausurada e torturada, supervisionada pela barbárie maior
da seita nacional da primeira revolução. Como poderia a
teoria recitar a cartilha dos práticos e permanecer íntegra? Só
os tolos podem supor ser esta inversão mística a suprema
virtude da verdade.
Como foi possível se manter invisível esta cassação dos
direitos políticos da teoria como momento universal da
adubação da práxis? Fazê-la ajoelhar-se ante a missa infinita
dos práticos e sua ditadura outorgada desde a Roma da teoria
oficial, era a decretação da sua morte. O que isto tinha a ver
com a emancipação dos trabalhadores, pressuposto de uma
história concebida como luta para a vitória da Revolução para
a emancipação, da política como educação, como Paideia
emancipadora? Não estava esta inversão, para nós, muito
mais próxima do destino trágico de Al Andaluz e seus filhos
espalhados pelas Américas, da ferocidade da Reconquista e da
sua subsequente Santa Inquisição, do poder despótico dos
senhores feudais aburguesados, em togas eclesiásticas
cristãs? Pensar havermos tanto tempo tirado o chapéu para
esta nova barbárie hoje até nos assusta, agora que não mais
observamos a história através do alto turbilhão de pó
levantado pelo tombo do gigante.
O rastejar da inteligência, do partido da teoria, de
humilhação em humilhação, desde finais do século XIX -
ainda mais inomináveis, pois infligidas por camaradas a
outros seus camaradas, coisa a que supostamente só os
Pensando com Marx (I) | 85

inimigos se dedicavam – sob a suposição de que, em certo


momento, na plenitude de suas forças, ela desabrochasse,
assim deixando à humanidade as suas conquistas, foi um
espetáculo dantesco. Isso nos confronta com nossa tradição
ocidental, de matriz grega. Para esta, o destino da teoria se
espelha no relato de Platão, na paixão e morte de Sócrates,
relatada por este em sua Apologia do filósofo. Para nós,
brasileiros, na morte do guerreiro em Yuca-Pirama ou do Frei
Caneca em João Cabral, ambas sem abjurações e falsas
autocríticas.
Hobsbawm, cuja história do século XX é para nós uma
dádiva, posto ser a primeira com tal abrangência a ser escrita
por um grande historiador marxista e além do mais vivida por
ele enquanto militante comunista, também trata desse
fenômeno, pura e simplesmente, como manifestação de
ortodoxia religiosa. O silêncio ensurdecedor sobre a sua obra
bem denota a capacidade contemporânea para a sua absorção
crítica.

São Paulo, 2010.

Referências

ADAM, Yussuf. Escapar aos dentes do crocodilo e cair na boca


do leopardo. Maputo/Moçambique: Ed. Promédia, 2006.
DAGNINO, Renato. Neutralidade da ciência e determinismo
tecnológico: um debate sobre tecnociência. Campinas:
Unicamp, 2008.
GOMES E SILVA, Felipe Luis. A fábrica como agência
educativa. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2004.
GUERRERO, Modesto Emílio. Quién invento a Chavéz?
Buenos Aires: Ed. B, 1997.
KLEIN, Naomi. Shock Capitalism. The Shock Doutrine: the
rise of disaster capitalism. New York: Picador, 2008.
LAFARGUE, Paul. O direito ao ócio. In: DE MASI, D.
Economia do ócio. Rio de Janeiro: Sextante, 2001. p. 139-183.
86 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

LENIN, Vladimir Ilitch Uliánov. Carta a um camarada sobre


nossas tarefas de organização. Revista Nova Escrita Ensaio.
Ano IV número 8. São Paulo: jan. 1981. p.111 – 133.
[Tradução de Paulo Alves de Lima Filho da Edição Russa, OC.
Texto de 1902, tomo 7, p. 5-32].
__________________________. Últimas Cartas e Artigos: 23 de
dezembro de 1922 a 2 de março de 1923. 5ª edição das Obras
Completas. Moscou/Rússia: Politizdat, 1971.
MANDEL. La teoria leninista de la organisation. Cidade do
México: Ed. Era, 1971.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Obras Completas. 2ª edição
russa. Moscou/Rússia: Izdatelstvo Polititcheskaia Literatura,
1965, tomo 38.
_____________________________. Obras Escogidas. Edição
soviética em castelhano. Moscou/Rússia: Ed. Progreso, 1976.
MÉSZÁROS, István. Para além do Capital: rumo a uma teoria
da transição. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005.
SÈVE, Lucien. Commencer par les fins: la nouvelle question
communiste. (Começar pelos fins: a nova questão comunista).
Paris/França: La dispute, 1999.
_________________. Penser avec Marx aujourd‟hui I: Marx et nous.

Paris/França: La Dispute, 2004.

Anexo 1

"Se a estrutura existente não permite este trabalho, devemos


começar a construir um novo, como em dezembro de 1920 os
socialistas do Congresso de Tours o fizeram decidindo juntar-
se à Internacional Comunista de Lenin."

De Roger Martelli e Lucien Sève (tradução nossa).

Já se passou um quarto de século desde que ambos


afirmamos que o comunismo político não encontraria seu
caminho sem uma subversão radical de seus conteúdos e
Pensando com Marx (I) | 87

formas. Em junho de 1984, um de nós escreveu, no


semanário Revolução, que o declínio eleitoral que começou em
1981 expressou "o fim de uma longa fase, a inadequação de
toda uma abordagem às novas condições da sociedade
francesa". O outro expressou ao mesmo tempo, dirigida ao
Comitê Central do PCF, a necessidade de "colocar na agenda
algo como uma refundação histórica do partido". Este viés
comunista e refundador (dois termos inseparáveis para nós)
tem sido e continua sendo a principal fonte do nosso
compromisso. Durante um quarto de século, assumimos isso
no Partido Comunista Francês. Nós fizemos isso por dois
motivos. Em primeiro lugar, porque o PCF ainda tinha a maior
concentração de comunistas e, portanto, constituía um
potencial inestimável para as forças que aspiravam
transcender a ordem secular do capital. Depois, porque esta
organização nos parecia historicamente dupla: tanto
penalizada pela rigidez de seu molde original (um bolchevismo
"estalinisado”) e manter, na França, uma relação de uma
riqueza incomparável com a realidade sócio-política e cultural.
Em várias ocasiões, entre meados dos anos trinta e setenta,
essa relação com a realidade permitiu que o PCF se movesse e
até inovasse. Quando o movimento de "refundadores" se
desdobrou em 1989, nós conhecíamos sua difícil luta; pelas
razões mencionadas naquele momento, nós a consideramos
necessária e possível.
A aposta era arriscada, mas razoável. Nós não achamos mais
isso, hoje. Com o enfraquecimento do PCF, o centro de
gravidade do comunismo mudou: o maior número de
comunistas não está mais nas fileiras do PCF,
irremediavelmente. Pior, de recuo em recuo esse partido
perdeu a relação com a realidade e a vitalidade do
pensamento que eram sua força. Ao lhe faltar essa fonte de
vida, lhe resta apenas a gravidade de um dispositivo que
acaba considerando que sua própria sobrevivência supera
seus fins. A ferramenta teórica da emancipação tornou-se,
assim, uma máquina para distribuir minúsculos poderes; o
88 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

lugar teórico de convergência dos comunistas tornou-se uma


máquina para dispensar aqueles que não se contentam com a
estrita lógica partidária. Estamos, portanto, diante de uma
tríplice declaração de falência. Primeiramente, de um impasse
estratégico. O século XX não invalidou o comunismo, mas a
maneira pela qual a revolução que ele deveria conduzir. Mas o
abandono do antigo caminho revolucionário jamais levou a
um novo caminho. Oscilante entre a autoafirmação orgulhosa
e a dependência da socialdemocracia, o PCF afogou-se na
lógica político-institucional, quando a crise dessa lógica nos
obriga a subvertê-la (o que não significa abstrair-se dela...).
Depois, de uma paralisia organizacional. Tomar partido sendo
comunista é uma necessidade; fazê-lo sob a forma do modelo
bolchevique é um resto do passado. Se o objetivo não é mais
orientar as pessoas para a captura do poder estatal e a
"ditadura do proletariado", as formas políticas devem ter por
meta estimular a auto emancipação dos indivíduos e sua ação
compartilhada. No entanto, desta revolução o PCF
demonstrou ser estruturalmente incapaz. A direção
acreditaria trair, a menos que dirija, controle, descarte. Daí
esse sistema incurável, surdo e cego, funcionando contra o
comunismo até a caricatura, o primeiro responsável, por
exemplo, a se autodesignar candidatura de união, e depois
escolhendo seu sucessor.
E finalmente, de uma intolerância ao pluralismo. Nada
realmente mudará, de fato, sem os comunistas, mas nada
também com eles sozinhos. Daí uma tensão que deve ser
administrada: firmeza comunista, abertura unitária. No
entanto, ao não praticar trabalho e debate teóricos, a direção
não saiu de seu velho autismo cultural onde sempre falta o
novo. Em matéria de união, agarra-se à forma de cartel para
tentar em vão reproduzir uma hegemonia defunta. Quanto à
vida do partido, em palavras "a diversidade é uma riqueza",
mas na verdade a discordância continua a ser uma mancha.
Durante anos, a direção teve apenas uma preocupação:
eliminar qualquer alternativa real. Nós abandonamos o
Pensando com Marx (I) | 89

partido? Mas não é o aparelho que, de fato, há muito tempo


nos manteve à distância?
Não acreditamos mais que essa estrutura, apesar do valor
persistente de seus membros, ainda tenha a força propulsora
que lhe permitiria reconstruir e, ao fazê-lo, reavivar sua
utilidade. Que ele não possa fazê-lo é uma tragédia: as
funções historicamente assumidas pelo PCF não são mais de
sua parte, mas não foram assumidas por nenhuma força
instalada, muito menos por uma socialdemocracia hege-
mônica ou pela extrema esquerda oriunda do trotskismo.
Mas, em suma, há muito a ser feito para que o tempo seja
desperdiçado em continuar uma transformação infelizmente
inatingível pelo exclusivo jogo interno.
Uma página se vira e o coração aperta: não se desiste sem dor
do que se dedicou uma vida. Mas devemos deixá-lo para
termos direito às nossas razões de viver. Por elas,
permanecemos próximos a esses ativistas convincentes, a
esses representantes eleitos, a esses intelectuais criativos,
mulheres e homens que ainda mantêm seu carnet enquanto
nos compreendem: teremos ainda muito a fazer juntos. Mas
para nós, também são inesquecíveis essas centenas de
milhares de comunistas que se perderam, muitos dos quais
permaneceram comunistas sem um partido, e outros até
repudiaram o comunismo, até mesmo a política. Devemos
estancar este colapso mortal e, para isso, fechar para sempre
este capítulo, ante as ameaças de uma terrível crise de
civilização como os primeiros frutos de uma verdadeira
solidariedade humana. Nossa canção de partida tem um
refrão: o comunismo nos chama.
Mas não há dúvida de que muitos, compartilhando nossos
motivos, ainda não fazem suas a nossa decisão: partir para
onde, para o quê? Não contamos histórias: um quarto de
século de iniciativas de protesto e refundação teve uma série
de efeitos muito benéficos, mas, engolfado em um passado
que se recusou desesperadamente a morrer, não possibilitou
nenhum sucesso organizacional convincente. .
90 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

Nós sabemos o que queremos alcançar: um comunismo


refundado, imerso em um vasto movimento radicalmente
crítico e abertamente alternativo. Não conhecemos em
detalhes o conteúdo e as formas desenvolvidas de tal ambição.
Mas nós sabemos o que não queremos: nenhum enésimo
grupusculo natimorto, sem estagnação em uma cacofonia
invertebrada. E nada reproduzir do que esteja morrendo na
velha casa.
Os erros e fracassos do século passado exigem uma ansiedade
saudável, uma dúvida razoável; eles também ajudam a se
convencer de que formas e conteúdos comunistas só nascerão
se o processo que os constrói for compatível com seus fins.
Nenhuma produção comunista sem um processo estritamente
comunista para impulsioná-lo. Se é necessário trabalhar em
conjunto, é em três direções: a partilha reflexiva de práticas, a
invenção experimental de um modo de organização, o
pluralismo de uma verdadeira esquerda. Se a estrutura
existente não permite este trabalho, é necessário estabelecer a
construção de um novo, como em dezembro de 1920 os
socialistas do Congresso de Tours o fizeram decidindo juntar-
se à Internacional Comunista de Lenin. Se o tempo gasto em
polêmicas internas nos impede de participar serenamente
desse grande trabalho, devemos nos dar um tempo.
Nossa raiva é incomensurável diante da bagunça de um
quarto de século. Por não ter ousado impulsionar sua novação
comunista, o PCF esterilizou um componente importante da
alternativa pós-capitalista. Era uma casa comum possível a
partir do momento em que concordou em ser um condomínio.
Ele escolheu, infelizmente, ser o espaço fechado de um
aparato que sempre pretendeu saber, de antemão, o que
"queriam os comunistas" e que, em nome desse
conhecimento, aceitou que centenas de milhares de
comunistas tenham sido expulsos de um partido, que de tal
modo era deles que a maioria nunca encontrou outro lar
político.
Pensando com Marx (I) | 91

Que esse lar comum dos comunistas seja o nosso sonho,


como é o de uma comunidade durável de todas as
sensibilidades de alternativa. Esse objetivo continua a dar
sentido à nossa luta.

Roger Martelli e Lucien Sève


Paris, 14/04/2010

Anexo 2

Friedrich Engels - correspondência de 1891 e a apologia


de Marx.
(Obras Completas de KM&FE tomo 38, Moscou, Izdatelstvo
Polititcheskoi Literaturi, 1965)

Carta nº46 Friedrich Engels a August Bebel


Berlin/Londres, 1-2 de maio 1891)

Querido Bebel!
Respondo agora a ambas as tuas cartas - de 30 de março e 25
de abril. Li com prazer ter você festejado tão bem as suas
bodas de prata e que isso o fez desejar festejar as futuras
bodas de ouro. De todo o coração desejo aos dois viverem até
esse dia. Você nos será necessário ainda muito tempo depois
de eu – me expressando com as palavras do velho Dessausky
- haver sido levado pelos diabos.
Eu sou obrigado – espero pela última vez – a voltar à crítica
marxiana do programa. Que “propriamente contra a sua
publicação ninguém se opunha” isso eu contesto. Liebknecht,
voluntariamente, nunca concordaria com isso e faria todo o
possível para impedi-la. Desde 1875, está atravessada na sua
garganta e ele se lembra dela cada vez que a conversa chega
ao “programa”. Toda a sua intervenção em Halle gira em torno
desta crítica. Seu empolado artigo no “Vorwarts” expressa tão
somente a sua consciência pesada com relação a esta mesma
92 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

crítica. E realmente, ela está em primeiro lugar dirigida contra


ele. Pelos aspectos podres do programa unificador nos vimos
nele – e eu vejo nele até hoje - o seu criador. Este foi o ponto
que me obrigou a decidir-me por uma intervenção em
separado. Se eu pudesse discutir o documento somente
contigo e depois prontamente envia-lo a Karl Kautsky para
publicação, nos acertaríamos em umas duas horas. Mas
nestas circunstâncias eu considerei que você estaria obrigado,
pessoalmente e do ponto de vista partidário, a também
realizar uma consulta a Liebknecht. E eu sabia a que isso
levaria. Ou a impressão do documento não seria permitida ou,
caso eu nele me manifestasse, iniciar-se-ia uma briga aberta
por pelo menos algum tempo, inclusive com você. Que eu não
estava errado demonstrou o seguinte: assim que você saiu da
prisão em 1 de abril – e o documento está datado de 5 de maio
– está claro, se não há outros esclarecimentos, que ele foi
intencionalmente ocultado de você, e o único capaz de fazer
isso é somente Liebknecht. Mas em nome da conservação da
paz você não contesta a afirmação mentirosa espalhada por
eles que supostamente você não pôde ver esse documento,
pois estavas na prisão. Do mesmo modo, também antes de
imprimi-lo, você teria que haver-se com Liebknecht para
evitar um escândalo na Direção. Eu acho isto plenamente
explicável, mas também você, assim espero, levará em conta
que eu considerei o possível rumo das coisas.
Eu acabo de rever essa coisa mais uma vez. É possível que
algo se pudesse omitir sem prejuízo para o todo, mas de todo
o modo só um pouco. Qual era a situação? Nós sabíamos não
menos que vocês e não menos que, por exemplo, a
“Frankfurter Zeitung” de 9 de março de 1875, encontrada por
mim, que com a adoção do projeto por vossos subordinados a
questão estaria resolvida. E foi exatamente por isso que Marx
escreveu essa crítica somente para desencargo de consciência,
sem a mínima esperança de sucesso, tal como o demonstra o
parágrafo final: dixi et salvavi animam meam. E a declaração
jactanciosa de Liebknecht sobre o “não categórico” por isso
Pensando com Marx (I) | 93

nada mais é do que simples fanfarronice, coisa por ele próprio


sabida. Mas se vocês cometeram um equívoco na escolha de
seus representantes e depois, para não matar a causa da
unificação tiveram de engolir o programa, então, na verdade,
vocês não podem retrucar contra o fato de que agora, após
quinze anos, seja publicada a advertência recebida por vocês
antes da decisão final. Isso não os faz nem estúpidos nem
embusteiros, desde que vocês não pretendam à infalibilidade
de vossas ações como funcionários oficiais.
É verdade que você não leu esta advertência. Mas veja que
sobre isto não se encontra anunciado na imprensa, de tal
forma que você se encontra em situação excepcionalmente
privilegiada com relação àqueles que a leram e mesmo assim
concordaram em apoiar o projeto. Considero muito importante
a carta que a acompanha. Nela se expõe a única política
correta, ações conjuntas [Paralelle action] durante certo
tempo experimental seria o único meio de salvá-los do
comércio com os princípios. Mas Liebknecht de nenhum modo
quis recusar-se à glória de unificador e é de espantar-se ele
não haver ido ainda mais longe em suas concessões. Desde ha
muito ele adquiriu da democracia burguesa e conservou dela
uma verdadeira paixão pela unificação.
Sobre o fato de que os lassalleanos vieram até nós porque
estavam obrigados a isso porque todo o seu partido se havia
desintegrado, porque os seus líderes eram velhacos ou asnos,
os quais as massas já não queriam seguir, sobre tudo isso e
com a correspondente forma suave hoje já é possível falar.
Sua “severa organização”, de forma natural, chegou a
desintegrar-se plenamente. Por isso é risível quando
Liebknecht justifica a aceitação em bloco dos dogmas
lassalleanos devido a que os próprios lassalleanos
sacrificaram a sua severa organização quando de fato eles não
tinham nada a sacrificar!
Você se surpreende: de onde surgiram no programa essas
frases obscuras e confusas? Mas elas são exatamente uma
personificação de Liebknecht. Por causa delas nós discutimos
94 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

com ele por longos anos, são frases com as quais ele se
encanta. Ele nunca teve clareza sobre questões teóricas e a
agudez de nossas formulações ainda agora o horroriza. Por
sua vez, as frases grandiloquentes que podem significar tudo
e ao mesmo tempo nada, ele, como ex-membro do Partido
Popular ama até agora. Se a seu tempo os franceses, ingleses,
americanos, falavam confusamente sobre a “emancipação do
trabalho”, ao invés de emancipação da classe operária porque
não sabiam se expressar melhor e até nos documentos da
Internacional chegou-se num e noutro lugar a falar na língua
daqueles aos quais se dirigia, isso para Liebknecht era
fundamento suficiente para fazer retomar à força o partido à
terminologia envelhecida. E de modo algum é possível dizer
“contra o seu entendimento”, pois ele realmente mais não
entendeu e eu não estou seguro se ele não estaria agora na
mesma situação. De todo o modo até agora ele, vez ou outra,
usa a velha, imprecisa, terminologia, a qual, aliás, é mais fácil
utilizar com objetivos retóricos.
Assim como com relação às fundamentais exigências
democráticas, sobre as quais ele se considerava um perito, ele
indiscutivelmente conferia não menor importância do que às
posições econômicas - as quais não compreendia plenamente
-, ele indubitavelmente acreditava verdadeiramente haver feito
uma coisa extraordinária ao concordar com a aceitação dos
dogmas lassalleanos com o objetivo de incluir, em troca, os
principais objetivos democráticos.
No que concerne aos ataques a Lassalle isso é também, como
eu já disse, extremamente importante para mim. Com a
aprovação de todas as principais frases e exigências
econômicas lassalleanas, os eisenachianos se transformaram
em lassalleanos de fato, pelo menos no que concerne ao
programa. Os lassalleanos não sacrificaram nada,
decididamente nada daquilo que pudessem defender. Para
culminar a sua vitória, vocês fizeram do hino partidário um
conjunto de frases moralizantes ritmadas, no qual o senhor
Audorf exalta Lassalle. Durante os treze anos de império da
Pensando com Marx (I) | 95

lei contra os socialistas não havia dentro do partido, entende-


se, nenhuma possibilidade de manifestar-se contra o culto a
Lassalle. Mas havia que por um ponto final nisso e eu assumi
essa tarefa. Eu não mais permitirei que à custa de Marx se
apoie e novamente se faça renascer a glória mentirosa de
Lassalle. Já são poucas as pessoas que conheceram
pessoalmente e endeusaram Lassalle. A todos os demais o
culto a Lassalle foi inculcado artificialmente e imposto graças
ao fato de nós o havermos suportado silenciosamente, contra
as nossas convicções, de forma que ele não pode sequer ser
justificado pela afeição pessoal. Os interesses dos
inexperientes e novos membros do partido foram devidamente
considerados, pois os manuscritos foram publicados no “Neue
Zeit”. Mas eu de forma alguma posso concordar com que após
quinze anos de pacienciosíssima espera, a verdade histórica
sobre semelhante questão deva ficar em segundo plano devido
a considerações de decoro e possível desagrado dentro do
partido. O fato é que toda vez é inevitável, nestes casos, que
pessoas honestas se sintam lesadas, do mesmo modo como
estas, em resposta, comecem a resmungar. E se após isso,
elas declaram que o próprio Marx invejava Lassalle e os
jornais alemães e inclusive (!!) a “Vorbote” de Chicago (o qual
se edita para uma maior quantidade de lassalleanos
específicos - em Chicago - do que os existentes em toda a
Alemanha) concordam com isso, tal coisa me preocupa menos
do que uma picada de percevejo. Já nos foram atirados na
cara outras coisas, porém nós prosseguimos com os assuntos
correntes. O fato de Marx haver tratado tão severamente o
santo Ferdinand Lassalle serve como exemplo e ele é por
enquanto suficiente.
Ainda mais isto: desde que vocês tentaram impedir à força a
publicação dos artigos e enviaram ao Neue Zeit o aviso de que
no caso de repetição de algo semelhante ela teria,
possivelmente, de ser levada ao conhecimento do poder
máximo partidário e submetida à censura, - desde então as
medidas de conquista de toda a sua imprensa pelo partido a
96 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

contragosto se apresenta a mim sob uma luz peculiar. Qual a


diferença entre vocês e Putkamer, se vocês, em suas próprias
fileiras, decretam uma lei contra os socialistas? Isso a mim,
pessoalmente, pouco me afeta: nenhum partido deste ou de
outro país não pode obrigar-me a calar se eu me decidi a
falar. Mas a mim, me gostaria poder levá-los a pensar se não
seria por acaso melhor vocês não serem tão suscetíveis, e em
seus atos, um pouco menos prussianos. Para vocês, ao
partido, é necessária a ciência socialista, mas ela não pode
existir sem liberdade de desenvolvimento. É necessário então
conformar-se com todos os aborrecimentos, e o melhor é fazer
isso com dignidade, sem nervosismo. Mesmo uma pequena
desavença, sem falar em uma cisão, entre o partido alemão e
a ciência socialista alemã seria uma incomparável desgraça e
vergonha.
Que a Direção e você pessoalmente conservem e devam
conservar uma considerável influência moral na “Neue Zeit” e
em tudo o que se imprime isso subentende-se. Mas com isso
vocês devem e podem se satisfazer. No “Vorvärts” sempre se
alardeou a inviolabilidade da liberdade de discussão, mas esta
não é lá muito evidente. Você em absoluto não imagina a
estranha sensação que causa esta inclinação a medidas
violentas aqui no estrangeiro, onde as pessoas estão
acostumadas a ver como sem qualquer constrangimento os
mais velhos líderes partidários são convocados a depor ante o
próprio partido (por exemplo, o partido tory¸ do lorde
Randolph Churchill). Além do mais, vocês não devem se
esquecer de que em um grande partido a disciplina não pode
ser tão severa quanto em uma pequena seita e que a lei
contra os socialistas, que congregou em um único todo
lassalleanos e eisenachianos (é verdade que de acordo com
Liebknecht isso resultou em um programa excelente!) e
obrigou a uma tal estreita união agora já não mais existe” (p.
71-78, nossa tradução livre do original russo).
Pensando com Marx (I) | 97

3 - Uma palestra no núcleo do PSOL de Santa


Cecília, São Paulo

Admito que as últimas palestras e encontros me foram


extremamente proveitosos. Agradeço de público os meus
amigos por me haverem dado a oportunidade de realiza-las:
Silene, Elemar, Adilson e Felipe, Henrique e Rogério, Rodrigo e
sua irmã Poliana, Tatiana da Via Campesina (ENFF) e tantos
outros. Em cada uma dessas atividades pude avançar em
minhas elucubrações. A última delas, realizada no sábado,
das 19:00 às 23:30 h, deu-se em um núcleo do PSOL, espaço
teórico-prático inusitado.
Pude ali desenvolver uma síntese das falas feitas na
ENFF, Flaskô, Grupo Venezuela, mais as coisas que falo com
vocês. Algumas há tempos, outras derivadas daquilo, outras
ainda um tanto novidadeiras.
Após aquele encontro com os dois militantes do PSOL,
promovido pela Poliana, sobre o qual me reportei a vocês, por
várias vezes questionei com ela e outros a necessidade de
fazer esse encontro com esse núcleo daquele partido. Rodrigo
insistiu, Poliana idem e achei mesmo que não custava tentar.
O resultado foi inesperado e extremamente positivo. Outra
experiência sociológica sobre a qual convém tirarmos todas as
lições possíveis. Daí impor-me compartilhá-la com vocês.
Assim aprendemos juntos.
Presentes na reunião, onze mais eu no sindicato dos
trabalhadores dos correios, em Santa Cecília. Uns quinze
graus Celsius a temperatura lá fora e uns dezesseis dentro do
salão. Nos sentamos em torno de uma grande mesa oval,
postada em frente das cadeiras do salão. Outros, pois não
cabíamos todos, na primeira fileira de cadeiras do auditório.
Faixa etária entre 60 e vinte e poucos anos. A maioria
composta de ex-militantes de alguma organização, ex ou
estudantes universitários, alguns com o curso incompleto – a
minoria – e todos de alguma forma vinculados ao Psol ou à
candidatura de um amigo comum, presente à reunião. Um
98 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

teatrólogo, duas bailarinas, dois professores, um aposentado


do judiciário (por doença), um funcionário do estado na ativa,
outros simplesmente alunos ou profissão não declarada.
Eu me apresentei e todos em seguida fizeram o
mesmo. A minha apresentação foi a da minha trajetória de
vida, passando pela minha aparição ali como intelectual do
partido da teoria.
Disse-lhes, de início, haver pensado muito sobre fazer
ou não aquela palestra. Supunha poder não ser muito
agradável aos presentes, dado que viria falar sobre um tema
tão vital e tão contraditório como o da revolução. Confessei
que aceitei os argumentos da Poliana e ali estava.
Reiterei não estar ali em nome de nenhuma seita ou
partido, a não ser do partido genérico representante da
revolução teórica de Marx, o partido comunista do manifesto
de 1848, o partido da emancipação do trabalho. Estava ali
representando os intelectuais do materialismo crítico, ordem
que necessitava se apresentar como tal depois de mais de um
século e meio de existência. Disse-lhes ser isso necessário
depois das catástrofes práticas e teóricas do século anterior,
as quais permitiram avanços consideráveis e insuspeitados
das forças conservadoras. Que era preciso liquidar a posição
subalterna dos intelectuais no movimento organizado dos
trabalhadores e nos partidos que se queriam revolucionários.
Que sermos escribas e arautos servis dos práticos não nos
enaltecia, muito ao contrário. Esse tipo de intelectuais
orgânicos em nada realizava a teoria como processo de
apreensão livre e vital do processo histórico, capaz de
alimentar as lutas emancipatórias dos trabalhadores. Que
tínhamos que assumir a plenitude de nossas responsa-
bilidades e aparecermos na arena histórica como porta-vozes
autônomos do saber e de corpo inteiro sermos cobrados por
nosso desempenho. Coisa que a atual catástrofe histórica do
PT estava a exigir dos intelectuais dentro e fora deste.
E por falar em importância da teoria, a questão da
revolução é central para os que se põem na arena das lutas e
Pensando com Marx (I) | 99

os que desejam entender a história dos tempos modernos.


Estes eram os tempos da revolução, marcos na trajetória das
lutas sociais, forma histórica característica dos tempos
modernos, forma de resolução das contradições entre as
classes nas sociedades que se sucederam à queda do império
romano. Muito embora a revolução, ao lado da guerra, da crise
econômica e das catástrofes sejam os processos sociais cuja
reiterada repetição os faz assemelhados aos fenômenos
naturais, verdadeiros quatro cavaleiros do apocalipse, isso
ainda não os havia elevado ao título de objetos privilegiados
de atenção por parte daqueles que se organizam voluntária e
conscientemente para serem o partido da emancipação social
e mais especificamente do trabalho nas lutas de classes e nas
inevitáveis revoluções.
Muito embora as revoluções sejam esses processos
reiterados, repetitivos e essenciais na demarcação do tempo
histórico, elas, todavia, não eram estudadas enquanto objeto
fundamental a nos identificar, a identificar a ação organizada
do partido dos materialistas críticos na história. Uma situação
anômala e assustadora. Pois não passamos de ser a ala
esquerda das revoluções emancipatórias, aquela que pugna
por todos os seus momentos necessários e pelo decisivo,
aquele que dará início à verdadeira história humana, quando
nossa organização social realizará metódica, consciente e
planejadamente nossa libertação das travas sociais que nos
escravizam à impossibilidade de multiplicação sistemática e
infinita de nossas potencialidades humanas e acima de tudo
aquelas que nos subordinam a uma existência de mera
sobrevivência através do trabalho manual repetitivo,
embotador e castrador dessas capacidades. Daí nada mais
sermos nas revoluções do que a ala esquerda da
emancipação, a ala que prepara para, nelas, fazermos valer os
interesses do mundo do trabalho, do mundo das maiorias.
Pois as revoluções não se fabricam por nenhum dos campos
em luta, elas não passam de momentos de solução necessária
100 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

das contradições que se põem naturalmente na história das


sociedades de classes.
O partido comunista de Marx, o partido da
emancipação do trabalho, nada mais é do que aquele que se
prepara de modo obrigatório, metódica e organizadamente
para todas as tarefas que a revolução lhe impõe. Para isso põe
em movimento pela primeira vez na história humana uma
organização política que por ser representante do
materialismo crítico, dialético, só poderá se realizar pela
hierarquia do saber e do saber fazer. Hierarquia totalmente
distinta de todas as outras destinadas a perpetuar a alienação
humana. E quando se fala em todas as tarefas impostas pela
revolução como inexorabilidade histórica, afirmamos a
história e a compreensão de seu desenrolar como guia para a
nossa ação. Ação realizada pela teoria como saber histórico
para a transformação da história.
A experiência dos partidos da emancipação do trabalho
não esteve, contudo, com brilhantes exceções efêmeras,
plenamente à altura da necessidade das revoluções, das
necessidades que o seu advento impunha. A história das duas
Internacionais, assim como a do partido modelar do século
XIX e início do XX, o partido social democrata da Alemanha,
atesta essa trajetória. As duas Internacionais, por diferentes
razões incapacitadas de realizarem-se como expressão da ala
esquerda na revolução, foram impiedosamente encerradas por
Marx e seus camaradas, pois não destinadas a ser, a todo o
custo, partidos profissionais e eternos. Estavam as duas
Internacionais condenadas à efemeridade dos ciclos
revolucionários e às transformações ideológicas e políticas
suas fileiras. A crítica essencial e sem contemplações de
nenhuma espécie a não ser com a sua qualidade- a qual
definiria a possível qualidade do movimento prático - foi,
porém, censurada em vida de Marx e Engels, ao ponto de
Engels ameaçar, em 1891, a direção do PSD alemão de
denunciar publicamente seu veto à publicação da crítica aos
programas de Gotha e Ehrfurt ( vide tomo 34, OC de Marx e
Pensando com Marx (I) | 101

Engels, a impressionante carta de Engels a Bebel, datada de


1-2 de maio de 1891, desde Londres a Berlin- 2ª ed. Russa de
1963, na qual, dentre outras maravilhas lê-se):

Ainda mais isto: desde que vocês tentaram impedir à força a


publicação dos artigos e enviaram ao Neue Zeit o aviso de
que no caso de repetição de algo semelhante ela teria,
possivelmente, de ser levada ao conhecimento do poder
máximo partidário e submetida à censura, - desde então as
medidas de conquista de toda a sua imprensa pelo partido a
contragosto se apresenta a mim sob uma luz peculiar. Qual a
diferença entre vocês e Putkamer, se vocês, em suas próprias
fileiras, decretam uma lei contra os socialistas? Isso a mim,
pessoalmente, pouco me afeta: nenhum partido deste ou de
outro país não pode obrigar-me a calar se eu me decidi a
falar. Mas a mim me gostaria de poder levá-los a pensar se
não seria por acaso melhor vocês não serem tão suscetíveis e
em seus atos um pouco menos prussianos. Para vocês, ao
partido, é necessária a ciência socialista, mas ela não poder
existir sem liberdade de desenvolvimento. É necessário então
conformar-se com todos os aborrecimentos, e o melhor é
fazer isso com dignidade, sem nervosismo. Mesmo uma
pequena desavença, sem falar em uma cisão, entre o partido
alemão e a ciência socialista alemã seria uma incomparável
desgraça e vergonha. (p.77; tradução livre do autor)

A cisão entre a teoria (a “ciência socialista” de Engels)


e o partido foi, entretanto, a constante, a incomensurável
catástrofe dos séculos XIX e XX. Momentos efêmeros foram
aqueles ainda em vida de Marx e Engels e o da construção do
partido na Rússia, onde a intelligentzia deu o tom, em ambos
os lados dos dois grandes blocos, bolchevique e menchevique.
Ou então na experiência chilena, também única. Na Rússia,
os dilemas do enfrentamento das tarefas complexíssimas
derivadas das matrizes das catástrofes coligadas da primeira
guerra e subseqüente guerra civil ou da particular miséria
russa, a qual (semelhante à miséria alemã notificada por Marx
já em 1844) fizeram com que se impusesse à revolução
102 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

socialista - e como consequência, ao empurrar as várias


emancipações, menos a do trabalho, a travasse para todo o
sempre- a revolução dos novos cavaleiros da casta dos
dirigentes, ao invés do controle direto proletário a exprimir o
poder de uma classe trabalhadora majoritária inexistente. No
Chile, após décadas de brilhante trajetória de lutas e ingentes
sacrifícios e abnegação, os partidos da emancipação do
trabalho naufragaram ao não estar à altura de todas as
tarefas exigidas pela revolução e, em particular, a de sua
defesa contra todos os seus inimigos. No caso do Brasil, para
não falarmos nos casos de Cuba e Venezuela, a revolução
social que se adensava e culmina em 1964 foi confundida com
outra, inexistente. Ao invés da revolução democrático-
burguesa teorizada, supostamente continuadora da revolução
de 1930, controlada pela burguesia nacional e seu exército de
oficiais legalistas sob o comando de um insuperável
dispositivo militar, como era o pressuposto da dogmática
oficial do bloco de poder (comunistas, socialistas, democratas
sociais, nacionalistas), tivemos, sim, a vitória fragorosa e
desmoralizante das forças minoritárias do oficialato da
contrarrevolução neocolonial, pró-imperialista, latifundiária,
das burguesias todas (incluída a pequena, sob o comando
burguês, católico e militar) sob hegemonia do capital
financeiro mundial e norte-americano em particular, a
processar ruptura liquidadora da revolução de 1930.
Um típico fracasso prático derivado de fracasso teórico.
A ala esquerda da revolução, cujo ideário era apoiado pelas
maiorias desmobilizadas pela conciliação de classes, ao não
estar à altura das múltiplas necessidades daquela, permitiu a
vitória das minorias contrarrevolucionárias. Na revolução
venceu a contrarrevolução.
Por sua vez, a longa caminhada e a posterior ascensão
de Lula ao poder, tomada como relançamento das tarefas
necessárias da revolução - aquelas já derrotadas pela
contrarrevolução capitalista há mais de trinta anos - de fato
deram continuidade à contrarrevolução, reforçando-a ao invés
Pensando com Marx (I) | 103

de enfraquecê-la. Completaram a integração da pequena


burguesia ao bloco contrarrevolucionário e seu ideário, assim
como prolongaram a contrarrevolução capitalista iniciada no
golpe de 1964.
Outro episódio de escandaloso fracasso teórico e
consequentemente prático. Ao invés de as forças da
emancipação ampliarem e reforçarem a ala esquerda da revo-
lução contra o capital elas operaram no sentido contrário, a
favor deste, por evidente equívoco teórico, novamente
incapazes de precisar seu trajeto revolucionário e sequer o
momento da revolução, ou seja, sem saber de qual revolução
se tratava.
Esta nossa reiterada carreira de equívocos teóricos e
fracassos práticos deve-se a três ordens de questões: o fato de
a liderança pequeno-burguesa e burguesa da revolução ser
majoritária, a cisão consumada entra a teoria e o movimento
prático (já vislumbrada por Engels em 1891) e a consequente
ausência da revolução na formação teórica das direções
práticas das forças da emancipação.
Esta última questão não foi fato característico dos
revolucionários do século XIX: para estes, fossem eles
alemães, russos ou quais outros fossem, suas realidades
nacionais foram vistas obrigatoriamente através do marco
histórico da revolução francesa, forma genérica da revolução
do século XVIII em diante. Hegel e Marx entendem a
particularidade alemã, assim como muitas outras,
confrontada com a genericidade francesa. O mesmo fizeram os
russos da ala bolchevista do partido da emancipação do
trabalho. A revolução que se processava naqueles países não
apresentava face burguesa compatível com o nível da
revolução francesa. A ala direita da revolução teria as
burguesias unidas contra as maiorias trabalhadoras, pois
estas burguesias nem tinham a força econômica ou política e
ideológica, portanto, para arrastar as maiorias contra as
classes feudais, preferindo aliar-se a estas contra os
trabalhadores, coisa que de fato ocorreu em ambas as
104 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

revoluções. Entretanto, a ala revolucionária do partido social


democrata alemão, a ala comunista, não esteve à altura de
sua tarefa revolucionária, esmagada pela reação coligada à ala
direita desse partido. Assim, a vitória da ala esquerda da
revolução russa, em 1917, ala comunista, não pode contar
com as forças do proletariado alemão. A catástrofe alemã foi o
prenúncio da catástrofe russa.
Em certa medida, a catástrofe russa prenunciava a
brasileira e as da maioria dos povos das Américas, com
exceção dos EUA, ou seja, a abertura de um ciclo histórico. A
questão da particularidade, por razões já estudadas por vários
trabalhos, em se tratando da América Latina, opera, grosso
modo, um retrocesso menchevique, ou seja, inventa-se
literalmente uma vanguarda burguesa da revolução (com
exceção do Chile), capaz de hegemonizar a emancipação social
e elevá-la ao nível alcançado pelas suas irmãs norte-
americana e francesa. A ala esquerda da revolução na
América Latina, sob o influxo das catástrofes alemã e russa
(sendo o esmagamento prático e teórico do corpo de dirigentes
intelectuais bolcheviques, na luta interna pós-17, momento
definitivo do travamento do que se convencionou chamar de
transição socialista), não se faz herdeira da questão teórica
que obriga tratar da particularidade de suas revoluções sob o
metro da revolução francesa e dos fracassos (sob a óptica das
maiorias trabalhadoras) dos feitos burgueses na Rússia e
Alemanha e da vitória da teoria dos bolcheviques na revolução
russa.
A longa catástrofe brasileira terá peso específico
esmagador no cômputo das transformações sociais da
América do Sul e, em particular, no pouquíssimo avanço dos
trabalhadores como classe autônoma. As dimensões desta
última catástrofe ainda são difíceis de avaliar, mas sem
sombra de dúvida reverberarão ainda por pelo menos duas
décadas. É a primeira vez que um núcleo intelectual-político e
em especial uma liderança pequeno-burguesa travestida de
trabalhador braçal especializado, industrial, urbano e
Pensando com Marx (I) | 105

migrante, alcança graus tão elevados de hegemonia político-


ideológica sobre vastas massas assalariadas e semi-
assalariadas, assim como sobre amplas camadas de
miseráveis. Hegemonia essa que completa o arco hegemônico
das demais burguesias. Dito de outro modo, pela primeira vez
a contrarrevolução pequeno-burguesa carreia para as hostes
da contrarrevolução capitalista, forjada na guerra fria, uma
imensa massa de pobres e miseráveis, e pior de tudo, ajudada
nessa tarefa por várias forças da emancipação do trabalho.
Isso não se compara ao que fez no pós-guerra a UDN, embora
várias lideranças fundadoras do PT tenham participado da
fundação daquela organização, em particular aquelas
vinculadas, no pós-guerra, ao que se denominou esquerda
socialista.
A catástrofe da cisão entre a teoria da emancipação
dos trabalhadores e o partido prático, da cisão entre a
revolução teórica de Marx e sua expressão política, o partido
comunista, o partido do Manifesto Comunista, promove esta
inevitável multiplicação de seitas comunistas e o exílio dos
intelectuais do centro do movimento prático. Os partidos
políticos de expressão marxista do século XX, comunistas e
socialistas, estão concebidos sob a férula de uma concepção
de organização radicalmente distinta daquela de Marx e
Engels (vide, por exemplo a carta de Engels já citada, de
1891), assim como de Lênin63. Ao invés daquela necessária
organização do saber e do saber-fazer, realizaram-se as
organizações do fazer burocrático, reprodução dos
mandamentos oficiais superiores, qual um exército de
burocratas de cima abaixo.
Os intelectuais revolucionários, sub-ordem estamental
vassalizada aos desígnios do fazer burocrático, tão nova
quanto os próprios trabalhadores fabris, mas necessária e
enormemente minoritária em comparação àqueles, recém

63 Expressa no seu pequeno e fundamental trabalho Carta a um


camarada sobre questões de organização, depois continuado no Que
fazer?
106 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

desgarrada dos laços burgueses e pequeno-burgueses,


proletarizada mas sem espaços burgueses para a sua
realização plena, oscila entre o assalariamento aos partidos e
sindicatos proletários ou às escolas e universidades públicas,
nesses dois campos de realização seja como intelectuais
orgânicos à ordem partidária ou estatal, como funcionários do
partido ou socialistas de cátedra. Esta inserção subordinada
na ordem burguesa como professores, escritores e escribas
seja da ordem comunista ou socialista, determina a
ambiguidade de sua posição e realização. Por não serem
autônomos, são necessariamente formas históricas de
castratti teóricos e teórico-práticos. Impossibilitados de
realização plena, realizam a impossibilidade da teoria, pois
esta exige para seu desenvolvimento a mais plena liberdade,
tal como diz Engels na referida carta de 1891. Serão
duramente reprimidos por amigos e inimigos, reduzidos à
quase extinção, a não ser em polos muito pequenos e
efêmeros. Entre os séculos XIX e XXI nos debatemos sob a
impossibilidade de nossa realização plena.
Nós do IBEC e, antes de nós, os intelectuais do finado
grupo Ensaio e seus sucessores (e outros mais), nos
debatemos no duro aprendizado dos limites à nossa
realização, ainda prisioneiros desses polos possíveis e
castradores. Lutamos para a conquista de nossa emancipação
econômica sem a qual não poderemos estar à altura das
necessidades da revolução. Apostamos que o também duro
aprendizado dos futuros movimentos de emancipação os faça
nossos camaradas nessa empreitada vital.
Antes de mais nada os intelectuais revolucionários
necessitam se reconhecer enquanto tais e, então, como ordem
específica, e ordem necessitada de emancipação econômica
para ser ordem dos intelectuais emancipadores. Não podemos,
para o bem do movimento e seus partidos, ser sub-ordem
vassala, sub-proletária, sem sequer gozar dos mínimos
direitos burgueses. Não há como emergir das nossas longas
catástrofes geral e particular, mundial e brasileira, sem o
Pensando com Marx (I) | 107

fortalecimento crescente e substantivo da ordem dos


intelectuais revolucionários, a única capaz de colocar-se para
além das seitas, no território da teoria comum, da identidade
geral e assim criar o território da identidade coletiva do saber.
Território do saber coletivo, único capaz de colocar em
movimento a dialética do saber fazer. Não há evolução do
movimento do saber fazer sem o do saber, ou seja, não há
movimento revolucionário sem a dialética da interação do saber
e saber fazer revolucionários.
As seitas e partidos do campo revolucionário, por sua
vez, vieram para ficar na história, marcos de uma trajetória
secular. O importante é fazer com que todos caminhem pelo
território da identidade coletiva. A única forma de operar essa
necessidade vital é fazer com que a ordem dos intelectuais
revolucionários conquiste a sua emancipação econômica, e
com ela a sua emancipação política plena, a libertação da
situação de funcionários da ordem estatal burguesa ou
partidária, de intelectuais orgânicos, socialistas de cátedra ou
funcionários.
Esta dualidade existencial alienada é, talvez, a
principal responsável pelo esvaziamento dos grandes partidos
do movimento comunista ocidental dos capitalismos
monopolistas europeus e seu rescaldo de pauperismo inte-
lectual64.

64 Usamos aqui a definição de Lucien Seve: "Para ser verdadeiramente


considerado comunista-intelectual, não basta ter uma atividade seguida
pela produção intelectual. Ainda é necessário, creio eu, que esta
atividade seja conscientemente colocada em sintonia com o compromisso
comunista. Intelectuais em sua atividade comunista e comunistas em
sua atividade intelectual: tais são de maneira eletiva aqueles em geral
que se retêm como "os intelectuais comunistas" nas obras históricas e
sociológicas que são dedicadas a eles. "Em" Questões de método a
Intelectuais comunistas", Fondation Gabriel Pèry, Paris,
2006.(http://www.gabrielperi.fr/Questions-de-methode)
108 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

Por último, não temos muito a inventar, pois a existência


milenar da ordem mundial dos intelectuais monistas, a Igreja
Católica, deve nos servir de exemplo. A imensa presença
teórico-prática dela deve-se em grande medida à qualidade de
seus quadros de militantes intelectuais da fé a comandar
vasto espectro de movimentos sociais de todas as classes.
Uma ordem milenar de intelectuais economicamente
emancipados e mergulhados na história, atuando consciente e
organizadamente nela, nas fileiras conservadoras, na
contrarrevolução. A ordem monista não se confunde com as
outras ordens e seitas particulares, convivendo com elas e
fazendo-as seguir pela trilha da identidade coletiva. É evidente
que a estrutura monárquica da Igreja a qualifica exatamente
para a contrarrevolução, não propriamente para a revolução.
Onde a burguesia a quis indissoluvelmente solidária com sua
nova ordem, fez quebrar seu elo de subordinação a Roma e
estipendiou-a, como é o caso da igreja anglicana. Tornou-a
igreja nacional, igreja da sua revolução nacional, econômica e
politicamente subordinada ao novo estado.
Nossa polissemia sectária revolucionária está próxima
da experiência judaica, na qual cada rabino pode vir a ser
intérprete especial da Torá e, assim, multiplicar
ilimitadamente o campo das seitas. Mas aí não temos
propriamente o ilimitado enfraquecimento intelectual, mas, ao
contrário, o vínculo religioso permanente e necessário, criado
e recriado com os tempos modernos.
No nosso caso trata-se de cultivar permanentemente o
sentido universal da revolução teórica de Marx, a práxis
histórica voluntária, organizada e consciente voltada à
emancipação do trabalho e, para tal, obrigada a caminhar
pela revolução para que a conquista do poder político possa
ser usada para a desmercantilização da sociedade humana,
para irmos enquanto humanidade, para além do capital.
Pensando com Marx (I) | 109

Na nossa particularidade histórica, característica em


maior ou menor medida a todo o ex-mundo colonial ibérico, a
tarefa da emancipação em geral e da emancipação dos
trabalhadores, em particular, é complexíssima.
O capital inventa para si o escravo na história do Novo
Mundo colonial. Não é um ex-servo que se encontra sem
senhor, no campo ou no burgo em transito à cidade,
despossuído de suas ferramentas e família. A maior parte dos
homens livres, proprietários e proletários, assim como a nova
mercadoria produtora de valor de troca nas colônias, nascem
despossuídos de sua humanidade, desapropriados para os
territórios da vanguarda hipermoderna do capital, as colônias
ibéricas. Nascem como humanidade para a acumulação: ex-
judeus, ex-índios, ex-africanos. Agora, desde então, fiéis
súditos católicos dos reis de Espanha e Portugal, para todo o
sempre condenados a estes papéis sociais na sociedade do
capital e para o capital. Nasce o Novo Mundo como frente
avançada do capital, promovida pelas revoluções preventivas,
conservadoras, das classes feudais e burguesia comercial
católica e catolicisada. Nobreza e clero aburguesados, a
realizar-se como burgueses coloniais que mantém-se senhores
feudais incólumes em suas cidadelas nacionais, condição que
asseguram até entrado o século XX.
A massa proletária emerge da escravidão colonial, de
coisa para homem livre na sociedade burguesa somente após
quatro séculos. Hoje, seus níveis de alienação ainda são
fantásticos nos relatos dos professores das escolas públicas e
privadas. O partido da emancipação do trabalho deverá por
em movimento um processo de ressocialização dos
trabalhadores e ser o centro desse processo. A massa dos
proletários urbanos mal conhece a história de sua família,
para não falar a da sua cidade, município, estado e país,
quanto mais a história do mundo. Encontra-se prisioneira na
redoma de sua escravidão, nas trevas de sua ignorância,
incapaz de conhecer-se no fio da sua história. Está nela como
110 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

se houvesse nascido ontem, despojada de história,


proletariado escravo do capital, de sua matriz original.65
Desde sempre isto impõe luta contra o capital. O
partido da emancipação do trabalho é anticapital, é educador
coletivo contra esta relação social, pois esta sociedade nasceu
como sociedade do e para o capital. As burguesias já tiveram
mais de cinco séculos para mostrar a que vieram. Não creio
que seja necessário mais tempo para descobrirmos que nosso
capitalismo tem a forma histórica particular de capitalismo da
miséria, modernamente miserável, desenvolvidamente
miserável e subordinado, monopolista miserável e subalterno.
A ilusão de ser democrático-burguesa a nossa
revolução deriva do fato de a pequena burguesia, ao abrir-se
caminho a si mesma, tenha carregado consigo a massa
miserável assim como necessitado dela para fazer frente ás
velhas burguesias coloniais todo-poderosas e seus aliados
imperialistas. Abrigada hoje sob as asas do grande capital
monopolista e ali fazendo o seu ninho social-melhorista,
torna-se peça fundamental da contrarrevolução capitalista,
papel histórico definitivo em sua trajetória, pois solda seu
destino ao das alas nacionais do capital e a uma certa forma
de acumulação do capital auto-intitulada de
desenvolvimentista. Relança o Brasil Potência do geiselismo e
seu complexo industrial-militar, assim como peleja pela
internacionalização do capital monopolista nacional, ou seja,
por um imperialismo benévolo, social e nacionalmente
poderoso, menos subalterno do que o projeto capitalista das
frentes econômico-políticas das velhas burguesias coloniais e
neo-coloniais exportadoras e em especial agroexportadoras e
seus serviçais.
Ao partido da emancipação da humanidade se exige
criar um movimento de educação dos trabalhadores para a
liberdade, para as múltiplas dimensões desta, conformar a
classe para si, fazê-la transitar à maturidade, entendida como

65 Hoje, diríamos ser este proletário o miserável.


Pensando com Marx (I) | 111

domínio de sua história e destino. Cabe a ele a educação do


cacique, como diz o poema de Neruda no Canto General. 66
Este movimento entrelaça-se com os movimentos sociais,
partidos e várias organizações pré-existentes e conforma o
movimento de emancipação do trabalho.
Seu objetivo é o da multiplicação permanente das
potencialidades humanas das maiorias trabalhadoras, dentro
e contra a legalidade burguesa miserável, no sentido de
transformá-la em níveis cada vez mais amplos de
emancipação, em agentes diretos de sua própria
emancipação, destinados a fortalecer a ala esquerda da
revolução anticapital, não somente anticapitalista.
Um momento essencial dessa concepção do partido
como educador coletivo é o da educação formal. A ordem dos
intelectuais revolucionários deve tomar para si a tarefa de
oferecer aos trabalhadores as principais formas de criar
condições para a sua própria auto-emancipação. É preciso
saber selecionar, formar e projetar sistemática e organiza-
damente no seio da própria classe trabalhadora e para essa
própria classe os quadros intelectuais capazes de ampliar a
reversão da situação calamitosa da educação pública e de
criação de uma educação anticapital capaz de vir a tornar-se
cada vez mais ampla e popular.
Ocorre que o capital nestas vanguardas ex-coloniais,
necessitou, necessita e necessitará permanecer mantendo a
escravidão da ignorância ampliada como forma histórica do
seu reinado. Agora que a pequena burguesia alcançou por fim
o seu paraíso capitalista ao lado dos capitalistas dominantes,
a escola pública que lhe serviu de trampolim foi naturalmente
devastada por inútil e dispendiosa, transformada em depósito
e restaurante público das futuras minorias assalariadas
(incluídas as que alcançam o terceiro grau público), das
maiorias desempregadas e dos despencados nas infinitas

66 Neruda, Pablo Canto General, libro IV, canto IX, “Educación del
cacique”, p. 96; Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 2003.
112 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

gradações do trabalho precário e delinquentes e aprisionáveis


em geral.

São Paulo, 2008.


Pensando com Marx (I) | 113

4 - Nossos fundamentos67

Gyorgy Lukács afirmara, em entrevista concedida à


revista dos marxistas ingleses, New Left, em sua edição de
julho-agosto de 1971, que a leitura dos manuscritos de Marx
de 1844, em Moscou de 1930, “modificou toda a minha
relação com o marxismo e transformou a minha perspectiva
filosófica” (Lukács, 1971). Infelizmente, esta não seria a
trajetória do marxismo oficial, soviético.
A vitória de Stalin na luta interna do PC bolchevique,
operaria uma transformação filosófica radical nos rumos do
marxismo, ao ponto de o velho filósofo denominá-lo de
marxismo stalinista, cuja matriz conceitual inverterá o sentido
da teoria da história de Marx. De um projeto humano coletivo
aberto à revolução e à descontinuidade, afirmação da eman-
cipação humana sobre todos os poderes castradores da livre
multiplicação das infinitas potencialidades humanas, afirmar-
se-ia, com o marxismo stalinista, uma teleologia dos
imperativos táticos de Stalin, feita passar-se como estratégia.
Esta verdadeira contrarrevolução filosófica socialista
põe-se como negação da revolução operada por Marx, por seu
comunismo crítico. É assim que o marxismo do século XX não
consegue ser herdeiro dessa revolução, da grande novidade de
seu sentido histórico (Mészáros, 1983). Ao não saber do fim
ético e último de suas lutas, esse marxismo estiola-se e
dissolve a fantástica solidariedade mundial dos proletários,
conquistada pelas lutas que se desenrolam desde o século
XIX, selando os destinos da revolução russa e outras sob a
sua inspiração teórico-prática.
Ao operar uma regressão no campo teórico aberto por
Marx, universalizará sua predominância e constrangerá o
pensamento pró-Marx a uma semiclandestinidade, o que
coloca diante das novas gerações de revolucionários uma

67 Em coautoria com Henrique Tahan Novaes.


114 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

tarefa de grande envergadura, qual seja, a de retorno sistemá-


tico a Marx. Nas palavras de Lukács:

O que eu consideraria necessário é que


entendêssemos bem o marxismo, que retomássemos
a sua real metodologia e que tentássemos com-
preender, empregando essa metodologia, a história
da era que se seguiu à morte de Marx. Isso ainda
tem de ser feito de um ponto de vista teórico
marxista. Um dos maiores pecados do marxismo é
que não houve de fato nenhuma análise econômica
do capitalismo desde o livro de Lênin sobre o
imperialismo - que foi escrito em 1916. Do mesmo
modo, não há realmente nenhuma análise histórica e
econômica do desenvolvimento do socialismo
(Lukács, 1971).

E prossegue o velho mestre:

Hoje, vejo o grande estímulo prático para a


renovação do marxismo no fato de não poder haver
uma revolução sem uma teoria da revolução, como
Lênin tão corretamente declarou em O que fazer?.
Voltando ao que eu disse antes, há que haver uma
renovação do método marxista no Ocidente e em
nossos próprios países para se fazer uma análise que
nós, marxistas, ainda não fizemos e sem a qual
somos incapazes de isolar problemas concretos que
exigem soluções. Só então estaremos à altura de
falar sobre um movimento revolucionário capaz de
grandes decisões. Essa é a razão por que considero a
renovação do marxismo uma questão tão importante
(Lukács, 1971).

Fazemos destas palavras o nosso lema, a nossa trajetória


teórica e prática.
Pensando com Marx (I) | 115

O tema da revolução e da transição comunista

Debruçar-se sobre o tema da revolução, suas rotas e


descaminhos era visto, como se depreende da confissão de
vários expoentes do comunismo, como um assunto no mínimo
controverso, ação de alta presunção e, consequentemente, de
alta periculosidade para aqueles que se atrevessem a
enfrenta-lo. Jorge Amado, por exemplo, em sua autobiografia
Navegação de cabotagem, diria, ao relatar encontro em
Moscou com Ylia Ehremburg, em 1952:

Ilya Ehremburg e eu chegamos silenciosos de uma


conversa com figuras gradas nos altos escalões a
propósito de nosso amigo Jan Drda, atendendo a
pedido que ele me fez em Praga, de onde venho para
receber o Premio Internacional Stalin da Paz: o
prêmio me credencia. Estamos em janeiro de 1952,
vinte graus abaixo de zero, vento gélido varre as ruas
de Moscou, emborcamos os cálices de vodka no
apartamento da Rua Gorki, Ilya me diz:” Jorge,
somos escritores que jamais poderemos escrever
memórias, sabemos demais”. No abalo da conversa
que acabamos de ter, balanço a cabeça concordando.
(...) Tantos anos depois de ter deixado de ser
militante do Partido Comunista, ainda hoje quando a
ideologia marxista-leninista que determinava a
atividade do Partido se esvazia e fenece, quando o
universo do socialismo real chega a seu triste fim,
ainda hoje não me sinto desligado do compromisso
assumido de não revelar informações a que tive
acesso por ser militante comunista (...). Se por vezes
as recordo, sobre tais lembranças não fiz anotações,
morrem comigo (Amado, 2012).

Ser teórico no campo marxista e, além disso, fazer teoria


era tirar passaporte para a intolerância oficial. O fascismo, o
nazismo e suas variantes, mais o stalinismo exerceram seu
poder de veto e de vida e morte. Os teóricos marxistas
sobreviventes ou estavam presos, no exílio ou silenciados. Até
116 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

mesmo na prisão ou exílio o livre exercício da teoria era um


risco. Foi o caso de Lukács e Gramsci, dos membros da
Escola de Frankfurt e outros. Lenin e Krúpskaia - nos
momentos cruciais da decadência final de Lenin - foram
tratados com grosseria por parte de Stalin e, de fato, viveram
situação de exílio interno na Rússia revolucionária, já sob o
controle de Stalin. Retornar a Marx, repor os fundamentos da
teoria, é tarefa de primeiríssima importância.
Prisioneira das vicissitudes da revolução e da transição ao
comunismo, operadas na Rússia, a ideologia oficial convertida
em dogma, bloqueou seja o retorno a Marx ou ao próprio
Lenin, cujos últimos artigos (alguns deles já publicados) só
vieram à luz após o XX Congresso do PCUS. Em sua
plenitude, somente agora, com o fim da URSS, talvez eles
possam definitivamente vir à luz.
Mesmo no exílio, Lukács só se decidiu a ousar completar o
seu projeto teórico no final da vida, deixando-o inconcluso.
Gramsci, enfim liberto, não teve tempo e forças para proceder
à síntese dos seus Cadernos. Do mesmo modo, Che Guevara,
após sua crítica do Manual de Economia Politica do
Socialismo, e de frustrar-se com a ausência das soluções por
ele buscadas na maratona – por ele próprio organizada - de
intervenções dos maiorais teóricos do marxismo mundial a ele
contemporâneos nos debates prévios ao primeiro congresso do
PC de Cuba - não mais poderia exercer em sua plenitude a
sua crítica no partido.
Impossível exercer livremente a crítica e aproximar-se,
desse modo, seja do legado de Marx ou do desvendamento do
segredo das vicissitudes derivadas da particularidade
histórica das revoluções comunistas nos países de revolução
burguesa conservadora, sejam as europeias ou as do mundo
ex-colonial, que imprimiram sua marca fatal no bloqueio da
transição comunista (Sève, 2004).
Marx nos deixa - dentre outros presentes - o legado das
conclusões sobre o ponto mais alto da ousadia emancipatória
dos trabalhadores, a Comuna de Paris, assim como do projeto
Pensando com Marx (I) | 117

de transformar a miríade de forças da emancipação em


movimento de emancipação dos trabalhadores,
consubstanciado na proposta e criação da Associação
Internacional dos Trabalhadores e seus estatutos, em 1864 e
1871, instrumento vital da luta pela emancipação dos
trabalhadores e da realização da transição comunista, sua
real teoria e proposta organizacional para a organização da
emancipação dos trabalhadores pelos próprios trabalhadores,
radicalmente diferente daquela que vingou, a partir do modelo
alemão.
Estende no tempo seu projeto de pesquisa e ação
revolucionária, consegue editar o I volume do Das kapital.
Crítica da Economia Política e deixa rascunhados os dois
outros tomos deste, assim como os três volumes do que viria a
ser chamado de IV volume do Kapital, os cadernos sobre As
teorias da mais-valia posteriormente editados em três
volumes. Nestes, assim como em toda a sua obra, em especial
na Guerra Civil na França e na Crítica do Programa de Gotha
do Partido Alemão do Trabalho Marx mantém uma firme linha
metodológica a determinar ser o projeto da teoria a conquista
da emancipação dos trabalhadores, da qual o tema da
revolução social seria momento central de sua realização,
assim como os momentos da emancipação intelectual e
politica dos trabalhadores projetando-se na revolução política
e econômica, as quais consumariam a transição comunista.
A realização do projeto da crítica do capital operado no Das
Kapital aponta imanente e necessariamente à superação do
capital, à sociedade que adviria da revolução política dos
trabalhadores, em especial da classe operária transformada
em classe, de seu movimento de emancipação econômica – tal
como ocorrera na Comuna de Paris – e da transição a esta,
denominada como comunismo.
Ou seja, o projeto da crítica, em Marx, é o da emancipação
dos trabalhadores enquanto obra dos próprios trabalhadores,
da revolução social. Assim o confirmam as inúmeras notas e
observações sobre o comunismo contidas nos capítulos do
118 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

Das Kapital, assim como naquelas contidas nos cadernos de


estudos das Teorias da Mais-valia.
A história é o processo que apresenta o momento
revelador das formas desta emancipação, onde estas se
realizam, tal como ocorrera na Comuna. As categorias
reveladas por Marx estão em relação dialética e apontam para
o processo de transformação da história, em especial das
lutas sociais e de classes que são e continuam a ser o seu
momento dinâmico, embora nem todas as transformações
históricas no Ocidente se devam a elas, como é o caso da
transição ao feudalismo, como hoje sabemos nos trabalhos de
Duby e outros.68
A revolução politica e a transição ao comunismo são
momento fulcral da emancipação dos trabalhadores. Para que
esta última ocorresse, tal como ficaria evidente na Comuna,
duas condições se apresentaram: a destruição do poder
politico das classes dominantes, o estado, e a propriedade
direta dos meios de produção pelos coletivos voluntários e
conscientes de trabalhadores. Dessa forma, os poderes
executivo e legislativo recaem sobre um único órgão da
democracia direta, controlador do estado do governo das
maiorias, ou seja, da ditadura democrática dos trabalhadores.
Dessa forma, às leis imanentes do capital, da produção de
mercadorias pelo trabalho alienado subordinado à
propriedade privada dos meios de produção, se sobreporiam
as leis imanentes da propriedade direta dos meios de
produção pelos coletivos de trabalhadores livremente
associados, pelo trabalho emancipado, organizado no
movimento de emancipação dos trabalhadores, autônomo,
não subordinado ao estado ou ao partido (ou partidos) da
revolução.
O trabalho emancipado, desse modo, geraria naturalmente
relações sociais emancipadas, ou seja, a superação do
trabalho alienado pelo trabalho genérico representado pelos

Duby, Georges Ano Mil, ano 2000 na pista de nossos medos São Paulo,
68

UNESP, 1998.
Pensando com Marx (I) | 119

seus coletivos de trabalhadores, o qual passaria a determinar


o que, como e para que e quem produzir. Isso está dito com
todas as letras na Guerra Civil na França, isto é, que os
produtores livremente associados passariam a produzir
valores de uso de acordo com as reais necessidades humanas.
Surpreendentemente, Lenin ignorará, na Comuna, em sua
obra O estado e a revolução, o momento vital da propriedade
direta dos meios de produção por parte dos trabalhadores, o
qual confere ao estado da ditadura do proletariado seu caráter
e dinâmica própria, ou seja, a solução da questão da
emancipação dos trabalhadores pelos próprios trabalhadores,
lema da Internacional de Marx, consubstanciado na proposta
da Associação Internacional dos Trabalhadores, embora isso
estivesse explícito na A guerra civil na França. Essa questão
impactará duradouramente o movimento mundial dos
trabalhadores, ao lado das questões da transição comunista
daí derivadas.
No elo débil da cadeia imperialista (como teorizou Lenin
sobre a Rússia), nem é a classe operária (embora a
assalariada quase o seja) majoritária ou em sua maioria
revolucionária como o fora a classe operaria parisiense. Suas
vanguardas revolucionárias são várias (esseristas, menche-
viques, anarquistas, etc.), suas opiniões sobre o caráter da
revolução, a tomada do poder e a transição comunista são
diversas e conflitantes com as vigentes entre os bolcheviques.
Os populistas - por sua vez - cultivaram um longo diálogo
com Marx, precisando o papel da obchina (ou seja, da
comunidade camponesa) na transição comunista. Os
mencheviques não apreenderam o papel único e vital da
classe operária na revolução democrática quando nesta, a
burguesia seria aliada preferencial das classes feudais contra
os trabalhadores, tal como o foram na revolução de 1905.
Obrigada a ser a classe de vanguarda da revolução
democrática, e sendo comunista a sua vanguarda, nada mais
natural e imperioso ser aquela revolução a antessala da
revolução comunista, com o que os mencheviques
120 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

discordavam de princípio. E também assim opina a ala


direita, assim digamos, da socialdemocracia europeia,
Kautsky à frente. Rosa Luxemburgo quer o movimento de
emancipação na condução da transição comunista, porém
não como recuperação do projeto de Marx na AIT (de 1864 e
1871), mas como momento da vitória e continuidade da
revolução (em Que se propone la Liga Spartak?) através dos
soviets, conselhos de trabalhadores nascidos espontane-
amente do solo histórico da Rússia revolucionária.
Desse modo, as categorias e formas históricas que
confeririam à classe trabalhadora sua pujança transforma-
dora escorregaram para fora da história das revoluções
proletárias do século XX, impedindo-as, desse modo, de
realizarem sua transição comunista.
A teoria das revoluções burguesas radicais e
conservadoras e suas implicações para a futura revolução dos
proletários; o movimento de emancipação dos trabalhadores
como forma orgânica vital e necessária – que controlaria os
partidos e o próprio estado da revolução –; a revolução política
dos trabalhadores a exigir o poder da classe e a propriedade
direta dos meios de produção – garantia do perecimento do
estado burguês e do surgimento de novas relações de
produção -; da transição comunista como expressão imanente
do processo de emancipação dos trabalhadores pelos próprios
trabalhadores, meio específico das revoluções proletárias irem
além do capital e além da forma estatal socialista (inexistente
esta na teorização de Marx); e, de modo igualmente vital e
necessário, o reconhecimento do papel da teoria na revolução
e de seu livre movimento através do trabalho dos teóricos
como momento autônomo do movimento, da revolução e da
emancipação, como garantia de sua trajetória. Enfim, todo
esse complexo solidário de questões próprias ao devir da
história humana emancipada, desapareceu da labuta
revolucionária das gerações que se sucederam após a
entronização da forma histórica universal do movimento dos
trabalhadores derivada do solo alemão, o partido operário
Pensando com Marx (I) | 121

como locus exclusivo da produção da teoria e o sindicato,


assim como o socialismo de estado, todas estas questões
asperamente criticadas por Marx em sua Crítica do Programa
de Gotha, pouco antes de sua morte.
As consequências dessa alienação dos trabalhadores
foram e são catastróficas, como bem testemunha seu
movimento ao longo dos séculos passado e entrante.
Adicionemos a este quadro o salto qualitativo na produção
capitalista propiciado pelo surgimento da microeletrônica e do
quarto órgão da máquina e, portanto do novo capital
industrial microeletrônico – com o alcance da fase de deslimite
da automação e a consequente definitiva instalação da crise
estrutural do capital -, o que, por sua vez, definirá o trânsito
final da Revolução Industrial iniciada em fins do século XVIII
e a fantástica reorganização do mundo pelo novo capital
financeiro.
A reprodução social capitalista mundial entrará em fase
de catástrofe insuperável e as lutas de classes se apresentarão
despotenciadas, pois as duas principais vertentes políticas da
emancipação dos trabalhadores entrarão em declínio
terminal, o socialismo democrático matricial e sua vertente
comunista, processo que nos remete para um cenário futuro
mais que bárbaro.
A era da catástrofe geral se expressa pelo fim das
identidades ancestrais e uma dramática reversão das
expectativas históricas, a propiciar a ascensão de forças cuja
identidade se põe com vistas a um futuro mítico
supostamente repositor do passado da estabilidade capitalista
do pós-guerra. Na era da desestabilização geral, a direita
racista, anticomunista, antissemita e tudo o mais aderente ao
universo ideológico nazi-fascismo empreende há mais de uma
década uma marcha vitoriosa pelas urnas europeias.
Assim é que, nesse contexto histórico, o IBEC se põe
decididamente no campo da recriação do projeto de Marx e,
em particular, do movimento de emancipação dos
trabalhadores. Seus cursos são um atestado de sua luta.
122 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

No Brasil onde a contrarrevolução hoje renova as cartas


jogadas por ela sobre a mesa da história, que nosso trabalho
auxilie na iluminação das novas trevas e, desse modo, na
superação de seus velhos e novos impasses, no rumo da
revolução democrática das e para as maiorias trabalhadoras e
na conquista da plena soberania econômica e política da
nação. O que nos colocará no limiar da transição a uma nova
era de transformações emancipadoras decisivas

São Paulo e Marília, 2016.

Referências

LUKÁCS, Gyorg Entrevista, New Left Review, Londres, julho-


agosto 1971.
AMADO, Jorge Navegação de cabotam. São Paulo, Cia da
Letras, 2012.
SÈVE, Lucien. Commencer par les fins : la nouvelle question
communiste, Paris : Éditions La Dispute, 1999
DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000. Na pista dos nossos
medos. São Paulo, UNESP,1998.
Pensando com Marx (I) | 123

5 - Sobre o projeto de nossa revista e nosso


inevitável movimento

(...) a vantagem da nova tendência consiste


precisamente em que não tratamos de antecipar
dogmaticamente o mundo, mas que queremos
encontrar o mundo novo por meio da crítica do
velho.(...)Se não é incumbência nossa a construção
do futuro, e deixar as coisas resolvidas e arranjadas
e para todo o sempre, é tão mais seguro aquilo que
temos levar a cabo no presente; refiro-me à crítica
implacável de todo o existente ; implacável tanto no
sentido de que a crítica não deve assustar-se com
seus resultados como no de que não deve refugar o
conflito com as potências dominantes (Carta de Marx
a Ruge, setembro de 1843).

I–Considerações gerais

A revista definirá nossa práxis revolucionária, como já


bem o sabia Marx, desde as suas cartas de 1843. Ela dará
sentido ao nosso trabalho intelectual, ligando-o indissolu-
velmente ao movimento social. Definindo-o, assim, como ação
transformadora. Nos reorganizará, nos colocará diferente-
mente na história (e na vida, portanto), dentro de um fluxo de
tempo definido pelos nossos projetos coletivos.
Distribui-nos, necessariamente, pelas várias tarefas e
funções. Confere às nossas ações sentidos práticos imediatos,
ao lado das permanentes exigências teóricas.
Desse modo, na repartição do trabalho intelectual e
sua práxis revolucionária, passaremos a ocupar nosso espaço.
Isso significa dizer que ocupamos nossa capitania no campo
transformador. Somos, portanto, uma parte, um “partido”.
Um partido no sentido específico, subordinado a nosso projeto
teórico, expressão de nossa práxis: a constituição de um
marxismo do e para o século XXI, nas pegadas do projeto
original de Marx, tal como já observamos nas cartas de 1843 e
124 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

1844, nos manuscritos de 1844 e na Ideologia Alemã. Como


dizia Marx, não expressamos o projeto de qualquer ideia
preconcebida, mas nos propomos a criticar o real tal qual ele
se apresenta, para que este, assim desvendado, ao fazer-se
consciência, transforme-se em ação prática transformadora.
Nossa política, assim concebida, subordina-se
essencialmente à crítica e não o contrário, como foi
característico do marxismo do século XX, tal como já o
sabemos, por exemplo, pelas memórias de Lukács (Ensaio,
nº15/16, 1986) e sua Ontologia do ser social. Isso nos coloca,
natural e inexoravelmente em campo distinto dos daqueles
demais marxismos e seus partidos e organizações. O que não
significa guerra política sem quartel a todos os diferentes de
nós. Nossa política é exercer implacavelmente a crítica dentro
do movimento social das maiorias, concebidas as organizações
representativas como nossos interlocutores necessários no
trajeto sem prazos da emancipação humana.
Isso significa dizer que nos colocamos nele como
companheiros críticos. Esta, ao que me parece, é uma forma
de ser (e estar, portanto), adequada ao nosso trajeto, ou seja,
por sobre e com os escombros e permanências da história do
século XX. Não há como iludir-se sobre a rapidez da
pulverização do que no passado interpõe-se no caminho
transformador. Isto, ao que parece, já aconteceu na Argentina,
devido à fantástica aceleração da história agora ali vivenciada
de maneira particular. No entanto, impossível e inócuo prever
o destino das organizações do marxismo do século XX.
Podemos até pensar que estas permanecerão companheiras
da história da emancipação por um longuíssimo período,
como marcos dessa história, bandeiras a demarcar o tempo.
Nos constituiremos, portanto, em ordem marxista
específica, em partido comunista específico, caravela no mar
oceano. Prevejo longa travessia pelo século e quem sabe até
quando. Este novo século, portanto, não pode nos induzir à
rapidez com que o anterior foi concebido. Se o século vinte
flertou, dentre outras suas características, com a leviandade,
Pensando com Marx (I) | 125

tal nos está impedido. Digamos haver sido ele nossa infância.
Impossível para ele não sucumbir à facilidade, aos cantos de
sereia, à rapidez e, por fim, à forma específica em que os
ideais revolucionários se materializaram no século XX. Isso
não é desculpa, mas simples constatação de sua forma real de
ser.
Absolutamente não nos importa, hoje, sermos poucos,
pouquíssimos, a iniciar esta marcha. A história não conhece
outra forma de começar-se. Com certeza há muitos e muitos
outros desejosos do mesmo trajeto. Não há, portanto, porque
desesperar-se. Não são tantos os intelectuais revolucionários
de relevo no século passado. Isso nem os desmerece, nem ao
vasto movimento social que lhes deu vida.
A longa travessia nos deve vestir de tranquilidade,
persistência, denodo, aceramento e compreensão, digamos até
compaixão em nosso companheirismo crítico. Se esta deve ser
a nossa fibra específica, o mesmo não receberemos em troca.
Devemos estar preparados para a inexorável provação a que
seremos submetidos. O século nos convida ao efêmero, à
acomodação, à fragmentação, ao descrédito às grandes
ambições, ao imediatismo, ao silêncio, à ataraxia. Quantos de
nossos camaradas, amigos, colegas e conhecidos não
sucumbiram ou estão em vias de sucumbir a isso?
A revista é um organizador coletivo, assim como um
auto–organizador. Dará sentido à ação individual e coletiva,
conferindo–lhes funções específicas. Os campos temáticos
passam a ter vida própria: cooperativismo, filosofia, história
econômica e outras histórias, literatura e assim por diante.
Do mesmo modo: diagramação, realização, distribuição, capa,
revisão, finanças, etc. Cada um desses campos teóricos e
práticos organiza-se como unidade específica, com seus
próprios projetos e tarefas e, portanto, coordenações
específicas.
Tudo isso, por sua vez, coordena-se desde um centro
no qual convivem dialeticamente (e não, formalmente,
“democraticamente”) as duas áreas, teórica e prática. (Um
126 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

melhor esclarecimento sobre tal tema encontra-se no texto de


Lenin “Carta a um camarada sobre questões de organização”,
in Nova Escrita Ensaio, ano IV, n º 8, 1980)
O núcleo central, tendo a revista como sua expressão
inicial, exerce a crítica como forma de sua ação teórica, o que
significa interação com as respostas críticas e assim
sucessivamente, o que significa a crítica como processo
coletivo e, simultaneamente, seu pleno exercício e necessidade
do centro crítico, ou seja, do corpo teórico reitor o mais capaz
possível. A revista e seu corpo de leitores deverão estar
concebidos como sendo um ente social em necessária
expansão e tensão dialética, ou seja, um intelectual coletivo.
Um novo tipo de intelectual, pois vinculado à simultaneidade
indissociada entre o fazer ciência e realizar a emancipação.
Tal situação exige um novo intelectual, o intelectual–crítico, a
realizar-se simultaneamente como cientista e revolucionário.
Esta distância entre este novo intelectual e os
processos da realização pessoal na sociedade capitalista em
geral e, em particular, nas estâncias ex-coloniais, é
extremamente problemática. Além disso, irresolvida no século
vinte. Irresolvida, antes de mais nada, devido à alienação da
perspectiva emancipatória. Ora, se esta foi secundária e,
mais, subordinada, nada mais normal, para os “práticos–
revolucionários”, que os intelectuais permanecessem como
simples assalariados comuns.
O intelectual exigido pelo novo estatuto da ciência na
sociedade burguesa moderna pede formas específicas de
realização das múltiplas funções emancipadoras. A auto–
emancipação dos intelectuais revolucionários, ou seja,
cientistas–emancipadores, passa a ser momento central da
estratégia emancipadora. A educação para a emancipação
pressupõe, então, um complexo de atividades capazes de
emancipar a práxis revolucionária, isto é, teórico–prática. Ou
seja, os próprios revolucionários.
Sabedores dos estreitos e crescentemente estreitos
limites das possibilidades de ação emancipadora nos marcos
Pensando com Marx (I) | 127

burgueses contemporâneos, ainda mais em situação de


guerra–esta IV Guerra imperialista com a qual abre–se este
século a impor barbárie acrescida–, cabe aos intelectuais
emancipadores conceber novas formas de auto–emancipação.
Nosso projeto de universidade popular, a meu ver, é
uma destas formas, até o momento, a mais importante. Além
disso, creio, é necessário inventarmos formas estáveis,
permanentes, de sobrevivência através da práxis
emancipadora. Uma delas, creio (e possível de ser realizada no
curto prazo), será um centro de pós-graduação latu–senso
capaz de evoluir até um núcleo estrito–senso, aberto à
comunidade e pago (evidentemente, um centro de alto nível,
etc.). O Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC)69, por sua
vez, deve servir-nos para todas as atividades emancipatórias
públicas: cursos, palestras, encontros, etc.
Ainda sobre a revista, nosso núcleo central inicial.
Penso que os núcleos temáticos que passam a estruturá-la
(História, Geografia, Literatura, Política, Economia, etc.), ao
realizarem seus projetos de atividades teóricas e didático–
pedagógicas, naturalmente se capacitarão para serem futuros
núcleos editoriais, já que necessariamente decidirão sobre
quais livros estudar, resenhar, traduzir e, necessariamente,
escrever. Por isso, creio que uma editora está em nossos
horizontes obrigatórios. Aliás, essa é uma questão prática,
sobre a qual precisamos decidir até junho, quando
realizaremos nosso primeiro encontro anual.
Desse modo, nossa revista deve ser o tema central de
nosso encontro. Ao lado dele, é claro, esse universo de
processos emancipatórios decisivos. Creio que é chegada a
hora desse salto qualitativo.

69 O qual, posteriormente, denominamos IBEC.


128 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

II–Teoria e prática

1. A teoria

Para uma revista que se quer herdeira do trajeto


original de Marx, é evidente que partimos da necessidade de
ela buscar a verdade, ou seja, da totalidade, das múltiplas
determinações do real. Este princípio metodológico deverá
nortear a tudo e todos. Ao lado disso, o cultivo sistemático da
trajetória original do pensamento de Marx, os passos de sua
crítica, isto é, da história da formação do pensamento original
do realizador da revolução teórica que abriu vastos horizontes
para as ciências sociais. Uma era de possibilidades de luta
consciente em prol da emancipação da humanidade.
Nosso objetivo teórico, a ser perseguido em cada área
temática, subordina-se a esse princípio metodológico. As
áreas temáticas, por sua vez, escolhem seu universo de
objetivos de pesquisa em torno de eixos capazes de iluminar o
passado para precisar o presente. Não são, portanto,
aleatórios. De imediato, observe-se a peculiaridade desta
forma diretamente militante do empreendimento científico: o
diálogo imanente entre a história do passado e aquela que os
historiadores chamam de história do tempo presente.
Evidentemente, partimos de certas escolhas, por sua vez
heranças da evolução da teoria da práxis, é claro, por aqui e
alhures. Em decorrência disso não somos fabricantes de
revoluções pequeno-burguesas, não somos cavaleiros da
revolução burguesa, não temos ilusões politicistas, não somos
cartilhistas, não somos, portanto, imediatistas, muito menos
propagandistas de algum dogma e futuro pré-estabelecido.
Isto, por sua vez, não nos transforma em detratores
sistemáticos das demais correntes marxistas e suas
organizações antigas ou novas. Pertencemos, digamos, a uma
certa ordem crítica, somos cavaleiros de uma certa ordem de
fiéis criadores de teoria para a emancipação, refundacionistas,
digamos, cultivadores de uma proximidade essencial com as
Pensando com Marx (I) | 129

matrizes da revolução teórica à qual pretendemos pertencer,


caprichosos e pacientes tecelões de um novo tecido feito com
fios destinados a preencher todos os rasgões, desvãos, falhas,
etc., guiados exclusivamente por nossa autodeterminação
consciente. Movimento de intelectuais da nova práxis, a
compor um de seus partidos, nos constituímos através da
inequívoca e insubstituível primazia da teoria para a ação.
O segundo momento metodológico essencial é o da
crítica ontológica, das formas de ser do real, “enquanto crítica
ontológica de todos os tipos de ser, a filosofia continua sendo–
mesmo sem a pretensão de dominar e submeter os fenômenos
e suas conexões–os princípios diretivos dessa nova
cientificidade” a qual orienta a “ininterrupta crítica ontológica
imanente de todo fato, de toda relação, de toda conexão
submetida a leis”(in Lukács, Ontologia do ser social. Os
princípios ontológicos fundamentais de Marx, p.29) Nele, a
busca da particularidade, do traço diferenciador e, portanto,
via essencial de apreensão das trajetórias históricas nacionais
no novo mundo capitalista, gerador simultâneo e expandido
de anacronismos e uniformidades sincrônicas. A questão das
vias de realização do capitalismo constitui-se, assim, em
centro do conhecer e agir sobre a história. A história do
marxismo do século XX é tributária do desconhecimento
sistemático desse fundamento, único capaz de colocar-nos
nas trilhas certeiras da história do século (e da revolução
teórica perpetrada por Marx), em particular daquelas
conducentes à justa compreensão dos percalços da revolução
e do movimento revolucionário, da primeira fase histórica da
experiência de construção de sociedades não–capitalistas.
Associado a esses dois momentos constitutivos, uma
nova forma de fazer ciência, uma nova forma de viver esse
empenhamento, já vivida pelas primeiras levas de nossos
graduados e pós-graduandos, qual seja, o trabalho coletivo
solidário, consciente, voluntário e organizado. Creio haver
sido e permanecer sendo essa a nossa experiência no NEC e
GEE.
130 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

Como primeiro desafio específico, está aquele proposto


por Lukács, o da necessidade de reescrevermos a história do
século finado, dadas as suas trágicas e devastadoras
vicissitudes (Hobsbawm, na Era dos extremos, já produziu
uma seríssima síntese; o Lukács último e sua síntese
ontológica e, contemporaneamente, Mészáros). No nosso caso,
nossa história latino-americana. Outros historiadores, em
outras latitudes, já há algum tempo estão empenhados nessa
tarefa.
Outro desses desafios é o de haver-nos cabido sermos
contemporâneos da ruptura histórica ocorrida na evolução
capitalista, em seu trânsito do século XX ao XXI. É imperioso
apreendermos as linhas mestras dessa nova civilização do
capital desabada sobre nós, ou seja, o tema da nova etapa da
mundialização do capital deverá constituir–se em área
temática particular. Dito de outro modo, existe aí uma nova
história do tempo presente necessitada de olhos poderosos
postos em suas brumas, ao lado das vertentes fortes da
história contemporânea. Estas últimas seriam: a crise do
capitalismo liberal e saídas à ela (as duas guerras mundiais, a
Revolução russa e suas vicissitudes e desvitalização, o New
Deal, a guerra pela república na Espanha, o Fascismo e o
Nazismo, as revoluções políticas industrializantes nos mundos
ex–coloniais), a especificidade dos capitalismos no mundo
colonial, o cisma comunista e a terceira internacional, as
revoluções, socialistas ou não, no campo ex–colonial e seus
momentos mais importantes (México, China, Vietnã, Cuba),
assim como os momentos contra–revolucionários mais
importantes (Espanha, Grécia, Itália, Alemanha, Hungria,
Brasil, Argentina, Chile) a nova civilização capitalista do pós–
guerra, o capital monopolista e o complexo industrial–militar,
a nova hegemonia financeira e o novo capital produtivo, a
perestroika e seu desfecho, a globalização e os EUA como
única potência hegemônica, a IV Guerra Mundial e a nova
ordem mundial após o 11 de setembro de 2001.
Pensando com Marx (I) | 131

2. A prática

Ao lado da teoria e as diferentes formas de sua


materialização, a práxis transformadora é inconcebível sem as
ações capazes de permitir com que essas materializações
encontrem seu público e o ampliem incessantemente. A teoria
exige, além de reprodutores e criadores, organizadores de sua
difusão e, posteriormente, da ação coletiva dirigida pela nova
práxis. A especialização das funções, antes de mais nada
teóricas e práticas, não quer dizer, em absoluto que devamos
cultivar uma casta de coordenadores práticos desobrigados de
estudo sistemático, assim como de trabalhadores intelectuais
ignorantes das exigências práticas. Aqui, também valem as
virtudes de uma educação multifacética, conscientemente
concebida para formar homens plenos. A primazia ontológica
do momento teórico em nada desmerece a constituição,
dentro das inevitáveis diferenças, de uma história coletiva a
mais homogeneizante possível. Em cada um dos estágios da
formação teórica deverão ser concebidos os seus equivalentes
práticos e vice-versa, ou seja, dever–se–ão ser concebidas as
“carreiras” em uma e outra vertente da divisão social do
trabalho todavia presente na organização revolucionária, ou
seja, da práxis.

III–Formação

Ao lado da pesquisa, cumpre–nos conceber a nossa


formação permanente, como momento didático–pedagógico
específico, sob a forma de cursos, seminários, encontros.
Penso que deveríamos conceber alguns estágios básicos da
formação, cinco ou seis (seis semestres), com disciplinas e
leituras específicas, trabalhos finais em cada estágio, etc., que
basicamente acompanhariam a construção da obra de Marx e
dos principais teóricos criticados por ele. Três estágios para a
obra de Marx e contemporâneos, mais três para o século
vinte. Em cada estágio haveria um rol específico de funções
132 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

práticas a serem exercidas. Em especial, cumpre–nos


preparar uma edição em português da obra completa de Marx
e Engels, assim como dos principais teóricos marxistas do
século XX. Em particular medida, dos pensadores marxistas
brasileiros.

IV–Segurança

A experiência do século vinte nos deve convidar ao


saudável exercício de um complexo mínimo de procedimentos
de segurança e autodefesa. Desde hoje, desde sempre, em
teoria e prática. Ainda mais nestes tempos de barbárie, de
necessária substituição do estado como praticante direto de
crimes políticos e sua substituição por quadrilhas eventual ou
sistematicamente assalariadas para tal. Além do mais, após o
11 de setembro vivemos a IV Guerra, cuja característica mais
marcante é o de ser o processo implacável e inapelável de uma
sucessão de guerras anunciadas contra países ou
organizações (o que dá no mesmo, em termos práticos), contra
tudo e todos que a elas se oponham.

V– Uma nova educação: por um movimento de educadores


para a emancipação

O que fazer para relançar o movimento emancipador em bases


sólidas?

1. Os intelectuais e o movimento emancipador

A história dos finais do século XIX e do século XX nos


apresenta a tragédia de uma intelectualidade revolucionária
alienada às vicissitudes dos interesses imediatos de
lideranças políticas socialistas ou das revoluções proletárias e
seus estados. Evidentemente, devido a isso, esteve fora do
alcance de uma tal intelectualidade alimentar decididamente
os movimentos da emancipação humana.
Pensando com Marx (I) | 133

Após a experiência do século XX, relançar em bases


sólidas o movimento emancipador exigirá dos seus
intelectuais assumir as tarefas que lhes são próprias,
específicas, intransferíveis, independentes dos interesses
imediatos e mediatos de quaisquer lideranças, organizações
ou mesmo Estados.
O exercício de suas tarefas específicas exigirá deles a
criação de uma organização própria que lhes permita o pleno
exercício de suas funções. Isso, no limite, inclui não somente
a reconstituição da teoria, mas também sua defesa contra as
paixões dos que se dizem seus amigos, ainda mais dos seus
inimigos velados ou declarados, novos ou tradicionais. A
tragédia dos intelectuais revolucionários dos dois últimos
séculos evidencia tal necessidade. Tal organização tem por fim
impedir que o pensamento crítico seja alienado aos interesses
anti–emancipacionistas ou que suas lideranças sejam
sumariamente eliminadas em nome da revolução ou da
contrarrevolução. Ela atestará o compromisso com a
prioridade absoluta da teoria para a realização da
emancipação humana, para a sua práxis. Ela expressará a
convicção de estar-se cumprindo um dever inalienável,
indeclinável e intransferível dos intelectuais revolucionários.
Caberá aos intelectuais emancipacionistas construir a
autonomia da teoria com relação às flutuações do movimento
político dos proletários e, assim, poder com este estabelecer
relações de reciprocidade respeitosa, emancipadas ainda que
vitais. Esta será sua tarefa inadiável, capaz de legar ao futuro,
realizando-se no presente a herança de sua qualidade, sua
realização expressa em suas obras teóricas e práticas,
artísticas ou culturais, seus discípulos, suas gerações de
educadores e criadores e, antes de tudo, a confiança em suas
forças.
Tal organização possibilitará aos intelectuais o
exercício o mais pleno possível da produção e reprodução do
saber crítico, capaz de manter-se firme na luta pelos seus
propósitos. Colocará a redignificação da teoria e dos teóricos
134 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

da revolução como tarefa central e permanente.


Autodeterminar-se-á forjar uma nova trajetória crítica para o
século XXI, remontando às fontes vitais da obra de Marx, não
herdadas pelo marxismo do século vinte, ao passo que acerta
as contas com este e com a história do século.
Parte da constatação de que a maioria das vertentes
dos marxismos pós-Marx, especialmente as do século XX,
estão irremediavelmente condenadas a empurrar e acertar
contas com a história das organizações que lhes deram vida e
onde todavia elas se encontram, e delas evoluirá sem,
contudo, obrigatoriamente, liquidá-las. É óbvio que a
organização da teoria não desdenha o enfrentamento com
essas histórias, mas coloca-se mais além, sob a bandeira do
futuro, pois autoconcebe-se destinada a transformar-se em
uma espécie de ordem, academia, estado maior da teoria.
Enquanto estado maior procurará metódica e
conscientemente estabelecer laços de cooperação com os
vários campos de atuação do movimento emancipador, com
todas as instâncias onde ele se processe.
Este estado maior é, ele próprio, de certo modo, uma
academia para a práxis emancipadora. Autoconcebido como
instância maior da teoria, conforma naturalmente um
movimento para a emancipação que não se confunde com
qualquer partido político proletário. Sendo sua função
primordialmente educativa (mesmo a política), realiza a
grande política da emancipação, a qual não se confunde com
a pequena política das organizações tradicionais, centradas e
autodeterminadas, portanto, no calendário das exigências
formais das disputas políticas do sistema da alienação.
Radicalmente contrária a este, deverá pautar-se e determinar-
se pelas necessidades maiores da sua liquidação. Este é seu
centro e fim.
A academia para a práxis emancipadora deverá
compor-se, antes de tudo, de educadores. Realizar-se-á
através de um complexo de atividades de produção e
reprodução do saber emancipador, da teoria crítica
Pensando com Marx (I) | 135

radicalmente oposta ao mundo das mercadorias, aberta e


nutrida por fortes laços com o movimento social real, podendo
e devendo, inclusive, vir a fazer brotar de si movimentos
políticos emancipadores, sem deixar de ser, antes de tudo, um
movimento de educadores.
A produção e reprodução do saber emancipador
atenderá à interação de processos indissolúvel e
dialeticamente unidos, a uma dupla ordem de processos
mutuamente determinados. Ela produz e reproduz simultane-
amente ciência, arte e cultura para os processos
emancipatórios e processos emancipatórios para a ciência,
arte e cultura.
Diferentemente da educação liberal, para o mercado,
esta nova educação, promovida pela organização autônoma da
práxis, determina-se imanentemente por sua filiação às
necessidades maiores da humanidade. Está preferencialmente
subordinada às necessidades dos contingentes humanos
subordinados ao sistema da produção do capital e, dentre
estes, às dos seus setores mais impactados, dos menos
protegidos, menos capazes de ascender, pelos meios tradi-
cionais, a estágios civilizacionais compatíveis com sua
autodeterminação.
Nos capitalismos da miséria, antes de tudo naqueles
paridos do ventre colonial, a miséria pesa como lastro
descivilizador, aviltador das ingentes lutas sociais travadas ao
longo dos dois últimos séculos. A academia para a práxis
emancipadora autodeterminar-se-á por ser portadora de um
projeto civilizacional contrário ao da civilização do capital, da
miséria capitalista. Este deverá ser o sentido maior da sua
realização, concebido para atravessar este século de barbárie.
O atual estágio da mundialização processa o controle
global da reprodução social pelo capital, incluído o controle
dos estados nacionais sobre a reprodução social em seu
espaço nacional. Potencializam-se as assimetrias históricas
regionais, exacerbando ao absurdo as desigualdades sociais.
Isto nos permite caracterizar a gesta da nova civilização do
136 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

capital como um certo evoluir da descivilização capitalista,


pois esta afirma-se destruindo a ordem social construída sob
as condições anteriores, de (certo) controle social do capital.
Se o trajeto da emancipação humana nestes capitalismos da
miséria, em dois séculos, sequer conseguiu alcançar os
patamares conquistados pelas sociedades oriundas das
revoluções burguesas radicais (antes de tudo as elementares
tarefas nacionais da autonomia plena: educação, moradia,
alimentação, saúde e trabalho) nas vanguardas capitalistas,
nesta situação de descivilização acelerada, mantidas as
condições vigentes, a regressão emancipadora é inevitável,
palpável, crescente e aterradora. Seu nome é barbárie e está
condenada, infelizmente, mantidas as condições atuais, a ter
longa vida.
Apesar da evidente função civilizadora do movimento
socialista nacional e internacional, nos capitalismos por via
colonial os avanços da emancipação humana durante o século
vinte foram inesperada e rapidamente destruídos pelas
ditaduras civis-militares, cuja marcha triunfal conquistadora
acometeu-se, antes de tudo, a partir dos anos sessenta. Estas
operaram a descivilizadora política imperialista, preludiadora
dos dias atuais. A história de nossas ditaduras e de sua ação
nos últimos trinta anos atesta a extrema fragilidade da teia
civilizacional de nossas nações, assim como o arraigamento
da vocação regressiva das classes dominantes, sua filiação
genocida, antinacional, antipopular, pró-imperialista,
desemancipadora.
A transição transada deu continuidade expandida a
esse nódulo de incivilidade e subalternidade imanentes,
engordando-o com os apetites e aptidões recalcadas de setores
burgueses e capitalistas alijados do poder pela ditadura.
Hoje somos herdeiros dos escombros. Pior, vivemos a
reprodução dos fragmentos dos escombros, um poço sem
fundo, um processo sem fim. Pois a transição da ordem
ditatorialesca à democracia parlamentar deu-se sem ruptura
política ou econômica, mantendo e ampliando o leque de
Pensando com Marx (I) | 137

setores burgueses no poder, ou seja, realizou-se mantendo


intactos os núcleos das classes no poder e mais,
aprofundando os processos políticos e econômicos
subordinadores da nação. Esta transição conservadora
evoluiu para uma unanimidade burguesa inédita até então em
nossa história, verdadeira situação de ditadura burguesa de
fato, a qual impõe às maiorias nacionais os seus exclusivos
desígnios políticos e econômicos de classe, transformando a
ordem legal em apêndice de sua vontade. Esta situação não é
exclusiva do Brasil; vige em de toda a América do Sul.
A urgência comandou a malograda luta de nossos
antepassados pela liquidação da economia colonial,
mantendo-se esta no centro dos ingentes embates sócio–
políticos do século XX. Esta mesma urgência, com redobrada
intensidade, coloca-se no comando das lutas do século XXI,
pois espelha e está obrigada a acompanhar o ritmo e
dimensões dos desafios da contemporânea descivilização
acelerada. A urgência e responsabilidade pela construção
sistemática de nova civilização contrária à que se afirma, recai
hoje, absolutamente, nas mãos do movimento emancipador e
das maiorias nacionais, dos seus proletariados. Somente a
afirmação das necessidades propriamente humanas,
republicanizando a república sob a óptica dos interesses
populares, evitará a transformação da regressão em barbárie
sem fim. Quando as burguesias abandonam definitivamente o
campo da afirmação da soberania política, econômica e
cultural nacionais, periga de morte a soberania popular,
atropelada sistematicamente pelas descivilizadoras urgências
burguesas. A republicanização sob o império dos interesses
majoritários não poderá ser outra, então, senão a socialista.
Caso contrário, permaneceríamos no plano histórico do
estender-se infinito do estiolamento bárbaro.
Permaneceríamos capturados pelo paradoxo teórico,
imobilizador da práxis das assim chamadas esquerdas
nacionais, postulantes de um novo capitalismo humanizado,
construído pelos próprios proletários. Um convite aos escravos
138 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

do capital à criação de cadeias menos bárbaras à


subordinação reforçada de si próprios ao sistema da
alienação, da produção de mercadorias, do capital.
Evidentemente, a republicanização socialista não seria
aquela derivada de um socialismo de estado, ao estilo das
experiências socialistas do século XX. Uma republicanização
popular só poderá ser afirmação das necessidades proletárias.
Seu caráter emancipador só cumprir-se-á com o exercício
popular real do poder político e econômico real dos
trabalhadores: não existe outra forma de realizar a
emancipação humana, de encaminhar a produção social para
além do capital.
A organização autônoma dos intelectuais, autode-
terminados a forjar um movimento dos educadores para a
emancipação, coloca-se em sintonia com a urgência dessa
republicanização, de sua organização sistemática. Concebe-se
operando um processo voltado para o longo prazo, ciente de
que a reconstrução teórica da práxis emancipadora envolve a
assimilação das conquistas do passado e a acumulação dos
esforços, do trabalho solidário de sucessivas gerações. Aqui,
urgência e longo prazo não conflitam, pois não há nenhum
atalho milagroso para a redenção proletária e genericamente
humana. Esta ilusão do século XX não deve repetir-se. Não
temos o direito de tecer ilusões sobre as predisposições
democráticas das classes dominantes e seus amos globais ou
com as possibilidades democráticas dos processos eleitorais
fabricados sob os imperativos da descivilização. Tampouco
acreditamos em acenos do imediatismo político a forjar
duvidosas súbitas vitórias ou na impaciência como norte da
teoria. Isso não significa a execração da audácia ou crença em
uma teleologia da lentidão ou de supostas irredutíveis etapas
da revolução. Nesse século que finda, o imperialismo
demonstrou não se deter diante da realização de qualquer
ignomínia. Sua economia política de guerra não vacilou diante
de nenhum obstáculo e todas as fronteiras da desumanidade
foram violadas. Até hoje nada nos diz que este não seja o
Pensando com Marx (I) | 139

caráter de seu destino anunciado. Este caráter exterminista


do império do capital permanece sendo uma fronteira
histórica para a práxis emancipadora a demarcar o terreno
dos cuidados com os quais deve cercar-se a nova organização.
A urgência realiza-se pela inabalável decisão de
construir a nova organização da teoria para a nova práxis,
capaz de conceber-se para a travessia do século, cônscia de
que a emancipação não tem prazos definidos. Para realizar-se,
a organização autônoma dos intelectuais revolucionários
necessita construir a sua autonomia, ou seja, criar condições
para o seu funcionamento autônomo. Quanto a isso, não há
milagres e as tarefas organizativas atuais são genericamente
as mesmas, seja para o tempo de Marx ou o de Lenin e Rosa
Luxemburgo. As questões vitais sobre o predomínio da criação
teórica sobre os práticos pensadas por Lenin, se bem que
corretas, foram superadas pela história, já que subsumidas à
forma partido e pela nossa atual decisão de autoconceber-se
autônoma a organização da teoria. Essa não foi uma questão
especificamente teorizada por Marx, embora seu projeto
crítico haja sido construído através da afirmação dos
princípios de sua revolução teórica, em embate contra as
formas teóricas concorrentes tanto no movimento proletário,
que crescia espontaneamente, quanto na interpretação da
nova sociedade. E foi exatamente a saga da construção da
teoria o que permitiu o lançamento das bases teóricas para a
organização das duas Internacionais comunistas.
Posteriormente, a criação da socialdemocracia alemã
tampouco suscitou maiores inquirições sobre o papel da
teoria. Lembremo-nos, todavia, da censura em vida sofrida
por Marx e Engels por parte das lideranças teórico-práticas do
partido social-democrata alemão (especificamente quando
Marx criticou duramente os social-democratas e seus
programas para os congressos de Ehrfurt e Gotha), o que
levou os dois fundadores do comunismo crítico a ameaçá-los
com um rompimento público.
140 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

Esse processo necessitou ser teoricamente formalizado


por Lenin nas condições específicas da Rússia tsarista em sua
“Carta a um camarada”. Condições essas que prenunciavam
no horizonte da história russa a eclosão de uma revolução
social para as próximas décadas. Isso exigia a organização de
esforços das forças heterogêneas e dispersas do socialismo
russo. Potencializar a força da teoria e seu poder social
aglutinador em um país que é mais um continente, de tão
vasto–e esta questão não é de somenos importância, pois o
Brasil está colocado no mesmo plano– exigia uma organização
dos revolucionários, capaz de não só sobreviver à ação
implacável da polícia como de colocar as disputas teóricas sob
controle público, realizando-as no sentido de fortalecer a
organização através de seu crescimento qualitativo. Concebia,
assim, as bases de uma organização em que o livre e sério
debate sobre a apreensão dos processos contrários à
emancipação do trabalho, processos contra os quais se dirigia
a práxis emancipadora, era a base de êxito desta. Expressava
uma certa pedagogia imanente à emancipação que colocava
naturalmente a teoria à cabeça dessa práxis.
No entanto, em vida, tanto Lenin, Rosa Luxemburgo e
Gramsci ou Marx e Engels depararam-se com a negação
dessas premissas, com o controle de suas organizações pelos
práticos (aliados a lideranças teóricas, é claro, que se diziam,
todas, “práticas”). Engels nos conta que este termo e
personagens já eram conhecidos do movimento operário inglês
nos anos 40:”...entre os socialistas também há teóricos, ou,
como são chamados pelos comunistas, ateus totais, enquanto
que aos outros dá-se-lhes o nome de práticos”(in “Cartas
desde Londres”/1843/, p. 139, K. Marx y F. Engels Obras
Fundamentales, vol 2, Mexico, FCE, 1987) o que acarretou a
censura, cerceamento e veto a seus trabalhos e posições,
chegando até à eliminação física, como foi o caso de Rosa e
Karl Liebknecht. Processos esses que prenunciavam o
esmagador e trágico predomínio do anti-intelectualismo nas
organizações revolucionárias do século XX. Da elevação das
Pensando com Marx (I) | 141

necessidades do curto prazo ao estatuto de prioridade


ontológica, à categoria de teoria explicativa do real, dos seus
presente e passado, numa evidente subversão metafísica do
pensamento de Marx. Por sua vez, tais necessidades
derivavam de interesses que se confundiam com os de
determinadas lideranças e realidades nacionais das várias
revoluções proletárias galvanizadas pelo marxismo vulgar, as
quais foram impostas a ferro e fogo a todo o orbe
revolucionário, com as conhecidas consequências
desastrosas. Onde o desastre dos desastres não foi só a vitória
desse marxismo sobre as outras correntes na realização da
primeira onda internacional de revoluções proletárias, mas
sim a construção de sociedades pós-capitalistas sob a égide
dessa teoria social antiemancipacionista – incapaz de
conceber e, portanto, realizar a emancipação social radical.
Abre-se o século XXI ainda sob a égide da decifração e
da aventura, tal como ocorreu para as gerações
revolucionárias dos dois últimos séculos. Nossa nova
trajetória específica atende à especificidade de nosso objeto: a
ruptura histórica capitalista, sua aberta regressão descivili-
zadora mundial, simultânea à falência teórico-prática do
marxismo do século XX e de sua máxima aventura
revolucionária – a direção dos processos de construção
consciente de sociedades socialistas. Esta última projeta-o ao
palco da história, no exercício de um compromisso com a
humanidade. Tal fato coloca em juízo todo o movimento
comunista e revolucionário mundial, seus fundamentos
teóricos e práticos.
A organização autônoma dos intelectuais
revolucionários já não é, pois, somente uma questão teórica,
ou prática - para enfrentar uma conjuntura revolucionária–
mas evidente necessidade para a reconstrução da teoria e da
sua práxis. Exigirá a centralização de esforços em torno de
um projeto de construção da nova organização da crítica
capaz de ir simultaneamente criando ciência - uma
compreensão crescentemente apurada dos novos desafios à
142 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

emancipação, ou seja, uma nova teoria, que se realiza na


proposta de uma nova civilização–, enquanto multiplica os
meios de enraizar e levar consciente, metódica e sistema-
ticamente esta proposta às cidadelas do abandono e solidão,
da barbárie, da regressão social, da descivilização capitalista.

2- O projeto matricial: a Universidade Popular

No centro do projeto da academia da práxis está a


criação de uma universidade popular que produzisse saber
científico determinado pelos desafios contemporâneos à
emancipação humana. Universidade vinculada ao
soerguimento de regiões de abandono colonial ou sob impacto
descivilizador mais recente, formadora de coletivos
civilizacionais emancipadores concebidos para multiplicarem-
se em outras regiões semelhantes, criadora de uma teia de
laços sócio, políticos, econômicos, pedagógicos e culturais
com todo o universo das forças vinculadas à emancipação
humana, comprometida com a vertebração de processos de
educação formal, informal e à distância, de alunos de várias
faixas etárias. Compõe um projeto integrado de educação para
a emancipação em todos os níveis de ensino, distinto e
alternativo à educação pública e privada em regressão.
A Universidade Popular não se concebe como
substituta da universidade pública. Pretende ser um
momento específico de sua existência, capaz de interagir com
ela, criando com esta uma teia de relações duradouras, social
e cientificamente estratégicas, no coração dos espaços e temas
cruciais contemporâneos. Esta ancoragem no terreno dos
desafios teórico-práticos ainda não sistematicamente
palmilhados estabelece relação de mútuo enriquecimento,
uma interação virtuosa entre esses dois momentos da
universidade pública. Acreditamos e desejamos mesmo que
tal interação possa, em dada altura de sua universalização,
contaminar a universidade pública com o profundo vínculo
republicano da Universidade Popular. Republicanizar a
Pensando com Marx (I) | 143

universidade pública é meta explícita da Universidade


Popular. Para nós isso significa, simultaneamente, a
construção sistemática e consciente de uma ruptura científica
a ser realizada na universidade pública, capaz de faze-la
assenhorear-se de sua alma emancipadora, perdida nos
desvãos da nossa história.
O momento de particularidade da Universidade
Popular, sua concepção republicana e emancipadora posta a
serviço da reversão de processos sócio-econômicos regressivos
crônicos de determinadas regiões não conflita com a
universalidade do saber ali produzido e reproduzido. Ao
contrário, espacializando a vinculação temática e científica e
os compromissos sociais do ensino, cria-se riquíssimo
universo de novos estímulos e desafios científicos e
republicanos, capazes de serem incorporados por todos os
níveis do sistema público de ensino.
Os compromissos republicanos, por sua vez, obrigam a
Universidade Popular a ser instrumento de aceleração da
história regional. Daí ela ver-se obrigada a realizar-se de
forma diferenciada: ao invés de formar quadros para um
espaço histórico hipotético, para um tempo histórico abstrato,
seus quadros serão formados para dar continuidade ao
projeto, ou seja, para regiões determinadas, para prosseguir
uma determinada trajetória teórica e prática.
Uma parte dos formandos permanecerá evoluindo nos
marcos regionais da reversão em processo e outros serão
preparados para implantar novas células da Universidade
Popular em outras regiões desassistidas. E as regiões mais
desassistidas, agora pela perversão do moderno, da sociedade
capitalista nativa, tal qual ela se viabiliza no Novo Mundo, são
exatamente as conurbações urbanas, as megalópoles e seu
entorno barbarizado. Depósito de população proletária de cujo
desespero, ignorância e anomia se alimenta a reprodução
política da mesmice miserável, tendo os barões capitalistas-
selvagens da droga a tangê-la como a um rebanho
desprotegido.
144 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

Temos aí uma outra dimensão estratégica da Universidade


Popular: o propósito do estabelecimento de vínculos
sistemáticos entre espaços sob regressão colonial e
neocolonial e a miséria metropolitana em processo de
barbarização avançada. O estabelecimento da universidade
nas periferias das grandes cidades objetivará igualmente a
realização de uma alternativa civilizacional à descivilização em
curso.
Como sabemos, o capitalismo da miséria é incapaz de
recivilizar- se. Sob o impacto do descontrole social do capital
abraçado pelas suas classes dominantes, do abandono
definitivo da luta pela viabilização de um capitalismo
autônomo, a única arma brandida pelo estado é a violência
acrescida, indiscriminada, contra as próprias vítimas da
ordem. Este é um momento imanente à barbárie: a escalada
da violência estatal. Esta, contudo, é incapaz de reverter o
caos, a potencialização da miséria. Na realidade, aprofunda-
os, amplia-os, cronifica-os. Para mal dos pesares, o braço
estatal da repressão transforma-se em braço do negócio das
drogas, privatizado pelos barões dessa florescente empresa. A
Universidade Popular é, portanto, o elo central de uma
proposta consciente para uma nova civilização contra a
descivilização imanente. A luta pela emancipação adquire,
assim, um caráter diretamente anticapitalista e anticapital. A
universidade é o centro dinâmico de uma nova reprodução
social, de um novo complexo civilizatório.

São Paulo, 2002


Pensando com Marx (I) | 145

Referências

MARX, Karl e F. Engels Obras Fundamentales, vol 2, Mexico,


FCE, 1987.
LUKÁCS, Georgy in Revista Nova Escrita Ensaio, nº 15-16,
São Paulo, 1986
LENIN, V.I. Carta a um camarada. Sobre questões de
organização in Revista Nova Escrita Ensaio, n°8, ano IV, São
Paulo, 1980.
146 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O
Pensando com Marx (I) | 147

Parte II – As revoluções burguesas e socialistas


148 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O
Pensando com Marx (I) | 149

6 - A falência da transição comunista e o


retorno do capitalismo à Rússia - a propósito
do 100º aniversário da Revolução Russa

Sob a óptica de Marx. A crítica do capital e a emancipação


dos trabalhadores - A teoria da transição comunista em
Marx
Durante toda a vida, Marx manteve-se fiel à luta pela
emancipação dos trabalhadores. Levou este propósito às
últimas consequências. Sua AIT fracassou apesar (e devido)
dos seus evidentes êxitos. O sectarismo das vanguardas
estraçalhou definitivamente o movimento unitário
emancipacionista. Decidiu-se, então, por liquidar a AIT com a
mesma fundamentação e contundência com que criticou o
primeiro programa do recém-fundado partido operário alemão
em sua carta aos dirigentes deste, em 1875, posteriormente
denominada Crítica ao Programa de Gotha, dentre outros
motivos por seu autoconfinamento nacional (MARX, 1975).
No entanto, nesse trabalho, o lema da AIT é ali
reafirmado, “a emancipação dos trabalhadores será obra dos
próprios trabalhadores”; isto vale dizer que nenhum Estado
ou partido emancipa os trabalhadores. A emancipação destes
ou é obra coletiva destes, na qual se realizam como classe –
obra coletiva, voluntária, consciente e organizada – como
expressão sua esmagadora maioria e, consequentemente, de
seu poder político direto e ditatorial (podendo até ser
democrático, a depender das condições históricas concretas) e
de sua direta propriedade dos meios de produção, ou então
não ocorrerá.
A experiência da Comuna de Paris, curta, porém
riquíssima, permitiu a formulação dos traços essenciais de
uma teoria da transição comunista. “Entre a sociedade
capitalista e a comunista existe um período de transformação
revolucionária da primeira na segunda. A esse período
corresponde um período de transição política, e o estado desse
150 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

período não poderá ser nenhum outro a não ser a ditadura


revolucionária do proletariado.” Isso nos diz o Marx maduro,
em sua Crítica ao Programa de Gotha. Superar o capital,
suprimir o reino da mercadoria, transformar os trabalhadores
em força revolucionária ativa, através do exercício de sua
emancipação política, realizar a sua emancipação econômica
individual e coletiva, expandindo o reino de sua liberdade no
sentido de liquidar a herança da divisão social do trabalho.
As décadas de estudo das mais variadas sociedades e
da luta, nelas, dos trabalhadores por sua emancipação, até o
final de sua vida, da Alemanha à Rússia, da Irlanda à
Inglaterra, da Espanha aos EUA, tiveram como objetivo
conhecer o estágio relativo da maturidade do movimento
internacional dos trabalhadores com vistas à criação do seu
futuro movimento unitário mundial. A apreensão da
particularidade do desenvolvimento dos vários povos é
questão teórica central para Marx, pois vital para se pensar o
futuro desse movimento.
O esquecimento e abandono posterior desta não
poderiam deixar de ter consequências fatais. Ao lado dela,
esqueceu-se também da centralidade do projeto de criação do
movimento de emancipação dos trabalhadores. Este duplo
esquecimento, então, é definitivamente o Himalaia até agora
intransponível para este movimento.
Após a transformação do modelo bipolar alemão em
forma universal do movimento, ou seja, partido social
democrático e sindicatos - posteriormente uma tríade, com a
adição do partido comunista -, já enterrada a ideia e teoria,
porque não, da emancipação dos trabalhadores, o legado de
Marx entrou em franca decadência.
A Revolução Russa e sua transição pós Lenin, ao forjar
o novo catecismo mundial do materialismo de Marx em sua
versão soviética, como teoria marxista-leninista, ao
transmutar-se em forma teórica e prática de continuidade da
obra de Marx e sendo aquela revolução considerada modelo
mundial de revolução socialista, alterou de vez o legado desse
Pensando com Marx (I) | 151

autor no que tange a estas questões, até que o fim da URSS


nos permite, hoje, tratarmos desse assunto sem sermos
tachados de contrarrevolucionários. O capital enfim realizou
sua contrarrevolução e, ironicamente, pelas mãos dos mais
fiéis defensores da ordem socialista.

A transição ao comunismo se transmuta em transição ao


socialismo. Lenin e a teoria da transição ao socialismo.

a. A transição comunista se transforma em transição


socialista. Lenin apostou não ousar assaltar os céus.
Marx foi taxativo e Lenin introduz um debate bizantino:
tira o socialismo da cartola de Marx. Lenin em O Estado
e a revolução.

Ao longo de sua obra O estado e a revolução, escrita


em outubro de 1917, Lenin formulará os marcos teóricos que
deveriam nortear o processo da futura revolução russa.
Curiosamente, a experiência da Comuna, fundamento
histórico para a formulação teórica de Marx (para além da A
Guerra Civil na França, de 1871) na sua Crítica do Programa
de Gotha, não salientará, ali, dois traços essenciais para a
transição comunista: o controle político direto da comuna
sobre a reprodução social no exercício da ditadura do
proletariado, assim como a propriedade direta dos meios de
produção por parte dos trabalhadores, através da Comuna.
Tampouco “o período de transformação revolucionária do
primeiro (sociedade capitalista) no segundo (sociedade
comunista)” receberá de Marx o nome de socialismo.
O período indicado por Marx é nada mais que
expressão temporal de um processo de transformação
revolucionaria de uma forma social capitalista em seu
contrário, o comunismo. Pois se estamos a falar de
transformação revolucionária não poderíamos designar uma
específica formação social intermediária, dado se estar
demolindo sistematicamente o complexo de relações sociais do
152 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

capital cujos resultados sucessivos, ou seja, o processo de


suas transformações sucessivas, fundaria o império das
necessidades humanas.
Do mesmo modo, o agente social ativo e central dessa
transformação seriam as novas forças produtivas anticapital,
a classe trabalhadora no exercício de sua ditadura. Desse
modo, o período de transição seria o da destruição sistemática
do império das necessidades unilaterais do capital e
simultânea universalização das necessidades das maiorias
trabalhadoras.
O esforço de Lenin em converter a fase histórica
enunciada por Marx em forma social “comumente chamada de
socialismo e para Marx denominada primeira etapa do
comunismo” (LENIN, 1978) em vários momentos ao longo do
quinto capítulo de O Estado e a revolução, pretende
formalmente adequar o conceito de Marx ao seu uso
corriqueiro entre os socialdemocratas, os socialistas de então;
esforço em sentido contrário ao de Marx, em luta contra as
teorias corriqueiras entre os socialdemocratas alemães, em
torno do socialismo de estado.
Para Marx, depois da Comuna de Paris, havia que
afirmar teoricamente a experiência histórica do comunismo
dos proletários franceses, que dera vida ao esboço traçado no
Manifesto Comunista de 1848. O que impressiona, ao longo
desse capítulo (V. Fundamentos econômicos do perecimento
do estado; 3. Primeira fase da sociedade comunista) e, em
geral, nos escritos dessa fase, em Lenin, é a inexistência de
concepção de medidas organizativas necessárias para a
expansão do campo da emancipação dos trabalhadores, para
ampliar o campo de sua liberdade econômica, politica e social,
mas sobretudo politica, de modo a propiciar o trânsito da
emancipação dos trabalhadores pelos próprios trabalhadores
(para além da necessária supressão do analfabetismo e do
exercício do poder armado contra a contrarrevolução).
O acento se dará no fomento do cálculo, do controle e
da disciplina, especialmente a do trabalho. Por fim, já na obra
Pensando com Marx (I) | 153

Tarefas imediatas do poder soviético, de abril de 1918, se


agrega às tarefas imediatas do poder dos trabalhadores,
submeter obrigatoriamente a classe trabalhadora à
cientificidade do e para o capital concebida por Taylor. Ao
invés de ampliar permanentemente o campo da liberdade dos
trabalhadores, o que se lhes propõe como salto qualitativo é o
de submeter-se voluntariamente à degradação taylorista do
trabalho assalariado (BRAVERMAN, 1981)70
Colocado sobre os ombros da força de trabalho um
fardo tão poderoso, é explicável que a etapa socialista sob o
capital tenha se perpetuado e revertido, realizando os piores
desejos da contrarrevolução e negando as premissas da crítica
do próprio Lenin (LENIN, 1978) 71.
Lenin sabe ou pressente que a revolução russa não se
medirá pela experiência revolucionária do proletariado
francês. No país de Tolstói, Dostoievski e Gogol, podemos
inferir, para ele ainda não surgira uma classe trabalhadora
como categoria do nível francês ou mesmo alemã. A sorte da
revolução repousaria, em grande medida, nos atributos da
vanguarda revolucionária comunista, na qualidade da sua
apreensão teórica (na qual, evidentemente, Lenin seria peça
central), na sua rapidez e capacidade de disseminação pela
vasta Rússia, na inteligência e organização de sua práxis
revolucionária, em seu heroísmo na luta pacífica e militar.
Nenhum outro segmento revolucionário, naqueles momentos,
possuía tais atributos. Quando, enfim, se impôs a situação

70 Vejamos o que nos diz Braverman: “À primeira vista, a organização do


trabalho de acordo com tarefas simplificadas, concebido e controlado em
outro lugar, exerce claramente um efeito degradador sobre a capacidade
técnica do trabalhador. ”
71 “É importante se esclarecer como é infinitamente mentirosa a

suposição burguesa corriqueira de que o socialismo seja algo morto,


estagnado, dado de uma vez para sempre, quando de fato somente com o
socialismo se inicia um rápido, real e verdadeiramente massivo - com a
participação da maioria da população e depois de toda a população -, e
atuante movimento para frente em todos os campos da vida social e
pessoal. ” (LENIN,1977)
154 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

revolucionária e foi obrigatório agir com ímpeto e audácia, viu-


se que os bolcheviques eram insuperáveis.
Isto em nada justifica a posterior liquidação
sistemática de todas as demais organizações revolucionárias.
É certo que a urgência e a qualidade da ação política exigida
não obtinham resposta à altura de todas elas. Contudo, daí a
serem contrarrevolucionárias há uma tremenda distância. O
certo é que a ala jacobina da revolução eram os bolcheviques
e esta jamais esteve disposta a compartilhar o poder.
Oizerman chama a nossa atenção para a necessidade
de estudar-se a presença teórica de Sorel nas concepções de
Lenin no que concerne ao papel do terror e suas funções na
revolução (OIZERMAN, 2011). Ele (o terror) poderia haver
substituído a ausência da classe trabalhadora enquanto força
autônoma realmente reitora, o que, de fato, ocorreu.
No entanto, esse tipo de repressão era força social
impossível de ser desmontada nas condições russas. Foi desse
modo que o terror amplo, geral, sistemático, irrestrito e
permanente viria também a bloquear a transição comunista,
caso esta estivesse teoricamente consolidada na teoria da
revolução russa. Esse tipo de terror, tal como a
universalização do taylorismo como método capitalista de
aceleração da produtividade do trabalho, nada tem a ver com
a emancipação dos trabalhadores pelos próprios
trabalhadores (embora no imaginário popular a Comuna fosse
símbolo de chegada do processo da revolução, como nos fala a
canção revolucionária). (SKORBIN, 1918) 72
Marx, na Crítica ao Programa de Gotha, critica
duramente a concepção alemã do socialismo de estado e
afirma existir somente à frente da revolução a transição
comunista e nenhuma etapa específica previamente

72 Skorbin, B. e P. Zubakov Moi paravoz (Minha locomotiva) in


https://www.marxists.org/history/ussr/sounds/mp3/proletariat-
01/Nash-paravos.mp3
Pensando com Marx (I) | 155

estabelecida, a não ser o período de transição revolucionária


do capitalismo no comunismo. A operação de transmutação
da afirmação de Marx na teoria dos alemães é franco desafio à
crítica de Marx.

b. Uma contradição flagrante. O homem russo seria um


mau trabalhador e necessitava ser lançado ao fogo na
forja de Taylor. A teoria da transição socialista nas
Tarefas imediatas do Poder Soviético.

O trabalho de Lenin, Tarefas imediatas do Poder


Soviético, enuncia uma teoria da transição ao socialismo que
nos coloca diante de questões irresolvíveis na perspectiva da
teoria da transição ao comunismo de Marx. A opção por
privilegiar a criação de forças produtivas para o capital,
derivada da necessidade imperiosa de aumentar a
produtividade do trabalho por meio da universalização do
sistema de Taylor, em detrimento daquelas necessárias para a
transição comunista, coloca o destino da revolução russa sob
o império do bloqueio de sua força transitiva, operado pelo
capital. (LENIN, 1977)
A tese da supremacia qualitativa do trabalho
assalariado produtivo convertido em autômato mercantil por
via da universalização do sistema de Taylor implica em
desqualificação teórica e prática do trabalho como expressão
voluntária, consciente, coletiva e organizada da produção
material e dos trabalhadores em geral, ou seja, em elogio da
primazia da alienação do trabalho sobre o trabalho
emancipado.
Ora, todo o esforço teórico de Marx na crítica ao capital
tem como contrapartida e sentido na necessidade de superá-lo
por meio da criação de novas forças produtivas cuja existência
estaria em transformar o mundo da produção e da ação
humana em geral em meio de subordina-los às necessidades
humanas, inverter a alienação à qual estão submetidas estas
forças produtivas e criadoras da humanidade. E para que isso
156 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

pudesse ocorrer era necessário que as forças do capital


estivessem de tal forma subordinadas aos ditames das
necessidades humanas das maiorias que fossem, assim,
natural e definitivamente destruídas.
O poder político dos trabalhadores, conquistado
através da revolução, se realizaria através da evolução na
sociedade da propriedade direta dos meios de produção, único
meio pelo qual esse poder político da democracia proletária,
ou seja, sua ditadura, estaria em condições de subverter as
relações de produção e liquidar o estado que as mantém sob a
ditadura do capital.
Ainda mais, poder-se-ia então pensar que, para Lenin,
seria impossível transitar ao comunismo sem continuar a
passar pela moenda do capital, pressuposto educativo
questionável para o alcance da liberdade: antes o inferno e,
depois, o paraíso, de modo, então, que deus escreveria certo
por linhas tortas.
Some-se a isso, como exigência prática supostamente
irrecusável, o fato de ser “o homem russo (um) mau
trabalhador, comparado aos países mais avançados” (LENIN,
1977). Para nosso espanto, setenta anos depois, o trabalhador
russo permaneceria irresponsável, no caso, para a
contrarrevolução (AGAMBEGUIAN, 1988). 73 De onde se

73 : Dizia Agambeguian, teórico proeminente da contrarrevolução, ao


justificar a perestroika: “É por estar movído por essa ilusão, essa
“inversão mística”, ou seja, acreditar que publicização dos meios de
produção e existência da sociedade pura e simplesmente “opera” uma
abolição do capital, que Abel Agambeguiam candidamente nos diz: “A
principal forma de propriedade socialista é, como se sabe, a propriedade
pública do estado: a terra, o subsolo, as fábricas e as usinas pertencecm
ao estado, à sociedade em seu conjunto. O perigo potencial de uma posse
destas está no fato de esta propriedade surgir de algum modo como a
propriedade de todo o povo em geral e de ninguém em particular. O
sentimento de posse do indivíduo ouo grupo embota-se. Ninguém é
responsável por nada. Daí todos os males. Os trabalhadores desperdiçam
os recursos públicos, na medida rm que os recursos não lhes pertencem,
eles trabalham pior nas empresas do estado que para si próprios.
Pensando com Marx (I) | 157

depreende que a garapa energética extraída da mercadoria


capacidade de trabalho através do mais rígido e ditatorial
controle do trabalho assalariado pelo capital, o sistema de
Taylor, seja resultado do processo educativo com vistas à
emancipação dos trabalhadores. “Quién te quiere te aporrea”,
diz o ditado espanhol, a expressar cruamente, de modo
popular, os fundamentos do amor camponês.
Dito de outro modo, para Lenin, por mais paradoxal
que pareça, a emancipação dos trabalhadores só poderia,
então, ser obra da alienação destes, no que teríamos,
portanto, a exigência da alteração do dístico central da AIT
(Associação Internacional dos trabalhadores), a chamada I
Internacional criada por Marx. Variante desta nova teoria da
emancipação, a emancipação lenineana dos trabalhadores só
poderia ser obra da ditadura do capital. Um absurdo, é lógico.
Mas não, não estamos falando de uma revolução do
capital, mas de uma revolução denominada socialista, de
matriz comunista; não se trata somente de uma revolução do
capital, como também, e ao mesmo tempo, de uma revolução
dos trabalhadores. De um lado eles serão submetidos à
extração de seu suco energético por meio da ditadura do
capital a la Taylor, do seu sistema, mas ao mesmo tempo lhes
será entregue nada mais nada menos, que a administração do
estado: “seis horas de trabalho físico diário para cada cidadão
adulto e quatro horas de trabalho para a administração do
estado” (LENIN, 1978). Ou seja, os escravos do capital
dedicar-se-ão simultaneamente à escravização de si mesmos e

Comportam-se para com as máquinas com maior negligência que para


com seu próprio automóvel, por exemplo. (...) O meio mais importante de
reforçar o sentimento de propriedade coletiva é a adoção da autogestão.
Se os próprios trabalhadores gerirem a propriedade socialista atribuída a
um coletivo, eles considerá-la-ão como sua e (não) de outrem.
(Agambeguiam, 1988, p.211-212; in LIMA FILHO, Paulo Alves Capital, a
categoria fornecida, Revista IMES, ano VII, São Caetano, 1990, p. 39-49)
158 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

ao aperfeiçoamento do órgão de controle sobre si mesmos, da


sua escravidão.
Conviria indagar, será o mesmo sistema de Taylor
usado nos EUA? Resposta:

O que é negativo no sistema de Taylor era o fato de


se realizar em situação da escravidão capitalista e
ser um meio de extração, com o menor salário, de
uma duplicada e triplicada quantidade de trabalho
no mesmo número de horas trabalhadas, não
contando de modo algum com a capacidade dos
trabalhadores assalariados realizarem, sem dano ao
organismo humano, esse número duplicado e
triplicado de horas trabalhadas. À República
Socialista Soviética se põe a tarefa, que podemos
formular brevemente como sendo a de introduzir o
sistema de Taylor e o aumento científico americano
da produtividade do trabalho em toda a Rússia,
unindo esse sistema com a diminuição da jornada de
trabalho com o uso dos novos métodos de produção
e organização do trabalho sem qualquer dano para a
força de trabalho da população trabalhadora. Ao
contrário, a utilização correta pelos próprios
trabalhadores, caso eles sejam suficientemente
conscientes do sistema de Taylor oferecerá o método
mais verdadeiro para a ulterior e imensa diminuição
da jornada obrigatória de trabalho para toda a
população trabalhadora, oferecerá o meio mais
verdadeiro que no período de tempo bem curto,
realizar a tarefa capaz de ser enunciada mais ou
menos assim: seis horas de trabalho físico diário
para cada cidadão adulto e quatro horas de trabalho
na administração do estado (LENIN, 1978, p. 90).

Então ficamos sabendo que não teríamos na Rússia a


aplicação do sistema de Taylor usado sob o capitalismo dos
EUA, mas este mesmo sistema aclimatado à revolução dos
trabalhadores. Substantivas diferenças, para Lenin, seria ele
a) não causar dano físico aos trabalhadores, b) ter como
Pensando com Marx (I) | 159

objetivo da redução das horas trabalhadas, c) o que liberaria


os escravos do capital para a administração da escravidão do
trabalho sovietizada. O lema conceitual central Marx
transformar-se-ia, desse modo, em “A emancipação dos
trabalhadores será obra coletiva, consciente, voluntária e
organizada dos trabalhadores na alienação dos
trabalhadores”. A apreciação sobre Taylor é equivocada.
A revolução dos trabalhadores avançaria por meio da
universalização do sistema de Taylor, ou seja, da ditadura do
capital – ainda que sovietizada, pois expressão da essência
desse sistema – sobre o trabalho produtivo e trabalhadores
em geral, assim como do controle desta ditadura pelos
próprios trabalhadores. De outro modo se diria que a
revolução política dos trabalhadores se realiza através da
revolução econômica do capital; o que implicaria afirmarmos
que a transição comunista (jamais comentada no texto)
enquanto transição socialista se opera por via da ditadura do
capital no processo de trabalho e no estado por meio dos
próprios trabalhadores.
Como consequência disso (LENIN, 1978):

A transição a tal tipo de sistema exigirá muitas


novas habilidades e novas instituições organi-
zacionais. Não há dúvida de que tal transição nos
infligirá não poucas dificuldades e que a colocação
de tal tarefa causará até mesmo incompreensões e
talvez até resistência de alguns setores entre os
próprios trabalhadores. Mas podemos estar
confiantes de que os elementos avançados da classe
dos trabalhadores entenderão a necessidade de tal
transição e que as condições de terrível desor-
ganização da economia nacional que agora passaram
a ser notadas nas cidades e aldeias, quando milhões
de pessoas retornaram do front, afastadas [que
estavam] da produção e que pela primeira vez viam o
grau de desorganização da economia causada pela
guerra, sem dúvida está criado o solo para a
preparação da opinião pública dos trabalhadores
160 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

nesse sentido e que a transição que aproximada e


exemplarmente aqui assinalamos será posta como
tarefa pratica para todos os elementos conscientes
das classes trabalhadoras que agora estão do lado do
Poder Soviético. (90-91)

Em outras palavras, a situação desesperadora da


economia russa, ao exigir opções econômicas e organiza-
cionais imediatas para a sua superação, será um forte
estímulo à aceitação da política da ditadura do capital - por
meio dos métodos de Taylor – pelas camadas conscientes dos
trabalhadores russos.
Entretanto, o desespero não é um bom conselheiro
teórico. Esta nova teoria da transição socialista como obra das
excelências produtivas da ditadura científica do capital não se
relativiza com a proposta da máxima universalização possível
do sistema de cooperativas até o limite de criar um sistema
nacional abrangente de cooperativas (p.109). Este sistema
conformaria, na teoria analisada, ao lado da nacionalização da
terra, das empresas e fábricas, para Lenin, o sistema
socialista.
Tal sistema, desse modo, seria uma nova formação
social do capital, a sociedade socialista. Ele, assim teorizado,
afirma a impossibilidade teórica e histórica de a nova força
produtiva potencial emergente com a revolução política dos
trabalhadores, por via da universalização da associação
voluntária, coletiva, consciente e organizada dos
trabalhadores se afirmar na revolução russa, na qual a força
produtiva do capital seria o motor da revolução política dos
trabalhadores. Não é de admirar que a transição comunista se
veja bloqueada e revertida como contrarrevolução do capital,
neoliberal, com o fim da URSS.
Compreende-se que ao lado da revolução comunista
tenha surgido a necessidade de ser inventada uma revolução
socialista (jamais pensada por Marx), uma nova revolução, um
novo tipo de sociedade do capital, incapaz, ao longo do século
XX, de transitar ao comunismo.
Pensando com Marx (I) | 161

Síntese
a) Gorby: a bruxa veio com a maçã envenenada. A questão
dos heróis provisórios da história da revolução socialista

A relação entre vanguarda e massa tem forte presença


em todas as autointituladas revoluções socialistas atuais e do
século passado, em sentido qualitativamente distinto daquela
observada na Comuna de Paris. Nesta, a classe trabalhadora é
o agente central da revolução, na qual as várias organizações
dos trabalhadores estão presentes. Ali a classe trabalhadora
decide salvar a nação da traição perpetrada pela burguesia
francesa e as demais suas aliadas, em primeiro lugar a alemã
e seu estado. À frente dos trabalhadores franceses está o
proletariado parisiense. Em certa medida é este o papel do
proletariado de Cochabamba na revolução boliviana, em sua
etapa mais recente, que promoveu a “sublevação da água”.
Em geral, nas revoluções socialistas do período
indicado, as vanguardas políticas revolucionárias distam
enormemente da massa proletária no que respeita ao nível de
consciência, organização e experiência de luta. Este hiato não
somente não é superado como se consolida e cristaliza na
práxis do socialismo real, espécie de forma universal dessas
experiências. Tal universalização chama a atenção para a
possibilidade de a teoria do socialismo real nada mais ser que
uma forma ideológica dessas revoluções, questão que
trataremos em momento oportuno.
Dito de outro modo, a práxis social dessas massas
proletárias não esteve concebida ou então determinada pela
crescente expansão do controle social consciente, voluntário e
organizado dos coletivos de trabalhadores sobre a reprodução
social vigente nessas revoluções. A práxis social desses
coletivos não exprime a expansão permanente do campo de
sua emancipação, o que vale dizer não haver sido superada a
alienação, antes, porém, consolidada e cristalizada (ainda que
de modo irregular e diferenciado em cada uma dessas
revoluções).
162 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

Os momentos de cristalização mais evidentes se


expressam nos campos da política e economia, de modo a
travar nessas revoluções, de modo definitivo, o movimento de
emancipação dos trabalhadores nas protegidas fronteiras do
capital e da alienação política. Outros momentos da
reprodução social estão muito próximos dos respectivos
padrões culturais dessas sociedades, de modo a ter-se um
variado espectro de variáveis emancipatórias (também não
teorizadas). Ou seja, nos campos específicos da economia e
política, o estado controlado absolutamente pela vanguarda
política revolucionária mantém a dinâmica da revolução sob
seu firme, unilateral e exclusivo comando.
De forma que a qualidade revolucionária dessa
vanguarda se torna a pedra de toque da dinâmica, ou seja, do
futuro dessas revoluções. De modo que os fundamentos da
degradação teórica e, consequentemente, política, dessas
revoluções serão uma espécie de código genético de seu
trânsito rumo à sua extinção.
Ao invés da expressão do movimento de emancipação
dos trabalhadores realizado pelos próprios trabalhadores,
essas revoluções se realizam por via do movimento de
emancipação das vanguardas políticas revolucionárias e seu
estado, processo que acaba por exaurir em medida
determinante o potencial do movimento emancipatório dos
trabalhadores, dando azo, ao contrário, à expansão e
fortalecimento das forças sociais do capital, do movimento de
emancipação do capital na sociedade.
Nessas revoluções, ao contrário do que quis fazer
supor a ideologia marxista-leninista, se estiola a nível
dramático o movimento emancipatório dos trabalhadores,
contrabalançado, inevitavelmente, por contrário movimento de
alienação cujo centro é o capital e outras relações sociais
pretéritas, tal como a religião ancestral e popular pré-
revolucionária e outras formas ideológicas novas ou não.
Entretanto, lá estão na forma ideológica dominante os
heróis da revolução consolidados e exaltados como sendo o
Pensando com Marx (I) | 163

povo da nação e a classe trabalhadora. Exaltação essa que


durará até o último estertor da velha sociedade socialista. Em
seguida, logo após o fim desta, desaparecerão da ideologia
política os velhos heróis, dando nela guarida à nova exaltação
dos novos heróis do capital, toda a gama de eficazes
predadores da velha ordem socialista. A ordem socialista
cristalizada se despedaçará e dará lugar a uma mixórdia de
novas formas ideológicas e seus agentes políticos. Os antigos
heróis passarão a ser execrados e humilhados, tachados como
sendo os causadores de todas as reais e supostas desgraças
promovidas pela ordem anterior.74 Nos cumpre denunciar a
perversão existente na relação entre a vanguarda e a massa,
não dirimida mesmo com a expansão dessas vanguardas
alimentadas com filhos diletos e capazes da classe
trabalhadora. À exaltação e consolidação ideológica dos heróis
trabalhadores corresponderá firme e castradora repressão
sistemática, permanente, massiva e aleatoriamente distri-
buída à massa dos trabalhadores, de modo a forjar dois
campos sociais aparentemente contraditórios e incomuni-
cáveis, o dos de bem com a ordem e os reprimidos. Falsa
dualidade paralisante. Na ausência de meios públicos livres
para o diálogo entre esses dois campos, forja-se um gueto da
parcela supostamente criminosa. Até que na glasnost a
verdade foi se instalando simultânea à maçã envenenada do
neoliberalismo como sentido da perestroika.
Para que serviram, então, os heróis reverenciados na
ideologia oficial? Eles fizeram a revolução, lutaram e
morreram na Guerra Civil, nas duas Guerras Mundiais, nas
frentes de luta pela industrialização, pela abertura de novas
fronteiras de expansão da nova civilização industrial, incluída
a cósmica, morreram em guerras além-fronteiras para real ou
supostamente apoiar os irmãos heróis de outras pátrias,
pereceram de fome, frio e doenças ao abraçarem a luta sem

74Tal como vemos nas obras de Svetlana Aleseievitch, O fim do homem


soviético e Vozes de Tchernóbil.
164 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

quartel por um futuro mais igualitário para todos em tantas


partes do mundo, estudaram à luz de velas e adormeceram de
cansaço pouco antes de se levantar para um novo dia de
trabalho ou de guerra.
Mas os heróis, na teoria oficial, por mais que ao longo
das décadas se esforçassem e galgassem novos patamares de
prosperidade material de sua sociedade, não estão e jamais
foram habilitados para o exercício da propriedade direta dos
meios de produção ou da democracia direta nos coletivos de
trabalhadores. Supostamente não estariam à altura de tais
funções, havendo tantos intelectuais e trabalhadores de
outras áreas especialmente treinados para exercer funções tão
sensíveis e delicadas, de alta confiança e confidencialidade...

b) Assim foi a história, os heróis são sempre provisórios

Com estas escusas jamais explicitadas, pois talvez


demais escandalosas, bloqueava-se o trânsito ao comunismo,
de modo que os poderes econômico e político sempre
permaneceram em mãos do estado e do partido de vanguarda
da revolução, cuja ideologia justificadora de tal situação,
passou a se chamar marxismo-leninismo.
Nelas os heróis estavam no poder e a sociedade se
abria para um futuro radioso. O fato é que o controle sobre o
capital estacionara nos limites históricos pré-estabelecidos do
controle estatal sobre a reprodução social e muito
especialmente sobre a reprodução econômica, posta a
acumulação de capital a favor do aumento da produtividade e,
consequentemente, do salário mínimo e médio dos
trabalhadores.
Mantida a relação capital como reitora desse processo.
A liberdade das forças produtivas emancipadas elevaria a
produtividade do trabalho? Estou certo que sim, mas este
salto nunca foi tentado. Quando a perestroika trouxe maior
grau de liberdade das forças produtivas, ela não estava
concebida para a emancipação do trabalho. Ao contrário,
Pensando com Marx (I) | 165

expandiu rapidamente o campo da alienação, lançando à


miséria um vasto contingente de proletários e trabalhadores
em geral. Desta forma os heróis foram expulsos do paraíso
socialista e retornaram à ancestral situação de párias.
A liquidação do controle estatal sobre o capital
instalou em seu lugar o controle capitalista sobre essa
relação. A perestroika ansiava pela maior liberdade para o
capital poder elevar sua taxa de exploração, compreendida
esta como ferramenta vital para a acumulação e incremento
da produtividade sem a mediação estatal inibidora dos
apetites animais do capital. O socialismo real revelou-se um
poderoso caldo de cultura capitalista contra suas supostas
veleidades comunistas programáticas.
Embora a luta política em torno da maior efetividade
dos investimentos de capital corresse solta ao longo dos anos
60 em diante do século passado, até a perestroika, estava
vedada como heresia e destinada à repressão sistemática o
debate sobre a transição comunista (KRONROD, 1970;
FEDORENKO, 1976; KOSLOV, 1977).
Debater sobre a necessidade ampliar a produtividade
dos investimentos estava presente na ideologia da economia
política do socialismo real e a crítica materialista a la Marx
dessa ideologia estava, de fato, vedada. De forma que as
portas estiveram sempre abertas à crítica pró-capitalista da
ideologia oficial (sem que isso se apresentasse de modo
explícito); fato conducente ao surgimento de próceres
neoliberais em todos os centros acadêmicos soviéticos, em
especial nos seus polos supostamente mais avançados, como
é ocaso, por exemplo, da Universidade de Moscou e de
Novossibirski.
A operação de transmutação e hipostasia do
materialismo de Marx pela ideologia da economia política do
Socialismo Real instalou a perversão no plano teórico-prático
da revolução. Ora, se essa ideologia é posta como sendo a
única e real ideologia da revolução, continuadora do legado de
Marx e transformada em religião de estado, sua contestação
166 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

desde o campo Marx era, pois, automaticamente uma heresia


contrarrevolucionária. Ela só admitia uma crítica em seus
próprios termos enquanto ideologia do capital, ou seja, uma
crítica pró-capital e, consequentemente, pró-capitalismo. A
perversão está em que o pró-capitalismo está posto como se
fosse pró-socialismo (e em última análise, no sentido pró-
comunista!!!). De forma que os algozes do comunismo surgem
e se firmam na cena histórica como paladinos da liberdade
dos trabalhadores e do povo soviético.
De forma que a liberdade de crítica ao ser posta no
campo da Economia Política do Socialismo veda
automaticamente a Crítica da Economia Política. O Socialismo
Real não ultrapassa este limite ideológico, ou seja, do capital.
Os heróis trabalhadores eram provisórios, assim como
tudo o que fizeram eles durante a revolução. Assim que o
capital passou ao controle pleno da reprodução social, e o fez
com surpreendente rapidez, os heróis foram destronados. Tal
como ocorreu nas sociedades absolutistas, quando o capital
era ao mesmo tempo estimulado e contido nos seus limites
feudais. A perda do controle sobre ele faz desmoronar todo o
seu edifício social absolutista.

c) Reversão burocrática da revolução russa

A reversão burocrática da revolução russa ocorrerá


basicamente por duas razões. Uma e central, a permanência
do capital sob contenção legal estatal. A partir dessa
premissa, a forma estatal de seu controle pode se repetir na
experiência secular russa tzarista.
Outra, o hiato teórico do abandono da teoria da
transição comunista de Marx deixou a revolução russa sem
produção teórica pretérita capaz de influenciar as lutas pelo
comunismo, subsequentes à toma do poder político. Os
últimos escritos de Lenin, muito preocupados com a maré
montante burocrática já não possuía forma teórica capaz de
contê-la e induzi-la a tomar outro caminho. Todo o esforço de
Pensando com Marx (I) | 167

Lenin para operar a transmutação da teoria da transição


comunista de Marx nos marcos daqueles que viriam a ser os
fundamentos do socialismo de estado russo ao modo alemão
já não podia ser desfeito ou teoricamente contestado.
É o capital a força social que mobiliza o passado e o faz
vestir o novo, em nosso caso a revolução pró-comunismo. Não
que o passado não assedie permanentemente o presente, seja
ele qual for, e o faça vestir seus velhos trajes em um ponto ou
outro da reprodução social.
Ao contrário do que supõe e pontifica em surdina a
teoria do socialismo real e seus sábios, o que permite o
assalto do passado ao novo e florescente presente das
revoluções proletárias é a armadura do capital defendida pela
fortaleza estatal governada pelo partido.
Essa armadura a conduzirá inevitavelmente à
contrarrevolução capitalista neoliberal assim que as forças
vitais da revolução proletária fraquejem, espoliadas e
torturadas pelas provações às quais são submetidas em nome
de suas reais e únicas verdades.
Afinal, que raios de socialismo foi esse onde os artistas
não podem usufruir livremente de seus dons criativos, os
trabalhadores não podem decidir livremente sobre o que,
como e para quem produzir, o cidadão comum não pode
usufruir com segurança as leis do código civil? Que
socialismo é esse onde a emancipação não é expressão da vida
social das maiorias trabalhadoras, sendo exclusiva
propriedade dos funcionários de estado e, dentre estes,
somente os mais graduados? Este socialismo seria uma
variante do socialismo de estado alemão, transfigurado no
caldo de cultura da Rússia revolucionária, evoluído até sua
máxima expressão teórica, o socialismo real, o socialismo de
estado soviético, a ditadura do capital sovieticamente
socializado.
O socialismo real é uma fábrica de alienação dos
produtores, da produção e reprodução da vida social. Nele, o
artista não pode ser plenamente artista, o cientista
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plenamente cientista, o cidadão plenamente cidadão, o


proletário, isto é, a força de trabalho plenamente força de
trabalho. A reprodução social está obrigada a seguir a
ditadura ideológica dos funcionários do estado e partido, de
sua práxis.
O socialismo real não é herdeiro do comunismo de
Marx, do sentido revolucionário de sua revolução teórica, da
possibilidade de uma práxis social emancipatória. O projeto
emancipatório concebido por Marx e entrevisto na curta vida
da Comuna de Paris pressupõe certa forma de poder político
de uma determinada classe social, a comandar a produção
material e liberadora da produção intelectual e criadora em
geral, sob a forma de ditadura revolucionária (e até
democrática) dos trabalhadores a exercer diretamente a
propriedade dos meios de produção. Tal como reza o
preâmbulo dos estatutos da AIT de 1871, “a emancipação dos
trabalhadores somente poderá ser obra dos próprios
trabalhadores”.
Decorre daí que a função vital e fundamental do
comunismo de Marx e seu partido seja a luta pela unificação
das forças do trabalho em um movimento para a sua
emancipação. Partidos e sindicatos dos trabalhadores sob a
influência ou direção dos comunistas, para Marx, tem a
missão central, vital, de serem instâncias batalhadoras e
partícipes do movimento de emancipação. A unidade política
dos trabalhadores sob a forma de movimento, a congregar a
sua inevitável, natural e ampla diversidade é o meio
insubstituível para a emancipação destes. Os partidos,
sindicatos e muito menos os estados das revoluções
proletárias estão predestinados a serem as ferramentas
exclusivas e centrais da emancipação dos trabalhadores.
Em grande medida o abandono e esquecimento da
teoria da transição comunista de Marx, como obra dos
próprios trabalhadores, confluem para o fracasso das
revoluções socialistas do século XX. A criação do estado
bizantino-soviético foi a negação da possibilidade da
Pensando com Marx (I) | 169

emancipação dos trabalhadores, emparedados por sua


teocracia leiga (HOBSBAWM, 1986).
Ao que nos parece, a urgência absorveu a crítica e a
necessidade da liberdade (mesmo aquela nos limites do
capital). Às novas forças produtivas se exige alta disciplina,
empenho e subordinação plena à perda de liberdade para o
capital. É o mesmo que dizer serem os trabalhadores livres
para lutar contra todos os seus piores inimigos, morrer nas
guerras, sacrificar-se ao máximo, mas simultaneamente
exigir-se deles serem disciplinados soldados de seu pior
inimigo, o capital, administrado pelo estado, o partido e seus
gerentes tayloristas.
De modo que estes fundamentos da economia política
do socialismo real permanecerão inalterados até o fim da
URSS. A força de trabalho não somente não é livre para
transformar-se em força produtiva do comunismo como
tampouco lhe é permitido enfrentar o capital como o seu
outro.
É evidente não estarmos diante de um lapso, mas de
uma posição. E sempre assim será desde que a Comuna não
fale por si mesma. A Comuna de Paris não realizou as
decisões de alguém. Ela pensou e agiu enquanto repre-
sentante de uma classe, falou por si própria, com voz própria.
Em última instância esta questão será resolvida pela
própria história e, é claro, para além de nossas elocubrações
teóricas. No entanto, desde o campo da confluência da
história com a história das ideias, temos um compromisso
particular com a teoria, desde o materialismo de Marx.
O trabalho teórico a se produzir sobre a emancipação
(e livremente) está balizado por dois movimentos autônomos
interdependentes: o diálogo com a história e outros
pensadores a partir da leitura de Marx (história das durações
médias e longas, para nos apropriarmos de conceitos de
Braudel) – aquilo que Lucien Sève denomina pensar com Marx
– e o diálogo com a história do tempo presente
((NOIRIEL,1998). Práxis que exige, é óbvio, plena liberdade de
170 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

ação à produção teórica. Infelizmente, nenhuma dessas duas


condições foi estimulada pela teoria do socialismo real, com
danos evidentes e irreversíveis para a história mundial da
emancipação dos trabalhadores.
Do ponto de vista da teoria, a experiência do
socialismo real é bastante rica e explícita. A economia política
do socialismo real se reproduziu em todos os países onde
ocorreram revoluções populares e proletárias que se
declararam socialistas, mesmo naqueles que ousaram escapar
às suas determinações (Cuba e Iugoslávia, por exemplo).
E digamos francamente, ao invés de uma transição
comunista – cuja teoria hoje se encontra esquecida, tivemos a
experiência de criação de uma nova sociedade do capital, a
qual, em dado momento, devido à falência das forças do
comunismo de Marx, transitaram, sim, ao capitalismo
propriamente dito.
Assim os super-heróis do socialismo real, os
trabalhadores, serão derrotados e transformados em super-
párias desse novo capitalismo.
O século XX foi, sem dúvida, século da transição ao
socialismo e da transição desse socialismo ao capitalismo com
uma regularidade admirável. Uma transição inimaginável.
Seria mesmo?
Quando cheguei a Moscou em 1969, escandalizei-me
com uma piada que corria na sociedade soviética. Perguntava-
se à Radio Ierevan (capital da Armênia, uma espécie de Itu
soviética, onde tudo é maior, melhor e mais inteligente): “O
que é o socialismo? Resposta: O socialismo é o caminho mais
longo ao capitalismo”.
O povo soviético já havia matado a charada do
socialismo real.
Pensando com Marx (I) | 171

Então, o que é o homem soviético no socialismo real?

Trata-se de um homem para a revolução e não a


revolução para o homem. Ele é “mau trabalhador” que teria
que percorrer a estrada do assalariamento na revolução
socialista após haver passado pelo corretivo do taylorismo. Tal
exigência impõe um sistema de controle de seu desempenho
no incremento e manutenção de sua produtividade, ou seja,
na produção do valor.
Por mais que ele tenha, individual e coletivamente, se
desempenhado à altura das exigências produtivas durante 74
anos de existência da URSS, não se conseguiu realizar como
classe em pleno exercício de sua emancipação política, quanto
mais de sua emancipação econômica.
De fato, não lhe foi permitido alçar-se à plenitude da
emancipação política. Ele serviu à revolução russa e às
revoluções assemelhadas. Ao tentar optar pela transição à
emancipação política, os trabalhadores das outras revoluções
foram universalmente e duramente reprimidos.

A guerra ideológica camuflada e o transito de uma


formação social a outra

Podemos concluir que os trabalhadores soviéticos eram


uma tropa a serviço da revolução russa, de seus objetivos
estratégicos. Como tropa, não lhe era permitido comandar a
transição política, muito menos a sua emancipação
econômica, a transição para além do socialismo real, rumo ao
comunismo. Era serva da revolução e do capital.
A perestroika se propunha emancipar o capital em
troca da glasnost: era a conquista da plena emancipação
política sob o capital pela via da eficiência microeconômica
que inevitavelmente, a seu ver, transformaria a eficiência
social, promovendo uma contrarrevolução neoliberal,
contrarrevolução do capital.
172 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

Chegava, assim, a um término, a longa guerra entre o


partido da eficiência microeconômica contra o partido da
eficiência social, entre o pró-capitalismo e o pró-socialismo,
entre os gerentes e os planejadores, entre as teorias gerenciais
e e a teoria do planejamento socialista. Esta guerra era a
forma teórica histórica do enfrentamento entre a
contrarrevolução capitalista e a revolução russa do socialismo
real. Até que a contrarrevolução capitalista, um após outro,
conquiste os postos chave na hierarquia do estado e do
partido e abrace abertamente o neoliberalismo, de modo a
permitir que a transição capitalista deslanchasse em conluio
direto com e desde o centro do poder do estado e partido, por
sua vez coligado às instâncias norte-americanas, dominantes
do capital. (SIRIN, 2012; RAZZANOV, 2012; BESCHLOSS,
1994)
Diz Menshikov (GALBRAITH, 1988) que o projeto de
Gorbachiov realizaria uma revolução. Afirmação, no mínimo,
problemática, pois o próprio socialismo real, sendo uma
formação específica, ao transitar a uma nova sociedade
socialista (afirmação daquele autor) sob a forma de uma
revolução indicaria de duas, uma: nova forma histórica de
socialismo, uma nova formação socialista radicalmente
distinta do socialismo real, ou um retorno (negado
explicitamente) ao capitalismo.
A primeira hipótese é quase impensável, dado
estarmos diante da transição de uma sociedade sob controle
social estatal do capital a outra, do controle social do capital
sobre a reprodução social. O fato de não haver propriedade
privada individual nessa nova sociedade somente nos diz
sobre o caráter do capital e não sobre a força social regente da
nova sociedade. Esta, então, seria mesmo capitalista, na qual
se ofereceria à classe operária a possibilidade de vir a
alcançar a sua emancipação política através da glasnost.
A revolução concebida por Gorbachiov, no dizer de
Menshikov, não seria outra que não fosse uma contrarre-
Pensando com Marx (I) | 173

volução, uma restauração capitalista, como de fato ocorreu 75.


A noção de socialismo ficara tão elástica que a expansão do
controle do capital sobre a reprodução social proposta por ele
em etapa tão mais avançada da evolução econômica da
sociedade soviética (afinal já estávamos em 1988, há 71 anos
de 1917!), no seu entender poderia evitar o capitalismo.
Destituir o controle do partido comunista e do estado
sobre a economia (e sociedade, é evidente) para se transitar a
tal nova sociedade seria, de fato, uma revolução, que só não
seria capitalista caso se transitasse ao comunismo, ou seja, à
expansão do controle social dos trabalhadores sobre a
reprodução social, fato jamais mencionado por Menshikov em
seu diálogo com Galbraith.
O personagem central dessa transição, contudo,
seriam as “autoridades centrais” emergentes daquela
revolução e a revolução pelo alto dessas novas autoridades, de
fato, por sua vez, ao se apoiar no “mercado”, nas forças
sociais aderentes a esse projeto, só poderiam mesmo
restaurar o capitalismo!76

75 “Elas são chamadas reformas, mas como eu já afirmei, podemos


considerá-las uma revolução. Não são mudanças corriqueiras na
organização econômica da nova sociedade, são, pelo contrário, mudanças
profundas e abrangentes. São equivalentes a uma súbita transformação
revolucionária. Sua principal finalidade é libertar a economia da
opressão e do domínio da burocracia e também eliminar a economia
paralela e os diferentes tipos de corrupção e mercados negros. Assim
sendo elas escancaram as portas à iniciativa pessoal e coletiva,
associando-as às vantagens de um planejamento centralizado”. (41)
76 “O primeiro cenário é baseado no perigo da burocracia sabotar as
atuais reformas anti-burocráticas. Este cenário significaria a
continuação do status quo.” (GALBRAITH, 1988, p. 42). “(...) O segundo
cenário é uma possibilidade completamente diferente: seria um
socialismo mais inteiramente de mercado. O que não significaria o
restabelecimento do sistema capitalista, embora envolvesse uma
participação muito mais ampla da iniciativa privada e do espírito
empreendedor privado. Significaria, primeiramente, deixar a
determinação dos preços inteiramente para o mercado, como você
sugeriu ao discutirmos as reformas econômicas. E significaria também a
introdução de um mercado livre de trabalho. Haveria maior flexibilidade
na determinação dos salários, e o sistema incluiria um mercado flexível
de crédito e de capital. Seria, em suma, um socialismo com a total
174 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

Não havia três alternativas, como queria Menshikov,


mas simplesmente duas, a transição capitalista ou a
comunista. Seria muito pertinente se perguntar ao eminente
economista soviético, aproveitando suas divagações
revolucionárias, sobre as razões pelas quais a transição ao
comunismo deixou de ser um crash program, tão elogiado por
ele e tão exitoso nas conquistas da economia e sociedade
soviéticas77.

O fim da URSS. A operação final

Então uma longa e ardilosa operação política sob o


comando da KGB colocará Gorbachev no centro do poder por
meio da criação deliberada do caos social (RAZZAKOV, 2012).
Desfaz-se, assim, o amplexo dos desesperados, estado, partido
e classe trabalhadora, naufragado no tsunami capitalista. O
trem do socialismo real chegara à sua última estação, bem
distante da estação Finlândia. As três correntes ideológicas do
pós-socialismo real: a da desgraça mítica da mãe Rússia, a
dos filhos da grande pátria de Stalin e a dos órfãos do

ausência de um planejamento central. “ (p. 123-124). “O terceiro cenário


é o que eu poderia chamar de um verdadeiro centralismo democrático.
Isso significaria uma combinação das melhores características do
planejamento central com as melhores e menos nocivas características
do mercado, fazendo o melhor uso de todas elas. ” (126). “Eu gostaria de
resumir e dizer que existem muitos setores da microeconomia em que o
socialismo precisa aprender, e depressa, com o capitalismo – com a
iniciativa privada, com o mercado. Se conseguirmos isso, então,
combinando os aspectos menos nocivos do mercado e da iniciativa
privada com as vantagens, aos níveis social e macroeconômico, inerentes
a um sistema planejado, nós talvez nos saiamos melhor que o
capitalismo. Este é o cenário que eu prefiro para a sociedade socialista”.
(GALBRAITH, 1988, p. 134). “O que eu estou sugerindo que irá acontecer
na União Soviética é que as autoridades econômicas centrais terão a
responsabilidade de organizarem as empresas de modo mais eficiente. (p.
130).
77 “(...) a União Soviética, tecnologicamente atrasada em vários outros

aspectos, foi extremamente avançada tecnologicamente naqueles setores


específicos em que conseguiu se organizar em crash groups e crash
programs.”(GALBRAITH, 1988, p. 133)
Pensando com Marx (I) | 175

comunismo, todas elas representadas por seus heróis


humilhados e ofendidos, iniciam seu grande e imprevisível
trânsito a um novo futuro.

São Paulo, 2017.

Referências

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BRAVERMAN, Harry Trabalho e capital monopolista. A
degradação do trabalho no século XX. Rio de Janeiro, Zahar,
1981.
BESCHLOSS, Michael r. & Strobe Talbott At the Highest
Levels: The Inside Story of the End of the Cold War NY,
Paperback – March 1994

HOBSBAWM, Eric The age of extremes. A history of the world,


1914-1991. New York, Vintage books, 1996.

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Capitalismo, comunismo, coexistência. De um passado
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Tahan Novaes, Rogerio Fernandes Macedo Movimentos
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https://www.marxists.org/history/ussr/sounds/mp3/proleta
riat-01/Nash-paravos.mp3
Pensando com Marx (I) | 177

7 – Revolução tecnológica, crise do capital e


desmoronamento do Socialismo Real

As vicissitudes do projeto comunista e os destinos


inexoráveis da reforma pelo alto na Rússia

1. O projeto Marx - ir além do capital

Para Marx, apesar do capital apresentar uma


fantástica capacidade de multiplicar as forças produtivas
(Manifesto Comunista), a forma histórica em que esse
processo ocorre apresenta insuperáveis contradições.
Impossível resolvê-las nos limites do capital.
Ao invés dele, cego chicote social (Marx, 1970),
destruidor da humanidade enquanto construtor de riquezas,
fazia-se necessário a reconstrução consciente desta através da
associação livre de produtores, proprietários coletivos dos
meios de produção e reprodução material e espiritual da vida
social. O trabalho coletivo associado dos produtores libertos
dos limites da propriedade privada, ao produzir e reproduzir
conscientemente as necessidades propriamente humanas,
reconstruiria o ser genérico através da multiplicação das
forças produtivas para a humanidade. A emancipação do
trabalho necessariamente assumiria um caráter mundial, já
que historicamente o capital se constituíra em relação social
determinante da reprodução social universal. Assim, as lutas
políticas nacionais entre o capital e o trabalho, envolvendo
capitais nacionais e internacionais, necessariamente deveriam
apresentar caráter internacional. Por sua vez, a economia
política do capital pressupunha a ação global deste, a exigir
guerras pela afirmação do seu domínio sobre mercados,
alianças políticas entre nações poderosas contra os
capitalismos tardios, assim como guerra também entre estas e
de todos contra a luta dos proletários por sua emancipação. A
assimetria do desenvolvimento capitalista, obviamente, não
poderia deixar de também estender-se à reprodução política
178 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

das sociedades capitalistas. Os polos mais desenvolvidos do


capital apresentariam os estágios mais avançados das lutas
de classes, exemplares para a luta proletária mundial. Foi
assim que a industrialização, ocorrida naturalmente nos
países da vanguarda capitalista, tornar-se-ia objeto central
das lutas sociais, projeto nacional nos capitalismos tardios e
por via colonial. Isto acarretaria, nesses países, uma perversa
simultaneidade de empreendimentos políticos contraditórios
no trajeto da luta pela emancipação do trabalho, cujo
momento central estaria expresso na disputa entre
burguesias nativas e seus aliados internacionais e o
proletariado na condução dessas tarefas nacionais. O advento
do imperialismo colocaria um fim no processo de
pauperização absoluta do trabalho nos países capitalistas,
característico da primeira fase da Revolução Industrial, onde o
capital financeiro ia se afirmando, simultâneo ao surgimento
dos grandes partidos proletários de massa, assentados sobre
os fortes sindicatos operários do núcleo industrial
metalomecânico e, logo após, eletromecânico. A luta política,
nos territórios dessa nova classe operária iria, então, assumir
um irresistível caráter trabalhista nos marcos do capital.
Assim, o anticapitalismo militante veria esmaecer, devido a
determinações imanentes a essas sociedades, os seus vínculos
ideológicos com as vertentes teóricas anticapital, antes de
tudo com o comunismo crítico e emancipacionista de Marx e
Engels, o qual, aliás, nunca foi muito forte no movimento
operário e nos partidos socialistas. Em decisivo sentido, o
cisma comunista nutre-se dessa ruptura qualitativa nos
processos de expansão do capital sob a assimetria fundante.
O deslocamento do eixo da militância revolucionária para o
campo dos capitalismos tardios ex-coloniais, característico de
todo o século XX também adviria desse processo de
diferenciação expandida dos universos conflagrados da
civilização capitalista em sua nova etapa. A primeira etapa da
experiência de construção de sociedades socialistas ocorreria,
portanto, sob a égide dessa contraditoriedade acrescida entre
Pensando com Marx (I) | 179

as sociedades do capital, cuja evolução história as dotara de


particularidades insuperáveis. Isso foi determinante para o
aprofundamento da diáspora política destas e do acertamento
teórico e posteriormente prático entre os países pós-
capitalistas e os propriamente capitalistas.

2. Século XX - a primeira etapa da experiência


socialista

A reprodução do capital no século XX se apresentaria


de forma bastante diferenciada. Nos países capitalistas
imperialistas, apesar e devido às duas guerras mundiais, o
núcleo operário metalúrgico e eletromecânico, vanguarda do
proletariado, continuaria e obteria, através de suas lutas
políticas e principalmente sindicais, melhoras crescentes nos
padrões de reprodução de sua força de trabalho, capazes de
estender-se a outros contingentes proletários. Rotos os limites
da pauperização absoluta, a pauperização relativa faria surgir
uma nova civilização capitalista, incorporando o núcleo
operário qualificado do coração industrial ao consumo pessoal
expandido, à assim chamada produção de massa.
Mercadorias determinantes desse coração industrial seriam
definitivamente incorporadas ao consumo operário,
solidarizando-o naturalmente e por longo prazo com os
destinos do capital e do capitalismo sob essa sua forma
regionalmente mais benigna. Ao longo do século, a
relativamente rápida expansão dessa particular civilização,
antes de tudo, no pós II Guerra Mundial, criou um poderoso
corpo social pró-capital, afastando ainda mais o movimento
operário organizado das vertentes críticas e emancipadoras do
socialismo, dentro e fora do cisma da II Internacional. Mas,
onde elas estavam? Sufocadas pelo stalinismo!
No assim chamado “campo socialista”, devido à
particular condição ex-colonial ou tardia das sociedades
capitalistas de onde vieram à luz, medrou e passou a imperar
uma certa teoria socialista, genericamente chamada de
180 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

stalinismo, a qual, se bem consegue gerar sociedades não


capitalistas, mostra-se impotente para conceber, nacional e
internacionalmente, o seu trânsito decidido para além do
capital. O fantástico esforço da industrialização centrado
sobre métodos extra econômicos de extração de trabalho
excedente é então paulatina e decididamente conduzido à
disciplina estatal da produção de mercadorias para o
mercado, nos marcos do capital. Revela-se, assim, em sua
plenitude, a falácia dos postulados da economia política do
“socialismo real”, a confundir a estatização dos meios de
produção com a liquidação do capital. A experiência de
construção de sociedades socialistas, ainda que estas não-
propriamente sejam tais é, contudo, farol para as sociedades
coloniais e ex-coloniais. Demonstra a estas a possibilidade de
associar-se a acumulação ampliada do capital com a ausência
de pauperização absoluta através da conquista de níveis
crescentes de bem-estar social, soberania econômica, política,
cultural e científico-tecnológica. No entanto, sob o crivo do
comunismo crítico de Marx, não se mostra à altura de
conceber o trajeto para além do capital porque não se põe
radicalmente a tarefa da emancipação do trabalho. Teórica e
praticamente o stalinismo é antiemancipacionista, anti-Marx,
portanto, uma variante específica e inesperada do socialismo
burguês, tal como está descrito no Manifesto. Na maioria dos
países coloniais e ex-coloniais, entretanto, vige a pauperização
absoluta sob a industrialização capitalista. Destacam-se,
contudo, desse conjunto, alguns países que buscam combinar
construção capitalista, democracia política e melhoria
sistemática das condições de vida dos proletários, aliados ao
objetivo explícito de conquista de margens crescentes de
soberania política e econômica. Entretanto, as décadas de
lutas dos comunistas, socialistas, democratas e nacionalistas,
ou seja, da centro-esquerda republicana desses países, antes
de tudo na América Latina, muito embora tenham, em certos
e poucos casos conseguido construir parques industriais
poderosos, estes, sob o impacto da internacionalização e
Pensando com Marx (I) | 181

multinacionalização dos capitais, na maioria dos casos


regrediram ou colocaram-se sob a hegemonia dos capitais
forâneos [os casos exemplares do Brasil e Argentina,
respectivamente]. A democracia política ou a justiça social
nunca pertenceram ao catecismo das classes dominantes
locais, no que foram sistemática e permanentemente ajudadas
pelas potencias imperialistas coligadas. As experiências de
construção de capitalismos nas zonas coloniais e ex-coloniais
foram, de fato, manifestação de antidemocracia, violência
antipopular sistemática, aberta e não poucas vezes bárbara,
capitalismos subordinados e assimetrias socioeconômicas
escandalosas. Reprodução social que esteve, durante todo o
século vinte e principalmente depois da segunda guerra, sob a
bandeira do anticomunismo da Guerra Fria.
A experiência quase secular dos sucessivos intentos de
construção de capitalismos social e democraticamente
populares, ainda mais quando se concebiam etapa transitiva
para o socialismo (em sua versão stalinista ou derivada),
política e economicamente autônomos resultou em um grande
fracasso (o caso do Brasil). Duplo, pois simultânea à evidente
desnecessidade histórica, para o capital, dessas sociedades - a
congregar contra si um vasto e majoritário espectro de forças
burguesas nacionais e internacionais - não conseguiu
claramente ser formulada e conquistar sua hegemonia uma
via socialista alternativa a esses capitalismos. A maioria dos
governos populares foi derrubada por golpes de Estado mais
ou menos sangrentos, seguidos de ditaduras do mesmo
calibre e o único intento de transição socialista por dentro da
ordem foi palco de uma carnificina burguesa ao ancestral
estilo colonial.
Na América Latina, a transição socialista por fora e
contra a ordem foi unicamente vitoriosa em Cuba, onde, na
base de fortíssimas tradições anti-imperialistas, a derrubada
de um ditador sanguinário fez naturalmente o projeto
democrático-popular deslizar para o regaço anticapitalista e,
posteriormente, do socialismo real.
182 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

No entanto, diferentemente de suas congêneres


europeias e asiáticas, a revolução cubana não foi empolgada
por sua ala direita. O núcleo intelectual e militar daquela
permaneceu quase intacto (a defecção do Che foi séria, porém
qualitativamente distinta do cisma russo) explicar, em
algumas linhas, tão contraditória afirmação], razão pela qual,
paradoxalmente, os ideais emancipadores e o culto do homem
novo conseguem, apesar do fardo da sovietização, permanecer
vivos. O caso Che indica o limite das tensões à crítica do
modelo stalinista e a impossibilidade de supera-lo, naquele
momento. O ersatz estalinista ou a versão específica do
marxismo-leninismo, em Cuba, não é orgânico ao processo da
revolução nacional e o anti-imperialismo, ao permanecer em
solo histórico insubstituível, baliza retrocessos possíveis. Se o
fracasso socialista da revolução cubana é da mesma ordem
que o dos demais socialismos reais, ele é de norma e grau
diferentes. O avanço do capital como horizonte de nova
regência social, consubstanciado na série de medidas
econômicas implementadas pelo governo cubano para
enfrentar a crise econômica mundial e os novos dilemas da
inserção internacional da economia cubana, dá lugar a
processos sociais que atenuam a transição capitalista,
oferecendo-lhe conteúdos populares e socialistas. Ali, a
regressão capitalista não se abre naturalmente à barbárie
universal do capital, como foi visto e permanece nas
regressões europeias e asiáticas, sendo até possível que
elementos importantes do pós capitalismo possam
permanecer vigentes. Resta saber, a esta altura, se as forças
do socialismo original ainda não foram liquidadas pela
burocracia; é sabido que importantes intelectuais foram
constrangidos ao silêncio, obrigados até a semiexílios por
discordar dos atuais rumos da abertura ao capital; as
reiteradas declarações de Fidel no sentido da manutenção das
conquistas da revolução.
Pensando com Marx (I) | 183

O socialismo cubano, apesar de haver sucumbido aos


padrões estatais de extração do trabalho excedente e de tentar
organizar-se em torno do reforço das categorias do capital,
deixou espaços à auto-organização dos trabalhadores e,
através de uma busca permanente pela igualdade, conseguiu
realizar dois saltos civilizatórios essenciais: aliar a liquidação
das mazelas coloniais e capitalistas a transformações
qualitativas direcionadas à aquisição das capacidades
produtivas e científico-tecnológicas derivadas da revolução
industrial em curso. (Os “parlamentos obreiros”; os avanços
em biotecnologia e computação, mais alta escolarização). A
industrialização cubana não infligiu aos proletários a
pauperização geral, embora a multiplicação das forças
produtivas não haja sido suficiente para elevar
substantivamente os padrões do consumo pessoal, mantido
nos patamares de uma economia de guerra.
Desse modo, a experiência do pós capitalismo cubano,
no âmbito latino-americano e mundial alcançou êxitos
notáveis, tanto em sua ascensão quanto em sua regressão,
para não falar sobre sua atuação internacionalista,
evidentemente decisiva no processo de libertação colonial de
Angola. A auto exaltação juvenil de seus feitos e a fixação de
suas lideranças em sua experiência como caminho
revolucionário único não acelerou a revolução latino-
americana, mas pôs em movimento novas massas de
revolucionários, acelerando a recomposição das forças
políticas em âmbito continental e aguçando o medo das
oligarquias aos projetos social democráticos e socialistas
democráticos da centro-esquerda republicana da América
Latina. Seja devido aos equívocos próprios (o caso da
agricultura) ou induzidos (a adoção do “modelo” soviético),
seja pelos impedimentos naturais (extremo atraso de seus
primórdios, carência de fontes de energia, por exemplo), ou
políticos (derivados do bloqueio norte-americano e,
posteriormente, ao seu abandono pela URSS da perestroika) a
economia cubana não alcançou sua autodeterminação, muito
184 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

embora sua subordinação ao mercado internacional tenha


caráter distinto daquela dos capitalismos subdesenvolvidos do
Caribe ou mesmo das mais avançadas potências do
capitalismo subordinado.

3. A etapa atual da mundialização: o socialismo sob a


descivilização capitalista

a. A nova revolução industrial e suas consequências

Nos anos setenta deste século, o amadurecimento das


contradições do capital em todos os quadrantes do planeta
consolidou o retrocesso teórico e prático do socialismo,
aproximando, simultaneamente, o stalinismo (com suas
variantes) e várias correntes que expressaram a sua crítica
dentro do movimento comunista, à social- democracia e,
posteriormente, sob o empuxe do mesmo processo, alguns de
seus mais antigos ramos ao liberalismo (e, em certos casos, ao
neoliberalismo, como vemos em Agambeguian, na Rússia, ao
fundamentar o liberalismo do projeto político de Gorbatchev).
Ou seja, a crisálida socialista burguesa do stalinismo e seus
derivados, desabrocha em sua plenitude à medida que a
Guerra-Fria impõe-se e é aceita pelos soviéticos como
concorrência nos marcos da eficácia capitalista. A elevação da
“competição entre dois sistemas”, ao denominador comum das
categorias do capital, reforçará de tal modo a alienação do
trabalho que o socialismo real soviético transitará
pacificamente ao reinado inconteste do capital. O desenrolar
da revolução nas forças produtivas comporá o quadro decisivo
para essa regressão acelerada. A cesta básica de mercadorias
importadas, necessária para manter a loucura da paridade do
poder bélico, assim como a escala dos investimentos e suas
propagações produtivas, exigidos para tal, curto circuitam a
sociedade pós capitalista soviética. Além de serem expressão
da perda da autonomia científico-tecnológica dessa economia,
fundamento da possibilidade de continuação da estratégia de
Pensando com Marx (I) | 185

alcance do socialismo real, pressionam de tal modo a balança


de pagamentos e o orçamento público que inviabilizam a
ambos. Nos estreitos marcos da economia política deste
socialismo vulgar, a saída para a crise do capital não estava
concebida para adotar um caráter socialista. Ao contrário, a
manutenção do trabalho abstrato exigiria, então, cada vez
com mais força, a alienação universal dos proletários e a
reconstituição da sociedade de classes característica de seu
reinado absoluto. Em outras palavras, a crise do capital
imporá, desta vez, não a volta ao comunismo de guerra ou
mesmo à NEP, mas, sim, a extensão plena de seu controle
sobre o metabolismo social, radicalmente contrário à
emancipação do trabalho (nos primeiros momentos da
perestroika, pensou-se até estar diante de uma nova NEP!)
(Mészáros, 1995). Contrariamente ao que vem ocorrendo em
Cuba, a URSS liquida parte substantiva dos pressupostos e
resultados do seu segundo salto civilizatório (o
desmantelamento de seu complexo educacional-científico-
tecnológico-empresarial) e a consequente paralização das
pesquisas, fechamento de Institutos, fuga de cérebros,
pulverização de equipes (vide Castel; Chossudovsky, 1998).
Entroniza o deus capital e reestende a pauperização do
trabalho em direção à velha Rússia, ressurgida das cinzas em
pleno viço de suas seculares mazelas.
A nova revolução industrial, tem, na Segunda Guerra
um seu acelerador e dará à luz, entre os anos 70 e 80, um
novo capital, de base microeletrônica, imediatamente
universal, posto sobre suas próprias pernas, realizador da
plena subsunção do trabalho ao capital exatamente no núcleo
essencial de sua sociabilidade, da reprodução capitalista
tradicional, ou seja, a indústria metalúrgica e eletromecânica.
Concomitante a estas estratégias de escape mundial ao
controle social sobre si, o novo grau de poder e liberdade do
capital financeiro- fora do controle dos estados nacionais e
seus bancos centrais -, e as novas condições histórico-
políticas derivadas da regressão socialista, a fazer pender para
186 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

o lado do capital a correlação das forças mundiais,


concorrerão para a aceleração do processo de
desmantelamento das cidadelas proletárias em todo o orbe.
Pela primeira vez na história, a expansão capitalista em seus
núcleos nacionais dinâmicos decisivos, pode prescindir da
expansão absoluta de seu proletariado, pois já não mais há,
para o capital, limites técnicos para a expulsão do trabalho
vivo dos processos produtivos diretos. A consequente
expansão ampliada do exército industrial de reserva jogará o
seu novo proletariado, em escala mundial, às agruras de
todas as formas do trabalho precário, à tirania desmedida do
capital sem controle (e consequente proteção) social. A nova
civilização do capital, sob a ruptura histórica em processo,
desenvolve-se, portanto, através da descivilização capitalista.
O novo estágio superior do capitalismo reencontra a barbárie
como forma natural de sua gestação, como regressão histórica
propriamente capitalista, universal, global, não mais meras
irrupções nacionais (notar a diferença entre a descivilização
no desmoronamento feudal e esta, do próprio capital.
Portanto, uma nova barbárie). O próprio capital destrói a
civilização do capital, tão aparentemente estável e civilizada
nas suas vitrines primeiro mundistas.
É assim que nos países imperialistas o próprio capital
se encarregará de liquidar as formas históricas daquilo que a
esquerda e centro-esquerda pró-capitalistas, incluídas a
socialista e comunista, sonharam um dia serem eternas: o
pleno emprego, o bem estar social, a homogeneização do leque
salarial e das oportunidades, a justa distribuição da renda, o
planejamento e a centralidade do complexo bélico como motor
do equilíbrio da demanda efetiva. A decadência derivada da
ruptura ocorrida no setor eletromecânico, exigirá novos
partidos do capital. Antes de tudo aqueles que desejam dar
cara humana ã civilização capitalista, como é o caso do
trabalhismo inglês e da Social Democracia europeia:
Pensando com Marx (I) | 187

Folha: O senhor foi uma figura importante no trabalho de


reformulação do Partido Trabalhista. Como foi esse processo
e quais as principais dificuldades?
Mandelson- Se nós quiséssemos ser eleitos, precisávamos
repensar completamente nossas políticas, organização e até
nossa constituição como partido. Tínhamos que nos
modernizar, nos fazer relevantes para o país de novo, criar
uma coalizão de apoio ampla.
A resistência a essa modernização veio primeiro de gente de
dentro de nosso próprio partido, que preferia se ater às
velhas maneiras de fazer as coisas, às velhas ideias.
Depois, é claro, nós tivemos a intervenção pouco útil de
nossos oponentes e também de parte da mídia. Mas nós
vencemos os obstáculos e as resistências que foram
colocadas no nosso caminho.
Folha- Nesse processo, o partido não se afastou dos
sindicatos, seu eleitorado tradicional?
Mandelson- Eu acho que sim. Nós não cortamos os nossos
laços com os sindicatos, mas estamos menos dependentes
deles.78

Essa ideologizada espiral histórica virtuosa infletirá


sua trajetória real sob a sede de lucros do capital detentor,
agora, de condições para saciá-la à farta, sem maiores
considerações estratégicas, sem os ancestrais temores,
daqueles tempos quando o DI (setor industrial produtor de
máquinas que produzem máquinas) só podia expandir-se por
cissiparidade, por meioses sucessivas, ampliadamente,
complicando ao extremo o complexo de morbidez do capital. A
crise do capital esvaziará ainda mais a civilização deste,
desumanizando-a ainda mais, mais uma vez dessangrando-a
nessa Terceira Guerra mundial (ou Quarta, se contarmos a
Terceira como sendo a Guerra Fria) à quente.

78 Folha de São Paulo, 19 de julho de 1998, página 1-17, “Para Peter


Mandelson, governo deve equilibrar esforço administrativo com a
divulgação de suas realizações. Conselheiro de Blair visita FHC amanhã”.
188 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

A facilidade com que se destrói o núcleo sócio-econômico-


político e ideológico, ou seja, o complexo de complexos
essenciais da sociabilidade da civilização capitalista do século
XX, demonstra o pertencimento vital a ele do socialismo
vulgar. Este, ao não se vertebrar e nutrir da matriz anti-
capital, marcha encandeado ao girar do ponteiro da bússola
antissocialista, no rumo das formas de realização do trabalho
abstrato, sob a autojustificativa de busca de realismo e
eficácia (note-se que a forma social da eficácia exige sua forma
ideal adequada).
No terreno da luta pró-capitalista, a fortaleza dos
capitais nacionais e internacionais coligados supera em muito
a capacidade de resistência pró-capitalista ou anticapitalista
(mas pró-capital) do trabalhismo e socialismo do complexo
central. Quando a resistência destas forças é muita, usa-se,
de forma legal, a ditadura política do capital. Ou seja, cria-se
uma nova legalidade capitalista, a qual em várias gradações
possíveis, estabelece a ditadura legal dos capitais mais
poderosos. As ditaduras dos anos sessenta e setenta, por
todos os rincões nacionais dos capitais subalternos,
preparava o terreno às políticas econômicas neoliberais.
Expressaram, de início, readequações exigidas pelos capitais
imperialistas. Assim, na América Latina, foram liquidadas as
forças políticas da centro-esquerda republicana, impedidas,
então, de realimentarem seus laços com o movimento real.
Daí que a segunda fase desse processo, restabelecidas as
liberdades democráticas, haja propiciado um quase universal
passeio neoliberal pelo mundo do capital. O novo
dessangramento capitalista, operado pelo capital, é, portanto,
antissocialista não somente no sentido ideológico ou político.
Expressa igualmente a liquidação das forças de resistência do
trabalho (mas também do capital não hegemônico), já
bastante desmoralizadas com a reviravolta capitalista do
socialismo real: sua fragmentação, dispersão, repressão e
transformação, em decisiva medida, em exército industrial de
Pensando com Marx (I) | 189

reserva, obrigado, para sua sobrevivência e de sua prole, a


sujeitar-se às múltiplas variantes do trabalho precário.
No Brasil, o relançamento da luta de classes, ao final
dos anos setenta, é exemplar. Aqui, o dessangramento
implicará, em decisiva medida, o abandono do socialismo,
mesmo aquele do anticapitalismo pró-capital. Predomina, no
movimento operário, sindical e político e em todo a centro
esquerda republicana, um projeto anticapitalista contra o
capitalismo neoliberal, que será pró-capitalismo justo e social,
ou social-democrático, como querem seus expoentes.

b. A simultaneidade perversa: a revoada para o


acasalamento e a temporada de caça

A fragilidade anticapital do movimento socialista do


século XX e o dócil naufrágio do socialismo real são mais do
que evidência do seu pertencimento a uma certa ordem de
coisas social, àquela ordem que fenece. A concomitância
desses processos não é casual. Ambos são solidários porque
subsumidos à mesma ordem, a ordem das determinações do
capital. Pertencessem à anti-ordem e não soçobrariam
casados, pois aquela só poderia ser anticapital. Daí podermos
afirmar que o complexo societário do capital financeiro, tal
qual este ocorreu em sua primeira fase, permitiu que as
correntes socialistas consciente ou inconscientemente anti-
Marx predominassem, se impusessem àquelas mais direta e
explicitamente vinculadas à emancipação do trabalho. Isso
ocorrerá apesar do incremento do prestígio do Manifesto
Comunista, como salienta Engels nos vários prefácios às
sucessivas edições deste. Em decisiva medida tal fato deve-se
à forma histórica de produção e reprodução do complexo
societário do imperialismo, sob um DI (departamento produtor
de bens de produção) no qual o trabalho, todavia, não se
encontrava realmente subsumido ao capital. O partido-Marx
não conseguiu vicejar nos países imperialistas ou
subdesenvolvidos ou do socialismo real. As correntes da anti-
190 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

ordem foram, em sua maioria, combatidas, perseguidas e


reprimidas, neutralizadas, pulverizadas, sistemática e
cronicamente trituradas, deglutidas e expelidas pelos partidos
da ordem do capital. O partido Marx, o partido Lenin, o
partido Rosa Luxemburgo, o partido Lukács, para citar
somente alguns, podem servir de exemplos. Em certo sentido,
também o partido Ho Chi Minh, o partido Gramsci e outros. O
partido-Marx, como se sabe, foi censurado e liquidado, teórica
e praticamente, em vida deste, pelo partido socialdemocrata
alemão. Este processo é deveras contraditório, já que sempre
houve e permanece havendo bolsões de correntes
emancipacionistas em todos esses processos de vitória das
correntes realistas, oficialistas, pragmáticas.
Em medida decisiva a vida colocou em linha de
confronto os sentidos históricos por um lado, dos processos
de afirmação da revolução russa, e por outro, dos partidos
comunistas e social- democratas dos países imperialistas, dos
partidos comunistas e do anarquismo no orbe tardio e ex-
colonial do capitalismo. No caso brasileiro (e de muitos
outros), o longo processo da luta interna conducente à
liquidação do núcleo da esquerda bolchevique pela ala direita
da revolução russa ocorrerá simultânea à transição de
parcelas revolucionárias do anarquismo em direção a Marx,
sob o influxo decisivo da revolução russa. O caminho ao
marxismo dos revolucionários dos capitalismos tardios e ex-
coloniais se chocava, em decisiva e insuperável medida, com a
institucionalização, pelo PC Russo e posteriormente, pela IC,
de um seu extrato ralo e negador da essência da revolução
teórica de Marx. As consequências teóricas e políticas dessa
sincronia substantivamente assincronica conformará, assim,
uma simultaneidade perversa, um curto-circuito cronificado,
desvitalizador da práxis do movimento revolucionário desses
países. A permanência do impasse essencial entre a aspiração
pela apreensão teórica a la Marx e a universalização de um
para-marxismo, de modo geral resolver-se-á pela criação de
um denominador ideológico comum, hegemonizado pelas
Pensando com Marx (I) | 191

emanações oficiais soviéticas, apropriado pelas burocracias


partidárias, instrumento central de seu poder. Estas, ao se
legitimarem fora e independentemente do núcleo da teoria
original, consequentemente legitimam movimentos
paradoxais, ziguezagueantes e de vária gradação à direita e
esquerda.
O sentido histórico do movimento socialista, ao longo
da afirmação do complexo societário característico da primeira
fase histórica do capital financeiro será o da predominância
da complementaridade solidaria entre sindicato e partido
sobre todas as demais formas anteriores do movimento. Dessa
forma, o partido, concebido por Marx como sendo instrumento
da e para a emancipação do trabalho, adquire forma
compatível com a inobservância do caráter essencial da
centralidade da emancipação. A descentralidade da
emancipação, por sua vez, implica redução do projeto
socialista ao seu cosmos específico, à sua particularidade
nacional. Este, desse modo, se acredita e se faz passar por
universal, ao contrário do seu real sentido defensivo,
particular, específico, como alertava Lenin. Esse o sentido do
desfecho das lutas internas no partido dos bolcheviques, a
culminar com a vitória da sua ala direita. As determinações
da reprodução política particular sob as profundas
assimetrias socioeconômicas da Rússia, colocam o Estado
hiper-forte no centro das possibilidades de avanço socialista.
Mas um Estado não subordinado aos desígnios dos
trabalhadores livremente cooperados. O que passa a vigir, de
fato, é exatamente o inverso daquilo que Marx queria por
emancipação. O controle social sobre o capital se realiza
simultaneamente como controle estatal sobre a sociedade,
sobre os trabalhadores, subordinados ao Estado e ao partido
que o controla. Nada há aqui que esteja concebido ou se abra
naturalmente à emancipação do trabalho. A relativa
autonomia frente ao capital que os trabalhadores tem, a nível
das empresas (não em todas e nem em todos os setores, pois o
trabalho compulsório ainda permanece), não se realiza na
192 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

plenitude de suas possibilidades culturais, políticas ou


mesmo econômicas (o tão desejado e que afirmam não
alcançado, incremento da produtividade do trabalho, sonhado
realizar-se agora e até que enfim por via capitalista, na
realidade expressa as contradições dessa incompletude, dessa
impossibilidade socialista) (Agambeguian, 1992). É assim que
esse anticapitalismo socialista engastalha na irrealização da
livre associação dos trabalhadores cooperados, nos limites de
uma estatalidade para o trabalho abstrato, para a produção
de mercadorias. Esse socialismo antiemancipacionista impede
a liquidação do capital, embora não permita que ele determine
outros complexos da reprodução social. Daí poder-se afirmar
estarmos diante de sociedades não capitalistas, mas
tampouco socialistas (no sentido de Marx), ou então,
afirmativamente, pós-capitalistas. Essa esquizofrenia
socialista implodirá sob os resultados da revolução
tecnológica em curso, fazendo o capital escapar do endocarpo
estatal. Esta a função histórica da perestroika. A autonegação
do socialismo real, como não poderia deixar de ocorrer,
funcionou como verdade revelada para seus seguidores. Os
reitores da ordem pós capitalista, até ontem socialistas reais,
passaram, naturalmente, a ser reais pró-capitalistas.
É expressivo o caso do PC da Federação Russa, cujo
líder atual, Guennadyi Zyuganov, apresenta um diapasão
ideológico que vai dos Protocolos dos Sábios de Sião slavófilo
até os princípios de uma certa “crônica geopolítica da
civilização russa”, que passa por uma recuperação da
categoria “ civilização” como motor da história em Danilievsky,
Spengler, Toymbee e Huntington, muito mais interessado em
salientar “os interesses vitais da Rússia”, assim como “a
incompatibilidade essencial da atividade burguesa ocidental
com a civilização russa” [(in “A façanha da Rússia-crônica
geopolítica da Rússia”, op. cit. p.61; vide também “Opção”,
p.83 e 84 )] do que qualquer projeto de emancipação do
capital a nível mundial. Sobre este, não consegue ir muito
além da crítica do socialismo real em termos da contradição,
Pensando com Marx (I) | 193

nele insuperada, entre a centralização da produção e


planejamento estatais e a ulterior necessidade de socialização
da base material e moral ( vide “Opção”, p. 76):

A vitória do povo soviético sobre o fascismo e a reconstrução


bem-sucedida no pós-guerra descortinaram a oportunidade
histórica de um caminho extraordinário. Porém o caráter
obrigatório desse passo exigiu uma centralização
extremamente rígida da planificação e da regulamentação
estatal, que envolvia todos os campos de atividade. Apesar
das advertências diretas dos fundadores do marxismo-
leninismo, essa centralização foi levada indevidamente a um
grau absoluto. Isso ocasionou o bloqueio cada vez maior da
base material e moral essencial do socialismo: energia social,
iniciativa dos trabalhadores, organização livre e ativa do
povo, p. 76).

São Paulo, 1988.


194 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O
Pensando com Marx (I) | 195

8 - Sobre as revoluções burguesas:


fundamentos da sua dinâmica e limites
contemporâneos do capital

Síntese

As revoluções burguesas, de modo geral, são


conservadoras ou radicais e evoluem com maior ou menor
celeridade, radicalidade e conservantismo. Sua evolução tem
significado vital para entender o sistema mundial do capital e
os papéis nacionais da vasta constelação de países regidos por
ele. Vital também para as forças empenhadas em sua
conservação ou superação, dado o centro dinâmico desse
sistema permanecer sendo o conjunto dos países do núcleo
radical central, alargado ao longo dos últimos dois séculos.
Esse núcleo permanece ditando a dinâmica social, econômica,
política e cultural do mundo capitalista. Ele é o centro,
igualmente, da contrarrevolução mundial e da fixação
subordinada, por todos os meios, da constelação de países e
povos, à trama alienante dos insuperáveis, sob o capital,
obstáculos impostos pelas suas revoluções burguesas
conservadoras. A dialética de sua evolução, portanto, nos faz
vislumbrar o estágio por ela alcançado e, consequentemente,
nos permite caracterizá-lo. Por isso, dizemos estar na era da
catástrofe geral e do declínio final do capital, a partir do
surgimento do quarto órgão da máquina, o órgão de controle,
propiciado pela revolução microeletrônica e que, por sua vez,
faz emergir o novo capital produtivo microeletrônico, parte
dinâmica do novo capital financeiro. Tal fato nos reforça a
convicção da necessidade de criarmos, a nível nacional e
mundial, um vasto movimento de emancipação dos
trabalhadores, da esmagadora maioria da humanidade,
prisioneira da destrutividade acelerada desse novo capital
sobre todo o universo das relações humanas.
196 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

A emergência do novo capital subverte radicalmente a


frágil paz republicana de classes que se estendeu, no mundo
capitalista, do pós II Guerra até 1973, ocasião em que se
transita a uma nova era. Esta é oficialmente proclamada pelos
altos escalões intelectuais dos cientistas e ideólogos
consultores do Departamento de Estado dos EUA como a nova
era do fim do emprego. Uma verdadeira catástrofe, uma real
inversão de uma tendência histórica. Subvertida a reprodução
social historicamente forjada desde a Revolução Industrial,
todas as relações sociais mundiais se verão igualmente fora de
seu figurino. A roda da história ao ser assim forçada a girar ao
contrário, retrocede no caminho que expandia a emancipação,
vai quebrando sua construção, desconjuntando o mundo até
então conhecido. Trata-se de uma cruel reversão de
expectativas, liquidação de futuros sonhados, dos projetos de
paz, da universalização das soberanias nacionais e das
industrializações com democracia e emancipação econômica
e, por suposto, da emancipação dos trabalhadores.
Retornava-se cada vez mais ao território original dos desígnios
unilaterais do capital, ao seu apetite avassalador, agora sem
mais a concorrência de potências pós-capitalistas, classes
trabalhadoras comunistas, da nobreza e do clero. O capital é o
rei absoluto do mundo. À breve primeira fase da era das
catástrofes, intermediada pelo hiato dos „trinta gloriosos‟ anos
do pós II Guerra, seguir-se-ia a nova era das catástrofes
generalizadas, da reconstrução da reprodução social mundial
no figurino exclusivo do capital financeiro, agora
revolucionado pelo novo capital industrial de base
microeletrônica, que rompe definitivamente as barreiras
técnicas que impediram a universalização dos sistemas de
máquinas, iniciado com o sistema têxtil e que daria início à
revolução industrial. A catástrofe ambiental tem, ali,
importância vital. Sem proceder à sua crítica será impossível
transformá-la.
Pensando com Marx (I) | 197

Introdução

Em outros textos desenvolvemos boa parte da temática


das revoluções burguesas conservadoras. Neste, tentaremos
ultimá-la e desenvolver aquela relativa às revoluções
burguesas radicais.
Antes de tudo, cumpre dizer estarmos diante do
surgimento de uma nova história, verdadeiramente mundial.
Todos os poros do planeta se verão interligados.
Falamos da longa duração da revolução burguesa
conservadora espanhola e portuguesa, do momento fundante
da criação do mundo colonial, primeiro espaço mundial da
plena liberdade do capital, centro plurissecular do complexo
da acumulação primitiva do capital. Afirmamos a
impossibilidade, a irrepetibilidade das revoluções radicais
burguesas no Novo Mundo, onde as classes proprietárias
estão radicalmente empenhadas na luta contra a plena
independência econômica dos povos e nações que ali se
constituíram. Esse impatriotismo radical das classes coloniais
e suas derivações burguesas neocoloniais mais modernas,
incluídas as burguesias industriais do século XX, confere à
transformação social dessas nações um caráter particular.
A plena realização republicana e democrática das
classes proletárias exigirá, nesses países, o comando politico
exercido por essas classes, o que imprimirá à transformação
social um caráter anticapitalista, no sentido de negação do
capitalismo associado e subordinado vigente. Isso empurrará
inevitavelmente essa transformação no sentido do controle
não capitalista do capital, ou seja, no sentido do alto controle
social do capital pelos trabalhadores, cujo processo seria, de
modo imanente, a transição comunista, tal como a concebia
Marx. Esta teve, porém, por várias razões, esquecido o seu
significado, e tomará o nome de socialismo, a ela conferido
como sendo forma estatal estável sob o reino da mercadoria (e
do capital, portanto) e se encalacrará nessa transição de modo
a sucumbir ao capitalismo a dada altura de sua evolução.
198 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

Dizia o povo soviético, em sua sabedoria, na Radio


Armênia79, nos anos sessenta do século XX, em resposta a
pergunta “O que é o socialismo?”:“O socialismo é o caminho
mais longo ao capitalismo”.

O complexo ancestral da acumulação primitiva do capital


e as revoluções burguesas radicais

O complexo central da acumulação primitiva do capital


tem como seu eixo o Novo Mundo, criatura do e para o capital
mercantil, surgido como decorrência direta das revoluções
burguesas conservadoras portuguesa e espanhola. Nestas,
como já foi dito na primeira aula ao tratarmos das revoluções
burguesas conservadoras, forma-se uma inaudita aliança de
classes, capaz de dar prosseguimento ao processo da
acumulação do capital, após seu ancestral circuito haver sido
seccionado pela queda de Constantinopla. Duas classes
feudais, nobreza e clero, aliam-se à burguesia mercantil, em
sua maioria recém-cristianizada à força pelo estado e, com
auxílio vital dos capitais italianos até então acumulados no
circuito mediterrâneo, inventam de abrir-se novas terras
incógnitas e outras rotas para as Índias. Entre os séculos XV
ao XVII estender-se-á o mundo colonial português a todo o
globo e, junto com o império espanhol, tornar-se-ão os
proprietários dos maiores tesouros da terra, muitas vezes
superior aos tesouros das Índias.
A fantástica expansão do mercado colonial, através da
exploração dos tesouros agrícolas e naturais com trabalho
escravo, produziu tal montante de valor capaz de propiciar o
trânsito acelerado de alguns dos países continentais europeus
ao controle social do capital sobre suas sociedades. Da
Holanda à Inglaterra, das colônias norte-americanas unidas à
França vingaram, entre os séculos XVII e XVIII, as principais
revoluções burguesas radicais. Revoluções politicas nas quais,

79Radio Armênia – programa de humor crítico, muito apreciada pelos


soviéticos.
Pensando com Marx (I) | 199

ao lado da essencial liquidação das relações feudais em várias


gradações e sob o influxo de diversas ideologias, o predomínio
do capital sobre a produção material significou a emancipação
política e econômica desses reinos transformados em nações.
Igualmente, significaram elas a decretação da
liberdade formal entre todos os homens e a elevação da razão
como força intelectual motora da vida social, em substituição
à fé religiosa sob a alienação feudal. Nelas, o liberalismo
significou uma revolução ideológica, ligada ao universal
domínio do capital sobre a reprodução social.
Entre os séculos XV e XVIII opera-se o trânsito do
capital comercial ao industrial, passando pelos estágios dos
capitais mercantil e manufatureiro. Vale dizer que o complexo
capitalista a comandar a dinâmica mundial de seu sistema
manteve o antigo centro colonial como apêndice da
continuação de sua aventura global. O núcleo central da
acumulação, após a Revolução Industrial, foi ampliado por
outros espaços nacionais soberanos, derivados de revoluções
burguesas conservadoras europeias.
Por sua vez, na revolução política liderada pela
burguesia, com maior ou menor auxílio das classes
trabalhadoras, opera-se, através da luta entre o capital e o
trabalho, o trânsito da autocracia dos capitalistas à
democracia, de tal forma que nessas revoluções forja-se um
complexo mais ou menos sincrônico, autêntico e imanente de
formas socioeconômicas e políticas. Fato inexistente nas
revoluções burguesas conservadoras, sejam as europeias ou
do mundo colonial.
A luta entre capital e trabalho indica e evidencia o
trânsito da emancipação do capital à emancipação dos
trabalhadores. Tal processo está implícito na evolução das
revoluções burguesas radicais, muito embora ele não
acompanhe pari-passu a expansão do controle do capital
sobre a reprodução social, tal como ingenuamente se
supunha em finais do século XIX, ocasião em que o
movimento histórico dos trabalhadores tomava a forma de
200 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

partidos políticos e sindicatos que expressariam


universalmente a emancipação dos trabalhadores ao longo
dos séculos XIX e XX até os dias atuais.
Dessa forma, também a revolução teórica perpetrada
por Marx está em consonância com esse complexo societário
capitalista derivado desse punhado de revoluções burguesas
radicais e seu apêndice ex-colonial. A descoberta do papel
central da teoria na conquista da emancipação dos
trabalhadores, ao transformar-se em força social devido à sua
apreensão pelo movimento dessa classe, só poderia ter
ocorrido nesse centro vital. A questão da emancipação, assim
como sua relação com as revoluções conservadoras europeias,
antes de tudo a alemã, em contraste com as revoluções
burguesas radicais, já se apresenta nos trabalhos juvenis de
Marx (vide, p.ex., A questão judaica, de 1844; Notas críticas ao
artigo “O Rei da Prússia e a reforma social. Por um prussiano”,
1844 e nos Manuscritos econômico filosóficos de 1844).

1. Revolução Industrial e emergência do capital


financeiro. Os impérios do capital industrial e
financeiro, as guerras mundiais, a revolução
comunista e a contrarrevolução permanente. O
sistema mundial imperialista

Aproximadamente sete décadas separam a emergência


do capital industrial do surgimento do capital financeiro.
Entre os anos 50 e 60 do século XIX este inicia a sua marcha
acelerada rumo à construção de seu império, assim como
exacerba ao máximo a tensão política e econômica em torno
da emancipação dos espaços nacionais das revoluções
burguesas conservadoras, conducente à deflagração de duas
guerras mundiais. A liderança do complexo de capitais
regente do sistema mundial destes transita sucessivamente de
Portugal e Espanha à Holanda, depois à Inglaterra e, por
último aos Estados Unidos da América. Depois de derrotadas,
as potências imperialistas do bloco conservador, Alemanha,
Pensando com Marx (I) | 201

Japão e Itália, foram absorvidas pelo núcleo original regente,


fortalecendo-o. Este será também o núcleo central da
contrarrevolução mundial, voltada à dupla tarefa de manter a
ordem unida colonial e neocolonial, assim como frear e se
possível, liquidar metódica e sistematicamente, a marcha da
luta dos trabalhadores por sua emancipação.
A luta das revoluções burguesas conservadoras para
conquistarem espaço no mercado mundial, dominado pelas
velhas revoluções radicais, as faz promover processos
ideológicos e políticos inusitados, expressos através de
contrarrevoluções. Contrarrevoluções ideológicas e politicas
como formas revolucionárias contestadoras da ordem vigente
sob a matriz liberal. Tal leque político-ideológico caracterizará
as experiências fascista e nazista, assim como as de suas
irmãs da órbita japonesa, portuguesa, espanhola, assim como
dos países da Europa Central.
A rebeldia revolucionária da contrarrevolução é um
fenômeno extremamente complexo e com potencial de arrastar
as massas trabalhadoras, assim como boa parte da
intelectualidade, em ambos os campos das revoluções
burguesas, muito embora característico do seu polo
conservador (SAND, 2016). Processo que volta hoje a
assombrar o mundo capitalista em geral, antes de tudo o seu
polo regente, com exemplaridade na Itália, e com singular
gravidade, nos EUA e França.
Mas a guerra mundial, ao exacerbar de modo
excepcional as contradições sociais no campo das nações
oriundas de revoluções burguesas conservadoras, promoverá
igual caráter das lutas de classes. A revolução proletária salta
ao primeiro plano da politica mundial. A Revolução Russa
será o fruto direto da primeira Guerra Mundial.
A velha ordem russa, exaurida com a guerra e sob o
abraço dos acordos entre a nobreza e seu estado com a
burguesia, colocou a massa trabalhadora urbana e
camponesa no limite de sua resistência à transformação
social. A revolução política atropelou os planos parlamentares
202 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

burgueses de prosseguir a guerra. As palavras de ordem


bolchevique por pão e terra e o fim da guerra imperialista
expressavam o profundo sentimento popular, de modo a fazer
da determinação de assalto ao poder uma realidade evidente
nas grandes cidades, onde o exército camponês ainda em
armas e os trabalhadores, no limite de suas privações,
tomaram para si a tarefa de por cobro à guerra e dirigir a
nação. O relato de John Reed em Os dez dias que abalaram o
mundo demonstra tal fato com toda a riqueza.
Ao lado da rebeldia revolucionária da contrarrevolução
na transição ao capitalismo soberano das nações mais
atrasadas, instala-se, a partir de 1917, a rebeldia
revolucionária dos trabalhadores para a revolução proletária,
projetada, a partir de então, à transição comunista. Quarenta
e seis anos antes, em 1871, o proletariado parisiense
promovera a primeira revolução proletária no coração do
núcleo dominante das nações do capital e demonstrara
através de sua Comuna, embora efêmera, a real capacidade e
possibilidade da revolução e da transição comunista por parte
dos trabalhadores. A Comuna fora o órgão reitor da revolução.
A emancipação dos trabalhadores fora obra dos próprios
trabalhadores. Nem o estado ou os seus partidos promoviam a
emancipação (MARX, 1976). Esta fora genuinamente
proletária. Nela estariam os pressupostos da iniciativa da
revolução russa. Os trabalhadores russos entravam em cena
com enorme energia e determinação, dispostos a conquistar
as mais plenas liberdades no prazo o mais curto possível.

a) Breves notas sobre o pós-capitalismo

O mundo das revoluções anticapitalistas vitoriosas,


transformadas em sociedades não capitalistas ou como se
queira, pós-capitalistas, se expandiu e, sob o cerco
imperialista se obrigou a mimetizar o núcleo produtivo
defensivo-ofensivo do capitalismo, ou seja, seu complexo
industrial militar, como sendo a garantia de sua sobrevivência
Pensando com Marx (I) | 203

política, ao lado da emulação com o mundo capitalista na


produção de mercadorias vinculadas ao consumo conspícuo.
O complexo bélico se concebe como momento central
de sua convivência entre as nações. A emancipação
econômica dos trabalhadores, inscrita na ata inaugural da AIT
em 1871, já abandonada, teria, sob a dupla determinação da
mimetização da produção conspícua e bélica do capitalismo,
um fardo por demais pesado para ser suportado. Sem contar
com o fato, bem notado por Hobsbawm e outros historiadores,
de que a ideologia desse pós-capitalismo, sua teoria do
socialismo, se transformaria em dogma de estado e, desse
modo, em verdade estatal-partidária impossível de ser
transformada por meios legais. Uma realidade bizantina.
Não bastasse isso, uma derivação soreliana
(OIZERMAN, 2010) da teoria da violência se transformaria em
politica de estado, por via de repressão permanente e massiva
da população e seu confinamento em campos de trabalho
forçado. Isto, aliado a uma ideologia de estado voltada ao
controle do trabalho em geral, mas em especial ao intelectual,
em todas as suas manifestações, transformaria a vida social
numa práxis extremamente complexa e conflitante, com
múltiplas chaves ideológicas, amálgama em nada condizente
com a emancipação humana. Quando o assalto neoliberal ao
coração do partido e estado, ao centro do poder efetivou-se,
com a ascensão de Gorbatchiov e seus aliados no topo, a
liquidação da URSS ocorreria de modo surpreendente e
extremamente rápido. A transição do pós-capitalismo ao
capitalismo se daria em ritmo acelerado e com extrema
radicalidade.
Não houve, nem poderia haver um levante proletário
nacional contra a restauração do controle pleno da
reprodução social pelo capital. A revolução russa promovera a
emancipação nacional da Rússia por meio de uma profunda
revolução democrática, ao atender em boa medida a
necessária reprodução civilizada da força de trabalho.
Entretanto, a via bizantina e aderências ideológicas e suas
204 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

práticas, estranhas ao projeto emancipador de Marx, não só


bloquearam a transição ao comunismo, como fizeram com que
ela desaparecesse do horizonte teórico e, consequentemente,
prático.

2. As revoluções burguesas conservadoras e a questão


da emancipação

As revoluções burguesas conservadoras, dada a


inserção política e econômica subordinada das nações em que
elas ocorrem, colocam empecilhos dificilmente superáveis à
emancipação política e social de suas classes trabalhadoras e,
desse modo, à plena emancipação nacional de suas pátrias
respectivas, sejam elas de origem colonial ou não. Todas elas
se realizarão na história em luta aberta contra o sistema
mundial do capital financeiro e tomarão rumos distintos seja
no sentido de alcançarem sua plenitude capitalista com a
consequente emancipação politica e social da classe
trabalhadora ou se manterem subalternamente na órbita
mundial desse capital. Esta ordem mundial do capital
financeiro, também leva o nome de imperialismo.
Nos países de origem colonial, dos mais antigos aos
mais novos, a situação de subalternidade nacional e alienação
politica e social das classes trabalhadoras será mantida até os
dias atuais, mesmo naqueles onde ocorreram revoluções
politicas industrializantes – seja de proclamado caráter
capitalista ou socialista - tenham porventura ocorrido, como é
o caso do Brasil, em 1930, e o das ex-colônias portuguesas
em África a partir de 1975. Somente em Cuba esse elo foi
rompido e não casualmente a plena emancipação nacional e a
das classes trabalhadoras somente puderam ser alcançadas,
ainda que de modo limitado, incompleto e, desse modo,
garantido a sobrevivência dessa revolução, ao haver ela
optado pela via socialista, ou mais apropriadamente, pós-
capitalista.
Pensando com Marx (I) | 205

A particularidade dessas revoluções burguesas


conservadoras imprime sentido inequívoco às revoluções de
emancipação nacional e das classes trabalhadoras, unindo
ambas essas dimensões em um laço indissolúvel somente
capaz de ser desatado ao imprimir a estas um sentido
anticapitalista. Seja no sentido restrito, de negação do
capitalismo nacional subalterno, do capitalismo da miséria ali
vigente, seja no sentido lato, de negação da possibilidade de
salto a uma forma capitalista oriunda da realização de
revoluções burguesas radicais, como atalho a uma forma
qualitativamente distinta de capitalismo, nos moldes das
revoluções burguesas radicais que exigiriam uma reprodução
social civilizada, condizente com ela.
Com isso afirmamos que as revoluções
autoproclamadas socialistas do século XX, se plantam no
território da particularidade das revoluções burguesas
conservadoras, como momento de superação destas, da russa
à cubana e venezuelana. Depois da Comuna de Paris,
nenhum outro experimento revolucionário foi vitorioso –
embora o Maio de 1968 da França tenha sido um surto
revolucionário mundial cheio de lições a serem absorvidas –
no território das revoluções burguesas radicais. Todas as
revoluções anticapitalistas no século XX ocorreram no mundo
capitalista subalterno, no universo mundial das revoluções
burguesas conservadoras, em decisiva medida no mundo
euroasiático e central-europeu.
Estas revoluções burguesas conservadoras, por sua
vez, tomaram rumos capitalistas inusitados, em decisiva
medida como formas de emancipação do campo de forças do
imperialismo, questão direta e inexoravelmente ligada,
portanto, àquelas da emancipação nacional e da classe
trabalhadora. Eles passam pela necessidade de
desencadeamento de duas guerras mundiais devastadoras e
genocidas, pela expansão do mundo colonial das potências
imperialistas dentro ou fora da redivisão do velho mundo
colonial ibérico, ou pela expansão anticolonial e posterior
206 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

regressão neocolonial nos espaços ex-coloniais novos e


antigos – caso da América Latina e África –, ou pela regressão
neocolonial e congelamento econômico-político da
subalternidade nas ex-metrópoles ibéricas. Passarão também
pela transição belicista e antidemocrática à plenitude
monopolista nos polos econômicos mais poderosos,
transformados em cidadelas da alienação de massas sob
ditaduras racistas, anticomunistas, antissoviéticas, sob o
despotismo do poder de partidos de massa dirigidos pelos
pequenos burgueses e sua ralé, aliados ao cimo monopolista
nacional e internacional – o caso da Itália fascista, da
Alemanha nazista e do Japão imperial– que inauguraram
extensão e profundidade inauditas à alienação da classe
trabalhadora capturada pelo nacionalismo de grande-
potência.
Dessa forma, o desenvolvimento histórico do capital
monopolista, ou seja, do imperialismo, contará com o
simultâneo desenvolvimento desse complexo de múltiplos
caminhos passíveis de serem trilhados pelas revoluções
burguesas conservadoras.
A Revolução Russa de 1917 fez soar o sinal de alerta
na cidadela do capital. Tornou-se imperativo aos lideres do
capital se preocuparem com um futuro diferente para os seus
assalariados. A crise de 1929, a primeira de amplidão
mundial abateu-se com força inaudita sobre os centros vitais
do capital. A crise não mais poderia ser tratada com o
atendimento unilateral e exclusivo dos interesses do capital, o
que na literatura econômica se convencionou chamar de
“métodos ortodoxos” ou liberais. A catástrofe econômica fora
tão grande – o desemprego tão alto, as falências tão
numerosas, a inflação tão alta, a desvalorização do dinheiro
tão alarmante e a porcentagem de máquinas paradas tão
significativa – que no campo da vanguarda liberal se fez
destacar uma outra forma de abordar teórica e praticamente
a política anticrise. A teoria de John Maynard Keynes – não
sem grande oposição do status-quo liberal no estado e nas
Pensando com Marx (I) | 207

universidades – passou a ocupar lugar central na política


anticíclica dos EUA (GALBRAITH, 1981) e logo mais se
universalizaria na política do mundo capitalista como sendo a
do “estado do bem-estar social”, que sobreviveria até os
primórdios da revolução tecnológica de base microeletrônica,
meados dos anos setenta do século XX. Ao contrário da
política liberal ortodoxa, ela privilegiaria o investimento. Este
forjaria as condições para a diminuição do desemprego e
expansão da produção de mercadorias, estabilizando os
valores monetários e, portanto, todas as formas da valorização
do capital.

b) Sistema mundial capitalista e a emergência do


novo capital
A emergência do novo capital - suas consequências

A tragédia histórica das Décadas de Crise foi a de que a


produção agora dispensava visivelmente seres humanos
mais rapidamente do que a economia de mercado
gerava novos empregos para eles. (...) A combinação de
depressão com uma economia maciçamente projetada
para expulsar mão-de-obra humana criou uma acerba
tensão que penetrou na política das Décadas de Crise.
(HOBSBAWM, 1995)

A revolução científico-tecnológica contemporânea,


antes de tudo a revolução microeletrônica, cujo ponto álgido
situa-se em meados dos anos setenta, imprime elementos
novos à subsunção real do trabalho ao capital previamente
existente. Simultâneo a isso, instala-se uma crise estrutural
no capitalismo mundial (MESZAROS, 1995), com impacto
imediato sobre a estrutura do emprego (RIFKIN, 1995).
Universaliza-se uma nova aceleração inusitada da história,
assim como as ideologias correspondentes a esse processo,
antes de tudo os embates entre o keynesianismo
(GALBRAITH, 2006) com as variantes do ultra liberalismo ou
neoliberalismo, de Milton Friedman (DALLASFED, 2007). A
208 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

marcha triunfal dos ultraliberais inicia-se nos anos 60 através


da sucessão de golpes militares e experimentos ditatoriais em
todo o mundo, em especial na América Latina - cujo modelo
insuperável foi a conquista da ditadura de Pinochet no Chile,
em 1973-, espraiando-se depois para experimentos ainda
mais grandiosos, que não podem competir, entretanto, com o
brilhantismo disciplinador das boas regras da economia
política liberal exemplificadas no saldo positivo dos milhões de
mortos do golpe na Indonésia, em 1965 (LABARIQUE, 2015),
tais como o desmoronar da URSS, da Iugoslávia, etc. (KLEIN,
2007).
O surgimento de um novo capital industrial de base
microeletrônica (BACCHI, 2008, 2013, 2014) passará a
revolucionar as forças produtivas, rompendo o secular limite
histórico à expansão da Revolução Industrial a todos os
campos da produção. Entra-se, assim, na etapa final desta,
na qual se invertem as relações entre incremento das forças
produtivas e relações de produção, quando aquelas se verão
bloqueadas (nos velhos espaços de expansão) em função das
próprias relações capitalistas. A reprodução social mundial,
em virtude disso, adquirirá um acentuado caráter
catastrófico, tomando conta de todos os poros daquela e
expressará a crise que a partir de então adquirirá permanente
caráter estrutural (MÉSZÁROS, 1995).
Incapaz de esgotar os esperados incrementos de
produtividade derivados de seus investimentos em prazos
compatíveis com as taxas e massa de lucro esperadas, a partir
de então, o novo capital monopolista, proprietário universal do
novo órgão da máquina, o órgão de controle, seu 4º órgão –
que expressa o surgimento dessa nova força social – se verá
impelido à mais rápida possível corrida para a conquista de
espaços econômicos em todo os rincões do planeta, em busca
do aumento da taxa de lucro em tendência decrescente
(HEINRICH, 2013; HARVEY, 2014), cujo alcance se tornará
impossível, a partir da crise estrutural. Antes de tudo, o peso
da reorganização mundial do espaço econômico recairá sobre
Pensando com Marx (I) | 209

a classe trabalhadora, degradando suas condições de trabalho


e reprodução, seja no que respeita a proteção ao trabalho - à
aposentadoria, organização do trabalho ou sua intensidade
(STENGERS, 2015; SALAMA, 2015).
Por sua vez, aquilo que se convencionou chamar de
intromissão de Gaia nos coloca diante da exigência de uma
nova ecologia (LE DEM, 2014), que retira da ciência positiva e
sua crença no progresso automático que ela promoveria, a
primazia e exclusividade na apreensão da catástrofe em que
estamos involucrados, na degradação universal das relações
sociais que configura o advento da era de uma nova barbárie
(STENGERS, 2013).
Estamos, assim, diante de alteração radical no
processo de produção, com implicações imediatas imanentes
nas esferas da circulação e consumo das mercadorias e,
consequentemente, na interação entre o trabalho alienado e o
meio ambiente, onde este não é somente aquele
aparentemente externo ao trabalhador, mas também e
indissoluvelmente, o próprio trabalhador em seu processo de
trabalho.
Este, por sua vez, também sendo natureza, obriga-nos,
de tal forma, a afirmar que a degradação do trabalho é
degradação do próprio trabalhador em seu processo de
trabalho, em sua condição operante, ativa. Ou seja, o
complexo das relações de produção se expressa pela
degradação solidária e irredutível do trabalho alienado e da
natureza através da nova etapa da organização do trabalho e
das ideologias que o informam (no âmbito filosófico, da
economia politica e da gerencia). Não seria demais assinalar as
decorrentes transformações inerentes às dimensões política de
caráter nacional e da dimensão geopolítica.
A nova economia política capitalista contemporânea, ainda
não plenamente delineada pelas suas vertentes acadêmicas,
está a exigir novos delineamentos da referida disciplina, que
afetam vitalmente os próprios alunos, os quais, por sua vez,
em sua maioria, são estudantes-trabalhadores. Todas as
210 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

dimensões da existência humana estão afetadas pelo novo


caráter da crise, agora permanente e estrutural, nesta nova e
final etapa da revolução industrial. Daí o adjetivo “novo” em
todas as dimensões científicas, “nova organização do
trabalho”, “nova ecologia”, “nova revolução industrial”, etc. e,
consequentemente, nova economia política e novas ideologias
gerenciais. Com se pode inferir, o tema da catástrofe
ambiental vincula-se à sorte, ao destino da humanidade e, em
primeiríssimo lugar do destino dos que trabalham.

3. Reprodução capitalista e catástrofe

Dada a instabilidade universal das relações políticas e


transformando-se a economia em “uma máquina cada vez
mais poderosa e incontrolável” (HOBSBAWM, 1995),
sobressaem dramaticamente os problemas ecológicos:

Uma taxa de crescimento econômico como a da segunda


metade do Breve Século XX, se mantida indefinidamente
(supondo-se isso possível), deve ter consequências
irreversíveis e catastróficas para o ambiente natural
deste planeta, incluindo a raça humana que é parte dele.
Não vai destruir o planeta, nem torna-lo inabitável, mas
certamente mudará o padrão de vida na biosfera, e pode
muito bem torná-la inabitável pela espécie humana,
como a conhecemos, como uma base parecida a seus
números atuais. Além disso, o ritmo em que a moderna
tecnologia aumentou a capacidade de nossa espécie de
transformar o ambiente é tal que, mesmo supondo que
não vá acelerar-se, o tempo disponível para tratar do
problema deve ser medido mais em décadas que em
séculos (HOBSBAWM, 1995; itálico nosso)

O que se põe, desse modo, naturalmente, é a evidência


do aprofundamento da degradação universal das relações
sociais e da questão do meio ambiente, em especial a forte
possibilidade da perda de controle sobre esse processo por
meio da entrada irreversível em situação de entropia. Sendo a
Pensando com Marx (I) | 211

questão ecológica uma síntese das determinações das relações


de produção, projeta-se então a catástrofe como processo
alternativo plausível de futuro. Sob a aceleração da história, “a
crise permanente nos oferece estreito campo de alternativas
de futuro” (LIMA FILHO, 2015). Ao nos aproximarmos, ainda
que sucintamente, das teorias de Beinstein (BEINSTEIN,
2014; 2012) e Katz (2009), observamos que “ambos (os
autores) assinalam o enfraquecimento da capacidade de
resposta política das maiorias trabalhadoras, fato que poderia
dar longo fôlego à regressão anti-industrialista da região”
(GONÇALVES, 2014; FILGUEIRAS, 2014), entendida esta
como sendo a América do Sul. Nesse sentido ainda devemos
enfrentar com mais profundidade a crítica às teorias de
Galbraith (GALBRAITH, 2006, 2000), de Stengers
(STENGERS, 2015), Mészáros (MÉSZÁROS, 2015), Marques
(MARQUES, 2015), (BECK, 2008, 2011, 2015), Souza (SOUZA,
2015), Francisco (FRANCISCO, 2015), Stiglitz (STIGLITZ,
2015) e outros, além de aprofundarmos nossa análise dos
autores já estudados, tais como Altair Barbosa (2014) e
António D. Nobre (2014), por exemplo, sem perder de vista o
caráter mundial desse processo e seu fundamento produtivo.
Essa interpretação bem condiz com aquela
enfaticamente formulada por Hobsbawm no último capítulo
de sua monumental síntese histórica do século XX, A era dos
extremos. O breve século XX, 1914-1991:

Vivemos num mundo conquistado, desenraizado e


transformado pelo titânico processo econômico e
tecnocientífico do desenvolvimento do capitalismo, que
dominou os dois ou três últimos séculos. Sabemos, ou
pelo menos é razoável supor, que ele não pode
prosseguir ad infinitum. O futuro não pode ser uma
continuação do passado, e há sinais, tanto externamente
quanto internamente, de que chegamos a um ponto de
crise histórica. As forças geradas pela economia
tecnocientífica são agora suficientemente grandes para
destruir o meio ambiente, ou seja, as fundações materiais
212 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

da vida humana. As próprias estruturas das sociedades


humanas, incluindo mesmo algumas as fundações
sociais da economia capitalista, estão na iminência de
ser destruídas pela erosão do que herdamos do passado
humano. Nosso mundo corre o risco de explosão e
implosão. Tem de mudar. (HOBSBAWM, 1995; itálico
nosso)

Evidenciam-se nessa citação, desse modo, o império da


simultaneidade, da questão da urgência, da gravidade, da
incontrolabilidade, da entropia e do futuro, assim como a
exigência da necessidade da ação coletiva planejada e
consciente para contrarrestar esse processo em curso, de
caráter mundial. É evidente serem necessários panoramas
globais para podermos tratar dos temas dos futuros possíveis.
Como já vimos anteriormente, vários autores se debruçam
sobre as questões científicas ou doutrinárias necessárias para
tal empresa, tais como Bacchi, Dagnino (2013), Sapir (2013),
Amin (2005), Max-Neef (2015), Francisco (2015), Salama
(2014, 2015), etc. No campo da crítica da economia política,
momento crucial desse esforço, vários autores realizam
pesquisas deveras relevantes, tais como Oliveira (OLIVEIRA,
2004, 2005), Mészáros (1995, 2015), Arrighi (2012), Piketty
(2013) e outros. Acreditamos que os trabalhos de Bacchi,
Silva (2013, 2014), Lessa (2014), Doti (2014), Guerra (2014),
Sevá (2013), Sampaio Jr (SAMPAIO JR, 2015), Bermann
(2002, 2014) e outros conseguem nos fazer aproximar de
níveis elevados de aproximação aos processos
contemporâneos, de caráter socioeconômico e energético,
políticos e sociais, apesar de que os fundamentos mais
íntimos da crise ainda estejam velados, a exigir síntese teórica
mais adequada à sua interpretação, dada a exigência
imperiosa de atuar sobre a história.
Pensando com Marx (I) | 213

a) O novo capital industrial e o caráter da crise


capitalista

Como já sabemos, com exceção de Bacchi, a crise


contemporânea ainda é vista no âmbito exclusivo da
ampliação do capital fictício e da financeirização, processos
reais e deveras importantes, embora não nos digam nada
sobre as transformações vitais no âmbito do capital industrial
(financeiro) produtivo (JURUÁ, 2005; SALAMA, 2013), a nosso
ver o centro determinante da nova aceleração da história em
processo. Daí, então, ser a crise estrutural, como afirma
Mészáros (1995).
Como hipótese inicial, acreditamos que a dinâmica
vital desta fase de finalização da Revolução Industrial iniciada
no século XVIII se encontra no surgimento do 4º órgão da
máquina, descoberto por Bacchi. De acordo com este, é o
quarto órgão que impõe ao capital a fuga ao modo histórico de
desempenho temporal da crise econômica cíclica (uma
sinusóide como forma de apresentação retificada de suas
oscilações da produção industrial no tempo) e faz com que os
capitais se atropelem no curto e curtíssimo prazo, no
empenho individual (das corporações) de ampliar sem cessar
os estágios da evolução do órgão de controle da máquina,
capaz de, assim, ampliar sem mais limites técnicos, o âmbito
da atuação dos sistemas de máquinas, na busca,
mundialmente desplanejada, da máxima taxa de lucro
possível.
O errático desenrolar-se da crise capitalista mundial,
do tipo stop and go, deve-se ao surgimento e expansão desse
órgão como nova força produtiva vital do capital, que
evidencia o surgimento de novo capital produtivo de base
microeletrônica e, consequentemente, de um novo capital
financeiro - aquela força produtiva que faltava para que o
caminho da expansão dos sistemas de máquinas não mais
estivesse bloqueado entre ramos industriais mantidos sob
barreiras intransponíveis, tal como ocorreu até a entrada em
214 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

cena da microeletrônica vinculada ao surgimento do órgão de


controle.
Seria, então, a notada aceleração fantástica da
história, promovida pela expansão do novo órgão da máquina
na trama das relações produtivas, o que empurraria o capital
à etapa contemporânea da mundialização, o que conferiria ao
capital financeiro tamanho poder de liquefação da reprodução
social, ainda mais incontivel nos espaços nacionais e capaz do
feito de fazer retroceder tão rapidamente a sociabilidade
mundial ao ponto de podermos falar em nova barbárie
universal e, nela, do ressurgir o fantasma de nova guerra
mundial.
Tal aceleração da história implicará necessariamente
em aceleração do assalto à natureza pelo capital. Este tipo
específico de assalto nos coloca diante da vital e urgentíssima
premência de solução dos dilemas energéticos, ao lado da
preservação dos fundamentos da vida no planeta. Está posta,
desse modo, a inescapável questão do futuro da humanidade.

b) A dinâmica dos tempos modernos. O capitalismo da


catástrofe e as disputas ideológicas em torno da
interpretação dos futuros possíveis

A história apresenta-se nestes dias através de uma


situação de encavalamento de todas as suas principais
categorias sintéticas e regulares, categorias sociais tão
regulares que mais se assemelham às naturais. Os cinco
cavaleiros do apocalipse enfeixam-se célere e
incontrolavelmente sob a batuta poderosa do novo capital
financeiro. A guerra, a revolução, a crise, a catástrofe e a
casualidade cavalgam freneticamente e sem rumo.
A arrancada para a frente do capital financeirom sob a
pressão das taxas de lucro decrescentes, após o fim do ciclo
de longa duração do pós-segunda guerra, os chamados trinta
gloriosos, impôs à acumulação mundial do capital a expansão
exponencial do capital fictício, na ordem de várias vezes o
Pensando com Marx (I) | 215

montante do crescimento do mundo das mercadorias que


compõem a somatória dos PIB nacionais.
A catástrofe apresenta-se sob a forma da
impossibilidade de dar forma monetária a todas as trocas, da
sua interrupção sucessiva e subsequente ruptura e
desmanche de toda a cadeia mundial de acumulação. A
variante teórica republicana e democrata de enfrentamento da
crise coincide, nos EUA. Concebe trata-la como dependência
da guerra, na qual a potência imperial se obriga a ser
caudatária do complexo industrial-militar (uma unilate-
ralidade similar àquela “ortodoxa” liberal, ainda usada, por
exemplo, no Brasil contemporâneo) (GONÇALVES, 2017). Esta
a suprema mensagem de futuro esperada por parcela
importante dos possíveis governantes da potência mundial
decadente (CHERNUS, 2008). Os comandantes do complexo
da guerra apresentam-se ao mundo priorizando não a
catástrofe mundial que os liquidaria como governantes
supremos da terra, em cujas entranhas rugem mais guerras e
catástrofes assim como as revoluções. A nova fase da
contrarrevolução em processo, expressa na guerra infinita,
mostrou-se assustadoramente cega às consequências
mundiais de sua marcha (COCKBURN, 2008):

Tanto os extremos de pobreza e riqueza subiram, como


subiu a gama de distribuição de renda entre eles. (...)
havia menos inquietação social do que se poderia
esperar, embora as finanças do governo se vissem
espremidas entre enormes pagamentos de benefícios
sociais, que subiam mais depressa que as rendas do
Estado em economias cujo crescimento era mais lento
do que antes de 1973. Apesar dos esforços substanciais,
dificilmente algum governo nacional nos países ricos - e
sobretudo democráticos – e certamente não dos mais
hostis à previdência nacional pública conseguiu reduzir
a vasta proporção de suas despesas para esse fim, ou
mesmo, mantê-las sob controle.”
216 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

Continua Hobsbawm:

Ninguém em 1970 esperara, e muito menos pretendera,


que tudo isso acontecesse. No início da década de 1990,
um clima de insegurança e ressentimento começara a
espalhar-se até mesmo em muitos dos países ricos.
Como veremos, isso contribuiu para que neles ocorresse
o colapso de padrões políticos tradicionais. Entre 1990 e
1993, poucas tentativas se fizeram de negar que mesmo
o mundo capitalista desenvolvido estava em depressão.
(...). Ninguém sabia o que fazer em relação aos
caprichos da economia mundial, nem possuía
instrumentos para administrá-la. O grande
instrumento para fazer isso na Era de Ouro, a política
de governo, coordenada nacional ou internacionalmente,
não funcionava mais. As Décadas de Crise foram a era
em que os Estados nacionais perderam seus poderes
econômicos. (HOBSBAWM, 1995)

Daí ser possível a um importante teórico democrático


contemporâneo, Ulrich Beck, poder afirmar em 2008:

O declínio do estado nacional é realmente o declínio do


conteúdo nacional específico do estado e uma
oportunidade para criar um sistema mundial
cosmopolita que será mais capaz de tratar dos
problemas que todas as nações enfrentam atualmente
no mundo. A globalização econômica, o terrorismo
internacional, o aquecimento global: a litania é familiar
e assustadora. Há um exército de problemas que estão
claramente mais além do poder da velha ordem de lutar
contra eles. A resposta aos problemas globais que
ominosamente se acumulam em todo o mundo e que se
recusam submeter-se a soluções dos estados nacionais
indica que a política deve dar um salto qualitativo do
sistema estatal-nacional para o sistema estatal
cosmopolita. A política necessita readquirir credibilidade
para desenhar soluções reais.
Mais do que em qualquer outro lugar a Europa nos
demonstra que tal passo é possível. A Europa ensina o
Pensando com Marx (I) | 217

mundo moderno que a evolução política dos estados e


sistemas estatais está chegando ao fim. A realpolitik
nacional está se tornando irreal não somente na Europa
mas em todo o mundo. Ela está se tornando um jogo de
perdas sucessivas.
A europeização significa criar uma nova politica.
Significa entrar como jogador no jogo do metapoder
mundial, na luta para criar as regras de uma ordem
global. A frase sintética para o futuro deve ser: mover-se
para os Estados Unidos, a Europa está atrás. (BECK,
2008; em inglês, tradução livre do autor)80

Nesse contexto, dentre outros, ouvem-se clamores por


uma nova ordem financeira mundial, vindos tanto das bandas
do stablishment norte-americano como dos representantes dos
países candidatos a futuros alvos preferenciais ou inevitáveis
da catástrofe. Fala-se na necessidade de um novo Bretton
Woods, como se a história pudesse repetir-se tão
virtuosamente quanto o fora no após II guerra. Clinton
apoiaria tal proposta em 1997, porém seu governo seria o
mais pródigo acelerador do desmanche do caráter público do
estado, em especial no que respeita à transição das funções

80 “The decline of the nation-state is really a decline of the specifically


national content of the state and an opportunity to create a cosmopolitan
state system that is better able to deal with the problems that all nations
face in the world today. Economic globalisation, transnational terrorism,
global warming: the litany is familiar and daunting. There are a host of
problems that are clearly beyond the power of the old order of nation-
states to cope with. The answer to global problems that are gathering
ominously all around and that refuse to yield to nation-state solutions is
for politics to take a quantum leap from the nation-state system to the
cosmopolitan state system. Politics needs to regain credibility in order to
craft real solutions.
More than anywhere else in the world, Europe shows that this step is
possible. Europe teaches the modern world that the political evolution of
states and state systems is by no means at an end. National realpolitik is
becoming unreal, not only in Europe, but throughout the world. It is
turning into a lose-lose game.
Europeanisation means creating a new politics. It means entering as a
player into the meta-power game, into the struggle to form the rules of a
global order. The catchphrase for the future might be: move over
America, Europe is back. ” (BECK, 2008)
218 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

de defesa (e mesmo de ataque) do complexo industrial-militar


a empresas privadas (JOHNSON, 2008). As estrelas
keynesianas expulsas do Olimpo governamental também se
somam a ela. Elas têm em comum o fato de não serem críticos
do capital, e assim, compartilham a incompreensão básica
sobre as razões do capital e sua história. Marx, ao contrário,
considerava ser a sociedade da plena liberdade do capital
exatamente a sua expressão suprema (MARX, 1970).
A economia política da centralidade do desenvolvi-
mento nacional e internacional das forças produtivas - e,
consequentemente, de uma educação e ciência que
multiplicassem as capacidades humanas - e de uma ordem
mundial composta por nações soberanas, simplesmente não
dá conta da dialética contemporânea imanente à lógica do
capital na construção de sua história como história da
humanidade a ele submetida. É incapaz de explicar a
irracionalidade, a destrutividade e demais absurdos da ordem
do capital quando este se encontra liberado de controles
sociais enquanto ordem capitalista, ou seja, as razões pelas
quais o capital esfarelou todos os intentos de controle social
sobre si, seja os do pós-capitalismo - experiência da União
Soviética e do que se chamou campo socialista - ou dos
estados do bem-estar social (LAROUCHE, 2007).
A guerra infinita promovida pela potência hegemônica
ainda não foi oficialmente abolida, embora combatida pela ala
liberal (na sua vertente anglo-saxônica, ou seja,
socialdemocrata) do establishment (STIGLITZ, 2006,
2008,2010; ENGELHARDT, 2008). Tal fato confirma a força
dos laços denunciadores da subordinação da política de
estado aos interesses privados da guerra, do complexo
industrial-militar expandido de forma espetacular e única,
como nunca depois da II Guerra Mundial e,
consequentemente, do petróleo como energia essencial para
que a produção industrial possa reproduzir o mundo à
imagem do capital e do modo como deseja a única potência
Pensando com Marx (I) | 219

imperial. Desse modo a questão energética é indissociável da


reprodução global da ordem do capital. No dizer de Engdal:

A venda do petróleo expressa em dólares é essencial


para garantir o dólar dos EUA. Assim, ao manter a
demanda por dólares pelos bancos centrais de todo o
mundo para as suas reservas correntes para garantir o
comércio exterior de países como a China, Japão ou
Alemanha, é essencial que o dólar norte-americano
permaneça a reserva monetária líder mundial. O status
de reserva monetária líder mundial é um dos dois
pilares da hegemonia norte-americana desde o fim da
segunda guerra mundial. O segundo pilar é a
supremacia bélica mundial (ENGDAL, 2016)81

Conclusão

As revoluções burguesas radicais permanecem sendo a


vanguarda capitalista do sistema mundial do capital, seus
polos reitores e expressão da sua dinâmica contemporânea. O
futuro se vislumbra por seu presente. A marcha acelerada da
República Popular da China ao se constituir em espaço
universal do capital e a falência da URSS e da constelação dos
regimes de democracia popular a ela firmemente ligada,
universalizou o campo do capital e liquidou a primeira etapa
histórica do pós-capitalismo. Tal processo repõe a
imperiosidade da apreensão teórica dos fundamentos
históricos do capitalismo contemporâneo, da transição
comunista e razões de seu bloqueio nesta primeira fase pós-
capitalista, assim como das razões da vitória do capital ao

81 “The sale of oil denominated in dollars is essential for the support of


the US dollar. In turn, maintaining demand for dollars by world central
banks for their currency reserves to back foreign trade of countries like
China, Japan or Germany, is essential if the United States dollar is to
remain the leading world reserve currency. That status as world‟s leading
reserve currency is one of two pillars of American hegemony since the
end of World War II. The second pillar is world military supremacy. ”
(ENGDAL, 2016)
220 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

bloquear por vários meios, por sua vez, a hegemonia


proletária na Europa e nas suas constelações neocoloniais.
Ao lado da curiosamente escassa leitura de Marx nos
núcleos intelectuais revolucionários – em sentido decrescente
ao iniciarmos a medida em fins do século XIX –, e da
deficiente qualidade das traduções das obras do mestre e da
imensidão desconhecida da sua obra (revelada pelas novas
traduções da MEGA (vide FINESCHI, 2017; SANKAR, 2012),
se impõe releitura cuidadosa de Marx e, no caso do Das
Kapital, para além da leitura de Engels nos livros II e III.
A emergência do novo capital produtivo microeletrônico,
em resposta ao surgimento do quarto órgão, promoverá tal
conflagração na reprodução social mundial, cujo centro está,
desta vez, no universo do núcleo imperial, no coração das
revoluções burguesas radicais. A história dessas revoluções se
alterará de modo também radical. A hora da emancipação dos
trabalhadores retornou à sua praia original. Os fantasmas da
revolução e da contrarrevolução voltam a assombrar o seu
futuro imediato.

São Paulo, 2017.

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Pensando com Marx (I) | 233

9- A Poeira dos mitos: revolução e


contrarrevolução nos capitalismos da
miséria

Introdução

Neste trabalho se pretende descobrir as linhas de força


a definir as alternativas de futuro de alguns países da América
Latina ou, dito de outra forma, as alternativas socioeco-
nômicas dos capitalismos da miséria do continente latino-
americano.
Longe de nós supor ser o nosso capitalismo da miséria
transformável em seu oposto, através de reformas capitalistas
sucessivas. Esta operação metafísica já foi tentada
explicitamente no Brasil, tanto pela revolução de trinta como
pelo desenvolvimentismo no pós-guerra.
Outras operações desse tipo foram mundialmente
concebidas por várias correntes ideológicas da filosofia,
política e economia política do século XX. Todas igualmente
fracassadas e pelo mesmo motivo: a impossibilidade histórica
de conter e educar o capital dentro de limites socialmente
justos, temporalmente urgentes e humanamente necessários.
A assim chamada teoria do comunismo científico do
socialismo real proclamou, nos anos setenta, a superação do
estado via sua máxima potenciação, assim como a disciplina
plena do capital através do planejamento; por sua vez,a teoria
do estado do bem-estar social de matriz keynesiana supôs
haver encontrado o modo final de domesticação do capital, via
teoria da contenção infinita dos ciclos econômicos e da justiça
social com abundância consumista, através do controle da
demanda capitalista; de igual modo, nos pagos latino-
americanos e outras regiões pós-coloniais, o
desenvolvimentismo teorizou a necessidade de realizar uma
revolução capitalista consentida pelas potências do capital
dominante, realizadora da soberania nacional e da autonomia
234 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

econômica nacional sem revolução capitalista radical; por fim,


a assim chamada revolução friedmaniana, neoliberal,
requentou o retorno milagroso ao Velho Testamento liberal
novamente reencontrando a regência divina nos mercados,
hoje sob os escombros de seu mais recente fragoroso fracasso,
a nova etapa da crise geral do capital na fase histórica de seu
declínio final. Esta quádrupla expressão metafísica da
transformação social no século XX e XXI funda-se na
incompreensão da categoria capital como categoria societária
mundialmente irreformável e reitora da ordem capitalista posto
que seu modo imanente de ser, seu caráter histórico, está em
destruir sistematicamente todos os limites a ela impostos - em
primeiro lugar os teórico-metafísicos-, até o limite da
autodestruição da humanidade.

1. As revoluções burguesas

a. As revoluções burguesas conservadoras e o Novo


Mundo Ibérico

Nas sociedades capitalistas evoluídas através de


revoluções burguesas conservadoras – que são, aliás, a
maioria esmagadora delas -, (pois as revoluções burguesas
radicais na história do capitalismo são somente quatro: a
holandesa, a inglesa, a norte-americana e a francesa) –, em
especial as de matriz colonial, tal como as geradas a partir do
Novo Mundo ibérico, a superação dos capitalismos da miséria
ali constituídos é obra capitalista impossível.
Sua forma histórica necessária e característica é a de
serem sociedades capitalistas da miséria, impossível de ser
superada a não ser por revolução anticapitalista, tal como
historicamente ocorreu em nosso mundo pós-colonial ibérico
no caso exemplar da revolução cubana. Em outras latitudes
da Europa Oriental e Ásia, outras revoluções exemplares
tomaram, também, a forma anticapitalista ou socialista
(Rússia, China, Vietnã, etc.).
Pensando com Marx (I) | 235

Entre nós, as sucessivas e infinitas revoluções e


contrarrevoluções políticas aqui ocorridas desde a
Independência em nada detiveram a marcha do capital. Assim
é que, no Brasil, à revolução de trinta sucede-se os episódios
de 35 e 37 seguidos da contrarrevolução de 1964, a qual dará
lugar à proclamação in democracia de suas exéquias somente
em 1995, na primeira fala do trono de FHC; o qual por sua vez
é sucedido pelo governo de Lula que se elege contra o octanato
fernandista.
Entretanto, apesar das sucessivas tempestades
políticas, de 1930 a este ano da graça de 2009, no terreno da
reprodução do capital temos a ascensão mundial vertiginosa
do capital industrial e, deste, ao financeiro e aos balbucios
imperialistas e promessas de segunda independência via
capitalização do pré-sal e realização, enfim do Brasil Potência
desejado, porém adiado sob a ditadura e sua consequente
entrada no rol dos países detentores de complexos militar-
industriais, desta feita, subordinando a republica à
interdependência com a França.
Nem Sarney, ou Collor e muito menos FHC ou Lula
conceberam controles ou reversão do capital financeiro em
sua marcha imperial-hegemônica acelerada. Ao contrário,
foram todos a seu modo, parteiros da modernidade subalterna
e monopolista.
O sentido da ascensão à condição de potência
monopolista e mantenedora da miséria capitalista por meio da
trituração sistemática e metódica do poder popular,
democrático, anti-monopolista e anticapitalista revela o caráter
da evolução das revoluções burguesas conservadoras:
eternamente abertas e subordinadas às exigências do capital
mundial, conservadoras das classes pretéritas aburguesadas
(coloniais) e afirmadora das novas classes burguesas a elas
aliadas (em especial as velhas e novas pequenas burguesias),
devastadoras das dimensões emancipadoras das classes
populares e proletárias cronicamente miserabilizadas. Enfim,
capitalismo da miséria, capitalismo subordinado,
236 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

miserabilidades acumuladas em fases sucessivas e


necessariamente irresolvidas.

b. Revolução e contrarrevolução na América


Latina

A contrarrevolução capitalista recente, dos séculos XX


e XXI, é movida, antes de tudo, pelo imperialismo norte-
americano e suas forças mundiais, aliadas contra os
processos das emancipações socioeconômicas e políticas da
maioria dos países latino-americanos (assim como da Europa
Oriental, Ásia e África) a partir dos anos trinta, evoluirá
distintamente em vários grupos de países.
Grosso modo, apesar das suas diferenças específicas,
observamos uma continuidade da subalternidade imposta
pelos ditames do capital financeiro mundialmente dominante,
ou seja, da continuidade da reversão dependente alcançada
pela contrarrevolução, em países tais como a Argentina, o
Brasil, o Chile e a Colômbia – aqueles, no Cone Sul, onde
mais avançou a industrialização-, e ruptura da subalternidade
ou dos laços de dependência à dinâmica da mundialização
financeira, tal como ocorreu em Cuba e hoje ocorre na Bolívia,
no Equador e na Venezuela, países onde a industrialização
alcançou patamares inferiores aos do primeiro grupo. As
continuidades conformarão capitalismos monopolistas
subordinados ao capital financeiro, ao passo que as rupturas
se abrirão a dinâmicas de expansão de sociedades anti-
capitalistas. A atual evolução assimétrica desses países (em
outros momentos os processos de ruptura foram liquidados,
tal como ocorreu no século XX na Bolívia, Chile, Brasil,
Argentina, etc.), nos instiga a vislumbrar suas razões e
trajetórias possíveis de modo a precisarmos a atual etapa da
evolução histórica latino-americana.
Pensando com Marx (I) | 237

c. Continuidade e ruptura: o papel da burguesia


industrial e da pequena burguesia

As burguesias da industrialização, criadas pelas


revoluções políticas na crise dos anos trinta, ao lado das
derivações das velhas burguesias coloniais participaram
ativamente dos vários processos nacionais da
contrarrevolução capitalista. Abraçaram a causa do desvio
pró-imperialista de suas industrializações, ou seja, da
liquidação sistemática de suas dimensões emancipadoras em
todos os planos da reprodução social: econômico, social,
político, cultural, científico-tecnológico, etc. É desnecessário
dizer que em maior ou menor medida, tal reversão histórica se
expressaria através de nova forma ideológica, de matriz
neocolonial, bebida de várias fontes, algumas das quais
nativas.
A pequena burguesia, vanguardeira da
industrialização, e seu carro chefe ideológico nesse processo,
o cepalismo (mais as suas outras vertentes nacionais; no caso
do Brasil, a emancipação econômica torna-se política
partidária logo após o fim da Guerra do Paraguai), cujo
intento era a conquista de autodeterminação econômica
nacional solidária (sem ser submissa) com o imperialismo e
(acreditava-se) consentida por este é derrotada, e o poder
passa, ao longo dos anos sessenta, aos blocos político-
econômicos vinculados à liquidação dessas premissas,
inclusive ao núcleo pequeno-burguês golpista (no caso do
Brasil, setores do Exército à direita do bloco varguista).
Ao voltarem ao poder, após o longo ciclo das ditaduras
civil-militares, os partidos pequeno-burgueses aderem à ordem
subalterna criada por aquelas ditaduras aliados aos velhos e
desacreditados partidos golpistas ou seus derivados pós-
ditaduras. Seus partidos passarão a ser os fiadores da nova
ordem democrática, geralmente restritos à reprodução da
subalternidade, ou seja, a uma ordem econômica, política e
social adequada a esse objetivo, ou seja, à dinâmica imperial
238 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

do capital financeiro. O abraço explícito à nova ordem


neoliberal não foi mais que uma natural decorrência desse
processo.
Ela conduzirá a Argentina ao pó da miséria proletária
expandida, à desindustrialização ampliada e à liquidação do
braço capitalista estatal passível de novamente cair em mãos
autonomistas. Esse foi e permanece sendo o panorama geral
da fase neoliberal do capitalismo da miséria em toda a parte.
A outrora potência social e econômica injustamente pensada
como europeia, ou quase isso, viu-se obrigada a morder o solo
da miséria universal das ex-colônias ibéricas.
Outras misérias se acrescentarão à ancestral miséria
dos demais capitalismos latino-americanos. Em graus tão
variados que suscitarão novas rupturas políticas na até então
unânime nova ordem subalterna ao capital financeiro. As
estáveis ditaduras democráticas das burguesias que
passaram a vicejar por toda a parte passaram a ser
seriamente contestadas pelos estratos sociais fora da nova
ordem, da Argentina à Venezuela. As doses de repressão
necessárias à estabilidade política - ou seja, à manutenção no
poder das forças pró-imperialistas-, evidenciaram a
dificuldade da governabilidade neoliberal. Ao longo dos anos
oitenta e daí em diante, o tema da governabilidade será
cantado a muitas vozes em todo o continente, refletindo as
instáveis condições de reprodução política da ordem mundial
do capital financeiro.
Nessa nova fase, outros estratos pequeno-burgueses
tomarão a vanguarda do processo construção da ordem
subalterna. O centro dinâmico deslocar-se-á, dos anos 60 até
nossos dias, do exército às universidades, ou melhor, ao
complexo educacional e científico-tecnológico estatal-
empresarial. É a forma histórica da sua funcionalidade
específica. Na nossa particularidade miserável, esta deve ser
vista dentro do complexo do capital, onde ela cumpre funções
estratégicas.
Pensando com Marx (I) | 239

A pequena burguesia necessita desse complexo para


participar do poder, preencher os quadros políticos e técnicos
no estado, e assim adaptar-se às necessidades (demandas) do
capital, para ser ali o seu gestor competente e flexível,
adaptado a cumprir ordens assim como a atender a demanda
por conhecimento sobre e para as mercadorias, para a
acumulação exigida pelos complexos mais poderosos do capital
monopolista: melhoria das raças bovinas e humana, da
laranja e suas pragas, do café, idem da cana, do cacau, etc.
O complexo educacional-científico e tecnológico passa
a ser simples reprodutor e não mais criador de novo saber e,
muito menos, de novos movimentos revolucionários. Voltamos
desse modo ao estágio pré-universidade, quando muito
bastavam as faculdades aos complexos da economia colonial:
direito, farmácia, medicina, engenharia, minas- as mais
antigas e funcionais. Quando a burguesia colonial perdeu o
poder em 1930, a revolução inventou a universidade (aqui
temos a obra decisiva e nada estudada de Josué de Castro),
no que então foi seguida pelas classes derrotadas. Invenção
essa que consistiu, em decisiva medida, à adição de uma
cabeça dirigente, ilustrada, ao aglomerado de faculdades
tecnológicas, destinada a ser formadora da nova elite política,
as faculdades de filosofia, ciências e letras. A experiência da
USP fracassou (como demonstrou Florestan), assim como a da
Universidade do Brasil ou a nova universidade do Darcy
Ribeiro, seja em Brasília ou no norte fluminense (que não
estão à altura dos objetivos do mestre fundador).
A real nova universidade, quando a pequena burguesia
abandona seu ciclo transformador e adere ao capitalismo
monopolista subordinado, só poderá ser aquela da revolução
democrática e popular anticapitalista e apontada desde já ao
socialismo e à sociedade sem mercadorias, sem capital, sem
classes - ou seja, o comunismo. Não ha mais como salvá-la de
si própria. Ela deverá desaparecer como momento importante
da miséria deste capitalismo.
240 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

A pequena burguesia varguista e depois janguista foi


expulsa do controle estratégico das instâncias estatais e das
riquezas nacionais (ainda que não completamente) que
garantiriam a soberania do estado. As privatizações
complementaram o golpe de 64, dando-lhe um nítido sentido
neoliberal, adiado até então devido à hegemonia inicial do
poder pela burguesia industrial paulista e pelo controle
militar (pequeno-burguês) dos núcleos estratégicos do estado-
produtor de riquezas e setores estratégicos (energia,
telecomunicações, complexo bélico, alguns setores da C&T) e
órgãos de planejamento.
O complexo industrial-militar, por seu turno, projetou
os militares ao coração da grande burguesia. Transformaram-
se estes em empresários maiores e globais com o que sobrou
da indústria bélica (Embraer). Mas a função capitalista de
orientar rumos próprios ao estado, embora complementares
aos do capital financeiro, foi destroçada com as privatizações
e demais perdas planejadas do controle do estado realizadas
por parte desse capital não liberal remanescente.
Essas transformações destroçaram a revolução
política de 1930 e suas reverberações emancipatórias (como
sabemos, ambíguas e timoratas), realizando uma verdadeira
contrarrevolução, ou melhor, completando-a, pois iniciada em
1964. Já em 64 temos a grande e definitiva derrota das
maiorias pequeno burguesas (mais os seus aliados
subalternos) e sua estratégia de condução do projeto de
soberania nacional.
Na transição transada pós 1984 só tivemos outros
atos da derrota, que o socialismo pequeno-burguês não
consegue ver, reiterando as premissas da revolução e o velho
e impossível sonho de salvação capitalista do capitalismo da
miséria. Se nada fizermos, eles prosseguirão com essa
pantomima por mais um século.
Pensando com Marx (I) | 241

d - Sobre o ventre das revoluções burguesa


conservadoras

O ventre das revoluções burguesas conservadoras está


pleno de monstros. Guerras, sublevações, revoluções e
contrarrevoluções, morticínios e genocídios nele sucedem-se
infinitamente, sem que elas consigam dar à luz um filho sadio
e longevo. Elas se desenrolam pela história como tortuoso
caminho eternamente incompleto. Marcham para um futuro
que nunca alcançam. Parecem nunca ser modernas se
miradas no espelho das poucas filhas pródigas das revoluções
burguesas radicais.
Habitada pelos personagens mais bizarros nascidos do
polo conservador nunca destruído, pertencem a uma ordem
particularmente desumana de capitalismo, a ordem dos
capitalismos da miséria (alguns só recentemente elevados ao
patamar remediado ou rico). Forma particular de capitalismo,
dedicado ao obscurantismo militante, alienado da
emancipação, arrastando-se atrás dela com séculos de
rabeira. Já decadente sem haver atingido o apogeu das suas
congêneres radicais.
Objeto tão complexo, capaz de ludibriar os mais
eminentes historiadores82. Se Hobsbawn, em 2007, expressa
perplexidade e incompreensão sobre o porque do continente
latino-americano ter “permanecido à margem da história
ocidental e aí continua”, se ele é capaz de tamanho

82Vide entrevista de Hobsbawn na Folha de São Paulo, de 30/09/2007,


onde ele diz: ” Deixando de lado juízos de valor... O mais impressionante
para mim hoje é perceber que antes eu considerava 40 anos um tempo
muito longo na história, e agora sei que cabe numa vida humana. Para
um historiador, a América Latina, o Brasil, são lugares onde você pode
acompanhar um processo inteiro. Como foi importante para Darwin com
relação à biologia, acontece da mesma forma para a história. É um
continente incrível. Mas o que continua sendo um mistério para mim é
por que, apesar de seu grande potencial, a América Latina tenha
permanecido às margens da história ocidental e aí continua. E é desse
modo, também, que está entrando no século 21”.
242 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

desconhecimento, então estamos todos perdoados. Somos de


fato uma particularidade ainda por decifrar, abstrusa apesar
de nossos mais que seculares esforços teóricos.
Ocorre, muito resumidamente, sermos não o atraso,
mas a vanguarda da evolução do capital. A invenção do Novo
Mundo Ibérico colonial, logo mundializado ao longo dos
séculos XV ao XVII, foi o berçário do sistema mundial
capitalista, o espaço de plena liberdade com o qual o capital
contou para o seu mais rápido e desimpedido crescimento.
Nascemos como forma histórica intencional e planejada do
capital e nos tornamos nações por acaso. Nossa medida
histórica é, portanto, o capital mundial em sua forma
genérica, mais desenvolvida. Foi dessa forma que transitamos
de um polo nacional dominante a outro.
Agora estamos subordinadamente no patamar genérico
monopolista e sob o império mundial absoluto desse capital.
Nosso capitalismo da miséria estacionou na sua última fase e
a revolução desapareceu do léxico democrático (a não ser em
FHC e Lula), sob a forma da revolução silenciosa. A revolução
invocada por FHC em seu discurso de posse nada mais era do
que a neoliberal83. Somente a ultradireita a invoca
abertamente.

e - O sentido da política nas revoluções burguesas


conservadoras

Há duas linhas de adequação política burguesa ao


domínio absoluto do capital financeiro. A linha subordinada
mais diretamente a este, a da direita burguesa - ao estilo do
nosso velho Partido Republicano na Primeira República -
vinculada ao declínio do estado como capitalista coletivo

83“Estaverdadeira revolução social e de mentalidade só irá acontecer com


o concurso da sociedade (...) “Eu os convoco para mudar o Brasil”. (1995,
discurso de posse do Presidente da República). Observe-se a
impropriedade conceitual da sinonimização de revolução e mudança.
Pensando com Marx (I) | 243

capaz de confrontar-se com a força política e econômica do


capital mundialmente dominante. Outra linha, a expressar o
fortalecimento do estado nacional como forma de realização
das outras forças sociais, inclusive capitalistas e não
hegemônicas, necessitadas de afirmar-se sob o império não
contestado do capital financeiro. Essa linha é o que podemos
chamar genericamente de esquerda burguês, à semelhança do
que foi entre nós o velho Partido Democrático.
A revolução burguesa conservadora mantém suas
velhas polaridades políticas respectivas à forma do capital
dominante. Sua forma modernizada não supera as limitações
impostas pelo capital em sua dimensão mundial - as forças
solidárias e mais diretamente dependentes desta (a direita) e
as forças não-automaticamente solidárias e necessitadas de
afirmação contra este (a esquerda). Situação imanente ao
mundo colonial ibérico desde o seu nascimento no século XV.
PT e aliados de um lado e do outro o PSDB e sua
coligação reproduzem as velhas clivagens coloniais. A grande
novidade é a dimensão ainda muito minoritária das forças
populares da extrema esquerda, ou seja, da esquerda
proletária socialista e comunista. Muitas destas, todavia se
encontram imantadas o polo esquerdo da política e em grande
medida porque a teoria da superação revolucionária do status
quo necessita resolver os impasses irresolvidos das revoluções
socialistas do século XX.

f – Revoluções burguesas conservadoras, revoluções


socialistas e outras revoluções

Dizíamos na introdução que esta era histórica vive sob


as ruínas do fracasso de quatro vertentes da transformação
social. Daí vivermos hoje imersos na poeira dos seus mitos. O
denominador comum a explicar o seu fracasso é o
pressuposto metafísico de todas, sua ignorância do deslimite
do capital, sua incontível sede de destruição que nos
aproxima da possibilidade muito real de extinção da vida
244 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

humana sobre o planeta, não mais somente pela produção e


acumulação de artefatos atômicos a criar insegurança
crescente, mas pelo efeito estufa e assalto incontível às fontes
da vida humana no planeta, derivados do modo capitalista de
produzir.
Dizíamos também que o processo de modernização
capitalista nos marcos das revoluções burguesas conserva-
doras, nos capitalismos da miséria, através de reformas
sucessivas, não é capaz de liquidar sua forma particular
miserável. E falamos de miséria como categoria total:
econômica, política, cultural, social. Ou seja, a particularidade
das revoluções burguesas conservadoras do mundo ex-colonial
está na sua impossibilidade de saltar à liquidação da miséria
através do capitalismo. Na América Latina, assistimos ao
fracasso das revoluções políticas redundantes no processo de
industrialização, sob o influxo ideológico das várias teorias
desenvolvimentistas e do cepalismo, em particular. A
permanente reprodução do polo conservador renova
infinitamente as suas formas obstrusas conservadoras, como
um louco caleidoscópio. O velho renovado pesará natural e
permanentemente sobre o novo, de modo a limitá-lo,
cerceando o seu alcance e profundidade.
Mas não só o salto capitalista autônomo, democrático,
soberano foi e permanece impossível, como também a sua
transformação radical em sentido comunista. A sua forma
particular conformará, naturalmente, as suas duas ilusões: a
da possível transformação capitalista sem revolução
capitalista radical e a da transformação socialista radical sem
a emancipação dos trabalhadores. A transformação
socioeconômica nos marcos das revoluções burguesas
conservadoras defronta-se com a maldição do caleidoscópio,
sua forma particular de produção e reprodução do capital.
Aquilo que tomou a designação de desenvolvimentismo
e socialismo no século XX originou processos irremedi-
avelmente condenados ao fracasso, ou seja, à permanência
nos horizontes do capitalismo da miséria. Isso absolutamente
Pensando com Marx (I) | 245

não quer dizer capitalismos insignificantes, haja vista os


BRICS, um mais poderoso que o outro. Refiro-me à sua
necessária incapacidade congênita de fazer avançar a
acumulação ampliada do capital com liquidação dos
complexos socioeconômicos pretéritos, fabricantes de miséria,
ou seja, sem a reprodução modernizada das velhas classes
exploradoras. De tal forma que não só observamos aí a
involução comum a todo o sistema capitalista de imanente
liquidação da emancipação social nesta entrada na fase do
declínio final (que poderá durar séculos), mas a
impossibilidade de evolução até os patamares do seu apogeu
no século XIX.
E a força que mantém a dinâmica, até o momento
irresistível, dessas sociedades nos marcos miseráveis, é o
próprio capital como força social mundial. Daí que somente a
sua superação desamarrará o nó górdio a atrelar a maior
parte da humanidade à reprodução de sociedades capitalistas
da miséria. Mas enquanto a revolução anticapitalista não
ocorre nos polos dominantes do capital, essa superação
ocorrerá e continuará a ocorrer, como ocorreu na história do
século XX e neste século, exatamente no universo dos
capitalismos das revoluções conservadoras.
Qual então o segredo da transição anticapitalista que
não consegue ir além do capital nesses capitalismos? Qual o
segredo do fracasso dos assim chamados socialismos do
século XX? Essa resposta é essencial para as revoluções do
século XXI e aquelas revoluções socialistas que, todavia,
persistem.

São Paulo, 2009.


246 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O
Pensando com Marx (I) | 247

Parte III – A Revolução cubana


248 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O
Pensando com Marx (I) | 249

10 - Che Guevara e a construção do homem


novo na Revolução Cubana84

Temos em mãos um sério estudo de crítica materialista


do pensamento do Che Guevara sobre a revolução cubana e a
forma específica de conceber a transição comunista como
geradora do homem novo.
A revolução cubana apresentou-se às gerações suas
contemporâneas como a solução de um dilema histórico das
revoluções emancipadoras das nações da matriz colonial
ibérica, fato ainda mais agravado por receber versão teórica
oficiosa mundial estéril e cartesiana perpetrada por Régis
Debray, que ousou apresentar-se como resolução daquele
dilema. Como será de se esperar, indiferente às elucubrações
sobre a sua fórmula, a revolução cubana, autoproclamada
socialista, assim como todas as demais de seu gênero,
cumpriria e continua a cumprir o seu destino. Cada uma
delas se apresentaria à história vestida a seu modo, cada uma
delas arrastando seu séquito de cruzados.
A teoria oficial do socialismo ganhará esse adjetivo por
estar centrada na experiência russa e soviética, a qual se
acomodara às injunções progressivas impostas pela
impossibilidade prática e, consequentemente, teórica, de
realizar sua transição comunista. A revolução política
autoproclamara-se socialista, pois sua vitória fora dirigida
pelas forças da social democracia russa através da ação das
duas principais expressões da classe trabalhadora russa –
operários e camponeses-, a qual, assim, deu-lhe caráter
anticapitalista, desse modo permitindo que se ousasse operar
a socialização dos meios de produção, tal como já se teorizava

84 Prefácio do livro de Newton Ferreira da Silva “Che Guevara e a


construção do homem novo na Revolução Cubana”. Santos, Editora
Universitária Leopoldianum, 2013.
250 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

no programa social-democrático alemão desde o século


anterior.
A questão da transição comunista, associada ao
caráter do movimento emancipador dos trabalhadores e ao
papel da teoria, neste, já havia demarcado, entretanto, a
ruptura do movimento revolucionário anticapital. Passado o
período da assim chamada “lei contra os socialistas” (de 21 de
outubro de 1878 a 1 de outubro de 1890), período no qual
Marx falecera, as contradições de Marx com o programa
unificador das duas principais correntes do comunismo
alemão, já expressas na sua Crítica ao Programa de Gotha,
escrito em 1875, e a posterior polêmica de Engels, a partir de
1891, com os dirigentes alemães, em torno da publicação
dessa Crítica, prosseguiram e evidenciaram os pontos e a
profundidade das contradições entre a teoria – expressão de
seus mestres fundadores Karl Marx e Friedrich Engels - e a
prática do movimento revolucionário dos trabalhadores.
Os práticos, representados pelos dirigentes alemães,
antes de tudo pelo seu corpo parlamentar, que se auto
definira como instância superior em matéria de teoria,
ousando vetar os fundadores da teoria e, além disso,
promovendo o culto a Lassalle, como se ele fosse continuador
de Marx. A máxima veemência e indignação de Engels,
contudo, não conseguira mais, após isso, promover e manter a
soldagem do campo teórico com a política dos práticos, fato
prevalecente até os nossos dias.
Para Marx, a revolução política dos trabalhadores
promoveria uma transição comunista, na qual o necessário
poder do movimento de emancipação dos trabalhadores
dirigido pelos próprios trabalhadores operaria a necessária
revolução econômica, e esta, por sua vez, seria premissa para
a revolução social, não só a transformação do caráter da
distribuição das mercadorias e da mais valia, como também e
fundamentalmente do caráter do poder político e da própria
mercadoria, de modo a transcendê-los e, assim, igualmente,
ao capital.
Pensando com Marx (I) | 251

A pedra de toque desta transição é, para a teoria,


essencialmente, a própria negação do caráter mercantil da
capacidade de trabalho dos trabalhadores pelos próprios
trabalhadores enquanto classe no poder, o que torna evidente
a necessidade vital deste poder dever predominar sobre todos
os demais poderes e, sobretudo sobre o poder máximo da
ordem das mercadorias, o estado burguês. Dessa forma, o
novo poder expressará a ruptura revolucionária necessária
para a transição comunista.
A emancipação dos trabalhadores pelos próprios
trabalhadores, ao exigir o pleno poder destes sobre a sua
capacidade de trabalho - emancipando-a do jugo do capital -,
exigirá, consequentemente, plenos poderes sobre o estado
desta relação social - sobre seu corpo político, econômico e
administrativo -, de modo a transformá-lo em ente subalterno
ao poder desta classe no poder, tal como o fizera a classe
trabalhadora parisiense na Comuna de Paris de 1871. Este
será o objetivo e meio da revolução política, concomitante e
imanente à revolução econômica, categoria inarredável desta e
vice-versa, ou seja, emancipação política e econômica frente a
todos os poderes que as cerceiam, ambas como complexo vital
e solidário de relações da transição comunista, necessário
para se ir além do capital e sua sociabilidade.
Privada da esperada revolução alemã, fracassada, a
revolução dos trabalhadores, por azares da história
seguidamente ocorrida nos espaços subalternos da ordem
mundial do capital, (aqueles das tardias revoluções burguesas
conservadoras e, sobretudo, ex-coloniais em sua maioria), ao
invés de terem ocorrido nos seus polos dominantes, seja
econômico, político ou cultural, como desejara Marx e seu
melhor amigo, vira-se diante de um impossível salto mortal,
qual seja, o da transição comunista como emanação natural
da preponderância do polo econômico e político dominante. Na
ausência dessa premissa vital, havia que teorizar a transição
sob as novíssimas e cambiantes condições históricas, somente
de raspão previstas nos escritos da teoria.
252 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

A possibilidade de a revolução política dos


trabalhadores ocorrer sem que houvesse condições históricas
mundiais adequadas à transição comunista já havia sido
levantada por Marx em abril de 1853, em carta a
Weydemayer. De igual modo, Marx e Engels mantém até o
final de suas vidas longa correspondência com Danielson
sobre as potencialidades da particularidade russa para a
revolução. Lembremo-nos que o tema da particularidade das
vias históricas de transição ao capitalismo e, consequen-
temente, da revolução comunista nas realidades anacrônicas,
já está presente em suas obras de juventude, como na
Questão Judia e na introdução do Sobre a crítica da Filosofia
do Direito de Hegel, ambos de 1844.
No entanto a própria transição não havia ainda
recebido um tratamento pleno e didático, ao estilo do que fora
escrito na Crítica ao Programa de Gotha, tão sinteticamente
claro e cortante, “com rigor implacável”, no dizer de Engels, a
ponto de os práticos ousarem querer passá-lo por documento
idiossincrático e demasiado denso, e de toda a forma (até
nossos dias), não plenamente compreendido. Ali está ela
denominada definitivamente como transição comunista, na
qual o poder dos trabalhadores ocorre como necessidade
imanente desse processo, de forma alguma como poder do
partido dos trabalhadores sobre o estado, a promover nova
distribuição ou planejando a produção das mercadorias. A
classe trabalhadora no poder decide desmercantilizar antes de
tudo a sua capacidade de trabalho, questão chave da
transição, sem a qual teremos o tempo infinito do valor (de
troca), tal como de fato ocorreu em todas as revoluções do
século XX e também neste.
As novíssimas e cambiantes condições históricas,
características do pós-revolução russa de 1917, impregnaram
também, como não podia deixar de ser, o mundo das ideias e
antes de tudo aquelas vinculadas à transição. O fracasso da
revolução proletária alemã deixa a revolução russa a braços
com sua singularidade e forma particular de realização
Pensando com Marx (I) | 253

histórica como sociedade capitalista. A revolução russa


ocorrera no elo mais débil da cadeia imperialista, como
posteriormente teorizara Vladimir Ilitch e a ela não caberia
outro destino que não fosse o de tentar alçar-se pelos próprios
cabelos e lançar-se à transformação da sociedade russa
enquanto transição socialista, no jargão alemão. Esta se
afirmaria como fantástico empreendimento estatal-partidário e
vice-versa, de industrialização nacional acelerada. Nada que
lembrasse o assalto aos céus do proletariado parisiense como
classe no poder, poder do proletariado emancipado sobre o
estado que promove, dessa forma, a sua própria emancipação.
Já no final de sua vida, consciente das limitações
intransponíveis dessa realidade histórica, Vladimir Ilitch
tratará de propor a via do capitalismo de estado como modo
específico da caminhada da transição comunista, ainda que a
fórmula pecasse por equívoco, dado que somente poderia ser
forma de transição sendo descapitalismo, ou seja, com poder
real da classe trabalhadora.
A industrialização promoverá a emancipação relativa
das mercadorias, produzidas a ferro e fogo sob a pressão do
poderoso complexo estatal-partidário de geração da
produtividade individual e coletiva do trabalho. A glória do
trabalho será produzir mercadorias, produzir mais e melhor,
em prazos cada vez mais adequados àquelas. Os heróis do
trabalho serão heróis do trabalho assalariado, ou seja,
alienado. A revolução promoverá fervorosamente a
centralidade do mundo das coisas em detrimento do trabalho
vivo. Este se define por aquele. A transição socialista não
emancipa política ou economicamente a classe trabalhadora,
emancipa o estado, o partido e as mercadorias do controle da
classe trabalhadora, serviçal destas três instâncias do valor. A
transição socialista emancipa, pois, o valor, a sua produção e,
consequentemente, sua acumulação. Esta, então, será
distribuída pelo núcleo político reitor da maneira para este
considerada a mais racional e equitativa possível para as
maiorias trabalhadoras, entendidas as categorias racional e
254 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

equitativa como expressões da definição política possível


emanada do centro político, ou seja, desde o complexo estatal-
partidário, através de seus instrumentos específicos –
portarias, decretos, planos – legais. As novas relações sociais
realizadas através da produção de leis emanadas do centro
político regularão a produção emancipada do valor e sua
acumulação e distribuição, expressarão o caráter
radicalmente limitado do controle social sobre o capital.
O centro político emancipado promoverá a realização
do trabalho alienado através dos instrumentos maiores dos
planos quinquenais, aos quais progressivamente se desejará
conferir qualidades supostamente as mais científicas possíveis
através do uso crescente das matrizes de insumo-produto
capazes de alcançar as soluções ótimas para o sistema das
equações da produção nacional expressas nessa matriz. A
otimização neoclássica conferiria imaginada credibilidade
científica às decisões de economia política do centro político
emancipado obrigado a realizar o trabalho alienado como
expressão da transição socialista prolongada. A economia
política do socialismo assim concebido seria a busca da
máxima produtividade do trabalho alienado com vistas à
solução a mais otimizada possível das tarefas de distribuição
da acumulação do valor, isto é, do capital, posto este em
estado de sítio. O controle estatal-partidário sobre o capital,
desse modo, não permitirá com que esta relação se espraie por
todo o âmbito da reprodução social, esforçadamente
circunscrita ao universo da produção do valor e do controle da
força de trabalho. Estamos, então, em território singular,
alienado ao capital de forma inédita, onde não há nem pleno
controle do capital sobre a reprodução social nem controle
social sobre o capital declinante, ou seja, onde não há transição
comunista, mas, sim, infinita marcha forçada do capital
reprimido. Mas não é uma terra de ninguém. Sob tais
determinações esta não poderia deixar de ser território
minado, sempre aberto à regressão capitalista e não ao salto
comunista, prestes a se desfazer, a desabrochar como flor do
Pensando com Marx (I) | 255

capital, palco de atores em busca de plenitude, de realização


plena de seus secretos desígnios.
Esta é a realidade da transição socialista enquanto
forma da emancipação do estado e do partido dirigente, da
permanência do capital, contra a qual se insurgirá a revolução
cubana na teorização de Ernesto Rafael Guevara de la Serna,
Che Guevara. Sua teoria do homem-novo, dono das condições
de trabalho e consciente das necessidades sociais deste,
invertia a polaridade da emancipação na teoria e prática até
então dominantes da transição socialista de figurino soviético
pós-Stalin. Recuperava para a revolução socialista a centra-
lidade radical no homem, trabalhador criador consciente das
condições de sua reprodução material e espiritual, da
necessidade de sua emancipação política e intelectual para a
conquista da emancipação econômica.
Repunha os termos propostos pelos fundadores da
única forma possível para uma revolução no universo dos
capitalismos da miséria de extração ex-colonial ibérica, de
uma nação pobre da América caribenha sob forte controle
neocolonial por parte do imperialismo norte-americano,
aprovado e estimulado pelas classes capitalistas e burguesas
nativas. A revolução ou seria opção consciente das maiorias
trabalhadoras ou pereceria muito rapidamente. Intuíam ou
sabiam disso ele e os líderes maiores dessa revolução, que a
plena emancipação do complexo político estatal-partidário
com feitio russificante estaria condenada a um retumbante
fracasso, pois a revolução vencera em país radicalmente
distinto da Rússia imperial. Vingara a revolução em Cuba, em
espaço ex-colonial para a acumulação de capital, da plena
emancipação estatal-eclesiástica-burguesa como expressão da
revolução burguesa conservadora espanhola do século XV, a
qual, ao lado da sua congênere portuguesa, mais antiga,
confluía para a criação do original campo de caça colonial do
capital, invenção única e vital para o salto qualitativo em sua
acumulação expandida, mundial. O mundo colonial era o
mundo hipermoderno até então inexistente na história
256 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

humana, espaço físico e histórico de vanguarda, a propor e


desvendar à humanidade uma nova forma de existência fosse
a do poviléu arribado de Al-Andaluz escorraçado pelos
europeus reconquistadores e seus estados – dos nobres,
burgueses e eclesiásticos associados – fosse a da nova
humanidade ali encontrada e ali vivente há pelo menos quinze
mil anos.
Cuba era a pérola cosmopolita do Caribe, o país per
capita o mais rico da região e um dos mais das Américas ex-
coloniais, com suas classes dominantes cultivadas e suas
modernidades capitalistas contemporâneas do estilo ocidental,
em especial daquelas oriundas do gigante imperialista vizinho.
Não casualmente as lutas de classe na ilha haviam adquirido,
desde a independência, um tônus arrebatado. A radical opção
neocolonial pró imperial-norte-americana das classes
capitalistas evidenciou e tornou irrefutável a unidade da
questão nacional, democrática e popular com o anticapi-
talismo. Daí ao socialismo faltava pouco, como de fato
ocorreu, no processo revolucionário, para a perplexidade das
oligarquias nativas e forâneas do capital, inclusive dos mais
antigos expoentes nativos do socialismo organizado. Este,
surpreso e incrédulo com a hegemonia conquistada pelos
jovens revolucionários e sua imprevista opção socialista.
Che Guevara esforça-se ao máximo para inverter o
polo emancipador, no sentido dos trabalhadores, sem,
contudo, cair no mercadismo iugoslavo ou na exaltação
camponesa da revolução chinesa, mais aparentado do
inflexível despojamento dos revolucionários vietnamitas,
espelhados em Hô Chi Min e Giap. O poder dos trabalhadores
deveria projetar-se como capacidade do trabalho consciente,
disciplinado e maximamente produtivo, aliado ao planeja-
mento de forma a este último atender aos desígnios da nova
democracia trabalhadora.
No entanto, entre o desejo prático e suas razões no
sentido de recuperar a centralidade do trabalho emancipado e
a sua teoria, havia um hiato que a história não resolvera. Não
Pensando com Marx (I) | 257

faltou ao Che empenho, persistência, sacrifícios e ousadia,


tampouco palavras. Sua obra econômica e política, mesmo na
versão ainda incompleta, que até nós chegou, assim o atesta.
Não contente em perorar, teorizar e dar seu exemplo pessoal
na solução daquele tema convocou a Cuba toda a
fragmentada família marxista a opinar sobre o assunto, ou
seja, sobre a transição socialista tal como a teoria oficial
assim a chamava, sem que nenhuma luz radical alcançasse
repor em sua plenitude a teoria dos fundadores.
Assim quis a história que a benfazeja temerária
irreverência de Che Guevara, embora apontada no rumo certo,
não pudesse fazer renascer e vingar o novo, a teoria como guia
da transição comunista, entendida a teoria como expressão
continuada do legado dos fundadores, não restando ao
ilustrado revolucionário prático outra alternativa que não
fosse prosseguir sua permanente errância exemplar fazedora
de revoluções. Como anti-Quixote, assim está condenado o
movimento revolucionário dos trabalhadores em sua luta
contra o capital enquanto as condições históricas para
superá-lo ainda não estão dadas, tal como afirmava Marx em
1850 ao término de sua Mensagem do Comitê Central à Liga
dos Comunistas a propósito da luta dos trabalhadores
alemães.
O trabalho de Newton Ferreira da Silva, dissertação de
mestrado que ora toma a forma antiacadêmica de livro é em
alta medida o destrinchar apaixonado, crítico e escrupuloso
dessa herança histórica com o máximo de conhecimento da
obra do Che, como até então ainda não tivéramos. Sua tarefa
foi facilitada pelo forte conhecimento da obra de Marx
acumulado ao longo dos seus anos de formação no nosso
Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos - IBEC, à
qual ele e tantos mais de seus camaradas se dedicaram com
afinco e ainda persistem na empreitada. Não tenha cuidados
quem ousar percorrer as suas páginas, pois estará sendo
levado pelas mãos sérias, jovens e prometedoras desse jovem
cientista, em tudo merecedor da velha glória comunista de
258 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

Santos, das suas lutas proletárias, da Barcelona brasileira, da


cidade vermelha. São Paulo, 24 de novembro de 2012.
Pensando com Marx (I) | 259

11 - Decifrando a esfinge: Che Guevara e a


Economia Política da revolução cubana

I- Sob a óptica da revolução

Esperando, lá no fundo da alma, não se


fundam povos!(Martí)85

Impossível falar sobre o pensamento do Che, sem


antes falarmos sobre a Revolução Cubana. É ela o grande
personagem da história cubana. É nela onde se encontra o
novo e a esperança. Nela, assim como em todas as revoluções
em nossos capitalismos particulares, ocorrem e confundem-se
o tempo, o local, a pátria e a nação. E a nação que se ergue
pela pátria é aquela de seus pobres, humildes,
desesperançados, sofredores dessa ordem secular parida no
ventre colonial.
Em Cuba, essa revolução igualitária em busca da
“república verdadeira”, já vinha sendo cantada por Martí
desde o século XIX, como continuidade da década de vida da
derrotada guerra anticolonial, como “revolução de justiça e de
realidade, para o reconhecimento e prática franca das
liberdades verdadeiras”, pois:

(...) seu direito de homens é o que procuram os cubanos, em


sua independência com alma íntegra de homem. Porque
Cuba, desolada, volta os olhos para nós! Porque as crianças
ensaiam nos troncos dos caminhos a força de seus braços
novos! Porque as guerras estouram, quando causas há para
elas, pela impaciência de um valente ou por um grão de
milho! Porque a alma cubana está se perfilando e já se vêem,
no alvorecer, as massas confusas! Porque o inimigo, menos
surpreendido hoje e menos interessado, não tem na terra as
riquezas que precisou defender da outra vez, nem
perderemos tanto tempo com devaneios provincianos, nem

85 Martí, Jose Jose Martí- Nossa América, SP, Hucitec, 1983, p. 227.
260 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

com disputas de mando, nem com invejas, nem com


esperanças loucas! Porque, fora, temos o amor no coração,
os olhos na costa, a mão na América e a arma no cinto!
Quem não lê tudo isso no ar com letras de luz? E com letras
de luz deve-se ler que não procuramos, neste novo sacrifício,
meras formas, nem a perpetuação da alma colonial em nossa
vida, com novidades de uniforme ianque, mas sim a essência
e a realidade de um país republicano nosso.86

Uma revolução concebida como reconstrução da


pátria, como continuidade da guerra perdida, aquela
verdadeira:

(...) epopeia, o levantamento de todo um povo, o abandono


voluntário da riqueza, a abolição da escravatura em
nosso primeiro momento de liberdade, o incêndio de
nossas cidades com nossas próprias mãos, a criação
de povoados e fábricas nos bosques virgens, o vestir
nossas mulheres com tecidos das árvores, o manter à
distância, em dez anos desta vida, um adversário
poderoso que perdeu duzentos mil homens em mãos
de um pequeno exército de patriotas, sem outra ajuda
que a da natureza!87

Uma revolução já desperta para a emancipação


humana, comprometida com “(...) fazer de cada homem uma
tocha”, aceleradora da história, pois “(...) a maior parte dos
homens passou dormindo pela terra. Comeram e beberam,
mas não tiveram consciência de si próprios”.88
Uma revolução condenada a suprimir a lacuna
civilizacional deixada como herança colonial, consolidada pelo
capitalismo crescido sob essas condições de dilacerantes
assimetrias escravocratas. Uma ruptura histórica que, ao se
por em marcha contra esse capitalismo, em nome da

86 Martí, Jose Jose Martí- Nossa América, SP, Hucitec, 1983, p. 222-223.
87 Idem, p.151(“Vindicação de Cuba”).
88 Ibidem, p. 84 (“Professores ambulantes”).
Pensando com Marx (I) | 261

igualdade, da liberdade e fraternidade, natural e


inexoravelmente expressa as lutas e ideias da esquerda
popular republicana e, por isso, vê-se à esquerda da história e
obrigada a sobreviver afirmando seus ideais socialistas, onde
já se cultivara.
E foi exatamente isso que ocorreu com a revolução
cubana, a qual, de acordo com Ciro Alegria, seu observador
participante:

Hay que verla como un hecho nuevo. Toda revolución es un


proceso de cambio, una ruptura con el pasado. La
Revolución Cubana ha venido a hacer nueva historia en
America Latina, como sólo la han hecho quienes nos dieron
la independencia.89

Uma revolução cujo ideário expunha as entranhas de


sua particularidade:

(…) Várias veces lo ha dicho Fidel Castro:” La Revolución


Cubana no es roja sino verde oliva”. “La Revolución es tan
cubana como nuestras palmas”. Tiene elementos extraídos
tanto de la ideología socialista como de la liberal. Tiene
mucho de democracia y de socialismo.90

Uma revolução que atravessa as formas da política da


ordem e se põe como urgência da guerra contra a miséria e
opressão, a cara desse capitalismo, que nos fez e faz lembrar
que:

Hay momentos en que un pueblo llega a un estado en que


puede votar por un partido, pero no está dispuesto a morir
por ese partido. Había que ver cómo ese mismo pueblo, que
hacía años no estaba dispuesto a hacer nada por nadie,
estaba ahora resuelto a luchar y a morir por un ideal. 91

89 Alegria, Ciro Mucha suerte con harto palo, Bogotá, Oveja negra, 1980,
p. 127.
90 Idem, p.126.
91 Ibidem, p. 124.
262 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

Uma revolução que “(...) llena de una esperanza en


Cuba como jamás se había visto en la historia del país”. Uma
revolução que se havia feito vitoriosa pelas mãos de sua
“honrada pobreza”.92
Uma revolução que não tinha mais ilusões infantis
com o colosso do Norte, de qual dos lados ele estaria quando a
luta pela verdadeira república fosse vitoriosa.

II- A revolução e a nova sociedade

Ahora estamos colocados en una posición en la que somos


mucho más que simples factores de una nación;
constituimos en este momento la esperanza de América
irredenta. Todos los ojos- los de los grandes opresores y de
los esperanzados- están fijos en nosotros. De nuestra
actitud futura que presentemos,
de nuestra capacidad para resolver los múltiplos problemas,
depende en gran medida el desarrollo de los movimientos
populares en América, y cada paso que damos está vigilado
por los ojos omnipresentes del grande acreedor y por los ojos
optimistas de nuestros hermanos de América.93

A questão do capital em Che

“Conhecemos o terreno em que andamos”


(José Martí)94

O pensamento econômico do Che, muito


particularmente quanto à questão da permanência das
categorias do capital na transição ao socialismo, está
determinado, antes de tudo, pela revolução. Ela é quem molda
e permite que ocorra o debate sobre os limites das categorias,

92 idem, ibidem, p. 123.


93 Guevara, Ernesto Che Pasajes de la Guerra Revolucionária, La
Habana, Huracán, 1975, p. 281.
94 Martí, Jose op. cit., p. 235.
Pensando com Marx (I) | 263

ao calor dos debates soviéticos semelhantes e seus


contemporâneos. 95
O debate econômico em Cuba, entre os anos de 1963-
1964, além de sério e original, além de contar com a presença
de eminentes teóricos marxistas, é de extrema atualidade,
dado o processo de involução global das experiências
socialistas contemporâneas.96Nele estão presentes quase
todos os principais personagens vivos e mortos do
pensamento teórico marxista, convocados a decifrar o enigma
socialista e, antes de tudo, do futuro das revoluções
proletárias, todas elas ocorridas fora dos centros capitalistas
mundiais, das potências decisivas do capital. Ele é um
renovado exercício de perplexidade diante das fantásticas e
tão problemáticas portas abertas pela revolução.
Nesse debate, Che propõe-se a responder uma questão
essencialmente crucial e correta, qual seja, como manter uma
linha estratégica de transformação a mais rápida e correta em
direção à sociedade socialista.97
As respostas encontradas por ele estavam em
desacordo (embora não pleno ou absoluto) com a linha teórica
majoritária nos países socialistas, os quais, na ocasião,
colocavam-se questões semelhantes, embora em tom menor
ao da paixão revolucionária do Che.
O primeiro tema, talvez o centro do imbróglio teórico-
prático, é o da repetida excepcionalidade de mais uma
revolução nas periferias capitalistas do mundo.
O segundo, a partir do qual se abria um leque de
questões correlatas, era o de como fazer estas revoluções
aportarem no país socialista do futuro, após travessia que, de
antemão, sabia-se turbulenta e incerta: permaneceriam ou
não as categorias mercantis e qual o sentido da produção e

95 Mandel, Ernest, “O debate econômico em Cuba durante o período


1963-1964”(escrito em 1967), in Che Guevara- textos econômicos, SP,
Edições Populares, 1982, p.167.
96 Mandel, Ernest, op.cit., p.165-171.
97 Guevara, E. Che “A planificação socialista e seu significado”, in Che

Guevara- textos econômicos, op. cit., p.267.


264 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

trocas; quais seriam as relações existentes no período de


transição entre a moral revolucionária e a expansão das
forças produtivas e qual o verdadeiro motor de sua expansão;
qual a importância do planejamento e como, enfim, conduzir a
reprodução social no sentido socialista?
Para esclarecer e responder tais questões foram
trazidos metodicamente à baila os argumentos
contemporâneos e pretéritos de eminentes teóricos de várias
correntes do marxismo. Mas não se tratava de um debate
gratuito, alheio às vicissitudes da revolução. Ao contrário,
nele estavam envolvidos campos teórico-práticos definidos,
comprometidos diretamente com o andamento do processo
revolucionário. O envolvimento teórico direto, por sua vez,
contava com a participação do Che e outros dirigentes
cubanos, além de expoentes teóricos críticos à experiência
soviética de então: Ernest Mandel e Charles Bettelheim. Entre
os participantes indiretos contemporâneos constavam
Liberman e Oscar Lange, além de outros discípulos de
Kantorovitch e Nemtchinov.
Entretanto, o debate fica inconcluso, sem que outros
teóricos pudessem opinar decisivamente. As duas principais
correntes em disputa optam por suspender juízos definitivos e
deixam ao tempo a solução dos temas em disputa. Após um
período digamos, experimental, que vai de 1964 a 1970,
inicia-se a partir de 70 uma sistemática revisão crítica dessa
fase. Essa revisão culminará nas discussões e decisões do I
Congresso do Partido Comunista de Cuba, em 1976, que
adotará, a partir de então, a linha mestra dos países
socialistas, optando, portanto, pela experiência consagrada. 98
A opção recairá sobre uma das correntes em pauta
entre 1963-64, denominada de cálculo econômico, adotada em
substituição da amálgama teórica que de fato imperou após a

98Castro Ruz, Fidel „Informe do Comitê Central do PCC”, in La Unión nos


dió la fuerza, Habana, Departamiento de Orientación Revolucionária del
Comite Central, 1976, p.173-180.
Pensando com Marx (I) | 265

primeira década da revolução. 99A posição defendida por


Guevara, a do sistema orçamentário de financiamento da
economia, nunca, de fato, seria plenamente aplicado. 100
Acreditamos que a questão central, determinante dos
rumos do debate, está contida na discussão sobre a lei do
valor e a permanência das categorias mercantis na sociedade
socialista. A solução destas questões teóricas informará o
debate sobre a planificação e o financiamento da indústria,
assim como as demais questões correlatas de política
econômica.
Antes de mais nada, convém dizer que, para Marx, o
tema da sociedade socialista se encontra imanentemente
relacionado à superação da fase histórica do capital, e,
portanto, ao comunismo. É somente sob esse enfoque que a
fase histórica que medeia a transição ao comunismo pode ser
chamada de socialismo, ou mais propriamente, sociedade
coletivista.101Por sua vez, a condição particular para a
superação do capital está na existência de ” condições
materiais de produção (enquanto) propriedade coletiva dos
próprios trabalhadores”, o que “determinaria, por si só, uma
distribuição dos meios de consumo distinta da atual”. 102
Em outras palavras, para Marx, a superação do capital
pelo trabalho cooperado consciente dos trabalhadores, onde
estes são proprietários de seus meios de produção, configura
o surgimento de uma nova força produtiva do trabalho,
expressa uma nova categoria social, a irrupção da classe
trabalhadora no controle direto de seus meios de existência.

99 Idem, p.164;” Es preciso señalar que el trabajo económico no ocupó el


centro de la atención durante los primeros diez años. En este primer
período de la Revolución, la supervivencia frente a la subversión
imperialista, las agresiones militares y el implacable bloqueo económico,
ocuparan el esfuerzo principal de la nación”, p.78.
100 Che Guevara, Ernesto “O sistema orçamentário de financiamento”, in

Che- textos econômicos, op. cit., p. 183-201.


101 Vide Marx, K. “Critica do Programa de Gotha”, in Marx, Engels Obras

Escolhidas, vol.III, Moscou, Progresso, 1976. Não existe socialismo,


nessa fase, para Marx. Isso, o “socialismo”, não pertence à sua obra.
102 Marx, K. op. cit., p. 16
266 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

Entretanto, no debate dos anos 1960, a questão não


está posta desse modo.
Para Guevara, no período de transição, o caminho
mais rápido e mais consequentemente socialista é visto como
resultado do trabalho consciente dos trabalhadores, os quais,
dinamizados pelo partido de vanguarda e utilizando-se da
planificação, atropelariam as categorias do valor, garantindo,
assim, o caráter socialista do percurso. O trabalho consciente
e o universo das necessidades sociais, exigido para tal, é visto
como peça decisiva.103
No entanto, esse trabalho consciente, expressão de
uma nova moralidade, tem como “motor interno” da “unidade
de produção”, o partido revolucionário. Este, através de seu
exemplo, de sua capacidade e abnegação, faria com que “a
participação nos assuntos econômicos da unidade sejam
parte integrante da vida dos operários, [e assim] vá se
transformando em um hábito insubstituível”. 104A planificação,
por sua vez, se antepõe à lei do valor e, por ser momento
máximo da racionalidade social, expressaria a verdadeira
forma de ser da sociedade socialista. 105E sintetiza:

Para resumir nossas divergências: consideramos a lei do


valor como parcialmente existente, devido aos restos
subsistentes de sociedade mercantil, que se reflete também
no tipo de caminho que se efetua entre o Estado fornecedor e
consumidor; acreditamos que, particularmente em uma
sociedade de comércio externo muito desenvolvido, como a
nossa, a lei do valor em escala internacional deve ser
reconhecida como um fato que rege as transações
comerciais, mesmo dentro do campo socialista e reconhe-
cemos a necessidade de que este comércio passe já para
formas mais elevadas nos países da nova sociedade,
impedindo que aprofundem as diferenças entre países
desenvolvidos e os mais atrasados pela ação do comércio.(...)

103 Guevara, Ernesto Che, op.cit., p.189-190.


104 Idem, p. 193.
105 Ibidem, p. 195.
Pensando com Marx (I) | 267

Negamos a possibilidade de uso consciente da lei do valor,


baseados não na existência de um mercado livre que
expresse automaticamente a contradição entre produtores e
consumidores; negamos a existência da categoria mercadoria
em relação às empresas estatais, e consideramos todos os
estabelecimentos como parte da única grande empresa que é
o Estado (embora, na prática, ainda não seja assim em nosso
país). A lei do valor e o plano são termos ligados por uma
contradição e sua solução; podemos, pois, dizer que a
planificação centralizada é o modo de ser da sociedade
socialista, a categoria que a define e o ponto em que a
consciência do homem consegue, enfim, sintetizar e dirigir a
economia em direção à sua meta: a plena libertação do ser
humano no quadro da sociedade comunista (grifo nosso). 106

Observe-se, que inexistem, nos termos do debate em


questão, aquilo que anteriormente afirmamos, ou seja, as
duas categorias que para Marx eram centrais ao capitalismo e
à transição ao comunismo, ou seja, o capital enquanto forma
de ser, categoria histórica unificadora e matrizadora do
universo categorial da sociedade capitalista e o trabalhador
coletivo, cooperado, consciente e autônomo, proprietário dos
meios de produção.
Guevara não soluciona a questão que deseja
responder, muito embora entenda que a plena vigência dos
estímulos materiais somente recria as categorias do valor,
reforçando-os, bloqueando a transição ao socialismo. Por não
ver no trabalhador coletivo consciente uma nova categoria
social, ela sim a própria definição do socialismo, a transição
pensada navega sem margens e sem objeto, embora firme nas
intenções, em seus objetivos maiores. Estamos ainda nos
marcos do indivíduo, do homem e de sua nova e necessária
moral, permanecemos ainda nos marcos das necessidades do
homem novo e não do trabalhador coletivo consciente como
reitor dos novos tempos. Este, entretanto, só se constitui
enquanto categoria autônoma, força simultaneamente

106 Idem, ibidem, p. 194-195.


268 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

econômica, política, cultural em contraposição ao Estado, com


o qual está e permanecerá em tensão, pois sua função
histórica é emancipá-lo do controle econômico, político,
cultural sobre os homens, ou seja, força social cuja função é
negar o Estado, pois exprime a realização consciente e
autônoma do trabalhador coletivo, dos trabalhadores
decidindo livremente seus destinos. Como a categoria
essencial para a liquidação do capital não é apreendida, as
duas pontas da travessia ficam obscurecidas. Daí a
necessidade de um motor externo aos trabalhadores
compreendidos como massa de indivíduos, a fim de forjar a
dinâmica dos novos tempos, tal como a planificação enquanto
substituto para a vontade coletiva consciente, como se as
necessidades da reprodução social propriamente humanas
fossem diferentes das vontades individuais transformadas em
potência coletiva consciente.
Guevara não resolve a questão, apesar de apontar a
quilha no rumo certo, o que, aliás, não deixa de ser um seu
grande mérito. Mas não consegue escapar da armadilha
mortal que vem tecendo a poderosa teia de impotência dessas
sociedades diante da crise geral do capital, fazendo-as
sucumbir inexoravelmete diante das velhas e novas exigências
da reprodução deste.
Ocorre que o capital não se abole por decreto e isso
está implícito na discussão sobre a lei do valor e a
multiplicação das forças produtivas através do trabalho
consciente. Ocorre que ele está e permanecerá presente em
toda a transição até que o trabalhador coletivo consiga
transformar-se em força produtiva social e humanamente
mais eficaz que o capital. O capital está e estará presente
através de todas as categorias a si subordinadas: salário,
preços, lucro, rentabilidade, juros, etc. Ocorre que se não
vislumbramos o objeto, a categoria social específica para
efetuar a travessia, torna-se impossível a superação do
capital, pois o partido revolucionário e o Estado encontram-se
solidários e solitários em sua impotência diante das
Pensando com Marx (I) | 269

exigências reiteradas de um capital que se reforça através do


estiolamente sistemático, crônico e inexorável das fantásticas
esperanças e potencialidades humanas despertas e postas em
movimento pela revolução.
Como a teoria do socialismo, em suas variantes, não
consegue apreender a superação do capital como sendo a
realização da emancipação humana, as experiências
socialistas contemporâneas não são, de fato, socialistas, mas,
sim, projetos diferenciados de sociedades não-capitalistas (já
que o capital está confinado a não determinar todos os
complexos sociais). Como sabiamente de há muito já nos dizia
a piada russa: o socialismo é a via mais longa ao capitalismo.
Na ausência de categorias sociais cujo desenvolvimento
autônomo condenasse à heteronomia as categorias do capital,
a crise das sociedades não-capitalistas condena-as à descida
ao capitalismo.

III- Marx - O capital e a unidade ontológica do real

“Podem os homens eleger livremente esta ou aquela


forma social? Nada disso...”107

O enfrentamento teórico das questões relativas aos


limites históricos do livre arbítrio humano quanto às formas
sociais de sua existência é tema recorrente em Marx e Engels,
pois expressão central de sua visão da história. Esta é
apreendida como conjunto das relações sociais em
movimento, a conformar um único processo cujo centro
imanente é a produção e reprodução da vida material dos
homens, ou sua expressão, ou seja, “um determinado nível de
desenvolvimento das forças produtivas dos homens”. Estes
limites são estudados, então, como campo das possibilidades
e potencialidades históricas das transformações sociais. Daí,
portanto, a afirmação que nos serve de cabeçalho:

107Marx,Karl “Carta de K. Marx a P.V. Annenkov”, in Karl Marx- coleção


grandes pensadores, São Paulo, Atica, 1984, p. 85.
270 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

“Que é a sociedade, qualquer que seja a sua forma? O


produto da ação recíproca dos homens. Podem os homens
eleger livremente esta ou aquela forma social? Nada disso. A
um determinado nível do desenvolvimento das forças
produtivas dos homens corresponde uma determinada forma
de comércio e consumo. A determinadas fases de desenvol-
vimento da produção, do comércio, do consumo
correspondem determinadas formas de organização social,
uma determinada organização da família, das camadas
sociais ou das classes; em síntese: uma determinada
sociedade civil.108

Desse modo, para Marx, a história não admitiria saltos


mortais. Nenhuma nova forma social se impõe por decreto,
desde que as forças produtivas particulares dessa nova forma
ainda não existam. Impossível, como quiseram e tentaram os
socialistas ingleses do século XIX, desejar abolir o capitalismo
mantendo o capital e todo o universo de suas categorias (o
“socialismo de mercado” dos “adversários proletários dos
economistas-políticos”). Tal como na ilusão de Bray:

Não é o capitalista, mas sim o capital que tem significado


essencial para as operações dos produtores. Entre o capital e
o capitalista existe uma tão grande diferença quanto entre a
carga de um navio e a guia que acompanha essa carga ”. 109

108 Idem, p. 85
109 Bray, J. F. in Marx, K., Teorias da Mais-Valia, T.III, cap. XXI, p.333;
Moskva, Izd. Polititcheskoi. Literaturi, 1978. O trecho completo da
citação é o seguinte: ”Os economistas-políticos e os capitalistas
escreveram e imprimiram muitos livros com o objetivo de induzirem nos
trabalhadores a errônea concepção de que “o lucro do capitalista não
constitui perda para o produtor”. Dizem-nos que o trabalho não pode dar
sequer um passo sem o capital., que o capital é semelhante à pá na mão
do cavador, que o capital é tão necessário à produção quanto o próprio
trabalho...Essa interdependência entre o capital e o trabalho não tem
nada em comum com as relações entre o capitalista e o trabalhador e
não demonstra que o primeiro deve viver às custas do último...Não é o
capitalista, mas sim o capital é quem tem significado essencial para as
operações dos produtores. Entre o capital e o capitalista existe uma tão
grande diferença quanto entre a carga do navio e sua guia, que
acompanha tal carga”. (A citação deste trecho é da edição brasileira do
Pensando com Marx (I) | 271

O pensamento econômico conservador brasileiro e seus


adversários de esquerda assinariam embaixo dessa teoria do
mau capitalista e do bom capital.110

Do mesmo modo, a abolição de tal ou qual forma particular de


manifestação do capital não significa, absolutamente, a
abolição deste. Nesse sentido, novos e absurdos dilemas,
semelhantes aos de Proudhon ou dos socialistas ingleses do
século XIX, surgiriam no século XX: “ou capital ou Estado”,
“livre concorrência ou burocracia”, e, mais modernamente,
“ditadura socialista ou democracia pluralista”.
Todas essas manifestações teóricas tem em comum a
proclamação da suposta possibilidade de ruptura da unidade
histórica do real, assim como de suas determinações. A
transformação social, por um passe de mágica, transitaria a
se adequar ao melhoramento das categorias e passaria a ser
tomada por tal melhoramento. Ou então, a forma particular
de uma categoria - por exemplo, o capital - é decretualmente
abolida, seja na página de um livro ou num documento
estatal. Em virtude disso, supõe-se que, automaticamente,
todo o universo das categorias, ou seja, das relações reais,
transformar-se-ia.
Criticando Proudhon, Marx observa que se o trabalho deixa de
ser mercadoria, então, nas condições do trabalho social
(socializado previamente pelo capital), teremos o “trabalho
livre”. Nele, os trabalhadores serão os proprietários de suas
condições de produção. E prossegue:

Mas, se à semelhança de Proudhon, deseja-se conservar o


trabalho assalariado e, desse modo, os fundamentos do
capital, ao passo que exige-se a eliminação das”cinzas”

Capítulo VI, inédito. São Paulo, Moraes, 1985, p. 66; ela tem vários êrros
de tradução, mereceria uma revisão radical).
110 Vide declarações de Gudin e outros in Lima Filho, Paulo Alves “Crise

geral do capital: incompetência ou lógica perversa?”, Revista Economia e


Sociedade III, vol.3, n. 7, (p. 79) p. 63-90 ,Bragança Paulista, 1985.
272 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

através da negação de uma das formas derivadas do capital-


isso é uma infantillidade.111

Convém notar que, já em 1846, assinalava Marx, a realização,


por Proudhon, da mesma operação relativa à categoria
propriedade.112 Sendo, para Proudhon, a propriedade uma
categoria a-histórica, independente, fica-lhe impossível
explicar o desenvolvimento histórico. Para tal, terá então que
lançar mão de uma ficção para explicá-lo (a “ideia de
igualdade”, à qual tenderiam todas as relações derivadas do
capital). Diz Marx:

Quando estabelece a propriedade como uma relação


independente, o senhor Proudhon comete algo mais que um
mero erro de método: prova, claramente, que não
compreendeu o vínculo que liga todas as formas da produção
burguesa: que não compreendeu o caráter histórico e
transitório das formas da produção, numa época
determinada.113

Ao não compreender essa unidade do real, Proudhon:

(...) Não viu que as categorias econômicas não são mais que
abstrações dessas relações reais, e que somente são
verdades enquanto essas últimas subsistem. Por conse-
guinte, incorre no erro dos economistas burgueses, que
veem, nessas categorias econômicas, leis eternas e não leis
históricas, válidas apenas para certo desenvolvimento histó-
rico, para um determinado desenvolvimento das forças
produtivas. Assim, portanto, em vez de considerar as
categorias político-econômicas como abstrações de relações
sociais reais, transitórias, históricas, o senhor Proudhon,

111 In “Gratuité du Crédit”. Discussion entre M. Fr. Bastiat et M.


Proudhon. Paris, 1850; in Marx, K. Teorias da Mais Valia, T III, Anexo O
rendimento e suas fontes, p. 552, op. cit.
112 Marx, K. Carta a Annenkov, op. cit, p. 89.
113 Idem, p. 89.
Pensando com Marx (I) | 273

levado por uma inversão mística, só vê, nas relações reais,


encarnações dessas abstrações.114

Para superar a propriedade burguesa, portanto, exige-se


superar a fase histórica do capital, categoria central,
determinante das relações reais entre os homens. Isso, por
sua vez, abolirá, automaticamente, todas as categorias
particulares, derivadas, do capital, enquanto relação fundante
da ordem social capitalista. A superação da fase histórica do
capital é, portanto, desalienar a humanidade, emancipar a
humanidade do trabalho enquanto trabalho assalariado,
retirando-lhe “os fundamentos do capital”.
Semelhante à inversão mística de Proudhon, a questão não
está, tampouco, naquilo que os homens pensam. O que
importa são as suas relações reais. Os socialistas ingleses do
século XIX acreditavam que, uma vez compreendidas as
relações sociais, sob a forma da tomada de consciência dos
trabalhadores com respeito à sua situação, então isso
bastaria para as categorias burguesas tomassem um caráter
mais social, não alienado. As categorias, ou seja, as demais
relações sociais realmente existentes, permaneceriam. Elas
seriam eternas e caberia à realidade adequar-se a elas da
melhor forma.
Não se pode, por um puro ato de vontade consciente,
construir uma nova ordem social sem que as bases materiais
desta estejam lançadas ou em vias de surgir, nem tampouco
operar o real como se monta um quebra-cabeças - na
suposição da possibilidade da destruição ideal da unidade
ontológica deste. Marx é explícito quanto a isso:

Mesmo quando uma sociedade descobriu a pista da lei


natural de seu desenvolvimento - e a finalidade última desta
obra é descobrir a lei econômica do movimento da sociedade
moderna, ela não pode saltar nem suprimir por decreto as

114 Ibidem, p. 89-90.


274 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

suas fases naturais de desenvolvimento. Mas ela pode


abreviar e minorar as dores do parto.”115 (grifo nosso)
Relativamente à Alemanha, já em 1844 Marx dizia, na sua
Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel:

Como poderia a Alemanha, em salto mortale, superar não só


as próprias barreiras, mas, também, a das nações modernas,
isto é, as barreiras que na realidade tem de experimentar e
atingir como uma emancipação de suas próprias barreiras
reais? Uma revolução radical só pode ser uma revolução de
necessidades reais, para a qual parecem faltar as condições e
o campo de cultivo.116

Daí que, para ele, de forma natural e necessária, uma


revolução radical, só poderia ocorrer nos polos avançados do
capitalismo e, a partir daí, arrastar empós de si toda a
humanidade. É o que afirmava Marx em 1870, com respeito à
França e Inglaterra:

(...) Ainda que a iniciativa revolucionária venha a partir


provavelmente da França, só a Inglaterra poderá servir de
alavanca a uma revolução seriamente econômica. Efetiva-
mente, é o único país onde já não há grandes massas
camponesas e em que a propriedade fundiária está
concentrada em poucas mãos. É o único país em que a
forma capitalista, isto é, o trabalho combinado em grande
escala sob o domínio dos capitalistas, se apoderou de quase
toda a produção. É o único país em que a grande maioria da
população é composta por operários assalariados. É o único
país em que a luta de classes e a organização da classe
operária através dos sindicatos adquiriu um certo grau de
maturidade e de universalidade.
Por causa de sua dominação sobre o mercado mundial, é o
único país em que cada revolução nos fatos econômicos tem
de reagir imediatamente sobre o resto do mundo. Se o
landlordismo e o capitalismo tem a sua sede clássica neste

115 Marx, K O capital, vol I, T I, p. 13; São Paulo, Victor Civita, 1983.
116 Marx, K. Escritos de Juventude, Lisboa, Ed. 70, 1975, p. 72.
Pensando com Marx (I) | 275

país, em contrapartida, as condições materiais da sua


destruição estão aí também mais maduras.
Com o Conselho Geral colocado como está na posição feliz de
ter a mão diretamente sobre esta grande alavanca da
revolução proletária, que loucura, para não dizer que crime,
seria deixá-la cair apenas nas mãos dos ingleses!
Os ingleses têm toda a matéria necessária para revolução
social. O que lhes falta é o espírito generalizador e a paixão
revolucionária. Somente o Conselho Geral os pode suprir e
acelerar assim o movimento verdadeiramente revolucionário
neste país, e por conseguinte por todo o lado. (...) Não nos
acusam publicamente de termos envenenado e quase extinto
o espírito inglês da classe operária, e de a termos empurrado
para a via do socialismo revolucionário? (...) A Inglaterra não
deve ser tratada como um país como os outros. Deve ser
considerada como a metrópole do capital117

Essas afirmações são condizentes com as afirmações


de Marx em 1850, quando afirmava que o proletariado
avançado, o seu partido, “só poderá chegar ao poder quando
as condições lhe permitirem aplicar suas ideias”.118 Engels,
por sua vez, reafirma isso em 1853:

Os preliminares da revolução proletária, as medidas que nos


preparam o campo de batalha e varrem a cena política- a
república una e indivisível, etc., reinvindicações que nós
tínhamos de afirmar outrora contra pessoas cuja vocação
normal seria realizá-las, ou pelo menos exigi-las-, tudo isso
está agora consagrado, e esses senhores aprenderam-no.
desta vez começaremos imediatamente com o Manifesto,
graças também nomeadamente ao processo de Colônia no

117 Marx, K. “O Conselho Geral ao Conselho Federal da Suíça Romanda”,


in O Partido de Classe, vol. II, Porto, Escorpião, 1975, p. 83-85.
118 Marx, K. O Partido de Classe, tI, p. 107: ”(...). Dedicamo-nos a um

partido que, para seu grande benefício, não pode alcançar ainda o poder.
Se alcançasse o poder, o proletariado não tomaria medidas diretamente
proletárias, mas pequeno-burguesas. O nosso partido só poderá chegar
ao poder quando as condições lhe permitirem aplicar as suas ideias. (...)
A Comuna de Paris demonstra que não é preciso estar no governo para
se fazer alguma coisa” (p. 107-108; negrito nosso).
276 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

qual o comunismo alemão (particularmente na pessoa de


Röser) passou com êxito no seu exame de fim dos estudos
secundários. Tudo isto respeita apenas à teoria. Na prática
seremos levados a louvar e a utilizar medidas radicais sem
nos deixarmos travar por qualquer consideração teórica. E é
mesmo aqui que está o mal, pois tenho muito medo que o
nosso partido, em virtude da indecisão e da moleza de todos
os outros, seja um belo dia forçado a uma função
governamental, a fim de executar, finalmente, apesar de
tudo, as tarefas que não são diretamente nossas, mas são
revolucionárias para o conjunto da história e correspondem
aos interesses especificamente pequeno-burgueses. Ora,
nessa ocasião, ser-se-ia obrigado pelo povo proletário, pelas
suas próprias reinvindicações e planos interpretados mais ou
menos falsamente, sob o impulso de uma luta de partido
mais ou menos apaixonada, a tentar dar saltos procedendo a
experiências comunistas, de que sabemos melhor que
ninguém não ter chegado ainda a hora própria.(...) Se um
país atrasado como a Alemanha, dispondo de um partido
avançado, se encontra arrastado para uma revolução ao lado
de um país avançado como a França, acontecerá
forçosamente, ao primeiro conflito sério e logo que apareça
um perigo real, que o partido avançado ocupará o poder.
Ora, isto seria antes da sua hora normal. No entanto tudo
isto é uma salada, e o melhor é que na previsão de um tal
caso tenhamos já antecipadamente motivado a sua
reabilitação na história pela teoria ao nível da literatura do
nosso partido.119

Nenhum milagre poderia fazer desaparecer a categoria capital


por um passe de mágica, ou por um simples ato de vontade
consciente. A eliminação da alienação nas consciências não é
o mesmo que a eliminação das relações reais que produzem e
reproduzem a alienação. Uma humanidade, de fato, realmente

119 Engels, F. O Partido de Classe, op.cit., Carta a “Joseph Weydemeyer”,


p. 149-150.Estas considerações devem chamar nossa atenção para o que
virá a ser a Revolução Russa e as questões teóricas e práticas dela
derivadas e, todavia, não resolvidas!!!
Pensando com Marx (I) | 277

desalienada, pressupõe, antes de tudo, a abolição do capital,


ou seja, a emancipação do trabalho.
Não bastaria a vontade revolucionária dos proletários alemães
para fazer com que a sociedade comunista fosse alcançada,
muito embora, nas condições supostas por Engels, fosse
igualmente impossível furtar-se à revolução. As revoluções
desse tipo realizariam as tarefas não-propriamente
proletárias, que corresponderiam “aos interesses
especificamente pequeno-burgueses”, já que estes seriam,
naturalmente, a enorme maioria da população.

V- Pelos caminhos das repúblicas – os duros caminhos do


capital
(...) aqueles [povos] menos favorecidos pela história,
sobem em lances heróicos pelos caminhos das
repúblicas” (Jose Martí)120

(...) Os povos devem ter um pelourinho para aqueles


que o incitam a ódios inúteis; e outro para aqueles
que não lhes dizem a verdade a tempo.121

Esse é, em sua essência, o universo prático das


revoluções proletárias do século XX, ocorridas em países de
capitalismo tardio ou por via colonial. 122 Elas tiveram que
criar as bases materiais para a produção mecanizada
moderna, resolver as tarefas históricas não realizadas pelas
burguesias nativas.
Essas revoluções simplesmente não podem abolir o
capital. Daí a manutenção das formas particulares de sua
existência: o salário, a mercadoria, o lucro, o juro (correntes
para os depósitos na caixa econômica), a propriedade estatal

120 Martí, Jose Jose Martí- Nossa América. São Paulo: Hucitec, 1983, p.
201.
121 Idem, p. 200.
122 Contemporaneamente, decidi usar as categorias revolução burguesa

conservadora e radical, para evidenciar sua particularidade histórica. Me


parecem formas mais fecundas de proceder à análise desses processos
históricos.
278 | P A U L O A L V E S D E L I M A F I L H O

dos meios de produção e vida, assim como as formas jurídicas


e políticas (Estado, etc). Onde a propriedade estatal se
apresenta como capital diretamente social, não como capital
privado. Como afirma Marx:

O capital, que em si repousa sobre um modo de produção e


pressupõe uma concentração social de meios de produção e
(da) força de trabalho, recebe aqui diretamente a forma de
capital social (capital de indivíduos diretamente associados)
em antítese ao capital privado, e suas empresas se
apresentam como empresas sociais em antítese a empresas
privadas. É a abolição do capital como propriedade privada,
dentro dos limites do próprio modo de produção
capitalista.123

Este, assim, enfrenta-se com a massa dos assalariados


como ela se lhe apresenta: trabalhador coletivo (produtivo ou
não). As demais formas do capital estão abolidas e algumas de
suas funções (o juro, p. ex.) são, na realidade, apêndice desse
capital produtivo diretamente social.
Tal capital, como não poderia deixar de ser, na prática,
enquanto proprietário coletivo, universal, das condições de
produção e vida dos trabalhadores assalariados, é uma
propriedade alheia, estranha ao trabalho assalariado.
Teoricamente, porém, tentou-se durante várias décadas
empreender a missão impossível: acredita o socialismo vulgar
que por um passe de mágica, o estabelecimento da
propriedade estatal sobre os meios de produção eliminaria, no
ato, a categoria capital, muito embora as categorias básicas
do capital hajam permanecido.
Como já vimos, já em 1846 Marx observava questão
teórica semelhante, relativa à categoria propriedade em
Proudhon. E não se cansa de reiterar, ao longo de toda a sua
obra, sobre o vínculo universal das categorias, entre ”todas as
formas da produção burguesa”, sob a égide de uma

123 Marx, K. O Capital, t III, cap. XXVII, p. 332, op. cit.


Pensando com Marx (I) | 279

determinação central, de uma relação organizadora do real, o


capital.
Para o futuro do Brasil, de Cuba e da nação proletária
mundial, gostaria que nos repetíssemos nas palavras de
Martí:

O que é, pois, que devemos temer? O declínio de nosso


entusiasmo, o ilusório de nossa fé, o escasso número dos
incansáveis, a desordem de nossas esperanças? Pois eu olho
esta sala e sinto a terra firme e estável sob meus pés e digo: -
“Mentem!” E olho meu coração, que não é mais que um
coração cubano, e digo: ”Mentem!”.124

São Paulo, 2001.

Referências

Martí, Jose Jose Martí- Nossa América. São Paulo: Hicitec,


1983,
Alegria, Ciro Mucha suerte con harto palo, Bogotá, Oveja
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