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cabo das tormentas

e das bonanças

antonia costa
índice

cabo das bonanças e das tormentas


tormentas
bonanças
o jasmim
porque não arrumar estantes e livros
quando como mamão
cachorros que passeiam com seus donos
“vaiseille”
ao sair do apartamento da rui barbosa
na calçada da casa da minha mãe
lembrança de sonho
mousse de chocolate
um, dois, três, .. , dezenove, vinte
fotográficas saudades
quatro filhos
a mesa de trabalho
o que fazer no caso de incêndio
das pequenas perdas
outras bonanças
qual é o cheiro que te seduz?
meu silêncio da manhã
encolhimento
infância 1 – o caminho do sítio
infância 2 – ainda o sítio
infância 3 – retalhos
infância 4 – condessa de ségur
infância 5 – o ferro à carvão
infância 6 – feliz
figas da bahia
afogamento
barbantes e linhas
astenia
viagem
partida
madrid
granada, alambra e uma lista
óbidos
áustria
dakar, senegal
ilha de gorée
dakar e o pano
lisboa 1
lisboa 2
lisboa 3
a casa vermelha

dispersos
um grito silencioso me fura o tímpano
livro de autoajuda
maktub
meus pais e a dor
a pedra de minha mãe
pietá
felipe
as perdas impossíveis
precisão
não ouço mais os meninos das guerras
metamorfose
“My rapist asked me to pray for him; I did what it took to stay
alive”
cabo
das tormentas e
das bonanças
tormentas

tormentas são pequenos pedaços que não se apagam


o medo , a saudade
lembro do feijão que fiz num sábado há quase 16 anos
lembro do sabor, entende?

tormentas, são pequenas imagens que ficam


areia entre a pálpebra e o olho
deitada no sofá da sala da minha mãe tentando entender
como tinha acontecido

tormentas, são os ciscos nas imagens


ovos de páscoa, sorrisos condescendentes
e uma noite de sábado para domingo

bonanças

bonanças, são cores pastéis no meio da manhã colorida


é casa arrumada e menino banhado
é casa desarrumada e menino comendo brigadeiro e pipoca
é minimalismo pessoal

bonanças, são lembranças do pequeno


carregado nos ombros do mais velho
dos meninos falando sem fôlego
de porta quebrada em pontapé
do olho esbugalhado
do cheiro de pão frito e chocolate quente
do cheiro de mão de mãe no meu cabelo
do vestido novo que era branco e vermelho
do cheiro da água do mar
da cor da água do rio
das palavras
do silêncio 
o jasmim

meu pé de jasmim
não cresce
nem tem muitas folhas
de vez em quando no entanto
se enche de flores
flores com cheiro de infância
e cheiro de minha mãe

então
colho uma flor,
só uma
e coloco no presépio
como ela fazia

porque não arrumar estantes e livros

as estantes do sítio, do lado da porta, tinham os livros de aven-


tura, moby dick, o último dos moicanos e a pequena casa na
campina, e os de criança, a borboleta azul, xisto. depois passava
para a estante do quarto e que tinham os de ficção científica e
os mistérios magazines, que me deixavam com medo das poças
de sangue e das facas. e os livros em inglês e os em francês e os
de poesia e os pesados e o aurélio (para jogar palavras cruza-
das)
depois passava para as pilhas de revistas, as pilhas de jornais.

e quando parecia que tinha acabado tinha as pilhas de lençóis,


as pilhas de pratos....

quando como mamão

todos têm o gosto do mamão no hotel em São Paulo


e outra vez uma nova casa

o quarto de costura
minha mãe tentando me ensinar
com a agulha na mão

depois ainda no olhar


andar para a escola fingindo que dirijo
de cabeça baixa ultrapassando as pessoas

e o colégio enorme e a sensação,


que já vinha de antes
da certeza de não pertencimento

os cachorros que passeiam com seus donos

tinha o pepe
tinha o pique

eles eram grandes e pretos


e a maria aurora passava a mão no pelo deles

e sorria

eles não entravam dentro de casa


a gente não passeava eles
eles não eram de estimação

eles eram nossos cachorros


e a minha irmã gostava muito deles

“vaisseille”

lavo a louça
depois dos pratos
passo a esponja com sabão na faca
a grande e comum faca de cozinha
e rio sozinha
todas as vezes
porque vejo
a imagem da atriz
lavando a faca suja do sangue
do homem que havia matado

não sei se é meu instinto assassino


ou se é apenas o gesto

ao sair do apartamento da rui barbosa

abro a porta pesada do elevador


desço a escada segurando o corrimão de ferro
chego no imenso portão também de ferro
e paro
daqui
voltei um dia
porque entre as pernas escorria
o filho que não nasceu
e permaneceu
a cicatriz
(pequena, interna, sutil mesmo)
da perda
na calçada da casa da minha mãe

logo depois da banca


um bueiro
uma tampa rala de metal
na pedra portuguesa desenhada
depois da árvore na rua
com falsos ares de europa

e sinto na minha mão


a sua mão pequena caindo
e puxando o corpo no ar
daquela vez, eu estava ali
mas não da vez
em que poderia tê-lo salvo

lembrança de sonho

sonho com guaraná - do pi


sonho com cheiro de quente – bolas de Berlim
sonho com doce de leite - do lucas
sonho de infância

sonho da padaria
bem lisboeta
na volta da casa
sujando a cara de açúcar
como faço até hoje

mousse de chocolate

aprendi a minha incompetência


ao fazer uma mousse de chocolate
em que as gemas misturadas
cheiravam a ovo cru
e todos a dizerem
“ah, que delícia,
você é tão prendada”

nós adultos somos descaradamente


enganadores e aduladores

um, dois, três, ... dezenove, vinte

um, dois, três, ... dezenove, vinte


um, dois, três, ... dezenove, vinte
na frente do espelho rio sozinha
todo dia
porque não sei se sou eu escovando os dentes
seguindo estritamente as ordens do dentista
ou o personagem do filme
espalhando números pelo espelho


fotográficas saudades

olhando meu filho na foto


me percebo descarnada
apenas barbantes me amarram à vida
e me enganam dizendo que é só um sonho
e que vou acordar

quatro filhos

o quarto grande
a janela grande
as paredes verdes claras
as portas brancas
ouvia o silêncio

algaravia ao redor e
uma solidão estranhamente concreta
por quatro vezes se repete

o quarto grande
a janela grande
as paredes verdes claras
as portas brancas
ouvia o silêncio

algaravia ao redor
uma solidão que se desfaz
com o filho nos braços

a mesa de trabalho

tive uma escrivaninha


com oito pequenas gavetas
e uma mesa que dobrava e abria

nas gavetas guardava a vida


na mesa escrevia sonhos

o que fazer no caso de incêndio

não é permitida a permanência no local,


ainda existe risco de incêndio.

salvemos rapidamente
nossos mais caros pertences
e levamos:

felipe seus iogurtes e danoninhos,


lucas, os ursinhos num guarda-chuva de batman
e uma bolsa de carrinhos,
tiago numa fronha (a minha não pode)
todos os livros que conseguiu pegar
antonia, todas as bonecas
que pôde abraçar,
e eu,
eu levei o bolo de chocolate.

das pequenas perdas

o anel que tu me destes


o xale da minha mãe
o livro que me ensinou
(talvez não conte, ele dizia que devíamos queimá-lo)
o chapéu panamá

as datas, os prazos, os dinheiros

são pequenas
não deixam cicatrizes

apenas um gosto por vezes amargo


por vezes só de saudade

outras bonanças

maravilhamento
papel branco, tinta azul
e o rebuçado que derretia na boca

descobrimento
por debaixo do corrimão
eu brincava de passar
e descobria o mundo

deslumbramento
tocava na mão
de quem amava
e sorrir pra tudo

aldrabas, potoca, escaravelhos miúdos, lavadeiras e libélulas


porque
tudo é
palavra
e coisa


qual é o cheiro que te seduz?

adoro cheiro de éter


dizem que é uma droga poderosa

detesto cheiro de cabeleireiro


dizem que é para embelezar

meu silêncio da manhã

o claustro silencioso me abriga


o sol ainda não acordou
movo devagar meus passos
perpetuo o silencio

oro ou respiro bem devagar

agoo a planta
cuido da roupa,
do chão
tomo café
tudo em silêncio

esse silêncio
é o meu abrigo

encolhimento

detesto coisas que encolhem


pessoas, ideias e roupas na máquina

detesto não ter mais a capacidade


de me esvair em choro

infância 1 – o caminho do sítio

da casa do sítio tinha um caminho até a piscina


caminho de terra que cabia um adulto e duas crianças
de um lado a gente via embaixo o campo de jogar vôlei
do outro tinha um barranco e o mato
ele era longo pras minhas pernas curtas
depois continuou longo pras pernas curtas de meus filhos

quando pediam pra pegar alguma coisa na casa


ele era mais comprido ainda
e tinha flor , tinha flor vermelha que chamava bico de papa-
gaio,
tinha flor azul e tinha as coloridas

no meio do caminho tinha um tronco de árvore para a gente


descansar
era um caminho marrom e verde
que me abrigava, que me escondia e que me dava medo
e que me levava à água fria da piscina e o mergulho
e ao abrigo quente da casa limpa

vivo assim
entre o mergulho no ar e na água gelada
e a casa limpa que me abriga 
infância 2 – ainda o sítio

já nos esquecemos das portas e das janelas e eu prendia as


moscas entre o vidro e a madeira e esperava pra ver quando
morriam, mas demorava e enfiar os pés nos sapatos de manhã
pulavam as pererecas e elas eram rápidas e me assustavam meu
cobertor era vermelho com a bainha amarela, mas eu preferia
o cor de rosa com a barra azul clara, gostava de cores clarinhas,
vermelho era muito de menina, na verdade preferia o azul de
menino. as colchas de nossas camas eram azuis e foram fican-
do cinzas de uma fazenda áspera e nelas em fita amarela era
costurado nossos nomes e tudo isso se misturava ao cheiro
do café coado bem cedinho. tinha dias que ia com meu tio e
éramos só nós dois no silencio da casa. cheiro de carvão quei-
mado no ferro de passar. cheiro de terra molhada, de pelo de
cavalo molhado. o prato de sopa, o leite e os pedaços de pão
com açúcar e manteiga. o milho no pé. a cana cortada do pé
e passada no moedor, caldo de cana. cheiros, cheiros, o moço
tinha razão, sobram os cheiros.

infância3 – retalhos

acho que o vestido era vermelho e branco


e brincava de bola com os meninos.

os anéis nos dedos


eram cheios de símbolos
cores e formas.

os cachos da menina
eram dourados e preenchiam
de felicidade os olhos grandes

as flores azuis grudam


nas orelhas e fazem
lindos brincos de princesa encantada

no andar de cima tinha


uma biblioteca cheia
de livros e muito escura.

o balanço era empurrado


tão alto que batia
com os pés no céu

o banho de mangueira nas bacias,


uma azul, a outra rosa
no jardim de muitas flores.

infância 4 – condessa de ségur

a poltrona grandona,
era verde ou talvez, marrom
me aconchegava
pra longe de tudo

escorrego na poltrona
ganho picolés dos meus irmãos
ganho suspiro da minha mãe

o lenço dobrado cuidadosamente


o chocolate pedido e sempre recebido
o chão do pátio lavado e as rolinhas fugindo
o som do rosto da minha mãe passando

e a algaravia de meninos e gente ao redor


que não me interessava nem um pouco

nas outras horas inventava deveres de casa


gosto de inventar deveres e jogos no papel
complexo de menina exemplar
(vide condessa de ségur)
demoraram a perceber
que não era só tristeza

e durante aqueles dias

gozei do privilégio de ser cuidada


e hoje fico agoniada até quando me trazem um copo d’água

infância 5 – o ferro à carvão

a boca do ferro abre


e engole
as pedras em brasa

o cheiro da roupa passada


e do carvão esquentando o ferro

a lembrança boa
do cheiro bom
do ferro engolindo a brasa e deslizando
pela roupa

o resto
a bacia de metal
as mulheres batendo a roupa molhada na pedra
o cansaço
todo o resto

literatura

infância 6 – feliz

barro escorrendo entre os dedos


correndo no cavalo sem sela
mãos pequenas segurando a crina

leite em pó misturado com chocolate e gotas de água


frutas e revistas com capas que me davam medo

de cima da árvore
tudo era longe ou perto
e eu invisível

minha mãe ao longe,


meu pai mais ainda
e os outros nem existiam

em cima da árvore
a vida ainda é a infância

figas da bahia

não são figas da bahia,


é a mão da minha irmã
dedo entre os dedos
na pele fina

às vezes nossos cabelos se tocavam


nossos rostos se tocavam
era bom comer quando ela comia
bom sentar na sua cadeira de palhinha

saudades

afogamento

me afogo em minha memória


só sei falar de mim mesma

e ao escrever
única saída
me afundo
mais ainda na lembrança

barbantes e linhas

costuro a vida
com pedaços de barbantes
ou fitas coloridas
costuro com linha 10
ou com fios dos cabelos

os pedaços de alegria
juntos aos das tristezas
os espaços de agonia
aos de medo e de incerteza

alguns na pressa,
são costurados com cuspe
outros bordados
com linhas de seda

se se rasgam
são cerzidos

vida tecido um pouco esgarçado


ardendo na pele de manhã

astenia – definição

não conseguir segurar seu bebê tão pequeno nos braços

não tenho mais força


o seu peso era leve, muito leve
e a minha força era tão pouca
que meu braço doía ao te carregar

não tenho mais força


quanto ainda falta andar pra chegar em casa
e a sacola besta do mercado
corta a mão
e o braço e o corpo

não tenho mais força


o dia amanhece
o olho, a pele, o braço

não quero mais,


não quero mais nada

viagem

a partida

na verdade, em verdade
estava me pondo à prova

e sim,
minhas mãos suam frio
meu estômago fecha
mas estou aqui

já estou no ar

madri

estranha
séria e absolutamente ridícula
fala alto
se agita
não me deixa pensar
a igreja presente
a nobreza presente
a mendiga presente

a poeira
o sol

nove fora
sobram
guernica e as meninas
e os bocadillos de jamon
e a vida entre beijos na estação a qualquer hora

nenhuma suavidade

ando
eu e a menina pela mão indo pra escola
eu e os que correm porque é importante correr
eu e os cachorros nas coleiras

ando nas ruas de qualquer cidade


mais desencantada, e menos severa
uma velha dama triste e cansada
assistem uma tv almodovariana
comem doces com gosto de padaria da minha rua
e até conversam, falando alto, muito alto
mas o el greco
meu pai, minha mãe
e o frangelico anunciando à senhora

mas as meninas
seu Foucault

cheguei por um mar manso de morros meio verdes, meio


marrons
ali no trem na chegada e na saída
me repetiam sem parar
ligero de equipaje
io voy ligero de equipaje
ligero de equipaje

igrejas, igrejas, igrejas


palácios, palácios, palácios
paredes altas de tijolo barro
com o barulho do pecado e da punição
ou o silêncio
com o barulho do orgulho e do poder
ou do medo

e as vírgulas
a igreja da cientologia e sua linda vitrine
e muitos museos del jamon
para realmente sentir prazer


granada alhambra e uma lista

1. ao chegar em granada vi um cego andando com seu


cachorro, não era triste, nem o cachorro nem seu dono
2. a beleza é epifania, o mar me invade o olho vendo as
rendas na pedra
3. e os azulejos, azulejos e a geometria que um dia
menina descobri ao traçar com compasso linhas que se
encontravam
4. fizeram o céu pra gente morar no alto do morro
5. e os jardins, meus deus! os jardins
6. um mundo de gente faz barulho e se mexe ao meu redor,
só vejo a pedra e as plantas
7. de vez em quando, um menino homem igual ao felipe ou
os gafanhotos gentes vorazes em demasia, me devolvem ao
barro
8. a princesa árabe muito chique visitava o palácio el
generalife, não sabia se era ironia ou só turismo
9. as salas, os jardins, as águas, os jardins e as montanhas
10. tem de se respirar em profundo silêncio
11. de volta à cidade lembro da brincadeira de criança, em cada
quarto tem um canto, cada canto... aqui, cada esquina tem
uma praça, e me perco
12. no café tem uma enorme boia de flamingo e servem tapas
como em toda a parte
13. tem um mercado árabe que tinha deixado de ser árabe e
que volta a ser árabe
14. tem pátios de mosteiros e balcões nas janelas
15. tem uma lojinha pequena só de azeite outra só de leque
outra só de facas e muitas de roupas de casamento, as
pessoas devem se casar muito por aqui
16. tem coisas de cidade grande: bibliotecas, faculdades, jardim
botânico
17. tem cabelereiros, muitas peluquerias, inclusive o que tirou o
primeiro lugar no concurso mundial de penteados
18. tem um noel rosa sem música lendo o jornal na praça e
crianças deitadas no chão jogando bola de gude ou três
marias
19. tem passarinho acordando o dia e fazendo tanto barulho
que assusta
20. tem sol, tem sol e tem vento e sorvete na praça
21. e quando estiver cansada, daquele jeito de cansada
22. subirei a ladeira e me sentarei nos jardins, ou nos pátios de
alhambra

óbidos

proporção
refazer
linhas
luz
vento
céu
silêncio
cheiro
branco
e um pouco de azul e amarelo

alguma coisa do resto


do que fui ou sou

alguma poeira minha


ficou aqui
continuava ali

talvez ali
fosse o meu eterno

áustria

a meus irmãos isaias e clarissa

suava frio sem saber se sabia ainda nosso caminho


e sabia todos os passos

frankie e quem mesmo?


esquecemos nossas escovas de dentes
andei entre árvores desconhecidas
e vocês me apresentaram
florestas de joão e maria
campos de noviça rebelde

viena?
fiz as pazes
ela me disse que pode existir
um junto,
um igual,
um gente

andam de bicicleta sem capacete


tomam sorvete
e fumam

o mumok
o conjunto habitacional karl Marx
o hospital e hospício e a sinagoga

a sua escola de música


a sua sala de descobertas

as pessoas indo aos concertos


mais chadors do que no Senegal
um enorme jardim de rosas
as casas de vinho que só serviam vinho
já que se servissem comida teriam de ser restaurantes

dessa vez,
viena era gente 
dakar, senegal

o avião parava ali antes de ir pra europa


e eu sonhava com alguma coisa
que tinha caído da minha bolsa de criança

não, não vi o deserto


a cidade é linda
comemos peixes e camarões
nossos pais teriam adorado

a fila do pão na boulangerie


dava voltas
porque era ramadan
as confeitarias estavam cheias
de lindos doces franceses e enfeitados
era ramadan
nos restaurantes nos perguntavam sempre
se queríamos o cardápio de quebra do jejum
do ramadan

afora isso
não vimos nem xadors nems hijabs
e muito menos burkas
mas vimos pedintes e mendigos
era ramadan
nos contaram até de mendigos milionários

o pátio do liceu francês


era de terra batida
sem árvores quase
mas cheio de gente

a biblioteca da universidade
era grande
cheia de gente
alguns dormiam
(ainda era ramadam)
outros liam

ganhamos de presente do rapaz


que servia nossa mesa
uns xales lindos
e prometemos que continuaremos
a nos falar

a editora nos fundos da livraria


os panos no mercado
os ônibus coloridos
os táxis caindo aos pedaços

a casa de senghor
o baobá da casa de senghor

trouxe pra casa dois baobás


um deixei com meu irmão em viena]
o outro está aqui plantado
na minha varanda

um baobá de dakar no Senegal


colonizou minha casa

ilha de gorée

o porto da tristeza
os canhões de vichy
a pobreza

e a igreja onde o papa


como o guia explicou
rezou para os muçulmanos
já que quase não tinha cristãos
e a missa era bonita
dakar e o pano

dizem que o encanto se faz nos sorrisos


toda vez que pego o pano me lembro do Senegal
dizem que os gestos são as pessoas
toda vez que vejo minhas mãos apertadas me lembro de minha
mãe


lisboa – 1

saltei na estação errada


saltei no ponto errado
peguei o ônibus errado

e estava sempre certo

só um dia
que não lhe encontrei

e tive medo de lhe perder


pra sempre
lisboa – 2

chego de uma pracinha


comemoram santo antonio

ruas, calçadas, janelas


vinho, farófias, chouriço

velho dançando sozinho


criança brincando e correndo

sardinhas fritas e bandeirolas

lista de palavras no campo semântico


de um sorriso encabulado
me deito:
o tempo volta pra trás, sim
lisboa – 3

lisboa tem mais que sete colinas

escadas, ladeiras, escadas nas calçadas


elevadores, funiculares, bondes

azulejos
igrejas
pão e azeite

as paredes brancas e o céu azul


dizem que os cineastas e fotógrafos
sonham com essa luz
tanto me faz
sei que subindo e descendo
estou sempre na minha rua 
na casa vermelha

na casa vermelha
tem uma mulher que pinta

como se sempre visse por trás dos quadros


o rosto da mulher

as histórias recontadas nos quadros


as de criança e as de gente grande
as de verdade e as de sonho
as tristes e as com esperança

mas atrás vejo a mulher

o painel de alcácer quibir


me leva pela mão a um d sebastião
menino e sangrando

como só uma mulher contaria

a força sangrando de uma mulher que pinta



dispersos

um grito silencioso que me fura o tímpano

princípio um, não pode ter guerra


princípio dois, elas existem
princípio três, não é permitida ingenuidade

os meninos são ninguém desde que nascem:


frutos dos estupros
enquanto arma de guerra
nascem com uma arma na mão
e um motivo intentado nos olhos
fogem, fogem e fogem dos machados,
das balas, dos homens
cuidam dos que sobraram,
se abrigam como podem
morrem em família
morrem brincando,
morrem na escola

tanto faz

não podem morrer pela violência nossa


não podem morrer pela loucura nossa
não podem ser mutiladas, estropiadas, estripadas,
pela nossa omissão, pela nossa assepsia
livro de autoajuda

primeiro. gostar de você, seja você quem for.


segundo. fazer o que se gosta, fazer o que não se gosta, inven-
tar o prazer.
terceiro. mergulhar mansamente e descobrir o conforto de se
ficar só.
quarto. viver com intensidade
quinto. viver sem perceber nada.
sexto. andar de cabeça erguida, peito aberto e sobretudo nua.
sétimo. ler, rabiscar, escrever, ouvir música tudo randomica-
mente e sem objetivo.
oitavo. ter pouco, carregar menos ainda.
nono. ouvir o outro ou talvez os outros
décimo. não ter medo da morte, e sentir até o osso todas as
perdas.

maktub

quando era menina


tive alguns pensamentos filosóficos
e tentei entender:
casas feias
o que se vê
o desejo da morte

à primeira
responderam que controlam como construir as casas,
mas que é difícil determinar o que é uma casa feia
portanto não responderam

à segunda-feira
disseram que o que se vê é definido por acordo comum
o que fez com que acreditasse que com a minha fala poderia
sonhar
o que talvez seja uma falácia

e por último,
resolvi não ouvir as respostas
e experimentar a prática
desejei a morte
e descobri que maktub
ela só acontece quando está escrito

meus pais e a dor

meu pai disse à ela:


não vou mais chorar

em presença da morte chorastes?

então,
ele levantou a cabeça

e ela
calada
continuou carregando
o estandarte da dor

a pedra de minha mãe
(esboço de conto ou de carta)

a gente andava no parque, cedinho, tinha de ser cedinho por


causa do calor, e conversava e ria. aí, ela parava na pedra, se
encostava, enxugava sutilmente o rosto, tirava suavemente o
boné, descansava a mão com o boné nas pernas, e eu dizia,
ando mais um pouco e já volto, e então continuávamos o pas-
seio.
a gente gostava de olhar as plantas, gosto de saber que planta
que estou vendo, ela sabia todas as plantas, ou eu achava que
ela sabia, tanto faz.
um dia peguei um galho da aroeira, pra mostrar o poivre rose,
que as pessoas compram. outro dia indo pro metrô tinha um
pé lindo de aroeira.
gosto dessa intimidade com as plantas, apesar de matar com
facilidade as que planto;
tinham as pessoas também, o censo crítico-estético-filosófico
reclamando da roupa mal ajambrada ou daquele ar de madame
de sévigné, em pleno século XXI.
era um passeio, exercício matinal de carinho.

pietá

pietá
não a de el Greco ou a de Michelangelo
mas minha mãe segurando o filho morto

pietá
não a de rouault não a de delacroix
mas minha mãe com sua filha no colo

pietá
nada de tintas, papéis, mármores

apenas eu e minha mãe abraçadas


chorando nossos mortos

felipe,

faz quanto tempo?


hoje acordei com o barulho da queda
tento acreditar que é pesadelo, repito incessantemente para
mim.
acordo lentamente, tentando manter o sonho real
mas percebo aos poucos que
que a minha vida é essa traçada
e que tenho de continuar
existe tanta coisa por aí, sol, flor, passarinho, nuvem
ainda não consigo pensar nas suas coisas batatas, pipocas,
novelas
mas me lembro com alegria de você dançando o Claudinho e
Bochecha
e sorrio

felipe saudades de você


as perdas impossíveis

quando eu perdi meu filho


era a carne rasgada por dentro
aborto indesejado me sangrando

agora vou perdendo minha mãe


vejo ela sofrendo
se rompe a última camada
que me protegia na vida
dilaceram-se minhas certezas
e desfazem-se os laços

já não quero mais irmãos ou irmãs


já não quero vê-la
e me volta
mais uma vez
o medo da vida

precisão

os momentos dos encantos


definitivos do amor,
deveriam ter a precisão
técnica dos computadores,
mas não, são atrapalhados
como bebês engatinhando.

não ouço mais os meninos das guerras

pais à procura de filhos,


crianças à procura de mães,
primos pensando em amigos,
amigos desesperados.
mas tudo acontece tão longe.
os jornais falam bem baixo,
os corpos ainda estão quentes,
as dores enlouquecem.
mas é tudo tão distante.
que alívio, que angústia, não tocar nessas crianças completa-
mente desamparadas.
enquanto isso os homens, (pais, primos, irmãos?) perpetuam a
guerra.

metamorfose

dilacerante metamorfose.
metamorfose
formas além de mim.
estado larval,
branco descamado.
sai a casca seca
a gosma continua em mim,
desnorteada, faminta.
dilacerante fome,
preciso de ti,
és o único norte
e estou sem rumo.
todos os meus rumos
já foram esclarecidos,
determinados, estabelecidos
e assim sendo estou sem norte.
estado larval,
preciso desesperadamente de ti.
ao acordar
os dias são claros demais,
em dezembro, o céu parece abril
é azul da cor do manto da santa.
a paz que vislumbro
é manchada de sangue,
de desejo, de paixão.
um encontro casual
que já acontecera antes,
preciso como louca desse alimento.
tudo é definitivo,
os sonhos, o medo, os desejos.
sonho a traição,
coração dilacerado,
paixão descompassada.
estado de metamorfose,
fome dilacerante,
loucura, beleza. 
“My rapist asked me to pray for him; I did what it took to
stay alive” (lido numa notícia de jornal)

a cada vez que acham que é pra chamar atenção


a cada vez que não entendem o porquê
a cada vez que acham que são monstros
a cada vez que acham que não é deles a culpa
a cada vez que não se percebe a repetição
a cada vez que não se pune
a cada vez que se calam

a cada vez

vou rezar por eles para continuar viva.

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