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e das bonanças
antonia costa
índice
dispersos
um grito silencioso me fura o tímpano
livro de autoajuda
maktub
meus pais e a dor
a pedra de minha mãe
pietá
felipe
as perdas impossíveis
precisão
não ouço mais os meninos das guerras
metamorfose
“My rapist asked me to pray for him; I did what it took to stay
alive”
cabo
das tormentas e
das bonanças
tormentas
meu pé de jasmim
não cresce
nem tem muitas folhas
de vez em quando no entanto
se enche de flores
flores com cheiro de infância
e cheiro de minha mãe
então
colho uma flor,
só uma
e coloco no presépio
como ela fazia
porque não arrumar estantes e livros
o quarto de costura
minha mãe tentando me ensinar
com a agulha na mão
tinha o pepe
tinha o pique
e sorria
lavo a louça
depois dos pratos
passo a esponja com sabão na faca
a grande e comum faca de cozinha
e rio sozinha
todas as vezes
porque vejo
a imagem da atriz
lavando a faca suja do sangue
do homem que havia matado
sonho da padaria
bem lisboeta
na volta da casa
sujando a cara de açúcar
como faço até hoje
mousse de chocolate
fotográficas saudades
o quarto grande
a janela grande
as paredes verdes claras
as portas brancas
ouvia o silêncio
algaravia ao redor e
uma solidão estranhamente concreta
por quatro vezes se repete
o quarto grande
a janela grande
as paredes verdes claras
as portas brancas
ouvia o silêncio
algaravia ao redor
uma solidão que se desfaz
com o filho nos braços
a mesa de trabalho
salvemos rapidamente
nossos mais caros pertences
e levamos:
são pequenas
não deixam cicatrizes
maravilhamento
papel branco, tinta azul
e o rebuçado que derretia na boca
descobrimento
por debaixo do corrimão
eu brincava de passar
e descobria o mundo
deslumbramento
tocava na mão
de quem amava
e sorrir pra tudo
qual é o cheiro que te seduz?
agoo a planta
cuido da roupa,
do chão
tomo café
tudo em silêncio
esse silêncio
é o meu abrigo
encolhimento
vivo assim
entre o mergulho no ar e na água gelada
e a casa limpa que me abriga
infância 2 – ainda o sítio
os cachos da menina
eram dourados e preenchiam
de felicidade os olhos grandes
a poltrona grandona,
era verde ou talvez, marrom
me aconchegava
pra longe de tudo
escorrego na poltrona
ganho picolés dos meus irmãos
ganho suspiro da minha mãe
a lembrança boa
do cheiro bom
do ferro engolindo a brasa e deslizando
pela roupa
o resto
a bacia de metal
as mulheres batendo a roupa molhada na pedra
o cansaço
todo o resto
literatura
infância 6 – feliz
de cima da árvore
tudo era longe ou perto
e eu invisível
em cima da árvore
a vida ainda é a infância
figas da bahia
saudades
afogamento
e ao escrever
única saída
me afundo
mais ainda na lembrança
barbantes e linhas
costuro a vida
com pedaços de barbantes
ou fitas coloridas
costuro com linha 10
ou com fios dos cabelos
os pedaços de alegria
juntos aos das tristezas
os espaços de agonia
aos de medo e de incerteza
alguns na pressa,
são costurados com cuspe
outros bordados
com linhas de seda
se se rasgam
são cerzidos
na verdade, em verdade
estava me pondo à prova
e sim,
minhas mãos suam frio
meu estômago fecha
mas estou aqui
já estou no ar
madri
estranha
séria e absolutamente ridícula
fala alto
se agita
não me deixa pensar
a igreja presente
a nobreza presente
a mendiga presente
a poeira
o sol
nove fora
sobram
guernica e as meninas
e os bocadillos de jamon
e a vida entre beijos na estação a qualquer hora
nenhuma suavidade
ando
eu e a menina pela mão indo pra escola
eu e os que correm porque é importante correr
eu e os cachorros nas coleiras
mas as meninas
seu Foucault
e as vírgulas
a igreja da cientologia e sua linda vitrine
e muitos museos del jamon
para realmente sentir prazer
granada alhambra e uma lista
proporção
refazer
linhas
luz
vento
céu
silêncio
cheiro
branco
e um pouco de azul e amarelo
talvez ali
fosse o meu eterno
áustria
viena?
fiz as pazes
ela me disse que pode existir
um junto,
um igual,
um gente
o mumok
o conjunto habitacional karl Marx
o hospital e hospício e a sinagoga
dessa vez,
viena era gente
dakar, senegal
afora isso
não vimos nem xadors nems hijabs
e muito menos burkas
mas vimos pedintes e mendigos
era ramadan
nos contaram até de mendigos milionários
a biblioteca da universidade
era grande
cheia de gente
alguns dormiam
(ainda era ramadam)
outros liam
a casa de senghor
o baobá da casa de senghor
o porto da tristeza
os canhões de vichy
a pobreza
lisboa – 1
só um dia
que não lhe encontrei
azulejos
igrejas
pão e azeite
na casa vermelha
tem uma mulher que pinta
tanto faz
à primeira
responderam que controlam como construir as casas,
mas que é difícil determinar o que é uma casa feia
portanto não responderam
à segunda-feira
disseram que o que se vê é definido por acordo comum
o que fez com que acreditasse que com a minha fala poderia
sonhar
o que talvez seja uma falácia
e por último,
resolvi não ouvir as respostas
e experimentar a prática
desejei a morte
e descobri que maktub
ela só acontece quando está escrito
meus pais e a dor
então,
ele levantou a cabeça
e ela
calada
continuou carregando
o estandarte da dor
a pedra de minha mãe
(esboço de conto ou de carta)
pietá
não a de el Greco ou a de Michelangelo
mas minha mãe segurando o filho morto
pietá
não a de rouault não a de delacroix
mas minha mãe com sua filha no colo
pietá
nada de tintas, papéis, mármores
dilacerante metamorfose.
metamorfose
formas além de mim.
estado larval,
branco descamado.
sai a casca seca
a gosma continua em mim,
desnorteada, faminta.
dilacerante fome,
preciso de ti,
és o único norte
e estou sem rumo.
todos os meus rumos
já foram esclarecidos,
determinados, estabelecidos
e assim sendo estou sem norte.
estado larval,
preciso desesperadamente de ti.
ao acordar
os dias são claros demais,
em dezembro, o céu parece abril
é azul da cor do manto da santa.
a paz que vislumbro
é manchada de sangue,
de desejo, de paixão.
um encontro casual
que já acontecera antes,
preciso como louca desse alimento.
tudo é definitivo,
os sonhos, o medo, os desejos.
sonho a traição,
coração dilacerado,
paixão descompassada.
estado de metamorfose,
fome dilacerante,
loucura, beleza.
“My rapist asked me to pray for him; I did what it took to
stay alive” (lido numa notícia de jornal)
a cada vez