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O que é a crítica?

(Crítica e Aufklärung)
Michel Foucault

Este texto corresponde a uma conferência (e ao debate que se seguiu) proferida na Sociedade
Francesa de Filosofia, a 27 de Maio de 1978, e subsequentemente publicada, em 1990, no Bulle-
tin de la Société française de la philosophie. O texto foi revisto, a partir da transcrição de Monique
Emery, por Suzanne Delorme, Christine Menasseyre, François Azouvi, Jean-Marie Beyssade e
Dominique Segland. A tradução da presente versão foi feita por Álvaro Carvalho.

A sessão começou às 16h30, no Anfiteatro Michel Foucault – Agradeço-lhe infinita-


Michelet, na Sorbonne, sob a presidência de mente o convite para estar presente nesta
Henri Gouhier. reunião, perante esta Sociedade. Creio que já
fiz aqui uma comunicação há uma dezena de
anos, sobre um assunto que era «O que é um
autor?».
Henri Gouhier – Minhas senhoras e meus
senhores, queria em primeiro lugar agrade- Quanto à questão que queria abordar hoje,
cer a Michel Foucault por ter incluído esta não lhe dei um título. Henri Gouhier quis
sessão na agenda de um ano muito ocupa-
dizer-vos, com generosidade, que tal se deve
do, porque temo-lo connosco, não diria no
à minha estadia no Japão. Na verdade, trata-
dia seguinte, mas quase dois dias depois de
-se de uma simpática atenuação da verdade.
uma longa viagem ao Japão. É por esta razão
Digamos que, efectivamente, até há poucos
que a convocatória enviada para a reunião é
bastante lacónica; também por essa razão, a dias, eu não tinha ainda encontrado um título;
comunicação de Michel Foucault será uma ou melhor, havia um que me perseguia mas
surpresa e, como podemos pensar que é uma que não quis escolher. Já vão ver porquê: teria
boa surpresa, não adiarei mais tempo o prazer sido indecente.
de o escutarmos.
Na realidade, a questão de que queria falar-
-vos, e de que ainda quero falar-vos, é: «O que
é a crítica?» Será necessário avançar algumas

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ideias sobre este projecto que não pára de mas também que seja atravessada por uma
formar-se, de prolongar-se, de renascer nos espécie de imperativo mais geral – mais geral
confins da filosofia, muito próximo dela, con- ainda que o de afastar os erros. Há qualquer
tra ela, à custa dela, em direcção a uma filo- coisa na crítica que se assemelha à virtude. E
sofia que há-de vir, substituindo talvez toda a de certa forma, aquilo de que vos queria falar
filosofia possível. E entre o grande empreen- era da crítica como virtude em geral.
dimento kantiano e as pequenas actividades
polémico-profissionais que ostentam o nome Para fazer a história desta atitude crítica há
de crítica, quer-me parecer que houve no Oci- múltiplos caminhos. Pela minha parte, queria
dente moderno (datando, grosseiramente, apenas sugerir-vos este, que é um caminho
empiricamente, dos séculos XV-XVI) uma cer- possível, uma vez mais, entre tantos outros.
ta forma de pensar, de dizer, de agir também, Proporia a seguinte variante: a pastoral cristã,
uma certa relação com o que existe, com o ou a igreja cristã, à medida que concretizava
que se sabe, com o que se faz, uma relação uma actividade precisamente e especifica-
com a sociedade, com a cultura, uma relação mente pastoral, desenvolveu a ideia – singu-
também com os outros a que poderíamos cha- lar, na minha opinião, e completamente estra-
mar a atitude crítica. Evidentemente, todos se nha à cultura antiga – que cada indivíduo, se-
surpreenderão por ouvir dizer que existe uma jam quais forem a sua idade, o seu estatuto, e
coisa como uma atitude crítica que seria espe- isto de uma ponta à outra da sua vida e até ao
cífica da civilização moderna, quando houve detalhe das suas acções, devia ser governado
tantas críticas, polémicas, etc., e mesmo os e devia deixar-se governar, ou seja, deixar-se
problemas kantianos têm sem dúvida origens dirigir para a sua salvação por alguém a quem
muito mais longínquas que os séculos XV e está ligado por uma relação global e ao mes-
XVI referidos. Também se surpreenderão por mo tempo meticulosa, detalhada, de obediên-
ver que se tenta encontrar uma unidade nesta cia. E esta operação de direcção para a salva-
crítica, ao passo que, pela sua natureza, pela ção dentro de uma relação de obediência a
sua função, ia dizer por profissão, ela parece alguém deve fazer-se no âmbito de uma tripla
destinada à dispersão, à dependência, à pura relação com a verdade: verdade vista como
heteronomia. No fim de contas, a crítica só dogma; verdade também na medida em que
existe em relação consigo própria: é um ins- esta direcção implica um certo modo de co-
trumento, um meio para atingir um futuro ou nhecimento particular e individualizante dos
uma verdade que ela não conhecerá e que indivíduos; e, finalmente, na medida em que
não será, é um olhar sobre um território que essa direcção se concretiza como uma técni-
deseja policiar e onde não consegue fazer a ca pensada contendo regras gerais, conheci-
lei. Tudo isto implica que ela seja uma função mentos particulares, preceitos, métodos de
que é subordinada a tudo o que constitui po- exame, de confissão, de diálogo, etc. No fim
sitivamente a filosofia, a ciência, a política, a de contas, não pode esquecer-se que aquilo
moral, o direito, a literatura, etc. E ao mesmo a que, durante séculos, se chamou na igreja
tempo, sejam quais forem os prazeres ou as grega technè technôn e na igreja romana lati-
compensações que acompanham essa curiosa na ars artium, era precisamente a direcção
actividade de crítica, parece que ela traz con- de consciência; era a arte de governar os ho-
sigo regularmente, quase sempre, não apenas mens. Essa arte de governar, evidentemente,
uma inclinação à utilidade, de que se reclama, acabou por ficar durante muito tempo ligada

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a práticas relativamente limitadas, até na pró- mos uma questão perpétua que seria: «como
pria sociedade medieval, ligada à existência não ser governado desta forma, por causa da-
conventual, ligada a e praticada sobretudo quilo, em nome desses princípios, tendo em
em grupos espirituais relativamente restri- vista tais objectivos e através de tais proce-
tos. Mas penso que a partir do século XV e dimentos, não desta maneira, não para isto,
a partir de antes da Reforma, pode dizer-se não por eles»; e se dermos a este movimento
que houve uma verdadeira explosão da arte de governamentalização, tanto da sociedade
de governar os homens, explosão entendida como dos indivíduos, a inserção histórica e a
em dois sentidos. Em primeiro lugar, um des- amplitude que creio ter tido, parece que po-
locamento em relação ao seu lugar religioso, deríamos colocar deste lado aquilo que cha-
podemos dizer de laicização se quiserem, maríamos a atitude crítica. No lado oposto, e
expansão na sociedade civil deste tópico da como parte contrária, ou melhor como parcei-
arte de governar os homens e dos métodos ra e adversária tanto das artes de governar,
para o fazer. E depois, em segundo lugar, uma enquanto forma de desconfiar delas, de as
desmultiplicação desta arte de governar em recusar, de as limitar, de lhes encontrar uma
domínios variados: como governar as crian- justa medida, de as transformar, de procurar
ças, como governar os pobres e os indigen- escapar a essas artes de governar ou, em
tes, como governar uma família, uma casa, qualquer caso, de as deslocar, a pretexto de
como governar os exércitos, como governar reticência essencial, mas também e por isso
os diferentes grupos, as cidades, os Estados, mesmo como linha de desenvolvimento das
como governar o seu próprio espírito. Como artes de governar, teria havido qualquer coi-
governar, penso que esta é uma das questões sa a nascer na Europa nesse momento, uma
fundamentais do que se passou no século XV espécie de forma cultural geral, tanto moral
ou no século XVI. Questão fundamental à qual como política, maneira de pensar, etc., e que
respondeu a multiplicação de todas as artes eu chamaria simplesmente arte de não ser go-
de governar – arte pedagógica, arte política, vernado ou ainda arte de não ser governado
arte económica – e de todas as instituições de assim e a este preço. E portanto eu proporia,
governo, no sentido lato que a palavra gover- como primeira definição da crítica, esta carac-
no tinha nessa época. terização geral: a arte de não ser de tal modo
governado.
Ora, desta governamentalização, que me
parece bastante característica dessas socie- Dir-me-ão que esta definição é muito geral,
dades do Ocidente europeu no século XVI, muito vaga, muito indefinida. Evidentemente!
não pode estar dissociada, quer-me parecer, a Mas creio, ainda assim, que ela me permitirá
questão de «como não ser governado?». Não reconhecer alguns marcos precisos daquilo a
quero com isto dizer que à governamentali- que tento chamar atitude crítica. Marcos his-
zação se tivesse oposto numa espécie de con- tóricos, como é claro, e que poderíamos colo-
fronto directo a afirmação contrária, «nós não car assim:
queremos ser governados, e não queremos
ser governados de forma nenhuma». O que Primeiro – Numa época em que o governo
quero dizer é que, nesta grande inquietude dos homens era essencialmente uma arte
em torno da forma de governar e na investi- espiritual, ou uma prática essencialmente re-
gação sobre as formas de governar, encontra- ligiosa ligada à autoridade de uma Igreja, ao

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governo, seja ele qual for, seja ele do monar-

E portanto eu proporia, como


ca, do magistrado, do educador, do pai de
família, deverá submeter-se. Resumindo, en-
contramos aqui o problema do direito natural.
primeira definição da crítica,
esta caracterização geral: a O direito natural não é certamente uma inven-
ção do Renascimento, mas ganhou, a partir
arte de não ser de tal modo do século XVI, uma função crítica que sempre
governado. conservou. À questão «como não ser gover-
nado?» ele responde assim: quais são os limi-
tes do direito de governar? Digamos que aí, a
magistério de uma Escritura, não querer ser
crítica é essencialmente jurídica.
governado desta forma era essencialmente
procurar na Escritura uma outra relação além Terceiro – E, finalmente, «não querer ser go-
da que estava ligada ao funcionamento do en- vernado» é com certeza não aceitar como ver-
sinamento do Deus, não querer ser governa- dadeiro, e aqui serei muito rápido, o que uma
do era uma certa maneira de recusar, limitar autoridade vos diz ser verdade, ou ao menos
(digam como quiserem) o magistério eclesi- é não a aceitar porque uma autoridade vos
ástico, era o regresso à Escritura, era a ques- diz que ela é verdadeira; é aceitá-la apenas se
tão de saber o que é autêntico na Escritura, se considera boas as razões para a aceitar. E
do que foi efectivamente escrito na Escritura, desta vez a crítica ancora-se no problema da
era a questão sobre que tipo de verdade diz certeza face à autoridade.
a Escritura, como ter acesso a essa verdade
da Escritura na Escritura, e quiçá apesar do A Bíblia, o direito, a ciência; a escrita, a na-
escrito, até se chegar à questão, no fim de tureza, a relação consigo próprio; o magisté-
contas, muito simples: a Escritura era verda- rio, a lei, a autoridade do dogmatismo. Vê-se
deira? E em resumo, de Wycliffe a Pierre Bay- como o jogo da governamentalização e da crí-
le, a crítica desenvolveu-se numa parte, que tica, uma relacionada com a outra, deu lugar a
creio capital e não exclusiva como é claro, em fenómenos que são, creio, capitais na história
relação com a Escritura. Digamos que a críti- da cultura ocidental, seja do desenvolvimento
ca é historicamente bíblica. da reflexão, da análise jurídica ou da reflexão
metodológica. Mas, sobretudo, vemos que o
Segundo – Não querer ser governado, é este lugar da crítica é essencialmente o feixe de
o segundo marco, não querer ser governado relações que unem um ao outro, ou um aos
desta forma também não significa não querer dois outros, o poder, a verdade e o sujeito.
aceitar estas ou aquelas leis por serem injus- E se a governamentalização é mesmo esse
tas, por, sob a capa da sua antiguidade ou sob movimento através do qual se tratava de na
o brilho mais ou menos ameaçador que o so- própria realidade uma prática social sujeitar
berano hoje lhes confere, esconderem uma os indivíduos através de mecanismos de po-
ilegitimidade essencial. A crítica é, portanto, der que se reclamam de uma verdade, pois
desse ponto de vista, perante o governo e a bem, eu diria que a crítica é o movimento pelo
obediência que ele reclama, opor direitos uni- qual o sujeito se atribui o direito de interrogar
versais e imprescritíveis, aos quais qualquer a verdade acerca dos seus efeitos de poder e

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o poder sobre os seus discursos de verdade; jornal. Há muito a fazer sobre as relações en-
ora bem, a crítica será a arte da inservidão tre a filosofia e o jornalismo a partir do fim
voluntária, da indocilidade reflectida. A crítica do século XVIII, um estudo… A menos que
teria essencialmente como função a dessujei- já tenha sido feito, mas não tenho a certeza...
ção no jogo daquilo que poderíamos chamar, É muito interessante ver a partir de que mo-
sucintamente, a política da verdade. mento os filósofos intervêm nos jornais para
dizer qualquer coisa que para eles é filosofi-
Desta definição, apesar do seu carácter empí- camente interessante e que, por essa razão,
rico, aproximativo, deliciosamente longínquo se inscreve numa certa relação com o público
em relação à história que ela sobrevoa, eu te- com efeitos apelativos. E, finalmente, é carac-
ria a arrogância de pensar que ela não é muito terístico que, nesse texto da Aufklärung, Kant
diferente daquela que Kant oferecia: não a da dê como exemplos da manutenção em meno-
crítica, mas precisamente de uma outra coisa. ridade da humanidade, e em consequência
Não está muito longe da definição que dava da como exemplos dos pontos sobre os quais a
Aufklärung. De facto, é característico que, no Aufklärung deve levantar esse estado de me-
seu texto de 1784 sobre o que é a Aufklärung, noridade e «maiorizar» de alguma forma os
ele tenha a definido em relação a um certo homens, precisamente a religião, o direito e
estado de menoridade no qual teria sido man- o conhecimento. O que Kant descrevia como
tida, e mantida autoritariamente, a humanida- a Aufklärung não é mais que aquilo que eu há
de. Em segundo lugar, definiu esta menorida- pouco tentava descrever como a crítica, como
de, caracterizou-a por uma certa incapacidade essa atitude crítica que vemos aparecer como
em que a humanidade estaria a ser mantida, atitude específica no Ocidente a partir, creio,
incapacidade para servir-se do seu próprio en- do que foi historicamente o grande processo
tendimento sem necessidade de outra coisa de governamentalização da sociedade. E em
que seria precisamente a direcção de outrem, relação a essa Aufklärung (cuja máxima, sa-
e utiliza leiten, que tem um sentido religioso beis bem e Kant relembra-o, é «sapere aude»,
historicamente bem definido. Em terceiro lu- não sem que outra voz, a de Frederico II, dis-
gar, creio que é característico que Kant tenha sesse em contraponto: «eles que raciocinem
definido essa incapacidade por uma certa cor- quanto quiserem desde que obedeçam»), seja
relação entre uma autoridade que se exerce e como for, em relação a essa Aufklärung, como
mantém a humanidade nesse estado de me- é que Kant vai definir a crítica? Ou, seja como
noridade, correlação entre este excesso de for, porque eu não tenho a pretensão de rea-
autoridade e, por outro lado, qualquer coisa valiar o que era o projecto crítico kantiano em
que ele considera, a que ele chama uma falta todo o seu rigor filosófico, não vou permitir-
de decisão e de coragem. E em consequência, -mo perante um auditório de filósofos como
essa definição de Aufklärung não vai ser sim- este, não sendo eu próprio filósofo e quase
plesmente uma espécie de definição histórica nada crítico, dizia que em relação a essa Au-
e especulativa; vai haver nessa definição de fklärung, como se pode situar a crítica pro-
Aufklärung qualquer coisa a que é sem dúvi- priamente dita? Se efectivamente Kant chama
da um pouco ridículo chamar predicação, mas Aufklärung a todo esse movimento crítico que
que é em qualquer caso um apelo à coragem antecedeu, como é que ele vai situar o que en-
que ele lança nessa descrição da Aufklärung. tende por crítica? Eu direi, e estou a referir-
Não se pode esquecer que era um artigo de -me a coisas completamente infantis, que em

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relação à Aufklärung, a crítica será aos olhos a própria Aufklärung. Dito de outra forma,
de Kant aquilo que ele vai dizer ao saber: sa- a história do século XIX – e com certeza, a
bes até onde podes saber? Raciocina quanto história do século XX, ainda mais –, parecia
quiseres, mas sabes até onde podes racioci- dever, senão dar razão a Kant, ao menos ofe-
nar sem perigo? A crítica dirá, em suma, que recer um incentivo concreto a essa nova ati-
é menos no que fazemos, com mais ou menos tude crítica, a essa atitude crítica em recuo
coragem, e mais no que pensamos do nosso face à Aufklärung e a que Kant tinha aberto
conhecimento e dos seus limites, que se joga a possibilidade.
a nossa liberdade, e que, em consequência,
em vez de deixar outrem dizer «obedeçam», Esse incentivo histórico, que parecia mui-
é nesse momento, quando se tiver uma noção to mais ao dispor da crítica kantiana que da
verdadeira do próprio conhecimento, que se coragem da Aufklärung, consistia muito sim-
poderá descobrir o princípio da autonomia e plesmente nestes três traços fundamentais:
que não terá de continuar a ouvir-se o obede- primeiro, uma ciência positivista, ou seja,
çam; ou, antes, que o obedeçam será baseado que tivesse fundamentalmente confiança em
na própria autonomia. si própria, exactamente quando era cuidado-
samente crítica em relação a cada um dos
Não tento mostrar a oposição que existe em seus resultados; segundo, o desenvolvimento
Kant entre a análise da Aufklärung e o projec- de um Estado ou de um sistema estatal que
to crítico. Creio que seria fácil mostrar que, se mostrava a si próprio como razão e como
para o próprio Kant, essa verdadeira coragem racionalidade profunda da história e que, de
de saber que era invocada pela Aufklärung, outro lado, escolhia como seus instrumentos
essa coragem de saber consiste em reconhe- procedimentos de racionalização da econo-
cer os limites do conhecimento; e seria fácil mia e da sociedade; daí, o terceiro traço, na
mostrar que, para ele, a autonomia está longe união desse positivismo científico e do desen-
de opor-se à obediência aos soberanos. Mas volvimento dos Estados, uma ciência de um
não deixa de ser verdade que Kant destinou à Estado ou um estatismo, se preferirem. Tece-
crítica, na sua empreitada de dessujeição em -se entre todos uma trama de relações estrei-
relação ao jogo do poder e da verdade, como tas na medida em que a ciência vai represen-
tarefa primordial, como prolegómeno a toda tar um papel cada vez mais determinante no
a Aufklärung presente e futura, o conhecer o desenvolvimento das forças produtivas; na
conhecimento. medida em que, por outro lado, os poderes
de tipo estatal vão exercer-se cada vez mais
Não queria insistir mais nas implicações des- através de conjuntos de técnicas refinadas.
sa espécie de separação entre Aufklärung e Daí o facto de a questão de 1784, o que é a Au-
crítica que Kant quis acentuar. Queria sim- fklärung?, ou, melhor, a forma como Kant, em
plesmente insistir nesse aspecto histórico relação a essa pergunta e à resposta que lhe
do problema que nos é sugerido pelo que se deu, tentou posicionar o seu projecto crítico,
passou no século XIX. A história do século essa interrogação sobre as relações entre Au-
XIX deu bastante mais incentivos à continu- fklärung e crítica vai tomar legitimamente o
ação da empreitada crítica tal como Kant a aspecto de uma desconfiança, ou pelo menos
tinha situado, de alguma forma em recuo de uma interrogação cada vez mais descon-
em relação à Aufklärung, que coisas como fiada: de que excessos de poder, de que go-

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vernamentalização, tanto mais incontornável Em França, as condições de exercício da filo-
quanto mais ela se justifica na razão, essa ra- sofia e da reflexão crítica foram muito diferen-
zão não é ela própria historicamente respon- tes, e por essa razão, a crítica da razão preten-
sável? siosa e dos seus efeitos específicos de poder
parece não ter sido conduzida da mesma for-
Ora, o desenvolvimento futuro desta questão, ma. E parece-me que é do lado de um certo
creio, não foi exactamente o mesmo na Ale- pensamento de direita, durante o século XIX
manha e em França, e isto por razões histó- e XX, que vamos encontrar essa acusação his-
ricas que será necessário analisar porque são tórica da razão ou da racionalização em nome
complexas. dos efeitos de poder que ela carrega consigo.
Seja como for, o bloco constituído pela Luzes
Poder-se-ia dizer, grosso modo, o seguinte: é e a Revolução impediu sem dúvida, de uma
que, talvez menos por causa do desenvolvi- forma geral, que se questionasse real e pro-
mento recente de um Estado novo e racional fundamente esta relação da racionalização e
na Alemanha do que devido ao vínculo mui- do poder; talvez também o facto de a Reforma,
to antigo das universidades à Wissenschaft e quer dizer, aquilo que eu penso ter sido, nas
às estruturas administrativa e estatais, essa suas raízes profundas, o primeiro movimen-
suspeita de que há alguma coisa na raciona- to crítico como arte de não ser governado, o
lização, e talvez mesmo na própria razão que facto de a Reforma não ter tido em França a
é responsável pelo excesso de poder, ora dimensão e o sucesso que teve na Alemanha
bem, parece-me que essa suspeita se afir- levou sem dúvida a que em França essa noção
mou sobretudo na Alemanha e, para sermos de Aufklärung, com todos os problemas que
ainda mais claros, que ela se afirmou sobre- ela punha, não tivesse tido um significado tão
tudo naquilo a que poderíamos chamar uma grande, e de resto ela nunca chegou a ter uma
importância histórica de tanto fôlego como
esquerda alemã. Seja como for, da esquerda
na Alemanha. Digamos que, em França, nos
hegeliana à Escola de Frankfurt existiu toda
contentamos com uma certa valorização po-
uma crítica do positivismo, do objectivismo,
lítica dos filósofos do século XVIII, enquanto
da racionalização, da technè e da tecnicização,
ao mesmo tempo se desqualificava o pensa-
toda uma crítica das relações entre o projec-
mento das Luzes como um episódio menor
to fundamental da ciência e da técnica, cujo na história da filosofia. Na Alemanha, pelo
objectivo é tornar evidentes as ligações entre contrário, o que era visto como Aufklärung
uma presunção ingénua da ciência, por um podia ser considerado como mau ou bom, é
lado, e as formas de dominação específicas da quase irrelevante, mas certamente como um
forma de sociedade contemporânea, por ou- episódio importante, uma espécie de manifes-
tro lado. Para tomar como exemplo algo que tação estrondosa do destino profundo da ra-
esteve sem dúvida muito afastado daquilo a zão ocidental. Tentava ver-se na Aufklärung e
que se poderia chamar uma crítica de esquer- em todo esse período, que em resumo entre
da, é preciso não esquecer que Husserl, em o século XVI e o XVIII serve de referência a
1936, atribuía a crise contemporânea da hu- essa noção de Aufklärung, tentava decifrar-
manidade europeia a qualquer coisa onde se -se, tentava identificar-se a linha do horizonte
jogavam as relações entre o conhecimento e mais marcada da razão ocidental, enquanto
a técnica, da épistèmè à technè. era a política à qual ela estava ligada que era

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submetida a um exame de suspeição. Esse é, a problematização da história das ciências
em resumo, o cisma que caracterizou a forma (que também ela se enraíza, sem dúvida, na
como em França e na Inglaterra o problema fenomenologia, que em França seguiu com
da Aufklärung foi colocado durante o século Cavaillès, com Bachelard, com Georges Can-
XIX e em toda a primeira metade do século guilhem, uma história completamente dife-
XX. rente), parece-me que o problema histórico
da historicidade das ciências tem algumas
Ora, eu penso que a situação em França mu- relações e analogias, ecoa até certo ponto,
dou nos últimos anos; e que, de facto, este com esse problema da constituição do senti-
problema da Aufklärung (que tinha sido tão do: como nasce, como se forma essa raciona-
importante para o pensamento alemão des- lidade a partir de algo que é absolutamente
de Mendelssohn, Kant, passando por Hegel, diverso? Eis a questão recíproca e a inversa
Nietzsche, Husserl, Escola de Frankfurt, do problema da Aufklärung: como é que a ra-
etc.), parece-me que em França se chegou cionalização conduz ao furor do poder?
a uma época em que precisamente este pro-
blema da Aufklärung pode ser retomado em Ora, parece que quer as investigações sobre
relação próxima e significativa com os traba- a constituição do sentido, com a descoberta
lhos da Escola de Frankfurt. Digamos que, e que o sentido só se constitui através das es-
vou tentar ser breve mais uma vez, – e não truturas de coerção do significante, quer as
é de admirar – foi através da fenomenologia análises feitas sobre a história da racionali-
e dos problemas que ela coloca que voltou dade científica com os efeitos de constran-
a questão do que é a Aufklärung. A questão gimento ligados à sua institucionalização e à
regressou, de facto, a partir do problema do constituição de modelos, tudo isso, todas es-
sentido e do que possa ser o sentido. Como é sas investigações históricas não fizeram ou-
possível que haja sentido a partir da ausência tra coisa, estou em crer, senão reconfigurar,
de sentido? Como é que o sentido vem? Ve- como que por um súbito raio de luz e através
mos que esta questão é complementar desta de uma espécie de seteira universitária, o que
outra: como é possível que o grande movi- foi, apesar de tudo, o movimento de fundo da
mento de racionalização nos tenha conduzido nossa história desde há um século. Porque à
a tanto ruído, a tanto furor, a tanto silêncio e a força de repetir que falta racionalidade à nos-
tantas águas paradas? Afinal, é necessário não sa organização social ou económica, depará-
esquecer que A Náusea é contemporânea da mo-nos com não sei se demasiada ou insufi-
Krisis, com uma diferença de alguns meses. E ciente razão, mas em qualquer caso sem dúvi-
é pela análise deste aspecto no pós-guerra, ou da, perante demasiado poder; à força de ouvir
seja, que o sentido só se constitui através de louvar as promessas da revolução, não sei se
sistemas de constrangimentos da maquinaria ela é boa ou má nos sítios onde se verificou,
significante, é, parece-me, pela análise deste mas encontramo-nos, nós, com a inércia de
facto de que só há sentido devido a efeitos de um poder que se mantém indefinidamente; e
coerção próprios a estruturas que, por um à força de ouvir celebrar a oposição entre as
estranho atalho, se reencontrou o problema ideologias da violência e a verdadeira teoria
entre ratio e poder. Penso também (e aqui, científica da sociedade, do proletariado e da
sem dúvida, há uma investigação por fazer) história, ficámos com duas formas de poder
que as análises da história das ciências, toda que se assemelham a dois gémeos: fascismo

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e estalinismo. Regressa em consequência a losófica, e com isto quero dizer que o domínio
questão: o que é a Aufklärung? E assim reac- da experiência a que se refere esse trabalho
tiva-se a série de problemas que tinham mar- filosófico não exclui nenhum outro de forma
cado as análises de Max Weber: onde está a absoluta. Não é a experiência interior, não se
racionalização que se diz caracterizar não trata das estruturas fundamentais do conhe-
apenas o pensamento e a ciência ocidentais cimento científico, mas também não é um
desde o século XVI, mas também as relações conjunto de conteúdos históricos elaborados
sociais, as organizações estatais, as práticas noutro lado, preparados pelos historiadores e
económicas e talvez até os comportamentos recebidos prontos como factos. De facto, do
dos indivíduos? O que aconteceu a essa racio- que se trata nesta prática histórico-filosófica
nalização nos seus efeitos de constrangimen- é de fazer-se a própria história, de fabricar,
to, e talvez de obnubilação, de implantação como por trabalho da imaginação, a história
massiva e crescente e nunca radicalmente que seria atravessada pela questão das rela-
contestada de um vasto sistema científico e ções entre as estruturas de racionalidade que
técnico? articulam o discurso verdadeiro e os mecanis-
mos de sujeição que lhe estão ligados, e vê-
Este problema, que em França somos obri- -se claramente como esta questão desloca os
gados a retomar nas nossas mãos, este pro- objectos históricos habituais e familiares aos
blema de saber o que é que é a Aufklärung historiadores para o problema do sujeito e da
pode ser abordado por diferentes caminhos. verdade, de que os historiadores não se ocu-
E o caminho pelo qual queria abordá-lo não pam. Vê-se também que esta questão investe
o descrevo de forma alguma – e gostava que o trabalho filosófico, o pensamento filosófico,
acreditassem em mim – num espírito de polé- a análise filosófica, nos conteúdos empíricos
mica ou de crítica. Em consequência, trata-se desenhados precisamente por ela. Daí que os
de duas razões que levam a que eu apenas e historiadores venham dizer perante este tra-
tão só procure assinalar as diferenças e, de balho histórico ou filosófico: «sim, sim, com
alguma forma, descortinar até onde podemos certeza, talvez». Em qualquer caso nunca é
multiplicar, desmultiplicar, desviar umas em precisamente aquilo, e aqui há um efeito de
relação às outras, desencaixar, por assim di- interferência devido a esse deslocamento em
zer, as formas de análise deste problema da direcção ao sujeito e à verdade de que eu fa-
Aufklärung, que talvez seja, no fim de contas, lei. E que os filósofos, mesmo que nem todos
o problema central da filosofia moderna. afectem indignação, pensem geralmente: «a
filosofia, apesar de tudo, é uma coisa com-
Queria imediatamente notar que, de qualquer pletamente diferente», devido a um efeito de
forma, ao abordar este problema que nos ir- queda, devido a este regresso a uma empiri-
mana com a Escola de Frankfurt, fazer da Au- cidade que nem sequer tem a seu favor o ser
fklärung a questão central significa evidente- garantida por uma experiência interior.
mente um certo número de coisas. Isto quer
dizer, em primeiro lugar, que nos comprome- Outorguemos a essas vozes laterais toda a im-
temos com uma determinada prática a que portância que têm, e essa importância é gran-
se chamaria histórico-filosófica, que não tem de. Elas indicam, pelo menos negativamente,
nada a ver com a filosofia da história e a histó- que estamos no bom caminho, ou seja, que
ria da filosofia, uma certa prática histórico-fi- através dos conteúdos históricos que elabora-

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mos e a que estamos ligados, porque são ver- dos sistemas estatais, pela fundação da ciên-
dadeiros ou porque valem como verdadeiros, cia moderna com todos os seus correlativos
colocamos a questão: o que é que, portanto, técnicos, pela organização de um confronto
eu sou, eu que pertenço a esta humanidade, entre a arte de ser governado e a de não ser
talvez a essa franja, a este momento, a este verdadeiramente governado. Em consequên-
instante de humanidade que está sujeito ao cia, esse período é, de facto, um privilégio
poder da verdade em geral e das verdades em para o trabalho histórico-filosófico, porque de
particular? Dessubjectivar a questão filosófi- alguma forma é aí que surgem, a olho nu e à
ca pelo recurso ao conteúdo histórico, liber- superfície, as transformações visíveis, essas
tar os conteúdos históricos pela interrogação relações entre poder, verdade e sujeito que se
sobre os efeitos de poder, conteúdos cuja trata de analisar. Mas é também um privilégio
verdade (de que, supostamente, derivam) é no sentido em que se trata de formar a partir
afectada por esses efeitos, é a primeira carac- daí uma matriz para o percurso de toda uma
terística dessa prática histórico-filosófica. Por outra série de domínios possíveis. Podemos
outro lado, essa prática histórico-filosófica dizer que não é por privilegiarmos o século
encontra-se numa relação privilegiada com XVIII, por nos interessarmos por ele, que nos
uma certa época empiricamente determiná- defrontamos com o problema da Aufklärung;
vel: mesmo que ela seja relativa e necessa- eu diria que é por fundamentalmente querer-
riamente imprecisa, essa época é designada mos pôr o problema O que é a Aufklärung?
como momento de formação da humanidade que encontramos o esquema histórico da
moderna, Aufklärung no sentido amplo do nossa modernidade. Não se trata de dizer que
termo a que se referiam Kant, Weber, etc., pe- os gregos do século V são um pouco como
ríodo sem datação fixa, com múltiplos pontos os filósofos do século XVIII ou que o século
de partida, já que podemos defini-la tanto pela XII já era uma espécie de Renascimento, mas
formação do capitalismo como pela constitui- de tentar ver sob que condições, ao preço de
ção do mundo burguês, pelo estabelecimento que modificações ou de que generalizações,
podemos aplicar a todo e qualquer momento

D o que se trata nesta prática


da história essa questão da Aufklärung, ou
seja, das relações de poder, da verdade e do
sujeito.
histórico-filosófica é de fazer-
se a própria história, de Este é o quadro geral dessa investigação, a
fabricar, como por trabalho da que eu chamaria histórico-filosófica, e agora
vejamos como é que ela pode ser conduzida.
imaginação, a história que seria
atravessada pela questão das Há pouco eu dizia que queria ainda assim tra-
çar muito vagamente outras vias possíveis para
relações entre as estruturas de lá daquelas que me parece terem sido até ao
racionalidade que articulam momento as mais prontamente trilhadas. Isto
o discurso verdadeiro e os não significa, de forma alguma, acusá-las de
conduzirem a nada ou de não darem nenhum
mecanismos de sujeição que lhe resultado válido. Queria simplesmente dizer e
estão ligados (...) sugerir o seguinte: parece-me que esta ques-

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tão da Aufklärung, desde Kant, por causa de algo a que eu chamaria uma prova de aconteci-
Kant, e verosimilmente por causa desse afas- mentalização. Perdoem-me a palavra horroro-
tamento entre Aufklärung e crítica que ele in- sa! E, já em seguida, o que é que isto quer di-
troduziu, foi essencialmente posta em termos zer? O que eu entenderia por procedimento de
de conhecimento, ou seja, partindo do que foi acontecimentalização, mesmo que os historia-
o destino histórico do conhecimento no mo- dores fiquem aterrorizados, seria o seguinte:
mento da constituição da ciência moderna; ou primeiro, tomar conjuntos de elementos onde
seja também, procurando o que nesse destino se pode detectar, numa primeira aproximação,
já marcava os efeitos de poder indefinidos aos e por isso de forma decididamente empírica e
quais ela iria estar necessariamente ligada pelo provisória, conexões entre os mecanismos de
objectivismo, o positivismo, o tecnicismo, etc., coerção e conteúdos de conhecimento. Meca-
relacionando esse conhecimento com as condi- nismos de coerção diversos, talvez também
ções de constituição e de legitimidade de todo conjuntos de legislação, regulamentos, dispo-
o conhecimento possível e, finalmente, investi- sitivos materiais, fenómenos de autoridade,
gando como é que se tinha operado na história etc.; conteúdos de conhecimento que se toma-
a passagem para fora da legitimidade (ilusão, rá igualmente na sua diversidade e na sua he-
erro, esquecimento, encobrimento, etc.). Re- terogeneidade, e que se reterá em função dos
sumindo, parece-me que, no fundo, a separa- seus efeitos de poder, de que são portadores
ção da crítica em relação à Aufklärung opera- enquanto são validados como fazendo parte de
da por Kant desencadeou um procedimento um sistema de conhecimento. O que se pro-
de análise. Parece-me que a partir daí temos cura, então, não é saber o que é verdadeiro ou
um procedimento de análise que, no fundo, é falso, fundado ou infundado, real ou ilusório,
aquele que foi seguido com mais frequência, científico ou ideológico, legítimo ou abusivo.
procedimento de análise a que se poderia cha- O que se procura saber é quais são os laços,
mar uma investigação sobre a legitimidade dos quais são as conexões que podem encontrar-
modos históricos do conhecer. Pelo menos foi -se entre mecanismos de coerção e elementos
assim que alguns filósofos do século XVIII, Dil- de conhecimento, que movimentos de reenvio
they, Habermas, etc., o entenderam. De manei- e apoio se criam de uns para os outros, o que
ra ainda mais simples: que concepção errada é que leva a que um dado elemento de conhe-
construiu de si próprio o conhecimento e a que cimento possa assumir efeitos de poder afec-
uso excessivo se viu exposto o conhecimento, tos, num sistema como esse, a um elemento
e, consequentemente, a que dominação se en- verdadeiro ou provável ou incerto ou falso, e
controu ligado? o que é que leva a que um dado procedimento
de coerção adquira a forma e as justificações
Pois bem, em vez desse procedimento que próprias de um elemento racional, calculado,
toma a forma de uma investigação sobre a tecnicamente eficaz, etc.
legitimidade dos modos históricos do conhe-
cer, podíamos talvez conceber um procedi- Ou seja, neste primeiro nível, não operar a
mento diferente. Esse procedimento podia partilha da legitimidade, não fixar o ponto do
tomar como ponto de partida na questão da erro e da ilusão.
Aufklärung não o problema do conhecimento,
mas o do poder; e avançaria não como uma E é por isso que, a este nível, me parece que
investigação sobre a legitimidade, mas como se pode utilizar duas palavras que não têm

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como função designar entidades, potências de um dado tipo de discurso científico numa
ou qualquer outra coisa como transcenden- determinada época, e se, por outro lado, não
tais, mas apenas de operar em relação aos do- estiver dotado dos efeitos de coerção ou sim-
mínios a que se referem uma redução siste- plesmente de incitação próprios ao que é vali-
mática de valor, por assim dizer uma neutrali- dado como científico ou simplesmente racio-
zação quanto aos efeitos de legitimidade e um nal ou simplesmente comummente admitido,
colocar em evidência daquilo que os torna em etc. Inversamente, nada pode funcionar como
determinada altura aceitáveis e que leva a que mecanismo de poder se não se manifesta se-
eles sejam efectivamente aceites. Utilização, gundo procedimentos, instrumentos, meios,
portanto, da palavra saber, que se refere a to- objectivos que possam ser validados em siste-
dos os procedimentos e a todos os efeitos de mas mais ou menos coerentes de saber. Não
conhecimento que são aceitáveis num dado se trata de descrever o que é saber e o que é
momento e num domínio definido; e em se- poder e como um reprimiria o outro ou como
gundo lugar, do termo poder, que não faz mais o segundo abusaria do primeiro, mas antes de
que abarcar toda uma série de mecanismos descrever um nexo de saber-poder que per-
particulares, definíveis e definidos, que pare- mite identificar o que constitui a aceitabilida-
cem susceptíveis de induzir comportamentos de de um sistema, seja ele o sistema da doen-
ou discursos. Já se vê que estes dois termos ça mental, da penalidade, da delinquência, da
só têm um papel metodológico: não se trata sexualidade, etc.
de localizar através deles princípios gerais de
realidade, mas de fixar de alguma forma a pri- Em resumo, parece-me que, da nossa obser-
meira linha da análise, o tipo de elemento que vabilidade empírica de um sistema até à sua
para ela deve ser pertinente. Trata-se, assim, aceitabilidade histórica, na época precisa em
de evitar adoptar desde o início a perspectiva que ele é efectivamente observável, o cami-
da legitimação, como fazem os termos de co- nho passa por uma análise do nexo saber-
nhecimento ou de dominação. Trata-se igual- -poder que o sustenta, o recupera a partir do
mente de, a todo o momento da análise, poder facto de ele ser aceite, em direcção àquilo que
dar-lhes um conteúdo determinado e preciso, o torna aceitável, não evidentemente em ge-
tal elemento de saber, tal mecanismo de po- ral, mas somente onde ele é aceite: é isso que
der; nunca se deve considerar que existe um se poderia caracterizar como a recuperação
saber ou um poder, pior ainda o saber ou o na sua positividade. Tem-se, assim, um tipo
poder que seriam operantes em si mesmos. de procedimento que, para lá da necessidade
Saber, poder, não é mais que uma grelha de de legitimação e em consequência afastando
análise. Vê-se assim que esta grelha não é o ponto de vista fundamental da lei, percor-
composta por duas categorias de elementos re o ciclo da positividade passando do facto
estranhos um ao outro, daquilo que pertence- da aceitação para o sistema de aceitabilidade
ria ao saber, de um lado, e do que pertence- analisado a partir do jogo saber-poder. Diga-
ria ao poder, do outro – e o que eu há pouco mos que é aí que está, aproximadamente, o
sobre eles dizia tornava-os exteriores um ao nível da arqueologia.
outro –, porque nada pode figurar como ele-
mento de saber se, por um lado, não estiver Em segundo lugar, vê-se imediatamente que
conforme a um conjunto de regras e de cons- a partir deste tipo de análise há um conjunto
trangimentos característicos, por exemplo, de perigos que não podem deixar de surgir

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como as consequências negativas e onerosas particulares, um certo número de modifica-
de uma análise deste género. ções. Evidentemente que muitos elementos
aceites, muitas condições de aceitabilidade,
Estas positividades são conjuntos que não são podem ter por trás de si uma longa história;
evidentes, no sentido em que sejam quais fo- mas o que se trata de recuperar através da
rem o hábito ou a utilização que possam tê- análise dessas positividades é, de alguma for-
-las tornado familiares para nós, seja qual for ma, singularidades puras, nem encarnação de
a força de cegueira dos mecanismos de poder uma essência nem individualização de uma
que elas põem em acção ou as justificações espécie: singularidade da loucura no mundo
que elaboraram, elas não se tornaram aceitá- ocidental moderno, singularidade absoluta da
veis por qualquer direito imaginário; e o que sexualidade, singularidade absoluta do siste-
se tem de pôr em destaque para identificar ma jurídico-moral das nossas punições.
plenamente o que pôde torna-las aceitáveis é
que precisamente isso não era evidente, não Nenhum recurso fundador, nenhuma escapa-
estava inscrito em nenhum a priori, não es- tória numa forma pura, está aí sem dúvida um
tava contido em nenhuma anterioridade. Se- dos pontos mais importantes e mais contes-
parar as condições de aceitabilidade de um táveis deste raciocínio histórico-filosófico: se
sistema e seguir as linhas de ruptura que não quer cair nem numa filosofia da história
marcam a sua emergência, aqui estão duas nem numa análise histórica, ela deve manter-
operações correlativas. Não era de maneira -se no campo de imanência das singularidades
alguma evidente que a loucura e a doença puras. E então? Ruptura, descontinuidade,
mental se sobrepusessem no sistema institu- singularidade, descrição pura, quadro imóvel,
cional e científico da psiquiatria; também não sem explicação, sem passagem, já conhecem
era nenhuma evidência que os procedimen- tudo isto. Dir-se-á que a análise dessas positi-
tos punitivos, o encarceramento e a disciplina vidades não deriva desses procedimentos di-
penitenciária se articulassem num sistema tos explicativos aos quais se atribui um valor
penal; também não era evidente que o desejo, causal sob três condições:
a concupiscência, o comportamento sexual
dos indivíduos tivessem de articular-se uns 1) só se reconhece valor causal às explicações
sobre os outros num sistema de saber e de que visam uma última instância valorizada
normalidade chamado sexualidade. O mape- como profunda e apenas ela, economia para
amento da aceitabilidade de um sistema é in- uns, demografia para outros;
dissociável do mapeamento do que o tornava
difícil de aceitar: a sua arbitrariedade como 2) só se reconhece como tendo valor causal
conhecimento, a sua violência como poder, aquilo que obedece a uma piramidalização
em suma, a sua energia. Daí a necessidade de que aponte para a causa ou o lugar causal, a
nos ocuparmos desta estrutura, para melhor origem unitária;
lhe seguir os artifícios.
3) e finalmente, só se reconhece valor causal
A segunda consequência, também aqui one- ao que estabelece uma certa inevitabilidade
rosa e negativa, é que esses conjuntos não ou, pelo menos, ao que se aproxima da neces-
são analisados como universais aos quais a sidade. A análise das positividades, na medida
história traria, com as suas circunstâncias em que se trata de singularidades puras re-

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metidas não a uma espécie ou a uma essência rável, relações de interacções entre indivídu-
mas a simples condições de aceitabilidade, os ou grupos, quer dizer, que elas implicam
ora bem, esta análise supõe a instalação de sujeitos, tipos de comportamentos, decisões,
uma rede causal complexa e apertada, mas escolhas: não é na natureza das coisas que se
sem dúvida de outro tipo, uma rede causal pode encontrar o apoio, a sustentação desta
que não obedeceria precisamente à exigência rede de relações inteligíveis, é a lógica pró-
de saturação por um princípio profundo uni- pria de um jogo de interacções com as suas
tário piramidalizante e necessitado. Trata-se margens sempre variáveis de não certeza.
de estabelecer uma rede que dê conta dessa
singularidade como um efeito: daí a necessi- Sem encerramento também porque essas re-
dade da multiplicidade das relações, da dife- lações que se tenta estabelecer para dar conta
renciação entre os diversos tipos de relações, de uma singularidade como efeito, essa rede
da diferenciação entre as diversas formas de de relações não deve constituir um plano úni-
necessidade dos encadeamentos, de decifra- co. São relações que estão em perpétua des-
ção das interacções e das acções circulares conexão umas em relação às outras. A lógica
e o tomar em consideração o cruzamento de das interacções, a um dado nível, actua entre
processos heterogéneos. E nada, então, mais indivíduos que podem conservar as suas re-
estranho a uma tal análise que a recusa da gras e a sua especificidade, os seus efeitos
causalidade. Mas o que é importante é que singulares, ao mesmo tempo que constitui
nestas análises não se trata de remeter a uma com outros elementos interacções que se jo-
causa um conjunto de fenómenos derivados, gam a um outro nível de maneira que, de cer-
mas de conferir inteligibilidade a uma positi- ta forma, nenhuma destas interacções surge
vidade singular precisamente no que ela tem como primária ou como absolutamente tota-
de singular. lizante. Cada uma pode ser recolocada num
jogo que a ultrapassa; e inversamente, cada
Digamos em traços gerais que, por oposição a uma, por muito local que seja, tem efeito ou
uma génese que se orienta para a unidade de risco de efeito sobre aquela de que faz parte
uma causa primária forte de uma descendên- e que a contém. Ou seja, para esquematizar,
cia múltipla, aqui o que estaria em causa era mobilidade perpétua, fragilidade essencial ou,
uma genealogia, ou seja, qualquer coisa que antes, intricação entre o que reconduz o mes-
tenta restituir as condições de emergência de mo processo e o que o transforma. Em suma,
uma singularidade a partir de múltiplos ele- tratar-se-ia aqui de iniciar toda uma forma de
mentos determinantes, dos quais surge não análises que poderíamos dizer estratégicas.
como o produto mas como o efeito. Colocação
em inteligibilidade, então, mas é necessário Ao falar de arqueologia, de estratégia e de ge-
perceber que ela não age segundo um prin- nealogia, não creio que se trate de identificar
cípio de encerramento. E aqui não se trata aí três níveis sucessivos que seriam desenvol-
de um princípio de fechamento por diversas vidos uns a partir dos outros, mas de caracte-
razões. rizar três dimensões necessariamente simul-
tâneas da mesma análise, três dimensões que
A primeira é que as relações que permitem deveriam permitir na sua própria simultanei-
dar conta desse efeito singular são, se não na dade recuperar o que há de positivo, ou seja,
sua totalidade ao menos numa parte conside- quais são as condições que tornam aceitável

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uma singularidade cuja inteligibilidade se es- de indecisões, de mudanças e de desloca-
tabelece através do reconhecimento das inte- ções eventuais que as tornam frágeis, que as
racções e das estratégias em que se integra. É tornam impermanentes, que tornam esses
esta investigação que tem em conta... [faltam efeitos em acontecimentos, nada mais nada
algumas frases perdidas durante a mudança de menos que acontecimentos? De que forma os
lado da cassete de gravação] (…) se produz efeitos de coerção próprios a estas positivida-
como efeito, e enfim acontecimentalização no des podem ser não dissipados por um regres-
que tem a ver com qualquer coisa cuja esta- so ao destino legítimo do conhecimento e por
bilidade, cujo enraizamento, cujo fundamento uma reflexão acerca do transcendental ou o
nunca é tanto que não se possa, de uma ma- quase transcendental que a fixa, mas inverti-
neira ou outra, se não pensar o seu desapare- dos ou solucionados no interior de um campo
cimento, ao menos identificar pelo que é que estratégico concreto, desse campo estratégi-
e a partir de quê é que o seu desaparecimento co concreto que os induziu, e a partir da deci-
é possível. são precisamente de não ser governado?

Há pouco eu dizia que mais do que pôr o Em suma, o movimento que fez inclinar a ati-
problema em termos de conhecimento e de tude crítica para a questão da crítica ou ainda
legitimação, tratava-se de abordar a questão o movimento que reinstalou o projecto da Au-
por meio do poder e da acontecimentalização. fklärung no projecto crítico que visava proce-
Mas como vêem, não se trata de fazer actuar o der de maneira a que o conhecimento pudes-
poder entendido como dominação, como do- se ter de si próprio uma ideia justa, será que
mínio, a título de dado fundamental, de prin- esse movimento de báscula, será que essa
cípio único, de explicação ou de lei incontor- separação, a maneira de remeter a questão da
nável; pelo contrário, trata-se de o considerar Aufklärung para a crítica, será agora necessá-
sempre como relação num campo de interac- rio fazer o caminho inverso? Será que não po-
ções, trata-se de o pensar numa relação indis- díamos percorrer esse caminho, mas no sen-
sociável com formas de saber, e trata-se de o tido contrário? E se é necessário considerar a
pensar sempre de maneira a que seja visto as- questão do conhecimento na sua relação com
sociado a um domínio de possibilidade e em
consequência de reversibilidade, de inversão
possível.

Vêem que assim a questão já não é: por causa


N ão se trata de fazer actuar
o poder entendido como
de que erro, ilusão, esquecimento, por que
falhas de legitimidade o conhecimento vai in- dominação, como domínio, a
duzir os efeitos de dominação que manifesta título de dado fundamental, de
no mundo moderno a [palavra inaudível]? A
questão seria antes esta: como é que a indis-
princípio único, de explicação
sociabilidade do saber e do poder no jogo das ou de lei incontornável;
interacções e das estratégias múltiplas pode pelo contrário, trata-se de o
induzir tanto singularidades que se fixam a
partir das suas condições de aceitabilidade considerar sempre como relação
como um campo de possíveis, de aberturas, num campo de interacções (...)

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a dominação, é em primeiro lugar e antes de atitude crítica tome forma. E desta forma, por
tudo a partir de uma certa vontade decisória exemplo, foram os sucessos metodológicos
de não ser governado, essa vontade decisória, do positivismo que, com as dificuldades que
atitude tanto individual como colectiva de sair, levantou, lhe trouxeram as reacções críticas
como dizia Kant, da sua menoridade. Questão que conhecemos, que surgiram há meio sé-
de atitude. Estão a ver por que não pude dar, culo, isto é, a reflexão logicista, a reflexão
não ousei dar, um título à minha conferência, criticista, estou a pensar na escola popperiana
que teria sido: «O que é a Aufklärung?». ou na reflexão wittgensteiniana sobre os limi-
tes de uma linguagem científica normalizada.
Muitas vezes vemos surgir nestes momentos
críticos uma resolução nova, a busca de uma
Henri Gouhier – Agradeço fortemente a Mi- prática renovada, de um método que tem ele
chel Foucault por nos ter trazido um conjunto próprio um aspecto regional, um aspecto de
tão coordenado de reflexões a que eu cha- investigação histórica.
maria filosóficas, embora ele tenha dito «não
sendo eu próprio filósofo». Devo desde já di-
zer que após ter dito «não sendo eu próprio fi-
lósofo», acrescentou «quase nada crítico», ou Michel Foucault – Tem toda a razão. Foi
seja, ainda assim um pouco crítico. E, depois mesmo por essa via que a atitude crítica foi
da sua apresentação, pergunto-me se ser um praticada e que desenvolveu as suas conse-
pouco crítico não é afinal ser muito filósofo. quências de uma forma privilegiada no sécu-
lo XIX. Eu diria que aí é o canal kantiano, ou
seja, que o momento forte, o momento essen-
cial da atitude crítica, deve ser o problema da
Noel Mouloud – Queria fazer talvez duas interrogação do conhecimento sobre os seus
ou três observações. A primeira é a seguinte: próprios limites ou os impasses, se quiser,
Michel Foucault parece ter-nos posto perante que ele encontra no seu exercício primeiro e
uma atitude geral do pensamento, a recusa do concreto.
poder ou a recusa da regra constrangedora
que gera uma atitude geral, a atitude crítica. O que me impressionou foram duas coisas.
Desse ponto passou a uma problemática que Por um lado, que esse uso kantiano da atitude
apresentou como um prolongamento dessa crítica não impediu – e na verdade, em Kant
atitude, uma actualização dessa atitude: trata- o problema é posto de forma muito explíci-
-se de problemas que são actualmente coloca- ta – que a crítica coloque também (podemos
dos sobre as relações de poder, da técnica e discutir o problema de saber se isso é funda-
do poder. Eu veria aí, de certa forma, atitudes mental ou não) esta questão: o que é o uso da
críticas localizadas, girando à volta de certos razão, que uso da razão pode ter consequên-
núcleos de problemas, quer dizer, numa gran- cias quanto aos abusos do exercício do poder,
de medida, tendo fontes ou, se se preferir, li- e consequentemente ao destino concreto da
mites históricos. É necessário desde logo que liberdade? Creio que Kant está longe de ig-
tenhamos uma prática, um método que se de- norar esse problema e houve, sobretudo na
pare com certos limites, que coloque proble- Alemanha, todo um movimento de reflexão à
mas, que chegue a impasses, para que uma volta desse tema, generalizando, deslocando

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o problema crítico restrito que referiu para tradicionalmente filosófica, que estaria em
outras regiões. Citou Popper, mas no fim de recuo em relação a esse estudo precioso e
contas também para Popper o excesso de po- minucioso dos jogos do saber e do poder em
der foi um problema fundamental. diferentes domínios. Essa questão metafísica
e histórica poderia formular-se da seguinte
Por outro lado, o que gostava de acentuar – e maneira: podemos ou não dizer que num de-
perdoe-me o carácter decididamente de so- terminado momento da nossa história e numa
brevoo, por assim dizer – é que me parece que certa região do mundo o saber em si mesmo,
é necessário procurar a origem da história da o saber como tal, tomou a forma de um po-
atitude crítica, no que ela tem de específico der ou de uma potência, enquanto o poder,
no Ocidente – e no Ocidente moderno a partir por seu lado, definido sempre como uma ap-
dos séculos XV e XVI, - nas lutas religiosas tidão, uma certa forma de saber fazer ou de
e nas atitudes espirituais da segunda metade saber fazer-se, manifestava enfim a essência
da Idade Média. No exacto momento em que propriamente dinâmica do noético? Não é de
se põe o problema: como ser governado, será surpreender, se as coisas forem assim, que
que vamos aceitar ser governados assim? É Michel Foucault possa encontrar e destrinçar
nesse momento que as coisas estão ao seu ní- as redes ou relações múltiplas que se estabe-
vel mais concreto, mais historicamente deter- lecem entre o saber e o poder porque, pelo
minado: todas as lutas à volta da pastoral na menos a partir de uma certa época, o saber
segunda metade da Idade Média preparam a é no seu âmago um poder e o poder, no seu
Reforma e, creio, foram uma espécie de limiar âmago um saber, o saber e o poder de um
histórico sobre o qual se desenvolveu essa ati- mesmo querer, de uma mesma vontade que
tude crítica. sou obrigado a chamar de vontade de potên-
cia.

Henri Birault – Não queria fazer o papel da


virgem ofendida. Estou absolutamente de Michel Foucault – A sua questão é sobre a
generalidade desse tipo de relação?
acordo com a forma como a questão da Au-
fklärung é retomada explicitamente por Kant
para sofrer, ao mesmo tempo, uma restrição
teorética decisiva em função de imperativos de Henri Birault – Não tanto sobre a generali-
ordem moral, religiosa, política, etc., que são dade mas sobre a radicalidade ou o seu fun-
características do pensamento kantiano. Penso damento oculto a montante da dualidade dos
que nesse ponto há um acordo total entre nós. dois termos saber-poder. Não é possível en-
contrar uma espécie de essência comum do
No que respeita agora à parte mais directa- saber e do poder, o saber definindo-se em si
mente positiva da apresentação, quando se mesmo como saber do poder e o poder, por
trata de estudar a um nível chão, de alguma seu turno, definindo-se como saber do poder
forma ao nível do acontecimento, os fogos (sob risco de se explorar com atenção as múl-
cruzados do saber e do poder, pergunto-me tiplas significações deste duplo genitivo)?
se não há mesmo assim lugar a uma questão
subjacente, e mais essencialmente ou mais

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Michel Foucault – Absolutamente. Uma vez todologia, como Popper a concebe, é separar
mais, fui pouco claro nesse ponto, na medida esses dois comportamentos, é tornar impos-
em que o que eu queria fazer, o que eu su- sível a confusão ou a mistura entre o uso das
geria, é que sobre ou aquém de uma espécie receitas, a gestão dos procedimentos e a in-
de descrição – grosso modo, há intelectuais e venção das razões. E eu perguntar-me-ia, em-
homens de poder, há homens de ciência e as bora seja bastante mais difícil, se no domínio
exigências da indústria, etc. –, de facto temos humano, social, histórico, as ciências sociais
tecida toda uma rede. Não apenas de elemen- no seu conjunto não representam igualmen-
tos de saber e de poder; mas, para que o saber te e em primeiro lugar o papel da abertura:
funcione como saber, isso só pode acontecer há aí uma situação muito difícil porque elas
na medida em que ele exerça um poder. No são, de facto, solidárias da técnica. Entre uma
interior dos outros discursos de saber, em re- ciência e os poderes que a utilizam há uma
lação aos outros discursos de saber possíveis, relação que não é verdadeiramente essencial;
cada enunciado considerado como verdadei- embora seja importante, ela continua a ser de
ro exerce um certo poder e cria, ao mesmo certa maneira «contingente». São sobretudo
tempo, uma possibilidade; inversamente, as condições técnicas da utilização do saber
qualquer exercício de poder, mesmo que se que estão em relação directa com o exercício
trate de uma execução de um indivíduo, im- de um poder, de um poder que escapa ao de-
plica pelo menos uma aptidão, e, no fim de bate ou à análise, mais do que as condições
contas, esmagar selvaticamente um indivíduo do próprio saber; e é neste sentido que não
é ainda uma certa maneira de o exercer. Por compreendo o argumento. De resto, Michel
isso, estou totalmente de acordo consigo e é Foucault fez algumas observações esclarece-
isto que tentei mostrar: sob as polaridades doras que, por certo, desenvolverá. Mas eu
que nos parecem bem diferentes daquelas do coloco-me a seguinte questão: há uma ligação
poder, encontra-se uma espécie de reflexo... verdadeiramente directa entre as obrigações
ou as exigências do saber e as do poder?

Noel Mouloud – Volto à nossa referência


comum, a Henri Birault e a mim próprio: Po- Michel Foucault – Eu ficaria muito contente
pper. Um dos objectivos de Popper é mostrar se pudéssemos fazer isso, ou seja, se pudésse-
que na constituição das esferas de poder, seja mos dizer: há uma boa ciência, aquela que é
qual for a sua natureza, isto é, dogmas, nor- ao mesmo tempo verdadeira e não toca no po-
mas imperativas, paradigmas, não é o próprio der corrompido; e também, como é evidente,
saber que está em acção, que é responsável, os maus usos da ciência, quer a sua aplicação
mas uma racionalidade desviante que já não é interesseira quer os seus erros. Se me disser
verdadeiramente um saber. O saber – ou a ra- que é isso, partirei feliz!
cionalidade enquanto formadora é ela própria
despida de paradigmas, despida de receitas. A
sua iniciativa própria é questionar as suas pró-
prias certezas, a sua própria autoridade, e de Noel Mouloud – Não é tanto isso. Reconheço
«polemizar contra si própria». É precisamente que o laço histórico, o laço do acontecimento,
por essa razão que ela é racionalidade e a me- é forte. Mas faço notar algumas coisas: que as

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que chama crítica das ideologias, daquelas que

S obre ou aquém de uma


são elas próprias fabricadas pelo saber.

espécie de descrição (...), de facto


temos tecida toda uma rede. Não Michel Foucault – Creio que é essa a vanta-
apenas de elementos de saber e gem da crítica, precisamente!

de poder; mas, para que o saber


funcione como saber, isso só
Henri Gouhier – Queria colocar-lhe uma
pode acontecer na medida em questão. Concordo totalmente com a forma
que ele exerça um poder. como operou a sua divisão e sobre a importân-
cia da Reforma. Mas parece-me que há em toda
a tradição ocidental um fermento crítico prove-
niente do socratismo. Queria perguntar-lhe se
novas investigações científicas (as da biologia, a palavra crítica, tal como a definiu e utilizou,
das ciências humanas) recolocam o homem pode ser indicada para nomear aquilo a que eu
e sociedade numa posição de não determina- provisoriamente chamaria fermento crítico do
ção, abrindo-lhes vias de liberdade, e dessa socratismo em todo o pensamento ocidental,
forma constrangem-nas, por assim dizer, a to- que vai desempenhar um papel através dos re-
mar novamente decisões. Por outro lado, que gressos a Sócrates nos séculos XVI e XVII.
os poderes opressores raramente se apoiam
num saber científico e fazem-no de preferência
sobre um não-saber, sobre uma ciência reduzi-
Michel Foucault – Aí põe-me perante uma
da previamente a um «mito»: são conhecidos
questão mais difícil. Eu diria que esse regres-
os exemplos de um racismo baseado numa so do socratismo (sente-se, detecta-se, vê-se
«pseudogenética» ou um pragmatismo político historicamente, quer-me parecer, na transição
fundado numa deformação «neolamarckiana entre os séculos XVI e XVII) só foi possível so-
da biologia», etc. E, finalmente, concebo muito bre o pano de fundo de outra coisa, na minha
bem que as informações positivas de uma ciên- opinião muito mais importante, que foram as
cia aconselham a distância de um juízo crítico. lutas pastorais e o problema do governo dos
Mas parece-me – e era mais ou menos este o homens, governo no sentido muito completo
sentido do meu argumento – que uma crítica e muito abrangente que a expressão tinha no
humanista, que retoma critérios culturais e final da Idade Média. Governar os homens
axiológicos, só pode desenvolver-se comple- era tomá-los pela mão, era conduzi-los até à
tamente e cumprir-se com o apoio que lhe dá sua salvação através de uma operação, uma
o próprio conhecimento, criticando as suas técnica de orientação detalhada, que implica-
bases, os seus pressupostos, os seus antece- va todo um jogo de saber: sobre o indivíduo
dentes. Esta observação diz respeito sobretu- que era orientado, sobre a verdade em direc-
do aos contributos das ciências do homem, da ção à qual ele era orientado...
história; e parece-me que Habermas, em parti-
cular, inclui essa dimensão analítica naquilo a

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Henri Gouhier – Pensa que poderia retomar dical, a vontade decisória de não ser governa-
a sua análise se fizesse uma apresentação so- do? E finalmente, esta última posição não deve
bre Sócrates e o seu tempo? ser ela própria objecto de uma interrogação,
de uma análise de essência filosófica?

Michel Foucault – Esse é de facto o verda-


deiro problema. Uma vez mais, para respon- Michel Foucault – São duas boas questões.
der rapidamente sobre esse aspecto difícil, Quanto às variações das formulações: de fac-
parece-me que, no fundo, quando interroga- to não creio, de forma alguma, que a vontade
mos Sócrates dessa forma, ou mesmo – quase de não ser governado seja algo que possamos
nem ouso dizê-lo – pergunto-me se Heidegger considerar como uma aspiração originária.
ao questionar os pré-socráticos não cai... não, Penso que, na verdade, a vontade de não ser
claro que não, não se trata de cair num ana- governado é sempre a vontade de não ser go-
cronismo e de sobrepor o século XVIII ao sé- vernado assim, desta forma, por estes, a este
culo V (…) Mas essa questão da Aufklärung, preço. Quanto à formulação de não ser de todo
que é, quer-me parecer, em todo o caso funda- governado, ela parece-me ser, de algum modo,
mental para a filosofia ocidental desde Kant, o paroxismo filosófico e teórico de algo que se-
pergunto-me se não é com ela que se apaga ria essa vontade de não ser relativamente go-
de alguma forma toda a história possível e até vernado. E quando, no final, eu dizia vontade
às origens radicais da filosofia, de maneira decisória de não ser governado, nesse caso,
que creio podermos validamente interrogar trata-se de um erro meu, o que queria dizer é
o processo de Sócrates, sem qualquer ana- não ser governado assim, desta forma, desta
cronismo, mas a partir de um problema que maneira. Não estava a referir-me a algo que fos-
é e que foi em qualquer caso intuído por Kant se um anarquismo fundamental, que fosse uma
como um problema da Aufklärung. espécie de liberdade originária absolutamente
e na sua base refractária a toda e qualquer go-
vernamentalização. Não o disse, mas isso não
quer dizer que o exclua de forma absoluta. De
Jean-Louis Bruch – Queria colocar-lhe uma facto, creio que a minha apresentação pára aí:
questão sobre uma formulação que é central porque já tinha durado demasiado tempo; mas
na sua apresentação, mas que foi expressa sob também porque me pergunto... se queremos
duas formas que me pareceram diferentes. explorar essa dimensão da crítica que me pare-
Disse no final que «a vontade decisória de não ce tão importante, seja porque ao mesmo tem-
ser governado» como um fundamento, ou uma po faz e não faz parte da filosofia, se explorás-
mudança da Aufklärung que foi a matéria da semos essa dimensão da crítica, não seriamos
sua conferência. No princípio falou de «não ser nós remetidos como apoio da atitude crítica a
governado desta forma», de «não ser de todo qualquer coisa que seria ou a prática histórica
governado», de «não ser governado a este pre- da revolta, da não-aceitação de um governo
ço». Num caso, a formulação é absoluta, no real, por um lado, ou, por outro lado, à expe-
outro é relativa, e em função de que critérios? riência individual da recusa de governamen-
Pergunto-lhe se é por ter sofrido o abuso da talidade? O que me impressiona muito – mas
governamentalização que chega à posição ra- talvez esteja assim porque são coisas de que

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agora me ocupo bastante – é que, se é preciso ir André Sernin – De que lado se colocava?
buscar essa matriz da atitude crítica no mundo Preferia o lado de Auguste Comte, e vou es-
ocidental à Idade Média, nas atitudes religiosas quematizar, que separa rigorosamente o po-
e no exercício do poder pastoral, não deixa de der espiritual do poder temporal; ou, pelo
ser bastante surpreendente que observemos contrário, do lado de Platão, que dizia que
absolutamente unidas a mística como experi- as coisas nunca correriam bem enquanto os
ência individual e a luta institucional e política, filósofos não fossem eles próprios chefes do
e seja como for reconduzidas uma à outra. Eu poder temporal?
diria que uma das primeiras grandes formas de
revolta no Ocidente foi a mística; e todos esses
lugares de resistência à autoridade da Escritu-
ra, à mediação pelo pastor, desenvolveram-se Michel Foucault – É mesmo necessário es-
tanto nos conventos como no exterior dos con- colher?
ventos, entre os leigos. Quando vemos que es-
tas experiências, esses movimentos da espiritu-
alidade, serviram muitas vezes de roupagem, André Sernin – Não, não é necessário esco-
de vocabulário, mas ainda mais de formas de lher, mas para que lado se inclinaria...?
ser, e apoios à esperança da luta que podemos
chamar económica, popular, a que podemos
chamar em termos marxistas de classes, penso
que estamos aí perante algo de fundamental. Michel Foucault – Tentava escapar-me en-
tre os dois!
Durante o percurso dessa atitude crítica cuja
história me parece começar nesse momento,
não devemos agora questionar o que era a
vontade de não ser governado assim, dessa Pierre Hadji-Dimou – Apresentou-nos com
forma, etc., tanto sob a sua forma individual sucesso o problema da crítica na sua ligação
de experiência como sob a forma colectiva? É com a filosofia e chegou às relações entre
agora necessário colocar o problema da von- poder e conhecimento. Eu queria acrescen-
tade. Ou seja, e dir-se-á que isto é evidente, tar um pequeno esclarecimento a propósito
não se pode tornar a este problema seguindo do pensamento grego. Eu creio que este
o fio condutor do poder sem colocar, como é problema já foi colocado pelo senhor presi-
evidente, o problema da vontade. Era tão evi- dente. «Conhecer» é ter o logos e o mythos.
dente que eu podia ter-me apercebido antes Penso que com a Aufklärung, não chegamos
dela; mas como este problema da vontade é a conhecer; o conhecimento não é apenas a
um problema que a filosofia ocidental tratou racionalidade, não é apenas o logos na vida
sempre com precaução e dificuldade infinitas, histórica, há uma segunda fonte, o mythos.
digamos que tentei evitá-la na medida do pos- Se nos reportarmos ao debate entre Protá-
sível. Digamos que ela é inevitável. O que vos goras e Sócrates, quando Protágoras a pro-
dei antes foram considerações de um traba- pósito da politeia levanta a questão do direito
lho que está em curso. de punir, do seu poder, diz que vai precisar
e ilustrar o seu pensamento a propósito de
mythos – o mythos está ligado ao logos porque

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tem uma racionalidade: quanto mais nos en- invés, pode fazê-lo no uso privado.
sina, mais belo é. E esta é a questão que que-
ria levantar: será que suprimindo uma parte
do pensamento, o pensamento irracional que
chega ao logos, isto é, o mythos, conseguimos Michel Foucault – É o contrário, e é isso
conhecer as fontes do conhecimento, o co- que é extremamente interessante. Com efei-
nhecimento do poder que tem também um to, Kant diz: «há um uso público da razão que
sentido mítico? não deve ser limitado». O que é este uso públi-
co? É aquele que circula de sábio para sábio,
que passa pelos jornais e as publicações e que
interpela a consciência de todos. Esses usos,
Michel Foucault – Concordo com a sua esses usos públicos da razão, não devem ser
questão. limitados, e curiosamente aquilo que a que
ele chama uso privado é o uso, de certa for-
ma, do funcionário. E o funcionário, o oficial,
diz Kant, não tem o direito de desobedecer
Sylvain Zac – Eu gostaria de fazer dois co- ao seu superior, ao soberano ou ao represen-
mentários. Disse, justamente, que a atitude tante do soberano, isso é aquilo a que chama,
crítica podia ser considerada como uma vir- curiosamente, o uso privado.
tude. Ora, há um filósofo, Malebranche, que
estudou essa virtude: trata-se da liberdade
do espírito. Por outro lado, não concordo
consigo sobre as relações que estabelece Sylvain Zac – Concordo consigo, enganei-
em Kant entre o seu artigo sobre as Luzes -me, mas acontece que há nesse artigo limi-
e a sua crítica do conhecimento. Esta última tes à manifestação da coragem. Ora, esses
fixa evidentemente limites, mas não tem ela limites encontrei-os em todo o lado, em todos
própria limite; é uma crítica total. Ora, quan- os Aufklärer, em Mendelssohn como é evi-
do se lê o artigo sobre as Luzes, vemos que dente. Há, no movimento de Aufklärung ale-
Kant faz uma distinção muito importante en- mão, uma parte de conformismo que não se
tre uso público e uso privado. No caso do uso encontra nem sequer no Iluminismo francês
público, essa coragem deve desaparecer. O do século XVIII.
que provoca...

Michel Foucault – Concordo totalmente, não


Michel Foucault – É o contrário, porque o vejo em que é que isso contesta o que eu disse.
que ele chama uso público é...…

Sylvain Zac – Não creio que haja uma liga-


Sylvain Zac – Quando alguém ocupa por ção histórica íntima entre o movimento da
exemplo uma cátedra de filosofia numa uni- Aufklärung que colocou no centro e o desen-
versidade, dispõe nesse contexto do uso pú- volvimento da atitude crítica, da atitude de re-
blico da palavra e não deve criticar a Bíblia: ao sistência do ponto de vista intelectual ou do

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ponto de vista político. Não lhe parece que se Henri Birault – De facto, acredito que a fi-
possa fazer essa precisão? losofia crítica representa, desta forma, um
movimento ao mesmo tempo de restrição e
de radicalização em relação à Aufklärung em
geral.
Michel Foucault – Não me parece, por um
lado, que Kant se tenha sentido estrangeiro à
Aufklärung, que para ele fazia parte da sua ac-
tualidade e no interior da qual ele intervinha, Michel Foucault – Mas a ligação à Au-
não apenas por aquele artigo da Aufklärung, fklärung era a questão que toda a gente se
mas por causa de muitas outras questões... colocava nessa época. O que é que estamos
a dizer, que movimento é este que nos ante-
cedeu por pouco, ao qual ainda pertencemos
e que se chama Aufklärung? A melhor prova
Sylvain Zac – A palavra Aufklärung está em está em que o jornal tinha para publicação
A Religião nos Limites da Simples Razão, mas uma série de artigos, o de Mendelssohn, o de
aplica-se aí à pureza dos sentimentos, a algo Kant... Era a questão do momento. Um pouco
de interior. Produziu-se uma inversão como como nós, nós colocar-nos-íamos a questão: o
em Rousseau. que é a crise dos valores actuais?

Michel Foucault – Queria terminar o que Jeanne Dubouchet – Eu queria perguntar-


estava a dizer… Portanto, Kant sente-se -lhe o que é que coloca como matéria no sa-
perfeitamente ligado a essa actualidade que ber. O poder, segundo penso ter percebido, já
chama Aufklärung e que tenta definir. E em que do que se tratava era de não ser governa-
relação a esse movimento de Aufklärung, do: mas que ordem do saber?
parece-me que ele introduz uma dimensão
que podemos considerar como mais par-
ticular ou, ao contrário, como mais geral e
como mais radical que é esta: a primeira au- Michel Foucault – Justamente, nesse pon-
dácia que devemos aplicar quando se trata to, se eu uso essa palavra é, uma vez mais,
de saber e de conhecimento, é conhecer o essencialmente para fins de neutralização de
que podemos conhecer. A radicalidade é isto tudo o que possa ser legitimação ou mesmo
e para Kant, de resto, é a universalidade do simplesmente hierarquização de valores. Se
seu empreendimento. Acredito neste paren- quiserem, para mim – por escandaloso que
tesco, sejam quais forem os limites, como é isto possa e deva, de facto, parecer aos olhos
evidente, das audácias dos Aufklärer. Não de um sábio ou de um metodólogo ou mesmo
vejo em que é que o facto das inseguranças de um historiador das ciências –, para mim,
dos Aufklärer muda alguma coisa a esta es- entre a proposta de um psiquiatra e uma de-
pécie de movimento que Kant fez e de que, monstração matemática, quando eu falo de
creio, esteve quase consciente. saber, não estabeleço, provisoriamente, ne-
nhuma diferença. O único ponto que me leva-
ria a introduzir diferenças é o de saber quais

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são os efeitos de poder, se quiserem, de indu-
ção – indução não no sentido lógico do termo
– que esta afirmação possa ter, de um lado,
no interior do domínio científico no interior
do qual ela é formulada – as matemáticas, a
psiquiatria, etc. – e, de outro lado, quais são
as redes institucionais de poder, não discur-
sivas, não formalizáveis, não especialmente
científicas às quais ele está ligado a partir do
momento em que é posto em circulação. É
aquilo a que eu chamaria o saber: os elemen-
tos de conhecimento que, seja qual for o seu
valor em relação a nós, em relação a um espí-
rito puro, exercem no interior do seu domínio
e no exterior efeitos de poder.

Henri Gouhier – Penso que me resta ape-


nas agradecer a Michel Foucault por ter-nos
proporcionado uma sessão tão interessante e
que vai dar lugar certamente a uma publica-
ção que será particularmente importante.

Michel Foucault – Obrigado. l

Michel Foucault (1926-1984) foi um filósofo francês, au-


tor de inúmeras obras nas áreas da filosofia e da história.

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