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A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D.

João, o
terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII.
O seu argumento é que porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o
Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este
tema sobre que fizesse: segundo um exemplo comum que dizem: Commented
que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez
figuras são Farsa
as seguintes: Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; Pêro
0
mais quero

Marques;
[1]: Portoasno
"Pêro" passou a "Pêro"
esta farsa. As
"Pêro" passou a "Pêro"
Editora:

Commented [2]: Porto Editora:


dous
de Inês Pereira, de Gil Vicente Commented [3]: Porto Editora:
Judeus (um chamado Latão, outro Vidal); um Escudeiro com um"Pêro"seu passou Moço;
a "Pêro" um
Ermitão; Luzia eLiteratura
Fernando. Finge-se
Portuguesa que Inês Pereira, filha de hüa Commented
molher de
[4]:
"Pêro" passou a "Pêro"
baixa
Porto Editora:

sorte, muito fantesiosa, está lavrando em casa, e sua mãe é a ouvir missa, Commented e[5]:elaPortocanta
Editora:
10.ºC econ
esta cantiga: Canta Inês: Quien D veros pena y muere Que hará quando no os viere?
"hei-de" passou a "hei de"
Commented [6]: Porto Editora:
(Falando) INÊS Renego EBS destedolavrar
Cerco E do primeiro que o usou; Ó diabo que
"hei-de" passouoa "hei
eude"dou,
Que tão mau é d'aturar.Oh Jesu! que enfadamento, E que aiva, e que tormento, Commented [7]: Porto Editora:
"hei-de" passou a "hei de"
Paula Cruz | cercarte.blogspot.com
Que cegueira, e que canseira! Eu hei de buscar maneira Commented D'algum [8]: Portooutro
Editora:

aviamento.Coitada, assi hei de estar Encerrada nesta casa Como panela sem asa,Que
"hei-de" passou a "hei de"
Commented [9]: Porto Editora:
sempre está num lugar? E assi hão de ser logrados Dous dias amargurados, "hei-de" passou a "heiQue
de" eu
possa durar viva? E assim hei de estar cativa Em poder de desfiados?Antes "hei-de" passouo darei
Commented [10]: Porto Editora:
a "hei de" ao
Diabo Que lavrar mais nem pontada. Já tenho a vida cansada De fazer Commentedsempre [11]: Porto dum
Editora:
"hei-de" passou a "hei de"
cabo. Todas folgam, e eu não, Todas vêm e todas vão A seguinte farsa de folgar foi
Commented [12]: Porto Editora:
representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do nome em
"hei-de" passou a "hei de"
Commented [13]: Porto Editora:
Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O "hei-de" seu passou
argumento
a "hei de" é
que porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia Commented de si
[14]: mesmo
Porto Editora:
"hei-de" passou a "hei de"
estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre Commented que [15]:fizesse:
Porto Editora:
segundo um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me"hei-de" leve que cavalo
passou a "hei de"
Commented [16]: Porto Editora:
que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa. As figuras são "hei-de" as
passouseguintes:
a "hei de"

Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; Pêro Marques; dous Judeus (um"hão-de" chamado Latão,
Commented [17]: Porto Editora:
passou a "hão de"
outro Vidal); um Escudeiro com um seu Moço; um Ermitão; Luzia e Commented Fernando. Finge-
[18]: Porto Editora:

se que Inês Pereira, filha de hüa molher de baixa sorte, muitoCommented fantesiosa, está
"hão-de" passou a "hão de"
[19]: Porto Editora:
lavrando em casa, e sua mãe é a ouvir missa, e ela canta esta cantiga: Canta
"hão-de" passou a "hão de"Inês:

Quien con veros pena y muere Que hará quando no os viere? Commented [20]: Porto Editora:
"hão-de" passou a "hão de"
(Falando) INÊS Renego deste lavrar E do primeiro que o usou; Ó diabo que o eu dou,
Que tão mau é d'aturar.Oh Jesu! que enfadamento, E que aiva, e que tormento,
Que cegueira, e que canseira! Eu hei de buscar maneira D'algum outro
aviamento.Coitada, assi hei de estar Encerrada nesta casa Como panela sem asa,Que
sempre está num lugar? E assi hão de ser logrados Dous dias amargurados, Que eu
possa durar viva? E assim hei de estar cativa Em poder de desfiados?Antes o darei ao
Diabo Que lavrar mais nem pontada. Já tenho a vida canhgsada De fazer sempre dum
cabo. Todas folgam, e eu não, Todas vêm e todas vão A seguinte farsa de folgar foi
representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do nome em
Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é
que porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia de si mesmo
estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse:
segundo um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo
que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa. As figuras são as seguintes:
Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; Pêro Marques; dous Judeus (um chamado Latão,
1

Farsa de Gil Vicente que foi representada pela primeira vez em 1523. As farsas,
diametralmente opostas às «moralidades», baseiam-se em temas da vida quotidiana, tendo um
enredo cómico e profano. A Farsa de Inês Pereira parte da glosa de um mote: «mais quero
asno que me leve, que cavalo que me derrube». Esta circunstância é explicada na didascália de
abertura do texto: «que por quanto duvidavam certos homens de bom saber se o autor fazia de
si mesmo estas obras, ou se as furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que
fizesse».
Todo este enquadramento recorda a inserção do teatro vicentino no contexto da Corte.
A ideia de glosa de um mote é claramente cancioneiril, e a menção dos «homens de bom
saber» constitui uma referência direta ao público cortês, devidamente familiarizado com as Commented [21]: Porto Editora:
"directa" passou a "direta"
convenções de elaboração e receção do texto literário. Este era dotado de uma incontornável
Commented [22]: Porto Editora:
vertente não só dramática mas acentuadamente teatral, facto que o ligava intimamente à sua "recepção" passou a "receção"
receção, como é óbvio neste caso. Commented [23]: Porto Editora:
"recepção" passou a "receção"
Entre o «asno» e o «cavalo» do mote inicial oscilará Inês Pereira, a personagem
principal, jovem casadoira mas exigente. O «asno» é Pêro Marques, o seu primeiro Commented [24]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
pretendente, que lhe é trazido por Lianor da Vaz, alcoviteira típica do tempo. Pêro Marques,
Commented [25]: Porto Editora:
lavrador inculto que nunca viu sequer uma cadeira, personifica a rusticitas, que porque se "Pêro" passou a "Pêro"
opõe diametralmente à urbanitas cortês, à referida cultura assente em convenções
comportamentais, não deixa de provocar o riso, assim funcionando como mecanismo
subliminar do autoelogio da Corte. Inês Pereira recusa-o, pois pretende antes alguém que Commented [26]: Porto Editora:
"auto-elogio" passou a "autoelogio"
demonstre alguma urbanidade, alguém que, à boa maneira da Corte, saiba combater, fazer
versos, cantar e dançar, alguém como Brás da Mata, o segundo pretendente, que lhe é trazido
pelos Judeus Casamenteiros, um pouco menos sinceros e bem-intencionados do que Lianor
Vaz. Mas Brás da Mata representa apenas o triunfo das aparências, um simulacro de
elegância, boa-educação e bem-estar social, que acredita no casamento como solução para as
suas dificuldades financeiras. Incapaz de ver para além das aparências, Inês escolhê-lo-á como
marido, assim definindo o seu carácter ao longo das diversas situações da peça: solteira
ingénua mas cheia de ambições de ascensão social, casada com o escudeiro e desencantada,
viúva, depois de o marido morrer na guerra fugindo de uma batalha (violação de um dos
elementos fulcrais do código cortês), e, finalmente, esposa leviana e adúltera de Pêro Commented [27]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
Marques, o «asno» que literalmente a leva às costas para o encontro com o seu amante.
Trata-se, portanto, de uma sátira aos costumes da vida doméstica, jogando com o tema
medieval da mulher como personificação da ignorância e da malícia.
2

FARSA OU AUTO DE INÊS PEREIRA,


Gil Vicente

A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do
nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é que
porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se
furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse: segundo um exemplo comum que
dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa.

As figuras são as seguintes: Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; Pêro Marques; dous Judeus (um Commented [28]: Porto Editora:
chamado Latão, outro Vidal); um Escudeiro com um seu Moço; um Ermitão; Luzia e Fernando. "Pêro" passou a "Pêro"

Finge-se que Inês Pereira, filha de hüa molher de baixa sorte, muito fantesiosa, está lavrando em casa,
e sua mãe é a ouvir missa, e ela canta esta cantiga:

Canta Inês: Quien con veros pena y muere Todas vêm e todas vão
Que hará quando no os viere? 1 Onde querem, senão eu.
Hui! e que pecado é o meu,
(E diz:) Ou que dor de coração?
Esta vida he mais que morta.
INÊS Sam eu coruja ou corujo,
Renego deste lavrar2 Ou sam algum caramujo
E do primeiro que o usou; Que não sai senão à porta?
Ó diabo que o eu dou, E quando me dão algum dia
Que tão mau é d'aturar. Licença, como a bugia7,
Oh Jesu! que enfadamento, Que possa estar à janela,
E que raiva, e que tormento, É já mais que a Madanela
Que cegueira, e que canseira! Quando achou a aleluía.
Eu hei de buscar maneira Commented [29]: Porto Editora:
D'algum outro aviamento3. Vem a Mãe, e não na achando lavrando, diz: "hei-de" passou a "hei de"

Coitada, assi hei de estar MÃE Logo eu adivinhei Commented [30]: Porto Editora:
Encerrada nesta casa Lá na missa onde eu estava, "hei-de" passou a "hei de"
Como panela sem asa, Como a minha Inês lavrava
Que sempre está num lugar? A tarefa que lhe eu dei...
E assi hão de ser logrados4 Acaba esse travesseiro! Commented [31]: Porto Editora:
Dous dias amargurados, Hui! Nasceu-te algum unheiro? "hão-de" passou a "hão de"
Que eu possa durar viva? Ou cuidas que é dia santo?
E assim hei de estar cativa Commented [32]: Porto Editora:
Em poder de desfiados5? INÊS Praza a Deos que algum quebranto8 "hei-de" passou a "hei de"
Me tire do cativeiro.
Antes o darei ao Diabo
Que lavrar mais nem pontada. MÃE Toda tu estás aquela!
Já tenho a vida cansada Choram-te os filhos por pão?
De fazer sempre dum cabo6.
Todas folgam, e eu não, INÊS Prouvesse a Deus!
Que já é razão de eu não estar tão singela.
1 Quem com ver-vos pena e morre, que fará quando MÃE Olhade ali o mau pesar9...
vos não vir? Como queres tu casar
2 costura
3 ocupação
4 aproveitados 7 macaca
5 Travesseiros de franja 8 feitiço
6 De estar sempre no mesmo sítio 9 Que desgraça!
3

Com fama de preguiçosa? S'era eu fêmea, se macho.

INÊS MÃE Hui! seria algum muchacho,


Mas eu, mãe, sam aguçosa10 Que brincava por prazer? Commented [33]: Porto Editora:
E vós dais-vos de vagar. "activa" passou a "ativa"
LIANOR
MÃE Ora espera assi, vejamos. Si, muchacho sobejava
Era hum zote11 tamanhouço!
INÊS Quem já visse esse prazer! Eu andava no retouço12,
Tão rouca que não falava.
MÃE Quando o vi pegar comigo,
Cal'-te, que poderá ser Que m'achei naquele p'rigo:
Que «ame a Páscoa vêm os Ramos». – Assolverei! - não assolverás!
Não te apresses tu, Inês. «Maior é o ano que o –Tomarei! - não tomarás!
mês»: – Jesu! homem, qu'has contigo?
Quando te não precatares, – Irmã, eu te assolverei
Virão maridos a pares, Co breviairo de Braga. –
E filhos de três em três. Que breviairo, ou que praga!
Que não quero: aqui d'el-Rei!
INÊS – Quando viu revolta a voda,
Quero-m'ora alevantar. Foi e esfarrapou-me toda
Folgo mais de falar nisso, O cabeção da camisa.
Assi me dê Deos o paraíso,
Mil vezes que não lavrar Isto não sei que me faz MÃE
Assi me fez dessa guisa
MÃE Aqui vem Lianor Vaz. Outro, no tempo da poda.
Eu cuidei que era jogo,
INÊS E ela vem-se benzendo... E ele... dai-o vós ao fogo!
Tomou-me tamanho riso,
(Entra Lianor Vaz) Riso em todo meu siso,
E ele leixou-me logo.
LIANOR
Jesu a que me eu encomendo! LIANOR
Quanta cousa que se faz! Si, agora, eramá,
Também eu me ria cá
MÃE Lianor Vaz, que é isso? Das cousas que me dizia:
Chamava-me «luz do dia».
LIANOR Venho eu, mana, amarela? – «Nunca teu olho verá!»
– Se estivera de maneira
MÃE Mais ruiva que uma panela. Sem ser rouca, bradar'eu;
Mas logo m'o demo deu
LIANOR Catarrão e peitogueira,
Não sei como tenho siso! Cócegas e cor de rir,
Jesu! Jesu! que farei? E coxa pera fugir,
E fraca pera vencer:
Não sei se me vá a el-Rei, Porém pude-me valer
Se me vá ao Cardeal. Sem me ninguém acudir...
O demo (e não pode al ser)
MÃE Como? e tamanho é o mal? Se chantou13 no corpo dele.

LIANOR MÃE Mana, conhecia-te ele?


Tamanho? eu to direi:
Vinha agora pereli LIANOR Mas queria-me conhecer!
Ó redor da minha vinha,
E hum clérigo, mana minha, MÃE Vistes vós tamanho mal?
Pardeos, lançou mão de mi;
Não me podia valer
Diz que havia de saber
11 idiota
12 brincadeira
10 ativa 13 meteu
4

LIANOR o anjo bento.


Eu mirei ao Cardeal, Filha, não sei se vos praz.
E far-lhe-ei assi mesura,
E contar lhe-ei a aventura INÊS E quando, Lianor Vaz?
Que achei no meu olival.
LIANOR Eu vos trago aviamento.
MÃE Não estás tu arranhada,
De te carpir, nas queixadas? INÊS
Porém, não hei de casar Commented [34]: Porto Editora:
LIANOR Eu tenho as unhas cortadas, Senão com homem avisado "hei-de" passou a "hei de"
E mais estou tosquiada: Ainda que pobre e pelado,
E mais pera que era isso? Seja discreto em falar
E mais pera que é o siso?
E mais no meio da requesta14 LIANOR
Veio hum homem de hüa besta, Eu vos trago um bom marido,
Que em vê-lo vi o p'raíso, Rico, honrado, conhecido.
E soltou-me, porque vinha Diz que em camisa17 vos quer
Bem contra sua vontade.
Porém, a falar a verdade, INÊS Primeiro eu hei de saber Commented [35]: Porto Editora:
Já eu andava cansadinha: Se é parvo, se sabido. "hei-de" passou a "hei de"
Não me valia rogar
Nem me valia chamar:
– «Aque de Vasco de Fois, LIANOR
Acudi-me, como sois!» Nesta carta que aqui vem
E ele... senão pegar: Pera vós,
– Mais mansa, Lianor Vaz, filha, d'amores,
Assi Deus te faça santa. Veredes vós, minhas flores,
– Trama15 te dê na garganta! A discrição que ele tem.
Como! isto assi se faz?
– Isto não revela nada... INÊS Mostrai-ma cá, quero ver
– Tu não vês que são casada?
LIANOR Tomai. E sabedes vós ler?
MÃE Deras-lhe, má hora, boa,
E mordera-lo na coroa. MÃE Hui! e ela sabe latim
E gramática e alfaqui18
LIANOR E tudo quanto ela quer!
Assi! fora excomungada.
Não lhe dera um empuxão, INÊS (lê a carta)
Porque sou tão maviosa16, «Senhora amiga Inês Pereira,
Que é cousa maravilhosa. Pêro Marquez, vosso amigo, Commented [36]: Porto Editora:
E esta é a concrusão. Que ora estou na nossa aldea, "Pêro" passou a "Pêro"
Leixemos isto. Mesmo na vossa mercea
Eu venho M'encomendo.
Com grande amor que vos tenho, E mais digo,
Porque diz o exemplo antigo Digo que benza-vos Deos,
Que a amiga e bom amigo Que vos fez de tão bom jeito.
Mais aquenta que o bom lenho. Bom prazer e bom proveito
Inês está concertada Veja vossa mãe de vós.
Pera casar com alguém? Ainda que eu vos vi
Est'outro dia folgar
MÃE E não quisestes bailar,
Até `gora com ninguém Nem cantar presente mi...»
Não é ela embaraçada.
INÊS
LIANOR Eu vos trago um casamento Na voda de seu avô,
Em nome d Ou onde me viu ora ele?
Lianor Vaz, este é ele?
14 luta
15 Doença 17 Mesmo pobre (sem dote)
16 Terna, meiga 18 Ciência teológica jurídica muçulmana
5

MÃE Touca-te, se cá vier


LIANOR Pois que pera casar anda.
Lede a carta sem dó, INÊS Essa é boa demanda!
Que inda eu são contente dele. Cerimónias há mister
Prossegue Inês Pereira a carta: Homem que tal carta manda?
«Nem cantar presente mi. Eu o estou cá pintando:
Pois Deos sabe a rebentinha19 Sabeis, mãe, que eu adivinho?
Que me fizestes então. Deve ser um vilãozinho
Ora, Inês, que hajais bênção Ei-lo, se vem penteando:
De vosso pai e a minha, Será com algum ancinho?
Que venha isto a concrusão. Aqui vem Pêro Marques, vestido como filho de Commented [37]: Porto Editora:
E rogo-vos como amiga, lavrador rico, "Pêro" passou a "Pêro"
Que samicas vós sereis, com um gabão azul deitado ao ombro,
Que de parte me faleis com o capelo por diante, e vem dizendo:
Antes que outrem vo-lo diga.
E, se não fiais de mi, PÊRO Commented [38]: Porto Editora:
Esteja vossa mãe aí, Homem que vai aonde eu vou "PÊRO" passou a "PÊRO"
E Lianor Vaz de presente. Não se deve de correr
Veremos se sois contente Ria embora quem quiser
Que casemos na boa hora.» Que eu em meu siso estou.
Não sei onde mora aqui...
INÊS Olhai que m'esquece a mi!
Des que nasci até agora Eu creo que nesta rua...
Não vi tal vilão com'este, E esta parreira é sua.
Nem tanto fora de mão! Já conheço que é aqui.
Chega Pêro Marques aonde elas estão, e diz: Commented [39]: Porto Editora:
LIANOR Digo que esteis muito embora. "Pêro" passou a "Pêro"
Não queirais ser tão senhora. Folguei ora de vir cá...
Casa, filha, que te preste, Eu vos escrevi de lá
Não percas a ocasião. Üa cartinha, senhora...
Queres casar a prazer E assi que de maneira...
No tempo d'agora, Inês?
Antes casa, em que te pês20, MÃE Tomai aquela cadeira.
Que não é tempo d'escolher.
Sempre eu ouvi dizer: PÊRO E que val aqui uma destas? Commented [40]: Porto Editora:
«Ou seja sapo ou sapinho, "PÊRO" passou a "PÊRO"
Ou marido ou maridinho, INÊS
Tenha o que houver mister.» (Ó Jesu! que João das bestas!
Este é o certo caminho. Olhai aquela canseira!)
Assentou-se com as costas pera elas, e diz:
MÃE
Pardeus, amiga, essa é ela! PÊRO Eu cuido que não estou bem... Commented [41]: Porto Editora:
«Mata o cavalo de sela "PÊRO" passou a "PÊRO"
E bom é o asno que me leva». MÃE Como vos chamais, amigo?
Filha, «no Chão de Couce
Quem não puder andar choute21.» PÊRO Commented [42]: Porto Editora:
E: «mais quero eu quem m'adore Eu Pêro Marques me digo, "PÊRO" passou a "PÊRO"
Que quem faça com que chore». Como meu pai que Deos tem. Commented [43]: Porto Editora:
Chamá-lo-ei, Inês? Faleceu, perdoe-lhe Deos, "Pêro" passou a "Pêro"
Que fora bem escusado,
INÊS Si. Venha e veja-me a mi. E ficamos dous eréos 22.
Quero ver quando me vir Porém meu é o mor gado.
Se perderá o presumir
Logo em chegando aqui, MÃE De morgado é vosso estado?
Pera me fartar de rir. Isso viria dos céus.

PÊRO Mais gado tenho eu já quanto, Commented [44]: Porto Editora:


E o mor de todo o gado, "PÊRO" passou a "PÊRO"
19 Desejo e ciúme
20 Ainda que te custe
21 trote 22 herdeiaros
6

Digo maior algum tanto. Todos andam por caçar


E desejo ser casado, Suas damas sem casar
Prouguesse ao Espírito Santo, E este... tomade-o lá!).
Com Inês, que eu me espanto
Quem me fez seu namorado. PÊRO Vossa mãe é lá no muro? Commented [52]: Porto Editora:
Parece moça de bem, "PÊRO" passou a "PÊRO"
E eu de bem, er também. INÊS
Ora vós er ide vendo Minha mãe eu vos seguro
Se lhe vem milhor ninguém, Que ela venha cá dormir
A segundo o que eu entendo.
Cuido que lhe trago aqui PÊRO Pois, senhora, eu quero-me ir Commented [53]: Porto Editora:
Pêras da minha pereira... Antes que venha o escuro. "PÊRO" passou a "PÊRO"
Hão de estar na derradeira. Commented [45]: Porto Editora:
Tende ora, Inês, per i. INÊS E não cureis mais de vir. "Hão-de" passou a "Hão de"

INÊS E isso hei de ter na mão? PÊRO Virá cá Lianor Vaz, Commented [46]: Porto Editora:
Veremos que lhe dizeis... "hei-de" passou a "hei de"
PÊRO Deitae as peas23 no chão. Commented [54]: Porto Editora:
INÊS Homem, não aporfieis, "PÊRO" passou a "PÊRO"
INÊS Que não quero, nem me apraz. Commented [47]: Porto Editora:
As perlas pera enfiar.. Ide casar a Cascais. "PÊRO" passou a "PÊRO"
Três chocalhos e um novelo...
E as peias no capelo... PÊRO Não vos anojarei mais, Commented [55]: Porto Editora:
E as pêras? Onde estão? Ainda que saiba estalar; "PÊRO" passou a "PÊRO"
E prometo não casar
PÊRO Até que vós não queirais. Commented [48]: Porto Editora:
Nunca tal me aconteceu! "PÊRO" passou a "PÊRO"
Algum rapaz m'as comeu... (Pêro vai-se, dizendo:) Estas vos são elas a vós: Commented [56]: Porto Editora:
Que as meti no capelo, "Pêro" passou a "Pêro"
E ficou aqui o novelo, Anda homem a gastar calçado,
E o pente não se perdeu. E quando cuida que é aviado,
Pois trazia-as de boa mente... Escarnefucham25 de vós!
Creo que lá fica a pea... Pardeus! Bô ia eu à aldeia!
INÊS
Fresco vinha aí o presente (Voltando atrás)
Com folhinhas borrifadas!
Senhora, cá fica o fato?
PÊRO Commented [49]: Porto Editora:
Não, que elas vinham chentadas24 INÊS Olhai se o levou o gato... "PÊRO" passou a "PÊRO"
Cá em fundo no mais quente.
Vossa mãe foi-se? Ora bem... PÊRO Commented [57]: Porto Editora:
Sós nos leixou ela assi?... Inda não tendes candea? "PÊRO" passou a "PÊRO"
Cant'eu quero-me ir daqui, Ponho per cajo que alguém
Não diga algum demo alguém... Vem como eu vim agora,
E vos acha só a tal hora:
INÊS Parece-vos que será bem?
Vós que me havíeis de fazer? Ficai-vos ora com Deos:
Nem ninguém que há de dizer? Çarrai a porta sobre vós Commented [50]: Porto Editora:
(O galante despejado!). Com vossa candeazinha. "há-de" passou a "há de"
E sicais26 sereis vós minha,
PÊRO Entonces veremos nós... Commented [51]: Porto Editora:
Se eu fora já casado, "PÊRO" passou a "PÊRO"
D'outra arte havia de ser ( Vai -s e P ê r o Ma rq u es e d iz In ês P e r ei r a :) Commented [58]: Porto Editora:
Como homem de bom recado. "Pêro" passou a "Pêro"
INÊS
INÊS Pessoa conheço eu
(Quão desviado este está! Que levara outro caminho...

23 cordas 25 escarnecem
24 metidas 26 Se porventura
7

Casai lá com um vilãozinho,


Mais covarde que um judeu! INÊS Quem está lá?
Se fora outro homem agora,
E me topara a tal hora, VIDAL Nome del Deus, aqui somos!
Estando assi às escuras,
Dissera-me mil doçuras, LATÃO Não sabeis quão longe fomos!
Ainda que mais não fora...
VIDAL Corremos a iramá31.
(Vem a Mãe e diz:) Este e eu.

MÃE Pêro Marques foi-se já? LATÃO Eu, e este... Commented [59]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
INÊS E pera que era ele aqui? VIDAL
Pola lama e polo pó,
MÃE E não t'agrada ele a ti? Que era pera haver dó,
Com chuva, sol e Nordeste.
INÊS Vá-se muitieramá27! Foi a coisa de maneira,
Que sempre disse e direi: Tal friúra e tal canseira,
Mãe, eu me não casarei Que trago as tripas maçadas.
Senão com homem discreto, Assi me fadem boas fadas
E assi vo-lo prometo Que me saltou caganeira!
Ou antes o leixarei. Pera vossa mercê ver
Que seja homem mal feito, O que nos encomendou.
Feio, pobre, sem feição,
Como tiver discrição, LATÃO O que nos encomendou
Não lhe quero mais proveito. Será o que hoiver de ser
E saiba tanger viola, Todo este mundo é fadiga
E coma eu pão e cebola. Vós dixestes, fiiha amiga,
Siquer uma cantiguinha! Que vos buscássemos logo...
Discreto, feito em farinha28,
Porque isto me degola29. VIDAL E logo pujemos fogo...

MÃE Sempre tu hás de bailar LATÃO Cala-te! Commented [60]: Porto Editora:
E sempre ele há de tanger? "hás-de" passou a "hás de"
Se não tiveres que comer VIDAL Não queres que diga? Commented [61]: Porto Editora:
O tanger te há de fartar? Não fui eu também contigo? "há-de" passou a "há de"
Tu e eu não somos eu? Commented [62]: Porto Editora:
INÊS Cada louco com sua teima. Tu judeu e eu judeu, "há-de" passou a "há de"
Com uma borda de boleima30 Não somos massa dum trigo?
E uma vez d'água fria,
Não quero mais cada dia. LATÃO Leixa-me falar.

MÃE Como às vezes isso queima! VIDAL


E que é desses escudeiros? Já calo.
Senhora, fomos... agora falo,
INÊS Ou falas tu?
Eu falei ontem ali
Que passaram por aqui LATÃO
Os judeos casamenteiros Dize, que dizias?
E hão de vir agora aqui. Que foste, que fomos, que ias Commented [63]: Porto Editora:
Buscá-lo, esgravatá-lo... "hão-de" passou a "hão de"
Aq u i en t r a m os J u d e u s c as a men te i r os ,
u m , La t ã o , e ou t r o , V id a l e d iz VIDAL
Vós, amor, quereis marido
La t ã o : O u de cá! Mui discreto, e de viola?

LATÃO
27 Em má hora Esta moça não é tola,
28 meigo
29 agrada
30 bolo 31 Em má hora
8

Que quer casar per sentido... Ve m o Es cu d ei r o ,


co m s eu Mo ç o ,
VIDAL Judeu, queres-me leixar? q u e lh e t ra z u ma v i o la ,
e d iz , f a lan d o s ó :
LATÃO Leixo, não quero falar
ESCUDEIRO
VIDAL Buscámo-lo... Se esta senhora é tal
Como os Judeus ma gabaram,
LATÃO Certo os anjos a pintaram,
Demo foi logo! E não pode ser i al.
Crede que o vosso rogo Diz que os olhos com que via
Vencerá o Tejo e o mar32 Foram de Santa Luzia,
Eu cuido que falo e calo... Cabelos, da Madanela...
Calo eu agora ou não? Se fosse moça tão bela,
Ou falo se vem à mão? Como donzela seria?
Não digas que não te falo. Moça de vila será ela
Com sinalzinho postiço,
INÊS Jesu! Guarde-me ora Deus! E sarnosa no toutiço,
Não falará um de vós? Como burra de Castela.
Já queria saber isso... Eu, assi como chegar
Cumpre-me bem atentar
MÃE Que siso, Inês, que siso Se é garrida, se honesta,
Tens debaixo desses véus... Porque o milhor da festa
É achar siso e calar.
INÊS Diz o exemplo da velha:
«O que não haveis de comer (Falando para Inês:)
Leixai-o a outrem mexer». MÃE Se este escudeiro há de vir Commented [64]: Porto Editora:
E é homem de discrição, "há-de" passou a "há de"
MÃE Eu não sei quem t'aconselha... Hás-te de pôr em feição,
De falar pouco e não rir
INÊS Enfim, que novas trazeis? E mais, Inês, não muito olhar
E muito chão o menear
VIDAL O marido que quereis, Por que te julguem por muda,
De viola e dessa sorte, Porque a moça sesuda
Não no há senão na corte É uma perla pera amar.
Que cá não no achareis.
Falámos a Badajoz, (Falando para o criado:)
Músico, discreto, solteiro.
Este fora o verdadeiro, ESCUDEIRO Olha cá, Fernando, eu vou
Mas soltou-se-nos da noz. Ver a com que hei de casar. Commented [65]: Porto Editora:
Fomos a Vilhacastim Avisa-te, que hás de estar "hei-de" passou a "hei de"
E falou-nos em latim: - «Vinde cá daqui a uma Sem barrete onde eu estou. Commented [66]: Porto Editora:
hora, "hás-de" passou a "hás de"
E trazei-me essa senhora». MOÇO (Como a rei! Corpo de mi!
Mui bem vai isso assi...)
INÊS Assi que é tudo nada enfim!
ESCUDEIRO E, se cuspir, pola ventura,
VIDAL Esperai, aguardai ora! Põe-lhe o pé e faz mesura.
Soubemos dum escudeiro
De feição d'atafoneiro33 MOÇO (Ainda eu isso não vi!)
Que virá logo essora,
Que fala... e com' ora fala! ESCUDEIRO
Estrugirá34 esta sala. E se me vires mentir
E tange... e com' ora tange! Gabando-me de privado,
E alcança quanto abrange, Está tu dissimulado,
E se preza bem da gala. Ou sai-te pera fora a rir
Isto te aviso daqui,
Faze-o por amor de mi.
32 Iremos até ao fim do mundo para vos servir
33 Muito ocupado MOÇO Porém, senhor digo eu
34 atroará
9

Que mau calçado é o meu E quanto a tanger viola,


Pera estas vistas assi. Logo me vereis tanger
Moço, que estais lá olhando?
ESCUDEIRO Que farei, que o sapateiro
Não tem solas nem tem pele? MOÇO Que manda
Vossa Mercê?
MOÇO Sapatos me daria ele,
Se me vós désseis dinheiro... ESCUDEIRO Que venhais cá.

ESCUDEIRO Eu o haverei agora. MOÇO Pera quê?


E mais calças te prometo.
ESCUDEIRO Por que faças o que eu mando!
MOÇO (Homem que não tem nem preto,
Casa muito na má hora.) MOÇO
Logo vou.
Chega o Escudeiro onde está Inês Pereira, e (O Diabo me tomou:
levantam-se todos, e fazem suas mesuras, e diz o Sair me de João Montês
Escudeiro: Por servir um tavanês35
Mor doudo que Deus criou!)
ESCUDEIRO
Antes que mais diga agora, ESCUDEIRO Fui despedir um rapaz
Deus vos salve, fresca rosa, Que valia Perpinhão36,
E vos dê por minha esposa, Por tomar este ladrão. Moço!
Por mulher e por senhora;
Que bem vejo MOÇO Que vos praz?
Nesse ar, nesse despejo,
Mui graciosa donzela, ESCUDEIRO A viola.
Que vós sois, minha alma, aquela
Que eu busco e que desejo. MOÇO
Obrou bem a Natureza (Oh! como ficará tola
Em vos dar tal condição Se não fosse casar ante
Que amais a discrição Co mais cafeo37 bargante38
Muito mais que a riqueza. Que coma pão e cebola!).
Bem parece Ei-la aqui bem temperada,
Que a discrição merece Não tendes que temperar
Gozar vossa fermosura,
Que é tal que, de ventura, ESCUDEIRO
Outra tal não se acontece. Faria bem de ta quebrar
Senhora, eu me contento Na cabeça bem migada39!
Receber vos como estais:
Se vós vos não contentais, MOÇO
O vosso contentamento E se ela é emprestada,
Pode falecer no mais. Quem na havia de pagar?
Meu amo, eu quero m'ir….
LATÃO (Como fala!
ESCUDEIRO
VIDAL E quando queres partir?
E ela como se cala!
Tem atento o ouvido... MOÇO
Este há de ser seu marido, Ante que venha o inverno, Commented [67]: Porto Editora:
Segundo a coisa s'abala.) Porque vós não dais governo "há-de" passou a "há de"
Pera vos ninguém servir Commented [68]: Porto Editora:
ESCUDEIRO "Inverno" passou a "inverno"
Eu não tenho mais de meu, ESCUDEIRO
Somente ser comprador
Do Marichal meu senhor
35 estouvado
E são escudeiro seu.
36 Raro, precioso
Sei bem ler
37 reles
E muito bem escrever
38 Homem sem vergonha
E bom jogador de bola,
39 Feita em pedaços
10

Não dormes tu que te farte? VIDAL


Latão, já o sono é comigo
MOÇO No chão, e o telhado por manta... Como oivo cantar guaiado44,
E çarra-se m'a garganta Que não vai esfandegado45...
Com fome.
LATÃO
ESCUDEIRO Isso tem arte40... Esse é o Demo que eu digo!
Viste cantar Dona Sol:
MOÇO Vós sempre zombais assi. Pelo mar voy a vela,
Vela vay pelo mar?
ESCUDEIRO
Oh que boas vozes tem VIDAL
Esta viola aqui Filha Inês, assi vivais
Leixa-me casar a mi, Que tomeis esse senhor
Depois eu te farei bem. Escudeiro cantador
E caçador de pardais,
MÃE Sabedor revolvedor
Agora vos digo eu Falador gracejador
Que Inês está no Paraíso! Afoitado 46pela mão,
E sabe de gavião47...
INÊS Tomai-o por meu amor.
Que tendes de ver co isso? Podeis topar um rabugento,
Todo o mal há de ser meu. Desmazelado, baboso, Commented [69]: Porto Editora:
Descancarado48, brigoso, "há-de" passou a "há de"
MÃE Medroso, carapatento49.
Quanta doudice! Este escudeiro, aosadas50,
Onde se derem pancadas,
INÊS Ele as há de levar Commented [71]: Porto Editora:
Oh! como é seca a velhice! Boas, senão apanhar.. "há-de" passou a "há de"
Leixai-me ouvir e folgar, Nele tendes boas fadas.
Que não me hei de contentar Commented [70]: Porto Editora:
De casar com parvoíce. MÃE "hei-de" passou a "hei de"
Pode ser maior riqueza Quero rir com toda a mágoa
Que um homem avisado41? Destes teus casamenteiros!
Nunca vi Judeus ferreiros
MÃE Muitas vezes, mal pecado42, Aturar tão bem a fragoa51.
é milhor boa simpreza43. Não te é milhor mal por mal,
Inês, um bom oficial,
LATÃO Que te ganhe nessa praça,
Ora oivi, e oivireis. Que é um escravo de graça,
Escudeiro, cantareis E mais casas com teu igual?
Alguma boa cantadela.
Namorai esta donzela LATÃO
E esta cantiga direis: Senhora, perdei cuidado:
O que há de ser há de ser; Commented [72]: Porto Editora:
Canta o Judeu E ninguém pode tolher "há-de" passou a "há de"
«Canas do amor, canas, O que está determinado. Commented [73]: Porto Editora:
canas do amor "há-de" passou a "há de"
Polo longo dum rio VIDAL
Canaval está florido, Assi diz Rabi Zarão.
Canas do amo.»

Canta o Escudeiro o romance «Mal me quieren en


44 lamentoso
Castilla» e diz Vidal:
45 desafinado
46 atrevido
47 Sabido na conquista de mulheres
40 Essa está boa! 48 descarado
41 sabido 49 hipócrita
42 Infelizmente 50 certamente
43 simplicidade 51 forja
11

MÃE MÃE
Inês, guar'-te de rascão52! Amanhã vo-los darão.
Escudeiro queres tu? Pois assi é, bem será
Que não passe isto assi.
INÊS Eu quero chegar ali
Jesu, nome de Jesu! Chamar meus amigos cá,
Quão fora sois de feição! E cantarão de terreiro.
Já minha mãe adivinha...
Folgastes vós na verdade ESCUDEIRO Oh! quem me fora solteiro!
Casar à vossa vontade?
Eu quero casar à minha. INÊS Já vós vos arrependeis?

MÃE ESCUDEIRO
Casa, filha, muit'embora. Ó esposa, não faleis,
Que casar é cativeiro.
ESCUDEIRO
Dai-me essa mão, senhora. Aq u i ve m a Mãe c o m c e rt as m o ças e
man ceb os p e r a faz e re m a f es ta , e d iz u m a
INÊS d elas , p e r n o me Lu z ia :
Senhor de mui boa mente.
Luz. Inês, por teu bem te seja!
ESCUDEIRO Oh! que esposo e que alegria!
Per palavras de presente
Vos recebo desd'agora. INÊS Venhas embora, Luzia,
Nome de Deus, assi seja! E cedo t'eu assi veja.
Eu, Brás da Mata, Escudeiro,
Recebo a vós, Inês Pereira MÃE Ora vae tu ali, Inês,
Por mulher e por parceira E bailareis três por três.
Como manda a Santa Igreja.
FERNANDO Tu connosco, Luzia, aqui,
INÊS E a desposada ali,
Eu, aqui diante Deus, Ora vede qual direis.
Inês Pereira, recebo a vós,
Sem mais preço nem demanda Cantam todos a cantiga que se segue:
Como sancta Igreja manda
A Brás da Mata, «Mal herida va la garça Enamorada,
Sola va y gritos dava.
Ahi somos nós53. A las orillas de um rio
La garça tenia el nido;
VIDAL Ballestero la ha herido
Alça manim, ó dona, ha54! En el alma;
Arreia espeçulá55. Sola va y gritos dava.»
Bento o Deu de Jacob,
Bento o Deu que a Faraó E, acabando de cantar e bailar diz Fernando:

MÃE FERNANDO
Espantou e espantará. Ora, senhores honrados,
Bento o Deu de Abraão, Ficai com vossa mercê,
Benta a terra de Canã56. E nosso Senhor vos dê
Para bem sejais casados! Com que vivais descansados.
Dai-nos cá senhos57 ducados. Isto foi assi agora,
Mas melhor será outr'hora.
Perdoai pelo presente:
Foi pouco e de boa mente.
52 Vadio, desordeiro Com vossa mercê, Senhora...
53 Está o assunto arrumado
54 Levanta as mãos e agradece
Luz.
55 Arranja o cabelo
Ficai com Deus, desposados,
56 Manifestação de alegria segundo uma fórmula
Com prazer e com saúde,
hebraica E sempre Ele vos ajude
57 distribuídos
12

Com que sejais bem logrados. Com homem nem mulher que seja;
Nem somente ir à igreja
MÃE Não vos quero eu leixar
Ficai com Deus, filha minha, Já vos preguei as janelas,
Não virei cá tão asinha58. Por que não vos ponhais nelas.
A minha bênção hajais. Estareis aqui encerrada
Esta casa em que ficais Nesta casa, tão fechada
Vos dou, e vou-me à casinha. Como freira d'Oudivelas.
Senhor filho e senhor meu,
Pois que já Inês é vossa, INÊS
Vossa mulher e esposa, Que pecado foi o meu?
Encomendo-vo-la eu. Porque me dais tal prisão?
E, pois que des que naceu
A outrem não conheceu, ESCUDEIRO
Senão a vós, por senhor Vós buscastes discrição…
Que lhe tenhais muito amor Que culpa vos tenho eu?
Que amado sejais no céu. Pode ser maior aviso,
Maior discrição e siso
Ida a Mãe, fica Inês Pereira e o Escudeiro. E senta- Que guardar o meu tisouro?
se Inês Pereira a lavrar e canta esta cantiga: Não sois vós, mulher meu ouro?
Que mal faço em guardar isso?
INÊS Si no os huviera mirado
No pe Vós não haveis de mandar
nara, Em casa somente um pelo. Commented [74]: Porto Editora:
Pêro tampoco os mirara. Se eu disser: "pêlo" passou a "pelo"
- isto é novelo
O Escudeiro, vendo cantar Inês Pereira, mui - Havei-lo de confirmar
agastado lhe diz: E mais quando eu vier
De fora, haveis de tremer;
ESCUDEIRO E cousa que vós digais
Vós cantais, Inês Pereira? Não vos há de valer mais Commented [75]: Porto Editora:
Em vodas m'andáveis vós? Que aquilo que eu quiser. "há-de" passou a "há de"
Juro ao corpo de Deus (para o criado)
Que esta seja a derradeira!
Se vos eu vejo cantar Moço, às Partes d'Além61
Eu vos farei assoviar.. Me vou fazer cavaleiro.

INÊS MOÇO (Se vós tivésseis dinheiro


Bofé, senhor meu marido, Não seria senão bem...)
Se vós disso sois servido,
Bem o posso eu escusar. ESCUDEIRO
Tu hás de ficar aqui. Commented [76]: Porto Editora:
ESCUDEIRO Olha, por amor de mi, "hás-de" passou a "hás de"
Mas é bem que o escuseis, O que faz tua senhora:
E outras cousas que não digo! Fechá-la-ás sempre de fora.

INÊS Porque bradais vós comigo? (para Inês)

ESCUDEIRO Vós lavrai, ficai per i.


Será bem que vos caleis.
E mais, sereis avisada MOÇO
Que não me respondais nada, Co dinheiro que leixais
Em que ponha fogo a tudo59, Não comerei eu galinhas...
Porque o homem sesudo
Traz a mulher sopeada60. ESCUDEIRO
Vós não haveis de falar Vae-te tu por essas vinhas,
Que diabo queres mais?
58 depressa
59 Ainda que faça maiores disparates
60 Humilhada, dominada 61 Marrocos
13

MOÇO E na guerra lastimeiros64.


Olhai, olhai, como rima!
E depois de ida a vindima? Vede que cavalaria,
Vede que já mouros mata
ESCUDEIRO Quem sua mulher maltrata!
Apanha desse rabisco62. Sem lhe dar de paz um dia!
Sempre eu ouvi dizer
MOÇO Que o homem que isto fizer
Pesar ora de São Pisco! Nunca mata drago65 em vale
Convidarei minha prima... Nem mouro que chamem Ale66:
E o rabisco acabado, E assi deve de ser.
Ir me-ei espojar às eiras? Juro em todo meu sentido
ESCUDEIRO Vai-te per essas figueiras, Que se solteira me vejo,
E farta-te, desmazelado! Assi como eu desejo,
Que eu saiba escolher marido,
MOÇO Assi? À boa fé, sem mau engano,
Pacífico todo o ano,
ESCUDEIRO E que ande a meu mandar
Pois que cuidavas? Havia m'eu de vingar
E depois virão as favas. Deste mal e deste dano!
Conheces túbaras da terra?
Entra o Moço como uma carta de Arzila, e diz:
MOÇO
I-vos vós, embora, à guerra, MOÇO
Que eu vos guardarei oitavas63... Esta carta vem d'Além
Creio que é de meu senhor.
Ido o Escudeiro, diz o Moço:
INÊS
MOÇO Mostrai cá, meu guarda-mor
Senhora, o que ele mandou E veremos o que i vem.
Não posso menos fazer.
Lê o sobrescrito:
INÊS «À mui prezada senhora Inês Pereira da Grã,
Pois que te dá de comer À senhora minha irmã.»
Faze o que t'encomendou. De meu irmão...Venha embora!

MOÇO MOÇO
Vós fartai-vos de lavrar Vosso irmão está em Arzila?
Eu me vou desenfadar Eu apostarei que i vem
Com essas moças lá fora: Nova de meu senhor também.
Vós perdoai-me, senhora,
Porque vos hei de fechar. INÊS Já ele partiu de Tavila? Commented [77]: Porto Editora:
"hei-de" passou a "hei de"
Aqui fica Inês Pereira só, fechada, lavrando e MOÇO Há três meses que é passado.
cantando esta cantiga:
INÊS
INÊS Aqui virá logo recado
«Quem bem tem e mal escolhe Se lhe vai bem, ou que faz.
Por mal que lhe venha não s'anoje.»
Renego da discrição MOÇO Bem pequena é a carta assaz!
Comendo ò demo o aviso,
Que sempre cuidei que nisso INÊS Carta de homem avisado.
Estava a boa condição.
Cuidei que fossem cavaleiros Lê Inês Pereira a carta, a qual diz:
Fidalgos e escudeiros,
Não cheios de desvarios, «Muito honrada irmã,
E em suas casas macios,
64 cruéis
62 rebusco 65 Dragão
63 rendimentos 66 Nunca praticas feitos de valor
14

Esforçai o coração Que a morte a todos gasta.


E tomai por devação O que havedes de fazer?
De querer o que Deus quiser.» Casade-vos, filha minha.
E isto que quer dizer?
«E não vos maravilheis INÊS
De cousa que o mundo faça, Jesu! Jesu!
Que sempre nos embaraça Tão asinha!
Com cousas. Sabei que indo Isso me haveis de dizer?
Vosso marido fugindo Quem perdeu um tal marido,
Da batalha pera a vila, Tão discreto e tão sabido,
A meia légua de Arzila, E tão amigo de minha vida?
O matou um mouro pastor.»
LIANOR
MOÇO Ó meu amo e meu senhor! Dai isso por esquecido,
E buscai outra guarida.
INÊS Pêro Marques tem, que herdou, Commented [78]: Porto Editora:
Dai-me vós cá essa chave Fazenda de mil cruzados. "Pêro" passou a "Pêro"
E i buscar vossa vida. Mas vós quereis avisados...

MOÇO INÊS
Oh que triste despedida! Não! já esse tempo passou.
INÊS Sobre quantos mestres são
Mas que nova tão suave! Experiência dá lição.
Desatado é o nó.
Se eu por ele ponho dó, LIANOR
O Diabo me arrebente! Pois tendes esse saber
Pera mim era valente, Querei ora a quem vos quer
E matou-o um mouro só! Dai ò demo a opinião.
Guardar de cavaleirão,
Barbudo, repetenado67, Vai Lianor Vaz por Pêro Marques, e fica Inês Commented [79]: Porto Editora:
Que em figura de avisado Pereira só, dizendo: "Pêro" passou a "Pêro"
É malino e sotrancão68.
Agora quero tomar INÊS Andar! Pêro Marques seja. Commented [80]: Porto Editora:
Pera boa vida gozar, Quero tomar por esposo "Pêro" passou a "Pêro"
Um muito manso marido. Quem se tenha por ditoso
Não no quero já sabido, De cada vez que me veja.
Pois tão caro há de custar. Por usar de siso mero,
Asno que me leve quero,
Aq u i v e m Li an o r V a z, e f in g e In ês E não cavalo folão.
P ere i ra es ta r ch o ran d o , e d iz Li a n o r : Antes lebre que leão,
Antes lavrador que Nero.
LIANOR Como estais, Inês Pereira?
Vem Lionor Vaz com Pêro Marquez e diz Lianor Commented [81]: Porto Editora:
INÊS Muito triste, Lianor Vaz. Vaz: "Pêro" passou a "Pêro"

LIANOR Que fareis ao que Deus faz? LIANOR Nô mais cerimónias agora;
Abraçai Inês Pereira
INÊS Casei por minha canseira. Por mulher e por parceira.

LIANOR Se ficaste prenhe basta. PÊRO Há homem empacho70, Commented [82]: Porto Editora:
má-hora, Cant'a dizer abraçar.. "PÊRO" passou a "PÊRO"
INÊS Bem quisera eu dele casta69,
Mas não quis minha ventura. Depois que a eu usar Entonces poderá ser:

LIANOR INÊS (Não lhe quero mais saber


Filha, não tomeis tristura, Já me quero contentar..).

LIANOR Ora dai-me essa mão cá.


67 insolente
68 hipócrita
69 descendência 70 atrapalhado
15

Sabeis as palavras, si? Y ansi sin esperanza


De cobrar lo merecido,
PÊRO Ensinaram-mas a mi, Sirvo alli mis dias Commented [83]: Porto Editora:
Porém esquecem-me já... Cupido "PÊRO" passou a "PÊRO"
Con tanto amor sin mudanza,
LIANOR Ora dizei como digo. Que soy su santo escogido.
Ó señores, Los que bien os va d'amores,
PÊRO E tendes vós aqui trigo Dad limosna al sin holgura, Commented [84]: Porto Editora:
Pera nos jeitar por riba? Que habita en sierra oscura, "PÊRO" passou a "PÊRO"
Uno de los amadores
LIANOR Inda é cedo... Como rima! Que tuvo menos ventura.
Y rogaré al Dios de mi,
PÊRO En quien mis sentìdos traigo, Commented [85]: Porto Editora:
Soma, vós casais comigo, Que recibais mejor pago "PÊRO" passou a "PÊRO"
E eu com vosco, pardelhas71! De lo que yo recebi
Não cumpre aqui mais falar En esta vida que hago.
E quando vos eu negar Y rezaré Com gran devocion y fé,
Que me cortem as orelhas. Que Dios os libre d'engaño,
Que esso me hizo ermitaño,
LIANOR Vou-me, ficai-vos embora. Y pera siempre seré,
Pues pera siempre es mi daño.
INÊS Marido, sairei eu agora,
Que há muito que não saí? INÊS Olhai cá, marido amigo,
Eu tenho por devação
PÊRO Si, mulher saí-vos i, Dar esmola a um ermitão. Commented [86]: Porto Editora:
Qu'eu me irei pera fora. \E não vades vós comigo "PÊRO" passou a "PÊRO"

INÊS Marido, não digo isso. PÊRO I-vos embora, mulher Commented [89]: Porto Editora:
Não tenho lá que fazer "PÊRO" passou a "PÊRO"
PÊRO Pois que dizeis vós, mulher? (Inês fala a sós com o Ermitão): Commented [87]: Porto Editora:
"PÊRO" passou a "PÊRO"
INÊS INÊS Tomai a esmola, padre, lá,
Ir folgar onde eu quiser Pois que Deus vos trouxe aqui.

PÊRO ERMITÃO Sea por amor de mi Commented [88]: Porto Editora:


I onde quiserdes ir, Vuesa buena caridad. "PÊRO" passou a "PÊRO"
Vinde quando quiserdes vir Deo gratias, mi señora!
Estai onde quiserdes estar. La limosna mata el pecado,
Com que podeis vós folgar Pêro vos teneis cuidado
Qu'eu não deva consentir? De matar-me cada hora.
Deveis saber Para merced me hacer
Ve m u m Er m i tã o a p ed i r es m ol a , q u e e m Que por vos soy ermitaño.
m oç o lh e q u is b e m , e d i z : Y aun más os desengaño:
Que esperanças de os ver
Soledad. Pues su siervo soy nacido. Me hizieron vestir tal paño.
Por ejemplo, Me meti en su santo templo
Ermitaño en pobre ermita, INÊS Jesu, Jesu! manas minhas!
Fabricada de infinita Tristeza en que contemplo, Sois vós aquele que um dia
Adonde rezo mis horas Em casa de minha tia
Y mis dias y mis años, Me mandastes camarinhas,
Mis servicios y mis daños, E quando aprendia a lavrar
Donde tu, mi alma, Iloras Mandáveis-me tanta cousinha?
El fin de tantos engaños. Eu era ainda Inesinha,
Y acabando Las horas, todas llorando, Não vos queria falar.
Tomo las cuentas una y una,
Con que tomo a la fortuna ERMITÃO Señora, tengo-os servido
Cuenta del mal en que ando, Y vos a mi despreciado;
Sin esperar paga alguna. Haced que el tiempo pasado
No se cuente por perdido.
71 Par Deus (por Deus)
16

INÊS Padre, mui bem vos entendo PÊRO Commented [98]: Porto Editora:
Ó demo vos encomendo, Quereis que as leve? "PÊRO" passou a "PÊRO"
Que bem sabeis vós pedir!
Eu determino lá d'ir INÊS Si. Uma aqui e outra aqui.
À ermida, Deus querendo. Oh como folgo com elas!
Cantemos, marido, quereis?
ERMITÃO E quando?
PÊRO Commented [99]: Porto Editora:
INÊS I-vos, meu santo, Eu não saberei entoar.. "PÊRO" passou a "PÊRO"
Que eu irei um dia destes
Muito cedo, muito prestes. INÊS Pois eu hei só de cantar
E vós me respondereis
ERMITÃO Señora, yo me voy en tanto. Cada vez que eu acabar:
«Pois assi se fazem as cousas».
(Inês torna para Pêro Marques): Commented [90]: Porto Editora:
Canta Inês Pereira: "Pêro" passou a "Pêro"
INÊS Em tudo é boa a concrusão.
Marido, aquele ermitão INÊS «Marido cuco me levades
É um anjinho de Deus... E mais duas lousas.»

PÊRO Corregê vós esses véus PÊRO «Pois assi se fazem as cousas.» Commented [91]: Porto Editora:
E ponde-vos em feição. "PÊRO" passou a "PÊRO"
INÊS Commented [100]: Porto Editora:
INÊS Sabeis vós o que eu queria? «Bem sabedes vós, marido, "PÊRO" passou a "PÊRO"
Quanto vos amo.
PÊRO Que quereis, minha mulher? Sempre fostes percebido72 Commented [92]: Porto Editora:
Pera gamo. "PÊRO" passou a "PÊRO"
INÊS Que houvésseis por prazer Carregado ides, noss'amo,
De irmos lá em romaria. Com duas lousas.»

PÊRO Seja logo, sem deter PÊRO Commented [93]: Porto Editora:
«Pois assi se fazem as cousas» "PÊRO" passou a "PÊRO"
INÊS Este caminho é comprido... Commented [101]: Porto Editora:
Contai uma história, marido. INÊS "PÊRO" passou a "PÊRO"
«Bem sabedes vós, marido,
PÊRO Bofá que me praz, mulher Quanto vos quero. Commented [94]: Porto Editora:
Sempre fostes percebido "PÊRO" passou a "PÊRO"
INÊS Passemos primeiro o rio. Pera cervo73.
Descalçai-vos. Agora vos tomou o demo
Com duas lousas.»
PÊRO E pois como? Commented [95]: Porto Editora:
PÊRO "PÊRO" passou a "PÊRO"
INÊS E levar me-eis no ombro, «Pois assi se fazem as cousas.» Commented [102]: Porto Editora:
Não me corte a madre o frio. E assi se vão, e se acaba o dito Auto. "PÊRO" passou a "PÊRO"

Põe-se Inês Pereira às costas do marido, e diz:

INÊS Marido, assi me levade.

PÊRO Ides à vossa vontade? Commented [96]: Porto Editora:


"PÊRO" passou a "PÊRO"
INÊS Como estar no Paraíso!

PÊRO Muito folgo eu com isso. Commented [97]: Porto Editora:


"PÊRO" passou a "PÊRO"
INÊS
Esperade ora, esperade!
Olhai que lousas aquelas,
72
Sempre tivestes predisposição, destinado.
Pera poer as talhas nelas!
73
Cuco, gama, cervo são símbolos tradicionais do
marido enganado.
17

A Estrutura

FARSA DE INÊS PEREIRA

Exposição Conflito Desenlace

• Inês solteira • Inês casada • Inês viúva e


casada

Pero Braz da Pedro


Marques Mata Marques

QUESTIONÁRIO – Compreensão global

1. Delimite as várias partes deste auto, fazendo um breve resumo de cada uma delas.

2. De que se queixa Inês Pereira? Justifique.

3. Há um conflito de gerações entre Inês e a Mãe. Explicite-o.

4. Explique o conflito no primeiro diálogo de Inês Pereira com a Mãe.

5. Caracterize a personagem Inês Pereira tendo em conta as três fases diferentes da sua vida amorosa.

6. Que papel desempenha a Lianor Vaz?

7. Lianor Vaz conta um caso que teve com um clérigo. Resuma-o.

8. Que dizia a carta remetida por Pêro Marques? Commented [103]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"

9. Comente os conselhos que a Mãe dá à Inês.

10. Explique o significado da seguinte fala da Mãe: «toucar-te, se cá vier».


18

11. Compare o discurso de apresentação de Pêro Marques com o do Escudeiro. Commented [104]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"

12. Que pensou Inês Pereira de Pêro Marques? Commented [105]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"

13. Dê exemplos de cómico de situação nas cenas em que entra o Pêro Marques. Commented [106]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"

14. Que tipos sociais são criticados no Escudeiro, na Lianor Vaz e nos Judeus casamenteiros?
Justifique.

15. Por que razão é que Inês Pereira preferiu inicialmente o Escudeiro a Pêro Marques? Commented [107]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"

16. Há uma antinomia entre o comportamento inicial do Escudeiro e o comportamento posterior ao


casamento. Refira-a.

17. Comente a situação económica do Escudeiro.

18. Que função desempenha o Moço no auto?

19. Que acontecimento leva Inês Pereira a libertar-se do compromisso assumido com o Escudeiro?

20. Explicite as concessões de Pêro Marques da cena final face às exigências de Inês Pereira. Commented [108]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"

21. Explique o significado das seguintes expressões: «panela sem asa» e «sam coruja ou corujo».

22. Explique o significado da seguinte expressão: «A Madanela quando achou a aleluía».

23. Explique as seguintes palavras da Mãe, tendo em conta as razões que estão na génese desta farsa:
«Mata o cavalo de sela e bom é o asno que me leva».

24. Que relação tinha o Ermitão com Inês Pereira?

25. Como reage Inês às palavras do Ermitão?

26. O que é que se prevê que suceda depois que Inês Pereira aceitou Pêro Marques? Commented [109]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"

27. Será Inês Pereira fiel ao novo marido? Justifique a sua resposta com expressões do texto.

28. Desenvolva, numa composição cuidada, o tema da mulher e do casamento na época dos
Descobrimentos, tendo em conta a dicotomia idealismo / realidade.

1. Apesar do título, esta peça foi motivada pela frase "Mais quero asno que me leve que cavalo que me
derrube". Explica a relação entre ambos.

2. Caracteriza a personagem principal da peça.

3. Compara o papel de Lianor Vaz com o dos Judeus.

4. Explica a simbologia contida na boda do primeiro casamento de Inês.

5. Quais os temas que o autor pretende fazer refletir através desta peça. Commented [110]: Porto Editora:
"reflectir" passou a "refletir"
19

Ridendo, castigat mores

1. Que objetivo ou objetivos terá Gil Vicente desejado alcançar com esta obra?
a. Realizou-os incondicionalmente?

estupidez ingénua
o contraste entre a argúcia dos judeus e a fragilidade de Inês
o contraste entre a aparência e a realidade do Escudeiro
personagens o marido enganado

o encontro entre Inês e o lavrador labrego


cómico situações o acanhamento de Pero Marques
o cruzamento das mentiras do amo e das verdades do criado
cena final

l vários vários registos de língua


inguagem
as ladaínhas burlescas
os efeitos sonoros da rima

MINHA SENHORA DE QUÊ

dona de quê
se na paisagem onde se projetam O poema de Ana Luísa Amaral questiona o papel Commented [111]: Porto Editora:
pequenas asas deslumbrantes folhas "projectam" passou a "projetam"
da mulher na atualidade – aquela a quem dói a
nem eu me projetei Commented [112]: Porto Editora:
consciência – por não se conseguir dar resposta às várias
se os versos apressados "projectei" passou a "projetei"
me nascem sempre urgentes:
solicitações (tarefas domésticas, profissão e o seu
trabalhos de permeio refeições próprio prazer). Este poema dista cerca de 500 anos da
doendo a consciência inusitada Farsa de Inês Pereira, contudo, o desejo de ser “dona de
dona de mim nem sou si” e do seu tempo mantém-se.
se sintaxes trocadas A partir dos dados fornecidos, elabora, um
o mais das vezes nem minha intenção comentário ao poema. (extensão entre cento e cinquenta
se sentidos diversos ocultados a duzentas palavras).
nem do oculto nascem
(poética do Hades quem me dera!)
Dona de nada senhora nem
de mim: imitações de medo
os meus infernos

(Ana Luísa Amaral)


20

SINOPSE

Inês Pereira, moça simples e casadoira mas com grande ambição procura marido que
seja astuto, sedutor, “que saiba tanger viola, e eu coma cebola.” A mãe de Inês, preocupada
com a sua filha, sua educação e casamento, incita-a a casar com Pêro Marques, pretendente Commented [113]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
arranjado pela alcoviteira
Leonor Vaz, no entanto Inês Pereira não se apraz do filho do lavrador, por este ser
ignorante e inculto. Entretanto entram em peça dois “casamenteiros judeus” que também
cuidavam de arranjar marido para Inês, e se bem procuraram melhor acharam e Inês casa com
um escudeiro, de sua graça Brás da Mata.
Este casamento depressa se revela desastroso para Inês, que por tanto procurar um
marido astuto acaba por casar com um que antes de sair em missão para África, dá ordens ao
seu moço que fique a vigiar Inês e que a tranque em casa de cada vez que sair à rua. Brás da
Mata, era um escudeiro falido que casou com Inês de forma a poder aproveitar-se do seu dote.
Três meses após a sua partida, Inês recebe a agradável notícia de que o seu marido foi
morto por um mouro. Não tarda em querer casar de novo, e é nesse mesmo dia que Leonor
Vaz lhe traz a notícia que Pêro Marques, continua casadoiro, de resto como este tinha Commented [114]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
prometido a Inês aquando do primeiro encontro destes. Inês casa com ele logo ali, e já no fim
da história aparece um falso monge que se torna amante da protagonista.
O ditado “mais quero asno que me carregue que cavalo que me derrube”, não podia ser
melhor representado do que na última cena da obra quando o marido a carrega em ombros até
ao amante, e ainda canta com ela “assim são as coisas”.

Caracterizacão das personagens

 Inês: moça do povo ambiciosa que deseja ascender socialmente


o solteira: alegre, preguiçosa, leviana, só pensa em casar, teimosa, ambiciosa, insensata,
fantasiosa, sabida, resmungona
o casada com o Escudeiro: engaiolada, não ri, não pode falar, nem ir à janela, aceita a situação
pois reconhece a culpa, desencantada, arrependida
o casada com Pêro Marques: vingativa, infiel, fingida Commented [115]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"

 Mãe: mulher do povo


o confidente, conselheira, amiga, compreensiva, sincera, realista, conformista, resmungona

o Lianor Vaz: alcoviteira (casamenteira)


honesta, amiga, conselheira, desinteressada, persistente, sincera

o Judeus: alcoviteiros (casamenteiros)


o desonestos, interesseiros, falsos/mentirosos, materialistas, aldrabões

 Pêro Marques: lavrador Commented [116]: Porto Editora:


"Pêro" passou a "Pêro"
o estúpido/parvo/ignorante, honesto, rico, bom marido, respeitador, rude/deselegante, generoso,
ingénuo, obediente

 Escudeiro: baixa nobreza (fidalgo)


o antes de casar: gentil, interessado, bem falante, sabe tocar viola, vaidoso, esperto
o depois de casar: pelintra, desleal, mentiroso, autoritário, cruel, cobarde, egoísta
21

Personagens tipo:
 Inês: moça do povo ambiciosa
 Pêro Marques: pouca educação do homem do campo, o asno, o inadaptado à sociedade Commented [117]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
 Escudeiro: a baixa nobreza em degradação: faminta e pelintra
 Lianor Vaz: alcoviteira
 Mãe: materialista, quer ver a filha bem arrumada, com estabilidade económica
 Judeus: mundo da aldrabice e do interesse monetário
 Ermitão: clero leviano que esquece os seus deveres e a sua moral
 Moço: classe servente (povo)

Cómicos

 Cómico de Carácter

o Ex.: concretiza-se nas figuras de Pêro Marques (provinciano e bronco nitidamente deslocado Commented [118]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
junto de Inês e da Mãe) e do Escudeiro pobre e cobarde mas dissimulando na elegância do seu
discurso, na variedade das suas prendas (canta e toca) e na fanfarronice solene todas as suas
fraquezas e misérias.

 Cómico de Situação
o Ex.: quando Pêro Marques se senta na cadeira ao contrário e de costas para Inês e para a Mãe Commented [119]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
(vv.288-91);
o na fala dos Judeus casamenteiros, que, na sua sofreguidão e calculismo para conseguirem
casar Inês com o Escudeiro, se interrompem, repetem e atropelam constantemente (vv.423-
64);
o no episódio final quando Pêro Marques, descalço, transporta Inês às costas, mais duas lousas Commented [120]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
que lhe agradam e para cúmulo, aceita cantar uma cantiga que o apelida de "marido cuco"
(vv.1105-41).

 Cómico de Linguagem
o Ex.: quando Pêro Marques entra com a sua linguagem recheada de termos e expressões Commented [121]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
provincianas e sobretudo a sua pronúncia (vv.293-316);
o quando os Judeus produzem o seu discurso repetitivo e arrastado (vv.423-64);
o quando Inês se refere a Pêro Marques dizendo "Ei-lo se vem penteando/será com algum Commented [122]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
ancinho?" (vv.271-2);
o na ironia cáustica do Moço desmascarando a pelintrice do Escudeiro (vv.528-49).

 Ironia
o Ex.: no diálogo inicial entre Inês e a Mãe especialmente quando esta se refere à preguiça da
filha (vv.39-42);
o no diálogo entre a Mãe e Lianor Vaz sobre um clérigo que queria ver se ela era macho ou
fêmea (vv.73-90);
o na reação de Inês à carta de Pêro Marques trazida por Lianor (vv.258-62); Commented [123]: Porto Editora:
"reacção" passou a "reação"
o na maneira como Inês imagina Pêro Marques antes da sua apresentação (vv.265-72);
o em algumas falas dos Judeus (vv.454-5); Commented [124]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
o nas respostas e apartes do Moço quando o Escudeiro o prepara para o encontro com Inês e
Commented [125]: Porto Editora:
durante este (vv.524-606); "Pêro" passou a "Pêro"
o na reação da Mãe à apresentação do Escudeiro (vv.627-8); Commented [126]: Porto Editora:
o nas respostas do Moço quando o Escudeiro o encarrega de tomar conta de Inês durante a sua "reacção" passou a "reação"
ausência (vv.824-32);
22

o na fala de Inês, fechada, tecendo considerações sobre a sua situação e o comportamento do


marido (vv.858-66);
o quando Inês recebe a carta de Arzila (vv.899-927);
o no diálogo com Lianor Vaz logo após a sua viuvez, fingindo ter sentido a morte do marido
(vv.950-2).

A temática da peça está profundamente ligada à realidade vivida pela sociedade


portuguesa da época de Gil Vicente: o desejo de ascensão social da pequena burguesia,
que vê no casamento numa forma de consegui-la, o oportunismo, o desprezo pela vida
camponesa e o prestígio das maneiras cortesãs, a ignorância do rústico, embora rico
camponês e sua ingenuidade, a falta de escrúpulos (núcleo da peça). O desenvolvimento do
capitalismo reforçou o poder do monarca e provocou a decadência da nobreza feudal. A
riqueza vinda do comércio ultramarino tendia a ser grande base do prestígio social. A
aristocracia dependia dessa riqueza e procurou diminuir sua importância desprezando-a e
valorizando a origem de sangue, a educação, a fineza, as boas maneiras, a honra e a coragem,
enfim os ideais cavaleirescos. E como a nobreza mesmo decadente, ainda conservava grande
prestígio social, acabou por impor o estereótipo do cavaleiro como modelo a que deviam
aspirar todos aqueles que queriam pertencer à classe superior. A burguesia (comércio e
finanças) procurou imitar esse figurino com desejo de ascensão social. Passaram então a
imitar os nobres sonhando subir na escala social, mas isso tornou-se cómico e ridículo.

Objetivo da crítica vicentina Commented [127]: Porto Editora:


"Objectivo" passou a "Objetivo"
Gil Vicente critica:
 A mentalidade das jovens raparigas;
 Os escudeiros fanfarrões, galantes e pelintras;
 A selvajaria e ingenuidade de Pêro Marques; Commented [128]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
 As alcoviteiras e os judeus casamenteiros;
 Os casamentos por conveniência;
 Os clérigos e os Ermitões.

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