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João, o
terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII.
O seu argumento é que porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o
Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este
tema sobre que fizesse: segundo um exemplo comum que dizem: Commented
que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez
figuras são Farsa
as seguintes: Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; Pêro
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mais quero
Marques;
[1]: Portoasno
"Pêro" passou a "Pêro"
esta farsa. As
"Pêro" passou a "Pêro"
Editora:
sorte, muito fantesiosa, está lavrando em casa, e sua mãe é a ouvir missa, Commented e[5]:elaPortocanta
Editora:
10.ºC econ
esta cantiga: Canta Inês: Quien D veros pena y muere Que hará quando no os viere?
"hei-de" passou a "hei de"
Commented [6]: Porto Editora:
(Falando) INÊS Renego EBS destedolavrar
Cerco E do primeiro que o usou; Ó diabo que
"hei-de" passouoa "hei
eude"dou,
Que tão mau é d'aturar.Oh Jesu! que enfadamento, E que aiva, e que tormento, Commented [7]: Porto Editora:
"hei-de" passou a "hei de"
Paula Cruz | cercarte.blogspot.com
Que cegueira, e que canseira! Eu hei de buscar maneira Commented D'algum [8]: Portooutro
Editora:
aviamento.Coitada, assi hei de estar Encerrada nesta casa Como panela sem asa,Que
"hei-de" passou a "hei de"
Commented [9]: Porto Editora:
sempre está num lugar? E assi hão de ser logrados Dous dias amargurados, "hei-de" passou a "heiQue
de" eu
possa durar viva? E assim hei de estar cativa Em poder de desfiados?Antes "hei-de" passouo darei
Commented [10]: Porto Editora:
a "hei de" ao
Diabo Que lavrar mais nem pontada. Já tenho a vida cansada De fazer Commentedsempre [11]: Porto dum
Editora:
"hei-de" passou a "hei de"
cabo. Todas folgam, e eu não, Todas vêm e todas vão A seguinte farsa de folgar foi
Commented [12]: Porto Editora:
representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do nome em
"hei-de" passou a "hei de"
Commented [13]: Porto Editora:
Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O "hei-de" seu passou
argumento
a "hei de" é
que porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia Commented de si
[14]: mesmo
Porto Editora:
"hei-de" passou a "hei de"
estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre Commented que [15]:fizesse:
Porto Editora:
segundo um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me"hei-de" leve que cavalo
passou a "hei de"
Commented [16]: Porto Editora:
que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa. As figuras são "hei-de" as
passouseguintes:
a "hei de"
Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; Pêro Marques; dous Judeus (um"hão-de" chamado Latão,
Commented [17]: Porto Editora:
passou a "hão de"
outro Vidal); um Escudeiro com um seu Moço; um Ermitão; Luzia e Commented Fernando. Finge-
[18]: Porto Editora:
se que Inês Pereira, filha de hüa molher de baixa sorte, muitoCommented fantesiosa, está
"hão-de" passou a "hão de"
[19]: Porto Editora:
lavrando em casa, e sua mãe é a ouvir missa, e ela canta esta cantiga: Canta
"hão-de" passou a "hão de"Inês:
Quien con veros pena y muere Que hará quando no os viere? Commented [20]: Porto Editora:
"hão-de" passou a "hão de"
(Falando) INÊS Renego deste lavrar E do primeiro que o usou; Ó diabo que o eu dou,
Que tão mau é d'aturar.Oh Jesu! que enfadamento, E que aiva, e que tormento,
Que cegueira, e que canseira! Eu hei de buscar maneira D'algum outro
aviamento.Coitada, assi hei de estar Encerrada nesta casa Como panela sem asa,Que
sempre está num lugar? E assi hão de ser logrados Dous dias amargurados, Que eu
possa durar viva? E assim hei de estar cativa Em poder de desfiados?Antes o darei ao
Diabo Que lavrar mais nem pontada. Já tenho a vida canhgsada De fazer sempre dum
cabo. Todas folgam, e eu não, Todas vêm e todas vão A seguinte farsa de folgar foi
representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do nome em
Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é
que porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia de si mesmo
estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse:
segundo um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo
que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa. As figuras são as seguintes:
Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; Pêro Marques; dous Judeus (um chamado Latão,
1
Farsa de Gil Vicente que foi representada pela primeira vez em 1523. As farsas,
diametralmente opostas às «moralidades», baseiam-se em temas da vida quotidiana, tendo um
enredo cómico e profano. A Farsa de Inês Pereira parte da glosa de um mote: «mais quero
asno que me leve, que cavalo que me derrube». Esta circunstância é explicada na didascália de
abertura do texto: «que por quanto duvidavam certos homens de bom saber se o autor fazia de
si mesmo estas obras, ou se as furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que
fizesse».
Todo este enquadramento recorda a inserção do teatro vicentino no contexto da Corte.
A ideia de glosa de um mote é claramente cancioneiril, e a menção dos «homens de bom
saber» constitui uma referência direta ao público cortês, devidamente familiarizado com as Commented [21]: Porto Editora:
"directa" passou a "direta"
convenções de elaboração e receção do texto literário. Este era dotado de uma incontornável
Commented [22]: Porto Editora:
vertente não só dramática mas acentuadamente teatral, facto que o ligava intimamente à sua "recepção" passou a "receção"
receção, como é óbvio neste caso. Commented [23]: Porto Editora:
"recepção" passou a "receção"
Entre o «asno» e o «cavalo» do mote inicial oscilará Inês Pereira, a personagem
principal, jovem casadoira mas exigente. O «asno» é Pêro Marques, o seu primeiro Commented [24]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
pretendente, que lhe é trazido por Lianor da Vaz, alcoviteira típica do tempo. Pêro Marques,
Commented [25]: Porto Editora:
lavrador inculto que nunca viu sequer uma cadeira, personifica a rusticitas, que porque se "Pêro" passou a "Pêro"
opõe diametralmente à urbanitas cortês, à referida cultura assente em convenções
comportamentais, não deixa de provocar o riso, assim funcionando como mecanismo
subliminar do autoelogio da Corte. Inês Pereira recusa-o, pois pretende antes alguém que Commented [26]: Porto Editora:
"auto-elogio" passou a "autoelogio"
demonstre alguma urbanidade, alguém que, à boa maneira da Corte, saiba combater, fazer
versos, cantar e dançar, alguém como Brás da Mata, o segundo pretendente, que lhe é trazido
pelos Judeus Casamenteiros, um pouco menos sinceros e bem-intencionados do que Lianor
Vaz. Mas Brás da Mata representa apenas o triunfo das aparências, um simulacro de
elegância, boa-educação e bem-estar social, que acredita no casamento como solução para as
suas dificuldades financeiras. Incapaz de ver para além das aparências, Inês escolhê-lo-á como
marido, assim definindo o seu carácter ao longo das diversas situações da peça: solteira
ingénua mas cheia de ambições de ascensão social, casada com o escudeiro e desencantada,
viúva, depois de o marido morrer na guerra fugindo de uma batalha (violação de um dos
elementos fulcrais do código cortês), e, finalmente, esposa leviana e adúltera de Pêro Commented [27]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
Marques, o «asno» que literalmente a leva às costas para o encontro com o seu amante.
Trata-se, portanto, de uma sátira aos costumes da vida doméstica, jogando com o tema
medieval da mulher como personificação da ignorância e da malícia.
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A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do
nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é que
porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se
furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse: segundo um exemplo comum que
dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa.
As figuras são as seguintes: Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; Pêro Marques; dous Judeus (um Commented [28]: Porto Editora:
chamado Latão, outro Vidal); um Escudeiro com um seu Moço; um Ermitão; Luzia e Fernando. "Pêro" passou a "Pêro"
Finge-se que Inês Pereira, filha de hüa molher de baixa sorte, muito fantesiosa, está lavrando em casa,
e sua mãe é a ouvir missa, e ela canta esta cantiga:
Canta Inês: Quien con veros pena y muere Todas vêm e todas vão
Que hará quando no os viere? 1 Onde querem, senão eu.
Hui! e que pecado é o meu,
(E diz:) Ou que dor de coração?
Esta vida he mais que morta.
INÊS Sam eu coruja ou corujo,
Renego deste lavrar2 Ou sam algum caramujo
E do primeiro que o usou; Que não sai senão à porta?
Ó diabo que o eu dou, E quando me dão algum dia
Que tão mau é d'aturar. Licença, como a bugia7,
Oh Jesu! que enfadamento, Que possa estar à janela,
E que raiva, e que tormento, É já mais que a Madanela
Que cegueira, e que canseira! Quando achou a aleluía.
Eu hei de buscar maneira Commented [29]: Porto Editora:
D'algum outro aviamento3. Vem a Mãe, e não na achando lavrando, diz: "hei-de" passou a "hei de"
Coitada, assi hei de estar MÃE Logo eu adivinhei Commented [30]: Porto Editora:
Encerrada nesta casa Lá na missa onde eu estava, "hei-de" passou a "hei de"
Como panela sem asa, Como a minha Inês lavrava
Que sempre está num lugar? A tarefa que lhe eu dei...
E assi hão de ser logrados4 Acaba esse travesseiro! Commented [31]: Porto Editora:
Dous dias amargurados, Hui! Nasceu-te algum unheiro? "hão-de" passou a "hão de"
Que eu possa durar viva? Ou cuidas que é dia santo?
E assim hei de estar cativa Commented [32]: Porto Editora:
Em poder de desfiados5? INÊS Praza a Deos que algum quebranto8 "hei-de" passou a "hei de"
Me tire do cativeiro.
Antes o darei ao Diabo
Que lavrar mais nem pontada. MÃE Toda tu estás aquela!
Já tenho a vida cansada Choram-te os filhos por pão?
De fazer sempre dum cabo6.
Todas folgam, e eu não, INÊS Prouvesse a Deus!
Que já é razão de eu não estar tão singela.
1 Quem com ver-vos pena e morre, que fará quando MÃE Olhade ali o mau pesar9...
vos não vir? Como queres tu casar
2 costura
3 ocupação
4 aproveitados 7 macaca
5 Travesseiros de franja 8 feitiço
6 De estar sempre no mesmo sítio 9 Que desgraça!
3
INÊS E isso hei de ter na mão? PÊRO Virá cá Lianor Vaz, Commented [46]: Porto Editora:
Veremos que lhe dizeis... "hei-de" passou a "hei de"
PÊRO Deitae as peas23 no chão. Commented [54]: Porto Editora:
INÊS Homem, não aporfieis, "PÊRO" passou a "PÊRO"
INÊS Que não quero, nem me apraz. Commented [47]: Porto Editora:
As perlas pera enfiar.. Ide casar a Cascais. "PÊRO" passou a "PÊRO"
Três chocalhos e um novelo...
E as peias no capelo... PÊRO Não vos anojarei mais, Commented [55]: Porto Editora:
E as pêras? Onde estão? Ainda que saiba estalar; "PÊRO" passou a "PÊRO"
E prometo não casar
PÊRO Até que vós não queirais. Commented [48]: Porto Editora:
Nunca tal me aconteceu! "PÊRO" passou a "PÊRO"
Algum rapaz m'as comeu... (Pêro vai-se, dizendo:) Estas vos são elas a vós: Commented [56]: Porto Editora:
Que as meti no capelo, "Pêro" passou a "Pêro"
E ficou aqui o novelo, Anda homem a gastar calçado,
E o pente não se perdeu. E quando cuida que é aviado,
Pois trazia-as de boa mente... Escarnefucham25 de vós!
Creo que lá fica a pea... Pardeus! Bô ia eu à aldeia!
INÊS
Fresco vinha aí o presente (Voltando atrás)
Com folhinhas borrifadas!
Senhora, cá fica o fato?
PÊRO Commented [49]: Porto Editora:
Não, que elas vinham chentadas24 INÊS Olhai se o levou o gato... "PÊRO" passou a "PÊRO"
Cá em fundo no mais quente.
Vossa mãe foi-se? Ora bem... PÊRO Commented [57]: Porto Editora:
Sós nos leixou ela assi?... Inda não tendes candea? "PÊRO" passou a "PÊRO"
Cant'eu quero-me ir daqui, Ponho per cajo que alguém
Não diga algum demo alguém... Vem como eu vim agora,
E vos acha só a tal hora:
INÊS Parece-vos que será bem?
Vós que me havíeis de fazer? Ficai-vos ora com Deos:
Nem ninguém que há de dizer? Çarrai a porta sobre vós Commented [50]: Porto Editora:
(O galante despejado!). Com vossa candeazinha. "há-de" passou a "há de"
E sicais26 sereis vós minha,
PÊRO Entonces veremos nós... Commented [51]: Porto Editora:
Se eu fora já casado, "PÊRO" passou a "PÊRO"
D'outra arte havia de ser ( Vai -s e P ê r o Ma rq u es e d iz In ês P e r ei r a :) Commented [58]: Porto Editora:
Como homem de bom recado. "Pêro" passou a "Pêro"
INÊS
INÊS Pessoa conheço eu
(Quão desviado este está! Que levara outro caminho...
23 cordas 25 escarnecem
24 metidas 26 Se porventura
7
MÃE Pêro Marques foi-se já? LATÃO Eu, e este... Commented [59]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
INÊS E pera que era ele aqui? VIDAL
Pola lama e polo pó,
MÃE E não t'agrada ele a ti? Que era pera haver dó,
Com chuva, sol e Nordeste.
INÊS Vá-se muitieramá27! Foi a coisa de maneira,
Que sempre disse e direi: Tal friúra e tal canseira,
Mãe, eu me não casarei Que trago as tripas maçadas.
Senão com homem discreto, Assi me fadem boas fadas
E assi vo-lo prometo Que me saltou caganeira!
Ou antes o leixarei. Pera vossa mercê ver
Que seja homem mal feito, O que nos encomendou.
Feio, pobre, sem feição,
Como tiver discrição, LATÃO O que nos encomendou
Não lhe quero mais proveito. Será o que hoiver de ser
E saiba tanger viola, Todo este mundo é fadiga
E coma eu pão e cebola. Vós dixestes, fiiha amiga,
Siquer uma cantiguinha! Que vos buscássemos logo...
Discreto, feito em farinha28,
Porque isto me degola29. VIDAL E logo pujemos fogo...
MÃE Sempre tu hás de bailar LATÃO Cala-te! Commented [60]: Porto Editora:
E sempre ele há de tanger? "hás-de" passou a "hás de"
Se não tiveres que comer VIDAL Não queres que diga? Commented [61]: Porto Editora:
O tanger te há de fartar? Não fui eu também contigo? "há-de" passou a "há de"
Tu e eu não somos eu? Commented [62]: Porto Editora:
INÊS Cada louco com sua teima. Tu judeu e eu judeu, "há-de" passou a "há de"
Com uma borda de boleima30 Não somos massa dum trigo?
E uma vez d'água fria,
Não quero mais cada dia. LATÃO Leixa-me falar.
LATÃO
27 Em má hora Esta moça não é tola,
28 meigo
29 agrada
30 bolo 31 Em má hora
8
MÃE MÃE
Inês, guar'-te de rascão52! Amanhã vo-los darão.
Escudeiro queres tu? Pois assi é, bem será
Que não passe isto assi.
INÊS Eu quero chegar ali
Jesu, nome de Jesu! Chamar meus amigos cá,
Quão fora sois de feição! E cantarão de terreiro.
Já minha mãe adivinha...
Folgastes vós na verdade ESCUDEIRO Oh! quem me fora solteiro!
Casar à vossa vontade?
Eu quero casar à minha. INÊS Já vós vos arrependeis?
MÃE ESCUDEIRO
Casa, filha, muit'embora. Ó esposa, não faleis,
Que casar é cativeiro.
ESCUDEIRO
Dai-me essa mão, senhora. Aq u i ve m a Mãe c o m c e rt as m o ças e
man ceb os p e r a faz e re m a f es ta , e d iz u m a
INÊS d elas , p e r n o me Lu z ia :
Senhor de mui boa mente.
Luz. Inês, por teu bem te seja!
ESCUDEIRO Oh! que esposo e que alegria!
Per palavras de presente
Vos recebo desd'agora. INÊS Venhas embora, Luzia,
Nome de Deus, assi seja! E cedo t'eu assi veja.
Eu, Brás da Mata, Escudeiro,
Recebo a vós, Inês Pereira MÃE Ora vae tu ali, Inês,
Por mulher e por parceira E bailareis três por três.
Como manda a Santa Igreja.
FERNANDO Tu connosco, Luzia, aqui,
INÊS E a desposada ali,
Eu, aqui diante Deus, Ora vede qual direis.
Inês Pereira, recebo a vós,
Sem mais preço nem demanda Cantam todos a cantiga que se segue:
Como sancta Igreja manda
A Brás da Mata, «Mal herida va la garça Enamorada,
Sola va y gritos dava.
Ahi somos nós53. A las orillas de um rio
La garça tenia el nido;
VIDAL Ballestero la ha herido
Alça manim, ó dona, ha54! En el alma;
Arreia espeçulá55. Sola va y gritos dava.»
Bento o Deu de Jacob,
Bento o Deu que a Faraó E, acabando de cantar e bailar diz Fernando:
MÃE FERNANDO
Espantou e espantará. Ora, senhores honrados,
Bento o Deu de Abraão, Ficai com vossa mercê,
Benta a terra de Canã56. E nosso Senhor vos dê
Para bem sejais casados! Com que vivais descansados.
Dai-nos cá senhos57 ducados. Isto foi assi agora,
Mas melhor será outr'hora.
Perdoai pelo presente:
Foi pouco e de boa mente.
52 Vadio, desordeiro Com vossa mercê, Senhora...
53 Está o assunto arrumado
54 Levanta as mãos e agradece
Luz.
55 Arranja o cabelo
Ficai com Deus, desposados,
56 Manifestação de alegria segundo uma fórmula
Com prazer e com saúde,
hebraica E sempre Ele vos ajude
57 distribuídos
12
Com que sejais bem logrados. Com homem nem mulher que seja;
Nem somente ir à igreja
MÃE Não vos quero eu leixar
Ficai com Deus, filha minha, Já vos preguei as janelas,
Não virei cá tão asinha58. Por que não vos ponhais nelas.
A minha bênção hajais. Estareis aqui encerrada
Esta casa em que ficais Nesta casa, tão fechada
Vos dou, e vou-me à casinha. Como freira d'Oudivelas.
Senhor filho e senhor meu,
Pois que já Inês é vossa, INÊS
Vossa mulher e esposa, Que pecado foi o meu?
Encomendo-vo-la eu. Porque me dais tal prisão?
E, pois que des que naceu
A outrem não conheceu, ESCUDEIRO
Senão a vós, por senhor Vós buscastes discrição…
Que lhe tenhais muito amor Que culpa vos tenho eu?
Que amado sejais no céu. Pode ser maior aviso,
Maior discrição e siso
Ida a Mãe, fica Inês Pereira e o Escudeiro. E senta- Que guardar o meu tisouro?
se Inês Pereira a lavrar e canta esta cantiga: Não sois vós, mulher meu ouro?
Que mal faço em guardar isso?
INÊS Si no os huviera mirado
No pe Vós não haveis de mandar
nara, Em casa somente um pelo. Commented [74]: Porto Editora:
Pêro tampoco os mirara. Se eu disser: "pêlo" passou a "pelo"
- isto é novelo
O Escudeiro, vendo cantar Inês Pereira, mui - Havei-lo de confirmar
agastado lhe diz: E mais quando eu vier
De fora, haveis de tremer;
ESCUDEIRO E cousa que vós digais
Vós cantais, Inês Pereira? Não vos há de valer mais Commented [75]: Porto Editora:
Em vodas m'andáveis vós? Que aquilo que eu quiser. "há-de" passou a "há de"
Juro ao corpo de Deus (para o criado)
Que esta seja a derradeira!
Se vos eu vejo cantar Moço, às Partes d'Além61
Eu vos farei assoviar.. Me vou fazer cavaleiro.
MOÇO MOÇO
Vós fartai-vos de lavrar Vosso irmão está em Arzila?
Eu me vou desenfadar Eu apostarei que i vem
Com essas moças lá fora: Nova de meu senhor também.
Vós perdoai-me, senhora,
Porque vos hei de fechar. INÊS Já ele partiu de Tavila? Commented [77]: Porto Editora:
"hei-de" passou a "hei de"
Aqui fica Inês Pereira só, fechada, lavrando e MOÇO Há três meses que é passado.
cantando esta cantiga:
INÊS
INÊS Aqui virá logo recado
«Quem bem tem e mal escolhe Se lhe vai bem, ou que faz.
Por mal que lhe venha não s'anoje.»
Renego da discrição MOÇO Bem pequena é a carta assaz!
Comendo ò demo o aviso,
Que sempre cuidei que nisso INÊS Carta de homem avisado.
Estava a boa condição.
Cuidei que fossem cavaleiros Lê Inês Pereira a carta, a qual diz:
Fidalgos e escudeiros,
Não cheios de desvarios, «Muito honrada irmã,
E em suas casas macios,
64 cruéis
62 rebusco 65 Dragão
63 rendimentos 66 Nunca praticas feitos de valor
14
MOÇO INÊS
Oh que triste despedida! Não! já esse tempo passou.
INÊS Sobre quantos mestres são
Mas que nova tão suave! Experiência dá lição.
Desatado é o nó.
Se eu por ele ponho dó, LIANOR
O Diabo me arrebente! Pois tendes esse saber
Pera mim era valente, Querei ora a quem vos quer
E matou-o um mouro só! Dai ò demo a opinião.
Guardar de cavaleirão,
Barbudo, repetenado67, Vai Lianor Vaz por Pêro Marques, e fica Inês Commented [79]: Porto Editora:
Que em figura de avisado Pereira só, dizendo: "Pêro" passou a "Pêro"
É malino e sotrancão68.
Agora quero tomar INÊS Andar! Pêro Marques seja. Commented [80]: Porto Editora:
Pera boa vida gozar, Quero tomar por esposo "Pêro" passou a "Pêro"
Um muito manso marido. Quem se tenha por ditoso
Não no quero já sabido, De cada vez que me veja.
Pois tão caro há de custar. Por usar de siso mero,
Asno que me leve quero,
Aq u i v e m Li an o r V a z, e f in g e In ês E não cavalo folão.
P ere i ra es ta r ch o ran d o , e d iz Li a n o r : Antes lebre que leão,
Antes lavrador que Nero.
LIANOR Como estais, Inês Pereira?
Vem Lionor Vaz com Pêro Marquez e diz Lianor Commented [81]: Porto Editora:
INÊS Muito triste, Lianor Vaz. Vaz: "Pêro" passou a "Pêro"
LIANOR Que fareis ao que Deus faz? LIANOR Nô mais cerimónias agora;
Abraçai Inês Pereira
INÊS Casei por minha canseira. Por mulher e por parceira.
LIANOR Se ficaste prenhe basta. PÊRO Há homem empacho70, Commented [82]: Porto Editora:
má-hora, Cant'a dizer abraçar.. "PÊRO" passou a "PÊRO"
INÊS Bem quisera eu dele casta69,
Mas não quis minha ventura. Depois que a eu usar Entonces poderá ser:
INÊS Marido, não digo isso. PÊRO I-vos embora, mulher Commented [89]: Porto Editora:
Não tenho lá que fazer "PÊRO" passou a "PÊRO"
PÊRO Pois que dizeis vós, mulher? (Inês fala a sós com o Ermitão): Commented [87]: Porto Editora:
"PÊRO" passou a "PÊRO"
INÊS INÊS Tomai a esmola, padre, lá,
Ir folgar onde eu quiser Pois que Deus vos trouxe aqui.
INÊS Padre, mui bem vos entendo PÊRO Commented [98]: Porto Editora:
Ó demo vos encomendo, Quereis que as leve? "PÊRO" passou a "PÊRO"
Que bem sabeis vós pedir!
Eu determino lá d'ir INÊS Si. Uma aqui e outra aqui.
À ermida, Deus querendo. Oh como folgo com elas!
Cantemos, marido, quereis?
ERMITÃO E quando?
PÊRO Commented [99]: Porto Editora:
INÊS I-vos, meu santo, Eu não saberei entoar.. "PÊRO" passou a "PÊRO"
Que eu irei um dia destes
Muito cedo, muito prestes. INÊS Pois eu hei só de cantar
E vós me respondereis
ERMITÃO Señora, yo me voy en tanto. Cada vez que eu acabar:
«Pois assi se fazem as cousas».
(Inês torna para Pêro Marques): Commented [90]: Porto Editora:
Canta Inês Pereira: "Pêro" passou a "Pêro"
INÊS Em tudo é boa a concrusão.
Marido, aquele ermitão INÊS «Marido cuco me levades
É um anjinho de Deus... E mais duas lousas.»
PÊRO Corregê vós esses véus PÊRO «Pois assi se fazem as cousas.» Commented [91]: Porto Editora:
E ponde-vos em feição. "PÊRO" passou a "PÊRO"
INÊS Commented [100]: Porto Editora:
INÊS Sabeis vós o que eu queria? «Bem sabedes vós, marido, "PÊRO" passou a "PÊRO"
Quanto vos amo.
PÊRO Que quereis, minha mulher? Sempre fostes percebido72 Commented [92]: Porto Editora:
Pera gamo. "PÊRO" passou a "PÊRO"
INÊS Que houvésseis por prazer Carregado ides, noss'amo,
De irmos lá em romaria. Com duas lousas.»
PÊRO Seja logo, sem deter PÊRO Commented [93]: Porto Editora:
«Pois assi se fazem as cousas» "PÊRO" passou a "PÊRO"
INÊS Este caminho é comprido... Commented [101]: Porto Editora:
Contai uma história, marido. INÊS "PÊRO" passou a "PÊRO"
«Bem sabedes vós, marido,
PÊRO Bofá que me praz, mulher Quanto vos quero. Commented [94]: Porto Editora:
Sempre fostes percebido "PÊRO" passou a "PÊRO"
INÊS Passemos primeiro o rio. Pera cervo73.
Descalçai-vos. Agora vos tomou o demo
Com duas lousas.»
PÊRO E pois como? Commented [95]: Porto Editora:
PÊRO "PÊRO" passou a "PÊRO"
INÊS E levar me-eis no ombro, «Pois assi se fazem as cousas.» Commented [102]: Porto Editora:
Não me corte a madre o frio. E assi se vão, e se acaba o dito Auto. "PÊRO" passou a "PÊRO"
A Estrutura
1. Delimite as várias partes deste auto, fazendo um breve resumo de cada uma delas.
5. Caracterize a personagem Inês Pereira tendo em conta as três fases diferentes da sua vida amorosa.
8. Que dizia a carta remetida por Pêro Marques? Commented [103]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
11. Compare o discurso de apresentação de Pêro Marques com o do Escudeiro. Commented [104]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
12. Que pensou Inês Pereira de Pêro Marques? Commented [105]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
13. Dê exemplos de cómico de situação nas cenas em que entra o Pêro Marques. Commented [106]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
14. Que tipos sociais são criticados no Escudeiro, na Lianor Vaz e nos Judeus casamenteiros?
Justifique.
15. Por que razão é que Inês Pereira preferiu inicialmente o Escudeiro a Pêro Marques? Commented [107]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
19. Que acontecimento leva Inês Pereira a libertar-se do compromisso assumido com o Escudeiro?
20. Explicite as concessões de Pêro Marques da cena final face às exigências de Inês Pereira. Commented [108]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
21. Explique o significado das seguintes expressões: «panela sem asa» e «sam coruja ou corujo».
23. Explique as seguintes palavras da Mãe, tendo em conta as razões que estão na génese desta farsa:
«Mata o cavalo de sela e bom é o asno que me leva».
26. O que é que se prevê que suceda depois que Inês Pereira aceitou Pêro Marques? Commented [109]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
27. Será Inês Pereira fiel ao novo marido? Justifique a sua resposta com expressões do texto.
28. Desenvolva, numa composição cuidada, o tema da mulher e do casamento na época dos
Descobrimentos, tendo em conta a dicotomia idealismo / realidade.
1. Apesar do título, esta peça foi motivada pela frase "Mais quero asno que me leve que cavalo que me
derrube". Explica a relação entre ambos.
5. Quais os temas que o autor pretende fazer refletir através desta peça. Commented [110]: Porto Editora:
"reflectir" passou a "refletir"
19
1. Que objetivo ou objetivos terá Gil Vicente desejado alcançar com esta obra?
a. Realizou-os incondicionalmente?
estupidez ingénua
o contraste entre a argúcia dos judeus e a fragilidade de Inês
o contraste entre a aparência e a realidade do Escudeiro
personagens o marido enganado
dona de quê
se na paisagem onde se projetam O poema de Ana Luísa Amaral questiona o papel Commented [111]: Porto Editora:
pequenas asas deslumbrantes folhas "projectam" passou a "projetam"
da mulher na atualidade – aquela a quem dói a
nem eu me projetei Commented [112]: Porto Editora:
consciência – por não se conseguir dar resposta às várias
se os versos apressados "projectei" passou a "projetei"
me nascem sempre urgentes:
solicitações (tarefas domésticas, profissão e o seu
trabalhos de permeio refeições próprio prazer). Este poema dista cerca de 500 anos da
doendo a consciência inusitada Farsa de Inês Pereira, contudo, o desejo de ser “dona de
dona de mim nem sou si” e do seu tempo mantém-se.
se sintaxes trocadas A partir dos dados fornecidos, elabora, um
o mais das vezes nem minha intenção comentário ao poema. (extensão entre cento e cinquenta
se sentidos diversos ocultados a duzentas palavras).
nem do oculto nascem
(poética do Hades quem me dera!)
Dona de nada senhora nem
de mim: imitações de medo
os meus infernos
SINOPSE
Inês Pereira, moça simples e casadoira mas com grande ambição procura marido que
seja astuto, sedutor, “que saiba tanger viola, e eu coma cebola.” A mãe de Inês, preocupada
com a sua filha, sua educação e casamento, incita-a a casar com Pêro Marques, pretendente Commented [113]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
arranjado pela alcoviteira
Leonor Vaz, no entanto Inês Pereira não se apraz do filho do lavrador, por este ser
ignorante e inculto. Entretanto entram em peça dois “casamenteiros judeus” que também
cuidavam de arranjar marido para Inês, e se bem procuraram melhor acharam e Inês casa com
um escudeiro, de sua graça Brás da Mata.
Este casamento depressa se revela desastroso para Inês, que por tanto procurar um
marido astuto acaba por casar com um que antes de sair em missão para África, dá ordens ao
seu moço que fique a vigiar Inês e que a tranque em casa de cada vez que sair à rua. Brás da
Mata, era um escudeiro falido que casou com Inês de forma a poder aproveitar-se do seu dote.
Três meses após a sua partida, Inês recebe a agradável notícia de que o seu marido foi
morto por um mouro. Não tarda em querer casar de novo, e é nesse mesmo dia que Leonor
Vaz lhe traz a notícia que Pêro Marques, continua casadoiro, de resto como este tinha Commented [114]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
prometido a Inês aquando do primeiro encontro destes. Inês casa com ele logo ali, e já no fim
da história aparece um falso monge que se torna amante da protagonista.
O ditado “mais quero asno que me carregue que cavalo que me derrube”, não podia ser
melhor representado do que na última cena da obra quando o marido a carrega em ombros até
ao amante, e ainda canta com ela “assim são as coisas”.
Personagens tipo:
Inês: moça do povo ambiciosa
Pêro Marques: pouca educação do homem do campo, o asno, o inadaptado à sociedade Commented [117]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
Escudeiro: a baixa nobreza em degradação: faminta e pelintra
Lianor Vaz: alcoviteira
Mãe: materialista, quer ver a filha bem arrumada, com estabilidade económica
Judeus: mundo da aldrabice e do interesse monetário
Ermitão: clero leviano que esquece os seus deveres e a sua moral
Moço: classe servente (povo)
Cómicos
Cómico de Carácter
o Ex.: concretiza-se nas figuras de Pêro Marques (provinciano e bronco nitidamente deslocado Commented [118]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
junto de Inês e da Mãe) e do Escudeiro pobre e cobarde mas dissimulando na elegância do seu
discurso, na variedade das suas prendas (canta e toca) e na fanfarronice solene todas as suas
fraquezas e misérias.
Cómico de Situação
o Ex.: quando Pêro Marques se senta na cadeira ao contrário e de costas para Inês e para a Mãe Commented [119]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
(vv.288-91);
o na fala dos Judeus casamenteiros, que, na sua sofreguidão e calculismo para conseguirem
casar Inês com o Escudeiro, se interrompem, repetem e atropelam constantemente (vv.423-
64);
o no episódio final quando Pêro Marques, descalço, transporta Inês às costas, mais duas lousas Commented [120]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
que lhe agradam e para cúmulo, aceita cantar uma cantiga que o apelida de "marido cuco"
(vv.1105-41).
Cómico de Linguagem
o Ex.: quando Pêro Marques entra com a sua linguagem recheada de termos e expressões Commented [121]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
provincianas e sobretudo a sua pronúncia (vv.293-316);
o quando os Judeus produzem o seu discurso repetitivo e arrastado (vv.423-64);
o quando Inês se refere a Pêro Marques dizendo "Ei-lo se vem penteando/será com algum Commented [122]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
ancinho?" (vv.271-2);
o na ironia cáustica do Moço desmascarando a pelintrice do Escudeiro (vv.528-49).
Ironia
o Ex.: no diálogo inicial entre Inês e a Mãe especialmente quando esta se refere à preguiça da
filha (vv.39-42);
o no diálogo entre a Mãe e Lianor Vaz sobre um clérigo que queria ver se ela era macho ou
fêmea (vv.73-90);
o na reação de Inês à carta de Pêro Marques trazida por Lianor (vv.258-62); Commented [123]: Porto Editora:
"reacção" passou a "reação"
o na maneira como Inês imagina Pêro Marques antes da sua apresentação (vv.265-72);
o em algumas falas dos Judeus (vv.454-5); Commented [124]: Porto Editora:
"Pêro" passou a "Pêro"
o nas respostas e apartes do Moço quando o Escudeiro o prepara para o encontro com Inês e
Commented [125]: Porto Editora:
durante este (vv.524-606); "Pêro" passou a "Pêro"
o na reação da Mãe à apresentação do Escudeiro (vv.627-8); Commented [126]: Porto Editora:
o nas respostas do Moço quando o Escudeiro o encarrega de tomar conta de Inês durante a sua "reacção" passou a "reação"
ausência (vv.824-32);
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