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A Difícil Arte de Ponderar o Imponderável: reflexões em torno da colisão


de direitos fundamentais e da ponderação de valores1

MARMELSTEIN, George. A Difícil Arte de Ponderar o Imponderável: reflexões em torno


da colisão de direitos fundamentais e da ponderação de valores. In: LEITE, George;
SARLET, Ingo & CARBONNEL, Miguel. Direitos, Deveres e Garantias
Fundamentais. Salvador: JusPodivm, 2010.

George Marmelstein
Juiz Federal
Professor de Filosofia do Direito e Direito Constitucional
Doutorando em filosofia do direito pela Universidade de Coimbra – Portugal
Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará
E-mail: georgemlima@yahoo.com.br
Página pessoal: direitosfundamentais.net

“Não há coisa nenhuma que não seja objeto de discussão, e sobre a qual os homens de saber não
tenham opiniões contrárias. Nem mesmo a questão mais trivial escapa à controvérsia, e nas mais
importantes somos incapazes de chegar a uma decisão certa. Multiplicam-se as discussões, como se tudo
fosse incerto, e estas discussões são conduzidas com o maior entusiasmo, como se tudo fosse certo. Em
toda esta agitação não é a razão que alcança o prêmio, mas sim a eloqüência; e ninguém deve jamais
desesperar de conseguir prosélitos para a hipótese mais extravagante, contanto que seja suficientemente
hábil para a apresentar com cores favoráveis. Não alcançam a vitória os soldados em pé de guerra,
manejando a lança e a espada, mas sim os corneteiros, os tambores e os músicos do exército”.
David Hume, Tratado da Natureza Humana2

1 Apresentação do Problema; 2 A Inevitável Colisão de Direitos e a Técnica da Ponderação; 3 Algumas Críticas à


Ponderação de Valores; 3.1 A Subjetividade dos Valores; 3.2 Incomensurabilidade ou Alquimia do Sopesamento; 3.3
Decisionismo ou Efeito Katchanga; 3.4 Enfraquecimento dos Direitos; 4 Uma Conclusão Decepcionante, mas
Esperançosa

1 Apresentação do Problema

Existe uma interessante experiência ética conhecida como “Dilema do Vagão” (“Trolley
Dilemma”), que foi desenvolvida com o objetivo de investigar alguns aspectos misteriosos de nosso
raciocínio ético3. Na experiência, pede-se que imaginemos duas situações hipotéticas envolvendo um

1 Dedico este artigo ao Professor José Manuel Aroso Linhares, da Universidade de Coimbra, que me ensinou, com seu exemplo
vivo, que a humildade intelectual e a vontade de compartilhar idéias e de sempre aprender com o outro, respeitando as divergências
e a multiplicidade de pontos de vistas, estão entre as principais qualidades morais de um ser humano virtuoso.
2 HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, pp. 19/20.
3 A primeira versão do “Trolley Dilemma” foi apresentada pela filósofa inglesa Phillippa Foot. Posteriormente, vários filósofos

desenvolveram versões alternativas do mesmo problema, introduzindo elementos complicadores para tornar a discussão mais rica.
2

suposto trem desgovernado. Em ambas as situações, somos estimulados a nos colocar na situação de um
agente moral capaz de pensar e agir conforme nossas reflexões. As escolhas que serão tomadas pelo agente
moral são consideradas como escolhas éticas na medida em que afetam diretamente outras pessoas de um
modo intenso.

No primeiro caso, o agente moral vê um vagão descontrolado se aproximando de um grupo de


cinco pessoas que estão trabalhando em um trilho abandonado. O vagão fatalmente atropelará os cinco
trabalhadores, pois eles não serão capazes de sair a tempo, nem será possível avisá-los da aproximação do
trem. A morte é iminente. No entanto, o agente moral pode alterar a história. Ele está próximo de uma
manivela que poderá modificar o curso do trem, fazendo com que ele se dirija para outro trilho. Mas, nesse
caso, o trem irá atropelar um trabalhador que também não conseguirá escapar a tempo. Há, portanto, duas
opções: (1) não fazer nada, situação em que o trem seguirá seu curso normal e matará os cinco
trabalhadores ou (2) mudar a rota do vagão, situação em que os cinco trabalhadores serão salvos, mas outra
pessoa será morta. Caso você fosse o agente moral, o que faria? Você alteraria a direção do trem para salvar
os cinco trabalhadores apesar da morte do outro trabalhador?

O segundo caso é sutilmente diferente. Também envolve um trem desgovernado que irá se chocar
com cinco trabalhadores. Porém, dessa vez, não há alavanca para desviar o curso do trem, nem há como
avisar os trabalhadores. A única medida disponível para salvar aquelas pessoas é parando o trem
descontrolado. O agente moral está em cima de uma ponte que atravessa o trilho, no meio do caminho
entre o vagão e os trabalhadores. Ele deseja salvar aqueles trabalhadores, que certamente possuem famílias
e serão mortos se nada for feito. Por coincidência, há uma pessoa bastante gorda na ponte, junto com o
agente moral, que, se fosse jogada em direção aos trilhos, no momento em que o trem passasse, seria capaz
de diminuir a velocidade do vagão, fornecendo uma margem segura de tempo para que os trabalhadores
fossem salvos. O problema é que a pessoa que será jogada no trilho fatalmente irá morrer. Há, portanto,
duas opções: (1) não fazer nada, situação em que o trem seguirá seu curso normal e matará os cinco
trabalhadores ou (2) impedir o avanço do vagão, situação em que os cinco trabalhadores serão salvos, mas
outra pessoa será morta. Se você fosse o agente moral, o que você faria? Jogaria aquela pessoa na frente do
trem?

As duas situações ilustram a dificuldade de se construir justificativas éticas com consistência e


coerência. Cenários muito semelhantes geram reações completamente opostas. A maior parte da população
mundial, conforme pesquisa desenvolvida por psicólogos sociais norte-americanos, desviaria o vagão no
primeiro caso, justificando o ato com base na idéia de que vale a pena salvar cinco pessoas mesmo que isso
possa ceifar a vida de um trabalhador inocente que não seria morto se o vagão seguisse seu curso normal. O
senso moral comum acredita que a ação correta, nessa primeira situação, é tentar evitar o máximo
sofrimento do maior número de pessoas. Por outro lado, na segunda situação, a grande maioria das pessoas
não jogaria o gordinho de uma ponte para salvar os mesmos cinco trabalhadores. O senso moral comum
não considera correto causar a morte direta de um inocente mesmo que isso seja capaz de salvar a vida de
cinco seres humanos. Empurrar uma alavanca para salvar cinco vidas, causando a morte de uma pessoa, é
correto, mas empurrar uma pessoa para salvar cinco vidas, causando a morte da pessoa empurrada, é
moralmente errado, de acordo o pensamento moral da grande maioria de pessoas. A rigor, o saldo final de
ambas as situações pode ser exatamente o mesmo a depender da escolha do agente moral, pois o que está
em jogo é a vida da mesma quantidade de pessoas. No entanto, há um forte apelo moral para abominar a
idéia de sacrificar uma vida no segundo caso. Como conciliar essas duas idéias?

Neste artigo, descrevo as duas situações mais conhecidas do “Dilema do Vagão”, tal como exploradas em SANDEL, Michael.
Justice: what’s the right thing to do?. Nova Iorque: Farrar, Straus and Giroux, 2009, pp. 21/24.
3

O exercício mental proposto pelo “Dilema do Vagão” tem sido um campo fértil de pesquisa para o
desenvolvimento do conhecimento produzido pela filosofia moral, sendo aproveitado também pela
neurociência e pela psicologia social para estudar o comportamento e as escolhas éticas dos indivíduos4. Há
inúmeras teorias concorrentes – teorias utilitaristas, teorias deontológicas, teoria do duplo efeito, ética das
virtudes, ética do afeto etc – que tentam fornecer explicações para lançar luzes sobre dilemas éticos e
justificar a tomada de posição acerca do que devemos fazer em cada situação. Não pretendo, neste trabalho,
avançar por este terreno. Meu objetivo é trazer a discussão para o campo do pensamento jurídico, pois
acredito que as perplexidades levantadas também podem ser úteis para esclarecer algumas intrigantes
questões presentes no mundo do direito.

Quase toda decisão judicial é, em última análise, uma decisão ética, na medida em que afeta os
interesses de outras pessoas além do próprio agente moral responsável pelo julgamento. Em muitas
situações, os juízes terão que realizar escolhas semelhantes ao do agente moral que pode desviar o vagão
para salvar a vida de cinco pessoas, mesmo que isso possa causar um grande mal a outras pessoas, cujos
interesses também precisam ser levados em consideração. Sobretudo diante da exaltação das diferenças e da
pluralidade cultural proporcionada pelo modelo democrático contemporâneo, onde diversos valores morais
antagônicos passaram a ser protegidos num grau jurídico máximo pelos textos constitucionais e pelos
textos das declarações internacionais de direitos humanos, as respostas judiciais aos problemas jurídicos
adquiriram um tom trágico. Em muitas situações, a solução adotada pelos julgadores, qualquer que seja,
poderá sacrificar valores importantes que, a depender da perspectiva, mereceriam tanto ou até mais
proteção do que o valor oposto que findou por prevalecer na decisão final.

O presente artigo tem como objetivo discutir algumas dessas intrigantes questões envolvendo os
dilemas judiciais que surgem por ocasião daquilo que se convencionou chamar, no meio jurídico, de colisão
ou conflito de direitos fundamentais. Ocorre uma colisão de direitos quando dois ou mais princípios
constitucionais podem ser invocados para justificar soluções opostas para o mesmo problema concreto. Em
situações assim, qualquer decisão adotada pelos julgadores pode encontrar uma norma constitucional que
lhe dê suporte. Ou seja, há duas normas de igual hierarquia jurídica capazes de fornecer soluções
contraditórias para o mesmo problema. Como solucionar conflitos dessa espécie? Qual o método sugerido
pela teoria do direito e como os julgadores reais vêm utilizando esse método? Que tipos de problemas
decorrem da adoção de tal método? Eis algumas questões que pretendo enfrentar.

Dividirei a análise do tema em duas partes.

Num primeiro momento, tentarei desenvolver uma explicação a respeito da origem da colisão de
direitos e da ponderação de valores a ela relacionada, defendendo a idéia de que esse fenômeno está
intimamente conectado com a ascensão do constitucionalismo ocorrida sobretudo a partir da Segunda Guerra
Mundial. Explicarei porque, inevitavelmente, surgem colisões de direitos fundamentais em um modelo

4 Fiery Cushman, Liane Young e Marc Hauser, cientistas do Departamento de Psicologia da Universidade de Harvard, utilizaram
dilemas morais semelhantes para estudar o papel do raciocínio ético e da intuição nos julgamentos morais. Para isso,
desenvolveram o “Moral Sense Test” para analisar empiricamente o desenvolvimento da psicologia moral dos indivíduos, no
intuito de “obter insights sobre as semelhanças e diferenças entre os julgamentos morais das pessoas de idades diferentes, de
culturas diferentes, com diferentes formações e crenças religiosas, envolvidos em diferentes ocupações e expostas a diferentes
circunstâncias”. Maiores informações sobre a experiência e os resultados obtidos podem ser consultados em:
http://moral.wjh.harvard.edu/index.html. No que se refere ao “Dilema do Vagão”, quase todas as trinta mil pessoas consultadas,
independentemente de idade, religião, gênero, formação ou país de origem, alterariam a rota do trem no primeiro caso, mas apenas
um em cada seis entrevistados empurraria o homem de cima da ponta para salvar a vida dos cinco homens (CUSHMAN, Fiery,
YOUNG, Liane, & HAUSER, Marc. (2006). The Role of Conscious Reasoning and Intuition in Moral Judgment:
Testing Three Principles of Harm. Disponível On-Line:
http://www.wjh.harvard.edu/~mnkylab/publications/recent/CushmanMoralPrinciplesPsySci.pdf).
4

constitucional democrático e descreverei os elementos básicos da técnica de ponderação que, normalmente,


é apresentada pelos juristas contemporâneos como o método a ser adotado na solução de conflitos
normativos dessa natureza.

Em seguida, avaliarei algumas críticas que podem ser feitas à técnica da ponderação – tal como
utilizada pela prática jurídica brasileira -, tentando demonstrar como ainda estamos longe de se chegar a
um método satisfatório para solucionar, com consistência, as colisões de direitos fundamentais. Tentarei
também fornecer algumas sugestões para minimizar os problemas que decorrem do uso da ponderação de
valores na atividade jurídica.

2 A Inevitável Colisão de Direitos e a Técnica da Ponderação

Veit Harlan (1899 – 1964) foi um cineasta alemão do século XX, que, no auge do regime nazista,
abraçou o nacional-socialismo e incluiu a ideologia anti-semita no contexto de suas produções artísticas.
Em 1940, por exemplo, a pedido do Ministro da Propaganda Nazista, Joseph Goebbels, Harlan dirigiu o
filme Jud Süß, que foi considerado como uma das mais odiosas e negativas representações dos judeus no
cinema. Com a queda do nazismo e o conseqüente processo de desnazificação pelo qual passou a sociedade
alemã, Veit Harlan foi processado e julgado por suas ligações com o movimento anti-semita, mas foi
inocentado.

Nos anos 50, Veit Harlan tentou retornar à indústria do cinema, dirigindo um romântico filme
chamado “Amada Imortal” (Unsterbliche Geliebte), que não tinha qualquer conteúdo anti-semita ou de
apologia ao nazismo. Ocorre que o nome de Veit Harlan ainda estava fortemente vinculado ao nacional-
socialismo, e a sua cumplicidade com a ideologia nazista não fora totalmente apagada da memória dos
judeus. Por esse motivo, por ocasião do lançamento do filme “Amada Imortal”, vários judeus de prestígio e
de influência na mídia alemã resolveram boicotar o trabalho do cineasta alemão. À frente do boicote, estava
Eric Lüth, um judeu que presidia o Clube de Imprensa de Hamburgo.

Lüth escreveu um manifesto incisivo contra o cineasta, pedindo aos proprietários de salas de
cinema e empresas de distribuição de filmes que não incluíssem o “Amada Imortal” em sua programação e
conclamando os “alemães decentes” a não assistirem o referido filme. Eis suas palavras:

“Depois que a cinematografia alemã no terceiro Reich perdeu sua reputação moral, um certo homem é
com certeza o menos apto de todos a recuperar esta reputação: Trata-se do roteirista e diretor do filme
‘Jud Süß’. Poupemo-nos de mais prejuízos incomensuráveis em face de todo o mundo, o que pode
ocorrer, na medida em que se procura apresentar justamente ele como sendo o representante da
cinematografia alemã. Sua absolvição em Hamburgo foi tão somente uma absolvição formal. A
fundamentação daquela decisão (já) foi uma condenação moral. Neste momento, exigimos dos
distribuidores e proprietários de salas de cinema uma conduta que não é tão barata assim, mas cujos
custos deveriam ser assumidos: Caráter. E é um tal caráter que desejo para a cinematografia alemã. Se a
cinematografia alemã o demonstrar, provando-o por meio de fantasia, arrojo óptico e por meio da
competência na produção, então ela merece todo apoio e poderá alcançar aquilo que precisa para viver:
Sucesso junto ao público alemão e internacional”.

O manifestou foi veiculado em diversos meios de comunicação, a pedido de Lüth. Por conta disso,
o filme foi um fracasso de público, causando grande prejuízo aos empresários que financiaram a sua
produção e comercialização.
5

Veit Harlan, juntamente com os empresários que estavam investindo no filme, ingressaram com
ação judicial alegando que o boicote de Eric Lüth violava o Código Civil alemão. Sustentaram que todo
aquele que causa prejuízo deve cessar o ato danoso e reparar os danos causados. O boicote liderado por
Lüth dificultava o livre exercício de uma atividade econômica legítima e atingia a honra de Veit Harlan.
Com isso, foi pedida uma ordem judicial que proibisse Eric Lüth de prosseguir com o boicote.

A tese jurídica que entendia que o boicote era um ato ilícito prevaleceu em todas as instâncias
ordinárias. O Tribunal de Hamburgo, por exemplo, entendeu que, uma vez “que Harlan por causa de sua
participação no filme ‘Jud Süß’ fora absolvido, tendo essa absolvição transitada em julgado, e em função da
decisão no processo de desnazificação (Entnazifizierung), segundo a qual ele não precisaria mais se
submeter a nenhuma limitação no exercício de sua profissão, essa atitude do reclamante (Eric Lüth) se
chocaria com a ‘democrática concepção moral e jurídica do povo alemão’”. O boicote, portanto, estaria
embaraçando o retorno de Veit Harlan ao mercado de trabalho e causando um sensível prejuízo financeiro
às produtoras do filme.

Eric Lüth não se conformou com o resultado do processo. Para ele, como a Lei Fundamental alemã
garantia a liberdade de expressão, ele não poderia ser punido, já que estava apenas manifestando uma
opinião. Com base nisso, recorreu para o Tribunal Constitucional Federal alemão, que concluiu que o
boicote realizado pelo Sr. Lüth seria uma manifestação legítima do direito de liberdade de manifestação do
pensamento, razão pela qual não poderia ser proibido, mesmo que estivesse causando prejuízo à produtora
e à distribuidora do vídeo.

O caso Lüth5, julgado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão em 1958, teve uma
importância decisiva para o direito do pós-guerra. Nele, foram desenvolvidos alguns conceitos que
atualmente são as vigas-mestras da chamada teoria dos direitos fundamentais. De modo sintético, o
Tribunal Constitucional alemão decidiu que: (a) a Constituição não é ideologicamente neutra, já que
representa uma “ordem objetiva de valores” (“Objektive Wertordnung”), centrada na dignidade da pessoa
humana e nos demais direitos fundamentais, que deve orientar a atividade de todo agente público,
inclusive, logicamente, os juízes; (b) esses valores possuem, além de sua dimensão subjetiva, uma
dimensão objetiva que se irradia por todos os ramos do ordenamento jurídico; (c) as normas de direito
privado devem ser sempre interpretadas “à luz” dos direitos fundamentais; (d) os direitos fundamentais
também podem ser aplicados nas relações privadas, possuindo, além da eficácia vertical, presente nas
relações entre o Estado e os cidadãos, uma eficácia horizontal entre particulares (“Drittwirkung”)6.

5 BVerfGE 7, 198 (1958).


6 A decisão pode ser lida em português: SCHWAB, Jürgen (Org: Leonardo Martins). Cinqüenta anos de Jurisprudência do
Tribunal Constitucional Alemão (Entscheidungen des Bundesverfassungsrichts). Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung,
2006, pp. 381/394. De acordo com Robert Alexy, na decisão do caso Lüth, há três idéias que serviram para moldar
fundamentalmente o direito constitucional alemão: “A primeira idéia foi a de que a garantia constitucional de direitos individuais
não é simplesmente uma garantia dos clássicos direitos defensivos do cidadão contra o Estado. Os direitos constitucionais
incorporam, para citar a Corte Constitucional Federal, ‘ao mesmo tempo uma ordem objetiva de valores’. Mais tarde a Corte fala
simplesmente de ‘princípios que são expressos pelos direitos constitucionais’. Assumindo essa linha de raciocínio, pode-se de dizer
que a primeira idéia básica da decisão do caso Lüth era a afirmação de que os valores ou princípios dos direitos constitucionais
aplicam-se não somente à relação entre o cidadão e o Estado, muito além disso, à ‘todas as áreas do Direito’. É precisamente graças
a essa aplicabilidade ampla que os direitos constitucionais exercem um “efeito irradiante” sobre todo o sistema jurídico. Os direitos
constitucionais tornam-se onipresentes (unbiquitous). A terceira idéia encontra-se implícita na estrutura mesma dos valores e
princípios. Valores e princípios tendem a colidir. Uma colisão de princípios só pode ser resolvida pelo balanceamento. A grande
lição da decisão do caso Lüth, talvez a mais importante para o trabalho jurídico cotidiano, afirma, portanto, que: “Um
‘balanceamento de interesses’ torna-se necessário”” (ALEXY, Robert. Direitos Fundamentais, Balanceamento e
Racionalidade. Ratio Juris. Vol. 16, n. 2, junho de 2003, p. 131-140).
6

A tese forte do caso Lüth foi esta: diante de uma colisão de normas constitucionais, a ponderação de
valores é inevitável. Logo, é da essência da jurisdição constitucional estabelecer um sopesamento entre
valores colidentes para definir qual merece uma proteção maior.

A aparente simplicidade dessa tese esconde uma profunda mudança de paradigma ocorrida na
teoria do direito após a Segunda Guerra. O direito constitucionalizou-se, fazendo com que considerações de
natureza axiológica, que brotam das normas consagradoras dos direitos fundamentais, fossem incorporadas
explicitamente no método jurídico. Além disso, no que se refere ao velho tratamento das fontes do direito,
ocorreu um fenômeno que pode ser designado como crepúsculo da legislação e, ao mesmo tempo, uma
ascensão do constitucionalismo.

O crepúsculo da legislação pode ser descrito como um processo de enfraquecimento do poder


legislativo enquanto instância de tomada de decisões. Esse enfraquecimento decorreu, dentre outros
motivos, de um sentimento de desconfiança e mal-estar causado pela atividade legislativa dos parlamentos
durante os regimes nazi-fascistas. O poder legislativo, além de ter sido incapaz de cumprir a sua principal
missão, que é impor limites jurídicos ao governo, também foi, em grande parte, responsável pela criação de
um sistema normativo que serviu para dar um manto de legalidade às práticas mais atrozes praticadas pelos
governos totalitários. Descobriu-se, da pior maneira possível, que o legislador, mesmo representando uma
suposta vontade da maioria, pode ser tão opressor quanto o pior dos tiranos. Por isso, na segunda metade
do século XX, os juristas procuraram desenvolver alguns instrumentos teóricos capazes de inserir no
mundo do direito os valores éticos indispensáveis para a proteção da dignidade humana que foram
suprimidos durante essa fase sombria da história da humanidade.

A ascensão do constitucionalismo surge, então, como uma alternativa ao modelo clássico da


separação de poderes, numa tentativa de dificultar o desrespeito de alguns valores básicos por um grupo
majoritário que ocasionalmente conquiste o poder político. Buscando inspiração no modelo norte-
americano dos “freios e contrapesos” (“checks and balances”), onde a guarda da constituição é uma
atividade exercida, em última instância, por órgãos judiciais, houve um movimento de fortalecimento da
crença na normatividade constitucional e na idéia de controle jurisdicional de constitucionalidade. Os
debates jurídicos, em razão do aumento da importância dos valores constitucionais, tornaram-se centrados
na constituição, em cujo texto estão positivados os valores mais importantes a serem doravante protegidos.
Os direitos fundamentais transformaram-se no fundamento de legitimidade de todo o ordenamento
jurídico, de modo que nenhum ato poderá ser conforme ao direito se for incompatível com o sistema de
valores que compõe a declaração de direitos. Os princípios constitucionais passam a ter uma importância
estratégia, servindo como autênticas fontes normativas capazes de embasar diretamente as decisões
judiciais. Tudo foi desenvolvido para que o jurista seja capaz de solucionar os problemas jurídicos de forma
justa, sem fugir da noção de “conformidade ao direito”, tão cara aos ideais de uma civilização que acredita
no princípio do “Estado Democrático de Direito”.

Por detrás desse discurso atual que idolatra os direitos fundamentais e enaltece a figura do juiz,
acreditando otimistamente (ingenuamente?) nas possibilidades emancipatórias da jurisdição, existem
inúmeros problemas que exigem uma abordagem mais crítica e mais profunda, não necessariamente para
negar os méritos dessa proposta, mas para que se possa, num passo seguinte, torná-la mais sólida, caso isso
seja possível.

Entre os diversos problemas que esse novo modelo é capaz de acarretar, certamente um dos mais
difíceis de serem enfrentados é aquele identificado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão no Caso
Lüth: o da colisão de direitos fundamentais, que é uma conseqüência direta do reconhecimento da força
7

normativa dos princípios. Afinal, aceitar a utilização de princípios constitucionais para solucionar
problemas jurídicos pressupõe o reconhecimento de que, no caso concreto, esses princípios podem se
chocar.

Não há dúvida de que a teoria dos princípios já foi suficientemente explorada pela doutrina jurídica
brasileira, ainda que permeada de equívocos e imprecisões, por conta do sincretismo metodológico
denunciado por Virgílio Afonso da Silva, em que teorias incompatíveis são acolhidas como se compatíveis
fossem7. Dessa forma, não me parece ser necessário desenvolver com maior profundidade todas as nuances
que a distinção entre regras e princípios carrega, embora tal distinção seja um ponto central na
compreensão do fenômeno da colisão de direitos. Para os fins aqui pretendidos, basta utilizar alguns
pressupostos menos polêmicos em torno da natureza dos princípios, que se incorporaram ao discurso
jurídico brasileiro a partir das obras de Ronald Dworkin e Robert Alexy. Ei-los: (a) os princípios, dado o
seu caráter normativo, podem servir com fundamento das decisões judiciais; (b) os princípios são normas
jurídicas que não descrevem uma situação fática ou prevêem uma conseqüência específica para o seu
descumprimento, mas apenas indicam diretrizes axiológicas e teleológicas a serem seguidas, cabendo aos
juristas se esforçarem para construir soluções concretas que proporcionem a efetivação dos princípios em sua
máxima extensão possível; (c) os princípios não são aplicados na base do tudo ou nada, pois o seu cumprimento
está condicionado à ocorrência dos pressupostos fáticos e jurídicos que permitam a sua otimização máxima.
Acredito que esses pressupostos básicos são suficientes para os fins aqui propostos8.

A idéia que desejo enfatizar refere-se à possibilidade de princípios diferentes fornecerem direções
diferentes para fundamentar a solução de problemas concretos. Essa idéia pode ser ilustrada a partir da
metáfora do mapa e da bússola, sugerida por Aroso Linhares, inspirando-se em Drucilla Cornell e Adela
Cortina9. De acordo com essa proposta, as regras jurídicas seriam como mapas, que fornecem um itinerário
mais ou menos pormenorizado a ser seguido. Já os princípios seriam como bússolas, funcionando como
guias de orientação do caminho a seguir.

Se os princípios são bússolas, que apenas nos indicam um norte a seguir, sem impor trilhas pré-
definidas, o que fazer quando dois princípios igualmente válidos nos levam a direções opostas? O que
fazer, por exemplo, quando, por um lado, um princípio como a liberdade de expressão nos mostra o
caminho da transparência, da livre divulgação de idéias, da ampla circulação de informações e, por outro
lado, um princípio como a proteção da personalidade nos indica a direção do segredo, da não-
transparência, do resguardo da imagem, do nome e da vida privada dos indivíduos? O que fazer quando o
princípio da livre iniciativa estimula uma economia de mercado em busca de lucros financeiros, e o
princípio da solidariedade exige condutas altruístas na distribuição dos recursos sociais? Como decidir
quando o direito de propriedade confere ao dono de um imóvel uma ampla liberdade de disposição de seu
bem, para fruir e gozar como bem entender, enquanto o princípio da função sócio-ambiental da
propriedade impõe a observância de limites intensos ao uso da propriedade?

7 SILVA, Virgílio Afonso da. Princípios e Regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção. In: Revista Latino-Americana
de Estudos Constitucionais n. 1, jan/jun 2003, p. 607/630.
8 Para um aprofundamento do tema, não se pode deixar de sugerir a obra “Teoria dos Princípios”, de Humberto Ávila (ÁVILA,

Humberto. Teoria dos Princípios. São Paulo: Malheiros, 2003), que conseguiu produzir um texto original e de excelência
indiscutível mesmo diante da pobreza de idéias que costuma pairar no universo jurídico brasileiro. O seu livro mereceu elogios até
mesmo da comunidade jurídico-filosófica internacional, tendo sido publicado, em inglês, na prestigiada coleção “Law and
Philosophy Library”, da editora Springer (ÁVILA, Humberto. Theory of Legal Principles. Dordrecht-Netherlands: Spinger,
2007).
9 LINHARES, José Manoel Aroso. Jurisprudencialismo: uma resposta possível em tempo(s) de pluralidade e de

diferenças?. Coimbra: Universidade de Coimbra (policopiado), 2008 – Conferência proferida em Ouro Preto.
8

A doutrina constitucional recomenda que, em caso de colisão de direitos, deve-se, em primeiro


lugar, tentar equilibrar os interesses conflitantes, de modo que todos eles sejam preservados pelo menos em
alguma medida na solução adotada, dentro daquilo que se convencionou chamar de “concordância
prática”. O princípio da concordância prática, de acordo com o Tribunal Constitucional alemão,
“determina que nenhuma das posições jurídicas conflitantes será favorecida ou afirmada em sua plenitude,
mas que todas elas, o quanto possível, serão reciprocamente poupadas e compensadas”10. Trata-se,
portanto, de uma tentativa de equilibrar (ou balancear) os valores conflitantes, de modo que todos eles
sejam preservados pelo menos em alguma medida na solução adotada. O papel do jurista consiste
precisamente em tentar dissipar o conflito normativo através da integração harmoniosa dos valores
contraditórios.

Ocorre que há várias situações em que a harmonização será inviável, pois a proteção de um
determinado valor implicará no sacrifício total do outro valor colidente. De acordo com a doutrina
constitucional dominante, se não for possível harmonizar os direitos em colisão, parte-se para um
sopesamento em que será prestigiado o princípio mais importante e sacrificado o princípio “perdedor”. E
de fato, há várias situações em que o jurista se depara com dois princípios em rota de colisão e, para
solucionar esse conflito, necessariamente precisa sacrificar um desses princípios caso não seja possível
conciliá-los.

Essas situações são típicas de nosso tempo: um tempo de exaltação da democracia, do pluralismo e
das diferenças, em que, por um lado, deseja-se construir um projeto ético comum11, mas, por outro lado,
percebe-se que um código moral uniforme e único para toda a população não é apenas inviável, mas até
mesmo indesejável, por ser demasiado arrogante e totalitário. Tenta-se, então, pelo menos um modelo que,
sem deixar de celebrar a pluralidade, possa integrar os diversos valores presentes na sociedade e
harmonizá-los para possibilitar a convivência comunitária. Uma democracia pluralista é um ambiente em
que valores muito diferentes, e até mesmo antagônicos, tentam ocupar o mesmo espaço geográfico e
conviver harmonicamente no mesmo território. Uma constituição pluralista tenta acomodar todos esses
valores em um mesmo sistema jurídico de proteção, com a pretensão de unidade e de coerência específica
de um sistema jurídico12. Como nem sempre é possível harmonizá-los ou protegê-los em igual medida,
surgem os conflitos que se manifestam juridicamente através da colisão de direitos fundamentais.

Uma colisão de direitos fundamentais é uma batalha do direito contra o direito, mais precisamente
é uma batalha do direito válido contra o direito válido, do justo contra o justo. É um problema jurídico em
que as duas partes em conflito possuem um argumento de peso – com fundamento constitucional! – que
ampara as suas pretensões. Nesses casos, têm-se normas de hierarquia constitucional, publicadas ao
mesmo tempo e com o mesmo grau de abstração, que, no caso concreto, fornecem conseqüências jurídicas
opostas. Os famosos critérios de solução de antinomias (hierárquico, cronológico e da especialidade) não
servem para solucionar o conflito ora previsto! Quid iuris? Como decidir entre dois valores igualmente
relevantes que estão ambos contemplados na Constituição?

10 SCHWAB, Jürgen. Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão (Entscheidungen des
Bundesverfassungsrichts). Org: Leonardo Martins Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006, p. 134.
11 Projeto este defendido por religiosos e não-religiosos: KÜNG, Hans. Projecto para Uma Ética Mundial (Projekt

Weltethos, 1990). Trad. Maria Luisa Cabaços Meliços. Lisboa: Piaget, 1996; SINGER, Peter. Um Só Mundo: a ética da
globalização (One World: the ethics of globalization, 2002). São Paulo: Martins Fontes, 2004; CHANGEUX, Jean-Pierre
(dir.). Uma Mesma Ética para Todos? (Une Même Éthique pour tours?, 1997). Lisboa: Instituto Piaget, 1999.
12 “As características do conceito geral do sistema são a ordem e a unidade. Eles encontram a sua correspondência jurídica nas

idéias de adequação valorativa e unidade interior do Direito” (CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento Sistemático e
Conceito de Sistema na Ciência do Direito (Systemdenken und Systembergriff in der Jurisprudenz, 1983). Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2008, p. 279).
9

No âmbito da teoria dos direitos fundamentais, costuma-se dizer que todas as situações
envolvendo o fenômeno da colisão de direitos são de difícil solução (“hard cases”) e, por isso, tudo vai
depender das informações fornecidas pelo caso concreto, das argumentações apresentadas pelas partes do
processo judicial e da percepção ética do juiz. Tornou-se quase pacífico reconhecer que, em situações
assim, é preciso usar a técnica da ponderação para solucionar esse conflito, ou seja, é preciso realizar uma
análise de peso e importância dos valores em jogo e decidir qual merece prevalecer13.

Até aqui não há grande dificuldade para compreender o problema. É quase intuitivo perceber que
as normas constitucionais entram em choque e que um balanceamento faz parte do fenômeno jurídico (a
balança é o símbolo da justiça!). A dificuldade maior de compreensão surge quando se descobre que, seja
qual for a solução adotada, será possível encontrar um suporte constitucional em seu favor. A contrario
sensu, sempre haverá um descumprimento parcial ou total de alguma norma constitucional, já que, quando
duas normas constitucionais colidem, fatalmente o juiz decidirá qual a que “vale menos” para ser
sacrificada naquele caso concreto. É justamente por isso que se questiona a legitimidade da ponderação.
Alega-se que a escolha sempre terá um forte viés subjetivo e, por isso, será irracional e arbitrária,
esvaziando por completo qualquer tentativa de se garantir a previsibilidade, a certeza e a segurança na
realização do direito, além de ser uma porta aberta para o sacrifício de direitos fundamentais que, ao se
flexibilizarem, ficariam ameaçados de desaparecerem no turbilhão do sopesamento irracional14.

Em razão disso, essa técnica de julgamento tem sido alvo de inúmeros ataques doutrinários, já que
pode gerar decisões arbitrárias e contrárias à própria dignidade humana. Portanto, é hora de analisar
algumas críticas à técnica de ponderação para saber se elas têm fundamento.

3 Algumas Críticas à Ponderação de Valores

Para facilitar a compreensão do tema, dividirei as críticas à ponderação em quatro grupos: (a) a
subjetividade dos valores; (b) o problema da incomensurabilidade; (c) o decisionismo e (d) o enfraquecimento
dos direitos. Todas essas críticas são interligadas e possuem dificuldades ontológicas e epistemológicas em
comum. Ressalto ainda que há, dentro de cada uma dessas questões, teorias mais sofisticadas que
demandariam um aprofundamento maior para serem corretamente assimiladas. Por isso, sugiro que os
diversos argumentos não sejam julgados de forma apressada, pois eles encobrem questões que nem mesmo
as mentes mais sábias do planeta são capazes de resolver.

3.1 A Subjetividade dos Valores

“Os juízos do mundo são singulares e contraditórios” – Machado de Assis, “O Pai” (1866)

Os seres humanos são diferentes em vários aspectos e possuem histórias de vida singulares e
irrepetíveis. Muitas de nossas opiniões morais e o peso que atribuímos a cada valor social podem variar de
acordo com as experiências por nós vivenciadas e do contexto cultural em que estamos inseridos. A
doutrinação moral a que fomos submetidos desde a infância, as crenças religiosas a que aderimos, a
atividade profissional que exercemos, a cultura geral (livros, filmes etc.) que assimilamos, os fatos

13 Sobre o tema, entre outros: BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, Racionalidade e Atividade Jurisdicional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2006.
14 Nesse sentido: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade (Faktizität und Geltung.

Beiträge zur Diskursstheorie des Rechits und des demokratische Rechitstaats, 1992). v. I. Trad: Flávio Beno Siebeneichler.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, pp. 314 e ss.
10

dramáticos que presenciamos: tudo isso afeta o nosso pensamento moral e pode consistir no fiel da balança
no momento em que estamos realizando um julgamento em que há valores em conflito.

A verdade indiscutível dessas afirmações de certo modo óbvias levou alguns influentes pensadores
a defenderem a idéia do subjetivismo/relativismo/ceticismo éticos, que afeta em cheio a pretensão de
racionalidade da ponderação de valores e talvez até mesmo da jurisdição como um todo. De acordo essa
vertente, não seria possível estabelecer objetivamente quais as necessidades humanas dignas de serem
satisfeitas, muito menos a sua ordem de importância, já que não há, na tessitura do mundo, fatos morais
empiricamente demonstráveis. Por isso, essas questões não poderiam ser respondidas racionalmente, já que
representariam julgamentos de valor determinados por fatores emocionais, contingenciais e de caráter
meramente subjetivo, válidos apenas para o sujeito que julga e, por conseguinte, relativos. Acreditar que
todos os valores são subjetivos e relativos, isto é, que todo juízo ético varia de pessoa para pessoa ou de
cultura para cultura, retiraria das escolhas éticas o manto de racionalidade ou de objetividade que muitos
juristas acreditam existir.

Como se sabe, no campo da filosofia do direito, Hans Kelsen foi um dos principais defensores
dessa idéia15. Na filosofia geral, Ludwig Wittgenstein é um dos principais responsáveis pela divulgação do
relativismo ético e, mesmo sendo impenetrável para muitos, inclusive para mim, é relativamente claro
quanto ao papel que confere à ética. Partindo da premissa de que “acerca daquilo de que não se pode falar,
tem que se ficar em silêncio”, Wittgenstein conclui que “não pode haver proposições da Ética. As proposições
não podem exprimir nada do que é mais elevado. É óbvio que a Ética não se pode pôr em palavras. A ética é
transcendental. (A Ética e a Estética são Um)”16. Na sua “Conferência sobre Ética”, proferida em
Cambridge entre os anos de 1929 e 1930, Wittgenstein reforçou sua teoria de que a ética não pode ser
objeto da filosofia ou da ciência, pois não descreve fatos, mas apenas juízos de valor e, como tais,
inexprimíveis linguisticamente. Por isso, para ele, quem quer que tenha a tentação de falar sobre ética está
lutando inutilmente contra os limites da linguagem: “Esta corrida contra as paredes de nossa jaula é perfeita
e absolutamente desesperançada. A Ética, na medida em que brota do desejo de dizer algo sobre o sentido
último da vida, sobre o absolutamente bom, o absolutamente valioso, não pode ser uma ciência. O que ela diz
nada acrescenta, em nenhum sentido, ao nosso conhecimento, mas é um testemunho de uma tendência do
espírito humano que eu pessoalmente não posso senão respeitar profundamente e que por nada neste mundo
ridicularizaria”17.

Alfred J. Ayer, outro notável defensor do positivismo lógico, segue uma linha de pensamento
semelhante. Para Ayer, as opiniões éticas não passariam de simples expressão de emoções e, por isso, não
poderiam ser consideradas como falsas ou verdadeiras. Afirmar que algo (X) é bom significaria, para Ayer,
basicamente assumir uma atitude favorável perante X e, com isso estimular outras pessoas a “gostarem” de
X: “the exhorations to moral virtue are not propositions at all, but ejaculations or commands which are
designed to provoke the reader to action of a certain sort”. Desse modo, enunciados morais não poderiam
fazer parte da filosofia ou da ciência. Um tratado estritamente filosófico ou científico nunca poderia sugerir

15 Confira, por exemplo: KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado (General Theory of Law and State, 1945). São
Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 10; KELSEN, Hans. A Justiça e o Direito Natural. Trad: João Baptista Machado. Coimbra:
Almedina, 2001, pp. 100/101.
16 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado Lógico-Filosófico (Tractatus Logico-Philosophicus, 1922). Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian, 2008, p. 138.


17 O texto “Conferência sobre Ética”, de Wittgenstein, traduzido para o português por Darlei Dall’Agnol, pode ser consultado em:

http://ateus.net/ebooks/acervo/conferencia_sobre_etica.pdf
11

proposições éticas, já que tais proposições não poderiam ser empiricamente calculadas, nem controladas
pela observação, não passando de uma “misteriosa ‘intuição intelectual’”18.

Dentro dessa teoria, toda decisão axiológica seria fruto da preferência pessoal dos julgadores e,
portanto, um mero ato de vontade arbitrário. Afirmar que “X é justo” ou “Y é um bem” seria equivalente a
afirmar “gosto de X e de Y”, pois os princípios morais seriam escolhidos não por meio de uma reflexão
racional, mas por força de um sentimento caprichoso. Os juízos morais seriam equivalentes a relatórios de
sentimentos e tomadas de posição do próprio falante. Defender que a liberdade de expressão é mais
importante do que o direito à privacidade seria o mesmo que defender que o sorvete de creme é melhor do
que o sorvete de morango: uma mera questão de gosto pessoal.

Essa tese certamente causa um mal-estar entre os juristas e costuma ser logo repudiada nos debates
jusfilosóficos. Afinal, se é verdade que todas as discussões éticas são sem sentido, então certamente boa
parte daquilo que os juristas fazem é um completo disparate, especialmente quando se trata solucionar
casos em que há necessidade de sopesar valores.

E o mais desanimador é que a análise concreta dos julgamentos parece reforçar os argumentos
defendidos pelo relativismo ético. De fato, seria possível encontrar tribunais inteiros favoráveis à não-
criminalização do aborto e, num país ao lado, outros tribunais que entendem que o estado deveria castigar a
interrupção voluntária da gravidez. Há juízes que não hesitam em punir a prática da eutanásia, e outros que
reconhecem que existe um direito fundamental à disposição sobre o próprio corpo e sobre a própria vida e,
portanto, também haveria um direito de morrer dignamente. Várias cortes constitucionais julgaram a favor
do direito dos homossexuais e tantas outras negaram os mesmos direitos. E mais: dentro de um mesmo
tribunal, é muito freqüente haver posicionamentos divergentes a respeito do mesmo assunto. Juízes com o
mesmo grau de inteligência e com uma formação acadêmica semelhante costumam decidir em sentidos
diametralmente opostos. Não é raro que os julgamentos mais polêmicos sejam decididos pela diferença de
um único voto, como bem demonstram os famosos julgamentos “5-4” nos Estados Unidos ou os menos
famosos julgamentos “6-5” no Brasil. Além disso, muitas vezes a jurisprudência de um determinado
tribunal muda completamente quando há uma mudança da sua composição. Em determinados casos, basta
que um juiz liberal se aposente e um juiz conservador passe a ocupar o seu lugar para que uma verdadeira
revolução possa ocorrer no conteúdo dos julgamentos19. O resultado de uma demanda pode ser
influenciado de modo decisivo pela distribuição aleatória do processo, como se a justiça fosse uma roleta
onde o fator sorte é preponderante: a depender do sorteio acerca do juiz que ficará responsável pelo
julgamento, a resposta judicial pode ser favorável ou desfavorável. Onde estaria a objetividade, então? Que
racionalidade seria esta onde a metade de um tribunal pensa de uma forma e a outra metade pensa de uma
forma diametralmente oposta a respeito de um mesmo assunto e de uma mesma norma? Se a
jurisprudência muda quando os juízes mudam, qual seria então a fonte do direito senão a vontade subjetiva
dos julgadores? Se isso ocorre, como acreditar que a ponderação de valores possa ser uma atividade não-
arbitrária? Não seriam as justificações apresentadas pelos julgadores apenas um esforço sem sentido para
impor seus próprios gostos pessoais de uma forma esteticamente assimilável pelos demais?

18AYER, Alfred Jules. Language, Truth and Logic. Londres: Penguin Books, 1971 (Primeira Publicação: 1936), pp. 104/112.
19 Essa observação foi desenvolvida por Richard Posner na introdução do seu “How Judges Think”. Na sua ótica, a regulação
jurídica nos Estados Unidos é realizada não pelo direito, mas principalmente pelos juízes. Afinal, se a mudança dos juízes muda o
direito, então não é possível saber exatamente o que o direito é (POSNER, Richard. How Judges Think. Cambridge: Harvard
Press, 2008, p. 1). Essa visão foi originalmente desenvolvida pelo Realismo Jurídico (“Legal Realism”) que é a escola de
pensamento jurídico mais influente dos Estados Unidos. Para obter uma visão geral do Realismo Jurídico, vale conferir os
seguintes papers publicados no “Social Science Reserch Network”: “American Legal Realism”, de Brian Leiter; “The New Legal
Realism”, de Thomas Miles e Cass Sunstein; e “Understanding Legal Realism”, de Brian Tamanaha.
12

Se não formos capazes de refutar com consistência o subjetivismo ético, a experiência daria razão
àqueles que defendem que tudo se resume a um jogo de forças ideológicas rivais, onde a mentalidade
dominante prevalece não por ser necessariamente a solução mais justa, mas por uma mera questão de sorte
ou de poder. E se tudo não passa de um jogo de poder, então todo o processo judicial, com suas solenidades
e simbologias tradicionais, não passaria de uma encenação; e todo esforço dos juízes, em fundamentarem
objetivamente suas decisões e se apresentarem como imparciais e independentes, não passaria de um
fingimento descarado, de uma dissimulação ética (Castoriadis20) ou, pelo menos, de um auto-engano
involuntário e ingênuo.

A esse respeito, não se pode deixar de mencionar a crítica, certamente exagerada, mas profunda,
lançada por Nietzsche, que, apesar de se dirigir aos filósofos morais de um modo geral, também se aplica ao
mundo jurídico:

“O que nos incita a olhar todos os filósofos de uma só vez, com desconfiança e troça, não é
porque percebemos quão inocentes são, nem com que facilidade se enganam repetidamente.
Em outras palavras, não é frívolo nem infantil indicar a falta de sinceridade com que elevam
um coro unânime de virtuosos e lastimosos protestos quando se toca, ainda que
superficialmente, o problema de sua sinceridade. Reagem com uma atitude de conquista de
suas opiniões através do exercício espontâneo de uma dialética pura, fria e impassível, quando
a realidade demonstra que a maioria das vezes apenas se trata de uma afirmação arbitrária, de
um capricho, de uma intuição ou de um desejo íntimo e abstrato que defendem com razões
rebuscadas durante muito tempo e, de certo modo, bastante empíricas. Ainda que o neguem,
são advogados e freqüentemente astutos defensores de seus preconceitos, que eles chamam
‘verdades’”21.

Embora seja indiscutível que as decisões judiciais nem sempre sejam inspiradas por razões
eticamente fundadas, é um exagero pensar que todo pensamento moral não passa de preconceito
empacotado de forma esteticamente apresentável, como defendeu Nietzsche. Além disso, o fato de haver
fortes divergências em assuntos éticos e de existirem juízes que adotam escolhas morais antagônicas em
suas decisões judiciais não parece ser motivo suficiente para tanto ceticismo epistemológico acerca do
conhecimento ético. Pelo contrário. Considerando que a ética é o que há de mais fundamental no ser
humano, o esforço intelectual para produzir cada vez mais informações que possam levar a um avanço ético
torna-se ainda mais necessário, apesar de todas as dificuldades de uma tal empreitada.

Sobre a célebre passagem de Wittgenstein que recomenda o silêncio em assuntos “dos quais não se
pode falar” e de que “só se deve dizer o que pode ser dito”, merece ser mencionado o igualmente célebre
comentário de Schrödinger: “mas é justamente nessa altura que vale a pena falar!”. A resposta de
Schrödinger se aplica com muito mais razão no campo da ética, que é uma área que afeta diretamente as
nossas vidas e que, por isso mesmo, exige um debate consciente, aberto, transparente e racional. O silêncio
diante do sofrimento, da crueldade e da barbárie não é nem nunca será uma atitude correta. O
conformismo diante da injustiça nunca pode ser estimulado. O papel moral de qualquer ser humano, seja
um cientista, seja um filósofo, seja um jurista, seja um cidadão, é combater, com as armas argumentativas e
profissionais de que dispõe, as condutas e os regimes eticamente opressores e lutar por um mundo melhor,

20 CASTORIADIS, Cornelius. A Dissimulação da Ética. In: Encruzilhadas do Labirinto IV: a ascensão da insignificância.
Trad. Regina Vasconcelos. Sao Paulo: Paz e Terra, 2002.
21 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do Bem e do Mal ou Prelúdio de uma Filosofia do Futuro (Jenseits Von Gut

Und Böse). Curitiba: Hemus, 2001, p. 14.


13

ainda que para isso tenha que tentar compreender a lógica e a razão prática, nem sempre cartesiana, por
detrás dos juízos de valor.

A idéia de que toda concepção ética é relativa, de que qualquer coisa serve, de que tudo não passa de
um jogo de poder ou de emoções e de que as questões de justiça são equivalentes às escolhas gastronômicas
têm sido refutadas veementemente por diversos filósofos contemporâneos, tanto por razões lógicas quanto
por razões ideológicas22. O argumento lógico contra o relativismo radical é auto-evidente: se todo juízo de
valor é relativo, então haveria pelo menos uma idéia universal, que é o próprio relativismo e isso, por si só,
já seria suficiente para destruir a tese de que tudo é relativo. Qualquer pessoa que acreditasse
verdadeiramente no ceticismo radical sequer se daria ao trabalho de tentar justificar essa idéia, pois estaria
sendo contraditória consigo mesma23.

O argumento ideológico é mais importante: se não houver um consenso mínimo em torno de


valores básicos que encontrem um referencial ético acima da psicologia das massas, então tudo seria
permitido (“anything goes”) e tudo estaria justificado, até mesmo o nazismo, por exemplo. Em outras
palavras: a total irracionalidade dos juízos de valor daria aos seres humanos uma margem ilimitada de

22 Sobre o tema, entre outros: RACHELS, James. Elementos de Filosofia Moral (The Elements of Moral Philosophy, 2003).
Lisboa: Gradiva, 2004, especialmente os capítulos 2 (“O desafio do relativismo cultural”) e 3 (“O Subjetivismo em Ética”);
ODERBERG, David S. Teoria Moral: uma abordagem não-conseqüencialista (Moral Theory: a non-consequecislist
approach, 2000). Parede: Princípia, 2009, p. 88. Fora do campo da filosofia moral, essa idéia também tem sido combatida:
NAGEL, Thomas. A Última Palavra (The Last Word, 1997). Trad: Desidério Murcho. Lisboa: Gradiva, 1999; POPPER,
Karl. The Myth of Framework: in defense of science and rationality. London: Routledge, 1993; BOUDON, Raymond. O
Relativismo (Le Relativism, 2008). Lisboa: Gradiva, 2008. No campo da Filosofia do Direito: DWORKIN, Ronald. La
Justicia con Toga (Justice in Robes, 2006). Madrid: Marcel Pons, 2008; KAUFMANN, Arthur. Derecho, Moral e
Historicidad (Naturrecht und Geschichtlichkeit Recht und Sittlichkeit, 1957). Madrid: Marcial Pons, 2000. Vale ressaltar que
todos esses autores divergem profundamente entre si acerca de pontos fundamentais da ética, mas todos concordam que nem tudo
é relativo, ou seja, que há uma base de objetividade na ética que pode ser analisada racionalmente.
23 Aliás, há aqui uma questão curiosa: somente a própria objetividade é capaz de revelar as suas fraquezas e limitações. Para eu

chegar à conclusão de que “nada é objetivo”, preciso deixar de lado o meu próprio ponto de vista e analisar a questão de forma que
essa conclusão seja válida não apenas para mim, mas para todas as outras pessoas. Ao fazer isso, já estou raciocinando de forma
objetiva! Sobre isso: MURCHO, Desidério. Pensar Outra Vez: filosofia, valor e verdade. Apartado: Quasi, 2006. Defendendo
a objetividade: RACHELS, James. Elementos de Filosofia Moral (The Elements of Moral Philosophy, 2003). Lisboa:
Gradiva, 2004, especialmente os capítulos 2 (“O desafio do relativismo cultural”) e 3 (“O Subjetivismo em Ética”); ODERBERG,
David S. Teoria Moral: uma abordagem não-conseqüencialista (Moral Theory: a non-consequecislist approach, 2000).
Parede: Princípia, 2009, p. 88. Fora do campo da filosofia moral, essa idéia também tem sido combatida: NAGEL, Thomas. A
Última Palavra (The Last Word, 1997). Trad: Desidério Murcho. Lisboa: Gradiva, 1999; POPPER, Karl. The Myth of
Framework: in defense of science and rationality. London: Routledge, 1993; BOUDON, Raymond. O Relativismo (Le
Relativism, 2008). Lisboa: Gradiva, 2008. No campo da Filosofia do Direito: DWORKIN, Ronald. La Justicia con Toga
(Justice in Robes, 2006). Madrid: Marcel Pons, 2008; KAUFMANN, Arthur. Derecho, Moral e Historicidad (Naturrecht
und Geschichtlichkeit Recht und Sittlichkeit, 1957). Madrid: Marcial Pons, 2000; HEINEMAN, Fritz. A Filosofia no Século
XX (De Philosophie Im XX Jahrhundert, 1963). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008; WILLIANS, Bernard. Moral:
uma introdução à ética (Morality, 1972). Trad. Remo Mannarino Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Vale citar que todos
esses autores divergem profundamente entre si acerca de pontos fundamentais da ética, mas todos concordam que nem tudo é
relativo, ou seja, que há uma base de objetividade na ética que pode ser analisada racionalmente e justificada a partir de critérios
inteligíveis. Além disso, nem todos os que defendem o subjetivismo dos valores, por acreditarem que não há fatos morais objetivos,
não são necessariamente indiferentes quanto à utilidade do debate ético. John L. Mackie, por exemplo, que é um defensor do
subjetivismo ético ou, nas suas palavras, do ceticismo moral, sustenta uma refinada teoria ética subjetivista, em que não está
totalmente excluído o debate normativo “de primeira ordem”. Seus argumentos em favor do ceticismo moral são estes:
“primeiramente, a relatividade ou variabilidade de alguns importantes pontos de partida do pensamento moral e sua aparente
dependência em relação aos modos de vida reais; em segundo lugar, a peculiaridade metafísica dos supostos valores objetivos, já
que eles teriam que ser intrinsecamente guias da ação e motivadores; em terceiro lugar, o problema de como tais valores poderiam
ser consecutivos com respeito a aspectos naturais, ou supervenientes a eles; em quarto lugar, a correspondente dificuldade
epistemológica de explicar, em termos de vários padrões diferentes de objetivação, vestígios do que permanece na linguagem e nos
conceitos morais, e como, mesmo se esses valores objetivos não existissem, as pessoas não apenas teriam suposto sua existência,
mas também teriam persistido firmemente em tal crença” (MACKIE, J. L. A Subjetividade dos Valores (“The Subjectivity of
Values”). Disponível on-line: http://www.criticanarede.com). Para Mackie, esse tipo de ceticismo não deveria levar a uma
indiferença quanto aos valores, nem mesmo a uma validação automática de qualquer prática ou teoria moral, pois isso não afeta em
nada as discussões éticas de primeira ordem.
14

escolhas sobre o que é bom/correto/justo, o que certamente não é desejável, pois a função da ética é
precisamente delimitar, do modo mais racional possível, o que é ruim/incorreto/injusto – e há vários
“modelos”, inclusive o nazismo, que se encaixam com elevado grau de certeza nessa descrição. Desse
modo, até por uma questão de opção ideológica (e ética), é muito melhor acreditar na idéia de que é possível
alicerçarmos as nossas opiniões éticas em argumentos racionais e que, portanto, vale a pena discutir essas
questões, não apenas para convencer as pessoas a aceitarem nossas preferências, mas, especialmente, para
ser convencido sobre os interesses dos outros.

O fato incontestável de que “sociedades diferentes possuem códigos morais diferentes” não nos
permite concluir que não possam existir algumas regras éticas que todas as sociedades compartilham, até
como pressuposto da própria existência social. Por exemplo, pode-se afirmar com elevado grau de certeza
que nenhuma sociedade humana viável tenha como objetivo de existência a busca da infelicidade de seus
membros ou a busca de sua própria destruição. A busca da felicidade e da auto-preservação é um elemento
universal presente em todas as sociedades viáveis. Do mesmo modo, nenhum indivíduo mentalmente
capaz aceitaria ser submetido à escravidão ou gostaria de viver em um ambiente de violência injustificada,
se tivesse opção de escolher uma vida melhor. A opressão, o arbítrio e o desrespeito são intrinsecamente
errados independentemente do contexto cultural. A crueldade deveria causar indignação onde quer que
seja praticada. Existem, portanto, alguns valores básicos que estão acima de qualquer ideologia, ainda que
os meios para se alcançar esses valores variem enormemente.

Além disso, ainda que não se tenha pretensão de se encontrar valores uniformemente válidos para
todas as sociedades em todas as épocas e ainda que não existam verdades éticas absolutas, é inegável que,
numa perspectiva local e contextualizada, é possível descobrir as melhores soluções éticas para um dado
problema específico, através de um exercício argumentativo racional, com base nas informações até então
disponíveis. Dificilmente alguém conseguiria, nos dias de hoje, reunir razões capazes de convencer que o
genocídio ou o preconceito racial, por exemplo, são condutas eticamente aceitáveis, por mais persuasivos
que sejam os argumentos em favor dessa esdrúxula tese. Existem alguns valores éticos que já se
incorporaram ao patrimônio racional da humanidade, fazendo parte daquilo que se pode chamar de
“núcleo duro” da ética. Esses valores só podem ser afastados por meios irracionais (manipulação da opinião
pública, idolatria, disseminação do medo, repressão, divulgação de informações truncadas e falsificadas,
propaganda e doutrinação de ódio etc), como tristemente se verificou com os regimes totalitários do século
XX, em especial com o nazismo. O sono da razão produz monstros, como bem alertou Goya. É nesse
contexto, para impedir que o sono da razão produza monstros, que se defende que os princípios éticos
podem e devem ter uma base de racionalidade capaz de orientar a escolhas humanas, inclusive as decisões
judiciais.

Porém, mesmo que o subjetivismo ético seja uma teoria falsa, auto-refutante, conformista, perigosa
ou, no mínimo, inútil, há um aspecto por ela enfatizado que ninguém pode negar: nenhum juízo ético
dispensa a existência de sujeitos capazes de dizer (e decidir) qual o padrão axiológico correto e, portanto,
sempre haverá um componente subjetivo em qualquer escolha valorativa. A questão é saber se é possível
que os sujeitos que irão tomar decisões dessa natureza são capazes de “sair” completamente de seu próprio
“sistema de crenças” e se colocar numa posição moralmente eqüidistante para obter “the view from
nowhere”24 ou então “the point of view of the Universe”25.

24NAGEL, Thomas. The View From Nowhere. New York: Oxford, 1986. Ressalte-se que Nagel, no referido livro, defende a
possibilidade de uma perspectiva objetiva, ainda que nossas visões sejam fragmentadas e imperfeitas: “It is necessary to combine the
recognition of our contigency, our finitude, and our containment in the world with an ambition of transcendence, however limited may
be our success in achieving it. The right attitude in philosophy is to accept aims that we can achieve only fractionally and imperfectly,
15

Conforme já dito, as escolhas valorativas que fazemos costumam ser influenciadas fortemente por
fatores aleatórios que fogem do nosso controle. A atribuição de pesos a determinados valores varia de
acordo as crenças de cada indivíduo, uma vez que, muitas vezes, as nossas opções morais são resultado da
cultura em que nossas personalidades são formadas, como conseqüência de muitos fatores contingenciais
(influência dos pais, dos amigos, dos professores, do meio ambiente físico e cultural etc.). Assim, para um
católico, o valor “vida humana”, com toda a sua dimensão espiritual pressuposta, teria um peso diferente
do que é dado por um ateu mais radical, por exemplo, para quem a vida nada mais é do que um aglomerado
de genes egoístas lutando para se perpetuar26. Do mesmo modo, um jornalista atribui um valor à liberdade
de expressão muito maior do que qualquer outra pessoa. Um empresário coloca a livre iniciativa acima dos
valores de solidariedade; um ambientalista, por sua vez, trata a proteção ambiental como algo muito
superior ao direito de propriedade privada e assim por diante. Como encontrar alguém suficientemente
neutro/imparcial/impessoal para atribuir os pesos corretos a cada um desses valores em conflito?

Justamente por ser muito difícil alcançar uma situação de plena objetividade, é que, no meu
entender, o esforço de Robert Alexy para desenvolver a sua engenhosa “fórmula-peso”, com o objetivo de
dar uma explicação racional ao processo de ponderação, possui pouca utilidade prática, sobretudo se a
adotarmos como ferramenta metodológica, que, talvez, não tenha sido a intenção de Alexy27. Alexy, como
se sabe, defende que a ponderação é, apesar de tudo, uma atividade racional e, para isso, tentou encontrar
uma fórmula matemática capaz de justificar sua hipótese. Desenvolveu, então, a chamada “fórmula peso”,
que sintetiza a estrutura formal da ponderação. A fórmula completa é a seguinte:

Para Alexy, havendo dois princípios em colisão, o julgador deve levar em conta todos os fatores
envolvidos, tentando dar um peso específico para cada um deles. No final, a ponderação vai pender para o
lado que obtiver a pontuação maior. Esses fatores que influenciarão o resultado da atividade ponderativa
correspondem, basicamente, a três aspectos pelo menos: (a) o peso abstrato de cada princípio, (b) a
importância do cumprimento do princípio “vencedor” e (c) a intensidade do prejuízo do princípio
“perdedor”. Daí a “lei da ponderação”: quanto mais alto é o grau do não-cumprimento ou prejuízo de um
princípio, tanto maior deve ser a importância do cumprimento do outro.

and cannot be sure of achieving even to that extent. It means in particular not abandoning the pursuit of truth, even thought if you want
the truth rather than merely something to say, you will have a good deal less to say” (p. 11).
25 A expressão é de Henry Sidgwick: SIDGWICK, Henry. The Methods of Ethics. 4a ed. London: Macmillan and Co., 1890, p.

382.
26 Estamos, naturalmente, fazendo alusão à Richard Dawkins (DAWKINS, Richard. O Gene Egoísta. São Paulo: Companhia

das Letras, 2007). Dawkins defende que a seleção natural não operaria no nível dos indivíduos, nem dos grupos, nem das espécies,
e sim dos genes. Em outras palavras: seriam os genes que lutam para sobreviver e que estão na base da teoria evolutiva. Os seres
vivos seriam projetados para agir de forma a aumentar a probabilidade de que seus genes, ou cópias de seus genes, sobrevivam e se
reproduzam. Para Dawkins, os organismos seriam meras máquinas de sobrevivência – robôs cegamente programados para preservar
as moléculas egoístas chamadas genes, que fazem tudo para se perpetuar. Somente o gene egoísta seria capaz de sobreviver, pois se
o gene for altruísta o suficiente para permitir que outro gene sobreviva em seu lugar, certamente esse gene altruísta deixará de
existir. Dawkins diz ainda que o egoísmo do gene seria uma característica boa, no sentido de que facilitaria a sobrevivência. O gene
egoísta seria mais apto a vencer a luta pela vida. Todo gene estaria programado para sobreviver e se reproduzir e fará o que for
preciso para se perpetuar. No nível dos genes, não haveria espaço para o altruísmo.
27 A “Fórmula Peso” foi desenvolvida no texto “Die Gewichtsformel”, disponível em português: ALEXY, Robert. A fórmula peso.

In: Constitucionalismo Discursivo. Tradução: Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 131/153.
Pode ser vista também, na sua versão mais simples, em castelhano: ALEXY, Roberto & ANDRÉS IBAÑES, Perfecto. Jueces y
Ponderación Argumentativa. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2006, especialmente pp. 1/10.
16

Por mais engenhosa que seja essa formulação (que, na verdade, é muito mais simples do que parece
à primeira vista), ela não consegue atingir sua principal finalidade, que é demonstrar a possível
racionalidade da técnica da ponderação. Com ou sem a fórmula alexyana, a ponderação continua com o
mesmo grau de subjetividade de sempre. O mais complicado, dentro da atividade ponderativa, é atribuição
dos pesos que cada fator envolvido terá. A fórmula em nada ajuda quanto a isso. Através dela, qualquer
solução pode ser encontrada, bastando que o jurista “manipule”, conforme seus interesses e ideologia, o
peso de cada variável. Se o jurista for contra o aborto, basta que ele atribua um valor bem elevado para a
vida do feto e um valor irrisório para a liberdade de escolha da mulher. E o inverso também é verdadeiro.
Se o resultado não agradar, eleva-se a pontuação dos critérios que o julgador considera que deva prevalecer
até chegar à solução de sua preferência (pode-se aqui invocar a máxima do humorista Groucho Marx:
“those are my principles, and if you don’t like them… well, I have others”). A fórmula, portanto, será como
um caderno de colorir que o jurista poderá preencher com as suas cores favoritas. Assim, o processo
decisório continuará tão arbitrário quanto antes, com a única diferença de ser escrito com uma linguagem
mais fria, impessoal e supostamente lógico-racional.

Um defensor de Alexy poderia argumentar que a fórmula parte do pressuposto de que o julgador é
sincero e não irá manipular o resultado28. Mesmo assim, ainda resta uma dúvida: como descobrir que os
valores que fundamentam e orientam nossas escolhas e ações resultam de uma racionalidade ética sincera
ou, pelo contrário, decorrem dos nossos preconceitos e tradições nem sempre compatíveis com a um padrão
axiológico válido? Se até mesmo pessoas virtuosas e sábias, como Aristóteles e Platão, por exemplo, foram
capazes de defender atos que hoje reputamos abomináveis, como a escravidão e o infanticídio, quem pode
garantir que também os nossos juízos morais não serão censurados pelas gerações que virão? Como
podemos ter certeza de que as nossas crenças morais sobre, por exemplo, o status ético dos animais ou dos
estrangeiros ou sobre o valor da vida humana ou sobre a sexualidade etc., decorre de uma profunda reflexão
ética ou, pelo contrário, de uma doutrinação cultural a que fomos submetidos desde a infância e não somos
capazes de enxergar suas fraquezas (ou não fazemos questão de enxergá-las)? Sabendo que temos a
tendência natural de dar mais valor àquilo que nos agrada, como não usar a fórmula como um mero espelho
de nossas próprias preferências ainda que inconscientemente? Como saber que estamos levando mesmo em
consideração, com a importância devida, os interesses daqueles que seguem valores que não são
compartilhados por nós, já que não estamos acostumados com o pensamento divergente? Tendo
consciência de que somos facilmente influenciados por teorias que apelam para o nosso sentido moral e,
infelizmente, não somos suficientemente críticos para questioná-las, como podemos saber que o nosso
raciocínio ético está mesmo nos levando à direção correta29?

Voltarei a essas questões mais à frente. Por enquanto, basta dizer que, apesar de nossas limitações
intelectuais e da constante presença da falibilidade em nossas reflexões morais, não se pode dizer que a
imparcialidade no julgamento é impossível. Há vários exemplos reais que demonstram que nem sempre os

28 A preocupação com a sinceridade argumentativa está presente em diversas regras de argumentação da Teoria da Argumentação
Jurídica de Alexy: “todo orador só pode afirmar aquilo em que de fato acredita” (1.2); “todo orador só pode afirmar aqueles
julgamentos de valor ou de obrigação em dado caso os quais está disposto a afirmar nos mesmos termos para cada caso que se
assemelhe ao caso dado em todos os aspectos relevantes” (1.3’); “toda pessoa que fizer uma afirmação normativa que pressuponha
uma regra com certas conseqüências para a satisfação dos interesses de outras pessoas tem que ser capaz de aceitar essas
conseqüências, mesmo na situação hipotética em que esteja na posição dessas pessoas” (5.1.1); “as regras morais subjacentes à
visão moral do orador devem suportar o exame crítico nos termos de sua gênese individual. Uma regra moral não suporta esse
exame se tiver apenas sido adotada por razões com algumas condições justificáveis de socialização” (5.2.2) e assim por diante
(ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica
(Theorie der Juristischen Argumentation). Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001, pp. 293/295).
29 Como se pode perceber, a construção dessas perguntas foi influenciada pelo pensamento de David Hume: HUME, David.

Tratado da Natureza Humana (A Treatise of Human Nature, 1888). Trad. Serafim da Silva Fontes. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2001.
17

agentes morais em geral e os juízes em particular estão apenas refletindo a mentalidade dominante do
grupo a que pertencem, nem decidido em causa própria para se beneficiar ou beneficiar os de seu grupo.
Isso não significa naturalmente que todas as decisões são motivadas por nobres propósitos de justiça, nem
mesmo que os interesses de classe nunca interferem no processo decisório. Longe disso. O que desejo
enfatizar é que a imparcialidade é, apesar de tudo, possível, ainda que nem sempre seja obtida.

3.2 Incomensurabilidade ou Alquimia do Sopesamento

Mesmo que seja possível acreditar que os juízes são capazes de tomar decisões imparciais e
racionais, que é uma condição necessária, ainda que insuficiente, para se alcançar soluções justas, a técnica
da ponderação de valores é bombardeada com outra crítica de difícil refutação: o problema da
incomensurabilidade. Explico.

A ponderação de valores pressupõe uma espécie de cálculo onde são comparados valores
antagônicos que serão colocados em uma balança para serem “sopesados”. O problema, para aqueles que
defendem a incomensurabilidade, é que a pluralidade, a diversidade e a heterogeneidade das necessidades e
dos desejos humanos não podem ser objeto de comparação nem podem ser reduzidos a um padrão de
moralidade comum. Além disso, a própria Constituição, que confere força normativa aos valores e criou
mecanismos para a sua proteção, não teria feito qualquer tipo de escalonamento entre os direitos indicando
qual teria prevalência em caso de colisão30. Logo, qualquer tentativa de hierarquizar valores seria não só
arbitrária e despida de base jurídica, mas, o que é pior, arrogante. A simples tentativa de superação da
fragmentação axiológica já seria totalitária e, ao longo da história, foi fator de discórdia e combates
sangrentos31. Os que aceitam essa tese costumam questionar: como colocar a liberdade e a igualdade numa
mesma balança? Com base em que critério pode-se dizer que a vida vale mais do que a liberdade de escolha
ou vice-versa? Como decidir entre a liberdade de expressão e os direitos de personalidade, se ambos
merecem consideração e são igualmente importantes para uma vida comunitária? Como buscar uma
unidade axiológica no meio da fragmentação ético-cultural exigida e provocada pelo pluralismo com a sua
multiplicidade de espectros de vozes inconciliáveis?

De acordo com os que defendem a tese da incomensurabilidade, isso seria impossível, já que os
direitos fundamentais são heterogêneos e isso impediria um sopesamento que só seria possível entre
elementos comensuráveis, ou então, se fosse estabelecido um padrão de comparação, que não existe no
momento.

Quando comparamos, por exemplo, dois objetos totalmente distintos, como um lápis e um carro,
só podemos avaliar qual é o mais importante se estabelecermos um padrão específico de medida que possa
ser aplicado a cada um desses bens (por exemplo, o preço monetário). Assim, tendo em vista o valor de
compra, dificilmente alguém discordaria que o carro vale mais do que o lápis. Com relação aos direitos
fundamentais, esse tipo de comparação seria inviável, pois os direitos fundamentais, em regra, não podem

30 No Brasil, Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins defendem essa idéia: DIMOULIS, Dimitri & MARTINS, Leonardo. Teoria
Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 224/232.
31 Aliás, como bem identificado por Aroso Linhares, há nisso uma situação paradoxal que claramente atinge as “teorias”

contemporâneas do direito: as propostas que tentam superar a perda da unidade axiológica causada pelo pluralismo e buscam uma
“linguagem comum”, plausível, conciliatória e integradora, são acusadas de serem alternativas totalizantes, como se estivéssemos
inevitavelmente condenados pela fragmentação “pós-moderna e pelos resultados devastadores ocasionados pelos freqüentes
confrontos entre propostas rivais daí decorrente. Com a renúncia da tentativa de se buscar uma linguagem comum, corre-se um
risco talvez muito pior: cair no esoterismo, na incomunicabilidade, na impotência – e na própria renúncia da humanidade”
(LINHARES, José Manuel Aroso. Jurisdição, Diferendo e ‘Área Aberta’: a caminho de uma ‘teoria’ do direito como
moldura?. Coimbra: policopiado, 2008).
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ser quantificados. Somar a liberdade de expressão com o direito de propriedade ou então dividir a proibição
de discriminação pelo direito ao contraditório seria um absurdo lógico.

Não seria possível comparar dois valores heterogêneos – como a vida do feto e a liberdade de
escolha da mulher, por exemplo – sem apelar para um padrão comum de medição. Como não existe esse
padrão comum de medição, não haveria como estabelecer uma relação de importância entre eles. A própria
metáfora de ‘pesar’, ‘sopesar’, ‘balancear’, ‘ponderar’ etc. reivindicações morais rivais não seria apenas
inadequada, mas até mesmo enganosa, já que não poderiam existir critérios uniformes para medir o ‘peso’
dos valores em questão, dada a sua heterogeneidade e incomensurabilidade32. Caso essa tese seja
verdadeira, seria absurdo colocar coisas diferentes em uma balança e medir o seu “peso e importância”
como se fossem coisas idênticas.

Uma forma de escapar dessa crítica seria tentar mirar em padrões de avaliação que possam servir
como medida de comparação entre valores antagônicos. Assim, o peso de cada valor seria medido em
relação a padrões aceitos em um dado contexto. Por exemplo, poderia ser adotado, como critério de
medição, o nível de contribuição de um dado valor para o aumento do bem-estar social ou para a redução
das desigualdades ou para o aumento da riqueza e assim por diante. Certamente, isso não resolve o
problema mais sério de definir que padrões seriam estes, quem deve defini-los e como calculá-los, mas pelo
menos teria o mérito de superar o problema da incomensurabilidade.

3.3 Decisionismo ou o Efeito Katchanga

“Os juízes, que são obrigados a dar uma sentença decisiva a favor de uma das partes, muitas vezes
ficam embaraçados e não sabem como decidir; são forçados a proceder pelas razões mais frívolas do
mundo”, David Hume, Tratado da Natureza Humana33

Com o reconhecimento da força normativa da Constituição34 e a conseqüente possibilidade de


aplicação direta e imediata dos direitos fundamentais35, somadas à institucionalização, em nível máximo, do
princípio da infastabilidade da tutela jurisdicional, tem-se admitido que os juízes busquem, na própria
Constituição, as soluções para os problemas concretos que precisam resolver.

Ocorre que o texto constitucional é redigido com uma estrutura semântica extremamente aberta,
contendo expressões vagas como “devido processo”, “livre desenvolvimento da personalidade”, “estado
democrático e social” etc., que estão servindo como fonte direta para a justificação das decisões judiciais. A

32 A esse respeito: MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude (After Virtue). Tradução: Jussara Simões. São Paulo: Edusc,
2001, p. 413.
33 HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
34 Sem dúvida, aqui no Brasil, a defesa da força normativa da constituição foi muito influenciada pelo texto “Die normative Kraft der

Verfassung” (“A Força Normativa da Constituição”), do jurista alemão Konrad Hesse, publicada no Brasil no início dos anos 90:
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição (Die normative Kraft der Verfassung, 1959). Tradução: Gilmar
Mendes. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1991.
35 No Brasil, a Constituição Federal de 1988 determinou expressamente que “as normas definidoras dos direitos e garantias

fundamentais têm aplicação imediata” (artigo 5º, §1º). A positivação desse preceito foi influenciada pelo direito alemão, português
e espanhol, que possuem cláusulas semelhantes. A Lei Fundamental de Bonn de 1949, por exemplo, prevê que “os direitos
fundamentais aqui enunciados constituem preceitos jurídicos diretamente aplicáveis, que vinculam os Poderes Legislativo,
Executivo e Judiciário” (no original: “Die nachfolgenden Grundrechte binden Gesetzgebung, vollziehende Gewalt und Rechtsprechung
als unmittelbar geltendes Recht”). Na Constituição espanhola de 1978 há norma semelhante: “los derechos y libertades reconocidos em
el Capítulo segundo del presente Título vinculan a todos los poderes. Sólo por ley, que em todo caso deberá respetar su contenido
esencial, podrá regularce el ejercicio de tales derechos u libertades, que se tutelarán de acuerdo com lo previsto em el artículo 161, 1, a”.
Por sua vez, a Constituição portuguesa de 1976 estabelece que “os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e
garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”. Sobre esse tema, confira: GEBRAN NETO,
João Pedro. A Aplicação Imediata dos Direitos e Garantias Individuais. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2002.
19

partir da interpretação de tais expressões constitucionais, estão sendo fornecidas, pelos órgãos de jurisdição
constitucional, respostas normativas concretas que, a rigor, não estão claramente previstas no sistema de
leis aprovadas pelo parlamento.

Ressalte-se que, por enquanto, a referida observação não deve ser lida como uma crítica, pois, no
momento, não é esta a minha intenção. O que desejo assinalar é o fato indiscutível de que os juízes estão
extraindo significados importantes de normas constitucionais bastante imprecisas e fundamentando seus
julgados nessas normas.

A título de exemplo, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal, a partir de uma interpretação do


princípio da dignidade da pessoa humana, deduziu e estabeleceu regras minuciosas sobre o uso de algemas
por autoridades policiais e judiciais, em todo território nacional36. Do mesmo modo, invocando o abstrato
princípio do estado democrático de direito, foram criados mecanismos detalhados para estimular a
fidelidade partidária, prevendo-se, inclusive, a possibilidade de perda de mandato parlamentar em
determinadas situações37.

Existem vários outros exemplos, pelo mundo afora, que comprovam a tese de que os juízes estão
desenvolvendo, a partir da interpretação de princípios constitucionais, regras minuciosas a serem
observadas pela sociedade, exercendo uma função muito parecida com a função legiferante. Não há
propriamente uma crítica quanto a isso, pois, em muitos casos, a solução adotada pelos juízes tem sido uma
solução com forte aceitação social e com um inquestionável apelo ético. Exemplo emblemático disso foi o
julgamento realizado pela Suprema Corte norte-americana, em 1954, no caso Brown v. Board of
Education38, onde se decidiu que a segregação racial nas escolas públicas seria contrária à cláusula da
igualdade.

A questão que quero enfatizar aqui não diz respeito à qualidade ética das decisões, mas sim à
qualidade da própria justificação apresentada pelos julgadores. Há vários anos analiso decisões judiciais
proferidas em várias partes do mundo envolvendo direitos fundamentais. Tenho visto muitas decisões
socialmente benéficas e outras nem tanto; decisões que se preocupam sinceramente em respeitar, proteger e
promover os direitos fundamentais e outras que se aproveitam da indeterminação dos valores para
impedirem o avanço da liberdade ou da igualdade. Porém, o que há em comum em inúmeros julgados,

36 Sobre o assunto, o Supremo Tribunal Federal aprovou a seguinte súmula vinculante: “Só é lícito o uso de algemas em caso de
resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros,
justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e
de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado” (Súmula Vinculante
11/2008). O referido julgamento lembra, em muitos aspectos, o famoso caso Miranda v. Arizona (384 U.S. 436), decidido pela
Suprema Corte norte-americana em 1966, no qual ficou decido, com base na genérica cláusula do devido processo (due process of
law), que a validade de confissões incriminatórias dependeria de uma série de requisitos estabelecidos pela corte, como por
exemplo, que o acusado fosse informado de seu direito de permanecer calado, de que qualquer coisa que dissesse poderia ser usada
contra ele, de que teria o direito à presença de um advogado, e de que, se não pudesse pagar o advogado, teria direito a um
fornecido pelo Estado. Como se vê, a “fórmula Miranda” (Miranda Warnings), construída judicialmente, diz muito mais do que
uma simples leitura despretensiosa da constituição norte-americana poderia sugerir. Não se trata uma mera interpretação da
cláusula do devido processo. É, no fundo, uma criativa normatização das garantias penais do acusado desenvolvida no âmbito da
jurisdição constitucional que, hoje, já se incorporou à tradição estadunidense.
37 STF, ADI 3999, rel. Min. Joaquim Barbosa, julgado em 12/11/2008. Vale esclarecer que, no referido julgamento, o órgão

jurisdicional que disciplinou a perda do cargo eletivo e o processo de justificação da desfiliação partidária foi o Tribunal Superior
Eleitoral. O Supremo Tribunal Federal limitou-se a reconhecer a validade constitucional das resoluções aprovadas pela Justiça
Eleitoral, assinalando que existiria um dever constitucional de observância do princípio da fidelidade partidária, como
conseqüência do princípio democrático, e que não faria sentido o Judiciário reconhecer a existência de um direito constitucional
sem prever um instrumento para assegurá-lo. Daí porque as resoluções aprovadas pelo TSE mereceriam vigorar, pelo menos
transitoriamente, como instrumento para salvaguardar a observância da fidelidade partidária enquanto o Poder Legislativo, órgão
legitimado para resolver as tensões típicas da matéria, não se pronunciar.
38 Brown v. Board of Education of Topeka, 347 U.S. 483 (1954). On-line: http://laws.findlaw.com/us/347/483.html
20

sejam eles legítimos ou não, é a baixa consistência dos argumentos utilizados pelos juízes para justificarem
suas opções valorativas.

Se, atualmente, admite-se que o juiz pode buscar na própria Constituição a solução para os
problemas que tem que resolver (ou até mesmo fora da Constituição!), é natural reconhecer que a “moldura
normativa” ganhou dimensões bastante amplas. Dificilmente, será possível estabelecer antecipadamente
quais são os limites da resposta judicial no caso concreto, já que a solução dependerá, em grande medida,
do poder criativo do juiz (e da mediação do caso concreto), algo que sempre houve, mas nunca com tanta
intensidade. Assim, em muitas questões, a atividade dos juízes se assemelhará à atividade de um
“intérprete de nuvens”, que não vê limites à sua criatividade. Isso dá margem ao florescimento do chamado
“decisionismo judicial“39, que nada mais é do que a atitude do magistrado que julga com base em suas
próprias convicções pessoais sem se preocupar em buscar uma objetividade decisória. No fundo, o juiz,
pelo menos potencialmente, pode decidir como quiser, ainda que tenha que fundamentar a sua escolha no
sistema normativo-constitucional, que, afinal de contas, aceita quase tudo.

Daniel Sarmento, analisando a realidade brasileira, sugeriu, em um tom bastante crítico, que
estaria havendo um abuso por parte dos juízes na utilização das ferramentas fornecidas pela teoria dos
princípios. Ele chamou o fenômeno de “oba-oba constitucional”. Em suas palavras:

“muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de, através


deles, buscarem a justiça – ou o que entendem por justiça -, passaram a negligenciar do seu
dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta ‘euforia’ com os princípios
abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as
vestes do politicamente correto, orgulhoso com os seus jargões grandiloqüentes e com a sua
retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro,
converteram-se em verdadeiras ‘varinhas de condão’: com eles, o julgador de plantão consegue
fazer quase tudo o que quiser”40.
Uma análise da jurisdição constitucional praticada no Brasil poderia nos levar à conclusão de que
todas as críticas que geralmente são feitas à técnica da ponderação – por ser irracional, pouco transparente,
arbitrária, subjetiva, antidemocrática, imprevisível, insegura etc.– são, em grande medida, procedentes
diante da nossa realidade. No fundo, a idéia de ponderação não está sendo utilizada para reforçar a carga
argumentativa da decisão, mas justamente para desobrigar o julgador de fundamentar41.

Virgílio Afonso da Silva conseguiu captar bem esse fenômeno no seu texto “O Proporcional e o
Razoável”. Ele apontou diversos casos em que o Supremo Tribunal Federal, valendo-se da idéia de que os
direitos fundamentais podem ser relativizados com base no princípio da proporcionalidade, simplesmente
invalidou o ato normativo questionado sem demonstrar objetivamente porque o ato seria desproporcional.
Para ele, “a invocação da proporcionalidade [na jurisprudência do STF] é, não raramente, um mero recurso
a um tópos, com caráter meramente retórico, e não sistemático (…). O raciocínio costuma ser muito

39 Carl Schmitt se auto-atribui a autoria da expressão “decisionismo judicial” (SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição.
Minas Gerais: Del Rey, 2007, p. 67).
40 SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Lúmen Juris, 2006, p. 200.
41 O curioso é que, no Brasil, as limitações argumentativas do discurso judicial foram expostas com muito mais clareza a partir do

momento em que o Supremo Tribunal Federal, numa louvável atitude de transparência, passou a transmitir os seus julgamentos
em rede nacional pela internet e pela TV Justiça. Vários setores da sociedade, que não fazem parte do meio jurídico, passaram a
acompanhar os julgamentos mais polêmicos para tentar compreender os argumentos utilizados pelos juízes. Quando se analisam os
comentários às decisões judiciais feitos por pessoas mais esclarecidas que não fazem parte do setor jurídico, percebe-se que, muitas
vezes, as justificações apresentadas costumam ser ridicularizadas, seja pela erudição exagerada adotada nos votos, seja porque, nos
assuntos não estritamente legais, os argumentos são fracos, baseados em premissas ultrapassadas ou que não fazem o menor
sentido.
21

simplista e mecânico. Resumidamente: (a) a constituição consagra a regra da proporcionalidade; (b) o ato
questionado não respeita essa exigência; (c) o ato questionado é inconstitucional”42.

Aliás, esse não parece ser um problema exclusivo do Brasil. Já em 1956, J. D. March havia feito
uma crítica às decisões da Suprema Corte norte-america muito semelhante a ora formulada. Ao analisar a
conhecida norma constitucional que diz que “ninguém será privado da sua vida, liberdade ou propriedade
sem o devido processo legal”, March, com muita ironia, defendeu que o artigo é muito claro. Basicamente,
ele significa que “nenhum W será X ou Y sem Z, sendo que W, X, Y e Z podem assumir quaisquer valores
dentro de um extenso conjunto”43. Em sentido semelhante, o juiz Hugo Black dizia com bom humor: “the
layman's constitutional view is that what he likes is constitutional and that which he doesn't like is
unconstitutional”.

Talvez exista uma explicação para essa baixa consistência argumentativa nas decisões judiciais. É
sabido que, na atual fase de evolução do direito, vigora a regra da proibição da denegação de justiça, ou seja,
os juízes devem julgar todos os conflitos que lhes são submetidos, mesmo que não estejam seguros sobre
qual é a melhor solução. Em outras palavras: o juiz não tem apenas o poder de julgar, mas também uma
obrigação de decidir os casos a ele submetidos. A utilidade prática da proibição “non liquet” é inegável. Se
o juiz se eximisse de proferir uma decisão toda vez que estivesse em dúvida, haveria grande probabilidade
de o sistema entrar em colapso, pois são muitas as situações em que isso ocorre.

Por não poder demonstrar ou confessar ignorância, o juiz, inconscientemente, transforma essa
obrigação de julgar tudo em uma falsa crença de que sabe tudo e que é, portanto, capaz de ser o senhor
onipresente e onisciente da verdade e da justiça. Essa falsa crença talvez seja a primeira causa da arrogância
que comumente costuma-se associar à figura do juiz, e também talvez seja responsável pelo “isolamento
cognitivo” tão presente no discurso jurídico, baseado num ultrapassado dogma de que o conhecimento dos
textos legais é suficiente para solucionar corretamente todos os problemas jurídicos.

Ao lado do “non liquet”, foram desenvolvidos, ao longo da história do direito, mecanismos para
reduzir o arbítrio que naturalmente resulta dessa arrogância intelectual. O mais importante, sem dúvida, é
o dever imposto aos juízes de justificarem as decisões. O magistrado tem que apresentar, na sua sentença,
as razões do seu convencimento e expor os motivos de sua decisão. Para muitos, o dever de fundamentar as
decisões judiciais é o elemento capaz de fornecer a base de legitimidade para o exercício da jurisdição.
Como afirmou Aarnio Aulis, “la responsabilidad del juez se ha convertido cada vez más en la responsabilidad
de justificar sus decisiones. La base para el uso del poder por parte del juez reside en la aceptabilidad de sus
decisiones y no en la posición formal de poder que pueda tener”44.

Ora, mas como justificar com objetividade as escolhas se muitas vezes os próprios juízes não sabem
com certeza o que motivou a sua decisão, nem possuem tempo nem estrutura material para elaborar uma
solução consistente? Como apresentar razões se, em muitas situações, a escolha judicial é fruto de um
sentimento introspectivo que o juiz não sabe expressar com clareza? Aliás, como fundamentar
racionalmente uma escolha valorativa se o próprio conhecimento moral encontra-se fragmentado e diluído
em uma multiplicidade de perspectivas nem sempre coerentes entre si45?

42 SILVA, Virgílio Afonso. O Proporcional e o Razoável. In: Revista dos Tribunais v. 798. São Paulo: RT, 2002, p. 31.
43 A citação foi extraída de HART, Herbert. O Conceito de Direito (The Concept of Law). Trad. Armindo Ribeiro Mendes, 5ª
ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 12.
44 AULIS, Aarnio. Lo Racional como Razonable: un tratado sobre la justificación jurídica (The Rational as Reasonable.

A treatise on Legal Justification). Madrid: Centro de Estudios Constitucinoales, 1991, p. 29.


45 Alasdair MacIntyre, nesse sentido, sugeriu que o conhecimento ético-filosófico contemporâneo é tão fragmentário, desordenado

e confuso que parece ter sido produto de uma catástrofe avassaladora que, hipoteticamente, teria destruído boa parte do
22

Por causa disso, muitos juízes acabam desenvolvendo técnicas argumentativas que servem para
todas as situações, mas, no fundo, não justificam nada. Criam-se palavras mágicas e frases de efeito que não
passam de subterfúgios utilizados pela prática judicial para dar ao juiz uma possibilidade de “justificar” o
julgado sem apresentar argumentações consistentes46. “Julgo de tal modo porque essa é a solução mais
razoável”. “Decido assim, pois é a solução mais compatível com interesse público”. “Determino isso, em
razão dos bons costumes”. “Sentencio nesse sentido em nome do bom senso”. Essas expressões – razoável,
proporcional, bom senso, interesse público, bem comum, prudência, bons costumes etc. – são como as
previsões dos astrólogos: explicam tudo, justificando todo e qualquer resultado que se queira encontrar, e
não há nada que possa refutá-las, já que seu conteúdo é aberto o suficiente para se amoldar a todas as
situações, conforme os interesses pessoais de quem as cita. No fundo, tais expressões são meros placebos
argumentativos auto-ministrados pelos juízes para aliviarem psicologicamente a angústia de não serem
capazes de encontrar argumentos racionais para tudo. O problema é que, apesar de serem meros placebos,
essas expressões possuem efeitos colaterais sérios. O mais grave é, sem dúvida, a transformação da
argumentação jurídica em uma técnica vazia de sentido e, portanto, arbitrária, tudo o que o direito
historicamente combateu. Por isso, esse tipo de atitude também precisa ser combatido.

Outro aspecto semelhante, e talvez muito mais grave, é o uso retórico dos valores. O discurso
jurídico costuma ser um discurso de persuasão, ou seja, todos os envolvidos na solução de um problema
jurídico tentam desenvolver argumentos para justificar suas opiniões a fim de convencer outras pessoas a
seguirem o mesmo ponto de vista. Infelizmente, o processo de convencimento nem sempre é um processo
sincero e honesto. Algumas vezes, o discurso externalizado não corresponde às reais intenções daquele que
tenta convencer. No caso do direito, é bastante comum verificar o uso retórico de certas palavras de
legitimação que costumam rechear o discurso jurídico para manipular e seduzir a platéia.

Existem, de fato, algumas palavras que servem como instrumento retórico para a legitimação de
ações, pois induzem intuitivamente a um juízo de valor positivo ou negativo sobre um determinado objeto.
Ética, democracia, justiça, liberdade, direitos humanos são exemplos de palavras de legitimação com
conteúdo positivo. Opressão, dominação, injustiça, crueldade, autoritarismo são exemplos de palavras de
legitimação com conteúdo negativo. Muitas outras poderiam ser citadas, mas, para os fins ora pretendidos,
esses exemplos são suficientes.

O que essas palavras têm em comum é a sua falta de precisão semântica, que as torna uma fonte
perene de ambigüidade e de disputas ideológicas. É difícil definir com rigor se um determinado regime
político é democrático ou não; se uma determinada conduta é ética ou não; se uma decisão judicial é justa
ou não, mesmo porque há várias teorias sobre a democracia, sobre a ética e sobre a justiça. Além disso, o
sentido das palavras de legitimação costuma mudar conforme os gostos e os posicionamentos ideológicos
dos interlocutores. Basta ver a palavra “liberdade”, que é defendida tanto por pensadores progressistas

conhecimento moral até então produzido. É como se tivéssemos perdido bibliotecas inteiras de informações e só tivesse nos restado
meros fragmentos de um esquema conceitual ou meros simulacros de moralidade. (MACINTYRE, Alasdair. After Virtue: a
study in moral theory (1981). 3ª Ed. Indiana: University of Note Drame, 2007, p. 2; na tradução portuguesa: p. 15). Nesse
contexto, seríamos “platônicos perfeccionistas”, recompensando generosamente os conquistadores de medalhas nos jogos
olímpicos; “utilitaristas” em muitas circunstâncias da vida, em que se trata de distribuir recursos raros; “lockeanos”, quando
afirmamos o valor absoluto do direito de propriedade; “cristãos”, quando reconhecemos a importância da caridade, da compaixão e
da igualdade de todos os seres humanos como valor moral; enfim, somos “kantianos”, exigindo que se funde a moral na autonomia
pessoal (CANTO-SPENCER, Monique & OGIEN, Ruwen. Que devo fazer? A filosofia moral (La Philosophie Morale).
Tradução: Benno Dischinger. Rio Grande do Sul: Unisinos, 2004, p. 62).
46 Em ambientes mais informais, tenho chamado esse fenômeno de “efeito katchanga”, em alusão a um fictício jogo de cartas em

que os participantes não sabem quais são as regras e quem distribui as cartas define quem ganha sem explicar os motivos. A idéia
da “katchanga” foi desenvolvida no texto “Alexy à Brasileira e o Jogo da Katchanga”, disponível em meu site pessoal:
http://direitosfundamentais.net.
23

quanto conservadores. Na boca de um conservador, a liberdade significa, essencialmente, a liberdade


econômica contra a intervenção do estado. Por outro lado, a mesma “liberdade”, quando pronunciada por
um pensador mais à esquerda, significa algo completamente diferente, isto é, significa o direito dos
indivíduos de se verem livres de dificuldades econômicas. Enquanto um pensador de esquerda, em nome
da liberdade, defende uma postura ativa do estado para reduzir a miséria e combater as desigualdades
sociais, um pensador conservador, em nome da mesma liberdade, exalta o absenteísmo estatal.

Por serem palavras ambíguas, são facilmente manipuláveis e, com certa freqüência, são usadas
como mero pretexto para encobrir práticas abomináveis. O mais opressor, desumano e autoritário ditador
pode se auto-intitular “democrático” para tentar dar uma aparência de legitimidade ao seu governo. Com
muita freqüência, argumentadores pouco escrupulosos, notando o efeito sedutor dessas palavras de
legitimação, tentam se aproveitar do efeito de deslumbramento por elas proporcionado e as invoca mesmo
em situações onde elas, originalmente, não se aplicariam: uma prática cruel é rotulada de “humanitária”,
um regime opressor é chamado de “revolucionário” e assim por diante. Os documentos oficiais que mais
desrespeitam os direitos fundamentais costumam tecer louvores à liberdade e à igualdade, mesmo quando
a sua proposta é justamente neutralizar esses direitos. A título de exemplo, no Brasil, o Ato Institucional n.
5 (AI-5), de 1968, que é considerado o mais abominável instrumento de perseguição adotado pela ditadura
militar por ter suprimido inúmeras garantias fundamentais, utilizou, em seus considerandos, expressões
como “autêntica ordem democrática”, “baseada na liberdade”, “no respeito à dignidade da pessoa humana”,
“reconstrução moral do país” etc.

Deve-se sempre desconfiar da sinceridade com que são proclamadas belas palavras de legitimação,
sobretudo por parte daqueles que se beneficiam do discurso que as invoca. Muitas vezes, as motivações
reais dos oradores, ainda que expressem louvores à justiça, democracia, liberdade etc., encobrem interesses
econômicos e individuais geralmente egoístas. É preciso questionar se existe uma coincidência entre a
palavra e a vontade, entre a retórica e a prática. A mera análise “textual” da “face visível” discurso jurídico
não releva tudo o que está por detrás das opiniões. Sem dúvida, há omissões – conscientes e inconscientes –
na justificação de teses jurídicas que precisam ser descobertas para que se chegue a uma opinião segura
sobre o acerto ou desacerto de um determina opinião jurídica. Esse processo de “descoberta” das reais
intenções dos oradores é um processo difícil de ser implementado, pois exige uma certa dose de ceticismo,
de desconfiança. Mas é necessário. Para não corrermos os riscos de escorregar na semântica deslizante das
palavras de legitimação, é preciso, sempre que possível, exigir do interlocutor a versão integral de sua
proposta.

Expressar louvores à democracia, à liberdade, à ética, à justiça e aos direitos fundamentais é


extremamente fácil. O difícil é colocar tais idéias em prática e viver de acordo com o discurso. Por isso, é
preciso estar constantemente atento quanto à falta de sincronia entre os ideais humanitários e o que, em seu
nome, é transformado em realidade. Há “lobos em pele de cordeiro”, como bem ensina a inteligência
popular. Os discursos mais progressistas podem esconder intenções conservadoras e vice-versa. Vale
lembrar que o grito de liberdade das revoluções burguesas conviveu muito bem, por muito tempo, com a
existência de uma quantidade considerável da população humana vivendo em regime de escravidão. A
proclamação da igualdade foi seguida de medidas de segregação em relação a negros, mulheres e vários
outros grupos sociais que ainda sofrem com a discriminação histórica a que foram submetidos ao longo dos
séculos. A consagração da fraternidade e da solidariedade parece não ter abalado nem um pouco as
estruturas de um sistema econômico ganancioso, egoísta e destruidor, que é a causa de tantos males ainda
24

nos dias de hoje e talvez seja a mola propulsora de um colapso ambiental que se aproxima a passos largos.
Enfim, desconfiar é preciso47.

É um erro, contudo, culpar essas palavras de legitimação pelas desgraças humanas e sempre achar
que elas estão sendo manipuladas para fins opressivos. Liberdade, democracia, ética, justiça etc. são
conceitos importantes. Os valores que eles representam são aspirações legítimas que devem ser
implementadas de verdade. Não é pelo fato de serem manipulados que deixam de ser relevantes, desde que
saibamos distinguir a mera retórica do argumento sincero. (Logicamente, estou plenamente ciente de que
esse argumento também pode se voltar contra o meu próprio discurso). A grande dúvida é saber se é
possível não apenas pensar humanisticamente, mas também agir da mesma forma. Dito de outra forma: é
possível partir do discurso para a ação sem se contaminar pelos jogos de poder, pelas tentações ideológicas
ou até mesmo pelos preconceitos inconscientes? Existe algum discurso que seja tão sincero ao ponto de ser
totalmente livre de interesses ocultos e possa ser colocado em prática com toda a sua pureza e boa vontade?
Há chances reais de se decidir e agir eticamente sem dissimulação? Nenhum argumento é capaz de
sustentar a veracidade de qualquer resposta afirmativa às perguntas acima, já que o próprio argumento
poderá estar contaminado. Portanto, não são nas palavras que se devem buscar as respostas, mas nas
escolhas e nas ações reais de seres humanos concretos.

3.4 Enfraquecimento dos Direitos

Tornou-se lugar comum, entre os teóricos do direito, afirmar que os direitos fundamentais são
relativos (no sentido de restringíveis) e, por isso, podem ser limitados em determinadas situações. Embora
essa afirmação contenha um fundo de verdade, pois, como se viu, o choque entre direitos é, muitas vezes,
inevitável em uma democracia plural, a forma banalizada e distorcida que se tem adotado esse pensamento
está dando margem ao surgimento de um discurso pouco comprometido com os direitos fundamentais, que
ameaça diretamente a idéia de dignidade humana. Nesse contexto, um uso distorcido da técnica da
ponderação pode servir e tem servido para enfraquecer a proteção dos direitos fundamentais e esvaziar o
seu sentido maior que é estabelecer freios ao poder.

Esse fenômeno pode ser presenciado em vários julgamentos reais. Assim, por exemplo, com o
pretexto de que os direitos fundamentais são relativos e “sopesando” a proteção à integridade física e
psicológica com a necessidade de se garantir a segurança contra atos terroristas, alguns tribunais têm
flexibilizado o conceito de “tortura” a fim de camuflar práticas policiais nitidamente desumanas, tal como
fez a Alta Corte de Justiça de Israel e a Corte Européia de Direitos Humanos, ao entenderem que não
constitui tortura a colocação de sacos na cabeça durante o interrogatório de presos acusados de terrorismo,

47 Dentro dessa mesma linha, e tratando especificamente do uso manipulador dos direitos humanos, Costas Douzinas, com um
misto de ironia e rancor, atacou a distância que separa o discurso e a prática com a seguinte observação: “o pensamento e a ação
oficiais quanto aos direitos humanos têm sido entregues aos cuidados de colunistas triunfalistas, diplomatas entediados e abastados
juristas internacionais em Nova Iorque e Genebra, gente cuja experiência com as violações dos direitos humanos está confinada a
que lhe seja servido vinho de uma péssima safra” (DOUZINAS, Costas. O Fim dos Direitos Humanos (The End of Human
Rights). Trad: Luzia Araújo. São Leopoldo: Unisinos, 2007, p. 25). Para Douzinas, os direitos humanos teriam perdido a sua
razão de ser, uma vez que deixaram de servir como um instrumento de resistência contra a dominação e a opressão para se
tornarem um chavão retórico dentro da política oficial das nações hegemônicas, inclusive servindo de pretexto para as suas guerras
imperialistas. É preciso compreender corretamente esse tipo de raciocínio. É lógico que Douzinas não é inimigo da liberdade nem
da democracia. O que ele critica é a manipulação do discurso. A sua estratégia, portanto, é atacar os direitos humanos para
combater a demagogia. Confesso que não considero essa estratégia muito promissora.
25

a submissão a sons elevados, a privação de sono, comida e bebida e outros procedimentos igualmente
cruéis48.

Tal fato poderia ser comprovado, inclusive, no berço de origem “judicial review”. Uma rápida
análise crítica da história da Suprema Corte norte-americana seria suficiente para desmistificar a idéia de
que o Poder Judiciário norte-americano sempre cumpriu adequadamente seu papel de guardião dos
direitos. Se voltarmos nossos olhos para o passado, perceberemos que a Suprema Corte dos Estados Unidos
passou por longos períodos de conservadorismo, servindo nitidamente como instrumento de manutenção
de estruturas sociais e econômicas excludentes, intercalados por momentos relativamente curtos de
avanços elogiáveis. Na verdade, só vamos encontrar decisões realmente favoráveis aos direitos
fundamentais a partir dos anos 50 do século passado, sob o comando do Chief Justice Earl Warren. Antes
disso, a Suprema Corte era conservadora e discriminatória, barrando inúmeros avanços sociais
conquistados na via legislativa por grupos desfavorecidos e decidindo sempre em favor do “status quo”. Os
juízes eram comprometidos em proteger os interesses de uma classe economicamente privilegiada, até
porque também faziam parte de um grupo privilegiado. A jurisdição constitucional norte-americana, até
meados do século passado, era nitidamente anti-direitos fundamentais.

Eis alguns exemplos de decisões que confirmam essa hipótese: o caso Dred Scott49, de 1857, que
negou cidadania aos negros e declarou a inconstitucionalidade de uma lei abolicionista sob o argumento de
que tal lei violaria o direito de propriedade dos donos de escravos50; o caso Plessy v. Ferguson51, de 1896,
que deu suporte constitucional às leis segregacionistas, observando a lógica do “equal but separate”, com
base na idéia de que “se uma raça é socialmente inferior a outra, a Constituição não pode colocá-los no mesmo

48 Sobre isso: PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 276/277.
49 Dred Scott v. Sandford, 60 U.S. (19 How.) 393 (1857). On-line: http://laws.findlaw.com/us/60/393.html
50 Ressalte-se que, no referido julgamento, iniciou-se a construção do chamado substantive due process. A cláusula do devido

processo foi adotada para declarar a inconstitucionalidade do “Missouri Compromise”, que proibia a escravidão em novos territórios
existentes acima de determinada latitude nos Estados Unidos. O fundamento citado pelo juiz Taney, relator do caso, foi este: “um
ato do Congresso que priva um cidadão dos Estados Unidos de sua liberdade ou propriedade meramente porque ele foi ou levou
sua propriedade para um território específico dos Estados Unidos, e que não cometeu nenhuma ofensa contra as leis, dificilmente
poderia ser dignificado como devido processo legal”. No Brasil, é costume no meio jurídico elogiar a construção “substantiva” da
cláusula do devido processo como se fosse o melhor instrumento para barrar as leis materialmente irrazoáveis. Talvez seja mesmo.
Mas o que poucos sabem é que essa idéia não foi criada para anular uma lei substancialmente injusta. O propósito, pelo menos no
caso Dred Scott, foi o de invalidar uma lei que era totalmente a favor dos direitos fundamentais, já que proibia a escravidão em
determinados territórios.
51 Plessy v. Ferguson, 163 U.S. 537 (1896). On-line: http://laws.findlaw.com/us/163/537.html. No referido caso, a Suprema

Corte, com apenas um voto contrário, decidiu que a reserva de acomodações “separadas, mas iguais” para negros nos transportes
ferroviários seria compatível com o princípio da igualdade, já que essa teria sido a intenção dos legisladores que aprovaram a
cláusula da igualdade. Os fatos que deram origem ao processo judicial, pelo menos em sua versão mais conhecida, foram estes: um
senhor chamado Homer Plessy, que tinha ascendência negra, comprou uma passagem de trem na primeira classe. Quando já
estava no vagão, a polícia foi chamada, pois aquela área era privativa de pessoas brancas. Plessy se negou a sair do vagão e, por isso,
foi preso e condenado por violar a lei estadual que autorizava a reserva de áreas exclusivas para brancos em transportes coletivos.
No caso em questão, a Suprema Corte confirmou a punição sofrida pelo senhor Plessy (informações obtidas a partir de: IRONS,
Peter. A People's History of the Supreme Court: The Men and Women Whose Cases and Decisions Have Shaped Our
Constitution. New York: Viking, 1999). O único juiz da Suprema Corte que não concordou com o julgamento foi Jonh Harlan,
que, além de ter afirmado que a Constituição é cega quanto a cor dos indivíduos (”color-blind“), foi profético ao assinalar no seu
voto: “Na minha opinião, o julgamento que hoje se concluiu se mostrará, com o tempo, tão pernicioso quanto a decisão tomada neste
tribunal no Caso Dred Scott. A presente decisão não apenas estimulará a discriminação e a agressão contra os negros como também
permitirá que, por meio de normas estatais, sejam neutralizadas as benéficas conquistas aprovadas com as recentes mudanças
constitucionais”. Desde então, como bem profetizou o juiz Harlan, várias medidas segregacionistas foram adotadas por diversos
Estados e reconhecidas como válidas pela Suprema Corte. Pode-se mencionar, por exemplo, o caso Berea College v. Kentucky
(1908), onde foi aceita uma lei do Estado de Kentucky que proibia que as escolas particulares admitissem brancos e pretos na
mesma instituição, bem como o caso Gong Lum v. Rice (1927), que equiparou as crianças de origem chinesas aos negros para fins
de matrícula escolar. No caso Corrigan v. Buccley (1926), a Suprema Corte disse que não violava o devido processo nem o princípio
da igual proteção, uma cláusula contida em contrato de compra e venda de imóvel que proibia o aluguel ou a transferência do
imóvel para qualquer pessoa negra.
26

plano” (conforme voto condutor); e o caso Lochner v. New York52, de 1905, que deu início a uma série de
decisões contrárias ao reconhecimento de direitos trabalhistas, sob a alegação que tais leis violavam o
direito de liberdade econômica. Pode-se acrescentar a esse rol de decisões censuráveis a que foi proferida no
caso Korematsu v. United States53, de 1944, que reconheceu a constitucionalidade de uma política de
segurança adotada pelo governo federal norte-americano que ordenava o encarceramento de japoneses, em
campos de concentração construídos em pleno solo norte-americano, durante a Segunda Guerra Mundial.

As referidas decisões, hoje, estão ultrapassadas, pois foram revogadas posteriormente pelo mesmo
Tribunal ou então por emendas constitucionais. Mesmo assim, algumas delas vigoraram por longos
períodos e foram responsáveis pela consolidação de um sentimento de discriminação que ainda hoje marca
a sociedade norte-americana. É difícil estabelecer até que ponto as referidas decisões são responsáveis por
essa mentalidade ou se são apenas reflexo dela. Apesar disso, não há dúvida de que quando o principal
órgão jurídico do país despreza a dignidade de seres humanos por causa da cor de sua pele ou de sua raça,
avaliza práticas discriminatórias e opressivas, impede o reconhecimento de direitos sociais trabalhistas,
autoriza o envio de seres humanos a campos de concentração, tudo isso fornece um inegável suporte
argumentativo para justificar o desrespeito aos mais básicos direitos dos indivíduos, seja por agentes
estatais, seja por particulares. E a Suprema Corte dos Estados Unidos fez tudo isso durante boa parte de
sua existência, demonstrando que a jurisdição constitucional norte-americana nem sempre foi tão virtuosa
quanto se imagina.

O que se nota é que a invocação de valores, com freqüência, tem sido utilizada pelos juízes para
encobrir preconceitos conscientes ou inconscientes. Geralmente, os valores divergentes incomodam o
establishment e, portanto, aqueles que defendem idéias contrárias à moral particular dos juízes costumam
ser os primeiros a terem os seus direitos fundamentais restringidos sob o fundamento de que estão
ultrapassando os limites da proteção jurídica. Para demonstrar isso, basta observar que, ao longo de todo o
século XX, o pensamento dominante defendeu que a ideologia comunista era destruidora da paz social e
perigosa para a segurança do estado, razão pela qual os direitos de liberdade (política, de expressão, de
reunião, de associação etc) não se aplicariam a quem defendesse tais idéias. Mesmo governos supostamente
democráticos, que exaltavam em seus textos constitucionais o direito de manifestação do pensamento, não
tiveram qualquer pudor em “ponderar” os valores em jogo para, em nome dos princípios “mais
importantes” da pátria, da família e da propriedade, sacrificar o direito daqueles que defendiam o
marxismo54.

52 Lochner v. New York, 198 U.S. 45 (1905). On-line: http://laws.findlaw.com/us/198/45.html. Nesse caso, a Suprema Corte
anulou uma lei do Estado de Nova Iorque que limitava a jornada de trabalho dos padeiros. A lei atacada reconhecia que os
padeiros tinham o direito de trabalhar no máximo 60 horas por semana ou 10 horas por dia. E ainda assim foi declarada
inconstitucional, pois os juízes entenderam que qualquer interferência estatal no contrato de trabalho não seria razoável. Para a
Corte, a adoção de leis que protegiam os trabalhadores representava uma interferência indesejada na vontade livre das partes
contratantes, violando um suposto “economic substantive due process”. Diversos casos foram julgados seguindo essa lógica. No caso
Hammer v. Dagenhart (1918), por exemplo, foi declarada a inconstitucionalidade de uma lei que proibia o trabalho de crianças
abaixo de 14 anos em fábricas. No Caso Adkins v. Children’s Hospital, julgado em 1923, a Suprema Corte invalidou uma lei que
reconhecia pisos salariais mínimos para mulheres e crianças. Nesse período, a Suprema Corte norte-americana ficou conhecida
como o Tribunal do “Laissez-Faire”, pois os valores do liberalismo econômico foram alçados à categoria de dogma constitucional.
Esses exemplos foram extraídos de: SUNSTEIN, Cass R. The second bill of rights: FDR’s revolution and why we need it
more than ever. New York: Basic Books, 2004.
53 Korematsu v. United States, 323 U.S. 214 (1944). On-line: http://laws.findlaw.com/us/323/214.html
54 São inúmeros os exemplos históricos de repressão ao pensamento marxista. Destaco, pela notoriedade, o marcatismo norte-

americano, que assombrou o país após a Segunda Guerra Mundial. Mas também não podemos esquecer a própria atitude tomada
pelo governo brasileiro, com o aval do Poder Judiciário, que não tinha qualquer escrúpulo em perseguir o pensamento divergente.
Paradigmática, nesse sentido, foi a decisão do Supremo Tribunal Federal brasileiro no caso Olga Benário, de 1936, que permitiu a
extradição de uma mulher grávida, de origem judaica, para a Alemanha, em pleno regime nazista. Olga acabou sendo morta no
campo de concentração de Bernburg. Podem ser mencionadas outras decisões do nosso STF, proferidas no início do século XX,
27

O grande problema é que toda ponderação é, em última análise, uma escolha que resulta no
sacrifício de um valor importante em nome da proteção de um valor alegadamente ainda mais importante.
O peso de cada valor é atribuído pelo julgador que pode, eventualmente, dar pouca importância às
liberdades individuais ou a outros valores que não se harmonizem com a sua tradição e estilo de vida. O
juiz pode achar que a livre discussão de idéias, sobretudo aquelas mais incômodas ao establishment, é uma
grande bobagem e pode ceder com facilidade quando se chocar com outros valores supostamente mais
valiosos, como a integridade moral do governo, o respeito às instituições existentes ou as concepções
moralistas dominantes, por exemplo. E esse mesmo juiz poderá tomar decisões que reflitam o seu
pensamento construindo um convincente discurso de legitimação onde invocará diversas passagens do
direito positivo, inclusive do direito constitucional vigente, para demonstrar que a sua decisão representa a
“autêntica vontade geral” e não apenas a sua própria ideologia. Além disso, incrementará seus argumentos
com palavras de ordem e frases de efeito, como a segurança nacional, a defesa da pátria e da civilização, o
interesse social, a moral e os bons costumes, o bem coletivo e assim por diante, que funcionarão como
elemento de persuasão para convencer um público mais incauto que acredita, sem pestanejar, em palavras
deslumbrantes, que, no fundo, são vazias de significado. E o juiz fará isso com tal convicção que até ele
próprio acreditará que sua decisão é a encarnação da justiça, tornando-se como o poeta fingidor de
Fernando Pessoa, que finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.

O mais assustador de tudo isso é que nós próprios estamos sujeitos a cometer o mesmo tipo de
engano. Pessoas extremamente virtuosas e sábias, cujas ações e palavras inspiraram inúmeras gerações de
seres humanos no mundo todo, foram capazes de construir elaborados discursos morais para defender o
preconceito vigente em sua época. O exemplo de Aristóteles, ao defender a escravidão, é notório. Aliás,
quando se lê a defesa aristotélica da escravidão, é possível sentir uma sensação de estar lendo um pedido de
desculpas aos escravos. Nota-se que Aristóteles se constrange ao negar aos escravos a condição de pessoa
merecedora de igual respeito e consideração, tanto que sugere a existência de um “reconfortante” dever de
tratar bem os escravos. Para alguém que, como nós, vivemos em uma sociedade onde a escravidão é
condenada e que jamais seria capaz de tentar justificar a escravidão em termos éticos, ler aquelas palavras é
como ler a tentativa desesperada de uma pessoa bem intencionada que é incapaz de fugir da cultura de
maldades em que está inserido. E se usarmos esse exemplo como espelho, podemos também nos questionar
se as nossas crenças morais também não serão julgadas de modo tão implacável pelas gerações futuras.

Infelizmente, não há fórmula segura para escapar dos enganos morais. Não temos como saber se o
nosso raciocínio moral está sempre nos levando para o caminho correto da justiça. Às vezes, nem mesmo a
segurança trazida por uma deliberação coletiva é capaz de impedir os erros de avaliação. Os já mencionados
exemplos de julgamentos da Suprema Corte norte-americana bem demonstram isso: em Dred Scott, por
exemplo, a maioria dos juízes preferiu o direito de propriedade dos donos de escravos à liberdade conferida
pelas leis abolicionistas; no caso Lochner, quase todos os juízes optaram pela liberdade contratual em
detrimento dos direitos trabalhistas; no caso Korematsu, a segurança nacional justificou o encarceramento
de japoneses em campos de concentração e assim por diante. De acordo com os padrões éticos atuais, tais
julgamentos são tratados como erros claros de avaliação moral.

Se é possível pensar em algum tipo de princípio-guia, que possa servir como uma bússola geral,
ainda que muito limitada, de nossas ações e decisões, creio que a idéia de expansão do círculo ético é um
bom começo. A idéia da expansão do círculo ético foi desenvolvida por Lecky, no seu “A History of

que autorizavam a perseguição de dissidentes políticos, especialmente anarquistas e comunistas, e negavam aos trabalhadores o
direito de se reunirem e de realizarem greves ou protestos por melhores condições de trabalho. Para uma análise bastante rica da
história do Supremo Tribunal Federal, recomenda-se a leitura dos quatro tomos da “História do Supremo Tribunal Federal”, de
Lêda Boechat Rodrigues.
28

European Morals”, de 186955. Recentemente, o filósofo Peter Singer retomou a mesma idéia para defender
com mais ênfase a inclusão dos animais não-humanos no círculo ético56.

Trazendo essa idéia para o direito, é possível defender que, quando a decisão contribui para a
expansão do círculo ético, permitindo a construção de uma comunidade moral mais inclusiva, ela tende a
ser legítima (ainda que, por razões culturais, possa não conseguir ser eficaz, já que a “consciência moral
geral” evolui progressivamente no seu próprio ritmo). Por outro lado, quando a jurisdição impede a
expansão do círculo ético ou reduz o círculo ético ela certamente é ilegítima, por mais que receba o aplauso
da maioria da população e até mesmo da “consciência jurídica geral”.

Afinal, o que faz com que, hoje, nós sejamos capazes de reconhecer a decisão do caso “Brown v.
Board of Education” como uma decisão legitima, justa, correta e, pelo contrário, a decisão do caso “Dred
Scott” como uma decisão opressiva e arbitrária? Por que hoje nós somos capazes de criticar a não extensão
do direito de voto pelas mulheres ou então a própria escravidão? Por que as atrocidades praticadas pelo
nazismo nos causam tanta perplexidade e, por exemplo, a matança de animais para alimentação não nos
choca tanto? Por que nos indignamos com a morte brutal de alguém próximo, mas não sofremos uma dor
tão forte quando uma guerra ocorre do outro lado do mundo e mata milhares de inocentes? A resposta mais
simples, a meu ver, é esta: cada vez mais, o nosso círculo ético vai se expandindo e, na medida em que ele
vai se expandindo, nós passamos a incluir categorias de pessoas que até então não estavam inseridas nas
nossas preocupações morais. Quando o círculo ético se expande e a “consciência ética geral” acompanha
essa evolução, não é mais possível “voltar para trás” sem violar a dignidade daqueles que já fazem parte do
círculo ético. Por outro lado, sempre que se dá um passo para frente para se ampliar o círculo ético, é um
sinal de que se está caminhando na direção correta, ainda que a “consciência ética geral” demore para
acompanhar essa evolução.

Acredito que a atividade jurisdicional está impregnada de valores, e que a tarefa responsável dos
juristas é tentar fazer com que o direito cumpra a sua necessária intenção ética, sem a qual o poder judicial
se torna um mero instrumento do arbítrio. Isso significa, em termos práticos, que os critérios de
justificação para as decisões judiciais deverão ser selecionados e desenvolvidos pelos julgadores muito mais
pelo seu poder de convencimento ético (fundamento axiológico) do que pela sua formal positividade
(imposição estatal) ou por outros critérios técnico-instrumentais que não respeitem a dignidade dos
sujeitos éticos atingidos pelo julgado. É isso que chamo de “transformar ética em direito”, que também
pode funcionar como critério de medição do grau de legitimidade da atuação dos juízes: tanto mais será
legítima a jurisdição quanto mais essa atividade contribuir para a expansão do círculo ético e para o
alargamento do conceito de respeito ao outro. O fundamento “jurídico” para essa proposta não pode ser
fornecido por normas legais positivadas, nem por normas constitucionais nem declarações de direitos, por
mais bem intencionadas que sejam, pois até mesmo esses documentos formais podem ser ilegítimos à luz
da idéia de “círculo ético”. Daí o sentido forte da expressão “transformar ética em direito”.

4 Uma Conclusão Decepcionante, mas Esperançosa

55 “At one time, the benevolent affections embrace merely the family, soon the circle expanding includes first a class, then a nation, then
a coalition of nations, then all humanity and finally, its influence is felt in the dealings of man with the animal world. In each of these
stages a standard is formed, different from that of the preceding stage, but in each case the same tendency is recognised as virtue”
(LECKY, W. E. Hartpole. History of European morals - From Augustus to Charlemagne. v. 1, 3a ed., New York and
London: D. Apleton and Company, 1917, p. 100/101).
56 SINGER, Peter. The Expanding Circle: Ethics and Sociobilogy. Oxford: The Clarendon Press, 1981.
29

Ao longo deste artigo tracei um quadro geral dos problemas filosóficos em torno da colisão de
direitos e da ponderação de valores. É provável que, para muitos, o quadro não tenha sido tão animador.
Temo que minhas conclusões sejam frustrantes para aqueles que estivessem esperando certezas absolutas
ou soluções definitivas para o problema que me propus a enfrentar. Mas não poderia ser diferente diante da
natureza essencialmente insolucionável dessas questões fundamentais. Por certo, minha pretensão não foi
colocar um ponto final no assunto. Mas também não me parece correto simplesmente engavetar o
problema ou jogá-lo para debaixo do tapete, como atualmente se faz, talvez por medo do desconhecido.

É provável que este texto, caso seja lido por alguém, seja interpretado como uma grande crítica à
jurisdição constitucional dos direitos fundamentais ou ao novo constitucionalismo que tem sido tão
enaltecido pela comunidade jurídica brasileira. Prefiro, porém, não me colocar ao lado dos críticos da
jurisdição constitucional, especialmente se a proposta de superação do novo constitucionalismo seja um
retorno ao velho sistema de legislação baseado em um consentimento político tradicional, com todas as
falhas de um processo eleitoral corrompido e que apenas favorece grupos de poder, cujos interesses não são
necessariamente éticos. Na verdade, acredito na idéia de que não há poder legítimo que não passe por
algum tipo de filtro ético, onde as decisões devem ser tomadas com base no princípio de que toda pessoa
afetada pelo exercício do poder merece igual respeito e consideração. Se o modelo de jurisdição
constitucional tal como praticada na atualidade está muito longe de atingir um grau razoável de
legitimidade e de alcançar o desiderato ético aqui desejado, não há dúvida de que esse modelo já
representou algum avanço em relação ao modelo anterior onde o poder legislativo era completamente livre
para agir como bem entendesse. E como não há uma terceira via à vista, só nos resta desenvolver critérios
para que a jurisdição em favor dos direitos fundamentais possa ser exercida de forma mais legítima.

De qualquer modo, não serei totalmente pessimista na minha colocação final. Acredito que muito
já foi feito e muito ainda pode ser feito para tornar as decisões judiciais menos arbitrárias e mais
comprometidas com uma ética de respeito ao outro. Se nossa tarefa consiste em construir um modelo
jurídico que possa permitir a expansão do círculo ético e a ampliação do sentido de respeito ao outro, temos
que seguir alguns passos necessários. Ei-los:

O primeiro passo é embutir nos juristas uma cultura de humildade intelectual e moral. Como
qualquer participante de um debate onde a busca das melhores soluções seja a meta, os juristas precisam
submeter as suas valorações pessoais a uma constante autocrítica a fim de que a sua perspectiva do
problema não se torne o único fator, nem o fator preponderante, a ser levado em conta. Como decorrência
disso, é necessário alargar ainda mais a razão jurídica para que os debates judiciais possam ser enriquecidos
com outras fontes do saber, além do estrito conhecimento produzido pelos próprios juristas. A metáfora do
“ponto cego”, lembrada por Marcelo Neves57, serve para ilustrar esse aspecto: embora nós não sejamos
capazes de enxergar o “ponto cego”, é possível que outra pessoa consiga. Assim, o nosso campo de visão se
amplia consideravelmente a partir do momento em que estejamos dispostos a ouvir o que o outro tem a
dizer e não simplesmente querer impor a nossa própria visão de mundo na base da força e da arrogância.
Afinal, não há nenhuma pessoa ou grupo social que seja capaz de ter uma visão tão privilegiada e tão
abrangente de determinado problema que possa se arrogar no direito de impor a sua própria solução às
outras pessoas sem levar em conta o que elas têm a dizer.

Além disso, é preciso popularizar, na prática jurídica, a teoria da argumentação e da ética do


discurso, para fortalecer a idéia de sinceridade, coerência e respeito às regras do bom debate, sem
construções falaciosas ou frases de deslumbramento vazias de significado. Há uma clara necessidade de

57 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.


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desenvolver fundamentos e critérios que possam melhorar a qualidade da argumentação jurídica, buscando
dar mais racionalidade ao processo de justificação do julgamento.

Finalmente, é fundamental desenvolver um forte senso ético nos agentes jurídicos, sobretudo nos
julgadores, pois, em última instância, a qualidade da prestação jurisdicional está intimamente ligada à
própria capacidade moral dos juízes. O jurista alemão Eugen Ehrlich já dizia no início do século passado
que “não há nenhuma outra garantia para a administração da justiça senão a que está na personalidade do
juiz”58. Do mesmo modo, Kantorowicz dizia que “da cultura do juiz depende, em última análise, todo o
progresso da evolução do direito”. Como qualquer frase reducionista, certamente essas afirmações são
sujeitas à crítica. Porém, elas possuem uma boa dose de verdade, na medida em que enfatiza a necessidade
de se reforçar a estrutura moral dos julgadores, que são, em última análise, os principais, ainda que não
sejam os únicos, responsáveis pelos resultados produzidos pela função jurisdicional.

58 EHRLICH, Eugen. Escritos sobre Sociología y Jurisprudencia. Barcelona: Marcial Pons, 2005, p. 73 (Tradução livre).

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