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Nº de páginas: 338
Índice, páginas: 5-6
ISBN: 978-84-87305-58-0
Depósito legal: C 595-2012
Diagramacão e impressão:
Sacauntos Cooperativa Gráfica - www.sacauntos.com
Roberto Vecchi
Università degli Studi di Bologna
Qual é a relação que se pode tentar entre a memória poética da guerra co-
lonial e a construção de um lugar compartilhado de elaboração das suas
multíplices perdas? Procuro problematizar este assunto largamente apo-
rético a partir de um limiar: o volume póstumo, Poesias e cartas (1966 e
1971), do primeiro poeta morto, José Bação Leal, em Nampula, em 1965,
que inaugura, dir-se-ia, uma memória poética literal e conceptualmente
póstuma da guerra colonial. Poeta este, Bação Leal, que a meu ver reúne
vários elementos que o tornam decisivo para pensar hoje a poesia da guer-
ra colonial e uma sua possível sistematização em termos ontológicos e an-
tológicos. Na verdade, a própria definição de “poesia da guerra colonial”
expõe imediatamente uma contradição cortante. Haverá uma poesia que
se conecta directamente com um “real” que para que a poética exista deve
escoar sempre e tornar-se não só invisível, mas ausente? E uma outra ques-
tão que investe um campo perturbado como o da história da guerra colo-
nial –uma história ainda largamente por escrever- que valor poderá ter
esta poesia que surge da lâmina de uma contradição entre o real e o poéti-
co, para fundar uma memória –não monumental- mas minimamente
compartilhada de um evento dramaticamente traumático, de um trauma
que ainda resiste a uma simbolização efectiva?
O que desperta a atenção desta experiência histórica “singular” da
guerra colonial de Portugal em África é a proliferação enorme de duas
formas dominantes de representação cultural. Duas formas aparente-
mente remotas mas que na verdade mostram, na prática, vários elos de
que, como se sabe, foi publicado pelo pai do poeta numa edição de es-
cassa tiragem em 1966 e depois reeditada –e censurada- em 1971.
Há vários traços desta obra que aqui se evidenciam. O primeiro é
que ela se caracteriza como uma não obra, no sentido que a sua exis -
tência se deve a uma resistência à damnatio memoriae decretada pelo
seu “autor”, por parte dos editores familiares –autores por sua vez?- do
volume. A poesia de Bação Leal afirma-se por uma insuficiência, por
uma debilidade. Mais propriamente uma falta, um não ser para ser.
Uma poética do anticânone que porém se inscreve num seu cânone ín-
timo que o poeta declina nas suas cartas como epígrafes (Pessoa, Ra -
mos Rosa, Herberto Helder) ou citações ou referências («Quando
Herberto Helder, Maria Teresa Horta (só poesia) Ruy Belo, A. Ramos
Rosa publicarem qualquer coisas, escusas de me avisar, diz logo a mi -
nha irmã que mande», Leal, 1971: 108).
Há um segundo traço que decorre do primeiro: de modo não meta-
fórico é uma obra póstuma mas que ao mesmo tempo contribui para
pensar aquela que chamei a condição póstuma do autor da guerra colo-
nial. Como Margarida Ribeiro mostra cabalmente, a literatura da guerra
colonial, diria particularmente a poesia, é uma literatura figuralmente de
epitáfios sobretudo pela função cultural que o epitáfio desempenha, en-
quanto inscrição tumular incoincidente, que surge afastada do túmulo,
mas que simboliza a memória monumentalizada na ausência dos despo-
jos que a motivam. Uma literatura, a da guerra colonial, na esteira dessa
tradição tumular, que desde logo se configura como póstuma - literal-
mente - em relação aos factos que relata. Mas póstumo aqui tem uma
significação de eco mais amplo, que decorre da relação cultural e cultual
que autores das representações da guerra instauram com o horizonte da
morte, e com o mundo que a ela se conecta. Como já tive modo de ob-
servar, a partir de algumas considerações de semântica histórica sobre o
termo, póstumo possui uma ressonância mais ampla do que o seu sim-
ples significado etimológico que como se sabe (e no caso português uma
das mais complexas figuras históricas, a de D. Sebastião, elucida plena-
mente a acepção) alude ao caso do filho nascido depois da morte do pai.
De facto, se com Isidoro de Sevilha assume o termo no sentido de post
humatus, algo que surge depois do enterro, é em época medieval que co-
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tos, insinuando estes, tudo o que devias ter feito e não fi-
zeste, não foste capaz de fazer. Acredita-me, acredita-me.
(Ibid: 125)
sia de Giovanni Pascoli (marcada por exemplo pelo uso do latim) apon-
ta como a poesia fale uma língua morta, aquela língua que de acordo
com a tradição (S. Agostinho) é a experiência da palavra pronunciada
quando não é já só som e, no entanto, ainda não é significado, mas sim
mera intenção de dizer. A poética torna-se assim, nessa perspectiva, poé-
tica de uma língua morta, que marca um lugar da experiência poética
que é aquele onde o poeta pode captar a língua no instante em que ela
reafunda, morrendo, na voz e a voz no ponto em que reemergindo do
mero som, traspassa, morre, no significado (Agamben, 1996: 74). A ex-
periência do ditado poético é reconstituída nestes termos como uma ex-
periência de traspasse, de morte, ao conjugar a morte da voz e a morte
da língua. Há um outro aspecto a ser evidenciado: a língua morta que se-
ria portanto a da poesia é uma língua residuária, uma língua-resto. Nela
se perdeu por inteiro a dialéctica entre a inovação e a conservação que é
própria das línguas vivas pelo uso que se faz delas e que se dá no ponto
de encruzilhada dessas duas tensões, entre anomia e norma, que é o fa-
lante estabelecendo o que pode e o que não pode ser dito (sempre em
prol da compreensão). Pelo contrário, na língua morta não é possível
atribuir a posição de um sujeito (Agamben, 1998: 143) como existe só a
dimensão da invariabilidade, da conservação. Usar a língua poética
como língua morta essencialmente aponta não só para o reposiciona-
mento do autor nela, mas de certo modo faz com que a língua sobreviva
aos sujeitos que a usaram.
Estamos, como se pode perceber, numa dimensão diametralmente
oposta à da poesia confessional ou imediata. A poesia, nestes termos,
não poderá representar algo que se perdeu definitivamente, e sobre este
elo negativo da poesia e da representação é oportuno lembrar como,
para uma certa vertente da lírica moderna, a poesia está desprovida de
qualquer capacidade mimética e a sua possibilidade de representação
pode-se articular só a partir de uma interrupção da arte, de um bloqueio
do poético, do elo com a tradição (Lacoue-Labarthe, 1986: 99-100). O
exemplo da poesia de Bação Leal, julgo eu, expõe concretamente o que
sintetizei em termos mais teóricos ou abstractos. É em função do seu es-
vaziamento, da sua dessubjetivação que se pode tornar supérstite e é
pela sua falta, pela sua insuficiência, que desvenda um mecanismo bem
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mais complexo, este sim que remete, ainda que pelo negativo, para os
mecanismos do testemunho.
A poesia de Bação Leal chega a nós não só pela sua potência de lín-
gua morta que sobrevive à morte do sujeito, mas porque ela terá lugar só
como voz (estranha, bárbara, alheia) que se situa num outro falante,
num outro autor. O seu inestimável mérito é o de mostrar como ao lado
do que acima chamamos de “material em forma de poesia” (no sentido
que possui um valor predominantemente documentário) e da poesia
dos autores canónicos da guerra colonial (e o tópico da guerra invadiu o
cânone horizontal e verticalmente e modificou-o), temos um terceiro
segmento importante que é das –diria- “poéticas em potência”. Neste,
pelos mecanismos da poesia, de dessubjetivação e perda de qualquer
pretensão de “real” (que é o modo da sua salvação residuária), um acto
de autor é necessário para a transformação da potencialidade em poesia
tout court. Sem este, a poesia extraordinária de Bação Leal não “teria lu-
gar” e neste caso o acto de autor é a sua reunião num volume justa e du-
plamente, no sentido próprio e figurado, “póstumo”. Assim como um
acto de autor é indispensável para construir, praticamente do nada –um
livro de poemas e cartas, um nome no memorial dos ex-combatentes,
outros, poucos, rastos da memória- o documentário de 2007 de Luísa
Marinho, Poeticamente exausto, verticalmente só (título retirado, uma vez
mais, não de um verso mas de uma carta de Bação Leal).
Se é verdade que na obra de José Bação Leal encontramos uma re-
presentação de todos os três segmentos poéticos, é sobretudo pela con-
tribuição para a identificação do segundo que esta obra –pelo seus limi-
tes que são os limiares da sua força crítica- se caracteriza, evidenciando a
necessidade de pensar a poesia da guerra colonial dentro de esquemas
mais complexos, não em função de uma axiologia dualista, poético/não
poético, aliás de aplicação absolutamente impossível.
No entanto, falar de uma exegese da voz póstuma e da língua morta,
aumenta a complexidade crítica, porque, como creio Bação Leal não igno-
rasse, há um risco no acto do outro autor de trair as poéticas potenciais, o
que leva o problema para o terreno ético, tal como na aporia da testemu-
nha. Há, de facto, numa carta a Francisco, de Luanda de Novembro de
1964, uma indicação peremptória e lúcida: «Fechado o cerco, sabes de al-
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