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INTRODUÇÃO À ÉTICA
A Introdução à Ética como ciência do ethos, após uma reflexão inicial sobre o nome
desta disciplina, far-se-á em dois passos:
(1) Caracterização do ethos como objeto do saber ético (fenomenologia do ethos)
(2) Caracterização da Ética como ciência do ethos, i.e. como saber cujo objeto é o ethos
(natureza e formas do saber ético)
1. Problema: Trata-se de saber qual é o termo mais adequado para designar o estudo que
pretendemos realizar e que no nosso currículo recebe o nome de Ética. Com efeito, na
cultura ocidental dois termos são empregados a respeito do tipo (de realidade e) de
conhecimento, que se pretende explorar: Ética e Moral. Daí a pergunta: Trata-se de
designações equivalentes ou há alguma diferença entre Ética e Moral, que justifique a
preferência por um destes termos na designação de nosso estudo? Para respondê-la,
analisaremos:
# o significado original (etimológico) desses termos
# o seu emprego atual
2. Análise etimológica
2.1. “Ética”:
b) O substantivo de onde deriva o adjetivo “ethiké” é “ethos”. Este termo possui em grego uma
dupla grafia (correspondente a uma dupla etimologia) e um duplo significado filosófico:
# Ethos (com eta): Conjunto dos costumes normativos da vida de um grupo social
(aspecto objetivo e social)
# Ethos (com epsilon): Constância do comportamento do indivíduo cuja vida é regida
pelo ethos-costume (aspecto subjetivo e individual)
c) O termo ethos (com eta) significa originalmente = morada ou covil dos animais. A
transposição analógica deste termo para designar a realidade humana do ethos revela uma
intuição profunda do significado deste fenômeno.
# De fato, o ethos significa a casa simbólica do ser humano, que proporciona à sua
existência uma significação propriamente humana entretecida por relações afetivas,
estéticas e propriamente éticas, que integram a pessoa no plano humano da cultura. Trata-
se do espaço vital da comunidade humana, seu habitat espiritual, que permite a inserção no
mundo e o desenvolvimento de cada indivíduo.
# Do agir ético (práxis) depende a edificação e preservação de nossa verdadeira morada
no mundo (possibilidade da existência autêntica da pessoa e da convivência social) como
seres inteligentes e livres. A destruição deste “habitat” significaria o fim de todo o sentido
para a vida propriamente humana.
1
Cf. H. Vaz: Introdução à Ética Filosófica I, Escritos de filosofia IV, Loyola, São Paulo, 1999, 11-16.
2
2.2. “Moral”:
a) O termo origina-se também de um adjetivo, i.e. do latim “moralis”. Este termo seja como
adjetivo, seja substantivado, tornou-se desde a época clássica a tradução usual do grego
“ethiké”. No latim escolástico veio a designar uma das partes da Filosofia, i.e. a Philosophia
Moralis, equivalente à Ética.
b) O substantivo latino de onde deriva “moralis” é “mos”. Este termo possui uma rica
polissemia, mas, entre outras acepções, significa também o modo humano de proceder,
seja no sentido objetivo como costume, seja no sentido subjetivo como comportamento,
atitude. Tem, portanto, o mesmo significado filosófico que o termo grego ethos.
3.1. Hegel distingue “Moralität” (que designa a moralidade interna, pessoal, na linha de Kant)
e “Sittlichkeit” (derivado de “Sitte”, i.e. costume, que designa o campo da eticidade social
e política), unificando estas duas dimensões na Filosofia do Espírito Objetivo.
b) Outros muitos autores usam o termo Ética ou o termo Filosofia Moral, seja indiferentemente,
seja preferindo um ao outro, para designar o estudo filosófico do fenômeno ético ou moral
sob todos os seus aspectos.
4. Conclusão:
a) Indiferença entre os dois termos: Como se vê, nem a etimologia e a tradição, nem uma
terminologia atual consistente, justificam a distinção, entre o significado dos dois termos.
Ambos designam:
# seja o costume socialmente considerado
# seja o hábito do indivíduo de agir segundo o costume estabelecido e legitimado pela
sociedade.
b) Na prática:
# Será dada preferência ao termo “Ética” (substantivo e adjetivo) em virtude de sua
precedência histórica
# O termo “Moral” (substantivo e adjetivo) será empregado apenas em expressões já
consagradas pelo uso como: “consciência moral”, “lei moral”, “moralidade”, “norma da
moralidade”.
A. FENOMENOLOGIA DO ETHOS
I. Primeira aproximação
a) Situação: Sócrates, preso e condenado à morte (injustamente), deve ou não fugir de Atenas,
conforme lhe propõem os amigos?
2
Ao termo “moral” pode-se ainda opor “a-moral”. Um ser “amoral” é aquele que não somente não segue as normas
morais (imoral), mas que simplesmente ignora qualquer norma deste gênero, está privado do senso moral e da
experiência deste valor. Trata-se, portanto, de um estado infra-humano.
3
Cf. W. F. Frankena: Ética, Zahar, Rio de Janeiro, 1975, 13-16 [original: Ethics, Prentice-Hall, Englewood Cliffs,
NJ, 1965].
4
a) Negativamente: Não são questões éticas, mas técnicas (de caráter científico, político, etc.):
# Qual a melhor forma de governo para o Brasil, presidencialismo ou parlamentarismo?
# Os recursos do programa Fome-Zero poderão ser empregados livremente pelos
beneficiários ou só na compra de bens predeterminados?
# A clonagem de células humanas é ou não viável?
# Qual é a taxa de juros que mais favorece a situação econômica do conjunto do povo
brasileiro nas circunstâncias atuais?
b) Positivamente: A questão moral fundamental é: Que devo fazer? Como devo agir? Esta
questão pode ser considerada:
# Em termos particulares nas circunstâncias concretas da vida, p. ex.:
+ Pio XII deveria ter denunciado publicamente a perseguição nazista dos judeus,
mesmo que a denúncia não tivesse chances de evitar a perseguição, antes viesse
provavelmente a provocar a sua exacerbação (p. ex. deportação também dos judeus
cristãos para os campos de extermínio)?
+ Quem esconde da polícia uma pessoa injustamente perseguida, se interrogado,
deve dizer que sabe onde ela está ou pode e deve mentir?
+ O médico pode fazer uma transfusão de sangue num Testemunha de Jeová contra
a sua vontade, para salvar-lhe a vida?
+ É lícito torturar uma pessoa para arrancar-lhe uma confissão que permitirá salvar a
vida de milhares de inocentes?
# Em termos gerais e fundamentais, como acontece no estudo da Ética Fundamental, p. ex.:
+ Existem valores morais absolutos e universais?
+ O que faz que uma ação seja moralmente boa ou má?
+ É possível justificar racionalmente juízos sobre o bem e o mal moral ou trata-se
apenas de opiniões subjetivas?
+ Como se pode determinar a atitude moralmente correta que uma pessoa deve
assumir em certa situação?
4
Espontaneamente “não julgamos a moral, mas julgamos em função dela, que é evidente e natural” [On ne juge pas
la morale, on juge en fonction d’elle, qui est évidente et naturelle”] (Eric Weil: Philosophie Morale, Vrin, Paris,
1969, 22).
5
1.2. Polaridade intrínseca do ethos:5 O ethos possui estruturalmente uma dupla polaridade:
subjetivo-objetivo e individual-social
c) Conclusão:
# Assim como o ethos-costume tem sua duração no tempo assegurada pela tradição
(historicidade do costume), o ethos-hábito torna-se forma permanente do agir do indivíduo
pela educação (historicidade do hábito). O costume como tradição é um universal abstrato
que encontra sua singularidade na praxis concreta pela qual o indivíduo realiza ou recusa os
valores do costume recebidos pela educação.
# Há, portanto, inter-relação entre o polo objetivo do ethos-costume e o polo subjetivo da
praxis, mediatizada pelo espaço da intersubjetividade, i.e. pela dimensão constitutivamente
social da vida ética.
Noção de bem: Bem é um dos aspectos elementares da realidade, que não podem ser
propriamente definidos mediante outras noções, mas apenas designados a partir de seus
efeitos. Ora, o efeito fundamental do que é bom é ser desejável. Portanto, o bem é aquilo que é
digno de ser estimado, procurado e desejado, i.e. algo enquanto merece ser desejado.9 Algo é
desejável por ser bom e não vice-versa.
Duplo aspecto do bem: O bem refere-se ao agir humano enquanto valor e enquanto fim.
# O valor caracteriza o bem como uma qualidade ou perfeição do objeto, que o torna
desejável. Refere-se à especificação da ação.
8
Cf. J. de Finance: Ensayo sobre el obrar humano, Ed. Gredos, Madrid, 1966, 41-127 (cap. 1) [Orig.: Essai sur l’agir
humain, Presses de l’Univ. Grégorienne, Rome, 1962].
9
“Bonum est id quod omnia appetunt” [Bem é aquilo que todos desejam] (S. Tomás, S. Th. I q.5 a. 1). Cf.
Aristóteles, Eth. Nicom. A 1 1094a.
7
# O fim caracteriza o bem como motivo (movente) do sujeito para agir, i.e. como aquilo
que atrai o agente e provoca nele a tendência ou desejo de alcançá-lo com seu agir. O fim
refere-se à realização da ação.
Conclusão: Portanto, toda ação humana visa um bem (algo desejável) como valor e como
fim. Todo agir humano é orientado para algum bem, enquanto seu fim ou motivo.10
# Observação: É preciso distinguir, porém, entre o fim ou motivo (causa final) e a causa
eficiente da ação. A causa move a ação por sua potência física, ao passo que o fim provoca
a ação por sua significação (valor). P. ex. o bem (valor) da conversa com um amigo provoca
o desejo de visitá-lo (fim ou motivo), mas quem toma a decisão de fazer a visita e usa todos
os meios necessários para isso é a vontade humana (causa eficiente), i.e. a pessoa
enquanto dotada de vontade. A conversa, que, neste caso, nem existe ainda, não pode ser
a causa da ação de ir visitar o amigo, já que a causa eficiente deve preceder o efeito. Mas o
fim, embora seja o término da ação na linha da execução (real), é o seu primeiro elemento
na linha da intenção (ideal).
Formas de tendências do ser humano para o fim: No ser humano há três tipos de
inclinação para algo enquanto bom:
# A inclinação natural, inscrita na própria natureza do ser humano, pelo qual ele tende
espontaneamente para o que lhe é conveniente no plano biológico, psíquico ou espiritual
# A inclinacão sensível que é determinada por um bem particular, conhecido, enquanto
tal, pelos sentidos, i.e. pelo objeto concreto que satisfaz tal inclinação (P. ex.: inclinação
para saciar a fome com um alimento)
# A inclinação racional (vontade), cujo objeto é o bem, enquanto tal, conhecido pela
inteligência, i.e. o bem universal e transcendente. A vontade é, portanto, a tendência
ilimitada para o bem, o desejo do bem sem limites.
Fins e meios:
# Noção de meio: No agir humano entre a decisão e a realização do fim proposto existe
normalmente um hiato, i.e. o fim não é alcançado senão mediante um conjunto de ações.
Estas ações que conduzem ao fim são meios para o fim. O meio é, portanto, um momento
da realização do fim, de modo que não é entendido como meio, a não ser em função do fim.
Por outro lado, a vontade que quer efetivamente um fim deve, para ser coerente, querer os
meios que conduzem a tal fim.
10
“Omne agens agit propter finem”.
8
# Ordem dos fins e meios: A não ser no que se refere ao fim último de toda a existência
humana, que é só fim, a distinção entre meios e fins é relativa. Com efeito, do ponto de vista
psicológico, uma pessoa pode visar como fim, algo que é efetivamente meio para outra
coisa que pretende, mas que no momento não está diretamente focalizada por sua atenção.
Neste sentido podem distinguir-se:
+ Fim próximo ou imediato. P. ex.: No momento o que estou procurando é tomar um
táxi e para isso uso uma série de meios (peço informações, caminho para o lugar mais
indicado, agito o braço, etc.). Evidentemente, tomar um táxi é um meio para outros fins,
mas psicologicamente no momento é o fim que tenho em vista.
+ Fim intermediário, que é ou pode ser um meio, mas participa intrinsecamente do
caráter final do valor que o funda, de modo que é desejado por si mesmo. P. ex.:
Concluir o curso de direito, para exercer a advocacia. Embora concluir o curso de direito
seja um meio para exercer a advocacia, que, por sua vez, também é um meio para
outros fins, a formatura em direito pode funcionar, do ponto de vista psicológico, como
um fim intermediário, que no momento polariza a atenção e as energias da pessoa para
fins próximos (o estudo, a aprovação nos exames, etc.), mais do que propriamente o
exercício da advocacia.
+ Fim último: É o bem supremo do ser humano, para o qual ele tende naturalmente,
i.e. aquilo que o realiza plenamente enquanto ser humano, ou seja, a sua perfeita
realização e felicidade (eudaimonia).
¤ O ser humano deseja necessariamente ser feliz, não é livre em relação ao fim
último de sua existência, considerado em geral.
¤ Entretanto, depende dele, de sua escolha livre, a determinação do seu fim
último em concreto, i.e. do valor que constitui para ele a sua felicidade e realização
(riqueza, poder, fama, bem-estar, amizade, dever [virtude, valor moral], amor gratuito
[de pessoas humanas ou de Deus], etc.). Este valor supremo, escolhido implícita ou
explicitamente, orienta sua vida, determina a escolha dos meios (fins intermédios)
para alcançá-lo.
11
Trata-se de uma sistematização da análise feita por S. Tomás na Summa Theologiae (I-II q.8-17), inspirado em
Aristóteles, S. Agostinho e S. João Damasceno. Cf. René Simon: Morale, Beauchesne, Paris, 1961, 44-47 [trad. esp.:
Moral, Barcelona, Herder, 1968]; O. Lottin: Morale Fondamentale, vol. 1, Desclée, Tournai, 1954, 65-72.
9
a- Inteligência: Início da deliberação (consilium), i.e. exame dos meios que conduzem ao
fim (prós e contra). P. ex.: de carro ou de ônibus; sozinho ou
acompanhado; etc.
b- Vontade: Aprovação dos meios encontrados (consensus).
aa- Inteligência: Conclusão da deliberação (boulesis), i.e. juízo prático sobre o meio mais
adequado. P. ex.: É melhor [para mim] ir sozinho de carro.
bb- Vontade: Decisão ou Escolha (proairesis, electio) do meio (consentimento à
proposta do juízo prático): quero este meio para realizar o fim que tenho
em vista. P. ex.: Vou sozinho de carro.
Obs.:
(1) A decisão é livre porque o meio escolhido não se impõe racionalmente como o melhor em
si. É melhor (para mim) porque eu o prefiro, em função de meus objetivos, i.e. de valores
aos quais quero dar prioridade. Não se trata de um juízo puramente teórico, mas prático. O
agente dá a si mesmo as razões de sua decisão.
(2) A conclusão da deliberação e a escolha/decisão são duas dimensões do mesmo ato
(judicium electionis), i.e. de uma vontade deliberada.
3º momento: Atos relativos à execução da decisão (sobre os meios para alcançar o fim)
a- Inteligência: Ordem dada (imperium): a inteligência ordena à vontade a execução da
decisão tomada, i.e. o emprego dos meios escolhidos. P. ex.: Devo
preparar-me para sair; tomar o carro, etc.
b- Vontade: Ordem cumprida (usus activus): a vontade aplica as outras potências à
execução da decisão
aa- Inteligência: Emprego dos meios (usus passivus) através de vários atos movidos pela
vontade na direção ordenada pela inteligência. P. ex.: Preparo-me para
sair; tomo o carro; chego ao cinema e assisto ao filme.
bb- Vontade: Contentamento (satisfação, gozo) com o fim alcançado (fruitio)
A moralidade, como foi visto, refere-se às ações humanas. Entretanto, não é qualquer ato
da pessoa humana que merece uma qualificação moral. Só as ações realizadas livremente
podem ser consideradas como moralmente boas ou más. A liberdade é condição essencial da
ação moral.
Vontade e liberdade: A vontade tende necessariamente para o bem em geral, i.e. para a
felicidade no sentido da plena realização do ser humano. Ela só é livre em relação aos bens
particulares.
# O fundamento desta liberdade (livre-arbítrio) é justamente a desproporção entre a
amplitude transcendental do objeto próprio da vontade (o bem como tal) e a finitude dos
bens que são objeto de nossa experiência histórica.
# Em outras palavras: A superdeterminação da vontade pelo bem como tal implica sua
indeterminação (liberdade de arbítrio) em relação aos bens limitados. Nenhum bem
particular necessita, i.e. força, a vontade enquanto tal. Portanto, diante dos bens
particulares a vontade é livre, i.e. tem a capacidade de autodeterminar-se escolhendo
qualquer um deles.
Voluntário e involuntário
12
Cf. A. Léonard: Le fondement de la morale. Essai d’éthique philosophiqe, Cerf, Paris, 1991, 33 –40 [trad. esp.: El
fundamento de la moral: ensayo de ética filosófica, Madrid, BAC, 1997].
10
13
A. Léonard, ob. cit. 40-54.
12
voluntárias. P. ex. o medo diante de um exame, pode ser paralisante, mas também
ser assumido como um desafio estimulante.
¤ O papel da vontade é de ordenar e canalizar a energia das emoções a serviço
de nossos empreendimentos e esforços. Sem este controle elas correm o risco de
suplantar a ação voluntária em vez de sustentá-la. Não se trata, porém, de extinguir
as paixões, nem de submetê-las ao controle absoluto da vontade, pois a paixão é
preciosa para a ação justamente enquanto excede os cálculos lúcidos da vontade.
+ Hábitos são dinamismos involuntários que facilitam os esforços voluntários para a
realização da ação. O peculiar dos hábitos é que são um involuntário que resulta de atos
voluntários, enquanto são adquiridos pela sua repetição. O hábito amplia, assim, o campo
do involuntário como uma segunda natureza. O hábito é ambivalente em relação à ação
voluntária:
¤ Por um lado, ele ajuda a realizar a ação, enquanto dispõe o agente para ela. P. ex.:
O hábito de dirigir um carro permite fazê-lo com facilidade e segurança (pensando p. ex.
em outras coisas, conversando), ao contrário de quem sem ter o hábito está aprendendo
a dirigir, que precisa fazer um esforçar-se muito e prestar atenção a cada gesto que faz.
Também os hábitos morais (virtudes) consistem numa disposição e inclinação
espontânea para agir bem no campo respectivo.
¤ Por outro lado, o hábito pode constituir uma ameaça ao valor da ação, enquanto se
transforma numa rotina que degrada a liberdade em mecanismo. Ele implica o risco de
ordem excessiva, ao contrário da paixão que corre o risco da desordem.
¤ Daí a necessidade de harmonia entre paixões e hábitos. P. ex.: Equilíbrio entre o
amor-paixão e o amor-fidelidade, que sem aquele tende a banalizar-se.
Ao falar da vontade, afirmamos que ela é livre diante de todos os bens particulares. Esta é,
porém, uma afirmação de princípio, de caráter abstrato, que considera o ato humano
isoladamente na sua pureza racional, enquanto resulta de uma vontade deliberada, na
claridade do conhecimento e na plenitude do consentimento. De fato, porém, a liberdade
humana, enquanto incarnada, está sujeita a uma série de condicionamentos, que, embora não
a anulem necessariamente, afetam profundamente o seu exercício. Daí a necessidade de situar
o ato humano no contexto concreto no qual ele surge e se desenvolve. Dentre os principais
elementos que limitam o exercício da liberdade podemos citar os seguintes.
14
A. Léonard, ob. cit. 54-95. R. Simon, ob. cit. 47-72.
13
15
Uma das classificações mais conhecidas dos tipos de temperamentos é a proposta por René Le Senne em seu
“Traité de caractérologie” (Paris, 1945). De acordo com as combinações de três pares de fatores (emotivo ou não
emotivo; ativo ou inativo; primário ou secundário), ele distingue oito tipos: 1) nervosos (emotivos, não ativos,
primários); 2) sentimentais (emotivos, não ativos, secundários); 3) coléricos (emotivos, ativos, primários); 4)
apaixonados (emotivos, ativos, secundários); 5) sangüíneos (não emotivos, ativos, primários); 6) fleugmáticos (não
emotivos, ativos, secundários); 7) amorfos (não emotivos, não ativos, primários); 8) apáticos (não emotivos, não
ativos, secundários).
16
É o que Freud chama de “Es” (traduzido por “id” [pronome neutro latino = isto] na terminologia psicológica
portuguesa) contraposto ao “Ich” (“Ego” = eu = consciente) e ao “Über-ich” (“Super-ego” = valores ideais, deveres).
14
17
Esta explicação é proposta por P. Ricoeur.
18
Cf. R. Simon, ob. cit. 68-72 e, particularmente: Gérard Fourez: Choix éthiques et conditionnement social.
Introduction à une philosophie morale, Le Centurion, Paris, 1979.
15
A análise precedente mostra que a existência com sua necessidade e suas limitações,
que não dependem de mim, é, no entanto, a minha existência. Ela se oferece à minha liberdade
como um fato inelutável, que, entretanto, pode e deve ser assumido e orientado por mim.
Nossos limites não são apenas uma restrição inexorável, mas, mais profundamente, aquilo que
nos proporciona, positivamente, sermos o que somos. Não se trata, portanto, de nos revoltar
contra eles, mas, ao contrário, de assumi-los como um apelo, mediante o consentimento sereno
à sua necessidade, com todas as oportunidades que nos oferece de uma vida na verdadeira
liberdade.
Podemos tomar iniciativas, exercendo a liberdade, mas sempre sobre o pano de fundo de
um dado involuntário, que nos escapa. Nossa liberdade é, portanto, uma síntese de afirmação
de si e de acolhida de uma alteridade. É só na medida desta acolhida que ela é capaz de uma
autêntica criatividade. Nossos atos livres são reação e resposta, como aceitação ou recusa, de
impulsos e condicionamentos que se apresentam independentemente de nossa vontade.
Por isso, mais do que um fato já dado, a liberdade humana é um processo de libertação.
Como acontece, aliás, também na linha do saber e conhecimento da verdade, ninguém nasce
livre, a não ser virtualmente. A liberdade não cresce senão na medida em que optamos
livremente. Trata-se do bem mais precioso do homem, mas também do mais ameaçado,
enquanto está ligado indissoluvelmente a seu contrário, a não-liberdade. Corremos
continuamente o risco de sacrificá-la à natureza.
Daí se segue que a existência da liberdade não pode ser demonstrada senão para quem
tem o sentido da liberdade, a partir da experiência de seu exercício. A verdadeira descoberta da
liberdade dá-se a partir de dentro pelo reconhecimento vivido de sua prática. De fato, mesmo
aqueles que negam teoricamente a liberdade, nas situações decisivas, comportam-se como se
fossem livres, ainda que com uma liberdade simplesmente humana. A negação da liberdade
funda-se no pressuposto enganoso de uma liberdade absoluta, que evidentemente não é
própria do ser humano.
A moralidade refere-se ao bem do ser humano. Mas nem tudo que é bom (ou mau) tem
caráter moral. Pode-se falar de uma boa casa, uma fruta boa, um bom pintor, uma boa
oportunidade, uma boa idéia, etc. De fato, os termos “bom” e “bem” e seus contrários “mau” e
“mal” são análogos, i.e. podem ser usados com diversos significados, não totalmente distintos,
mas relacionados entre si. Daí a necessidade de distinguir o bem moral de outros tipos de bem.
16
Relação entre os tipos de bem: Não se trata de uma distinção entre três espécies de
coisas, mas entre três atitudes do sujeito.20 Por isso:
+ A mesma coisa pode pertencer, conforme o caso, a uma ou outra das classes de bem.
P. ex.: Alguém pode fazer uma viagem em virtude de sua utilidade, ou para sua satisfação,
ou por dever.
+ Cada um dos tipos de bem pode incluir os outros. P. ex.: fazer o bem (honesto) pode
dar satisfação (agradável) e ser útil (pelo menos em vista de uma perfeição ulterior); o
agradável enquanto tal pode ser útil (p. ex. o alimento saboroso, enquanto faz bem à saúde)
e também honesto (descansar, divertir-se pode ser um dever); o útil enquanto tal pode ser
agradável (p. ex. estudar) e também participar da honestidade do fim (estudar é um bem
moral, enquanto ordenado a um fim bom).
+ Mas os vários tipos de bem podem também excluir-se mutuamente. P. ex. O útil (p.
ex.: passar a noite em claro para roubar um banco) pode ser desagradável e desonesto; o
agradável (p. ex. embriagar-se) pode ser inútil e desonesto; o honesto (p. ex. cumprir a
promessa) pode ser, sob certos aspectos, inútil e desagradável.
19
Esta distinção remonta a Platão e Aristóteles. Cf. J. de Finance, ob. cit. 48-52.
20
Segundo J. de Finance (ob. cit. 50-52), esta divisão dos tipos de bem, embora útil, não é plenamente satisfatória,
enquanto haveria bens que não se incluiriam perfeitamente em nenhum dos três tipos. P. ex.: o alimento para uma
pessoa faminta; a fuga de um incêndio.
21
Como se viu, a noção de bem inclui a noção de valor. Esta acrescenta à noção transcendental de bem (todo ser
enquanto ser é bom) a relação ao ser humano. O valor é o bem do ser humano, enquanto reconhecido como tal por
ele. P. ex.: a água é boa para o capim e o capim para a vaca. Mas a água e o capim não têm valor senão para o
proprietário da vaca e do capim.
17
a) Norma e moralidade
# A norma é a medida da correção ou incorreção da ação; ela indica como deve ser a
ação para alcançar a sua perfeição. Há diversos tipos de norma (normas técnicas,
lingüísticas, regras de jogos, etc.).
# A moralidade é essencialmente normativa, enquanto propõe ao ser humano regras
de conduta, que ordenam os seus impulsos espontâneos e dão sentido à sua existência. 23
Uma ação é moralmente boa ou má em função de sua conformidade ou desconformidade
com as normas morais.
b) Normas morais, sociais e religiosas: É necessário distinguir a norma moral de outros tipos
de norma que têm com ela maior semelhança:24
22
A relação entre os valores morais e religiosos é complexa, sobretudo no caso do cristianismo. Embora se
distingam, eles se incluem mutuamente. Sob certo aspecto, o valor moral, como se verá, constitui o valor supremo
que define, em última análise, o valor do ser humano. Por outro lado, o valor religioso já não se refere ao sujeito
como tal, mas o realiza num plano superior, enquanto concerne a sua relação com o princípio de seu ser e de toda a
ordem de valores. Não é possível, a esta altura, tratar com maior profundidade esta questão.
23
“Só o ser humano segue regras, porque só ele pode não segui-las e, de fato, com muita freqüência não as segue. É
enquanto violento que ele é moral, enquanto transgressor que ele tem consciência das regras” (Eric Weil, ob. cit. 21).
24
Cf. J. Leclercq: Les grandes lignes de la Philosophie Morale, Publications Universitaires de Louvain / Vrin,
Louvain / Paris, 1954, 8-15.
18
25
Trata-se da formulação clássica do primeiro princípio moral: bonum est faciendum, malum autem vitandum.
26
Cf. J. Maritain: Neuf leçons sur les notions premières de la Philosophie Morale, Tequi, Paris, s/d, 128s., 134s.
[trad. port.: Problemas fundamentais de filosofia moral, Rio de Janeiro, Agir, 1977].
27
O duplo significado do termo “norma” como norma-regra e norma-mandamento, observa-se também no termo
“ordem”, que pode significar tanto disposição ou organização perfeita (está tudo em ordem) como preceito (dar uma
ordem).
19
leis que regulam as relações humanas nas diversas dimensões da existência (instituições
sociais: casamento e família, vida econômica, política, religiosa, etc.). Entretanto, a
necessidade ou obrigação imposta pela norma moral é distinta da necessidade própria das
leis da natureza (físicas, biológicas).
+ Esta não admite alternativas. Segue simplesmente seu curso segundo leis
determinísticas.
+ A obrigação moral, porém, confronta-se com a liberdade humana. Ela impõe
uma exigência à liberdade, que, no entanto, pode ou não ser aceita pela pessoa
livre.28
I.4. Caráter categórico ou absoluto do valor moral: O bem moral distingue-se de outros bens
ou valores humanos por seu caráter absoluto. Esta característica da moralidade pode
ser melhor compreendida contrapondo-a, sob dois pontos de vista, a valores relativos.
# O imperativo hipotético consiste numa obrigação que vale sob determinada condição.30
P. ex.: se queres ser feliz, deves fazer o bem; se queres preservar a saúde, deves deixar de
beber. Fazer o bem não se impõe aqui como obrigação absoluta. Trata-se de uma
necessidade relativa, dependente da condição: Se queres... Ora, o bem moral obriga por si
mesmo, não em vista de outra coisa. Portanto, a ação que é motivada por um valor não-
moral (felicidade, saúde) perde o seu caráter moral.31
28
Daí o duplo sentido dos verbos “dever” (necessidade natural e obrigação moral) e “poder” (ter a capacidade natural
e ser lícito ou permitido fazer). P. ex.: devo morrer; devo (tenho obrigação de) amar meu irmão, mas posso não fazê-
lo (não sou necessitado naturalmente); ele pode (licitamente, tem direito de) exigir um salário maior, mas não pode
obtê-lo (não tem meios, capacidade real). Os dois sentidos são designados por termos diferentes no alemão (müssen /
sollen e können / dürfen) e no inglês (must / ought (should) e can / may).
29
É preciso distinguir entre o motivo, que pode levar alguém a observar as normas morais, e a consciência do valor
moral da norma. Uma pessoa pode observar as normas morais simplesmente por medo de sanções sociais (o que os
outros vão dizer ou fazer, se eu faltar) ou religiosas (punição divina). Trata-se de certo infantilismo moral. Isso não
significa que esta pessoa não tenha consciência de que a ação contrária à norma é má em si mesma e não só pelas
conseqüências negativas que possam advir-lhe dela. A falta do senso moral propriamente dito é algo mais profundo e,
em princípio, mais raro, embora esteja se alastrando na cultura atual.
30
A distinção entre imperativo categórico e hipotético foi proposta por Kant.
31
Se a preservação da saúde é querida não simplesmente como um valor natural, mas como uma obrigação e
responsabilidade moral, já não se tratará de um imperativo hipotético. É também verdade que entre bem moral e
busca da felicidade não há necessariamente antagonismo. Com efeito, a realização plena (felicidade) do ser humano
20
b) Conseqüências:
# Por isso o valor moral não pode ser legitimamente sacrificado em função de qualquer
outro valor, ao passo que todos os outros valores, por mais preciosos que sejam, devem,
em caso de conflito, ser preteridos em vista dele. Como Sócrates já tinha entendido: É
melhor sofrer a injustiça do que praticá-la. Nenhum outro mal (privação, sofrimento, etc.) é
tão prejudicial ao ser humano como fazer o mal e assim ser mal.
# Por isso, as pessoas são julgadas espontaneamente enquanto pessoas humanas, de
acordo com seu valor moral, i.e. com o uso que fazem de sua liberdade, e não de acordo
com sua raça, sua classe social, sua fortuna, ou mesmo seus dotes intelectuais ou
artísticos. Napoleão pode ser admirado como um gênio militar ou político. Mas como ser
humano, no que constitui o seu valor definitivo, i. e do ponto de vista ético, ele merece
antes reprovação que aprovação, pelo menos à luz de suas ações. Experimentamos alegria
interior quando, mesmo com o sacrifício de outros valores, preferimos o bem ao mal. Ao
contrário, sentimo-nos culpados se conseguimos grandes vantagens às custas de uma
injustiça.
# É natural que as outras qualidades humanas sejam distribuídas desigualmente. Não
há nada de mais em não possuir todas as qualidades humanas (dotes artísticos,
competência científica em determinados campos, etc.). Mas todos os valores morais são
exigidos de todos. Não se pode dizer razoavelmente: Eu me preocupo apenas com ser
justo, não me interessa ser solidário ou compassivo ou humilde, etc.
consiste em fazer o bem. Entretanto, não se trata de fazer o bem simplesmente para ser feliz, mas de ser feliz fazendo
o bem.
32
Cf. A. Léonard, ob. cit. 114-121; D. von Hildebrand: Ethik, Gesammelte Werke, vol. II, Kohlhammer, Stuttgart,
s/d, 177-185 (original: Christian Ethics, David McKay, New York, 1952).
21
O ethos como fenômeno específico contrapõe-se a physis, logos e techne. Estas distinções
foram formuladas com clareza pela primeira vez por Aristóteles, sistematizando e aprofundando
o pensamento de seus antecessores. Trata-se de categorias fundamentais para a interpretação
da realidade humana.
a) Physis como realidade fundamental: O que é (on, ens, ente) apresenta-se em primeiro lugar
como o mundo de nossa experiência, composto de coisas e pessoas, fatos e relações.
# Esta realidade que se oferece à nossa experiência, vista sobretudo na sua gênese e
no seu dinamismo (processo de surgimento e desaparecimento das coisas), foi chamada
pelos primeiros filósofos gregos de physis (natureza).
# “Physis” deriva do verbo “phyo”, que significa “fazer nascer, gerar, produzir”. Também o
termo latino que traduz “physis”, i.e. “natura” (natureza), vem de “nascor”, que significa
“nascer, vir ao mundo, originar-se”.
# Os primeiros pensadores gregos observaram a regularidade da natureza no seu vir-a-
ser, de modo que a ligação causal entre os fenômenos pode ser expressa em leis universais
e necessárias.
b) Observações:
33
Embora a liberdade faça parte da natureza humana (i.e. de sua essência ou modo de ser), muitas vezes opõe-se no
ser humano a liberdade à natureza.
22
(1) O termo “psyché” (alma) é usado em três acepções diferentes segundo os graus de
vida:
# “psyché” como princípio de unidade de todo ser corporal vivo, inclusive os vegetais
(sentido aristotélico, hoje menos usado);
# “psyché” (alma) como princípio de unidade de todo ser corporal sensitivo, i.e.
animais em geral e seres humanos (Sentido científico atual: Psicologia, psiquismo);
# “psyché” (alma) como princípio de unidade do ser humano, enquanto espiritual
(Sentido socrático e hoje mais comum na linguagem ordinária, para a qual só o homem
possui alma).
(2) Além da realidade natural experimentável, nos níveis indicados, a reflexão exige (p. ex.
segundo Aristóteles) a existência de realidades imateriais (separadas totalmente da
matéria) e, portanto, inacessíveis à experiência sensível. Estas realidades (puramente
espirituais: inteligências separadas) têm também seu modo de ser e agir próprios, sua
natureza, mas não pertencem ao mundo da experiência: são realidades meta-físicas.
b) Características do logos
# O logos (discurso) tem em comum com a physis o fato de estar sujeito às regras da
necessidade lógica que ligam o antecedente ao conseqüente em homologia com a
necessidade causal própria dos fenômenos da natureza. P. ex.: Se Pedro é homem e se
todo homem é mortal, Pedro necessariamente é mortal.
# O logos é o resultado de uma ação imanente, i.e. que permanece no próprio agente e
o aperfeiçoa. Saber o significado e a razão das coisas enriquece o ser humano, enquanto
realiza a sua natureza espiritual enquanto inteligente, orientada para a verdade. Portanto o
fim da ação de conhecer é a própria perfeição do agente.
b.1. Relação entre physis e logos: O ser humano pertence à natureza e possui uma
natureza, mas o discurso enquanto discurso é algo que se contrapõe à natureza (coisas,
fatos) em todos os níveis acima indicados.
b) O logos pressupõe tanto a natureza psíquica do indivíduo que pensa e fala (sujeito), como a
natureza física da coisa sobre que ele pensa e fala (objeto do pensamento/ referente da
linguagem). A própria natureza humana é racional, i.e. capaz de pensar e falar. Portanto é
preciso distinguir:
# a razão enquanto natureza (aspecto subjetivo: capacidade inerente ao ser humano e
sua atuação)
# a razão enquanto razão (aspecto objetivo: discurso produzido pelo sujeito racional
como pensamento/linguagem)
3.1. Noção de techne: Através da techne o ser humano intervém racionalmente na natureza
para adaptá-la aos seus objetivos e interesses.
# A techne como poiesis (fabricação) dá nova forma a uma matéria natural (argila, metal,
pedra, madeira, fibras, palavras, sons, etc.), produzindo uma obra (ergon), um artefato. A
poiesis é uma ação não imanente, mas transitiva, cuja finalidade é o aperfeiçoamento do
mundo natural, i.e. a produção de algo distinto do próprio agente.
# O termo “techne” significa ao mesmo tempo um tipo de conhecimento (razão técnica
ou saber fazer), fundado no conhecimento da natureza, e uma operação produtiva segundo
regras (fazer com base no saber).
a) A techne que tem um caráter utilitário e instrumental, i.e. está orientada à produção de
coisas úteis para a existência humana. Trata-se das (artes) técnicas propriamente ditas:
agricultura, técnicas de edificação, fabricação de vestuário, ferraria, carpintaria,
farmacêutica, medicina (produção da saúde), etc. As propriedades que tornam os produtos
da técnica artefatos úteis são qualidades físicas.
b) A techne que tem um caráter gratuito, não-pragmático, i.e. está orientada à produção de
coisas belas, artísticas (obras-de-arte), próprias das (belas) artes: pintura, arquitetura,
escultura, música (matéria = sons), poesia (matéria = palavras), etc.
# Trata-se de uma fabricação (poiesis), cuja obra (cf. poesia, poema), entretanto, não
tem caráter utilitário e instrumental, mas exprime o sentido e significado da realidade, não
através da linguagem conceptual (logos), mas em forma sensível (obra-de-arte).
# Através da arte a realidade física adquire a beleza, uma qualidade, que não é
simplesmente física, mas de ordem espiritual, embora encarnada na matéria. A beleza da
obra-de-arte, como a verdade do conhecimento é fim em si mesma. A beleza artística,
enquanto resultado de um ato intencional de significação humana, distingue-se da beleza
natural.
4. Ethos = agir humano (praxis) [polo subjetivo] enquanto orientado livremente para um
fim [polo objetivo]
34
O termo grego “techne” equivale ao latim “ars/artis”, abrangendo ambos todo tipo de produção humana.
Entretanto, o português atual, reservou o termo “técnica” (origem grega) para a produção utilitária, e o termo “arte”
(origem latina) para a produção estética.
24
b) Qualquer ação humana enquanto livre, i.e. enquanto implica escolha e decisão, adquire um
valor específico em função de sua relação de concordância ou discordância com o bem
como fim do ser humano, i.e. com aquilo que contribui para sua plena realização como
natureza espiritual.
# Esta qualificação (valor) da sua ação livre constitui o ethos (moralidade) sob o aspecto
subjetivo.
# Por outro lado, o bem do ser humano, enquanto normativo, i.e. enquanto se apresenta
como critério (medida) do agir humano e como dever (obrigação) constitui o ethos
(moralidade) sob o aspecto objetivo.
c) O ethos, com sua característica histórica, social e individual, é a realidade humana por
excelência. Correspondendo às peculiaridades do agir humano (praxis), ele exprime a
versão humana da physis, como o princípio que qualifica os hábitos (hexeis) ou virtudes
(aretai) segundo os quais o ser humano age de acordo com sua natureza racional em vista
do fim último.
4.3. Distinção entre ethos e logos: O ethos e o logos têm em comum o fato de possuírem um
modo de ser, específico do ser humano, que se distingue da physis, mas a pressupõe.
Entretanto:
# O logos enquanto discurso inteligente (conhecimento) revela o sentido da realidade,
i.e., mostra em última análise, em que consiste o bem e o valor do ser humano
# O ethos enquanto ação livre (comportamento) de acordo com o bem manifestado no
logos constitui o valor definitivo do ser humano
4.4. Distinção entre ethos e techne: Tanto o agir humano (praxis), campo do ethos, como o
fazer ou fabricar (poiesis), próprio da techne (arte, técnica), regem-se por modelos de
racionalidade teleológica, i.e. são determinados por um fim, uma intenção livre do
agente. Entretanto:
25
5.1. Visão sintética: A natureza humana enquanto espiritual distingue-se por dois atributos
fundamentais razão e liberdade (inteligência e vontade). A atuação do ser humano,
enquanto racional, ocorre em três dimensões interligadas, que podem ser consideradas
sob o aspecto subjetivo e objetivo:
(1) Razão teórica:
# Aspecto subjetivo: noein/theorein = ver (intelectualmente), i.e. entender a realidade
[on, ente], em primeiro lugar a physis
# Aspecto objetivo: logos = pensamento/linguagem como expressão da
compreensão do sentido ou significado da realidade
# Saber correspondente:
+ Aspecto subjetivo = hábito de saber ver (bem), i.e. entender o sentido das
coisas
+ Aspecto objetivo = resultado da compreensão das coisas, expresso no
conhecimento/linguagem (logos)
(2) Razão instrumental:
# Aspecto subjetivo: poiesis = fazer, fabricar, produzir, transformando a realidade, i.e.
a physis
# Aspecto objetivo: ergon = a obra
# Saber correspondente = techne = arte, técnica
+ Aspecto subjetivo = hábito de saber fazer (bem), habilidade, perícia
+ Aspecto objetivo = procedimentos (métodos) de fabricação
(3) Razão prática:
# Aspecto subjetivo: praxis (ethos) = agir humano, enquanto livre
# Aspecto objetivo: ethos = norma do agir, lei, bem, valor
# Saber correspondente
+ Aspecto subjetivo = hábito de saber agir (bem), virtude
+ Aspecto objetivo = conjunto das normas de agir bem
a) Pertence à natureza tudo aquilo que é dado (surge, acontece) espontaneamente, sem
intervenção do ser humano. O ser humano é por natureza (physis) um ser capaz de cultura.
Entretanto, as realizações culturais, enquanto criações humanas históricas, distinguem-se
da natureza. O logos, o ethos e a techne são próprios da natureza humana, enquanto
espiritual. Entretanto, na sua realidade efetiva o logos (discurso), o ethos e a techne têm um
caráter cultural.
# O desenvolvimento da techne:
+ enquanto técnica de transformação da natureza em função dos interesses
humanos (agricultura, indústria, ginástica, etc.) oferece ao ser humano condições para a
sua própria realização. Daí a importância da educação técnica, enquanto
desenvolvimento de habilidades para o aperfeiçoamento da natureza. Mas a técnica e
seu produtos não realizam o homem na ordem do ser, mas apenas do ter.
+ enquanto criação artística de beleza e sentido contribui para a realização do ser
humano, i.e. para a humanização dos afetos e sentimentos. Daí a importância da
educação artística enquanto desenvolvimento da sensibilidade para com o belo.
2.1. Saber ético religioso (Religião como forma de expressão do saber ético)
a) Características da religião
# A religião funda-se na experiência da relação de dependência do ser humano para
com o sagrado/divino, enquanto princípio de todo ser, verdade e bem.
35
Cf. H. Vaz, ob. cit. 45-55.
28
2.2. Além das formas específicas mencionadas, o saber ético encontra sua expressão em
todas as manifestações culturais (P. ex.: Arte como fator de educação moral)
1.1. Teoricamente
Positivamente: A Ética como ciência da ethos, i.e. como discurso sistemático (logos
demonstrativo), nasce no seio do saber ético espontâneo.
# Trata-se de uma reflexão expressa sobre o saber ético tradicional que procura
explicitar a racionalidade imanente no ethos e na praxis, i.e. a forma lógica e os
fundamentos racionais do saber ético já codificado no ethos da tradição.
# A Ética pressupõe o conhecimento implícito na experiência moral do ser humano. É
sobre estas percepções e julgamentos que reflete para os esclarecer e examinar
criticamente. O filósofo não cria valores e normas morais, mas os descobre no ethos
tradicional e exprime sistematicamente a pré-compreensão nele já presente.
Negativamente:
# O ponto de partida da Ética não pode ser um começo absoluto, um pensar do ethos,
independente do saber ético historicamente constituído. Não tem sentido uma Ética que
pretenda refazer a partir de zero os critérios de discernimento ético de um grupo humano.
# De fato, as tentativas feitas na modernidade de construir novas Éticas mostraram-se,
do ponto de vista de uma efetiva realização histórico-social, utópicas, ou mesmo,
insensatas, enquanto conseguiram apenas contribuir para a “desconstrução” dos valores
éticos consagrados pela experiência tradicional ou para a “suspeição” lançada sobre eles,
abrindo o vazio ético responsável pelo niilismo da cultura atual.
Ciência do ethos:
# A reflexão crítica sobre o ethos surge apenas quando ele perde sua evidência imediata
e espontânea em virtude da sua inadequação às novas condições socioculturais ou do
confronto com o ethos de outros povos.
# De fato, a Ética como ciência surgiu no mundo grego numa conjuntura específica de
crise e transformação da cultura. Seu nascimento deu-se concretamente como discussão
sobre a virtude (areté) e a educação (paideia) para a virtude (cf. primeiros diálogos
platônicos) no âmbito da conceptualidade filosófica, que vinha sendo desenvolvida pelos
filósofos pré-socráticos. Esta tentativa de refundar racionalmente o saber ético em
contraposição aos defensores do ethos tradicional (p. ex. Aristófanes), seguiu dois caminhos
distintos:
+ Os Sofistas adotam um logos da persuasão (doxa), codificado na Retórica;
36
Id. 57-58.
30
2.1. Problema: O problema envolvido na passagem do saber ético tradicional para a Ética
como ciência é o seguinte: Como pensar o ethos (costumes, normas, leis de um grupo
social) segundo os padrões de universalidade e necessidade próprios da physis e do
logos (ciência)? De fato:
# Dilema Universal x Particular: O ethos é particular, próprio de cada cultura, em contraste
com a universalidade das leis da physis e do logos, que valem para todo ser humano.
# Dilema Necessário x Livre: O agir ético é livre, i.e. implica indeterminação e escolha, em
contraste com o determinismo lógico e natural. Trata-se do conflito entre lei e liberdade: Nem os
costumes mostram a regularidade causal dos fenômenos da natureza, nem a lógica que traduz
essa regularidade pode ser aplicada à ordem dos costumes.
a) Convencionalismo (proposto pelos Sofistas mais antigos como Protágoras e vigente nas
éticas positivistas):
Noção: Partindo da distinção entre physis (natureza) e nomos (lei como convenção),
funda a universalidade e necessidade do ethos no pacto social implícito (convenção), ligado
imemorialmente à origem de determinado ethos, pelo qual as exigências da natureza são
socialmente controladas pelos costumes (leis).
Crítica:
# A universalidade do ethos é relativa, porque fundada na convenção e, protanto, ligada
à cultura de um grupo humano particular.
# A necessidade do ethos, i.e. a obrigação de seguir os costumes (leis), como limites da
liberdade, é também relativa, enquanto resulta do consenso social, estabelecido
aleatoriamente sem outro fundamento que a vontade dos participantes.
b) Naturalismo (proposto pelos Sofistas posteriores, sobretudo Górgias, com influxo p. ex. seja
em sistemas éticos da antiguidade [cinismo, hedonismo, estoicismo, epicurismo], seja no
liberalismo econômico moderno):
Noção: A norma do agir humano é a natureza, como lei universal e necessária, presente
no indivíduo anteriormente à instituição da sociedade. Trata-se portanto da lei do naturalmente
mais forte, do que pode mais, i.e. da afirmação da liberdade (sem limites) como poder, em vista
da satisfação dos próprios desejos.
Crítica:
37
Id. 59-66.
31
c) Paradigma ideonômico (proposto por Sócrates, foi desenvolvido de maneiras diversas por
Platão e Aristóteles, tornando-se o modelo fundamental da reflexão ética no Ocidente)
a) Definição: O objeto da Ética é a praxis ética, i.e. a praxis que se exerce na esfera do ethos.
Em função da polaridade constitutiva do ethos, ele pode ser expresso de duas maneiras
complementares:
# “O objeto da Ética (...) é o ethos enquanto realidade histórico-social manifestada na
práxis social e individual ordenada a fins que são os valores nele presentes.”39
# “O objeto da filosofia moral é a operação humana ordenada a um fim ou então o
homem enquanto age voluntariamente em vista de um fim”.40
Qual a natureza específica da praxis ética, que a distingue de outras formas de atividade
humana?
Resposta: Cf. supra Fenomenologia do ethos, especialmente a caracterização da
praxis/ethos em contraposição a physis, logos, techne
Qual a natureza da relação constitutiva entre a praxis (agir humano livre) e o fim, que
torna a praxis uma praxis ética (agir moral)?
38
Id. 67-76.
39
H. Vaz: Introdução à Ética filosófica II, Escritos de filosofia V, Loyola, São Paulo, 2000, 15-16.
40
Subjectum moralis philosophiae est operatio humana ordinata ad finem, vel etiam homo prout est voluntarie agens
propter finem (S. Tomás de Aquino: In decem libros Ethicorum Aristotelis ad Nichomacum expositio, I, l.3, n.3)
33
Aspecto teleológico ou normativo: Sistema de fins e normas aos quais está ordenada e
submetida a praxis como objeto da Ética. Daí se segue que a Ética como reflexão explícita e
sistemática do sujeito ético sobre sua própria praxis na esfera do ethos, é, inseparavelmente,
ciência da ação (i.e. disciplina que pode ser ensinada) e norma do agir (a ser seguida), i.e.
ciência prática.
Apresentação: A ciência teórica é aquela que tem por finalidade simplesmente conhecer a
verdade das coisas, como elas são.
# Os atos humanos, a praxis ética, segundo o bem e a virtude, podem ser objeto de um
conhecimento teórico, que pretende compreender a sua natureza, bem como a natureza da
liberdade, do bem e da virtude.
# Para Platão, de acordo com sua concepção unívoca da razão científica, a Ética é
propriamente uma ciência teórica, embora derivadamente (pedagogicamente) tenha
também um caráter prático. Para ele, a praxis verdadeira, segundo a virtude, é assumida
41
R. Simon: Morale, Beauchesne, Paris, 1961, 18-25.
34
pela theoria, que, como ciência das idéias, coroada pela intuição da Idéia do Bem, deve
reger as ações humanas orientadas finalisticamente para o Bem.
Crítica:
# O conhecimento teórico dos atos humanos no horizonte do Bem é próprio da
Antropologia Filosófica e da Metafísica. São questões deste gênero p. ex.:42
¤ A estrutura psicológica do ato humano
¤ A essência da liberdade
¤ A transcendência do espírito humano para o ser e o bem
¤ A estrutura somática-psíquica-racional do ser humano
# No caso da Ética não se trata, porém, de saber o que é agir, mas como se deve
agir. Seu objeto não é algo que já é, mas algo que deve ser. Um conhecimento
puramente teórico não respeitaria o objeto formal da Ética, i.e. não seria um saber
regulativo e normativo do agir humano. Portanto, a Ética não é um saber puramente
teórico.
Apresentaçãoi: O saber prático é aquele que conhece a verdade a fim de orientar a ação
humana.
Crítica:
# A Ética não pode ser um saber puramente prático, i.e. que orienta aquilo que deve
ser feito aqui e agora. Esta orientação concreta da ação, em cada caso, não tem o
caráter universal e necessário da ciência.
# O conhecimento puramente prático é próprio da virtude da prudência. Trata-se de
saber como agir bem numa determinada situação, qual a decisão acertada a tomar
nestas circunstâncias. P. ex.:
+ Como devo comportar-me com este filho drogado?
+ Devo denunciar ou não meu amigo que cometeu um delito?
+ Devo socorrer ou não este acidentado na estrada?
+ Devo dar ou não uma esmola a este pedinte?
c) Ética como ciência teórico-prática: Enquanto ciência teórico-prática a Ética procura
compreender a natureza do agir humano, mas formalmente na sua orientação para o bem.
# Ética Fundamental: Trata do que diz respeito ao agir ético em geral, p. ex.:
+ Em que consiste o bem (e mal) moral? Qual o critério para determinar o caráter
moralmente positivo ou negativo de um comportamento? Por que uma ação é
moralmente boa ou má?
+ Existem valores morais objetivos, absolutos?
+ Qual o fundamento da obrigação moral?
+ O juízo da consciência obriga sempre?
# Ética Especial: Trata do significado e dos fundamentos de princípios e normas éticas
específicas, p. ex.:
+ Não mentir, não roubar, não matar, são deveres morais absolutos?
+ A tortura, a pena de morte, a guerra podem ser moralmente justificadas?
+ Questões de bioética: moralidade do suicídio, eutanásia, aborto, clonagem humana,
etc.
+ São lícitos as relações sexuais pré-matrimoniais, o concubinato, o adultério, o
divórcio, a poligamia?
Antropologia Filosófica: Trata-se de dar razão das características originais do agir ético,
sobretudo da correlação entre o agir e o ser total do agente em suas componentes estruturais
(somáticas, psíquicas, espirituais) e em suas relações com o mundo, a comunidade, a
transcendência. Nesta perspectiva:
# A inteligibilidade fundamental da praxis humana manifesta-se na distinção entre as
causas e as condições que concorrem para seu exercício:
+ O influxo causal procede unicamente do espírito, de modo que a praxis
recebe sua especificidade ética enquanto ato inteligente e livre (razão prática)
+ O dinamismo do agir ético assume os condicionamentos somáticos,
psíquicos, objetivos e intersubjetivos, que integram a estrutura total do ato.
# A realização humana tem um caráter essencialmente ético, de modo que a
personalidade ética constitui a mais elevada manifestação da pessoa
3.4. Conclusão: A Ética é uma ciência filosófica de caráter teórico-prático (normativo) cujo
objeto é o agir humano (praxis) enquanto orientado para o bem como seu fim.
b) A afirmação “Eu sou” [S] como auto-expressão primordial é o momento mediador entre os
pólos da natureza [N] (que nos constitui onticamente e é um dado para nós) e da forma
propriamente humana [F], pela qual nos constituímos ontologicamente (N-S-F). A forma é o
conteúdo e termo de uma operação, que caracteriza uma saída de si e um retorno a si
(reflexão) do ser operante. Esse retorno no ser humano:
# Realiza-se imperfeitamente no operar orgânico e psíquico inconsciente (actus hominis)
# Torna-se propriamente humano no nível do espírito (razão e liberdade) em que nossa
operação é uma auto-expressão de nós mesmo como seres racionais e livres (actus
humanus)
# A unidade profunda, mediatizada pelo “Eu sou”, da pluralidade de formas com que nos
auto-exprimimos (ato primeiro ou ato do subsistir-em-si do ser humano) foi denominada por
Aristóteles de psyché (anima, alma).
c) O agir ético, enquanto ato inteligente e livre (sinergia da inteligência e vontade), como a
forma mais alta de auto-expressão do Eu, i.e. da interioridade mais profunda de nosso ser.
Portanto, é no domínio da moralidade que tem lugar de modo mais determinante para a vida
humana o movimento de mediação segundo o qual o ser humano se constitui na auto-
expressão de suas formas de existir, i.e. a forma da existência ética é a mais profundamente
significativa de nosso ser.
d) As categorias como estrutura lógica elementar do agir ético, cuja organização em sistema
representa a Forma inteligível unificadora da existência ética.
37
a) Ordem natural do discurso: Em cada tema o ponto de partida é o universal que, através da
mediação ou determinação do particular assume o singular na esfera de sua inteligibilidade.
a) Desenvolvimento sistemático-construtivo:
Trata-se de:
# construir a identidade ética do indivíduo segundo os invariantes conceptuais que a
constituem como tal (estrutura subjetiva do agir ético)
# a partir dos quais o indivíduo se articula com a comunidade ética (estrutura
intersubjetiva do agir ético)
# e se abre ao universo ético (estrutura objetiva do agir ético)
# no qual a sua vida pode realizar-se segundo os padrões da razoabilidade (a existência
ética)
# que lhe permitem alcançar a sua ipseidade ou o seu pleno desenvolvimento como
pessoa moral (a pessoa moral)
apenas como um fato, prescindindo de qualquer fundamentação dos valores vigentes nas
diversas sociedades e de qualquer juízo de valor a seu respeito.
Crítica: Esta concepção positivista da Ética, que leva ao total relativismo moral, é
inaceitável à luz das análises precedentes sobre a natureza do ethos, que serão aprofundadas
ao longo do presente curso.
# Na verdade, mesmo na época moderna, de Descartes a Hegel, a Ética mantém, em
geral, seu caráter filosófico e é ainda, sob certo aspecto, especialmente em Kant, o coração
do projeto filosófico.
# O emprego da conceptualidade filosófica na reflexão sobre os fundamentos da Ética
persiste até hoje, embora minoritariamente, p. ex.:
+ Na 1ª metade do século XX: Entre alguns dos maiores filósofos da época (Max
Scheler, Nikolai Hartmann, Henri Bergson, etc.), sem falar dos pensadores de
inspiração cristã (M. Blondel, J. Maritain, J. Pieper, Dietrich von Hildebrand, etc.)
+ Na 2ª metade do século XX (atualidade): Na escola de G. E. Moore (ainda que
com predomínio dos problemas metaéticos), ou por G. Gadamer, A. Macintyre,
Charles Taylor, Robert Spaemann, P. Ricoeur, etc.
a) Noção de Metaética
# Ciências formais são as que têm como objeto, não a realidade, mas as formas do saber e
sua articulação em linguagens específicas. São ciências formais, p. ex. a Lógica, (cujo objeto
são as leis do conhecimento em geral); a Matemática (que estuda relações quantitativas entre
entidades definidas abstratamente)
# A Metaética, como ciência formal, tem como objeto não o ethos, como fenômeno real, mas
a própria Ética como saber sobre o ethos. Ela interroga sobre a natureza do conhecimento
moral, i.e. sobre o sentido e valor dos conceitos e julgamentos morais e da argumentação no
campo moral. Ela não se interessada por conhecer, p. ex., se um princípio moral determinado é
verdadeiro ou falso, mas se e como os princípios morais podem ser verdadeiros ou falsos.
40
b) Avaliação da Metaética
# Os estudos metaéticos são perfeitamente legítimos. A Metaética (sem este nome) sempre
foi mais ou menos cultivada na tradição filosófica. Aristóteles, em particular, como se viu,
dedicou grande parte de sua reflexão a determinar o estatuto epistemológico da Ética como
ciência.
# Entretanto, há atualmente uma tendência a dar a primazia aos problemas da Metaética,
resultante do fenômeno cultural que consiste na perda progressiva de referência ao real e que
atinge os paradigmas éticos transmitidos pela tradição.
# Esta tendência é radicalizada pelo Neopositivismo Lógico, segundo o qual os enunciados
morais são a expressão de meros sentimentos, próprios do indivíduo ou prevalentes numa
sociedade. Neste pressuposto, os conceitos morais (bem moral, obrigação moral) não têm um
significado logicamente definível e, por conseguinte, os enunciados éticos não são nem
verdadeiros nem falsos. Portanto, só há lugar para uma Metaética, que demonstra a
impossibilidade da Ética como ciência real do ethos.
# Esta redução da Ética à Metaética é inaceitável, seja pelas razões intrínsecas acima
apresentadas para demonstrar o caráter científico da Ética, seja por suas conseqüências:
+ Instrumentalização da lógica e da linguagem éticas, que, indiferentes a seu conteúdo
real, passam a servir à expressão de um universal relativismo dos valores, de acordo com
as necessidades e fins subjetivos ou com os interesses ideológicos dos agentes éticos.
+ Renúncia à tradição da busca de uma fundamentação filosófica do comportamento
ético, arrastando a Ética para a órbita das Ciências Humanas.
Para uma melhor compreensão do campo próprio da Ética e também da resposta aos
problemas éticos que será dada ao longo do curso, é importante explicitar a problemática ética
fundamental bem como, de maneira esquemática, as soluções que foram dadas historicamente
a tais questões.
# Estas teorias reduzem a moralidade a fatores infra- ou extra-morais. O ethos, embora seja
um fenômeno universal, não é uma realidade humana original, mas se explica a partir de outras
41
dimensões do ser humano. As regras morais segundo as quais as pessoas agem e julgam os
comportamentos são puros fatos, que se explicam por seus condicionamentos.
# Esta posição foi defendida já na antiguidade por alguns dos sofistas gregos (p. ex.
segundo Platão, Trasímaco [1º livro da República] e Cálicles [diálogo Górgias]), que
diante da crise do ethos tradicional, procuravam uma nova fundamentação para o
comportamento do cidadão na polis. A norma do agir humano não se fundamenta na
convenção (nomos), i.e. nas leis e costumes da sociedade, mas na própria natureza
(physis). A justiça e o direito fundam-se na capacidade natural de cada um, i.e. na sua
força e poder. É justo o que corresponde ao interesse do mais forte. A lei da natureza
assegura o triunfo da força e justifica o desenvolvimento e a satisfação dos impulsos
naturais.
# Atualmente, as teorias que fundamentam a moralidade na natureza assumem as
seguintes modalidades:
44
Cf. p. ex. o entomologista norte-americano Edward O. Wilson: Sociobiology. The New Synthesis, Cambridge
(Mass), 1975.
45
Neste nível a Ética evolucionista é uma resposta ao segundo problema que deveremos abordar, i.e. ao problema do
critério da moralidade.
46
Uma forma extrema de Ética evolucionista é a proposta p. ex. por Alexander Tille (“Charles Darwin und die Ethik,
1894”), segundo o qual a lei moral suprema é a seleção dos mais aptos e a eliminação dos biologicamente inferiores
Esta tese deu origem às teorias eugenistas, caras ao nazismo. Tudo indica porém que Darwin não aprovaria nenhuma
forma de Ética evolucionista. Ele não considera a moralidade como resultado da seleção natural (cf. Nicola Erny:
Darwin und das Problem der evolutionären Ethik, in: Zeitschrift für philosophische Forschung, 57/1, 2003, 53-73.
42
b) Psicologismo ético: Reduz o fenômeno ético a fatos psicológicos. A forma mais comum de
psicologismo ético é a que se apoia na psicanálise freudiana.
# Por um lado, a consciência moral, enquanto conjunto de normas e valores, que
orientam a conduta do indivíduo, é identificada com o Super-ego. Este resulta da
internalização inconsciente do resultado do conflito que ocorre na idade infantil entre as
pulsões instintivas do indivíduo e as exigências da convivência humana (cultura). O
recalque de tais pulsões manifesta-se na consciência sob a forma de normas e interditos (p.
ex.: proibição do assassínio, incesto, relações sexuais extraconjugais) que o indivíduo
assume como instância superior à qual deve submeter-se. Deste modo, a origem da
consciência moral é explicada a partir de mecanismos inconscientes, de modo que o que
aparece como valores e obrigações reduz-se a um mero fenômeno psíquico.
# Por outro lado, as decisões individuais, que parecem livres, são de fato determinadas
exclusivamente por fatores inconscientes.
# O psicologismo assume um caráter, não só explicativo, mas também normativo à
medida que a saúde psíquica é considerada como o critério último da moralidade, i.e.
considera-se como bom e positivo o que favorece o equilíbrio psíquico da pessoa e como
negativo o que compromete esta harmonia.
c) Sociologismo ético: A sociedade é a fonte e/ou a norma de todo valor moral. Esta afirmação
pode ser entendida em vários níveis.
# Num nível puramente explicativo, o positivismo sociológico considera o ethos apenas
como um dado. Neste caso, a Ética perde qualquer caráter normativo e reduz-se à
Antropologia Cultural e à Sociologia, que estudam o fato moral enquanto fenômeno cultural
e social. Trata-se apenas de constatar quais são os costumes e valores vigentes em cada
sociedade e cultura, bem como de determinar quais são os fatores de ordem empírica que
explicam a sua origem, a sua diversidade, a sua mudança.
+ Por um lado, p. ex. segundo o conhecido sociólogo francês E. Durkheim (1858-
1917),47 a origem dos valores em geral é a sociedade, entendida como consciência
coletiva, i.e. uma pessoa moral, distinta das pessoas individuais que a compõem. O
conjunto das representações coletivas constitui, no interior das consciências
individuais, a consciência social. A sociedade impõe-se a nós com suas normas e
obrigações, porque ela é exterior e superior a nós. Esta transcendência do grupo
social sobre o indivíduo faz dele uma autoridade diante da qual nossa vontade se
inclina. A consciência moral é em cada um de nós como a marca da consciência
coletiva, que se impõe pelo respeito que lhe devemos.
+ Por outro lado, as convicções morais de cada um de nós dependem, não do
valor intrínseco das normas que aceitamos, mas das influências sociais (pressões e
sentimentos coletivos) exercidas sobre nós, tanto no contexto geral da sociedade e
cultura a que pertencemos, como de acordo com o meio social específico (classe,
tradição religiosa, etc.) no qual vivemos.48
# Num nível normativo, o sociologismo consiste em definir a moralidade pela
conformidade com os costumes e normas vigentes no meio social numa situação
determinada. O bem e o mal não são senão aquilo que a sociedade ordena ou proíbe. Não
é porque uma ação é criminosa (moralmente má) que ela é reprovada pela consciência
social, mas, ao contrário, ela é criminosa porque a consciência social a reprova. É também
a posição de Durkheim e de sua Escola.
47
Cf. as coletâneas póstumas: Sociologie et Philosophie, Paris, Alcan, 1924; L’éducation morale, Paris, Alcan, 1925.
48
Sobre os condicionamentos socioculturais, cf. supra 14-15.
43
a) Convencionalismo antigo: Foi proposto por alguns dos sofistas gregos (p. ex. Arquelau,
Protágoras), como resposta à questão “Como devo agir? Como devo viver?” diante da crise
dos valores tradicionais da civilização grega no século V a.C. Não existe uma norma natural
e universal de comportamento, mas cada sociedade (polis) tem seus costumes e leis,
resultantes de um pacto, que cada cidadão, enquanto membro de tal sociedade, deve
aceitar e observar. Portanto, o bem e o mal têm seu fundamento, não na natureza, mas na
convenção social.
# Apresentação: A teoria foi elaborada para explicar não tanto a obrigação moral, como
a obrigação política de obedecer aos governantes. No estado natural todos os seres
humanos são livres e iguais, no sentido de que não dependem de nenhuma autoridade.
Cada um pode tentar satisfazer os seus impulsos e interesses, sem nenhum controle
externo. Ora, este estado de natureza acarreta uma total insegurança (bellum omnium
contra omnes). Para remediar esta situação, os indivíduos concordam em ceder parte de
seus poderes a uma autoridade, que se comprometa a usar de tais poderes, instituindo
normas de comportamento e fazendo-as observar, para garantir a segurança de todos, i.e.
proteger os seus interesses. Portanto, as normas de comportamento fundam-se no contrato
social e dependem dos termos nele definidos pelos contraentes.
# Limites: A teoria revela, entre outros, os seguinte limites. Por um lado, implica o dever
tanto do governante como dos súditos de cumprir os respectivos compromissos. Sem esta
obrigação o contrato seria ineficaz. Pressupõe, portanto, certos deveres e direitos naturais,
prévios ao contrato, de modo que não explica o fundamento último da moralidade. Por outro
lado, o contrato não é um fato real, mas apenas uma hipótese ideal. Ora, um contrato
hipotético não pode fundamentar a obrigação de cumprir compromissos, igualmente
hipotéticos.
49
Cf. Kymlicka, Will: The social contract tradition, in: Singer, Peter (ed.): A Companion to Ethics, Blackwell,
Oxford / Cambridge (Mass), 1996 (1ª ed. 1991), 186-204.
50
P. ex. Nozik, R.: Anarchy, State and Utopia, Oxford, Blackwell, 1974; Gauthier, D.: Morals by Agreement, Oxford,
Oxford Univ. Press, 1986.
44
2.1. Teorias da transcendência objetiva do valor moral: Estas teorias têm um caráter
metafísico, teleológico e ideonômico, enquanto fundamentam o valor moral na Idéia de
Bem, como polo objetivo e transcendente do dinamismo da razão humana.
a) Idealismo platônico:51 Platão, inspirado em Sócrates, introduz contra o relativismo ético dos
Sofistas, o paradigma ideonômico, segundo o qual a Idéia suprema do Bem, contemplada
pela razão (teórica), é a norma do agir e o fim (telos) de todo o dinamismo da alma humana
(psyché), proporcionando o seu aperfeiçoamento pela virtude (areté) na cidade (polis),
regida pela justiça (dikaiosyne).
51
Cf. supra p.31 e Henrique Vaz: Escritos de Filosofia IV, Introdução à Ética filosófica 1, 93-108.
52
Cf. supra p.31s e Henrique Vaz, id. 109-126.
53
Cf. Henrique Vaz, id. 199-240.
45
2.2. Teorias da imanência subjetiva do valor moral: Admitem o caráter absoluto e irredutível
do valor moral, enquanto fundado na autonomia absoluta da consciência moral.
Atribuem um caráter formal ao valor moral enquanto correspondência da ação com a lei
imanente da liberdade. Assumem duas modalidades opostas, segundo que consideram
a liberdade no seu ato singular de escolha ou enquanto abertura à universalidade da
razão.
com o dever (aspecto material ou seja conteúdo objetivo da ação), mas só é moralmente
válido o agir por dever (aspecto formal ou intenção subjetiva da ação). A necessidade moral
absoluta de agir por dever, que se impõe à consciência como uma evidência, é chamada
por Kant “imperativo categórico”. O dever é a expressão da distância entre a razão prática
(universal e incondicionada) e a liberdade do eu empírico e singular (livre arbítrio).
Transcendente, enquanto ultrapassa o indivíduo, o imperativo categórico é imanente,
enquanto expressão de nossa essência própria, como seres racionais. O imperativo
categórico implica ao mesmo tempo vontade e universalidade. Neste sentido, a vontade de
todo ser racional é legisladora universal. Tal é a fórmula da autonomia da vontade como
liberdade (distinta do livre arbítrio empírico e contingente). Para a vontade livre, a lei só
pode proceder dela mesma. É a mesma coisa uma vontade livre e uma vontade sob leis
morais.
a) Liberalismo social: Este título engloba uma série de posições que têm em comum a
preocupação de superar o caráter puramente individualista do contratualismo clássico. Seus
principais propugnadores são os filósofos norte-americanos J. Rawls56 e R. Dworkin.57
# Apresentação: O fundamento das normas morais é o pacto social estabelecido
racionalmente. Toda pessoa quer ser feliz, de modo que é racional organizar a vida para
alcançar a felicidade. Entretanto, as pessoas não são responsáveis pelas qualidades
naturais e sociais que adquirem por nascimento. Por isso, é também racional que em uma
sociedade as cargas e os benefícios sejam distribuídos equitativamente, i.e. que as normas
vigentes sejam as que todos escolheriam se desconhecessem as diferenças entre as
pessoas (imparcialidade). Desta maneira cada um dos participantes do pacto social não visa
apenas à maximização dos benefícios, mas à realização da justiça, como obrigação moral.
Os princípios da justiça são os seguintes:
+ Garantir a todos os cidadãos o maior grau possível de liberdade civil e política,
limitando-a tão somente na medida em que coarcte a liberdade dos demais.
+ Assegurar a igualdade de oportunidades, a não ser que uma distribuição
desigual dos bens favoreça aos mais destituídos (princípio da diferença). Em outras
palavras: a distribuição dos bens numa sociedade será justa quando nenhuma outra
forma de distribuição beneficiaria mais o grupo social menos favorecido.
+ A articulação dos dois princípios leva à distinção entre “liberdade” e “valor de
liberdade”, i.e. o benefício resultante para alguém da proteção do exercício de sua
liberdade. Com efeito, se a sociedade protege igualmente a liberdade de todos pode
acontecer que alguns (dotados de maior capacidade econômica, cultural, etc.) se
beneficiem mais dessa proteção. Portanto, proteger a liberdade obriga a sociedade,
se quer ser justa, a dar-lhe um valor do qual todos possam desfrutar.
# Avaliação: Esta teoria pressupõe que os participantes do pacto social já possuem
sentimentos morais, i.e. um senso de justiça. As pessoas são iguais e merecem igual
consideração, enquanto são “fins em si mesmas” (cf. Kant). Neste sentido, o contrato social
torna-se apenas um recurso ou artifício para exprimir as idéias da igualdade moral entre as
pessoas e do dever de justiça, que já são pressupostas. A questão de como fundamentar o
valor e a obrigação moral fica aparentemente sem resposta.
55
Cf. Cortina, Adela: Hasta un pueblo de demonios. Ética pública y sociedad, Madrid, Taurus, 1998.
56
A Theory of Justice, London, Oxford Univ. Press, 1971.
57
Taking Rights Seriously, London, Duckworth, 1978.
47
63
Cf. supra 36-38.
49
ser feito na situação particular. Por outro, o ethos de cada cultura torna-se norma concreta
da ação na medida em que incorpora a idéia universal de bem.
A segunda questão fundamental da Ética trata da essência do valor moral e pode ser
formulada da seguinte maneira: Em que consiste o bem moral? Por que uma ação é
moralmente boa ou má? Qual o critério para determinar o caráter moralmente positivo ou
negativo do comportamento humano?
a) Modalidades: O hedonismo pode assumir várias modalidades conforme o tipo de prazer que
se considera mais autêntico e satisfatório.
# Hedonismo sensualista vulgar: É aquele que se pauta pela busca do prazer sensível,
imediato e momentâneo, sem se preocupar com suas conseqüências.
# Epicurismo: Trata-se da doutrina do filósofo helenista Epicuro (341-270). O prazer é o
fim do ser humano, já que, como mostra a experiência, o ser humano desde seu
nascimento, espontaneamente, busca o prazer e foge da dor. Portanto, todo prazer é um
bem, mas nem todo prazer deve ser procurado, porque alguns prazeres podem ser causa
de maior sofrimento e vice-versa.
+ É preciso distinguir, portanto, entre: os desejos naturais e necessários, cuja
satisfação é indispensável para a vida (p. ex. comer, beber, dormir); os desejos naturais,
mas não necessários, dos quais se pode prescindir sem pôr em risco a vida (p. ex.
relações sexuais); e os desejos nem naturais nem necessário (riqueza, fama, poder,
etc.). A sabedoria consiste em satisfazer aos desejos naturais e necessários, que podem
ser facilmente satisfeitos, e libertar-se dos outros, que são causa de maior sofrimento.
+ O prazer corporal é o fundamento de todos os outros, porque os prazeres
superiores da alma, consistem na posse, na recordação ou na antecipação dos prazeres
do corpo. Entretanto, Epicuro distingue o prazer em movimento (prazer da eliminação
progressiva do sofrimento, como p. ex. prazer de comer, eliminando a fome) do prazer
em repouso (prazer da dor eliminada pela saciedade ou satisfação dos desejos). O ideal
é este prazer em repouso, i.e. uma vida tranqüila, satisfeita, simples, não perturbada,
nem pelo sofrimento, nem pelo desejo. Portanto, Epicuro não é epicurista no vulgar do
termo. Segundo, ele a virtude consiste no discernimento do que se deve escolher e
evitar para viver em paz.
embora isso implique a busca dos meios para alcançar o prazer. Nem sempre o mais útil é o
mais agradável, mesmo a longo prazo, e vice-versa.
1.2. Utilitarismo:
64
An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, London, 1823.
65
Utilitarianism, 1863.
66
Cf. Robert E. Goodin: Utility and the good, in: Peter Singer (ed.), ob. cit. 241-248.
67
Afim ao Utilitarismo é a Ética do Amor-próprio de Fernando Savater, que afirma p.ex.: “O individualismo é o
reconhecimento teórico-prático de que o centro social de operações e sentido, de legitimidade e decisão, é o
indivíduo autônomo, ou seja, todos e cada um dos indivíduos que constituem o artefato social. Não há, pois, um
sentido de comunidade que transcenda a soma ou a maximização dos interesses de cada um, nem existe uma essência
histórica transcendente – nação, povo, classe – cujo direito de exigir perpetuidade e impor sacrifícios esteja acima
(isto é, possa desinteressar-se de fato ou de direito) da melhor oportunidade de bem-estar e liberdade do conjunto de
seus participantes.” (Ética como amor-próprio, Martins Fontes, São Paulo, 2000, 296-297 [orig. Ética como amor
propio, Grijalbo Mondadori, Madrid, 1998]).
51
escolha”, caracterizada por perfeita informação, vontade reta, etc. Na prática este
utilitarismo leva a somar impessoalmente as utilidades de todos os afetados.
1.3. Naturalismos baseados nas ciências positivas: Trata-se de dar caráter moralmente
normativo às teorias das várias ciências.68
1.4. Éticas do sentimento: As teorias até agora expostas pretendem oferecer um critério
objetivo e racional de moralidade. Para as morais do sentimento, ao contrário, uma ação
é boa ou má conforme corresponde ou não a determinado sentimento que fundamenta a
moral.69
b) Moral altruísta: É proposta p. ex. por A. Comte. Nas suas primeiras obras, Comte julgava
que o conhecimento das leis da sociedade (Sociologia) bastaria para levar os seres
humanos a organizar a sua convivência de modo racional, i.e. a agir de acordo com tais leis.
Mais tarde, porém, chegou a conclusão que a moral não se reduz à Sociologia, mas tem um
caráter absolutamente afetivo.71 Trata-se de fazer prevalecer os impulsos altruístas ou de
sociabilidade sobre os impulsos individualistas e egoístas. A norma da ação moral é a
conformidade com tais sentimentos altruístas: Viver para o outro. Para obter esta atitude,
ele propõe a “religião da humanidade”, i.e. substituir o amor de Deus, como valor supremo,
pelo amor dos seres humanos.
68
Cf. supra 41-42.
69
Cf. René Le Senne: Traité de Morale générale, Paris, PUF, 1967, 425-438.
70
Theory of moral sentiments, 1759.
71
Système de Politique positive, vol. 1, 1851.
72
Die beiden Grundprobleme der Ethik, 1840.
52
b) Moral da razão prática pura:75 Segundo Kant, só tem valor moral o que se funda em um
ideal a priori, i.e. independente de qualquer elemento empírico. Para agir moralmente não
basta cumprir materialmente o seu dever. É necessário ter a intenção de cumprir o dever
por dever e não por qualquer outro motivo. A necessidade moral de agir por respeito ao
dever é para Kant uma evidência primeira de caráter absoluto e universal. Trata-se do
“imperativo categórico”, que se traduz na fórmula: “Deves absolutamente e em qualquer
circunstância cumprir o dever por dever”. O dever representa a distância, no interior da
própria pessoa, entre a razão prática universal e a liberdade do eu singular. O imperativo
categórico não é o enunciado de uma lei estranha a nós mesmos, mas a expressão do que
nos constitui especificamente, i.e. da razão. Por isso, a obediência ao dever, longe de ser
uma alienação, consiste na realização da vontade empírica no horizonte universal da nossa
essência racional. A moral assim concebida tem um caráter meramente formal, enquanto
conformidade com a razão prática pura, i.e. sem nenhum conteúdo empírico. A sua única
prescrição é agir de maneira puramente racional. Ora, a forma da razão é a universalidade
incondicionada. Daí a célebre formulação do imperativo categórico: Age de acordo com uma
máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que ela se torne uma lei universal.
73
Cf. supra 45-46 as Éticas de Sartre e Kant.
74
Cf. A. Léonard, ob. cit. 149-168.
75
Id. 180-190.
53
“razão reta” entende-se a razão humana enquanto orientada pelos primeiros princípios da
ordem moral, i.e. a razão enquanto funciona no campo prático de acordo com sua
verdadeira natureza. Assim considerada, a razão constitui a norma objetiva da moralidade
dos atos humanos. Trata-se da norma próxima em oposição à norma última da moralidade
que é a essência divina (lei eterna).