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DANÇA DE GUERRA, ARQUIVO e ARMA

(Elementos para uma Teoria da Capoeiragem


e da Comunicação Corporal Afro-brasileira)

Júlio César de Tavares


SUMÁRIO

Capítulo Página

Sumário 01

Introdução 03

Capitulo I Redescoberta do corpo e Pós-Modernidade 11

Capitulo II Corpo e Signo 23

Capitulo III Esquemas corporais e sociedade 30

Capitulo IV Resistência negra e saber corporal 41

Capitulo V Capoeiragem, vadiação, malandragem 57

Prospectiva 96

Bibliografia 107

2
AGRADECIMENTOS

Impossível agradecer nominalmente a todos os que contribuíram, de


maneira direta ou indireta, para que este trabalho se realizasse, desde seus
momentos iniciais, em 1981, quando foram dados os primeiros passos do
projeto que aqui se configura.
Entretanto, não poderia, de maneira nenhuma, deixar de expressar
meus agradecimentos à Lúcia e à Carmem, que com muito carinho e afeto
datilografaram, em meio a muito sufoco, os originais deste trabalho.
Também quero deixar o meu reconhecimento para com os professores
Cassiano Nunes, do Departamento de Letras da UnB e Miroel Silveira (in
memoria), da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo,
ambos se constituíram no meu primeiro grande apoio afetivo e intelectual para
realização deste empreendimento.
Impossível também esquecer os Mestres da Capoeira: Zulu, sempre
acolhedor e hospitaleiro, quando o procurava; Tabosa, sempre possuidor de
um “toque” oportuno a mais; Edna, estímulo permanente para engrandecer o
amor que nasceu no meio de todo desarvoro do trabalho.
Impossível esquecer toda “galera” dos delírios grupais, que tanto
feedback ao trabalho: Sérgio Ennes, Fernanda Mee (im memoria), Salim
Sidharta e Johanne Madsen (aquela doçura de olhar).
Impossível esquecer meus irmãos e irmãs Rosângela e Fátima, do Rio,
sempre me enviando material e mantendo-me atualizado; Débora, de São
Paulo, sempre querendo acompanhar o que acontecia e, em Brasília, todo o
crioléu local.
Jamais esquecer a presença de Ivete, a grande secretária, que sempre
garantiu, da melhor maneira possível, a infra-estrutura para o melhor
desempenho do trabalho.
E ainda Olívia que assistiu todo o parto da idéia.
Por fim, expresso aqui toda minha gratidão àqueles que me fizeram
existir e perceber a grandiosidade ancestral que acolhemos,

Ao meu pai e à minha mãe, à eles dedico este trabalho.

3
INTRODUÇÃO

“O mundo é um jorro de energias. Essas energias


manifestaram-se sob vários aspectos: luz, calor,
eletricidade, magnetismo/gravitação etc. O corpo
humano, como o de qualquer ser vivo, é também um
equilíbrio de energias universais, ou, mais claramente, é
uma máquina transformadora de energias cósmicas,
absorvidas no alimento e no ar respirado. Quando a
máquina, por algum defeito, se torna incapaz de operar
convenientemente essa transformação, dá-se o
depauperamento do corpo e a morte”.

José Oiticica

Este trabalho resultou de uma pesquisa que cumpriu uma finalidade


demarcatória para futuros trabalhos que, realmente, daqui se desdobraram.
Seu objetivo é apresentar um núcleo condensado de questões que possam
fazer derivar um sistema de pesquisas em condições de interligar campos de
forças há muito tempo divorciado de sua imprescindível união com a Cultura , a
Educação, o Lazer e a Arte.

A finalidade maior deste trabalho é fornecer pistas para se pensar a


constituição de um caminho alternativo à Educação visando combiná-la ao lado
lúdico de nossa cultura. Por outro lado, ele reflete também o anseio e as
expectativas de um profissional de Educação profundamente ligado ao seu
traço artístico e que, portanto, inevitavelmente não conseguirá ser imparcial,
deixando com todo descaramento transbordar intenções e suposições brotadas
da experiência de vida e profissional, pois em Educação, ou se está no
exercício permanente e em simbiose com a vida, ou não se está nela, e sim na
educastração.

A preocupação quanto à relação acima citada ancora-se na verificação


óbvia de que a proposta de Educação em vigor está falida e agonizante, tanto a
nível do 1º, 2º como 3º graus e pós-graduação. E, sinceramente, não acredito

4
que tenha que ficar pedra sobre pedra, e o momento desta desconstrução é
agora, nesta década.

Primeiramente, o que me toca mais a fundo é a hegemonia da cultura


branca ocidental em todo contexto educacional, contribuindo com a reprodução
das classes dominantes, que são de predominância branca, de origem
européia, e com isso preservando um culto narcisista de um tipo de beleza, de
comportamento, de atitudes, de pensamento. Enfim, exclusivamente um tipo de
linguagem e um tipo de saber “culto” e de “elite”.

Eis o objetivo de educação bancária: domesticar e conter, por um


processo de adestramento lingüístico, os oprimidos social e etnicamente
através de um processo de exclusão de suas culturas, já que para estes
setores a escola e a universidade não lhes concede espaço. Atribui-lhes uma
cultura, enfim, outros paradigmas em substituição aos que foram mutilados
pelo estabelecimento da hegemonia cultural que se reproduz há séculos.

No caso dos negros, este processo é muito evidente. Depois do


etnocídio imposto pelos europeus à civilização africana, até hoje se mantém o
desmantelamento das estruturas psicológicas e cognitivas dos remanescentes
desta civilização. E a Escola torna-se o principal instrumento deste processo de
“razzia” descivilizatória, na medida que impõe um saber totalmente distanciado
da realidade de seu público.

A Escola se configura, deste modo, num dispositivo que faz parte do


dispersivo projeto de alinhamento dos corpos da sociedade a uma perspectiva
de corpo produtivo. Isto é, ela se enquadra como um equipamento que
reproduz uma determinada visão de mundo, um universo de disposições que
se tornam duráveis pela incansável reprodução realizada pelos hábitos
corporais cotidianamente processados.

É deste modo que se processa a exclusão dos saberes marginais do


projeto pedagógico oficial. Com isso, o espaço que caberia à História da
resistência do negro, da sua rebeldia em relação aos colonizadores dentro da

5
História do Brasil, bem como o encontro com sua epistemologia, pelo contrário,
encontra-se ocupado pelo culto narcisista à cultura branca e ao logos
aristotélico.

Mas, por força da crescente conscientização que a comunidade negra


vem realizando, já se fala em Zumbi, Palmares, revolta negras na Bahia, Axé
etc. É claro que muito mais num visível esforço realizado por alguns
professores do que propriamente expressão política voltada para uma
Democracia Racial, em busca de uma nação estruturada Quilombolamente, por
intermédio de um projeto de plurietnicidade.

Nesta exclusão dos saberes, temos de maneira concreta um total


distanciamento daquele que foi a principal arma dos negros para ativar uma
resistência e empreender o registro de sua história de rebeldia: o seu CORPO.
Apesar de dinamitado pelo processo de escravidão e dominação, preservou e
condensou uma sabedoria pelos movimentos, pelos ritmos e pela energia, bem
como pela oralidade que vem sendo transmitida como que num plano
conspirativo, invisivelmente instalado no interior da própria sociedade.

E aqui se encontra o eixo maior de nosso trabalho, que é na verdade


uma pesquisa básica: a compreensão de um dos fenômenos que caracterizaria
a manifestação desta sabedoria dos negros, o SABER CORPORAL. Este saber
nucleia um conjunto de atitudes configuradas enquanto estratégia, cuja
finalidade é a edificação de espaços por onde a identidade sócio-cultural seja
preservada. Na prática cotidiana esta estratégia consistiria numa identidade a
partir deste próprio saber, isto é, a identidade corpóreo-gestual, na qual os
ritmos corporais e a movimentação gestual tornam-se índices de um processo
de preservação das marcas de uma cultura em permanente combate contra
sua extinção.

Deste nicho que tem no saber corporal seu pólo principal, se arquiteta
uma bricolage dos gestos erguidos como resultado dos mecanismos de
intercâmbio e assimilação dos elementos que dão singularidade aos diferentes
grupos étnicos que definiram o universo da população negra ao aqui se

6
constituir. E isto como parte de um mecanismo de sobrevivência imposto pela
colonização através do silêncio cultural em que todos estavam obrigados a
viver.

Importante frisar que todos os elementos assinalados fazem parte de


uma estratégia corporal, compreendida enquanto um conjunto de
procedimentos que fez alojar no corpo do negro as possibilidades de realização
de sua liberdade, seja ela conjuntural (como nos momentos de lucidade, onde
se revisitam as dimensões do cotidiano perdido no tempo das sociedades
históricas para onde foram transladados ), seja ela histórica ( como nas
situações de fuga, onde num clima de alta dramaticidade, transformavam seu
corpo em arma de alta precisão). Diferentemente dos momentos lúdicos, onde
o corpo se convertia num arquivo restituidor das informações que perfaziam
seu ethos, seu campo de valores.

E, exatamente por ter sido sempre tratado como corpo que encarna
exclusivamente trabalho, este lado da cultura africana se viu reforçado para
que se estruturasse estrategicamente, visando à preservação e ao
fortalecimento do corpo como instrumento de transmissão da cultura, isto é,
dos hábitos socialmente adquiridos (arquivos), ao mesmo tempo como
instrumento de organização da defesa física, individual e comunitária (arma).

Pode-se dizer, portanto, que neste saber estava contida a estratégia de


constituição da memória das armas de combate ao cotidiano asfixiante que
deveria caracterizar os primórdios da colonização. Foi este binômio arquivo-
arma que selecionou a linguagem que veio compor o repertório de signos a ser
armazenado no próprio corpo negro. E através dele, tanto nas vivências que
transgrediam as rígidas demarcações estabelecidas pela escravidão, como nos
momentos em que se debatia o estigma do trabalho encarnado, ficava evidente
o campo magnético que sua energia fazia gerar.

E nesta vereda se demarca a finalidade do presente trabalho, que pelo


seu caráter pioneiro, não se propõe ser, senão, um exercício topológico, com a
finalidade de estabelecer os primeiros parâmetros do terreno que se quer

7
sondar. O mapeamento do horizonte de questões que o trabalho compreende,
pode se constituir em um pequeno inventário que dá conta de uma situação
específica, capaz de novos saltos para, mais adiante, caminharmos rumo às
respostas das seguintes questões:

Se há uma relação direta entre linguagem não-verbal e pensamento é


possível se falar de uma memória não-verbal ?

Sendo assim, então haveria um sentido e uma semiose nos


movimentos corporais produzidos e criados pelas camadas subalternas da
população brasileira, tais como a Capoeira, o Jongo, o Maculelê etc. ?

Poderiam estas práticas ter-se constituído por intermédio de


condensação de contextos altamente dramáticos referidos a resistência à
apropriação dos seus corpos ?

Se isso for possível, não estaria nestas práticas e inscrição de códigos


das formas de resistência ao cotidiano coercitivo, operando, aí, como
contrapoderes aos dispositivos autoritários de dominação ?

Um projeto de educação que se queira popular e libertário como


deveria proceder em relação aos dispositivos de contrapoder acionados
através da cultura popular, como no caso da Capoeira ?

Que relação existiria, enfim, entre memória não-verbal e a


redescoberta do corpo no mundo contemporâneo ?

Que tipo de saída, das que já foram tentadas, conseguiu apontar no


sentido de uma nova cosmogonia de homem re-humanizante ?

Consequentemente, se caminhássemos para a re-humanização, na


verdade não estaríamos presenciando uma volta para trás, tendo em vista uma
saída para frente, onde as velhas linguagens seriam readotadas e novas
linguagens desenvolvidas como de superar os problemas de comunicação

8
inter-humano ?

E neste quadro todo, não estaria sendo gerada uma nova concepção
de homem, ele mesmo, em teoria, o resultado da configuração dos elementos
estruturais designativos do mundo contemporâneo pós-moderno ?

Como no caso da História do Negro como se daria o trabalho do


historiador diante dos objetos não documentados verbalmente ?

Estas dez questões constituíram-se em bússola da caminhada, para


que não ficasse perdido neste terreno sem limites claramente definidos. Foi
escolhida a Capoeira como evento possuidor de um saber corporal. É claro que
poderia ser escolhida outra prática, mas esta foi a que melhor se encaixou no
binômio arquivo-arma.

Procurei abordar o tema tornando-me aderente a ele e percebendo-o


também pelo sentimento, participando de sua dinâmica, contribuindo com ela e
dela compondo o painel que pudesse dar no primeiro esboço. A meta era
aproximar-se daquela metodologia que ficou definida como sendo “desde
dentro para desde fora” (DOS SANTOS; 1977:21), a partir de uma lógica
anticartesiana que pudesse ser assim sintetizada: “danço, sinto o corpo, logo
existo”(SENGHOR; 1982:73-82).

Esta foi a idéia norteadora de toda a empresa que se segue, pautando-


se na simbiose da linguagem institucional com a do próprio território que está
sendo mapeado. Por este caminho, possivelmente, conseguiremos aperfeiçoar
um repertório a um universo conceitual que se individualizam como corpos no
terreno da Capoeira.

Só através de uma ótica multidisciplinar será possível compensarmos o


desequilíbrio das abordagens no campo das Ciências Sociais, principalmente
quando se trata de terrenos virgens e quando se quer dar conta de problemas
no campo da linguagem e da comunicação sob a ótica do político, conforme o
exercício que se segue.

9
Os conceitos matrizes do trabalho têm sua origem nas abordagens de
FOUCAULT (1972) e DELLEUZE (1976). São eles: saber e prática discursiva,
de Foucault, e rede (rizoma), de Delleuze. Todavia, fique claro que não há
nenhuma intenção de se aplicar suas ferramentas teóricas, e sim desenvolvê-
las mediante a sua recriação em outras realidades. Exatamente por isso, uma
profunda discussão do arsenal teórico conceitual deveria ser desenvolvida,
mas não a faço aqui, agora, e sim em outro local, posteriormente.

Numa outra escala, mais a nível das conexões com os processos


sociológicos, são introduzidos com certa constância os conceitos habitus de
Pierre Boudieu (tomado de Mauss) e esquema corporal, pinçado na
psicomotricidade e que foi desenvolvido pelo neurologista Henry Head em
1991, ganhando várias complementações e interpretações daí em diante. Tal
conceito merece ser desenvolvido a partir de uma abordagem mais de foco
sócio-antropológico e conectado ao conceito de habitus que Bourdieu
desenvolveu.

E por este painel começou a viagem. O plano do trabalho foi


estruturado como se fôssemos conduzidos por um impulso delirante, sendo
esta introdução o seu próprio plano de vôo. A decolagem começa com a
caracterização do mundo contemporâneo, com a perspectiva de se obter uma
contextualização do lugar que se quer observar, mapear e agenciar. É este o
tópico da plataforma por onde iniciamos o delírio. Cabe explicar melhor a
caracterização de delírio: ela advém tanto da abordagem de Nietzsche, como
de Walter Benjamim, no sentido de se dar vazão ao pensamento.

E começamos a sobrevoar várias províncias, como no significado do


corpo como significante sem que houvesse uma aterrissagem. No avanço
seguinte, procurou-se observar como as diferenças no trato do corpo tornam-se
explícitas na sociedade e como se configuram ao nível do pensamento e do
comportamento.

Mas é no quarto avanço que teremos uma primeira grande parada para

10
observar como os dispositivos corporais foram acionados a nível da rebeldia
negra, para que no seguinte avanço possamos, através de um pequeno
inventário e de uma cirurgia estrutural na Capoeira, compreender a constituição
daquelas invariantes que se mantiveram como traços fundamentais da tradição
que ela encobre.

REDESCOBERTA DO CORPO
E
PÓS-MODERNIDADE

11
“Descobrir que o que faço é música não “uma das
artes” mas a síntese da conseqüência da
descoberta do corpo: para isso o rock por exemplo
se tornou o mais importante para minha posta em
xeque dos problemas-chaves da criação ( o samba
que me iniciei veio junto com essa descoberta do
corpo no início dos anos 60: paragonlé e dança
nasceram juntos e é impossível separar um do outro
): o rock é a síntese planetário-fenômeno dessa
descoberta do corpo que sintetiza no novo conceito
de música como totalidade-mundo criativa em
emergência hoje: Jimi Hendrix, Dylan e os Stones
são mais importantes para a compreensão plástica
da criação do que qualquer pintor depois de
Pollock ! A menos que queiram os artistas ditos
plásticos continuar remoendo as velhas soluções
pré-descobertas do corpo ao infinito: e não é o que
está acontecendo de certa forma?”

Hélio Oiticica

O momento planetário caracteriza-se por uma nova dimensão, que se


estabelece de maneira sublimar e que há tempos vem se alocando no espaço-
tempo de nosso cotidiano. Sua característica básica está definida pelo
processo de tecnotronização do planeta, bem como pela prática aglutinativa
que está em curso, centrada na difusão massiva dos meios de comunicação no
plano mundial.
Profunda e abrangente: duas palavras que serviriam para classificar o
grau de mudança sofrido pelo planeta desde o início da segunda metade do

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século passado.

A partir da II Guerra Mundial, o campo intelectual do mundo ocidental


viveu grandes “sacodidelas” em virtude das fissuras que começavam a
provocar o acirrado debate anti-positivista que a ala psicanalística, na linha de
pensadores libertários, fazia ficar presente.

Nascia daí um vigoroso suporte para os debates, pois os herdeiros do


marxismo luckasiano vinham há tempos tentando ampliar sua área de
influência. O ponto central: o indivíduo e a sociedade que, diante das querelas
dos PCs e dos teóricos marxistas com a URSS, ganhavam grande importância,
principalmente com o reforço da área de atuação do orwelliano “Grande Irmão”
e das transformações introduzidas pelo crescente uso da tecnologia
comunicacional na Europa e EUA. A discussão sobre recalcamento, repressão,
liberdade, expressão, criação, imaginário, inconsciente e ideologia marcou com
tal grau de importância e conjuntura teórica do mundo, que conseguiu inclusive,
projetar seus resíduos nos nossos dias, de maneira que, se hoje operamos
com tais conceitos de forma tão freqüente, devemos tal fato a esse campo de
forças, que gerou tais sítios conceituais1.

Na ultrapassagem desta consideração, a vida vem sendo caracterizada


em seu micrométrio instante (significa dizer: no seu cotidiano), onde as coisas

1
O espaço conceitual pode ser definido como sendo o campo de possibilidade de constituição de um
repertório conceitual. Neste espaço conceitual se localizam, em diferentes escalas, os mais diversos
conceitos que podem dar conta de situação de vários tempos, que em última instância podem ser
classificados como sendo o tempo corporal, o tempo cotidiano, o tempo histórico e o tempo cósmico.
Estes conceitos seriam índices das múltiplas determinações que pretendem informar na sua condensação.
O que estou chamando de espaço conceitual é um campo que unifica várias dimensões do
tempo, o que nos diz que o espaço entorna os tempos e os tempos esparramam pelo espaço, como sítios,
ilhas, planos, dimensões.
Nesta visão especializada da bagagem conceitual, desempenha uma tarefa importante a
capacidade de abdução de quem pretende aprender o que está sendo dito. Conforme nos diria Pierce: “ A
abdução é a melhor forma de construir o conhecimento”. Passamos por processos indutivos e dedutivos,
não contentes, partimos para o abdutivo, na busca de uma interação mais abrangente, inclusive de todo o
conhecimento humano.
Este é um dos métodos de trabalho de construção de conceitos que, sem dúvida, vêm atestando
sua capacidade de alta rentabilidade na economia simbólica. O trabalho por analogia e associação permite
que o processamento das informações acessadas em nossa memória se dê em altíssima velocidade,
garantindo que rapidamente se constituam em multiface e por aí abordando-o multidisciplinarmente.
Mantém-se vivo o tempo todo, pois é a intuição a principal arma para esse tipo de trabalho. Tal tipo, coisa
ou situação pode ser não só isso, como também pode ser não-isso (aquilo), como também pode ter disso e
daquilo, e nem uma nem outra coisa; nem ambas.

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acontecem com postura mais vívida de sua existência, pelo menos como coisa,
objeto encarnado de sentido vazio2. Todavia, este sentido vazio foi produzido
da forma mais violenta e despótica possível, na medida que corresponde aos
dispositivos de poluição visual e, consequentemente, da poluição semântica
que vivemos.

O mundo da vida cotidiana são sinais sem luz, mas com brilho. O brilho
que as fazem cintilar é como o intermitente sinal que um neon anuncia. É isto:
civilização “neonlista”! Nela o homem perdeu-se na vida: desritualizou-se. Sua
vida está sendo sorvida pela televisão, cinema, fotografia, telemática, out-doors
etc. A poluição visual (inflação de imagens) trouxe um homem asfixiado pela
imagem do seu tempo, aprisionado naquilo que ele produziu.

Lígia Clark3 analisa na sua obra este fenômeno utilizando-se do


conceito de estrangulamento do visual. A necessária iniciativa dos homens,
criados por excelência, se voltaria para a libertação das imagens que lhes
aprisionam, a fim de que se soltem de suas amarras e ancorem no porto mais
próximo de seu próprio imaginário desacorrentado. Derrubar o lugar
institucional e o invólucro que elas, as imagens, possuem; enfim, subverter o
espaço imagético.

O mundo inundado de imagens só poderia resultar assistimos no que


assistimos: transmutação. O Homem já é um ser mutante, conforme vem sendo
sempre. Mas aqui o mutante é ao nível da cultura e não do biofísiológico, que
se quer discutir. O sentido é outro e esta diferença passa logo pela forma de
comunicação que pode ser verificada no cotidiano do mundo de nossas vidas.

Diariamente tropeçamos em símbolos icônicos. E estes substituem


assustadoramente os símbolos gráficos, escriturais. Então alguma coisa nova
vai surgir daí (sem que se valorize agora se para o bem ou para o mal; ainda
não é o momento). Então, preparemo-nos para esta transição ao nível da nova
comunicação predominantemente audio-visual que está se configurando4.
2
STEGMULLER; 1977: 3-4
3
CLARK; 1938: 45-46
4
LEROI-GOURHAN; 187-211

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Se percebemos mais o mundo pelas imagens, e aqui refiro-me a todos
nós, crianças, velhos etc., sejam quem for e se elas são moldáveis em alta
velocidade, das duas uma (para ser mais imediato): ou seremos sugados pelos
campos magnéticos das imagens e por elas operados, ou, então, agiremos
com maior velocidade que elas.

O semiótico Charles Sanders Pierce aponta-nos o significado deste


aspecto, ao parafrasear Einstein: “Se o universo está em expansão é em
nossas cabeças que podemos comprovar isto”5. Então as mentes também
encontram-se em expansão.

E se até agora vivemos escravizados pelos símbolos6, levando-os até


ao ponto que chegamos, com eles balizando os seus próprios campos, e se
não temos outra saída, pelo menos enquanto não desenvolvemos os canais
telepáticos, extrasensoriais para a comunicação cotidiana, então, façamos com
que os novos símbolos, se contrafaçam aos existentes, ao menos minando a
tirania que estes fixaram no espaço de nosso imaginário. Nele colocaremos
novos símbolos e por aí, então, poderão ser gerados novos hábitos.

Estes são os aspectos mais marcantes do tempo presente: a


iconização do mundo e a ideologia imagética7. E, no mercado dos bens
símbólicos deste mundo pós-moderno, topamos com mais um fenômeno
anterior, surgindo com muita ambigüidade e podendo se colocar como o
referido dispositivo de contrapoder dos símbolos. Chamo este fenômeno de
Redescoberta do Corpo.

Vejo este fato-fenômeno como mais um símbolo inventado. Só que na


sua apropriação muitas digestões se fizeram. De um lado, pode ele ter-se
constituído em mais um bem no mercado simbólico, com um efeito
mercadológico existente por detrás dele. O jogging e as indústrias de produtos
esportivos, a indústria cultural, vêm se beneficiando deste novo símbolo de
5
SANTAELLA; 1983: 33
6
BAUDRILLARD; 1972: 202
7
HAJINICOLAOU; 1973: 150

15
maneira crescente. Por aí, o despertar da atenção para o trabalho que foi
manipulado pela força da dinâmica do mercado de bens simbólicos constituído.

Entretanto, se entendermos este novo discurso sobre o corpo como


uma nova retórica, conforme ocorreu na passagem da Idade Média para a
Modernidade, como no caso da loucura8, por exemplo, aí somos levados a
concordar que, advinda desta nova visão, uma consciência corporal está em
constituição e adquirindo significados desta consciência: que os movimentos
ecológicos e a consciência ecológica que cada vez mais se fortalecem, tanto
por um discurso ligitimador de sua existência, centralizada pelas comprovações
científicas sobre as reduções das qualidades de vida do ecossistema, como
também através da reaparição de uma forte utopia: a conquista de felicidade da
vida em vida.

A melhoria da qualidade de vida tornou-se a mola mestra dos comícios


em todo mundo, exigindo-se o controle da energia nuclear, da poluição e o
desarmamento, por um lado, e, de outro, o fim da corrida armamentista e a
definição de uma estratégia de paz mundial. São estes os pontos mais
construtivos dos movimentos ecológicos com o Estado do mundo atual.
Aliás, o segmento mais jovem da população ganhou um grande espaço
na sociedade civil mundial, mesmo que não o tenha conquistado claramente e
legitimado este espaço no Brasil. Entretanto, desde a década de 60, foram os
principais responsáveis para que ficassem mais definidos os componentes
desta política do corpo. Uma nova posição de atitudes diante do cotidiano
significa também uma nova posição diante do mundo 9. As manifestações da
contracultura nas suas variadas linguagens apontavam nas alterações que
caracterizariam as mentalidades “alternativas”.

Hoje, vinte anos depois, já podemos sentir seus efeitos na geração que
se encontra por volta dos quarenta anos, que adota tipos de atitudes diante do
mundo diferentes das gerações anteriores.

8
FOUCAULT; 1978
9
LEFEBVRE; 1968, FREIRE e Fausto BRITO; 1984, AUTOGESTÃO; 1980: 34-38

16
Beatles, Rolling’s, o Soul Music etc., são símbolos de uma nova era da
comunicação humana e das transformações comportamentais do planeta. Sim,
do planeta. Depois da década de 60, e principalmente depois de 68, não se
pode mais falar em mobilizações de transformação comportamental se não
consideramos o plano de causação ao nível da aldeia global. 1968: ano da
mundialização da vida. Ano em que o Planeta parou! Daí em diante, jorraram
aos “borbotões”, críticas e confrontos, enfrentamentos e assaltos à Razão do
Estado. Onde existia ditadura, como na América Latina, ela foi duramente
ameaçada, a ponto de se servirem os déspotas dos dispositivos totalitários.
Onde existia o chamado socialismo, emergiram denúncias dos “Gulags”, bem
como se ampliaram as oposições clandestinas constituídas desde antes da
guerra, que revelaram seu lado sarcástico e totalitário. Onde existia
democracia, esta também não passou incólume, tendo sido solapada em suas
bases de cinismo e de hipocrisia, como no Assalto aos Céus, na França10.

A questão política que a redescoberta do corpo processou aparece


introduzindo uma variável fundamental: a reaproximação dos corpos por quem
se colocava nos patamares mais inferiores na hierarquia da dominação social.
O movimento das chamadas “minorias” seria a grande política deste processo
da vida cotidiana nessa fase recente da história da humanidade.

Esse movimento político constitui-se como uma rede e seus circuitos


formam forjados por aqueles segmentos da sociedade que estavam soterrados
pelo processo de totalização e militarização que sofre o cotidiano. São eles os
agentes e atores sociais que sempre atuam nos papéis tidos como
secundários, pois para eles ficaram reservados os personagens de
complementação, como que empurrados por uma sina histórica na cena social,
embora nos bastidores sobre eles recaíssem as tarefas mais árduas e o
trabalho mais estafante.

Sobre eles temos o inconsciente do dominador recalcado e neles a


dominação se realiza na sua instância microfísica, pois aí estão localizadas as
unidades celulares que tornam viável o exercício da dominação permanente. A
10
HOLLANDA; 1980

17
revolta dos jovens, mulheres, crianças, velhos e homossexuais traz à tona a
ação direta dos indivíduos, corporificadas nos movimentos alternativos contra o
Estado, cada vez mais entendido como pressão de alto grau de totalitarismo.

A entrada em cena das minorias sociais introduziu nas áreas urbanas


das sociedades históricas o conflito direto e aberto ao nível das relações
sexuais, sociais, geracionais, interétnicas e nacionais: trabalhadores negros,
índios, bascos, armênios, jovens, velhos, mulheres, crianças, homossexuais
etc., histórica e cotidianamente esmagados pela dinâmica das sociedades de
consumo ou pela hegemonia de um poder central igualitário e homogenizador,
castrador das diferenças.

A questão do corpo, embora não pareça de maneira clara e explícita,


está presente em todas as reivindicações destes setores: trata-se sempre de
uma luta contra a discriminação da pouca idade do corpo e da mente, ou contra
as interdições sociais com respeito ao exercício do amor e da sexualidade, ou
contra as imposições jurídicas e clericais proibitivas aos corpos, a partir da
vontade e do desejo de seus próprios responsáveis: os corpos individuais.
Trata-se ainda da luta contra a discriminação dos corpos usados, envelhecidos,
que na leitura do sistema seriam mercadorias que entram na fase da não-
produtividade e, em conseqüência, em estado de obsolescência.

Enfim, trata-se de uma resposta rebelde a toda forma de interceptação


das vontades, dos desejos e dos prazeres, que num processo político-
psicanalítico vem contribuindo no sentido do desvelamento da couraça do
Estado Egocrata.

Assim é que esta reaparição do cotidiano recolocou na ordem do dia a


luta pelo desejo, pela vontade de potência dos indivíduos a partir da
consciência, mesmo que em grande parte inconscientemente (mas num
caudaloso movimento arrebanhando pessoas pela intersubjetividade, pela
energização da memória coletiva corporal conquistada na segunda metade do
século XX ).

18
E, neste rastro, esta rede alternativa vai se constituindo em toda a
sociedade. Por ela travejam os sinais de adesão pela via da simpatia (energia e
identidade), gradualmente minando as bases totalitárias, simbologicamente
instaladas no cotidiano através dos símbolos e dos hábitos nele embutidos
como disposições duráveis.

A crescente desobediência civil significada pela violência cotidiana é


prova disto. A rebeldia individual, que tanto foi dignificante na militância
anarquista da I Internacional e pulverizada pela II, III e IV, todas Internacionais
em nome da disciplina partidária, renasceu no final do século XX com roupa
nova, ficando nesta nova fase macrodimensionada pela cosmovisão que a
abordagem ecossistêmica configurou.

O saldo foi a baixa no “IBOPE” das esquerdas tradicionais e o


surgimento de novas posturas políticas que vão desde a guerra urbana até o
“desbunde” como opção política, conforme foi o caso dos países atingidos mais
duramente pela reação das armas e do Estado. O Brasil da década de 70 foi
um exemplo.

As críticas ao corpo social foram respondidas de forma a absorver os


corpos individuais pelo Estado. As velhas instituições que corporificavam o
organismo ameaçado foram reafirmadas, asseverando mais uma vitória do
“corpus politicus” e mais uma derrota do corpo social. É Claude Lefort que nos
diz:
“A tentativa de sacralização das instituições pelo discurso é
comensurável à perda da substância da sociedade, na derrota do
corpo”11

Esta relação do Estado como cabeça do corpo social ameaçado,


agindo como Egocrata diante de uma necessária assepsia na sociedade, em
contrapartida trouxe um despertar da consciência para as novas possibilidades
que por dentro das brechas do sistema se fariam acionar. Crescera a
consciência dos corpos individuais pela nova imagem de corpo que se queria
11
LEFORT; 1983: 119

19
produzir, como se descortinou o espaço-tempo que até então envolvia o corpo,
colocando-o numa situação de simulacro na sociedade. Ao se redescobrir o
corpo, descobria-se o cotidiano, percebendo-o como instância primeira por
onde o social interatua e agencia suas poderosas estratégias de poder12.

Concorreu também para esta descoberta a identificação que as


Esquerdas fizeram na Europa, representando um novo momento da luta
política: o momento da luta ideológica; o momento da desalienação, resultante
imediata da utilização que se fazia da proposta de se viver aqui e agora, na
ordem do dia. Desde o “aqui” e “agora” que era apresentado, elaborava-se o
“xeque-mate” às formulações da esquerda ortodoxa, que no seu afã
doutrinarista caía, inevitavelmente, na mecânica concepção do econômico
como sendo determinante, em última instância, de tudo que é acontecimento
ou fenômeno social.

Novas análises são elaboradas a partir dos novos pressupostos


introduzidos desde então: o dia-a-dia, o cotidiano, estrutura elementar do existir
humano em sociedade.

E pensar o cotidiano é abstrair-se (e não abster-se) num campo onde o


referencial é o conjunto de individualidade capaz de criar estratégias que
contornem os limites normativos estabelecidos pela economia geral do sistema.
Esta estratégia traz em si uma linguagem (conjunto de signos) e uma ação
(ritmos do corpo) geradores de um habitus cotidiano. Tais habitus se
formalizam ao se institucionalizarem, constituindo-se em contraposições ao
poder ou em agenciamento políticos dos mesmo.

Seus lugares formam campos de força, produzindo um sistema próprio


de linguagem.

Descobria-se o corpo no cotidiano e o cotidiano no corpo. O


intercâmbio assim foi possível em virtude da erupção que vem sendo irradiada
desde os anos 60, principalmente, desde onde e quando se começou a negar e
12
Op. cit.; 114-119

20
a destruir os significantes despóticos, arrebentados em arte e felicidade no
mundo da vida cotidiana nua e crua. Vive-se no limite carnal, corporal.

As vantagens da Europa (na arte e na política profissional) adotaram


em todo o mundo, mesmo que em pequeno porte, a atitude da guerrilha. Fora
com as instituições arcaicas: Família, Pátria e Escola ! Fora com o Museu !
Fora com o invólucro e fora com a moldura ! A arte deverá ser derramada na
própria vida, sendo seu objetivo, o próprio corpo ! Arte pura: anti-arte.

Mas o estilhaçamento do corpo em espontaneidade, em impulsividade,


era possível enquanto se habitava a linha de tensão entre a consciência
corporal e o mundo exterior, este mundo para além deste cotidiano controlado,
que se constitui exclusivamente em rotina; este mundo também estava,
enquanto corpo dimensão, sendo superado na sua instância histórica.

E, desta forma, as sociedades históricas acabam desaguardando num


momento iconoclasta, onde os vitrais imagéticos do cotidiano começam a ser
quebrados. É a violência da História, na História. Projeta-se na trans-
historiedade ou meta-história. O tempo crono-tecnológico estabelece, ao se
realizar a possibilidade de ser negado e superado pelo tempo do ritmo corporal,
que está no pique do aqui-agora.

Nesta caracterização das forças atuantes no sentido de indicar-nos as


transformações por que passamos, caberia também acrescentar a importância
da crescente difusão de novas áreas do conhecimento ligadas ao corpo, que
vieram trazer contribuições de grande porte para que se compreendesse
melhor esta nave que pilotamos diariamente durante toda vida.

É o caso da Cinética, da Proxêmica, da Cineseologia, da


Psicomotricidade, da Ialatrofia, da Cineantropologia, sem esquecer das
análises semióticas ligadas à dança, acrobacia, luta etc.

E, sem dúvida nenhuma, o campo do espaço do conhecimento vem


crescendo através da constituição de novas ilhas de questões, isto é, através

21
de novos referenciais de análise. E o corpo humano, em seu processo de
redescoberta, está sendo capaz de nos apontar inúmeras saídas até então
tidas como inexistentes.

Este terremoto epistemológico, que a partir de novas questões


vislumbra novos objetos (discursos), por outro lado introduz também uma
reviravolta no próprio campo intelectual a ponto de se alterarem os limites
demarcadores dos antigos domínios fundantes de uma determinada ciência ou
disciplina. Neste processo de mudanças no plano atual é importante que não
se esqueça de acrescentar, também, o desgaste em que se encontra a Razão
Instrumental e os procedimentos técnico-burocráticos.

Há uma marcha em direção ao fim do especialismo. Faz tempo,


principalmente no Brasil, que não temos mais o profissional multidisciplinar.
Não confundir com polivalente, pois o trabalho multidisciplinar está assente
num traçado epistemológico de domínio diagonal do conhecimento.

O exercício dos cientistas sociais, no afã das classificações conceituais


generalizantes e da conseqüente perplexidade diante do surgimento de um
amplo horizonte de novos objetos de estudos, passou a denominar o conjunto
de efeitos e transformações produzidas nesta nossa época como indicador de
uma nova sociedade pós-moderna. Para os militantes “alternativos”, a
classificação adotada procura refletir a estratégia no aqui-agora e, por isso, o
que surgia não era propriamente uma sociedade; mais que isso: a Nova Era. Já
Umberto Eco13 acredita tratar-se de uma nova Idade Média em gestação.

No cômputo geral, diremos que a década de 60, de fato inaugurou um


novo estilo de viver e uma nova concepção de aprender o mundo, tanto é
assim que, por exemplo, a década de 70, aos troncos e barrancos se
caracterizou, diretamente, por uma intensificação da repressão e da utilização
tecnológica em larga escala, de forma a estender os efeitos da engenharia
genética, da cibernética e da informática, cujas conseqüências mais imediatas
têm sido os arranjados passos da astronáutica, da cosmobiologia, da
13
ECO; 1973: 9-34

22
astrofísica e da tele-informação da sociedade. Contraditoriamente, a Contra-
Revolução também caminhou junto.

Para finalizar, diremos que a nível mundial, a década dos 60, a partir
do distanciamento que obtemos com o passar do tempo, se afirma como o
momento-limite da humanidade que viveu e continua vivendo a constituição de
uma nova fase histórica. Esta se pronuncia como derivada da interseção
cotidiano-cósmico estabelecida pela acoplagem da consciência destas duas
dimensões do existir e da realidade social: do corpo na cotidianidade sócio-
cultural.

23
CORPO E SIGNO

El cuerpo es el
cuerpo,
Está solo
Y no necessita órganos,
Jamás el cuerpo es un organismo,
Los organismos son los enemigos del cuerpo.
Las cosas que se hacen
Suceden por sí solas,
Sin el concurso di ningún órgano,
Todo órgano es parásito,
Encubre una función parasitaria
destinada a dar vida a un ser
que no debería existir.
Los órganos sólo há sido hechos para dar de comer a los seres
Mientras que éstos han sido condenados en su princípio y tinen razón
alguna de existir.
La realidad aún no está constituída porque los verdadeiros óragnos del
cuerpo humano aún no han sido compuesto y colocados.
El teatro de la crueldad há sido creado para terminar esta colocación y
empreender mediante una nueva danza del cuerpo del hombre, un destrozo de
esse mundo de microbios que no es más que nada coagulada.
El teatro de la crueladad pretende emparejar en el danza a los
párpados com los codos, las rótulas, los férmures y los dedos de los pies,
Y que sea visible.

ANTONIN ARTAUD

Aaahhhhhhhaaaaaaahhhhh ! Falar do corpo. O que é isto ?

Fazer um exercício teórico sobre o corpo, entendo-o como um trabalho


de reflexão que implica, antes de tudo, numa tomada de atitude e consciência
diante do próprio corpo de quem fala; caso contrário, o discurso a seu respeito

24
torna-se em vão.

A fala do corpo resulta do ato da fala do próprio corpo, de maneira tal


que o objetivo de reflexão, o corpo em questão, se reverta no próprio sujeito da
ação e conquiste o espaço da narrativa, internando-se no próprio texto,
perseguindo a superação da dicotomia instalada como efeito lógico-cognitivo
de determinadas disposições duráveis.

Em se tratando do corpo, então esta questão adquire uma dimensão


muito mais complexa, pois a sociedade contemporânea agencia
ininterruptamente um sistema de dispositivos que conduzem a uma
fragmentação da consciência individual, arremessando num bolo holístico o
indivíduo agente, mero componente funcional de um sistema produtivo. Desta
maneira, as possibilidades de auto-reconhecimento da sua interioridade
existencial esgota-se maquinalmente no vazio simbólico da exterioridade
mercantil da sociedade em que vivemos.

Sendo assim, como assegurar a fala do objeto-corpo de maneira


integral ou integralizadora, se a integridade que se espera só é possível se
compreendida num processo dinâmico; se o sujeito do discurso aquele que
fala, encontra-se bloqueado pelo próprio processo de fragmentação social ?
Até que ponto esta contradição pode ser absorvida ?

O caminho, então, é fazer o objeto, metamorfoseando-se em sujeito.


Numa palavra: fazer também o seu corpo falar.

Exigência imperiosa que norteia uma das principais preocupações


deste trabalho, na medida que faz parte do conjunto de intenções que definem
a trajetória da investigação, é a ultrapassagem do obstáculo constituído pelo
mecanicamente dicotômico entrelaçamento sujeito-objeto, ser-estar, forma-
conteúdo. Mas, o que significa isto ? Ultrapassar a relação sujeito-objeto ?

Corpo: síntese-texto que emite em linguagem não-verbal as


mensagens arquivadas a partir das experiências que se cotidianizaram por

25
intermédio desta mesma parte de comunicação do dia-a-dia, registrando os
cines da memória corpórea, fixando também a situação na qual aquele
determinado movimento foi registrado, isto é, como aquele movimento foi
produzido, criado e elaborado.

Significaria dizer que o corpo é um signo entendido como momento


liminar entre o significante (corpo), o significado (memória corpórea), o sentido
(a resistência/participação) e o referente (a situação específica)14. E este signo,
ou o corpo como signo, através dos tempos tem-se metamorfoseado em vários
sentidos, numa constante.

A cada momento, a cada situação, diante de determinada resposta a


uma determinada ação, num determinado lugar, entre determinadas pessoas, o
corpo fixa-se e é fixado, marca-se e é marcado por um determinado gesto que
expressa a intenção consciente do agente do gesto. Esta intenção ambígua,
isto é: trata-se de uma intenção, mas ao mesmo tempo em que a ação é
expressa em comando, ela não é, racionalmente, conscientemente,
programada. O ato de seu fazer, isto é, o ato da fala ou o ato de comunicação
que está constituído na sua ação, resulta do empuxo como estímulo a uma
outra ação que lhe antecedeu. Como no encadeamento de uma corrente ou
como na sintonia de uma orquestra: ação e contra-ação.

Afinal, trata-se de apreender a vida social como uma orquestração,


realização de uma orquestra que forma um tecido de redes em uma mesma
partitura15 (2). E é esta possibilidade que assegura uma comunicação
permanente, pois somente se a orquestração funcionar é que ficará garantida a
emissão da mensagem que se quer dar. Desta forma, o corpo passa a
constituir mais um canal de comunicação, capaz de complementar o processo
comunicativo.

Para que se configure, o processo prescinde dos seguintes canais:


verbal, não-verbal, verbal e não-verbal, nem verbal nem não-verbal,

14
ver SAUSSURE e BARTHES
15
BOURDIEU; 1980: 89

26
observando-se que o centro emissor dos quatro canais é o corpo. Age, desta
forma, como um cometa que reluz o brilho do seu rastro imagético, unificador,
condensador de seu sentido de fundo.

Dispersão

Corpo

Nem verbal
Nem
Não-verbal

Condensação

Com o novo parâmetro estabelecido, passa-se a existir por este


caminho a possibilidade de um redimensionamento do signo do corpo. Até
então ele vinha existindo como referente de um significado mais a nível
cotidiano, secularizado, destituído de seus primeiros significados, deslocado,
fruto das metamorfoses socioculturais, lógico-cognitivas e linguístico-
semióticas.

Na configuração acima demos um outro ângulo, macroscópio por


excelência, de tal forma que o corpo, como conjunto significante, após a
constituição de número “n” de unidades sêmicas ( kinésicas ou cinésicas ).
Assim posto, existiria um microssigno que seria o gesto, o movimento, e o

27
macrossigno, que seria determinado corpo sócio-culturalmente determinado.
Todo microssigno relaciona-se com um determinado corpo cósmico. O corpo
se configura como uma ponte de intercessão: condensação de micro-unidades
e ao mesmo tempo unidade dispersa de um macrocorpo.

Figura da página 36 do original

Estruturada pela conjunção de unidades elementares de significação -


que atuam enquanto uma atividade discursiva no corpo do indivíduo agente – e
simultaneamente como componente de um discurso de uma estrutura maior.
Desta maneira, o corpo, enquanto estrutura, atua de diferentes modos, de
diferentes maneiras, agenciando o sentido e a lógica da macroestrutura na qual
ele culturalmente se insere.

Se o problema é colocado assim, podemos aduzir daí o seguinte:


O corpo é um signo composto por um conjunto de microssignos (cine
ou proxe), que formariam as unidades microssignificantes responsáveis pela
sua articulação em sentenças; estes microssignos são constituídos de maneira
a se articularem em sentenças através dos movimentos e gestos proferidos
pelo corpo; o corpo, estrutura discursi va, agencia informações com finalidade
de elaborar uma atividade geradora de eventos diferenciados na sua
constituição em novos discursos corpóreos. Os eventos culturais conjugados
permitem a existência de práticas discursivas, que por si só formalizam-se no
campo cultural; através dos eventos culturais por eles mesmos gerados, os
atores sociais fazem seu corpo falar o discurso do evento, que se constitui
como uma macroestrutura, cujas unidades sígnicas são também os corpos em
ação.

28
Estes corpos, nas formas de ação definem uma interação social,
traduzida e contextualizada em práticas de sociabilidade responsável pelo
entrelaçamento dos indivíduos na vida social. Tal entrelaçamento pressupõe
uma agregação: A vida social de que falo é composta por vários eventos ou
situações e nestas situações encontramos os actantes-agentes/atores em
ação-produzindo atos comunicativos por intermédio das falas
convencionalmente (culturalmente) programadas.

Um corpo social é um organismo que adquiriu autonomia e instituiu-se


através da linguagem e dos discursos que cumprem a função de reproduzir os
hábitos e as distinções sociais historicamente constituídas16 num determinado
espaço, topológica e socialmente ocupado por indivíduos agentes atribuídos
mediante arranjos espaciais. Quer dizer que o corpo biológico foi absorvido
pelo corpo social e transformado num corpo produtivo, sobretudo diante da
informatização da sociedade, onde cada vez mais o corpo tende a
desempenhar um papel de meio de produção simbólico, mas todavia destituído
de seu caráter ritual e impingindo à crescente rotinização no trabalho e à
fragmentação da consciência individual, marcada nos personagens que
desempenham papel semioticamente inscrito pela cultura, desde a fase
elementar da infância.

Uma atitude deve pressupor que foi processada uma determinada


informação a partir de uma situação específica vivenciada. A nossa
possibilidade de vivenciá-la só é possível por intermédio do corpo. Isto é: a
nossa possibilidade de tornar possível a existência, antes de mais nada, só se
dará com o domínio e a consciência do corpo, lugar primeiro do existir, com e
no qual estou no mundo apto a viver o presente vivido.

É desta maneira que dou conta do corpo como lugar que me dá acesso
ao meu eu, através das situações dramáticas, ou então pela via do trabalho
(ação corporal e esforço), da ação social ou da criação artística.

Ora, se percebo por aí o processo que se estabelece e a comunicação


16
BOURDIEU; 1979:546

29
daí advinda, verifico que meu corpo é o principal responsável pelo meu estar
no mundo. Fica claro também que a realidade social só se é compreendida
pelo mundo da vida, da realidade cotidiana.

É meu corpo que fala antes mesmo de me utilizar do aparelho fonador


pelo qual vou emitindo as imagens acústicas que vou pronunciando. O meu
discurso, entretanto, não fica só aí. Enuncio minhas intenções, em geral, de
forma inconsciente, através de meus gestos e movimentos com todo corpo,
pois este se relaciona com determinadas situações que foram capazes de se
tornar matrizes dos movimentos que pontuam as frases verbalizadas17.

17
VIEIRA; 1983:51-76

30
ESQUEMAS CORPORAIS E SOCIEDADE

“(...) son los gestos del cuerpo los que, en


movimiento e en reposo, producen la
materialidade de las sociedades,
condicionan su existência y su
funcionamiento. De um lado los gestos de la
actividade material, gestos de lo cotidiano
vivido; de outro, los gestos vuelvena
representar esa vivência de forma simbólica
o imitativa. De uma parte una tensión
muscular, un gasto de energia, que
producen de regreso um trabajo consumible;
de la outra parte una consumación de
energia motriz, creada y transmitida com
fines culturales o no.”

ALDONA JANUSZEWSKI

31
Cotidiano...redescobrir o cotidiano. Ao mesmo tempo verifiquei que o
seu lugar correspondia a um momento de interseção do mundo mais
abrangente que é o mundo cósmico. Quanto mais tomo consciência da
dimensão da realidade em que me encontro, mais ainda conecto-me com o
mundo cósmico e verifico que sua existência não é mais do que a decorrência
da percepção elementar que fazemos do mundo por onde acontece a vida:
mundo cotidiano18.

Voltando à questão do por que o corpo ? e de onde parto para chegar a


esta questão, digo, novamente, que foi a busca de questões intimamente
ligadas àquilo que chamamos de cotidiano e presente vívido que me
conduziram a uma reflexão pormenorizada a respeito do corpo.

Por isso volto a dizer que parto da vida cotidiana...!

Caberia abrir um tópico que fosse capaz de dar conta de que o corpo é
capaz de ser além de signo, quer dizer, além de um componente específico
para a linguagem, funcionando como condutor de significações inumeráveis por
intermédio dos gestos e dos movimentos, o corpo, pela significação que
produz, enuncia nas frases de seus movimentos uma ordenação lógica dos
artefatos (roupas, balangandãs etc.) que compõem a sua estrutura. Estes
artefatos, como linguagem que são, correspondem à estrutura sócio-cultural
que forma o chão da gramaticidade, das normas e códigos por onde os
agentes coletivos19 interatuam.

Quando falo em “ordenação lógica dos artefatos”, refiro-me ao


dispositivo que construímos com o objetivo de imprimir uma determinada
ordenação aos artefatos que no corpo adquiriram um papel de adorno. A
maneira como eles serão distribuídos nos indica os termos do corpo
considerados mais relevantes numa determinada cultura ou numa determinada
sociedade: o seu esquema corporal20.

18 LEFEBVRE, op. cit

19 SROUR; 1979: 64

20 Aqui amplio o uso deste conceito, ao tomá-lo de empréstimo da psicomotricidade e agregando nele elementos sociológicos e antropológicos como componentes de seu sentido

conceitual. Ver (COSTE; 1978: 19-24); (CHAZAUD; 1978: 27); (LE BOULCH; 1983: 22); (LE BOULCH; 1982: 18)

32
Para algumas sociedades o tronco tem um papel mais importante que
a cabeça. Já em outras não assume este destaque. Noutras são os membros,
em outras, como no caso da cultura africana, a cintura é que adquire a função-
chave do corpo21. Poder-se-ia deduzir que o corpo do ocidental está, em geral,
esquematizado por três partes essenciais: cabeça, tronco e membros. Se fosse
dizer o mesmo da cultura negra, diria que a cintura apareceria aí como um
quarto componente.

Esta predominância da cintura, que no corpo revela-se como um


trampolim, adquiriu demasiada autonomia, a ponto de ser a “cintura solta” a
variável somática responsável por dribles magníficos, como os de Garrincha,
ou os requebros das passistas no carnaval, no samba ou então nos
movimentos plásticos, religiosamente constituídos na umbanda ou no
Candomblé, principalmente, ou ainda nas movimentações dos capoeiras,
breakers, do reagge, do soul ou do rock.

Cada participação numa destas atividades promove uma revista às


situações que são capazes de recriar o ethos de participação do corpo de
forma ampliada. Aprofundar esta questão é investir na análise do campo lógico-
cognitivo, isto é, nos esquemas e na memória motora22 de uma coletividade.

Mas não precisaríamos ir muito longe para perceber que os


dispositivos lógicos e cognitivos estão interligados à formação sócio-espacial
que define as possibilidades de existência dos corpos em observação. Cada
cultura acabaria criando determinados hábitos que atuam como disposições
duráveis23 e que refletem a carga dos mecanismos sociais que foram
internalizados. Assim, numa cultura ou formação sócio-cultural que se utiliza de
partes tais como os quadris na África, termina a cintura tendo um papel muito
mais relevante do que em outras. Desta forma, há um valor inscrito nos
artefatos, que são peças de reforço dos sentidos que o corpo quer expressar.

21 (RIEFENSTAHL; 1978 A) – (RIEFENSTAHL; 1978 B); (CHESI; 1977); (HUET; 1978)

22
BASTIDE; 1971: 33
23
BOURDIEU; 1980: 88-9

33
Resumindo: o corpo é um componente do mundo, da vida, do
cotidiano, sendo que por ele percebemos e sentimos o mundo. Por seu
intermédio desenvolvemos e aperfeiçoamos a comunicação com as outras
pessoas com os outros indivíduos, além de darmos um colorido às nossas
emissões áudio-acústicas (vocais) pela via da gestualidade, ou então pela ação
estética, a de criar símbolos que nos permitam significar expressivamente a
realidade. Confirma este fato a própria maneira dos corpos se adornarem,
tendo em mente a possibilidade de reafirmar determinados valores.

Os indivíduos sobredeterminados por estas questões passam a ter


uma determinada representação do corpo. Desta forma, discursivamente eles
se pronunciam informados culturalmente nos limites que assinalam as
características comportamentais que ditarão suas atitudes; as técnicas que
lhes servirão como acionadas dos movimentos motrizes no dia-a-dia e, ainda,
aquelas que imprimirão moticidade suficientemente forte, capaz de emitir meu
corpo na dimensão energética: nem verbal nem não-verbal de comunicação.

Por esta dimensão capto os sinais com os quais poderemos restituir e


reconstituir a memória coletiva24 soldada neste campo de experiência não
visível, mas que pelos chacras (os sete que existem no corpo) são lançados e
canalizados. Inúmeras práticas de vivências ritualizadas assumem, no Brasil,
uma função muito especial, que é a de manter a tradição de determinados
hábitos comportamentais pela via de determinadas ações corporais e da
comunicação não-verbal que esta pressupõem.

Gestos e movimentos se conectam, constituindo uma linguagem que,


pela via corporal, articulam os artefatos, isto é, as mercadorias que reificam
seus fetiches a partir da função de adorno corporal, bem como asseguram e
constituem dispositivos de identidade coletiva.

Assim entendida, a memória social mostra que a existência ou a


inexistência de documentos escritos não será mais justificativa plausível para
explicar o desconhecimento de uma infinidade de situações desconectadas no
24
BASTIDE; op. cit.: 45

34
tempo e no espaço histórico devido a impossibilidade de análise de um material
empírico suficientemente consistente. Entenda-se a memória coletiva como
sendo a memória motora, a própria documentação escrita, só que pelos gestos
e movimentos corporais25.

Isto sem dúvida, traria contribuições para se pensar uma história do


Corpo, ou seja como diferentes práticas – tendo o eixo corpo – levaram os
agentes a se relacionarem entre si com o próprio corpo. Por exemplo: a
compreensão de como na Afrodiáspora formações discursivas de interações e
expressão social foram ludicamente constituídas como ação social visando à
rebeldia e à resistência, tais como o samba, o tambor de crioula, o jongo, o
soul, o rock, o reggae e, há séculos, a Capoeira.

Possivelmente encontraríamos aí a formação de categorias empírico-


emotivas. Seria exatamente a hora da sensação sem racionalização. Pura
emoção de sentir a sintonia da situação! E tudo isto sem que se sentisse os
sentimentos do próprio sentir, inclusive desconhecendo-se a possibilidade de
se saber algo deles. Seria o momento da construção de um modelo pré-
categorial de classificação, sobretudo quando sua forma é a própria
cristalização da situação criada em movimentos sobre determinações espaço-
temporais.

A identidade dos descendentes dos negros que se encontram na


Diáspora – fora da África – tem-se dado por intermédio do discurso que pode
ser proferido pelo uso do corpo, isto é, pela capacidade de se dizer, de se
sentir e de enunciar mensagens pela via do corpo, tradutor das racionalizações
cósmico-cotidianas que se derivam numa ação trans-histórica, como o soul e o
reggae, e agora o break, como os maiores exemplos. Todas as três propostas
musicais atravessaram as barreiras das nações que lhes deram origem, é
claro, sem deixarmos de levar em conta que isto se deu por intermédio de uma
indústria cultural que transformou a informação estética em mercadoria,
transpondo todos os possíveis obstáculos comunicacionais. Entretanto, a
substantividade da mensagem foi recomposta por dispositivos universais de
25
BASTIDE; op. cit.: 57

35
identidade étnico-cultural que o público consumidor deste produto,
instintivamente, involuntariamente, fazia processar. Estes dispositivos seriam
os movimentos musculares e corporais que o ritmo percussionado da
musicalidade negra sensualmente insinua.

Como conseqüência, o processamento e a decodificação da


informação estético-musical enunciar-se-iam em movimentos corporais, em
lucidade, em ritmo, em dança, enfim, em possessão dos códigos corpóreos e
gestuais que estariam imageticamente embutidos no formigamento do ritmo.

Quero dizer com isso que o cotidiano encontra no corpo a principal


categoria das substâncias materiais do entendimento humano e que
interpenetra com sua oposição macrodimensionada – o Cosmo – gerando
assim uma resultante histórica atualizada no tempo e no espaço
correspondente à vivência imediata desta coletividade que é o público
consumidor.

Por esta vereda, introduzo uma nova variável para se pensar as ações
políticas: a identidade corpóreo-gestual como uma variação das identidades
coletivas de que fala Habermas26. A identidade corpóreo-gestual se definiria
pela possibilidade de aproximação e sintonia por intermédio dos ritmos do
corpo.

Considero a movimentação criada pelo Black Rio, no final da década


de 60, pelo reggae, já nos anos 70, e pelo Break, nos anos 80, como
comprovações deste fenômeno. Mais exemplos poderiam ser utilizados, como
a chegada das músicas do Caribe (o Mambo e a Rumba), nos anos 50, que
também constituíram dispositivos estimuladores do crescente sentimento de
reorganização da comunidade negra no Rio de Janeiro e São Paulo, que, sob a
mediação da gafieira e bailes de gala (além das festas de formatura ou de
debutância ), contribuíram para o fortalecimento dos clubes de convívio de
negros, cuja presença nos clubes de classe média era interditada com muito
mais freqüência que nos nossos dias.
26
HABERMAS; 1983: 49-75

36
O Aristocrata em São Paulo e o Renascença no Rio de Janeiro servem
bem como exemplo, como espaços conquistados que são, desta relação corpo
e política, de um lado, e memória coletiva e identidade corpóreo-gestual de
outro, entre os descendentes de negros na sociedade brasileira.

A respeito destas manifestações sociais caracteristicamente ligadas à


comunidade negra, alguns estudos já abriram suas portas. Entretanto, no meu
ponto de vista, uma questão ainda permanece pendente: como é que nestas
manifestações ou eventos o corpo, coincidentemente, adquiriu um lugar de
expressividade de profunda significação, isto é, por que nestas práticas de
vivências populares encontra-se o corpo como centro de toda significação ?

Quando digo coincidentemente, quero dizer que também nas raízes


africanas o procedimento é semelhante, bastando tomarmos os exemplos que
as decorações no corpo desempenham, fazendo dele um lugar de expressão
estética e de indicação de linguagem. O corpo é tratado como um lugar que, no
tempo e no espaço, está consciente do cotidiano vívido, bem como da própria
cosmovisão constituída na trama social27.

É claro que este fenômeno de linguagem se configurará de diferentes


modos, o que irá depender profundamente da cultura em questão. O discurso
no mundo oriental, por exemplo, reveste-se de outros dispositivos lógicos ou
esquemas corporais diferentes dos do mundo ocidental que se baseia numa
estrutura binária do tipo “ou é de cabeça ou são pernas”, não tendo cintura o
molejo, o balanço e flexibilidade que caracterizam por exemplo, o movimentar-
se dos africanos e de seus descendentes.

O que chamo de movimentar-se ? Como defino movimentação ? Pelo


seu plano de pulsão na quinesfera individual, o grau de controle da relação
espaço-tempo em relação a mim mesmo. E não se tendo o tal molejo, aquilo
que em Capoeira se chama de “cintura desprezada”, a dobradiça do corpo fica
enferrujada. É claro que neste caso nos deparamos com um comportamento
27
VEYNE; 1982: 51-85

37
totalmente diferente daquele do encaixe do corpo no espaço, no cotidiano da
vida, no presente vívido, segundo Bergson. É aí que os ritmos do corpo
variam28.

Neste fio vamos ter um corpo quinestesicamente no seu movimentar-se


muito específico, onde os quadris caminham também, independentemente do
caminhar dos pés, da cabeça e do tronco. O conjunto é a trama dos quatro
movimentos. Portanto, a estrutura corporal perpassa todas as macroestruturas,
havendo sempre registro do corpo em cada um dos símbolos construídos. São
eles a ação produtora do homem.

Aqui teríamos uma grande diferença a destacar, na medida que, por


exemplo, para a civilização européia o corpo é negado como lugar a ser
afirmado. A síntese aristotélica que São Tomaz de Aquino empreende já traz
um sinal para que se encaminhe a negação do corpo, na medida que ele
invalida a audição pela sua relação direta com a carne, privilegiando a imagem.

Outro fato é a dança, que não se integrou às liturgias cristãs da Idade


Média, mesmo tendo existido alguma exceção, como na Catedral de Sevilha,
durante a Semana Santa, após o século XVI29.

O importante é assinalar que na Idade Média, no que toca aos hábitos


eclesiais, foi introduzida uma nova retórica para o corpo30 (13), que se configura
numa ruptura com a evolução das coreografias que se constituíram em todas
as culturas precedentes. Estas são reinventadas, passando a dança a ser uma
seqüência mensurada com passos medidos, transformando-se em apenas um
divertimento encapsulado, perdendo seu caráter religioso e ritualístico. A razão
disto estaria, possivelmente, no fato da dança recorrer ao corpo, aos seus
poderes, exatamente num momento em que o corpo estava sendo negado.

De certa forma, o que pode ser enunciado como o fato social de maior
relevância em relação ao corpo é a inauguração de uma nova retórica para o
28
Ver (SCHUTZ; 1979: 79-110)
29
BOURCIER; 1981: 36
30
op. cit; 1981: 46-59

38
corpo. Tal fato só começou a se desintegrar a partir do século XV, quando
alguns pintores, como Brueguel e Boch, recuperaram o corpo numa nova
dimensão para o espaço estético: nele o corpo aparecia ligado às fantasias e
fantasmagorias do inconsciente, burlando os limites do real no cotidiano
medieval. Mais tarde, o projeto escultural de Miguel Angelo e Da Vinci
apresentaram mais elementos que dissolveram, gradativamente, a velha
retórica do corpo.

É importante frisar que esta reentrada no corpo surgiu com o processo


de apropriação capitalista do mundo, mesmo que de uma forma um tanto lenta.
Mas, de qualquer maneira, o “re-conhecimento” do corpo responde ao
processo de extorção originária do sistema de exploração capitalista. Faz parte
deste processo a expropriação das chamadas populações primitivas, como é o
caso das civilizações pré-colombiana, ameríndia e africana.

Em todos esses espaços-tempos históricos, ou melhor dizendo, nestas


formações econômico-sócio-espaciais, temos o mesmo procedimento: o roubo
dos produtos do trabalho, ou da força de trabalho (conforme os trabalhos
forçados nas minas de diamantes ou de ouro do Sudão-África) ou então, em
última instância, a expropriação dos corpos destas civilizações. O mais
interessante, ainda, é que este “re-conhecimento” do corpo, de que falava mais
atrás, corresponde também ao momento do Renascimento cultural da Europa,
a constituição da Modernidade, que foi possivel através da incorporação da
produção artística das populações “primitivas” do Novo Mundo.

Os produtos do trabalho criativo destas populações, considerados


como peças valiosas pois os totens, as máscaras, o artesanato, o corpo, tudo
se constituía em fator da acumulação originária e, por este caminho, em
dinheiro para financiar os trabalhos dos artistas que, por encomenda da Igreja,
da Monarquia ou dos comerciantes bem sucedidos, podiam ver suas obras
executadas.

Assim, tanto a expansão marítima européia quanto o Renascimento e a


Modernidade constituíram-se em dispositivos de extorção da criação artístico-

39
civilizatória das civilizações nativas nas áreas conquistadas e colonizadas,
servindo de plasma para a transformação sócio-cultural da Europa.

O mais importante é reter a informação que nos assegura que o corpo


era, reconhecidamente, uma conquista desta civilização primitiva, pois este se
caracterizava como um lugar no cotidiano que assegurava o existir do grupo
através de cada um.

Já no século XIX, a abordagem de Marx quanto à teoria do valor e o


fetichismo da mercadoria trouxe um toque muito especial no sentido de
esclarecer o lado “mercadoria” que os corpos tomaram: a alienação, conceito
tomado de Hegel e revestido por Marx com outra roupagem. Esta nova
roupagem reintroduzia o problema da apropriação indevida feita pelo capital em
nome da liberdade do trabalho, em substituição à apropriação realizada pela
Igreja, que justificava em nome da salvação, onde a Santa Inquisição é o
grande exemplo. Além de Marx, outros alemães visitaram a mesma temática,
como Nietzsch e Freud. Também os anarquistas tocaram no problema, como
Bakunin, Malatesta etc., os quais viam no amor livre a primeira conquista que o
indivíduo faria em relação ao seu corpo.

Mas é na segunda metada do século XX que, de fato, tivemos grandes


conquistas em relação à questão do corpo, como o trabalho de A. Artaud 31, que,
preocupado em pensar uma nova proposta para o teatro, jogou-se num
levantamento do papel do corpo como lugar de expressividade que deveria ser
reconquistado em nome de uma revolução integral que faria o caminho do
regresso ao logos pré-socrático.

O conceito de revolução integral, cunhado por Artaud, fêz emergir com


força e profundidade na década de 60, com a revolução dos costumes,
desencadeada a partir da Europa, que conduziu a juventude mundial a
desempenhar um papel decisivo, introduzindo uma mudança nos hábitos e no
comportamento, indo desde uma transformação da posição de atitude diante
do mundo cósmico, até uma nova proposta de atitude diante de si no cotidiano.
31 ARTAUD; 1974; 1975; 1983; 1984

40
RESISTÊNCIA NEGRA E SABER CORPORAL

“(...) Seria interessante saber se tanto as células nervosas quanto


a onda elétrica que as faz vibrar não poderiam ser percebidas
pelo sujeito. Caso isso fosse comprovado explicaria em parte o
comportamento do negro africano. Em todo caso, esse fato não
passou despercebido aos americanos. Esses observaram que os
reflexos dos negros são mais naturais e seguros por estarem
justamente mais ligados ao objeto. Daí o grande aproveitamento
desses últimos durante a Segunda Guerra Mundial, na indústria e
nos serviços técnicos do Exército.
Isto significa que pelo simples fato de sua fisiologia, o Negro tem
comportamento mais vividos, no sentido de suas expressões
serem mais diretas, mais corretas tanto ao nível da sensação
quanto da excitação, mantendo-se sempre em sintonia com as
forças originais do objeto. Não devemos por isso perder de vista
nem a hereditariedade psíquica nem a experiência social do
Negro africano. A impressão é retida no presente vivo para ser
transformada em sensação e representação, gerando assim mais
uma vez o comportamento devidamente ajustado com o texto
social que lhe compete. Ora, então o Negro – e negro africano,
para voltarmos a ele – reage assim mais fielmente à excitação do
objeto: casa-se com o ritmo deste. Esse sentido carnal do ritmo –
os movimentos, das formas das cores – é uma das características
que lhe são mais específicas, pois o ritmo é a essência da
energia. É ele que está na base da imitação, que tem um papel
determinante na “atividade criativa” do homem: na memória, na
linguagem, na arte.”

LEOPOLD S. SENGHOR

Capoeria e Liberdade

Para iniciarmos nossa incursão no universo da Capoeira, talvez


devêssemos falar como Nestor Capoeira, grande especialista e divulgador da
Arte-luta na Europa, em entrevista ao Jornal O Globo, em 03.05.78:

41
“A capoeira corresponderia à síntese das instituições negras
aniquiladas pela colonização portuguesa”.

A sua sobrevivência já é um elemento indicador da sua importância. A


travessia histórica cumprida por este evento cultural não foi tão simples quanto
parece demonstrar a alegria daqueles que em festa se arrodeiam em torno de
um berimbau e batucadores, numa tarde calorenta do Rio de Janeiro ou
Salvador, dando início à vadiação (conforme era denominada a execução do
jogo), na realização do homo ludens.

A manutenção de tal prática demonstra como a comunidade negra se


mantém acesa e ativa na manutenção das instituições que concentram sua
história e sua cosmogonia, mesmo que aparentemente não revele nenhum
destes aspectos e mesmo que deixe transparecer uma certa dispersão para
com seus bens culturais; mesmo que a consciência deste processo não se
anuncie de forma muito clara.

A resistência, razão desta maneira de proceder, e a manha do jeito de


ser são, por si mesmas, heranças da principal tática de luta introduzida pelos
negros no combate à escravidão e à colonização portuguesa, visando,
evidentemente, à preservação de seus próprios corpos contra o permanente
projeto domesticador e “aniquilador” implementado pelo colonizador europeu.

Assim também nos diz Benedito Peixoto:


“...Foi com astúcia que trataram de se preparar para enfrentar situações
difíceis nas fugas planejadas, utilizando um tipo de luta rápida e
decisiva, que dava oportunidade de enfrentar muitos sem precisar
segurar nenhum nem se deixar agarrar. Ainda, astuciosamente foi
introduzida a música com o objetivo de disfarçar o aspecto de luta desta
farsa.”32

Pensar, organizar e movimentar um projeto de liberdade que pudesse


32 Peixoto, s/d – Apostila do Instituto Nacional de Folclore – RJ

42
constituir uma alternativa num modo onde o negro só tem espaço em posição
de cega obediência é, de fato, tarefa de grande dificuldade. Por isso, não havia
sentido deveriam ser dotados do maior grau de invisibilidade. As armas neste
processo eram basicamente duas: o corpo , peça biofisiológica e, acima de
tudo, fragmento de um coletivo de onde se é parte integrante e inseparável.
Neste grupo comunitário, onde seu corpo foi forjado, ele detém a memória, que
é a sua e a coletiva também.

O outro instrumento era a energia33, a sintonia com todo campo


energético, transcendental e cosmogônico que revertia a visão de mundo.

Foi neste trabalho invisível que a Capoeira se desenvolveu. Institui-se


como pano de fundo do drama da civilização africana, compulsoriamente
transladada para o Novo Mundo pela dinâmica da acumulação originária do
mundo capitalista. Seus atores, os capoeiristas, inicialmente deveriam ter sido
guerreiros acrobátas, conforme verificamos serem existentes até hoje na África.
Como guerreiros, eram possuidores de profunda intuição, que os orientava nas
fugas em territórios desconhecidos, além, é claro, de sua avassaladora
coragem. Em suas fugas dirigiam-se para diversos pontos e neles organizavam
nichos: os quilombos, dos quais se tem notícia desde o século XVI.
Este fato indica, por si só que os negros não eram passivos, conforme
muitos ainda acreditam, e que sua índole facilitava a dominação.

“Eram submetidos mas não eram servis. Estavam sempre tentando


libertar-se. A capoeira constitui uma arma para o momento de luta
necessário a essa libertação. E como de outros meios não dispunham
se não de seus próprios corpos, trataram de prepará-los da maneira
mais apta a enfrentar feitores ou capitães do mato”34.

O sistema escravista mercantil atendeu às necessidades de exploração


e assentamento em rica região como o Brasil, desprovida de mão-de-obra e
portanto sem condições de produzir, por extensas áreas, mercadorias que

33 Esta concepção vital pode ser encontrada em Sergy; 1967: 19)

34
Peixoto, op. cit.

43
pudessem resultar em capital acumulável. Outros atores em cena eram, de um
lado, o proprietário do patrimônio latifundiário e, de outro lado o trabalhador
escravo.

Para o primeiro, a sujeição do trabalho escravo ao capital em gestão


não estava consubstanciada na apropriação privada dos meios de produção, e
sim na posse efetiva e exclusiva, isto é, no monopólio do próprio trabalho,
“transfigurado em renda capitalizada”, conforme sugeriu José de Souza Martins
35
.

Para o segundo, sua sujeição ao capital não se dava na hora de


produção e sim na hora da mercantilização enquanto escravo. Isto pode ser
facilmente constatado no caso da agricultura, pois “antes de ser o produto
direto, ele (o escravo) tem que ser objeto de comércio. Para isso, tem que
produzir lucro já antes de começar a produzir mercadorias e não apenas
depois”36.

Nesse sentido, ainda segundo J. S. Martins, “o escravo tinha dupla


função na economia da fazenda. De um lado, sendo fonte de trabalho, era o
fator privilegiado da produção. Por esse motivo era também, de outro lado, a
condição para que o fazendeiro obtivesse dos capitalistas (emprestadores de
dinheiro) , dos comissários (intermediários na comercialização do café), ou
mesmo dos bancos, o capital necessário, seja para o custeio, seja para a
expansão de suas próprias fazendas. O escravo era o penhor de pagamento
de empréstimo.”37

Em síntese, o escravo deve ser compreendido como uma “força-de-


trabalho-transformada-em-capital-que-gera-renda” quando inserido no
processo de produção. Sua inserção se realiza mediante aquisição no
mercado, permitindo ao traficante uma acumulação, e ao seu comprador, um
investimento na produção. A “peça” era, a partir daí, transformada em capital
fixo ou renda capitalizada. Há, portanto, uma metamorfose desumanizante,
35
Martins; 1978: 20
36
Op. cit: 21
37
Op. cit: 21

44
alienante, neste sistema: de um ser humano em mercadoria; de mercadoria em
força-de-trabalho em si; de força-de-trabalho em si em capital fixo (como se
fosse uma máquina descartável: quebrou, joga-se fora). Enfim, do corpo
comunitário38 ao corpo produtivo39 (8).

Neste circuito, todos lucravam (menos o escravo, é claro): o fazendeiro


comprador da peça, porque conquistava um instrumento de dinamização da
sua acumulação de capital; a Igreja, que recebia dízimos de todos os
comerciantes, portanto, quanto mais alto o lucro, melhor para a instituição, e
finalmente o Estado Português, que através da coroa cobrava um tributo pelo
apresamento de negros em solo africano, área do império ultramarino.

Nesta complexidade gerada pela escravidão mercantil, tanto no que


compete à realização interna e à realização externa do capital, brotava uma
complexa ordenação societária, como o dos seus mecanismos de legitimidade.

E é no âmbito da legitimidade que entram as formas de repressão e as


formas de resistência e seus respectivos universos simbólicos.

A repressão física era o principal instrumento acionado para submeter


os negros. Desde seu apresamento nas guerras ou nas obtenções por
intermédio das trocas, ficava estabelecida a interdição do contato com o
próximo da sua comunidade. Ficava interditada a comunicação, na medida que
ficava aprisionados nos tumbeiros em direção a um novo destino: o Novo
Mundo. Interditava-se o acesso ao seu mundo cotidiano, com seus familiares,
com seus afazeres, com o seu hábito de cheirar, sentir, ouvir, ver e falar com
as coisas que lhes eram próximas. Interditava-se o acesso ao seu próprio
corpo, ficando obrigado a se comportar de determinadas maneiras e a atuar no
cotidiano inventado pelo colonizador, a partir do código e da língua do próprio
colonizador. Pulverizava-se, com isso, o universo de significação dos negros,
ficando seus símbolos expropriados pelas freqüentes comitivas européias.

38
Gil; 1980: 48
39
Deleuze; 1973: 16

45
O horizonte simbólico africano foi desarranjado a partir do momento em
que os europeus não só seqüestravam corpos biológicos, humanos, mas
também o corpo das representações materiais produzidas artisticamente como
indicação do agir e pensar no seu mundo cotidiano. Além disso, era também
componentes do corpo comunitário, constituído por uma totalidade articulada
de ações, determinadas concepções, representações, expressões – em última
analisa, símbolos e dispositivos de linguagem que permeavam toda
comunicação humana.

Aqui os sobreviventes da chacina corporal e da violência simbólica


chegavam totalmente fragmentados e partiam para a reconstrução de sua
existência – tarefa difícil, já que após o desembarque continuava o etnocídio 40.
Como é possível recompor o universo que ficou do outro lado do cotidiano-
oceano ? Não só isto: como preservar a memória daquele universo perdido, já
que não se podia recuperá-lo ? Talvez fosse possível reconstruí-lo, e porque
não através de novas noções, por intermédio de um projeto de pluri-
etnicidade ?

Outra dificuldade constituída para os negros era a recuperação da fala.


A saída foi aprender a língua do dominador, para se comunicar. Este aspecto
constitui-se na principal arma de dominação colonial: a interdição da fala e o
seqüestro da palavra do outro. A via comunicacional pela palavra verbal
tornava-se especialmente difícil devido ao convívio com membros de diferentes
nações e, certamente, também devido às diferenças existentes nas matrizes
lingüísticas e lógico-cognitivas da população negra.

O continente africano engloba várias nações e delas vieram milhões de


negros. Eram gegês, bantus, yorubás, nagôs, minas, tapas etc. - uma enorme
diversidade simbólica, portanto. Mas mesmo apesar disso, seus agentes
buscaram a constituição de uma complexa rede que viabilizasse, na sua
tessitura, a permanência de situações de resistência, a rotina do cotidiano onde
seus corpos emergiam como restritamente produtivos e nada mais. Romper
com a coisificação anomizante era fazer dentro do sistema, da forma mais
40
Jaulin; 1979: 10

46
camuflada possível, a sua transgressão41 .

Transgredir é superar o cotidiano inculcado com Significante Supremo42


no seu próprio interior, amoldando-se, nos seus interstícios, às brechas
possíveis de serem ocupadas, inclusive as de ordem psíquica. Eram estas
brechas psíquicas que permitiam a contraposição à hegemonia cultural da
civilização européia. Nelas se depositavam os hábitos perdidos no passado
amnésico que poderia reconstituir os laços sobre os códigos e valores étnicos-
culturais como marcos da tradição e da cultura das diferentes nações da
civilização africana.

Consequentemente, os negros permaneceram em estado de alerta,


numa situação de “guerra de guerrilha” onde o combate se dava de forma
permanente, camuflada, fragmentada e paulatina, até que se contaminassem
todos os nervos do poder, com o contra-poder de sua atuação. Afinal, não nos
esqueçamos que os europeus produziram um etnocídio ao eliminar grandes
contingentes humanos de sua teia existencial e civilizatória. Os traços de
identidade étnica e sócio-cultural, porém, não foram abandonados e nem
deixaram de ser recuperados.

E, conforme vimos mais acima, mesmo que destituídos de


instrumentos eficientes sob o ponto de vista militar, para resistir aos
colonizadores, agentes da civilização43, foram manipulados instrumentos
extremamente sutis aos olhos do dominador com a finalidade de se preservar
seus corpos e suas cosmovisões. Estes fenômeno foi um traço comum nas
diferentes civilizações submetidas, seja no Novo Mundo, na África ou na Ásia,
cuja finalidade, consciente ou inconsciente, era burlhar a eficiência do controle
da civilização ocidental configurada desde a expansão da produção mercantil.

No caso dos africanos trazidos como escravos para a América (Norte,


Centro e Sul), o sistema de resistência constituído, forçosamente, teve que
adquirir um grau mais elevado de complexidade devido às inumeráveis nações
41
Duvignaud; 1983: 223
42
Gil; op. cit: 69
43
Jaulin; op. cit: 14

47
que se mesclavam fora do continente africano, e que tiveram no sincretismo e
na miscigenação a melhor forma de organizar essa resistência.

A Cultura da Diaspora Africana


Da mistura criada uma nova comunicação foi se estruturando, uma
nova cultura foi se configurando. Chamemo-la de Afro-Diáspora ou Diáspora
Africana. Acima de tudo, a identidade desta cultura se constituía através de
uma perspectiva de eterno retorno, de volta e de religação com o espaço
perdido no tempo histórico colonial. Porém, uma vez estabelecida, mesmo que
por imposição colonizadora, seus dispositivos caminhavam no sentido do
restabelecimento do cotidiano e do “presente vivido”, significante do seu “ser-
estar no mundo” e da comunidade onde foi seqüestrado. Simultâneamente,
esta cultura estava no limite entre a modernidade colonial e a tradição
escravista.

Apesar da distância, a África poderia reverberar-se em signos


dessemantizados, significantes cujo sentido não estaria nele próprio, e sim a
ação dos seus agentes por impulsão da sintonia energético-cósmica. Seriam
possuidores de finalidade zero, absolutamente desinteressada, sem que o
negro deixasse de estar em alerta total naquilo que foi índice de afirmação da
tradição costumeira, enquanto evento denotador/conotador do seu telúrico
texto cultural.

Estes signos que atuavam como froças significantes, seguiram um


rastro que poderia desembocar numa constelação de significados lúdicos, onde
a vontade e o prazer saboreariam a sua realização em festividade. Isso implica
uma transgressão refletida em dois níveis, no mínimo: primeiramente porque
sua realização ao nível empírico contrastaria com eventos que ocorressem
naquele cotidiano despótico, principalmente para os escravos, pois, no caso,
este evento corresponderia a um outro código lingüístico e, portanto, a uma
outra fala, num território já delimitado pela guerra etnocida de imposição de
convenções comportamentais. Em segundo lugar, devido ao efeito catártico
sobre os agentes, na medida que ao se transpor a bipolaridade

48
objetividade/subjetividade, transpassava-se a rotina, as inculcações, as
internalizações arbitrárias...

E, nesta trilha, arremessa-se na festa, no ritual, no drama, nas


cerimônias iniciáticas – religiosas ou costumeiras - , no repertório médico-
alimentar; heranças cravadas no corpo, como memória da ancestralidade pela
tradição oral44. E mais: o fato de ser oral o canal que emite as informações
ancestrais e genéticas da comunicação duplica a afirmativa subversiva que a
festa e o lúdico cumprem. A via oral da comunicação é essencialmente
corporal, desde que entendemos o corpo como um sopro em ação –
respiração: hábito, atividade principal para o élan vital.

Entra-se em atuação na zona de tensão quando se supera o duplo


arbítrio e a dupla transgressão que a ela se referem. Duplo arbítrio? Sim.
Primeiramente, devido ao caráter inculcador que os limites da ação
estabelecem; em segundo lugar, devido à não atuação, à não participação na
definição dos códigos. Zona de limitaridade, na equilibração entre submeter-se
à transgressão ou submeter-se ao arbítrio.

Desta maneira, a Festa, o Ritual, constituir-se-iam em formas de


comunicação não-verbal, que ao realizar transgrediriam a rotina cotidiana,
imposta pelo significante despótico ao corpo produtivo que foi seqüestrado do
corpo comunitário que agora, então, na sinergia, na mandala, na energização e
na cosmocentricidade, isto é, no centramento no tempo cósmico, em faixas de
tempo regidas pelo mito, agora finalmente se configuravam. Graças à festa.
Graças ao lúdico. Graças ao jogo.

E destas atividades lúdicas, com seu discurso não-verbal


predominantemente corporal, foram forjadas as armas dos negros:
religiosidade, culinária, arte e luta, elos que se trançaram numa verdadeira rede
que, poeticamente, programou a constituição de um complexo sistema cultural
de resistência capaz de se potencializar numa sabedoria de técnicas corporais
ainda não suficientemente sistematizadas.
44
Dos Santos; 1977: 123

49
Não há dúvidas: a resistência sócio-cultural do negro foi sendo
estruturada de forma poetica não-verbal e, certamente por isso, foi difícil para
os europeus conseguir levar a cabo a destruição total e definitiva de toda
cosmogonia das civilizações das periferias do sistema mercantil.

Na transgressão lúdica pelas formas “carnavalizadoras” que foram


adotadas pela resistência negra, o corpo e o som (ritmo-sonoro) vieram
introduzir uma identidade corporal e musical que não é normal. Vigoroso centro
emissor de energias, chacra e sobretudo axé do sistema de resistência
acionado pela liberdade de seus movimentos e ritmos. Para o negro da Afro-
Diáspora o samba, o soul, o jazz, o reggae, o mambo, e entre outros a
Capoeira, são os textos que preservam os resíduos da viva transgressão que o
seu repertório de signos não-verbais vem realizando.
Corpo-movimento e som-ritmo se mesclam e daí espoca um espaço de
ludicidade em direção ao resgate do cotidiano vivido e seqüestrado pela ação
colonizadora, assegurando, simultaneamente a possibilidade de se intensificar
a sociabilidade entre os agentes do processo.

Ao imiscuir-se no Drama inscrito nos procedimentos, nas atitudes, nos


gestos, a energia terminava por se desenvolver e o resultado era
inevitavelmente a transformação de seu agente em actante, e do seu lugar, em
cenário.

As situações dramáticas que marcaram o cotidiano dos escravos


terminaram por se condensar em movimentos corporais, seja nos gestos
espontâneos ou nas rotinas corporais habitualmente executadas, pois o corpo
era a principal veículo de referência com o mundo exterior.

Os métodos utilizados pelo colonizador deram ainda mais evidência à


dimensão corporal da consciência vital, que nos negros, pelas características
da cultura africana (bem como pelos agentes sociais das sociedades), sempre
tiveram maior relevo que no Ocidente. Entende-se o corpo como sendo um
campo magnético de unificação de forças para onde convergem toda a ação

50
cotidiana e toda percepção cósmica. Isto lhe dá a característica de um sítio
arqueológico que detém, arquivado nos seus gestos e hábitos cotidianos, as
informações de situações dramáticas e dramatizadas através da força de sua
ação gestual.

Se tomarmos as atividades lúdicas desenvolvidas na África – tais como


as danças de irrigação, as danças de fertilidade, as danças religiosas, as
danças de iniciação – veremos que nelas as linguagens apontam um
determinado saber do mundo inscrito no corpo como resultado de um
determinado momento da vida cotidiana do grupo. E, neste sentido, o corpo,
nestas comunidades, cumprem um papel imediato: realizava a ação direta da
produção da presença. No Ocidente, esta ligação visível, imediata, cotidiana e
totalizadora com o corpo ficou perdida da sua História a partir de um
determinado momento.

Então, por isso mesmo, resistir implicava uma ação estratégica que
relacionava e fazia do corpo o principal ponto de referência diante do mundo
exterior. Esta ação, que é colocada especialmente através do corpo, de uma
forma não-verbal, constitui-se na expressão condensada dos movimentos que
sistematizam a ação gestual dos hábitos corporais, que podem ser entendidos
como um sentido de resistência e como um ato de rebeldia.

Resistir significava manter-se vivo e, antes de mais nada, a


necessidade de preservar-se inteiro, fisicamente íntegro, assegurando a pulsão
daquele corpo, cotidianamente massacrado pelas engrenagens da extensiva
agromanufatura exportadora.

Com ele, nele e para ele, era necessário se rebelar. Fazer do corpo o
ponto de partida e de chegada da luta. Preservar e agregar na sua única
propriedade, que era o corpo, e todavia desconhecida como tal pelo fazendeiro
escravocrata, todas as informações que impulsionassem a viabilização deste
projeto liberatório. E isto significava tornar simbólicos os planos cotidianos e
cósmicos da existência. A instância deste processo esconderia a força
dramática resultante da pulsão angular constituída pela interseção do “agir-

51
aqui” com o resgate do “constituído por lá”, como compreensão do mundo.

O Saber Corporal
A Capoeira foi uma destas saídas de emergência acionadas pelos
negros, na medida em que constitui uma resposta de recuperação da
cosmovisão que, a empiricidade do agir-fazer do espaço-tempo perdido, se
atualizava nos gestos sequenciados como verdadeiros códigos que
realimentariam as heranças de sociabilidade interpessoal e os modelos de
comportamento adotados por intermédio dos movimentos corporais, imprimidos
pelos hábitos cotidianos.

Passa o corpo a falar e a salvaguardar a memória do grupo por meio


de modulações gestuais referidas às formas de vida no tempo e no espaço de
origem. Passa o corpo a constituir o saber da comunidade e a perfazer-se
como arquivo e como arma. Passa-se a fortalecer um saber corporal.

Por fim, o que é saber corporal ? É a possibilidade de constituição de


uma enunciação em prática discursiva, que se serve dos movimentos e ações
corporais para a estruturação de seu repertório. Este repertório é a resultante
das articulações dos signos que são elaborados das vivências cotidianas ou
nelas intercambiadas.

O vórtice do processo em questão localiza-se na sincronização da


condição de se “estar-no-mundo”, em estado consciente, com a consciência da
prática corporal situada no instante cotidiano e na interconexão com a
dimensão cósmica que esta consciência institui.

Enquanto discurso, este saber se configura como uma prática que


desvanece num universo de enunciações pela via dos gestos ou dos
movimentos corporais. O saber em pauta não tem, necessariamente, que
possuir sentido, não prescinde de uma semântica. Pode ser que alguma das
enunciações seja dessematizada e seu significante flutue, levite e se realize na
condição exclusiva de tornar-se visível, prático, ativo. Este tipo de saber é
característico principalmente das civilizações primitivas e não européias, que

52
estabeleceram uma relação com seu corpo sem medição de instituições, sendo
ele mesmo a instituição maior e complementar da própria vida na comunidade:
o ser instituinte e agenciador do projeto comunitário existente.

O corpo aparece, assim, como o repositário de inumeráveis


experiências realizadas no cotidiano; como arquivo das informações que
ficaram evidenciadas por intermédio dos gestos e dos movimentos corporais. É
o corpo um arquivo não-verbal e por intermédio dele a memória comunitária é
recuperada, passando o corpo a falar e a salvaguardar a memória do grupo
através das modulações gestuais que foram possíveis de ser elaboradas.

Esta conclusão toma como parâmetro a informação retida pela


Lingüística, que nos assegura que a palavra condensa o sentimento do
momento. Este trabalho mental constitui-se no efeito tangencial produzido pela
sensação diante de um objeto.

Tomemos como hipótese a existência dessa homologia entre o plano


gestual e o plano lingüístico. Deste modo, o corpo torna-se possuidor de um
sistema de signos com o qual se procura representar e simbolizar o mundo a
partir dos gestos e movimentos corporais, bem como da energia por ele
emanada.
Na verdade, esse saber corporal assenta-se na consciência da energia
contida e emanada pelo corpo, nos seus limites e possibilidades, no equilíbrio
que busca resguardar e salvaguardar a especificidade de cada corpo; na sua
potencialidade e nas condições e capacidade para que se codifique e se
recodifique. E assim, o corpo se configura no centro de forças para onde se
dirigem e emanam as energias, as quais circulam com uma função designativa
daquilo que nas sociedades primitivas seria o significante flutuante.

Do corpo temos a erupção dos signos, que dizem da equilibração


necessária da sociedade a partir dos próprios corpos, conforme nos diz José
Gil:
“A cultura das sociedades primitivas, por oposição à maior parte das
sociedades históricas, visa a tornar possível a vida do corpo: é uma

53
cultura para o corpo. Tudo nela contribui para o equilíbrio que
salvaguarda a singularidade de cada corpo, a sua potência, a sua
capacidade para se decodificar e para se recodificar.” (Gil, 1850: 54)

A herança que os negros trazem se refere exatamente a esse tipo de


procedimento onde o corpo passa a ser entendido como um dispositivo de
poder, de identidade e de pertinência a um ou a outro grupo. A identidade é
fornecida pela inserção e, consequentemente, pela sua pertinência numa dada
comunidade por onde se espelhem as singularidades e não conforme ocorre
nas sociedades européias, onde a consciência corporal se dá de maneira
individual e, portanto, fragmentada.

Podemos imputar ao processo de constituição do modo de produção


capitalista, ou melhor, às práticas capitalistas, a introdução deste novo
procedimento em relação ao próprio corpo. Uma nova retórica para o corpo foi
estabelecida com vistas à individualização e por seu intermédio dissolveu,
gradativamente, os laços comunitários. Estes laços, arranjadores do processo
social, instalaram novas relações sociais, que implicaram na configuração de
uma rede de corpos isolados e parciais, capazes de movimentar, pela
libertação de sua energia, as engrenagens do sistema em funcionamento,
transformando-a em força de trabalho.

Desta rede constituída pelos corpos-parciais, considerados como força


de trabalho somente, surgiu um novo corpo: o corpo-produtivo. Este novo corpo
constituiu-se em nome de um Significante Supremo: o processo da civilização.
O negro, ao ter sido escravizado, foi coisificado e transformado em peça
acessória de um processo de transformação material. A denominação utilizada
inclusive era esta mesma: peça. O negro, sendo uma peça, era como uma
ferramenta descartável.

Mas, possivelmente devido aos hábitos corporais comunitários, a


resistência foi intensa por parte dos negros, no sentido de que se evitasse a
absoluta ruptura do corpo comunitário pela inserção no corpo produtivo.
Enclausurados na estrutura de castas que a ordenação social da colônia havia

54
definido, a comunicação entre os negros passou a realizar-se pela via não-
verbal. A linguagem gestual, condensadora de situações, apareceu como
instrumento capaz de propiciar o grito possível de liberdade, que inicialmente
se deu a nível individual, estruturando-se depois a nível coletivo, já que os
escravos, ao fugir das senzalas, não encontravam condições de sobreviver
sozinhos. Assim sendo, nos Quilombos existiam regras dando preferência às
chegadas em grupo.

Este grito sem som, hálito apenas, sopro proferido em energia


estimulada, significava, codificadamente, a permanência das imagens de
situações do cotidiano perdidas no tempo histórico. Isto implicava no uso
adestrado do corpo a partir do desenvolvimento de determinadas partes
através dos hábitos gestuais culturalmente processados.

É aí, então, que a Capoeira surge como um desses discursos não-


verbais, caracterizados pelas especificidades desenvolvidas pelos negros para
assegurar a sua sobrevivência, tanto na guerra como na paz.

Sua elaboração se deu como resultado da resistência articulada no


sentido de apontar uma “saída dentro do próprio sistema de coação”. Esta
saída encontrava-se no corpo, tido como principal eixo da existência cultural
africana: ou se trabalhava, ou se deixava morrer (suplício), ou então, adestraria
o corpo no sentido da libertação (práticas religiosas ou capoeira).

Um dado importante a se ressaltar diz respeito à lógica da articulação


do sistema de resistência desenvolvido pelos negros através do corpo. Vemos
que uma rede de atitudes se interpenetrava dispersivamente, embora
respondendo sempre ao mesmo objetivo: assegurar a permanência dos
códigos sócio-culturais do cotidiano de origem.

Este ato de arremessamento no cotidiano de origem lançava sempre o


negro para os momentos de corporeidadeslúdica desenvolvida na sua cultura
como instrumento de ligação e de interpretação na dimensão corporal e
cósmica do universo. Por aí se constitui a vida, pelo corpo. E por essa vereda

55
se aperfeiçoou a estratégia de sobrevivência física e cultural do negro.

Este é o nosso limite de ser. Este é o campo de nosso domínio.


Portanto, o espaço enter o eu e a porta tátil do corpo poderia ser ultrapassado,
não fossem nossos enraizamentos numa cultura de lógica distanciada da
possibilidade.

56
CAPOEIRAGEM, VADIAÇÃO, MALANDRAGEM

“O Capoeira não é aquele que sabe movimentar o


corpo, e sim o que se deixa movimentar pela alma.”

MESTRE PASTINHA
(Vicente Ferreira Pastinha)

POR QUE CAPOEIRA ?

Como tudo começou ? Olhem, tenho que confessar que antes de mais
nada, o que me empurrou foi uma impulsão, uma vontade, um querer estar ao
lado da cultura popular, de um subsistema do campo cultural ainda não
suficientemente examinado e que se mantivesse uma estreita ligação com a
rebeldia negra.
Não que isto fosse feito em nome de uma necessidade heróica de
desvelar o pano do racismo, já suficientemente identificado, embora,
infelizmente, reproduzido pelos hábitos cotidianos do conjunto da população
brasileira e pela prática de ideologia da democracia racial.
O problema, contudo, me tocou a partir de minhas próprias
experiências desde menino e das relevantes discussões sobre o corpo, que
desde o início de 70 vem assumindo uma enorme importância na conjuntura
teórica, pois, ultimamente, trouxe para a análise social o atual, o cotidiano.
Lembranças das rodas de capoeiras nas esquinas do meu subúrbio
carioca ou da exibição nas quadras da escola de samba em Ramos,
Manguinhos e Mangueira, ou das nossas brincadeiras nos finais de tarde dos
violentos verões do Rio, das plásticas movimentações com o corpo que meus
amigos de bola-de-gude sabiam fazer. Todo este painel não só me faz recordar

57
a Capoeira, como também me faz aprofundar o questionamento das razões
pelas quais não se intensificam as pesquisas a respeito das vivências
populares, principalmente aquelas em que a ludicidade adquiriu um exercício
de competência através do corpo.

Em tal universo de questões resolvo tomar uma prática de ludicidade


com o corpo que tenha se constituído num nicho de informações ou de
experiências com o corpo, de maneira que por ele se criasse um clima de
ritualização.

A escolha não foi por acaso e ficou com a Capoeira. Desta forma,
torna-se a Capoeira nosso campo empírico de investigação onde procuraria
compreender como vem sendo representado o corpo no universo simbólico dos
agentes desta prática: os capoeiras.

No meu entender, conforme já foi enunciado acima, a Capoeira seria


mais um destes eventos que se articula ao subsistema da cultura de massa e
que cada vez mais por ela é absorvida. Sua constituição se deve à
necessidade de formulação de alternativas de comunicação diante da atitude
castrativa da fala que todo dominador impõe com o objetivo de transpassar a
sua verdade, seus parâmetros lógico-cognitivos.

Da junção de gestos --bricolage gestual45 constituída--, surge um sistema


de comunicação não-verbal, que, ludicamente, serve de repositário para
específicos movimentos com o corpo, numa evidente referência ao agir fazer
no cotidiano daquele território sequestrada pelo estupro colonial derivado da
acumulação capitalista mundial impôs no século XV.

Coube ao corpo, único lugar que asseguraria, através da vida no dia-a-


dia, a herança do que foi perdido. Ganha, então, a função de arquivo e, junto
da tradição oral, constituem um manancial que cristaliza as heranças da
população afro-brasileira.

45 “Bricolage gestual ” é um conceito em constituição. Ele vem reforçar um outro: “identidade corpóreo-gestual”, bem como “esquema corporal”, tomados de empréstimo da

psicomotricidade.

58
Deste modo, a fala da capoeira emite um discurso não-verbal, um
discurso gestual que, apesar de portador de uma semântica, que é o sentido da
resistência por intermédio do estabelecimento de uma prática que reponha a
tradição, embora, portanto semantizado, ele, o discurso, se ergue como um
campo dessemantizado, subsumindo-se tanto no que Greimas chamou de
“gestualidade lúdica” ou no que José Gil de “significante flutuante”.

E este caráter se encontra exatamente na condensação de situações de


resistência enfrentadas pelos negros, mesmo que secularizados através da
variação que a Capoeira Regional Baiana construiu.

A unidade estrutural básica se mantém, que é o desmantelamento das


regras de enrijecimento do corpo através da cintura desprezada: sedução na
sedução, pois, se já consideramos como sedução a prática na medida que ela
contorna os limites estabelecidos pelo sistema colonizador, a ação da prática
também pressupõem um corpo sedutoramente seduzido aos estímulos
sedutores da sedução46.

A presente pesquisa, portanto, tem como finalidade não propriamente o


desvelamento de um sentido, mas sim, a demonstração da possibilidade de
sua constituição, permanência e reprodução através de um processo
semântico dessemantizado, se levamos em conta os universos lógico-
cognitivos daqueles que operam como sujeitos do fenômeno que aponto, qual
seja: através da ludicidade estrategicamente reposta na sociedade
brasileira.pela população negra, recuperou-se as unidades básicas
elementares da cosmovisão que montou a percepção do agir-estar no mundo
da população negra. Residualmente, estes elementos estruturais dos hábitos
cotidianos se recompuseram, adquirindo uma roupagem muito específica,
capaz de definir uma dinâmica cultural muito própria, sem, contudo, perder seu
caráter sedutor, sua sombra energética, seu aspecto predominantemente de
jogo, como que estabelecendo um permanente desafio aos obstáculos fincados

46 Ver SODRÉ; 1983: 156 e seguintes.

59
no território da existência elementar do dia-a-dia pelo colonizador.

Isto demonstra-nos que a dominação não pressupõem uma prática


monolítica, fechada, onde as brechas são inexistentes. O aproveitamento de
brechas foi a meta definida pela população negra, só que não foi por vias do
enfrentamento direto. Foi escolhido, ou melhor, foi trilhado o caminho do meio,
os interstícios: a sedução que no fundo dará na manhã, no jeitinho do jogo do
corpo, enfim, no jogo-de-cinturta. Esta seria a positividade deste
procedimento47.

Se tomamos o campo cultural da formação social brasileira,


verificaremos que inúmeros eventos culturais teriam as condições de uma
eficiente demonstração do que aqui está sendo dito, tais como o samba, o
candomblé, o tambor de crioula, o jongo, a Capoeira…

Neste caso, a corrente pesquisa elegeu a Capoeira como o evento para


expressar, estes postulados através de um exame analítico. E, para que esta
análise produza um efeito, a Capoeira será considerada uma formação
discursiva não verbalmente constituída. Sua prática então, pressupõem a
ordenação deste discurso em sub-estruturas, que incide em unidades. Desta
maneira, a Capoeira seria uma macroestrutura que configura quatro unidades
invariantes, que definem o seu sintagma e o seu paradigma. Temos então:
unidade 1, a Roda; unidade 2, o Jogo; unidade 3, o Corpo; unidade 4, o
Berimbau.

Estas unidades em sua programação se articulam na busca de um


roteiro através dos treinos que podem ser realizados nas academias ou nas
ruas. Projetadas como pontos significantes em um espaço geométrico
concêntrico que diagramasse o jogo, poderíamos, assim, indicar a seguinte
figura:

47 Na perspectiva que abraço, Foucault e Delleuze formam um campo conceitual de grande relevância e, a partir daí, acredito que poder-se-ía falar que a sabedoria dos negros estaria

nesta categoria, constituída e aperfeiçoada na sua ação corporal, que é o jeitinho.

60
RODA – UNIDADE 1

JOGO – UNIDADE 2

CORPO – UNIDADE 3

BERIMBAU – UNIDADE 4

UNIDADE 1 - A RODA

Espaço da vida cotidiana materializado pela energização condensada.


Condensação do mundo específico da comunidade, das energies que seriam
tubuladas através do espaço cósmico, canalizadas pela rítmica do berimbau e
pela energia dos corpos em movimento. Restabelecem as energias, a
atmosfera despoluída e dessemantizada do mundo criado pelo negro
escravizado como dispositivo pragmático de interação.

Neste espaço-lugar teremos uma arquitetura da energia cotidiana do


negro na África. Transubstanciação da diversidade dos códigos que
caracterizam as diferentes linguagens para cá trazidas, de dominância Bantu,
possivelmente, mas preservando o invariante da motiricidade negro-africana:
movimentação básica centrada nos quadris, daí ‘cintura solta’ ou conforme
denominação de Bimba, “cintura desprezada”. Outro aspecto é o axé: energia,
na consideração que faz a cultura nagô-yorubana, de onde vieram os negros
que majoritariamente se dirigiram para a Bahia, e lá se constituindo na cultura
negra hegemônica.

61
Esta é uma questão de ordem pragmático-transcendental-energética.
Seriam os eixos, os pontos de entroncamento, encruzilhada, chacra de entrada
da energia cósmica na sua freqüencia definida pelo berimbau, capaz de ser
assimilada de acordo com as possibilidades de domínio dos lugares vitais do
corpo, para que a sintonia cósmica se estabeleça na consciência de ser
apenas corpo no espaço em movimento.

A Roda é uma unidade do intertexto que o complexo cultural,


constituído como resistência, estabeleceu. Haveria um arede ou sub-sistema
cultural, envolvendo várias práticas ou eventos culturais. Todos eles trazem o
traço lúdico de sua realização com aspecto mais vigoroso.

Os subtextos que coexistem na Roda são as diferentes combinações


que poderiam ser traçadas por cada jogador; o arranjo conjunto que seria
possível constituir pelo duplo movimento. Cada jogo é uma frase que se
duplica após cada diálogo que é realizado. Assim, a Roda é o lugar-texto que
contém sub-textos que são os jogos compostos por frases individuais. Pauta
do texto cinético e proxêmico48 desencadeado por intermédio do Berimbau na
sua ritmada batida e que, por ele, fazem navegar, pela via do ritmo, os
incorporais, agenciadores do transe corpóreo, da energização e da eletrização
do corpo.

“Minha entrada na roda sempre me faz sentir com as minhas energias


duplicadas. Não sei direito o que, mas vou na batida com tudo. Se eu
comparar meus rendimentos durante o treino como os da entrada na
roda posso dizer que nunca, fora dela, consigo um mesmo grau de
dinamismo”
(depoimento de Luiz Renato Vieira – Mestre)

Na Roda existiria um ‘ethos místico’ que envolve a situação referida,


correspondendo a um congelamento da estrutura (macroesturtura, texto no
48
Sobre a Cinética ver BIRDWHISTELL; 1979, e sobre Proxêmica ver HALL; 1976 e HALL; 1963.

62
contexto histórico de maneira secularizada) que recria a partir do resgate dos
símbolos que condensaram diferentes momentos. Toda vez que este conjunto
de meios se conecta –e, se constitui a mandala- temos o ritual, o evento viivdo
pelo copro no tempo que a estrutura congelou por intermédio dos movimentos
cinéticos.

“Quando entro na Roda não vejo ninguém que está do lado de fora e
tudo me parece impulsivamente ordenado pelo toque do Berimbau. Sinto
uma energia tomando meu corpo”. (depoimento de Edna Regina,
professora de Educação Física e primeira Mestre de Capoeira no Brasil).

Teríamos aí que considerar a herança da cosmovisão africana, que


percebe o mundo como que tomado por um largo plano, onde se multiplicam as
energias, perpassando seu corpo. No espaço circular denominado de Roda,
temos, portanto, uma redução do mundo cósmico e dentro dela(e) poderíamos
implementar todo nosso potencial, de maneira que pudéssemos reconstruir
nossas baterias energéticas num entrelaçamento com a ancestralidade
geradora da prática e da cultura.

E, desta forma, o discurso da Capoeira é a linguagem da recuperação


das formulações de energia. Monta-se no esforço de reconecção com o mundo
apropriado pela colonização branca européia.

Esta dimensão encontra-se de fato perdida na Capoeira e constituiria o


ponto de partida de seus fundamentos filosófico. Tais caracteres estão se
perdendo desde que se intensificou o processo de academização da Capoeira,
como possibilidade única de voltar a existir depois que Getúlio Vargas permitiu
sua convivência em sociedade, porém no seu lugar devido: em recinto fechado.

Realmente fica uma pergunta: até que ponto a Roda em recinto


fechado permanece ligada à mística do resgate do cotidiano sequestrado ? Até
que ponto o próprio Mestre Bimba mantinha uma preocupação com os
fundamentos mais ancestrais da Capoeira ? Até que ponto podemos dizer que,
a partir do momento em que a Capoeira ficou enclausurada, seus fundamentos

63
não ficaram abandonados, principalmente se considerarmos que os alunos
desta nova etapa eram, principalmente em Salvador, advindos da classe média
branca, distanciada e preconceituosa diante dos elementos fundamentais da
Capoeira, que são da própria epistemologia africana ?

Mestre Pastinha, antes de morrer, afirmou em entrevista ao Jornal de


Salvador:
“O segredo da Capoeira morre comigo e com muitos outros mestres. O
que há hoje é muita acrobacia e pouca Capoeira. CAPOEIRA É
AMOROSA, NÃO É PERVERSA. Capoeira não é minha, é dos
africanos no Brasil. Um costume como qualquer outro, um hábito cortês
que criamos dentro de nós. Uma coisa vagabunda”.

Mestre Pastinha é considerado como maior guardião da Capoeira


Angola, estilo de jogo mais primitivo da Capoeira que vigorava até antes do
processo de academização. Vicente Ferreira Pastinha, nascido em 05.04.1889,
morreu aos 92 anos de idade, cego há 18 anos, em 14 de novembro de 1981.
Seus antigos alunos, a partir de sua debilidade física, foram abandonado-o a tal
ponto que o velho morreu só.

UNIDADE 2 – O JOGO E A GINGA


(A unidade é marcada sobretudo expressa pela movimentação articulada de
AVANÇO / DEFESA e ESQUIVA / ATAQUE, elementos constituintes da Ginga)

Verificamos um jogo mútuo entre espacialidade e corporeidade. Pelo


primeiro termo – espacialidade – compreendemos não a intercepção do avanço
de espaço proferido pelo outro, mas sim a construção de novos lugares pela
movimentação do corpo na busca de novos espaços.

E o espaço que se constrói no movimento do outro e por ele chama-se


Guarda. De certa maneira, este aspecto eqüivaleria à necessidade de
conquistar espaços que sejam fundantes em relação à sabedoria inscrita no

64
corpo e, portanto, capaz de circunscrever a possibilidade de exercício da
tradição e da divulgação pedagógica.

Quanto à corporeidade, verifica-se uma equivalência à capacidade de


constituição, no centro interior do próprio corpo, do centro exterior, isto é, de
toda movimentação no momento do jogo. As práticas corporais exigem uma
fundamentação, que toma reflexão do corpo como seu próprio nexo, tanto de
resistência como de identidade: isto é, tanto no nível prático como ao nível
concreto.

As características estilísticas:

Diz-se da Capoeira que ela é uma só, numa síntese permanente da


fase primitiva, que corresponde ao Jogo Angola, com a fase acadêmica,
desenvolvida no Jogo Regional.

Hoje, inclusive, desenvolveu-se a tendência que busca reduzir as


diferenças na prática da Capoeira, a partir dos jogos específicos, seja Angola,
seja Regional.

Conforme vimos anteriormente, a academização reflete a apropriação,


pelo Estado, do lugar de realização da prática desta sabedoria popular. Isto
implicou, inclusive, a reordenação do esquema corporal existente (mais relativo
à cotidianeidade africana), que na Capoeira de Jogo Angola exigia uma
rigorosidade maior. Neste jogo, os braços aparecem como ponto de apoio, bem
como pés e mãos.

No Jogo Regional, o corpo foi erguido, retirado do chão, de maneira


que se moldou à motricidade da sociedade branca baiana através do tipo de
movimento mais específico ao seu corpo.

Mas tanto num texto corporal quanto noutro, quer pela necessidade de
síntese, quer pela necessidade de resgate e manutenção da tradição, mas
duas formulações a agilidade, a velocidade, a flexibilidade e a movimentação

65
permanente através da ginga (movimentação de pé), do aú (movimento de
cabeça para baixo) e da negativa e do rolê (movimentação no chão) se
constituem em componentes estruturais do jogo49. Todos estes movimentos
giram em torno de um eixo: o corpo em circularidade.

A ginga da Regional é mais ereta, realizando seus movimentos em


torno da circularidade da Roda e da movimentação sobre os quadris. No texto
Angola esta circularidade se realiza com uma movimentação mais livre, solta e
apoiada em uma composição de movimentos assimétricos com permanentes
descidas do corpo e agachamentos através da queda dos rins, meia-lua
angola, bananeira, aú, rolê entre outros.

A movimentação deve ser compreendida como sendo a pauta que


enuncia os golpes. Dentro desta pauta, a ginga é o elemento central. É na
ginga, na movimentação permanente em busca de um equilíbrio dinâmico, que
o jogador irá constituir a singularidade do trabalho corporal, pois pela ginga se
realizam os ataques e as esquivas, isto é, pela ginga são emitidos os golpes e
constituídas as esquivas, que podem vir a ser pré-golpes, isto é, podem ser
executados com objetivo de preparar um contra-golpe.

A impressividade, o reflexo acentuado, a capacidade de concentração


na totalidade da situação realizada e a ampliação da visão periférica é o que
afirma a diferença entre a Capoeira e as demais lutas. E mais: tanto as saídas
das encurralações que um jogador força sobre o outro, bem como as entradas
que se realizam sobre a “guarda” de um sobre o outro, são improvisadas no
momento do jogo.

Os diferentes golpes e as diferentes esquivas, numa dinâmica


permanente, asseguram a constituição de um trabalho singular do jogador com
seu corpo, demonstrando durante o jogo a sua capacidade de combinar, em
atitudes reflexas, os números de cines50 que constituem as frases do jogo (os
golpes) e desta maneira, enunciando dentro dos elementos estruturais que são
49 CAPOEIRA; 1981

50 Ver BIRDWHISTELL; 1979

66
colocados como invariantes, o seu próprio jogo. Eis que surge o código
particular que seu corpo gerou através dos treinos e sua sensibilidade definiu
pela sintonia energético-cósmica através do som do berimbau. Passa pela
ginga a especialidade que diferencia a Capoeira enquanto luta-dança.

Cada jogo está moldado a partir de determinadas variações, definidas


pela ênfase no trabalho corporal e pelo interesse de cada mestre. Esta ênfase
é capaz de estruturar a linguagem específica de cada trabalho e, ao mesmo
tempo, a preocupação estratégica do mestre.

A ginga, portanto, é pauta por onde se configuram os arranjos cinéticos


das defesas e dos ataques. É ela um elemento essencial para a execução da
prática, atuando através de um efeito dissimulador da intenção. A leitura desta
intenção será feita pelo jogador através da percepção da linguagem corporal
adotada pelo adversário. A esta se chega por intermédio de um olhar fixo nos
olhos do oponente-parceiro. Sobre isto, nos diz Mestre Zulu:

“É necessário que se saiba ler as intenções embutidas no jogo


adversário”.

E assim, em termos de unidades produzidas como elementos de


facilitação da análise da Capoeira, verifica-se que é o corpo, enquanto antena
energética, a parte mais importante do jogo. Nele se constrói a movimentação,
o jogo propriamente dito. O Berimbau é outro componente importante deste
evento cultural. A ginga estabelece a pauta; o corpo estabelece o texto.

Da ginga e na ginga, dois elementos se dialetizam na sua ação: o


primeiro é a negativa: a postura, muito mais que a movimentação. Seria o
momento base móvel da ação corporal que deveria ser enunciada.
Corresponderia a “Vo” em física – ponto de partida. Enquanto situação
imobilizada na defesa, ela guarda todo dinamismo que é capaz de negar a sua
inércia e isto no contexto da própria inércia. Movimento parado, que supõe que
se possa conter energia numa defensiva e guardar a possibilidade de
expansão. A base de uma esquiva é base de um ataque, “ponto de

67
concentração e de expansão” de toda energia que circula num corpo em jogo.
Dela se sai ou a ela se volta. É a circularidade de toda a movimentação, bem
como a plástica de todo jogo que é capaz de permitir o tipo de combinatória em
pauta.

Poderia ainda relacionar a negativa como núcleo duro constituinte da


energia que é transbordada na roda: O axé, acionado pelo ritmo que o som do
Berimbau aufere. O corpo, absolvendo esta energia, transformando-a,
dinamizando-a em movimento que na sua combinação realiza a ginga, o aú, a
negativa e o rolê.

Este seria um rápido mapeamento da situação de jogo definido como


unidade do texto Capoeira.

Não entro aqui num detalhamento sobre os golpes por considerar, no


momento, como prescindível ao texto.

UNIDADE 3 – O CORPO

A conquista da dimensão energética que a roda oferece se configura


na versatilidade do corpo, na sua dinâmica mobilidade, conforme pode ser
atestado nas danças africanas, nos movimentos das práticas religiosas, sem
entrarmos nos detalhes que mostrariam tais heranças cinéticas na prática
futebolística, no remelexo das negras e mulatas etc.

Se considerarmos, portanto, o Corpo como uma das unidades da


Capoeira enquanto prática lúdica e evento cultural, poderemos afirmar que esta
é a unidade principal, pois é o equipamento de maior relevo para que a
Capoeira se realize como jogo, luta, dança e expressão da resistência étnica e
cultural.

Assim, o corpo guarda no lúdico o seu espaço de lazer. As


movimentações do corpo no jogar, juntamente com os golpes que vão sendo

68
lançados, configuram uma linguagem corporal. A gestualidade lúdica que
marca a emissão dos golpes tem no corpo o seu ponto emissor. Isto demonstra
a herança do caráter corporal que os jogos africanos procuram expressar,
através da linguagem interativa com o mundo.

O corpo negro tornou-se preparado por condicionamentos vindos da


persistência que a crescente motivação com o lúdico-cósmico imprimiu-lhes.
Em continuidade, hoje isto é realizado por meio dos movimentos exigidos na
síncope do jogo e do toque do Berimbau. Mas em geral, ao branco europeu
estes movimentos são mais difíceis de ser executados. Não que seja
impossível, mas com certeza ser-lhes-á exigido um maior tempo de treino.

Por quê ?

Se levarmos em conta a possibilidade defendida mais acima,


perceberemos o descompasso em termos de ritmos corporais. A Capoeira
Angola exige mais dos ritmos corporais, que de certa forma correspondem ao
cotidiano vivido pelos negros nas senzalas, nas fugas, no trabalho, no amor, na
vida que eles herdaram pela oralidade e pela corporeidade; até mesmo na
maneira de se utilizar o corpo, na forma de se sentir o corpo, nos
servomecanismos constituídos pelo hábito criado no condicionamento
cotidiano. Os gestos corporais, portanto, se constituíram a partir do resgate da
memória do cotidiano que o corpo consubstanciou.

Os gestos corporais foram subsumidos numa bricolage gestual, que se


realizou de maneira instintiva diante da castração da fala que a psique do
mundo colonial criou.

Conforme o próprio Mestre Pastinha nos falou: “Capoeira é o instinto


de defesa de uma raça perseguida”.

Nesta engenharia de signos não verbais em processo de geração foi


também se formando o gueto, o rizoma, a invisibilidade e a mandala da
mandinga que a memória corporal armazenava, como fonte de um programa

69
de atitudes corporais.

A rede de resistência seria caracterizada por esta trama de atitudes


corporais realizada em práticas corporais. Fazem parte da rede o Candomblé,
o Samba, o Maculelê, o Jongo e tantas outras lutas e festas. O corpo, nestas
práticas, se constitui em ponto de apoio do processo energético em
constituição. Nele se localizam as formulações nas quais a comunidade se
ajusta a fim de compensar as jornadas exaustivas que sobre o mesmo corpo,
diariamente, recaem. Dele se espera o máximo de energia, a fim de que,
catarticamente, se realize a recondução a todo o universo de ancestralidade
existente.

Em cada um desses discursos de ludicidade se coloca a atuação de


cada agente de maneira integralizada.
“O significante daquele momento vem contribuir para a manutenção de mais
um pouquinho de mim, corpo, que é perpassado por todas as energias que
circulam e que as toma como seu instrumento”.

São esses laços de intimidade com as energias que perambulam pelo


universo que os tornam campos magnéticos de força.

A idéia de campo de força anteriormente desenvolvida vem reforçar


esta expressão mais forte, que agora se constitui. Ela retém um aspecto
importante, que é o de resistir a dimensão da energia como variável, sob
qualquer ponto de vista, a fim de que possamos amplificar na realização do
trabalho intelectual, o máximo de nossa consciência e potencialidade. No
nosso caso, trata-se de uma pesquisa que pressupõe um trabalho de interação
social, onde o enunciado se encontra com a enunciação e na verdade o
princípio interador deixa de ser a “ Penso, logo existo” e passa a ser o “sinto,
danço o outro, logo existo”51.

Aquele processo de que falamos ainda há pouco diz respeito ao nível

51 SENGHOR; 1982: 76

70
da participação que o processo da relação social imprime. Se a afetividade,
conforme nos diz Leopold S. Senghor, é o elemento mais ativo do processo de
conhecimento do negro, daí temos o segundo traço de unidade. O primeiro se
relaciona ao lugar do corpo que atua como destaque: os quadris. Para nós, no
Brasil, surgiu inclusive uma categoria que classifica a capacidade de
flexibilidade diante do autoritário e militarizado cotidiano que o negro enfrenta
há séculos: ter jogo de cintura, estar pronto ! Digo autoritário e militarizado
sobretudo por que somos forçados pelas circunstâncias e contigências que
condicionam a população negra sob uma ditadura racia, que, desde os anos
noventa em um processo de transição, para uma forma de visibilização e
inclusão mais efetiva desta população.

Os dois traços – os quadris e o campo magnético de força ( força esta


que é a multiplicidade da afetividade constituída pela aproximação interativa
que os agentes negros e seus descendentes estabelecem no contato com os
outros ) – capacitam a ação estratégica corporal. Este aspecto se deve a esta
relação integralizada a que nos aludimos acima. Coração, ventre e cabeça
seriam os vértices do triângulo platônico de caracterização daquilo que seria a
base do ser humano. Entretanto é importante que se acresça ao nosso
ajuizamento, por herança da cultura africana, a consciência de se estar no
mundo.

Ludicidade e festividade são formas de entrelaçamento que


pressupõem este aspecto: afetividade integradora no processo comunicatário.
E, na trama das interrelações da comunidade, o corpo de cada agente é parte
integradora da grande rede energética para a resistência. O corpo é integrado
no Cosmo. O micro-signo e o macrossigno da relação com a vida e o mundo.
O corpo é síntese e texto desse processo eu-vida-mundo-consciência. Daí que
este argumento nos aproximar do tetraedo que Jean-Louis Barrault elaborou ao
falar da ação teatral na sua relação com a vida fundamental e sua duplicidade:

Consciência

71
cabeça

Coração Ventre

Diz ele: “Tel est le ‘satellite’ humain que va tourner dans espace le
temps de la trajectoire de sa vie”52 (8). (Assim é o satélite humano que viaja no
espaço e tempo na sua trajetória de vida). Ao comparar o corpo a um satélite e
a experiência humana a uma jornada no espaço e no tempo, como nos indica
Barrault que vê o corpo energizado em toda a sua potencialidade. Corpo
enquanto energia: acão. Corpo enquanto ritmo; movimento. Eis o campo
magnético de forças.

Este campo magnético de forças é o próprio campo da ação prática 53, o


horizonte que o cotidiano estabelece nas interrelações corporais traçadas pela
trama dos acontecimentos. Os corpos dos agentes são enunciações de um
mesmo texto. Eis a ação do homem consciente de sua intersubjetividade:
consciência do seu processo de vida enquanto vive. Estamos portando diante
de um duplo aspecto da vida.

E, neste duplo aspecto da vida, a identidade córporeo-gestual dos


negros é marcada pela movimentação dos quadris. Com facilidade, o negro e
os seus descendentes trazem como herança a mobilidade dos quadris, fato
este que já foi destacado como atentatório ao pudor, devido aos fabulosos
requebros das sambistas. Os movimentos intercalados das nádegas como
detalhes das sequenciadas oscilações de cada um dos quadris também são
executados pelos homens, conforme ficou demonstrado nas apresentações da
52
BARRAULT; s/data: 89
53
idem

72
Orquestra Afro-brasileira que percorreu o Brasil pelo Projeto Mambembão
durante os anos 80.

Em tal espetáculo, repentinamente um dos capoeiras sai do palco se


requebrando, como se não fosse mais parar. E era um dos principais jogadores
em cena. O jogo de cintura, ou jogo de quadris, é marca registrada no cotidiano
negro africano e por extensão na Afro-Diáspora. Nas danças dos Nubas fica
registrada sua característica bem como a movimentação promovida pelo ritmo
do Tchan, advindo com o Axé Music; ou nos corpos das ‘cadelas’ nos bailes
Funks e, de maneira mais evidente, nos requebros das sambistas.

Movimento dos quadris e energia dinâmica são dois elementos que


fazem o corpo do negro ser um corpo que cataliza e reverbera a força
energético-cósmica. Lembremos que estes elementos são os traços definidores
do corpo em texto na Capoeira. Estes resíduos de identidade para o interior da
comunidade, enquanto prática constituída, significa um saber produzido e
memorizado através do corpo. O corpo é signo. Para fora da comunidade a
posse desses signos de atitudes corporais implicaria em um poder: o poder de
auto-dominar os corpos.

Os signos proferidos pelo corpo resultam, portanto, de uma atividade


disciplinar de significação e simbolização do mundo, que tem seu ponto de
partida num determinado lugar, ou seja, numa dimensão por intermédio
cotidiana imediatamente sensível e perceptível pela capacidade que os
indivíduos agentes têm de se inserir nessa dimensão por intermédio da
atividade prática do trabalho. Todavia, esta via cotidiana se encontra
sobredeterminada pelo repertório lingüístico que a comunidade a que este
corpo pertence trará como background.

Tomando a classificação do corpo a partir de um signo que conjuga 3


partes como sua composição – cabeça, tronco e membros – teremos, em
verdade, o mesmo efeito platônico: uma trinaridade a partir da lógica do
triângulo (Figura A).

73
Se considerarmos o corpo negro, bem como suas heranças, nele e em
seus descendentes, além dos três elementos, temos os quadris como uma
parte de maior significância e portadora de autonomia.

Nesta linha de raciocínio teremos: cabeça, tronco, quadril e membros


(Figura B).

Os saberes referidos acima corresponderiam ao conjunto das


informações arquivadas na memória corporal. Através de uma gramática
formada pelos movimentos constituídos pelas pernas, braços, cabeça e tronco,
temos uma recriação dos movimentos enunciados nos golpes. As fases que
pontuam o jogo designarão os golpes e as demais movimentações as
intenções dos corpos em sua dinâmica no jogo na roda. Cada golpe é assim
formado por um conjunto cinético e cada unidade deste conjunto é denominada
de cine.

Por exemplo: na armada que é um movimento de ataque, isto é, um


golpe, temos um conjunto cinético que compreende um giro de cabeça com os
braços estendidos. A esse giro, vemos o tronco ser conduzido pela impulsão da
cabeça e logo em seguida da perna, que tem uma função importantíssima.
Aliás, o principal objetivo é erguê-la neste movimento rotativo do tronco e
cabeça, imprimindo-lhe velocidade, os cines estariam no quadro que o conjunto
frasal compõe; cada um dos micromovimentos de que cada golpe necessita.

74
Na seqüência dos golpes temos um enunciado, que no conjunto do
jogo na roda se configura como discurso da capoeira. Neste discurso podemos
evidenciar a presença dos esquemas corporais subtraídos do próprio cotidiano
da África, onde o jogo de cintura é uma constante movimentação corporal; uma
sintonia constante com a freqüência energética que se configura na roda e que
é canalizada na movimentação do jogo; uma reafirmação do corpo como centro
energético (emanador e fluidor); uma configuração de ação primordial que é
enunciada pelo corpo em seus agenciamentos energéticos como centro
catalizador de energias.

Outro ponto importante que também contribui para a constituição de


uma estratégia corporal54 da comunidade negra foi a sua condição de escravo,
que reforçou este elemento da consciência corporal. Vejamos a questão ao
nível dos agenciamentos econômicos na sociedade colonial.

O escravo era trabalho encarnado, na caracterização de José de


Souza Martins. A relação que se estabelecia entre o proprietário de terras e a
administração tanto melhor seria quanto maior fosse a posse de escravos.
Asseguravam os escravos, inclusive, os empréstimos bancários.

Ser humano despossuído de sua presentidade, incapaz de auto-


conhecer a si-próprio. Eis como os proprietários e a sociedade viam os negros:
“peças”. Este era seu único valor. Não eram animais; eram máquinas carnais.
Apenas corpo que contém trabalho. Seu tempo de vida era igual ao seu tempo
de trabalho. Na sociedade, o processo de distanciamento do trabalho manual
foi se intensificando e cresceu esta horripilante tendência ao academismo ou
bacharelismo – efeito da mentalidade colonizadora, que foi rigorosa no Brasil
na divisão técnica do trabalho, gerando, desde os tempos coloniais, a
dicotomia trabalho braçal / trabalho intelectual.

Ao negro coube o lugar do trabalho. E o próprio negro, por si só,


construiu seu espaço de ócio, nas “barbas” do colonizador, nas franjas do
54 Este também um outro conceito chave que está sendo testado. Seu corpo de definição não se encontra ainda estruturado. Todos estes conceitos constituídos formam um nicho que

tem no SABER CORPORAL seu cerne

75
sistema colonial. De maneira invisível, uma guerrilha foi se realizando,
aproveitando as brechas e nelas, se assentando. Aos pouquinho,
devagarzinho, se depositavam os gérmens da multiplicação. A dispersão não
constituía problema, a sintonia energético-cósmica fazia percorrer o Axé, que
como solda unia os elos da trama, de maneira a constituir a referida Rede de
Resistência.

Nesta trama fica um aspecto sui-generis com relação à estratégia


corporal, na medida em que ficava interditada a fala, significante de grande
expressividade no que diz respeito à apropriação do corpo. A fala e a língua
são os primeiros lugares (a ser) ocupados pela lógica colonialista, na guerra
que foi imposta. Entretanto, o peso do logos aristotélico reduziu toda a
preocupação colonial à dimensão da comunicação verbal. Foi aí que a
guerrilha psíquica ganhou espaço, indo se entrincheirar na fortaleza do inimigo
através do lúdico, da religião, etc. Procurou-se recriar a comunicação gestual
como alternativa ao mutismo absoluto, ao mesmo tempo que de forma sutil.

Outra barreira era construída pela presença de indivíduos das mais


variadas origens nacionais, que eram forçados a coabitar a mesmo senzala.
Portanto, o melhor canal de comunicação era o não-verbal, por onde poderiam
escoar as mensagens que permitiriam o inter-relacionamento pessoal. Da troca
de gestos surgiu também um imenso repertório gestual, cujos resíduos
sobrevivem até hoje entre os negros, marcando profundamente sua
movimentação corporal como um todo, principalmente na sua gestualidade
cotidiana.

Prova disso é a sensação que sinto quando compareço em Congressos


ou Encontros onde estejam presentes africanos. Não temos diferenças quanto
ao texto corporal, isto é, a maioria dos elementos estruturais de nossa
motricidade, ao se fazer presentes asseguram uma fruição de sentimentos.

Este corpo que deu origem à Capoeira, que é o corpo negro escravo,
era um corpo entrecortado por vários extremidades de semelhanças quanto às
características do discurso corporal:

76
1 – um ponto de identidade era a autonomia dos quadris,
caracterizando o jogo de cintura;
2 – outro ponto, a bricolage gestual, a partir da negociação que deve
ter se estabelecido para a construção de uma ordenação de sentido na sua
execução;
3 – a intimidade com os campos de força cósmica;
4 – a expectativa diante de um único projeto: a liberdade como resgate
permanente de si, e por conseguinte da comunidade.
Como herança, o jogo dos corpos resguarda como características
invariantes:
a cintura com flexibilidade, que produz a ginga;
movimentos de esquiva e defesa-ataque;
integralidade com a dimensão cósmica;
visão totalizadora, isto é, periférica.

UNIDADE 4 – O BERIMBAU

Segundo Oneyda Alvarenga, citada por Jair Moura, “a música do


Berimbau é uma atividade de energia dos lutadores e, de tal modo, se liga ao
jogo que este depende inteiramente dela e é por ela regulado”.

O Berimbau é um instrumento musical de origem africana, que se


constitui num arco musical, ancestral dos instrumentos de corda tais como a
lira, cítara, harpa, guitarras, violas e violões, violinos, violoncelos, videtas etc.

Angola deve ter sido a sua origem. A imprecisão se deve à falta de


pesquisa científica musical no continente africano e no Brasil, conforme nos
assegura Kay Shaffer55, no seu precioso levantamento de narrativas de
viajantes e cronistas na tentativa de localizar as informações que pudessem
dizer mais precisamente as origens deste instrumento. A conclusão a que se
chegou foi que “os arcos musicais africanos e brasileiros têm sido iguais em
todos os aspectos importantes, desde, ao menos, o fim do século XIX”.
55
SHAFFER; 1977

77
Pelo menos, quatro tipos de berimbau podem ser encontrados no
Brasil, segundo K. Shaffer:
a) o berimbau-de-boca: instrumento simples, que pode ser construído
na hora, usando qualquer madeira, um pedaço de cipó e uma vareta. O tocador
só precisa de uma faca para cortar as partes e tocar. Usado como divertimento
dos indivíduos;
b) o berimbau-de-barriga ou gunga: instrumento que utiliza uma cabeça
como caixa de ressonância. Precisa um pouco mais de tempo para sua
construção. Tem mais volume que o berimbau-de-boca e é usada para chamar
a atenção, para pedir esmolas, vender produtos e, finalmente, para o jogo da
Capoeira;
c) berimbau ou barimbao: instrumento de metal, importado da Europa
para divertimento individual: usado geralmente por marinheiros ou outras
pessoas. Devido ao seu alto custo não foi provável seu uso pelos escravos;
d) berimbau-de-bacia: arco musical tocado com barras cilíndricas de
metal, fixado sobre duas latas ou outros objetos semelhantes, que servem de
caixa de ressonância. Foi visto em conexão com o ato de pedir esmolas

O berimbau-de-barriga, ou Urucungo, é a principal unidade da capoeira


que junto à unidade corpo constituem o seu ponto nodal. Nestas duas unidades
existe uma permanente interação: o corpo, pela vaqueta, produz o som do
berimbau; o som e o ritmo do corpo com a energia de que falamos mais atrás.

Sua confecção é realizada com Pau-Pombo, Biriba, Pau-D’arco, Timbó


ou Ipê. Entretanto, desde o tempo da geração de mestres depois de Patinha,
biriba tem sido a madeira mais usada: antigamente era cortada na mata mas,
hoje é geralmente comprada na serraria. Seu tamanho varia de mestre para
mestre.

A descrição mais antiga que já foi feita pelo uso do berimbau foi por
Henry Koster, quando, em viagem pelo nordeste do Brasil, resolveu, depois de
observar festas afro-brasileiras, realizar um síntese descritivas:
“Os negros livres também dançavam, mas limitavam-se a pedir licença e sua
festa decorria diante de uma das suas choupanas. As danças lembravam as

78
dos negros africanos. O círculo se fechava e o tocador de viola sentava-se num
dos cantos, e começava um simples toada, acompanhada por algumas
canções favoritas, repetindo o refrão, e freqüentemente um dos versos era
improvisado e continha alusões obscenas (...) Os escravos igualmente pediam
permissão para as suas danças. Os instrumentos musicais eram extremamente
rudes. Um deles é uma espécie de tambor, formado de uma pele de carneiro
estendida sobre um tronco oco de árvore. O outro é um grande arco, com uma
corda, tendo uma meia quenga de côco no meio, ou uma pequena cabaça
amarrada. Colocam-na no abdômen e tocam a corda com o dedo ou com um
pedacinho de pau. Quando dois dias santos se sucediam, os escravos
continuam a algazarra até de madrugada”.56

Segundo o Alderico Toríbio, o berimbau serve para “dar uma mandinga


aos jogadores”. Para ele, a função do berimbau é: “ao fornecer a mandinga,
criar a ‘auto-sugestão’, adormecendo a consciência do lutador, ativando seus
reflexos, multiplicando até o fim suas energias ao som repinicado”. Isto implica
em que os jogadores realizem um ato com caráter místico antes de iniciar o
jogo, agachando-se ao pé do berimbau e se benzendo pois, agindo assim, se
“evoca o capoeira seus orixás : Ogum e Xangô”.

E diz mais: “berimbau só presta quando o pau for recolhido numa noite
de escuridão, por sujeito de coragem; se não for assim, o pau quebra no meio
da brincadeira”.

Vê-se que existe toda uma mística em torno do berimbau, o que reforça
sua função sintagmática com o corpo, unidade com a qual estabelece uma
relação de associação e de definição do próprio caráter do evento. O ritmo
produzido pela batida da vaqueta na corda, bem como pelo ato de aproximar
ou afastar a cabeça da barriga do tocador gera um clima de ritual onde se
configura a sintonia energético-cósmica que no corpo do jogador encontrará
seu terminal.

56
Extraída de REGO; 1968: 71

79
A idéia transmitida pelo Mestre e que caracteriza este som como “auto-
sugestão” é bem denotativa deste traço místico que a mandala enuncia por
intermédio da roda. Assim, o berimbau cria a mandinga, a manha e a trama
energética que caracteriza a cinética corporal do jogo da Capoeira.

Entretanto, a presença do berimbau nas rodas de Capoeira data do


século XIX, não se tendo notícia de sua existência antes deste período.

O berimbau é o emanador da energia, da rítmica que conduz o corpo na


dimensão cósmica por intermédio da vibração que os corpos deixam
transparecer. Desta forma, seus reflexos ficam suficientemente ativos e com
isto só temos um corpo em plena consciência em ação.

Ainda segundo Alderico Toríbio “Capoeira não se joga a seco, é preciso


mandinga para se pular; é a mandinga quem dá é o berimbau (e as chulas)”.

Enfim, poderia coligir uma infinidade de outras declarações que


atestariam a função emulente do berimbau como bateria energética e núcleo
ativador da mandinga da mandala que capacita os corpos com uma
descomunal e excitante energia, a ponto de permitir que o jogador fique horas
na “vadiação”, sem entretanto, sentir o tempo passar.

Para finalizar, Leopold Sédar Senghor sobre a relação que o negro


estabelece, fisiologicamente, com a energia psíquica ou radial, na conceituação
de Teilhard de Chardin:
“(...) o Negro (...) reage assim mais fielmente à excitação do objeto: casa-se
com o ritmo deste. Esse sentido carnal do ritmo – o do movimento, das formas
e das cores – é uma das características que lhes são específicas, pois o ritmo
é a essência mesmo de energia. É ele que está na base da imitação, que tem
um papel determinante na ‘atividade criativa’ do homem: na memória, na
linguagem, na arte” 57.

57
SENGHOR; op. cit. 75

80
ESBOÇO DE HISTÓRIA DA CAPOEIRA

A existência da Capoeira vem desde os Quilombos, tendo se formado


como arma da luta de guerrilha empreendida pelos negros para que
conseguissem sobreviver e ultrapassar as péssimas condições que a
escravidão lhes impingia. O seu desenvolvimento, enquanto tática e arma de
guerra, deve ter sido marcado pela constante observação dos animais que
constituem a fauna brasileira, tais como o macaco, a onça, a raposa e a
aranha58.

Como base no comportamento de cada um desses animais, os negros


constituíram um esquema de atitudes e comportamentos. Foi através desse
esquema que soldaram um conjunto de atitudes realizadas em gestos, que a
partir de um determinado roteiro deram no modelo combinatório elementar que
num determinado momento pôde ser ativado.

Este roteiro era perfeitamente adaptável ao que viesse. A intuição


deveria ser o ponto forte, pois o contexto era imprevisível. Portanto, o negro
deveria ficar “antenado” cosmicamente, de maneira a poder reagir a toda e
qualquer situação, sem perder-se dentro dela. Assim, a Capoeira veio se
constituindo num discurso de guerra, cuja função era garantir as possibilidades
de resistência dos corpos que foram transladados para uma terra estranha e
desconhecida.

Sabe-se de sua existência desde o final do século XVII, e do Berimbau


tem-se retrato dos fins do século XVII, conforme quadro de Vendedor
Ambulante com Berimbau, de Joaquim C. Guillobel, na coleção de Paul Geyer.
Mas a informação mais precisa que se tem até hoje foi fornecida pela famosa
pintura de Johann Moritz Rugendas, de 1835, cujo título é JOGAR CAPOEIRA
ou DANSE DE LA GUERRA. Nela estão presentes dois negros, numa roda
formada por cerca de dez outros negros. Um deles está sentado com um

58
SENNA;1978; LONSDALE;1981

81
tambor do tipo repinique entre as pernas ( igual aos que hoje são utilizados nos
solos de percussão nas baterias de escola de samba ). Não se tem a presença
do berimbau.

O século XIX é um momento de nossa História marcado por grandes


transformações. De início, podemos falar da perda de poder do Nordeste em
virtude do declínio da atividade açucareira, principalmente depois do
surgimento da produção de açúcar de beterraba na Europa, que constituiu uma
alternativa napoleônica ao açúcar antilhano, produzido pelos ingleses, e ao
açúcar brasileiro, produzido pelos portugueses. Por outro lado, com a
exploração das minas de ouro e diamantes nas “Gerais”, certamente começava
o Sudeste a crescer em sua importância. É um fato importante também a
ampliação permanente das fazendas de café no Rio de Janeiro, que lá pela
segunda metade do século mostrou seu efeito e importância a nível
internacional.

A vida urbana, a partir do final do século XVIII e início do século XIX,


começou a aumentar. Nos grandes centros, como em Salvador e no Rio de
Janeiro, a população começou a crescer, bem como a presença de negros
escravos e alforriados. E, demograficamente falando, houve uma progressão
geométrica do crescimento qualitativo da população no período em foco,
segundo o historiador da escravidão, Décio Freitas59, a população do Brasil, no
período de 1818 a 1888, sofreu um incremento de 310%, ao passo que a
população escrava cresceu 5%. Isso havia se desencadeado no século XIX,
acentuando-se principalmente a partir de 1850, com a extinção do tráfico
negreiro, um processo de desescravidão60.

No Nordeste, onde o processo foi mais rápido devido à decadência da


agromanufatura açucareira, o escravo foi sendo substituído pelo trabalhador
não-escravo, o morador61, dono de seus instrumentos de trabalho: é o chamado
caboclo. Os negros foram aos poucos sendo liberados e deslocaram-se para
as cidades, por elas perambulando e ocupando a sua periferia; produzindo os
59
FREITAS; 1982: 101
60
ib. idem: 96 – 100
61
ib. idem: 101

82
seus espaços nos limites dos terrenos da “urb” que nascia com o quilombo ou a
moradia. Novas ocupações começaram nesse século XIX a surgir para os
negros nesses grandes centros. Passaram a ser carregadores, vendedores de
bugigangas – escravos do ganho – peixeiros, alfaiates e até prestadores de
serviços de segurança ao proprietário de terras, no final do século, conforme
demonstraram as Maltas de capoeiristas, que realizavam estes trabalhos.

E foi neste crescimento da cidade, da formação da população brasileira,


que a Capoeira apareceu como expressão da própria resistência do negro. A
própria desecravização demonstrava a inércia do escravismo, fato que foi
desde o século XVIII anunciado. Mas também mostrava o destino que estava
reservado para o negro: a luta permanente por sua sobrevivência. Teria que
lutar sempre, mas sem perder a manha e a malícia que a memória quilombola
lhe deixara. Entretanto, o enfrentamento com a sociedade branca colonial foi
por vezes inevitável.

Exemplo nesse nível são as revoltas escravas em Salvador, no século


XIX, verdadeiras demonstrações de continuada resistência. E assim, Nagôs,
Malês, Haussás, que, entre 1807 e 1835, em Salvador, realizaram as primeiras
revoltas em centros urbanos, coisa até então inédita na Afroamérica, já que as
revoltas escravas de que se tem notícia ocorreram sempre em áreas rurais62.

O ponto alto delas foi a fase final da década de 20 e início da década de


30. Nesse momento, também o Brasil encontrava-se numa fase muito
definitiva, pois por aí rolavam as questões em torno de sua nova situação: era
um país com fachada política independente e por isso mesmo tinha que resistir
às pressões que eram feitas sobre a figura de seu chefe político, o Imperador
D. Pedro. O reconhecimento da Independência pela Inglaterra já foi um
resultado de pressões no caso, elas diziam respeito à extinção da escravidão
como preço a ser pago pelo reconhecimento. Os proprietários de terra não
ficaram satisfeitos com a submissão de D. Pedro, que ao ceder aos ingleses
criou condições para os proprietários se organizassem contra eles. Deve-se

62
FREITAS; 1976

83
acrescer, também, o envolvimento de D. Pedro com o processo sucessório
entre os descendentes de seu pai ao trono português. Por fim, estes fatos
aliaram-se a outros, que vieram desaguar na pressão dos proprietários, através
dos militares, para que renunciasse ao trono.

1831, ABDICAÇÃO ! e também a confirmação do poder dos


proprietários de terra; do exército a seu serviço; do latifúndio e também do
escravismo, pois ficou adiada a suspensão do tráfico negreiro até 1850,
quando foi promulgada Lei que o reabilitou.

E então, esse momento das décadas de 20 e 30 do século XIX


(coincidentemente do século XX também) foi marcante para o perfil social do
país daí para frente. Era necessário que novos dispositivos fossem acionados
para que se constituíssem um aparato jurídico que protegesse os proprietários
de terras e os moradores urbanos, de uma maneira geral, contra os negros
(libertos ou escravos ). As citadas revoltas negras de Salvador vieram
chamar profundamente a atenção dos responsáveis pela justiça, datando daí o
estabelecimento de castigos corporais para os negros que fossem presos em
virtude de praticar a Capoeira.

O período foi também muito abalado pelo crescimento da pressão


sobre a escravidão por parte de alguns setores que eram contrários a uma
repressão exaustiva aos momentos de lazer e festividade que dentro das
fazendas, e mesmo dentro das áreas urbanas, os escravos realizavam. Eram
quando mais fervilhavam os anseios e a vontade de liberdade. Aí, nesses
momentos, eram forjadas as conspirações, que nunca deixaram de alimentar a
utopia de liberdade a que o negro aspirava.

E os capoeiras estavam sempre presentes nos momentos de rebeldia


dentro da cidade, bem como nos momentos de fuga das senzalas e na
proteção aos quilombos, marcando sempre, com sua presença, à maneira das
camadas subalternas, o processo histórico no Brasil, como por exemplo na
chegada de D. João VI, quando houve o famoso desalojamento da população
para que surgisse habitações para a Família Real. Descontente, a população

84
saiu as ruas, com os Capoeiras à frente, derrubando os guardas reais. Da
mesma maneira faziam nas revoltas negras baianas, enfrentando e derrubando
aqueles que prendiam alguns de seus companheiros.

Uma carta datada de 31 de outubro de 1821 fez-se Portaria ao ser


assinada pelo Ministro da Guerra, General Carlos Frederico de Paula, e
Nicolau Viegas de Proença. Estabeleceria a referida Portaria os castigos
corporais como os AÇOITES, BOLOS DE PALMATÓRIA, EXPOSIÇÃO
PÚBLICA NO TRONCO ETC. para os Capoeiras.

Entretanto, na Guerra do Paraguai, foi formado um batalhão de libertos


com a finalidade de servir de linha de frente na guerra, atuando como
“fuzileiros” navais, que com sua memória guerrilheira e quilombola poderiam,
conforme fizeram realmente, desarticular as defesas paraguaias. Foi famosa a
atuação desses negros, que inclusive ganharam denominação própria:
BATALHÃO DOS ZUAVOS.

Mas a grande desarticulação da Capoeira deu-se com a publicação do


Código Penal de 1890, através do Decreto-Lei 487:
ARTIGO 402: Fazer nas ruas ou praças públicas exercícios de
agilidade e corporal conhecidos pela denominação de Capoeiragem:
pena de dois a seis meses de reclusão.
PARÁGRAFO ÚNICO: É considerada circunstância agravante
pertencer a capoeira a alguma Banda ou Malta. Aos chefes, ou
cabeças, impõem-se pena em dobro.
ARTIGO 403: No caso de reincidência, será aplicada ao capoeira, no
grau máximo, a pena do art. 400 (reclusão por 3 anos, em Colônias
Penais ou Presídios Militares na Fronteira).

Daí em diante as coisas só pioraram para os Capoeiras que foram


duramente perseguidos, desde que nomearam Sampaio Ferraz Chefe da
Polícia do Rio de Janeiro, com o nítido interesse de eliminar de vez a Capoeira.

Afinal, a organização que os Capoeiras mantiveram durante séculos já

85
assustava profundamente o Governo Provisório, principalmente diante dos
crescentes serviços que as Maltas de capoeiras prestavam aos proprietários de
terras ao controlar, ou mesmo fraudular, as eleições do cabresto.

Cada Malta tinha seu próprio nome, tais como: Três cachos (Freguesia
de Santa Rita); Cadeira da Senhora (Freguesia do Santana); Franciscano (São
Francisco de Paula); Flor da Gente (Glória); Espada (Lapa); Guaiamum
(Cidade Nova e mais zona circunjacente ao Largo da Carioca); Luzitanos
(Santa Luzia); Santo Inácio (Castelo); Monturo (Praia de Santa Luzia); Dança
(São Jorge); Flor de Uva (Santa Rita), entre outras.

Mas sem dúvida, as mais conhecidas eram as dos Guaiamuns e a dos


Nagôs (absolutos na Lapa, inclusive Mata Cavalos, hoje Riachuelo, mais a
região da Glória, Catete e adjacências. Raimundo Lapa, tenete da Guarda
Nacional, era um dos principais líderes. Manduca da Praia era o principal líder
dos Guaiamuns.

Sobre essas Maltas caíram todos os dispositivos de repressão


possíveis de existir, para combater os Capoeiras. E neste sentido, o Chefe de
Polícia ficou também famoso pelos instrumentos desenvolvidos, como por
exemplo o ‘teste do limão’ e os chicotes de três metros que seus soldados
utilizavam para os combates.

O primeiro consistia em fazer passar um limão pela barra da calça,


junto aos sapatos. ”Caso o limão não passasse, o homem era preso por um
bom tempo”. Isso acontecia porque o Capoeira utilizava-se de um traje bem
característico, principalmente aqueles que faziam partes dos Maltas. Segundo
Mello Moraes Filho, ele usava “calças largas, paletó saco desabotoado, camisa
de cor, gravata de manta e anel corrediço, colete sem gola, botina de bico
estreito e revirado e chapéu de feltro. Seu andar é(ra) oscilante, gingado e na
conversa com os companheiros guarda(va) distância, como em posição de
defesa”. E acima de tudo o brinco na orelha, sinal de valentia ou, por que não,
a marca guerreira, herança africana.

86
O capoeira usava uma calça chamada “boca de choro”, que tinha três
barras e não excedia a 16 cm de largura da bainha. Isso para evitar navalhada
profunda na perna durante o transcorrer de uma briga. “O lutador poderia ficar
por baixo que a calça permanecia no lugar”. E deste modo, a atividade de
Sampaio Ferraz, enviado de Campos Sales, Ministro da Justiça na época, foi
incansável, visando ao extermínio da Capoeiragem e dos Capoeiras. Os que
eram presos, eram conduzidos à Ilha de Fernando de Noronha, Ilha Grande e
Fortaleza de Santa Cruz, ou então deportados para Mato Grosso ou Goiás. Os
que conseguiam fugir refugiavam-se na Ilha da Maré, na Bahia de Todos os
Santos.

A maior façanha desse delegado, no entanto, foi mandar prender


Manduca da Praia, líder dos Guaiamuns, e Juca Reis, filho do Conde de
Matosinhos, dono do Jornal “O País”, ambos famosos Capoeiras. Neste caso,
ficou um exemplo de que a Capoeiragem não era coisa exclusivamente de
marginais. Está claro que esta visão estava repleta de estigmações herdadas
do período escravista. Também eram capoeiras membros da própria classe
média, pois transcendia o aspecto meramente sócio-econômico desde então.
Outros componentes se apresentavam como constituintes de um novo universo
de valores e de identidade que estava se formando.

Este já era um índice de que a Capoeira ingressava nos nossos


costumes cotidianos, pois até meninos mimetizavam as atitudes dos
Capoeiras, como no ato de botar um boné à banda e caminhar gingando. E
muitos garotos iam à frente das Maltas, na hora de seus ataques a bairros
inimigos. Eram esses meninos, conhecidos como “caxinguelês”, que
realizavam os exercícios preparatórios nos combates de rua que os Capoeiras
travavam.

Daí em diante, a tendência foi o desaparecimento dos Capoeiras. A


redução foi grande: vários presos. Reapareceram alguns na Revolta da Vacina,
em 1904, e depois na Revolta da Chibata, em 1910 – motim negro na Marinha
contra o suplício e a tortura ainda existentes na Armada, vestícios da
mentalidade aristocrática escravista (não nos esqueçamos que grande parte

87
dos filhos dos coronéis iam para a Armada levando consigo um estigma com
relação ao negro, devido à própria presença escrava no seu cotidiano).

A República Velha não conseguiu ter uma retórica própria do corpo.


Seu discurso dava continuidade ao discurso escravista, onde os corpos eram
predominantemente “trabalho encarnado”, “coisa”, “mercadoria”, com os quais
se ajustam prazeres, saberes através de um mandante exterior a eles. Além
disso, e apesar desse aspecto, também é desse período o desmantelamento
das instituições negras. Primeiro por Rui Barbosa, que ao pretender apagar a
mancha negra da escravidão, mandou eliminar toda documentação relativa ao
tráfego negreiro.

Na verdade, o que ele pretendia, era apagar todas as dívidas de


indenização que a nascente República possuía para com os proprietários de
terras, tendo em vista que para a libertação dos escravos foi firmado um acordo
com os proprietários, estabelecendo que estes receberiam uma indenização
por cada negro liberto. Só que tal compromisso havia sido firmado na fase
Imperial, quando da proclamação da Lei Áurea. Com a proclamação da
República, Rui Barbosa, Ministro da Justiça, imediatamente eliminou essa
possibilidade, decretando a queima dos documentos para a “purificação da
alma brasileira”, eliminando-se, desta forma, o seu passado negro.

Em seguida, a proibição da Capoeira e dos cultos africanos veio


marcar mais um passo na desfiguração da memória deste país, pois atacava-
se os núcleos de resistência que haviam se constituídos como formas
alternativas ao seqüestro colonialista que fora realizado. A existência de uma
estratégia anti-negra de embranquecimento era visível. Certamente devido à
presença de imigrantes cada vez mais acentuada e à crescente situação das
cidades, que contava com um número cada vez maior de negros libertos e
famintos. Esta imagem devia aterrorizar os que chegavam ao Brasil por
impulso da imigração.

Há ainda um outro aspecto importante, que foi a participação das


Maltas de Capoeira no movimento abolicionista e, por isso, nos movimentos

88
anti-republicanos, como gratidão à libertação da escravidão pela monarquia.
Este é um fato, entre tantos outros que foram enunciados anteriormente, que
ainda não conta com explicações suficientemente claras à sua compreensão.
Como se desenvolveu a tendência monarquista entre negros libertos ? Com
que instrumentos organizavam a luta anti-república ? Quem se ligava aos
negros nessa luta ? Como se relacionavam capoeiristas e abolicionistas ?

Entretanto, os problemas relativos à constituição de uma base de apoio


governamental não chegaram a ser um problema para a República Nova. A
partir de Getúlio Vargas, mais precisamente em 1937, isto é, a partir da
instalação do Estado Novo, a Capoeira voltou a existir sem a perseguição de
outrora. Vargas reabilitou a Capoeira, derrubando o Decreto-Lei 487 e
assegurando sua existência em “espaços fechados”. Aí estava a diferença: o
controle institucional passava a existir em troca de sua legalidade. Todavia,
paralelamente a esta medida, Getúlio Vargas colocava na ilegalidade a Frente
Negra Brasileira, primeira forma legal de organização dos negros no período
republicano, da qual faziam parte milhares de negros63. Com esta atitude,
Getúlio deixou a marca indelével de sua postura bonapartista que caracteriza a
política do “toma lá, dá cá”.

A finalidade de legalização da Capoeira foi a de permitir a constituição


de um campo de apoio à política de uniformização social que o Estado Novo
implementaria. Essa fase (1937/1945) foi de fato o momento de planificação e
de constituição dos mecanismos de controle e planejamento social a partir da
intervenção do Estado, que passou a subtrair da sociedade civil as
responsabilidades quanto à mobilização e ordenação social.

Diferentemente da República dos Coronéis, a República de Vargas foi


subsidiada por uma retórica do corpo. Este discurso está marcado pela política
desportiva e pela proposta de formação do professor de Educação Física. O
momento era muito propício, pois uma sociedade que se pretende auto-
regulada, sob controle, deve preocupar-se com a disciplina dos corpos que

63
O mais substancial trabalho a respeito ainda é FERNANDES; 1978: 46

89
nela atuam. A classe trabalhadora foi alvo dessa política de constituição de
corpos disciplinados, capazes de sustentar a nova etapa em que o Brasil
entrava e, ao mesmo tempo, forjar o Homem Brasileiro da seiva deste esforço.

Estabeleceu-se uma gigantesca mobilização neste sentido, com a


finalidade de estabelecer as demarcações necessárias para a nova regulação
que o capitalismo planejado com intervenção estatal pressupunha.

A Educação Física surgia assim com o discurso de corpos e espíritos


disciplinados, onde o professor de Educação Física atuava como o vigilante e o
controlador desses corpos. Nesse projeto a metodologia de ginástica francesa
se fundia aos discursos nacionalistas, fundando um caminho
caracteristicamente militar na Educação Física no Brasil64.

Novos espaços e novas instituições foram favorecidas para o


crescimento e desenvolvimento dessa política. E essa nova retórica trazia a
proposta de um novo tempo para os corpos. Não se tratava mais de supliciá-
los, mas sim de formá-los adequadamente. Estava em superação a
mentalidade agrário-escravista e em seu lugar emergiam formulações mais
compatíveis com o tempo urbano-industrial.

Michel Foucault, numa análise em que se refere à industrialização da


Inglaterra e França, diz o seguinte:
“Ao contrário, a sociedade moderna que se forma no século XIX é, no fundo,
indiferente ou relativamente indiferente à pertinência espacial dos indivíduos;
ela não se interessa pelo controle espacial dos indivíduos na forma de sua
pertinência a uma terra, a um lugar, mas simplesmente na medida em que tem
necessidade de que os homens coloquem à sua disposição o seu tempo. É
preciso que o tempo dos homens seja oferecido ao aparelho de produção; que
o aparelho possa utilizar o tempo de vida, o tempo existência. É por isto desta
forma que o controle se exerce. São necessárias duas coisas para que se
forme a sociedade industrial. Por um lado, é preciso que o tempo dos homens
seja colocado no mercado oferecido aos que querem comprar, e comprá-los
64
LIMA; 1979: 29 – 37

90
em troca de um salário; e é preciso, por outro lado, que este tempo do homem
seja transformado em tempo de trabalho. É por isso que em uma série de
instituições encontramos o problema e as técnicas da extração máxima de
tempo”65.

E, além disso, deve o corpo ser formado, qualificado como capaz de


adquirir aptidões, trabalhar. Corrige-se o corpo do século XIX, supliciado,
torturado e depauperado. Construa-se um novo corpo no século XX: corrigido,
preparado, formado.

Sendo assim, a Educação Física nesse período do Estado Novo se


constituía naquilo que M. Foucault denominava de capilaridades do poder66,
com o objetivo de disciplinar nas sociedades as massas trabalhadoras,
principalmente, constituindo-se o rizoma de um saber corporal institucional.

Com fim da proibição, a Capoeira pôde novamente existir, mas só em


academias, quer dizer, teve que sair dos espaços livres, que eram as ruas e
submeter-se aos espaços predeterminados, com Alvará e tudo que a disciplina
requer como coisa legalizada e institucionalizada. Contava a Capoeira, para
esse momento de re-interação na Sociedade, com as duas mais expressivas
figuras história: de um lado, Manuel dos Reis Machado, o Mestre Bimba (1909–
1974) e, de outro, com Vicente Ferreira, o Mestre Pastinha (1889-1981).

Mestre Bimba foi o principal responsável pela difusão da Capoeira que


existe hoje nas academias, pois somou a abertura que o Estado oferecia à sua
destreza e depuração técnica, conseguindo realizar a fusão da Capoeira
primitiva, chamada Angola, com seu jogo lento, rasteiro, onde entravam muita
malícia e velocidade aos movimentos e golpes de savate, do jiu-jitsu e do
catch. Desta fusão surgiu o que ele denominou de Capoeira Regional Baiana.

A Capoeira Regional melhor se adequa ao processo de

65
Extraído de LIMA; op. cit: 53
66
ib. idem: 28

91
embranquecimento por que passava a sociedade brasileira, já que permitia
uma melhor participação do branco, menos flexível ( com “junta dura”,
conforme Bimba dizia ) e portanto com mais dificuldade para a execução dos
movimentos que são exigidos no jogo Angola.

A sistematização que Bimba desenvolveu imprimiu tal dinâmica à


Capoeira, que em 1953 obteve de Getúlio Vargas o cumprimento pelo
desenvolvimento de uma contribuição sem par para a Educação Física e que,
pela sua origem, deveria ser considerada luta nacional brasileira. Praticamente
tornou-se um hábito seu exercício, a ponto de Bimba levar a Capoeira ao
Governador Juracy Magalhães, dando-lhes aulas ( e também aos seus guarda-
costas ).

O Mestre Bimba foi o criador da Academia Centro de Cultura Física


Regional da Bahia. As mudanças introduzidas por Bimba vieram dar numa
sistematização empírica que gerou o sistema da graduação, adotado a partir de
1972, quando a Confederação Brasileira de Pugilismo reconheceu a Capoeira
como esporte, deixando de ser uma mera manifestação folclórica.

Mas o grande impulso que a Capoeira obteve deu-se através do I


Simpósio de Capoeira, realizado em 27.08.1968. Dele participaram o Ministro
João Lira Filho, Valdemar Areno, Alberto de La Torre de Faria, Renato de
Almeida, Edson Carneiro, André Luís Lacê Lopes, Dr. Decánio e o Capitão
Lamartine Pereira. E nessa mesma década, 1961, a Polícia Militar do Rio de
Janeiro passou a adotar a Capoeira como instrumento de defesa pessoal.

A partir dessa sistematização sugerida por Bimba, desenvolveu-se um


sistema de graduação, isto é, um sistema de hierarquias que superou a antiga
classificação de aprendiz e mestre existente, por exemplo, no jogo de Angola.
Entretanto, não foi possível o desenvolvimento de um ponto em comum entre
todos os capoeiras quanto a este aspecto, tanto assim que existem várias
formulações de graduação.

O fato é que a Capoeira, apesar dos pontos de unidades que estão

92
marcados no que lhe é próprio pelo jogo estabelecido, ainda não conseguiu
realizar uma sistemática a nível nacional, por mais que o Mestre Bimba tenha
contribuído para a realização desse processo.

Por outro lado, a fixação quase única e exclusiva durante muito tempo
naquilo que constituía a Capoeira Regional fez que aumentasse o
distanciamento de suas raízes mais primitivas, ortodoxamente preservadas
pelo Mestre Pastinha, na sua filosófica e cortês proposta da Capoeira como
jogo de Angola.

Hoje a Capoeira se encontra distanciada do seu lado mais místico e


filosófico, mais ortodoxo e tradicional, mais distante dos aspectos que lhe dão
característica de uma herança guerreira africana desenvolvida como arma de
combate e como arquivo da resistência coletiva. A sua vinculação com a
Federação Brasileira de Pugilismo de fato comprometeu profundamente este
aspecto.

Segundo Mestre Tabosa, tradicional em Brasília, a formação dos


Mestres e os Campeonatos são profundamente descaracterizadores deste lado
da Capoeira. “O conceito de mestre”, diz ele, deveria ser relativizado, pois os
que se encontram hoje à frente da Capoeira são muito jovens e ainda não
condensaram toda sua experiência no sentido da unificação da Capoeira como
síntese mais geral. Isto implicaria numa busca do elo perdido que se encontra
sem dúvida nenhuma no jogo da Angola. Mestre Bimba, responsável pela
própria diferenciação, era exímio angoleiro, por exemplo”.
“Quanto aos campeonatos”, continua Tabosa, “não deveriam existir. O que
deveria ser incentivado são os intercâmbios e não as competições, que se
desenvolveriam através de Encontros Oficiais, com a finalidade de realização
de seminários. A competição contribui de forma destrutiva do aspecto
confraternizador da Capoeira, capaz de aproximar elementos que se
encontram mais distantes no campo da Capoeira”.

E complementa: “Existiria, assim, duas formas de competição: a


competição olímpica, desenvolvida pela sociedade contemporânea, e a

93
competição natural. A primeira não possibilita a demonstração da destreza da
Capoeira, que cai de uma rasteira, desdobrando a queda em outro movimento
ou até mesmo no reverso, isto é, num contra-golpe. A segunda é realizada de
forma natural e resolvida no próprio jogo”.

Mas mesmo assim, com muitos obstáculos, no final de 1984, o Brasil, e


especialmente o Rio de Janeiro, pôde de novo assistir ao virtuosismo de
nossos corpos a partir da motricidade que cotidianamente desenvolvemos. É
que se organizou sob a coordenação do Mestre Camisa, do Rio de Janeiro, no
Circo Voador, o I Encontro de Arte de Capoeira. Grandioso espetáculo, que se
estendeu por 7 dias, de 26 de novembro a 2 de dezembro. O objetivo principal
foi exatamente promover o intercâmbio da Arte e resgatar o elo perdido da luta:
a filosofia afro-brasileira do jogo de Angola.

Um passo importante foi dado no sentido de se construir a identidade


nacional a partir das manifestações de nossa cultura, que são capazes de
conservar viva a alma teimosa, renitente, manhosa e resistente da rebeldia de
nosso povo na sua permanente luta pela construção da liberdade. A Capoeira
participa de forma decisiva na construção de uma nova retórica para os corpos,
nesta etapa da redescoberta do corpo que o homem no planeta e os indivíduos
em sociedade estão realizando.

Nesta nova etapa política que se abre no Brasil, sem dúvida que os
projetos de identidade nacional, de amálgama da Educação e Cultura serão
desengavetados. Que os Capoeiras se preparem, pois teremos um grande jogo
a se realizar nesta roda que o mundo dá na vida de todos nós, brasileiros a se
emancipar.

E acima de tudo mostrar que nenhum poder é monolítico, pois a


História da Capoeira mostra como é possível resistir, rebelar-se da maneira
mais sedutora possível, sem traumatismo. Tudo é questão de jeito de corpo,
um jogo de cintura, um jeito de ser...

94
95
PROSPECTIVA

“A degradação do ensino que sofremos e a facilidade


paralela do diploma universitário entre nós levam a esta
conclusão lógico-paradoxal: formamos bacharéis que são
estranhos à carreira em que se diplomaram como seria um
visigodo no senado romano. Mais explicitamente: o
prestígio do diploma entre nós resulta de se acreditar que
ele facilitará a ascensão social. Como no entanto tais
cursos se modelam a partir da imagem da ‘cultura
superior’, camadas significativas da sociedade abandonam
suas prévias identificações culturais – o crente na
macumba ou em religiões sincréticas recalca, disfarça ou
nega sua fidelidade ao culto, o curandeiro teme que seja
divulgado seu conhecimento das mezinhas e das ervas
medicinais - e procura se familiarizar com a linguagem do
‘senado romano’. Como isto entretanto leva tempo e o
próprio curso universitário exige pouco, criam-se doutores
brancos que nem se embranquecem, nem mantêm sua
outra identificação. Conclui-se mal, diante de tal caso, ao
se dizer como se tornou freqüente que cada vez os
diplomados dominem menos o português. A questão vai
além do mero aprendizado da língua. O problema, como
aquela hipótese se nos permite ver, é de orientação no
interior de uma cultura. Melhor dito, de orfandade no
interior das culturas compreendidas pela sociedade
brasileira.”

LUIZ COSTA LIMA

96
E este jogo do jeito, não mais que de repente, me fez pensar na
possibilidade de associação de categorias do pensamento brasileiro, que
fossem mais abrangentes e mais freqüentes no universo de signos que
caracterizam o discurso expressado no cotidiano dramático deste nossa
morada transcontinental.

E, por este caminho, procurei me aproximar de um maior


esclarecimento no campo da própria prática, a fim de buscar desenvolver as
seguintes questões: como o pensamento se realiza em ações corporais ?
Como é possível transmutar uma determinada visão do mundo em ação
corporal concreta, aquela que conduz a intenção consciente de nossas atitudes
e comportamento sem que sequer saibamos ao certo seu sentido ?

Mais uma vez, de dentro e por dentro do próprio sistema institucional,


se estabelece uma mudança reformadora, sem entretanto ameaçar a
correlação de forças existentes, procurando absorvê-la e dela extrair energia
que proporcione feedback para a nova girada no ponteiro do tempo histórico. E
na seqüência, mais uma vez também se recria uma tradição inventada com o
objetivo de arejar os vasos comunicantes do sistema, sem que o mesmo se
desestabilize. E isso através de uma negação participativa que se esgueira e
rejeita uma negação conflitiva.

Ora, seria esta prática historicamente já anunciada com tendência à


conciliação e reforma no Brasil, uma tradição costumeira, um dado realmente
estrutural, isto é, paradigmático do político nacional ? Assim como a
tragicomédia é uma componente básica da dimensão cotidiana de nossas
vidas, estaria o caráter tendencial para a conciliação e reforma na razão direta
deste fato ?

É muito interessante que se consiga dar um jeitinho no quadro político


de maneira que as coisas não transbordem de forma tão intensa. E esse
jeitinho realmente já é uma celebridade nacional. Dele participaram os 120
milhões de brasileiros, certamente, querendo fazer o seu jogo, querendo amar
a sua jogada. Um dos momentos bem denotador ficou marcado com os últimos

97
comícios de Tancredo Neves, em 1982, célebre cenário deste aspecto: ali a
população novamente começou a apostar na saída dentro do sistema, sem que
esta se configurasse enquanto fratura no corpo agônico da República que
assistia o fim da ditadura militar.

Mais uma manifestação do jogo-de-cintura (ação corporal do jeitinho)


do brasileiro, que se cometa uma cirurgia de emergência diante de tamanho
desavoro e instabilidade do quadro nacional. E Minas Gerais se recoloca em
cena, agenciando as principais forças que se acercam de um “tertius” que se
assegura, nacionalmente, mais uma transição lenta, gradual e segura,
coroando com comedido êxito o catártico desfecho da dramática abertura.

E o jogo-de-cintura de Tancredo Neves tornara-se um libelo nacional


da estratégia do jeitinho, prática de rearranjo político sem ruptura, ao assumir
cada vez mais a missão bonaparteadora que lhe coube na condição de tão
heterogênea rede de agentes sociais coletivos. No seu rastro caminhavam as
mais variadas e diferenciadas posturas e projetos sociais, que por intermédio
de seu apoio acreditavam, não obstante sua vitória no Colégio Eleitoral,
assegurar um quinhão do novo terreno político a ser conquistado pela
oposição: a cidadela do poder Executivo, até então invencível torre de
comando do quase secular despotismo militar brasileiro.

Neste horizonte de acontecimentos, a categoria que cada vez mais foi


manipulada pelo povo nas ruas, foi o jogo-de-cintura: vamos dar um jeitinho e
melhorar a situação. Mas este jogo-de-cintura mental implicaria também num
jeito de ser, refletindo-se num jeito do corpo ? Haveria, afinal, uma relação
entre esta categoria de entendimento das ações cotidianas, que é jogo-de-
cintura, e algum tipo de expressão corporal, seja físico ou social, resultante do
movimento de um corpo de agentes na cena social ? A certa exigência de
flexibilidade e tolerância corresponderia alguma postura corporal cotidiana ?
Haveria uma homologia entre este tragédia de procedimentos e os ritmos
corporais naturalmente processados no cotidiano ?

Pode parecer um tanto fora de propósito esta relação ou mesmo esta

98
tentativa de sociologia do conhecimento do brasileiro para a maioria daqueles
que estão mais preocupados com a aplicação pura e simples dos modelos de
análise que são elaborados para as Ciências Sociais, tanto na Europa quanto
nos Estados Unidos, sem nenhum esforço de verificação desta singularidade
que é a mentalidade brasileira.

Toda coragem é pouca, mas temos que correr o risco de penetrar no


não-dito do inconsciente coletivo do povo brasileiro se quisermos, enquanto
intelectuais, desenvolver algumas análises mais reveladoras sobre a
possibilidade de um autodesenvolvimento cultural. Temos que ter ousadia de
propor a conscientização de nossos próprios valores a partir de uma fecunda
reviravolta nos porões trancafiados da memória de nosso povo, com o fim de
superarmos o estado de amnésia social em que nos encontramos.

Segundo o professor Emanuel Carneiro Leão, esta atitude de desafio


para com o desenvolvimento deveria ser denominada de Capoeira do
Pensamento: investir nos caminhos silvestres com análises silvestres. Já
Guerreiro Ramos67 demonstra sua preocupação quanto à forma rigorosa de
aplicação de modelos, em nome de um estatuto científico, sem levar em
consideração a nossa realidade. Daí o seu conflito com Florestan Fernandes.

O fato concreto é que chegamos a uma nova etapa da história da


cultura brasileira. Esgota-se um ciclo e temos que nos movimentar, enquanto
intelectuais orgânicos, para que não sejamos ejetados processo social por
redundância. Estamos vivendo um momento crítico da História brasileira, que
exige uma redefinição profunda, total e revolucionária não somente da
dinâmica social, mas também do modo de ser brasileiro.

Começamos a brigar por uma saída do túnel, que parecia sem fim;
depois uma pequena luz e até pensamos que se tratava de um trem na
contramão; agora, depois de termos continuado a marcha, a saída começa a
ficar mais nítida. Isto não quer dizer que não corremos o risco de ser
surpreendidos na boca do túnel: nada disso. Chega da hipócrita euforia de
67
RAMOS, 1960.

99
véspera. Ela já nos deixou ao Deus-dará por várias vezes, como em 1964;
depois em 68; na Copa do Mundo de 82 (inacreditavelmente) e há pouco, no
famoso abril das diretas e quem sabe...

Na nova etapa que se abre, é fundamental começarmos a nossa


transformação pelo nosso cotidiano concreto, até então insondável pelas
Ciências Sociais. A Educação e a Cultura constituir-se-ão em dimensões
prioritárias da transformação que poderemos processar, visando à autogestão
e à autonomia de nossas mentalidades, devastando assim as cancerígenas
células do colonialismo lógico-cognitivo e da dependência cultural, que nos
fazem meros consumidores das obsolências das grandes metrópoles, seja da
cultura material, seja da cultura simbólica.

Uma revolução cultural JÁ !

Eis uma boa receita, se tivéssemos que receitar. Mas aqui não se trata
de distribuição de clichês. O importante é o desafio. O que importa é correr o
risco de ousar renovar. Num instante como este, de que adianta a posse de um
título acadêmico, em nome da legitimação de um saber estaturiamente
instituído, se não se faz o uso deste em favor da própria dinâmica social ? Dos
próprios saberes marginalizados: o anti-saber institucional ? Como podemos
levar a sério ?

Darmos um passo visando à fratura dos resíduos da colonização e à


consolidação da independência significaria a desalienação da razão brasileira.
O preço estaria no fardo de assumirmos nossa própria identidade, sem causa,
entretanto, a infelicidade da maioria dos intelectuais de nossa História, que
jamais conseguiram se libertar do centro de hegemonia do ocidente: o Velho
Mundo e os EUA.

A dependência econômica e social deixou marcas profundas no campo


lógico e cognitivo e uma vergonhosa “atrofia” ao nível da reflexão, bem como a
negação da possibilidade de construirmos desde agora a identidade nacional
como brasileiros.

100
Oswald de Andrade, figura ímpar pelo cinismo e satiricidade no trato
das questões acadêmicas, foi o primeiro grande intelectual a abordar esta difícil
tarefa: a de buscar-se ! E acima de tudo com destaque: sem precisar “queimar”
discos de Beethovem, por possuir laços burgueses e europeus, bem como por
ter apoiado integralmente a Revolução Francesa, conforme atitude tomada na
China, em 1968, na Revolução Cultural dirigida pelos guardas-vermelhos.

ANTROPOFAGIA ! Conceito de profundo significado político, pouco


trabalhado pela intelectualidade na área das Ciências Sociais, que na definição
ocorrida durante a década de 60 ficou encharcada pelos elementos da
economia política marxista na busca – bem sucedida, diga-se de passagem –
de um modelo latino-americano da análise da realidade nacional. Nesta medida
deixou-se de lado os aspectos socioculturais e políticos pedagógicos.

Vivemos um bom momento para revisitar aos fundamentos daquilo que


se constitui no mais profundo movimento político-estético cultural de nossa
História, que foi a Semana de 22. Poderíamos agora acrescentar mais dois
elementos à ANTROPOFAGIA: DIGESTÃO e AUTOGESTÃO MENTAL e
SOCIAL.

Só na radicalidade de nossa maneira de pensar, condensando-nos.


Enquanto sujeitos, aos nossos objetos, e deslocando-nos dos territórios
permitidos para terrenos contaminados pelo recalque da colonização, é que
poderemos fazer fecundar uma nova linhagem de pensadores que sejam
capazes de “dar a volta por cima”: traçar a teia do que já foi tecido e caminhar
por novas superfícies do pensamento e da realidade.

Desta forma, não devemos ter escrúpulos em demarcar novos lugares


de saber, novos territórios de investigação, novos continentes de análise que
constituam novas superfícies de conhecimento. Poderíamos adotar muitos dos
procedimentos dos arqueólogos, saindo à cata das realidades dispersas para
construirmos sua compreensão enquanto discurso das diferenças.

101
Dar vez, por exemplo, aos atos comunicativos dos agentes sociais que
foram submetidos ao silêncio na interminável resistência à dominação e
rebeldia na libertação. Eis a sobrevivência da população negra e de seus
descendentes, que na persistente manutenção do caráter lúdico de suas
formas de comunicação conseguiram galvanizar um intercâmbio de energias e
recuperar as unidades básicas e elementares da cosmovisão que montou a
percepção do agir-estar no mundo, recomposta na existência, na
cotidianeidade do território do colonizador.

O pouco, ou mesmo o descaso quanto ao conhecimento de como as


populações negras se ordenaram no espaço urbano, da maneira como
preservaram seus dispositivos de identidade, isto é, seus mecanismos de
exclusão e de afirmação, e da maneira como negociaram e viabilizaram suas
mensagens, suas expectativas e sonhos, suas camuflagens e simulacros vêm
sendo, sem dúvida alguma, um obstáculo epistemológico para a definição da
estratégia de uma identidade nacional. Eis aí a dificuldade em se desenvolver
um desafio ao logos aristotélico pela nossa emergente e desafiante civilização
atlântica.

Mennoti Del Pichia, em artigo na “A Gazeta de São Paulo”, em 1956,


declarava:
“É um crime deixar o Brasil descaracterizar-se, perder sua função típica,
anular-se, inferior e retardado em fórmulas que já são triunfantes no Velho
Mundo e nos EUA. Na luta, a ‘Capoeira’, cuja origem mais do que africana se
presume ser nitidamente brasileira, nascida entre escravos da Bahia, é uma
forma individual de defesa física das mais inteligentes e eficientes.”

E o mesmo espanto pelo descaso governamental e extensivamente do


Estado, para com a nossa memória e tradição foi declarado muito antes, por
Coelho Neto, literato e exímio capoeirista em O Bazar, de 1928:
“Em 1910, Germano Haslocher, Luis Murat e quem escreve estas linhas
pensaram em mandar um projeto à Mesa da Câmara dos Deputados tornando
obrigatório o ensino da Capoeira nos institutos oficiais e nos quartéis.
Desistiram porém, simplesmente porque tal jogo era...brasileiro. Viesse-nos ele

102
com rótulo estrangeiro e tê-lo-íamos aqui, impondo importância em todos os
clubes esportivos, ensinando por mestre de fama mundial que, talvez, não
valesse um dos nossos pés-rapados de outrora que, em dois tempos,
mandariam um Firpo ou um Dempsey ver vovó, com alguns dentes a menos e
algumas bossas a mais.”68

Eis aí um exemplo que demonstra a dificuldade de mudanças


substanciais neste País, no que diz respeito à busca de vínculos da educação
com a tradição cultural de nosso povo. Nesse mesmo artigo, Coelho Neto, logo
no início, defende a importância do ensino da Capoeiragem, justificando tal
defesa da seguinte forma:
“A Capoeiragem devia ser ensinada em todos os colégios, quartéis e navios,
não porque é excelente gymnástica, na qual se desenvolve, harmoniosamente,
todo o corpo e ainda se apuram os sentidos, como também porque constitui um
meio de defesa a todos quanto são preconizados pelo estrangeiro e que nós,
por tal motivo apenas, não nos envergonhemos de praticar. Nós, que
possuímos os segredos de um dos exercícios mais ágeis e elegantes, vexamo-
nos de o exibir e, o que mais é, deixamo-nos esmurraçar em rinks por
machacazer balordos que, com sua quebra de corpo e um passe baixo de um
‘ciscador’ dos nossos, iriam mais longe das cordas do que foi Dempsey à
repulsa do punho de Firpo.”69

Coelho Neto não somente era admirador da Capoeira mas também um


praticante. Manoel Moreyra conta em seu livro Dos Clarões sobre a terra,
editado em 1954, que Coelho Neto, ao ser atacado por um desordeiro com
uma machadinha, aplicou-lhe um golpe, desarmando-o, “e com mais alguns
certeiros golpes, o valentão estava desarmado e completamente vencido.”

Não se trata de realizar uma biografia da prática da Capoeira por


Coelho Neto, mas antes de mais nada fazer uma revelação da preocupação do
escritor quanto a tão crucial problema: a relação da Educação com a Cultura.

68
NETO, 1928: 133-140.
69
Ibidem.

103
Se tomarmos a consideração que foi feita no início, a de que vivemos,
no plano mundial, um momento que, entre outras coisas, está caracterizado
pelo fenômeno denominado de Redescoberta do Corpo (e que Hélio Oiticica
denomina de “Descoberta do Corpo” e Antonin Artaud de “Revolução
Fisiológica Integral”), fica evidenciado que para nós, que temos no corpo
profundas heranças que expressam as lutas antiautoritárias desenvolvidas por
intermédio de dispositivos não verbais pela população negra e oprimida como
um todo, mais do que nunca vivemos um tempo que favorece o avivamento de
nossa memória corporal. Mais ainda: buscando, nas práticas, nas tradições,
nas lutas de resistência das camadas dominadas e nos seus traços deixados
vivos até hoje, os elementos que poderiam contribuir no sentido de
formularmos um projeto pedagógico que se tornasse alternativo às formulações
autoritárias até hoje existentes. Assim, seu pressuposto seria: unir a memória
da resistência e da rebeldia dos oprimidos à mobilização popular.

Seu objetivo deveria voltar-se para a superação dos vícios que a


educação bancária desenvolveu na mentalidade brasileira: a acomodação e a
não-participação no processo pedagógico, que na prática inculcadora e
autoritária do professor até hoje se mantém acesa, por mais que se tenha
ampliado os meios de comunicação audiovisuais.

E nesta linha de raciocínio, a constituição de uma Educação que


responda às transformações pelas quais a sociedade brasileira pretende
passar neste momento deverá, sem dúvida, estabelecer, em qualquer nível de
ensino, em qualquer grau de escolaridade, como o elemento dominante.

Partir dos aspectos lúdicos da cultura brasileira como referencia dos


traços políticos de nossa História é uma linha não experimentada com
profundidade. Além disso, ao retomarmos estes aspectos, a sociedade
começará a pagar e seu débito para com a cultura popular e a História dos
vencidos. No caso da Capoeira, também acredito, como Coelho Neto, que sua
adoção deveria ocorrer em toda rede de ensino, prioritariamente a nível de 1º
grau, a fim de que os esquemas corporais que são marcantes na nossa
identidade corpóreo-gestual sejam trabalhados e explorados por todos os

104
jovens, podendo eles, a partir daí, construir de maneira ampliada uma
bagagem de saber corporal e histórico, podendo ser ministrada, junto da
Capoeira, a História do negro no Brasil, uma vez que esta luta-dança se
configura como um de seus maiores arquivos de informação.

Concluindo: tomando a exposição realizada anteriormente como


indicadora da situação da Capoeira, bem como os elementos de análise de
conjuntura como denotativos da existência de um fenômeno em ocorrência nos
dias contemporâneos, podemos dizer que:
1 – A Capoeira faz parte da memória corporal dos negros e de seus
descendentes, localizando-se nela os índices que podem falar sobre a sua
resistência à hegemonia cultural da civilização ocidental, uma vez que ela
compreende as características corporais desenvolvidas pelo negro, tanto na
luta como na paz, para garantir sua sobrevivência;

2 – Os esquemas corporais que caracterizam os comportamentos e


atitudes dos negros referem-se à sua ancestralidade, estando os resíduos que
marcam a motricidade do brasileiro impregnados destes elementos;

3 – Até hoje a luta dos negros foi impulsionada pela defesa de seu
corpo pois por ele passam a discriminação (estigma corporal), a própria
caracterização de seu corpo como trabalho a ser utilizado (sobrevivência da
noção de trabalho encarnado), o arquivamento das informações processadas
no cotidiano (memória corporal) e as possibilidades de constituição de um
instrumento de defesa (resistência);

4 – A elaboração da Capoeira foi o resultado da resistência articulada,


que pretendeu apontar uma saída dentro do próprio sistema de coação, como
herança da participação que predomina na maioria das populações das
sociedades primitivas;

5 – O corpo do negro é um signo que se caracteriza a partir dos


elementos acima mencionados e, ainda mais, que se coloca como espaço de
representação e significação;

105
6 – E se as marcas de nossa sociedade são suficientemente grandes
em relação ao tempo bastante curto de que dispomos para imprimir o grau de
mudanças que a virada histórica que se espera exigirá a partir de breve, cabe a
nós, os intelectuais, uma insolente tarefa: refutar as bases do autoritarismo de
dentro de nossa cultura e ladear o povo na sua luta pela libertação do
autoritário e militarizado cotidiano que temos enfrentado.

7 – Sendo assim novas formulações são necessárias para resultar em


uma Educação antiautoritária. A tarefa daí advinda consiste em se conhecer as
expressões culturais de nosso povo e tentar, a partir daí, traduzir pedagogica
ou informacionalmente, os elementos que sistematizam costumes, tradições,
comportamentos e a história não-verbal, resultantes de um processo
comunicativo camuflado que foi desenvolvido pelas camadas dominadas como
resultado da resistência que foi empreendida pela necessidade de
sobrevivência.

Em poucas palavras, isto representaria a possibilidade de constituição


de um campo de contrapoderes e contra-saberes capazes de constituir-se num
novo circuito de conhecimento, numa nova trança de questões que pudesse
nos arremessar para além dos limites dos descompassos em que entramos. A
caminhada que nos tornaria conscientemente corpos humanos brasileiros.

AXÉ
BIBLIOGRAFIA

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JORNAL DA TARDE – A Capoeira Chegou, São Paulo, 27.11.67
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JORNAL DA BAHIA – Salvador, 01.08.80
JORNAL DE BRASÍLIA – Brasília, 19.07.80
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