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Capítulo Página
Sumário 01
Introdução 03
Prospectiva 96
Bibliografia 107
2
AGRADECIMENTOS
3
INTRODUÇÃO
José Oiticica
4
que tenha que ficar pedra sobre pedra, e o momento desta desconstrução é
agora, nesta década.
5
História do Brasil, bem como o encontro com sua epistemologia, pelo contrário,
encontra-se ocupado pelo culto narcisista à cultura branca e ao logos
aristotélico.
Deste nicho que tem no saber corporal seu pólo principal, se arquiteta
uma bricolage dos gestos erguidos como resultado dos mecanismos de
intercâmbio e assimilação dos elementos que dão singularidade aos diferentes
grupos étnicos que definiram o universo da população negra ao aqui se
6
constituir. E isto como parte de um mecanismo de sobrevivência imposto pela
colonização através do silêncio cultural em que todos estavam obrigados a
viver.
E, exatamente por ter sido sempre tratado como corpo que encarna
exclusivamente trabalho, este lado da cultura africana se viu reforçado para
que se estruturasse estrategicamente, visando à preservação e ao
fortalecimento do corpo como instrumento de transmissão da cultura, isto é,
dos hábitos socialmente adquiridos (arquivos), ao mesmo tempo como
instrumento de organização da defesa física, individual e comunitária (arma).
7
sondar. O mapeamento do horizonte de questões que o trabalho compreende,
pode se constituir em um pequeno inventário que dá conta de uma situação
específica, capaz de novos saltos para, mais adiante, caminharmos rumo às
respostas das seguintes questões:
8
inter-humano ?
E neste quadro todo, não estaria sendo gerada uma nova concepção
de homem, ele mesmo, em teoria, o resultado da configuração dos elementos
estruturais designativos do mundo contemporâneo pós-moderno ?
9
Os conceitos matrizes do trabalho têm sua origem nas abordagens de
FOUCAULT (1972) e DELLEUZE (1976). São eles: saber e prática discursiva,
de Foucault, e rede (rizoma), de Delleuze. Todavia, fique claro que não há
nenhuma intenção de se aplicar suas ferramentas teóricas, e sim desenvolvê-
las mediante a sua recriação em outras realidades. Exatamente por isso, uma
profunda discussão do arsenal teórico conceitual deveria ser desenvolvida,
mas não a faço aqui, agora, e sim em outro local, posteriormente.
Mas é no quarto avanço que teremos uma primeira grande parada para
10
observar como os dispositivos corporais foram acionados a nível da rebeldia
negra, para que no seguinte avanço possamos, através de um pequeno
inventário e de uma cirurgia estrutural na Capoeira, compreender a constituição
daquelas invariantes que se mantiveram como traços fundamentais da tradição
que ela encobre.
REDESCOBERTA DO CORPO
E
PÓS-MODERNIDADE
11
“Descobrir que o que faço é música não “uma das
artes” mas a síntese da conseqüência da
descoberta do corpo: para isso o rock por exemplo
se tornou o mais importante para minha posta em
xeque dos problemas-chaves da criação ( o samba
que me iniciei veio junto com essa descoberta do
corpo no início dos anos 60: paragonlé e dança
nasceram juntos e é impossível separar um do outro
): o rock é a síntese planetário-fenômeno dessa
descoberta do corpo que sintetiza no novo conceito
de música como totalidade-mundo criativa em
emergência hoje: Jimi Hendrix, Dylan e os Stones
são mais importantes para a compreensão plástica
da criação do que qualquer pintor depois de
Pollock ! A menos que queiram os artistas ditos
plásticos continuar remoendo as velhas soluções
pré-descobertas do corpo ao infinito: e não é o que
está acontecendo de certa forma?”
Hélio Oiticica
12
século passado.
1
O espaço conceitual pode ser definido como sendo o campo de possibilidade de constituição de um
repertório conceitual. Neste espaço conceitual se localizam, em diferentes escalas, os mais diversos
conceitos que podem dar conta de situação de vários tempos, que em última instância podem ser
classificados como sendo o tempo corporal, o tempo cotidiano, o tempo histórico e o tempo cósmico.
Estes conceitos seriam índices das múltiplas determinações que pretendem informar na sua condensação.
O que estou chamando de espaço conceitual é um campo que unifica várias dimensões do
tempo, o que nos diz que o espaço entorna os tempos e os tempos esparramam pelo espaço, como sítios,
ilhas, planos, dimensões.
Nesta visão especializada da bagagem conceitual, desempenha uma tarefa importante a
capacidade de abdução de quem pretende aprender o que está sendo dito. Conforme nos diria Pierce: “ A
abdução é a melhor forma de construir o conhecimento”. Passamos por processos indutivos e dedutivos,
não contentes, partimos para o abdutivo, na busca de uma interação mais abrangente, inclusive de todo o
conhecimento humano.
Este é um dos métodos de trabalho de construção de conceitos que, sem dúvida, vêm atestando
sua capacidade de alta rentabilidade na economia simbólica. O trabalho por analogia e associação permite
que o processamento das informações acessadas em nossa memória se dê em altíssima velocidade,
garantindo que rapidamente se constituam em multiface e por aí abordando-o multidisciplinarmente.
Mantém-se vivo o tempo todo, pois é a intuição a principal arma para esse tipo de trabalho. Tal tipo, coisa
ou situação pode ser não só isso, como também pode ser não-isso (aquilo), como também pode ter disso e
daquilo, e nem uma nem outra coisa; nem ambas.
13
acontecem com postura mais vívida de sua existência, pelo menos como coisa,
objeto encarnado de sentido vazio2. Todavia, este sentido vazio foi produzido
da forma mais violenta e despótica possível, na medida que corresponde aos
dispositivos de poluição visual e, consequentemente, da poluição semântica
que vivemos.
O mundo da vida cotidiana são sinais sem luz, mas com brilho. O brilho
que as fazem cintilar é como o intermitente sinal que um neon anuncia. É isto:
civilização “neonlista”! Nela o homem perdeu-se na vida: desritualizou-se. Sua
vida está sendo sorvida pela televisão, cinema, fotografia, telemática, out-doors
etc. A poluição visual (inflação de imagens) trouxe um homem asfixiado pela
imagem do seu tempo, aprisionado naquilo que ele produziu.
14
Se percebemos mais o mundo pelas imagens, e aqui refiro-me a todos
nós, crianças, velhos etc., sejam quem for e se elas são moldáveis em alta
velocidade, das duas uma (para ser mais imediato): ou seremos sugados pelos
campos magnéticos das imagens e por elas operados, ou, então, agiremos
com maior velocidade que elas.
15
maneira crescente. Por aí, o despertar da atenção para o trabalho que foi
manipulado pela força da dinâmica do mercado de bens simbólicos constituído.
Hoje, vinte anos depois, já podemos sentir seus efeitos na geração que
se encontra por volta dos quarenta anos, que adota tipos de atitudes diante do
mundo diferentes das gerações anteriores.
8
FOUCAULT; 1978
9
LEFEBVRE; 1968, FREIRE e Fausto BRITO; 1984, AUTOGESTÃO; 1980: 34-38
16
Beatles, Rolling’s, o Soul Music etc., são símbolos de uma nova era da
comunicação humana e das transformações comportamentais do planeta. Sim,
do planeta. Depois da década de 60, e principalmente depois de 68, não se
pode mais falar em mobilizações de transformação comportamental se não
consideramos o plano de causação ao nível da aldeia global. 1968: ano da
mundialização da vida. Ano em que o Planeta parou! Daí em diante, jorraram
aos “borbotões”, críticas e confrontos, enfrentamentos e assaltos à Razão do
Estado. Onde existia ditadura, como na América Latina, ela foi duramente
ameaçada, a ponto de se servirem os déspotas dos dispositivos totalitários.
Onde existia o chamado socialismo, emergiram denúncias dos “Gulags”, bem
como se ampliaram as oposições clandestinas constituídas desde antes da
guerra, que revelaram seu lado sarcástico e totalitário. Onde existia
democracia, esta também não passou incólume, tendo sido solapada em suas
bases de cinismo e de hipocrisia, como no Assalto aos Céus, na França10.
17
revolta dos jovens, mulheres, crianças, velhos e homossexuais traz à tona a
ação direta dos indivíduos, corporificadas nos movimentos alternativos contra o
Estado, cada vez mais entendido como pressão de alto grau de totalitarismo.
18
E, neste rastro, esta rede alternativa vai se constituindo em toda a
sociedade. Por ela travejam os sinais de adesão pela via da simpatia (energia e
identidade), gradualmente minando as bases totalitárias, simbologicamente
instaladas no cotidiano através dos símbolos e dos hábitos nele embutidos
como disposições duráveis.
19
produzir, como se descortinou o espaço-tempo que até então envolvia o corpo,
colocando-o numa situação de simulacro na sociedade. Ao se redescobrir o
corpo, descobria-se o cotidiano, percebendo-o como instância primeira por
onde o social interatua e agencia suas poderosas estratégias de poder12.
20
a destruir os significantes despóticos, arrebentados em arte e felicidade no
mundo da vida cotidiana nua e crua. Vive-se no limite carnal, corporal.
21
de novos referenciais de análise. E o corpo humano, em seu processo de
redescoberta, está sendo capaz de nos apontar inúmeras saídas até então
tidas como inexistentes.
22
astrofísica e da tele-informação da sociedade. Contraditoriamente, a Contra-
Revolução também caminhou junto.
Para finalizar, diremos que a nível mundial, a década dos 60, a partir
do distanciamento que obtemos com o passar do tempo, se afirma como o
momento-limite da humanidade que viveu e continua vivendo a constituição de
uma nova fase histórica. Esta se pronuncia como derivada da interseção
cotidiano-cósmico estabelecida pela acoplagem da consciência destas duas
dimensões do existir e da realidade social: do corpo na cotidianidade sócio-
cultural.
23
CORPO E SIGNO
El cuerpo es el
cuerpo,
Está solo
Y no necessita órganos,
Jamás el cuerpo es un organismo,
Los organismos son los enemigos del cuerpo.
Las cosas que se hacen
Suceden por sí solas,
Sin el concurso di ningún órgano,
Todo órgano es parásito,
Encubre una función parasitaria
destinada a dar vida a un ser
que no debería existir.
Los órganos sólo há sido hechos para dar de comer a los seres
Mientras que éstos han sido condenados en su princípio y tinen razón
alguna de existir.
La realidad aún no está constituída porque los verdadeiros óragnos del
cuerpo humano aún no han sido compuesto y colocados.
El teatro de la crueldad há sido creado para terminar esta colocación y
empreender mediante una nueva danza del cuerpo del hombre, un destrozo de
esse mundo de microbios que no es más que nada coagulada.
El teatro de la crueladad pretende emparejar en el danza a los
párpados com los codos, las rótulas, los férmures y los dedos de los pies,
Y que sea visible.
ANTONIN ARTAUD
24
torna-se em vão.
25
intermédio desta mesma parte de comunicação do dia-a-dia, registrando os
cines da memória corpórea, fixando também a situação na qual aquele
determinado movimento foi registrado, isto é, como aquele movimento foi
produzido, criado e elaborado.
14
ver SAUSSURE e BARTHES
15
BOURDIEU; 1980: 89
26
observando-se que o centro emissor dos quatro canais é o corpo. Age, desta
forma, como um cometa que reluz o brilho do seu rastro imagético, unificador,
condensador de seu sentido de fundo.
Dispersão
Corpo
Nem verbal
Nem
Não-verbal
Condensação
27
macrossigno, que seria determinado corpo sócio-culturalmente determinado.
Todo microssigno relaciona-se com um determinado corpo cósmico. O corpo
se configura como uma ponte de intercessão: condensação de micro-unidades
e ao mesmo tempo unidade dispersa de um macrocorpo.
28
Estes corpos, nas formas de ação definem uma interação social,
traduzida e contextualizada em práticas de sociabilidade responsável pelo
entrelaçamento dos indivíduos na vida social. Tal entrelaçamento pressupõe
uma agregação: A vida social de que falo é composta por vários eventos ou
situações e nestas situações encontramos os actantes-agentes/atores em
ação-produzindo atos comunicativos por intermédio das falas
convencionalmente (culturalmente) programadas.
É desta maneira que dou conta do corpo como lugar que me dá acesso
ao meu eu, através das situações dramáticas, ou então pela via do trabalho
(ação corporal e esforço), da ação social ou da criação artística.
29
daí advinda, verifico que meu corpo é o principal responsável pelo meu estar
no mundo. Fica claro também que a realidade social só se é compreendida
pelo mundo da vida, da realidade cotidiana.
17
VIEIRA; 1983:51-76
30
ESQUEMAS CORPORAIS E SOCIEDADE
ALDONA JANUSZEWSKI
31
Cotidiano...redescobrir o cotidiano. Ao mesmo tempo verifiquei que o
seu lugar correspondia a um momento de interseção do mundo mais
abrangente que é o mundo cósmico. Quanto mais tomo consciência da
dimensão da realidade em que me encontro, mais ainda conecto-me com o
mundo cósmico e verifico que sua existência não é mais do que a decorrência
da percepção elementar que fazemos do mundo por onde acontece a vida:
mundo cotidiano18.
Caberia abrir um tópico que fosse capaz de dar conta de que o corpo é
capaz de ser além de signo, quer dizer, além de um componente específico
para a linguagem, funcionando como condutor de significações inumeráveis por
intermédio dos gestos e dos movimentos, o corpo, pela significação que
produz, enuncia nas frases de seus movimentos uma ordenação lógica dos
artefatos (roupas, balangandãs etc.) que compõem a sua estrutura. Estes
artefatos, como linguagem que são, correspondem à estrutura sócio-cultural
que forma o chão da gramaticidade, das normas e códigos por onde os
agentes coletivos19 interatuam.
19 SROUR; 1979: 64
20 Aqui amplio o uso deste conceito, ao tomá-lo de empréstimo da psicomotricidade e agregando nele elementos sociológicos e antropológicos como componentes de seu sentido
conceitual. Ver (COSTE; 1978: 19-24); (CHAZAUD; 1978: 27); (LE BOULCH; 1983: 22); (LE BOULCH; 1982: 18)
32
Para algumas sociedades o tronco tem um papel mais importante que
a cabeça. Já em outras não assume este destaque. Noutras são os membros,
em outras, como no caso da cultura africana, a cintura é que adquire a função-
chave do corpo21. Poder-se-ia deduzir que o corpo do ocidental está, em geral,
esquematizado por três partes essenciais: cabeça, tronco e membros. Se fosse
dizer o mesmo da cultura negra, diria que a cintura apareceria aí como um
quarto componente.
22
BASTIDE; 1971: 33
23
BOURDIEU; 1980: 88-9
33
Resumindo: o corpo é um componente do mundo, da vida, do
cotidiano, sendo que por ele percebemos e sentimos o mundo. Por seu
intermédio desenvolvemos e aperfeiçoamos a comunicação com as outras
pessoas com os outros indivíduos, além de darmos um colorido às nossas
emissões áudio-acústicas (vocais) pela via da gestualidade, ou então pela ação
estética, a de criar símbolos que nos permitam significar expressivamente a
realidade. Confirma este fato a própria maneira dos corpos se adornarem,
tendo em mente a possibilidade de reafirmar determinados valores.
34
tempo e no espaço histórico devido a impossibilidade de análise de um material
empírico suficientemente consistente. Entenda-se a memória coletiva como
sendo a memória motora, a própria documentação escrita, só que pelos gestos
e movimentos corporais25.
35
identidade étnico-cultural que o público consumidor deste produto,
instintivamente, involuntariamente, fazia processar. Estes dispositivos seriam
os movimentos musculares e corporais que o ritmo percussionado da
musicalidade negra sensualmente insinua.
Por esta vereda, introduzo uma nova variável para se pensar as ações
políticas: a identidade corpóreo-gestual como uma variação das identidades
coletivas de que fala Habermas26. A identidade corpóreo-gestual se definiria
pela possibilidade de aproximação e sintonia por intermédio dos ritmos do
corpo.
36
O Aristocrata em São Paulo e o Renascença no Rio de Janeiro servem
bem como exemplo, como espaços conquistados que são, desta relação corpo
e política, de um lado, e memória coletiva e identidade corpóreo-gestual de
outro, entre os descendentes de negros na sociedade brasileira.
37
totalmente diferente daquele do encaixe do corpo no espaço, no cotidiano da
vida, no presente vívido, segundo Bergson. É aí que os ritmos do corpo
variam28.
De certa forma, o que pode ser enunciado como o fato social de maior
relevância em relação ao corpo é a inauguração de uma nova retórica para o
28
Ver (SCHUTZ; 1979: 79-110)
29
BOURCIER; 1981: 36
30
op. cit; 1981: 46-59
38
corpo. Tal fato só começou a se desintegrar a partir do século XV, quando
alguns pintores, como Brueguel e Boch, recuperaram o corpo numa nova
dimensão para o espaço estético: nele o corpo aparecia ligado às fantasias e
fantasmagorias do inconsciente, burlando os limites do real no cotidiano
medieval. Mais tarde, o projeto escultural de Miguel Angelo e Da Vinci
apresentaram mais elementos que dissolveram, gradativamente, a velha
retórica do corpo.
39
civilizatória das civilizações nativas nas áreas conquistadas e colonizadas,
servindo de plasma para a transformação sócio-cultural da Europa.
40
RESISTÊNCIA NEGRA E SABER CORPORAL
LEOPOLD S. SENGHOR
Capoeria e Liberdade
41
“A capoeira corresponderia à síntese das instituições negras
aniquiladas pela colonização portuguesa”.
42
constituir uma alternativa num modo onde o negro só tem espaço em posição
de cega obediência é, de fato, tarefa de grande dificuldade. Por isso, não havia
sentido deveriam ser dotados do maior grau de invisibilidade. As armas neste
processo eram basicamente duas: o corpo , peça biofisiológica e, acima de
tudo, fragmento de um coletivo de onde se é parte integrante e inseparável.
Neste grupo comunitário, onde seu corpo foi forjado, ele detém a memória, que
é a sua e a coletiva também.
34
Peixoto, op. cit.
43
pudessem resultar em capital acumulável. Outros atores em cena eram, de um
lado, o proprietário do patrimônio latifundiário e, de outro lado o trabalhador
escravo.
44
alienante, neste sistema: de um ser humano em mercadoria; de mercadoria em
força-de-trabalho em si; de força-de-trabalho em si em capital fixo (como se
fosse uma máquina descartável: quebrou, joga-se fora). Enfim, do corpo
comunitário38 ao corpo produtivo39 (8).
38
Gil; 1980: 48
39
Deleuze; 1973: 16
45
O horizonte simbólico africano foi desarranjado a partir do momento em
que os europeus não só seqüestravam corpos biológicos, humanos, mas
também o corpo das representações materiais produzidas artisticamente como
indicação do agir e pensar no seu mundo cotidiano. Além disso, era também
componentes do corpo comunitário, constituído por uma totalidade articulada
de ações, determinadas concepções, representações, expressões – em última
analisa, símbolos e dispositivos de linguagem que permeavam toda
comunicação humana.
46
camuflada possível, a sua transgressão41 .
47
que se mesclavam fora do continente africano, e que tiveram no sincretismo e
na miscigenação a melhor forma de organizar essa resistência.
48
objetividade/subjetividade, transpassava-se a rotina, as inculcações, as
internalizações arbitrárias...
49
Não há dúvidas: a resistência sócio-cultural do negro foi sendo
estruturada de forma poetica não-verbal e, certamente por isso, foi difícil para
os europeus conseguir levar a cabo a destruição total e definitiva de toda
cosmogonia das civilizações das periferias do sistema mercantil.
50
cotidiana e toda percepção cósmica. Isto lhe dá a característica de um sítio
arqueológico que detém, arquivado nos seus gestos e hábitos cotidianos, as
informações de situações dramáticas e dramatizadas através da força de sua
ação gestual.
Então, por isso mesmo, resistir implicava uma ação estratégica que
relacionava e fazia do corpo o principal ponto de referência diante do mundo
exterior. Esta ação, que é colocada especialmente através do corpo, de uma
forma não-verbal, constitui-se na expressão condensada dos movimentos que
sistematizam a ação gestual dos hábitos corporais, que podem ser entendidos
como um sentido de resistência e como um ato de rebeldia.
Com ele, nele e para ele, era necessário se rebelar. Fazer do corpo o
ponto de partida e de chegada da luta. Preservar e agregar na sua única
propriedade, que era o corpo, e todavia desconhecida como tal pelo fazendeiro
escravocrata, todas as informações que impulsionassem a viabilização deste
projeto liberatório. E isto significava tornar simbólicos os planos cotidianos e
cósmicos da existência. A instância deste processo esconderia a força
dramática resultante da pulsão angular constituída pela interseção do “agir-
51
aqui” com o resgate do “constituído por lá”, como compreensão do mundo.
O Saber Corporal
A Capoeira foi uma destas saídas de emergência acionadas pelos
negros, na medida em que constitui uma resposta de recuperação da
cosmovisão que, a empiricidade do agir-fazer do espaço-tempo perdido, se
atualizava nos gestos sequenciados como verdadeiros códigos que
realimentariam as heranças de sociabilidade interpessoal e os modelos de
comportamento adotados por intermédio dos movimentos corporais, imprimidos
pelos hábitos cotidianos.
52
estabeleceram uma relação com seu corpo sem medição de instituições, sendo
ele mesmo a instituição maior e complementar da própria vida na comunidade:
o ser instituinte e agenciador do projeto comunitário existente.
53
cultura para o corpo. Tudo nela contribui para o equilíbrio que
salvaguarda a singularidade de cada corpo, a sua potência, a sua
capacidade para se decodificar e para se recodificar.” (Gil, 1850: 54)
54
definido, a comunicação entre os negros passou a realizar-se pela via não-
verbal. A linguagem gestual, condensadora de situações, apareceu como
instrumento capaz de propiciar o grito possível de liberdade, que inicialmente
se deu a nível individual, estruturando-se depois a nível coletivo, já que os
escravos, ao fugir das senzalas, não encontravam condições de sobreviver
sozinhos. Assim sendo, nos Quilombos existiam regras dando preferência às
chegadas em grupo.
55
se aperfeiçoou a estratégia de sobrevivência física e cultural do negro.
56
CAPOEIRAGEM, VADIAÇÃO, MALANDRAGEM
MESTRE PASTINHA
(Vicente Ferreira Pastinha)
Como tudo começou ? Olhem, tenho que confessar que antes de mais
nada, o que me empurrou foi uma impulsão, uma vontade, um querer estar ao
lado da cultura popular, de um subsistema do campo cultural ainda não
suficientemente examinado e que se mantivesse uma estreita ligação com a
rebeldia negra.
Não que isto fosse feito em nome de uma necessidade heróica de
desvelar o pano do racismo, já suficientemente identificado, embora,
infelizmente, reproduzido pelos hábitos cotidianos do conjunto da população
brasileira e pela prática de ideologia da democracia racial.
O problema, contudo, me tocou a partir de minhas próprias
experiências desde menino e das relevantes discussões sobre o corpo, que
desde o início de 70 vem assumindo uma enorme importância na conjuntura
teórica, pois, ultimamente, trouxe para a análise social o atual, o cotidiano.
Lembranças das rodas de capoeiras nas esquinas do meu subúrbio
carioca ou da exibição nas quadras da escola de samba em Ramos,
Manguinhos e Mangueira, ou das nossas brincadeiras nos finais de tarde dos
violentos verões do Rio, das plásticas movimentações com o corpo que meus
amigos de bola-de-gude sabiam fazer. Todo este painel não só me faz recordar
57
a Capoeira, como também me faz aprofundar o questionamento das razões
pelas quais não se intensificam as pesquisas a respeito das vivências
populares, principalmente aquelas em que a ludicidade adquiriu um exercício
de competência através do corpo.
A escolha não foi por acaso e ficou com a Capoeira. Desta forma,
torna-se a Capoeira nosso campo empírico de investigação onde procuraria
compreender como vem sendo representado o corpo no universo simbólico dos
agentes desta prática: os capoeiras.
45 “Bricolage gestual ” é um conceito em constituição. Ele vem reforçar um outro: “identidade corpóreo-gestual”, bem como “esquema corporal”, tomados de empréstimo da
”
psicomotricidade.
58
Deste modo, a fala da capoeira emite um discurso não-verbal, um
discurso gestual que, apesar de portador de uma semântica, que é o sentido da
resistência por intermédio do estabelecimento de uma prática que reponha a
tradição, embora, portanto semantizado, ele, o discurso, se ergue como um
campo dessemantizado, subsumindo-se tanto no que Greimas chamou de
“gestualidade lúdica” ou no que José Gil de “significante flutuante”.
59
no território da existência elementar do dia-a-dia pelo colonizador.
47 Na perspectiva que abraço, Foucault e Delleuze formam um campo conceitual de grande relevância e, a partir daí, acredito que poder-se-ía falar que a sabedoria dos negros estaria
60
RODA – UNIDADE 1
JOGO – UNIDADE 2
CORPO – UNIDADE 3
BERIMBAU – UNIDADE 4
UNIDADE 1 - A RODA
61
Esta é uma questão de ordem pragmático-transcendental-energética.
Seriam os eixos, os pontos de entroncamento, encruzilhada, chacra de entrada
da energia cósmica na sua freqüencia definida pelo berimbau, capaz de ser
assimilada de acordo com as possibilidades de domínio dos lugares vitais do
corpo, para que a sintonia cósmica se estabeleça na consciência de ser
apenas corpo no espaço em movimento.
62
contexto histórico de maneira secularizada) que recria a partir do resgate dos
símbolos que condensaram diferentes momentos. Toda vez que este conjunto
de meios se conecta –e, se constitui a mandala- temos o ritual, o evento viivdo
pelo copro no tempo que a estrutura congelou por intermédio dos movimentos
cinéticos.
“Quando entro na Roda não vejo ninguém que está do lado de fora e
tudo me parece impulsivamente ordenado pelo toque do Berimbau. Sinto
uma energia tomando meu corpo”. (depoimento de Edna Regina,
professora de Educação Física e primeira Mestre de Capoeira no Brasil).
63
não ficaram abandonados, principalmente se considerarmos que os alunos
desta nova etapa eram, principalmente em Salvador, advindos da classe média
branca, distanciada e preconceituosa diante dos elementos fundamentais da
Capoeira, que são da própria epistemologia africana ?
64
corpo e, portanto, capaz de circunscrever a possibilidade de exercício da
tradição e da divulgação pedagógica.
As características estilísticas:
Mas tanto num texto corporal quanto noutro, quer pela necessidade de
síntese, quer pela necessidade de resgate e manutenção da tradição, mas
duas formulações a agilidade, a velocidade, a flexibilidade e a movimentação
65
permanente através da ginga (movimentação de pé), do aú (movimento de
cabeça para baixo) e da negativa e do rolê (movimentação no chão) se
constituem em componentes estruturais do jogo49. Todos estes movimentos
giram em torno de um eixo: o corpo em circularidade.
66
colocados como invariantes, o seu próprio jogo. Eis que surge o código
particular que seu corpo gerou através dos treinos e sua sensibilidade definiu
pela sintonia energético-cósmica através do som do berimbau. Passa pela
ginga a especialidade que diferencia a Capoeira enquanto luta-dança.
67
concentração e de expansão” de toda energia que circula num corpo em jogo.
Dela se sai ou a ela se volta. É a circularidade de toda a movimentação, bem
como a plástica de todo jogo que é capaz de permitir o tipo de combinatória em
pauta.
UNIDADE 3 – O CORPO
68
lançados, configuram uma linguagem corporal. A gestualidade lúdica que
marca a emissão dos golpes tem no corpo o seu ponto emissor. Isto demonstra
a herança do caráter corporal que os jogos africanos procuram expressar,
através da linguagem interativa com o mundo.
Por quê ?
69
de atitudes corporais.
51 SENGHOR; 1982: 76
70
da participação que o processo da relação social imprime. Se a afetividade,
conforme nos diz Leopold S. Senghor, é o elemento mais ativo do processo de
conhecimento do negro, daí temos o segundo traço de unidade. O primeiro se
relaciona ao lugar do corpo que atua como destaque: os quadris. Para nós, no
Brasil, surgiu inclusive uma categoria que classifica a capacidade de
flexibilidade diante do autoritário e militarizado cotidiano que o negro enfrenta
há séculos: ter jogo de cintura, estar pronto ! Digo autoritário e militarizado
sobretudo por que somos forçados pelas circunstâncias e contigências que
condicionam a população negra sob uma ditadura racia, que, desde os anos
noventa em um processo de transição, para uma forma de visibilização e
inclusão mais efetiva desta população.
Consciência
71
cabeça
Coração Ventre
Diz ele: “Tel est le ‘satellite’ humain que va tourner dans espace le
temps de la trajectoire de sa vie”52 (8). (Assim é o satélite humano que viaja no
espaço e tempo na sua trajetória de vida). Ao comparar o corpo a um satélite e
a experiência humana a uma jornada no espaço e no tempo, como nos indica
Barrault que vê o corpo energizado em toda a sua potencialidade. Corpo
enquanto energia: acão. Corpo enquanto ritmo; movimento. Eis o campo
magnético de forças.
72
Orquestra Afro-brasileira que percorreu o Brasil pelo Projeto Mambembão
durante os anos 80.
73
Se considerarmos o corpo negro, bem como suas heranças, nele e em
seus descendentes, além dos três elementos, temos os quadris como uma
parte de maior significância e portadora de autonomia.
74
Na seqüência dos golpes temos um enunciado, que no conjunto do
jogo na roda se configura como discurso da capoeira. Neste discurso podemos
evidenciar a presença dos esquemas corporais subtraídos do próprio cotidiano
da África, onde o jogo de cintura é uma constante movimentação corporal; uma
sintonia constante com a freqüência energética que se configura na roda e que
é canalizada na movimentação do jogo; uma reafirmação do corpo como centro
energético (emanador e fluidor); uma configuração de ação primordial que é
enunciada pelo corpo em seus agenciamentos energéticos como centro
catalizador de energias.
75
sistema colonial. De maneira invisível, uma guerrilha foi se realizando,
aproveitando as brechas e nelas, se assentando. Aos pouquinho,
devagarzinho, se depositavam os gérmens da multiplicação. A dispersão não
constituía problema, a sintonia energético-cósmica fazia percorrer o Axé, que
como solda unia os elos da trama, de maneira a constituir a referida Rede de
Resistência.
Este corpo que deu origem à Capoeira, que é o corpo negro escravo,
era um corpo entrecortado por vários extremidades de semelhanças quanto às
características do discurso corporal:
76
1 – um ponto de identidade era a autonomia dos quadris,
caracterizando o jogo de cintura;
2 – outro ponto, a bricolage gestual, a partir da negociação que deve
ter se estabelecido para a construção de uma ordenação de sentido na sua
execução;
3 – a intimidade com os campos de força cósmica;
4 – a expectativa diante de um único projeto: a liberdade como resgate
permanente de si, e por conseguinte da comunidade.
Como herança, o jogo dos corpos resguarda como características
invariantes:
a cintura com flexibilidade, que produz a ginga;
movimentos de esquiva e defesa-ataque;
integralidade com a dimensão cósmica;
visão totalizadora, isto é, periférica.
UNIDADE 4 – O BERIMBAU
77
Pelo menos, quatro tipos de berimbau podem ser encontrados no
Brasil, segundo K. Shaffer:
a) o berimbau-de-boca: instrumento simples, que pode ser construído
na hora, usando qualquer madeira, um pedaço de cipó e uma vareta. O tocador
só precisa de uma faca para cortar as partes e tocar. Usado como divertimento
dos indivíduos;
b) o berimbau-de-barriga ou gunga: instrumento que utiliza uma cabeça
como caixa de ressonância. Precisa um pouco mais de tempo para sua
construção. Tem mais volume que o berimbau-de-boca e é usada para chamar
a atenção, para pedir esmolas, vender produtos e, finalmente, para o jogo da
Capoeira;
c) berimbau ou barimbao: instrumento de metal, importado da Europa
para divertimento individual: usado geralmente por marinheiros ou outras
pessoas. Devido ao seu alto custo não foi provável seu uso pelos escravos;
d) berimbau-de-bacia: arco musical tocado com barras cilíndricas de
metal, fixado sobre duas latas ou outros objetos semelhantes, que servem de
caixa de ressonância. Foi visto em conexão com o ato de pedir esmolas
A descrição mais antiga que já foi feita pelo uso do berimbau foi por
Henry Koster, quando, em viagem pelo nordeste do Brasil, resolveu, depois de
observar festas afro-brasileiras, realizar um síntese descritivas:
“Os negros livres também dançavam, mas limitavam-se a pedir licença e sua
festa decorria diante de uma das suas choupanas. As danças lembravam as
78
dos negros africanos. O círculo se fechava e o tocador de viola sentava-se num
dos cantos, e começava um simples toada, acompanhada por algumas
canções favoritas, repetindo o refrão, e freqüentemente um dos versos era
improvisado e continha alusões obscenas (...) Os escravos igualmente pediam
permissão para as suas danças. Os instrumentos musicais eram extremamente
rudes. Um deles é uma espécie de tambor, formado de uma pele de carneiro
estendida sobre um tronco oco de árvore. O outro é um grande arco, com uma
corda, tendo uma meia quenga de côco no meio, ou uma pequena cabaça
amarrada. Colocam-na no abdômen e tocam a corda com o dedo ou com um
pedacinho de pau. Quando dois dias santos se sucediam, os escravos
continuam a algazarra até de madrugada”.56
E diz mais: “berimbau só presta quando o pau for recolhido numa noite
de escuridão, por sujeito de coragem; se não for assim, o pau quebra no meio
da brincadeira”.
Vê-se que existe toda uma mística em torno do berimbau, o que reforça
sua função sintagmática com o corpo, unidade com a qual estabelece uma
relação de associação e de definição do próprio caráter do evento. O ritmo
produzido pela batida da vaqueta na corda, bem como pelo ato de aproximar
ou afastar a cabeça da barriga do tocador gera um clima de ritual onde se
configura a sintonia energético-cósmica que no corpo do jogador encontrará
seu terminal.
56
Extraída de REGO; 1968: 71
79
A idéia transmitida pelo Mestre e que caracteriza este som como “auto-
sugestão” é bem denotativa deste traço místico que a mandala enuncia por
intermédio da roda. Assim, o berimbau cria a mandinga, a manha e a trama
energética que caracteriza a cinética corporal do jogo da Capoeira.
57
SENGHOR; op. cit. 75
80
ESBOÇO DE HISTÓRIA DA CAPOEIRA
58
SENNA;1978; LONSDALE;1981
81
tambor do tipo repinique entre as pernas ( igual aos que hoje são utilizados nos
solos de percussão nas baterias de escola de samba ). Não se tem a presença
do berimbau.
82
seus espaços nos limites dos terrenos da “urb” que nascia com o quilombo ou a
moradia. Novas ocupações começaram nesse século XIX a surgir para os
negros nesses grandes centros. Passaram a ser carregadores, vendedores de
bugigangas – escravos do ganho – peixeiros, alfaiates e até prestadores de
serviços de segurança ao proprietário de terras, no final do século, conforme
demonstraram as Maltas de capoeiristas, que realizavam estes trabalhos.
62
FREITAS; 1976
83
acrescer, também, o envolvimento de D. Pedro com o processo sucessório
entre os descendentes de seu pai ao trono português. Por fim, estes fatos
aliaram-se a outros, que vieram desaguar na pressão dos proprietários, através
dos militares, para que renunciasse ao trono.
84
saiu as ruas, com os Capoeiras à frente, derrubando os guardas reais. Da
mesma maneira faziam nas revoltas negras baianas, enfrentando e derrubando
aqueles que prendiam alguns de seus companheiros.
85
assustava profundamente o Governo Provisório, principalmente diante dos
crescentes serviços que as Maltas de capoeiras prestavam aos proprietários de
terras ao controlar, ou mesmo fraudular, as eleições do cabresto.
Cada Malta tinha seu próprio nome, tais como: Três cachos (Freguesia
de Santa Rita); Cadeira da Senhora (Freguesia do Santana); Franciscano (São
Francisco de Paula); Flor da Gente (Glória); Espada (Lapa); Guaiamum
(Cidade Nova e mais zona circunjacente ao Largo da Carioca); Luzitanos
(Santa Luzia); Santo Inácio (Castelo); Monturo (Praia de Santa Luzia); Dança
(São Jorge); Flor de Uva (Santa Rita), entre outras.
86
O capoeira usava uma calça chamada “boca de choro”, que tinha três
barras e não excedia a 16 cm de largura da bainha. Isso para evitar navalhada
profunda na perna durante o transcorrer de uma briga. “O lutador poderia ficar
por baixo que a calça permanecia no lugar”. E deste modo, a atividade de
Sampaio Ferraz, enviado de Campos Sales, Ministro da Justiça na época, foi
incansável, visando ao extermínio da Capoeiragem e dos Capoeiras. Os que
eram presos, eram conduzidos à Ilha de Fernando de Noronha, Ilha Grande e
Fortaleza de Santa Cruz, ou então deportados para Mato Grosso ou Goiás. Os
que conseguiam fugir refugiavam-se na Ilha da Maré, na Bahia de Todos os
Santos.
87
dos filhos dos coronéis iam para a Armada levando consigo um estigma com
relação ao negro, devido à própria presença escrava no seu cotidiano).
88
anti-republicanos, como gratidão à libertação da escravidão pela monarquia.
Este é um fato, entre tantos outros que foram enunciados anteriormente, que
ainda não conta com explicações suficientemente claras à sua compreensão.
Como se desenvolveu a tendência monarquista entre negros libertos ? Com
que instrumentos organizavam a luta anti-república ? Quem se ligava aos
negros nessa luta ? Como se relacionavam capoeiristas e abolicionistas ?
63
O mais substancial trabalho a respeito ainda é FERNANDES; 1978: 46
89
nela atuam. A classe trabalhadora foi alvo dessa política de constituição de
corpos disciplinados, capazes de sustentar a nova etapa em que o Brasil
entrava e, ao mesmo tempo, forjar o Homem Brasileiro da seiva deste esforço.
90
em troca de um salário; e é preciso, por outro lado, que este tempo do homem
seja transformado em tempo de trabalho. É por isso que em uma série de
instituições encontramos o problema e as técnicas da extração máxima de
tempo”65.
65
Extraído de LIMA; op. cit: 53
66
ib. idem: 28
91
embranquecimento por que passava a sociedade brasileira, já que permitia
uma melhor participação do branco, menos flexível ( com “junta dura”,
conforme Bimba dizia ) e portanto com mais dificuldade para a execução dos
movimentos que são exigidos no jogo Angola.
92
marcados no que lhe é próprio pelo jogo estabelecido, ainda não conseguiu
realizar uma sistemática a nível nacional, por mais que o Mestre Bimba tenha
contribuído para a realização desse processo.
Por outro lado, a fixação quase única e exclusiva durante muito tempo
naquilo que constituía a Capoeira Regional fez que aumentasse o
distanciamento de suas raízes mais primitivas, ortodoxamente preservadas
pelo Mestre Pastinha, na sua filosófica e cortês proposta da Capoeira como
jogo de Angola.
93
competição natural. A primeira não possibilita a demonstração da destreza da
Capoeira, que cai de uma rasteira, desdobrando a queda em outro movimento
ou até mesmo no reverso, isto é, num contra-golpe. A segunda é realizada de
forma natural e resolvida no próprio jogo”.
Nesta nova etapa política que se abre no Brasil, sem dúvida que os
projetos de identidade nacional, de amálgama da Educação e Cultura serão
desengavetados. Que os Capoeiras se preparem, pois teremos um grande jogo
a se realizar nesta roda que o mundo dá na vida de todos nós, brasileiros a se
emancipar.
94
95
PROSPECTIVA
96
E este jogo do jeito, não mais que de repente, me fez pensar na
possibilidade de associação de categorias do pensamento brasileiro, que
fossem mais abrangentes e mais freqüentes no universo de signos que
caracterizam o discurso expressado no cotidiano dramático deste nossa
morada transcontinental.
97
comícios de Tancredo Neves, em 1982, célebre cenário deste aspecto: ali a
população novamente começou a apostar na saída dentro do sistema, sem que
esta se configurasse enquanto fratura no corpo agônico da República que
assistia o fim da ditadura militar.
98
tentativa de sociologia do conhecimento do brasileiro para a maioria daqueles
que estão mais preocupados com a aplicação pura e simples dos modelos de
análise que são elaborados para as Ciências Sociais, tanto na Europa quanto
nos Estados Unidos, sem nenhum esforço de verificação desta singularidade
que é a mentalidade brasileira.
Começamos a brigar por uma saída do túnel, que parecia sem fim;
depois uma pequena luz e até pensamos que se tratava de um trem na
contramão; agora, depois de termos continuado a marcha, a saída começa a
ficar mais nítida. Isto não quer dizer que não corremos o risco de ser
surpreendidos na boca do túnel: nada disso. Chega da hipócrita euforia de
67
RAMOS, 1960.
99
véspera. Ela já nos deixou ao Deus-dará por várias vezes, como em 1964;
depois em 68; na Copa do Mundo de 82 (inacreditavelmente) e há pouco, no
famoso abril das diretas e quem sabe...
Eis uma boa receita, se tivéssemos que receitar. Mas aqui não se trata
de distribuição de clichês. O importante é o desafio. O que importa é correr o
risco de ousar renovar. Num instante como este, de que adianta a posse de um
título acadêmico, em nome da legitimação de um saber estaturiamente
instituído, se não se faz o uso deste em favor da própria dinâmica social ? Dos
próprios saberes marginalizados: o anti-saber institucional ? Como podemos
levar a sério ?
100
Oswald de Andrade, figura ímpar pelo cinismo e satiricidade no trato
das questões acadêmicas, foi o primeiro grande intelectual a abordar esta difícil
tarefa: a de buscar-se ! E acima de tudo com destaque: sem precisar “queimar”
discos de Beethovem, por possuir laços burgueses e europeus, bem como por
ter apoiado integralmente a Revolução Francesa, conforme atitude tomada na
China, em 1968, na Revolução Cultural dirigida pelos guardas-vermelhos.
101
Dar vez, por exemplo, aos atos comunicativos dos agentes sociais que
foram submetidos ao silêncio na interminável resistência à dominação e
rebeldia na libertação. Eis a sobrevivência da população negra e de seus
descendentes, que na persistente manutenção do caráter lúdico de suas
formas de comunicação conseguiram galvanizar um intercâmbio de energias e
recuperar as unidades básicas e elementares da cosmovisão que montou a
percepção do agir-estar no mundo, recomposta na existência, na
cotidianeidade do território do colonizador.
102
com rótulo estrangeiro e tê-lo-íamos aqui, impondo importância em todos os
clubes esportivos, ensinando por mestre de fama mundial que, talvez, não
valesse um dos nossos pés-rapados de outrora que, em dois tempos,
mandariam um Firpo ou um Dempsey ver vovó, com alguns dentes a menos e
algumas bossas a mais.”68
68
NETO, 1928: 133-140.
69
Ibidem.
103
Se tomarmos a consideração que foi feita no início, a de que vivemos,
no plano mundial, um momento que, entre outras coisas, está caracterizado
pelo fenômeno denominado de Redescoberta do Corpo (e que Hélio Oiticica
denomina de “Descoberta do Corpo” e Antonin Artaud de “Revolução
Fisiológica Integral”), fica evidenciado que para nós, que temos no corpo
profundas heranças que expressam as lutas antiautoritárias desenvolvidas por
intermédio de dispositivos não verbais pela população negra e oprimida como
um todo, mais do que nunca vivemos um tempo que favorece o avivamento de
nossa memória corporal. Mais ainda: buscando, nas práticas, nas tradições,
nas lutas de resistência das camadas dominadas e nos seus traços deixados
vivos até hoje, os elementos que poderiam contribuir no sentido de
formularmos um projeto pedagógico que se tornasse alternativo às formulações
autoritárias até hoje existentes. Assim, seu pressuposto seria: unir a memória
da resistência e da rebeldia dos oprimidos à mobilização popular.
104
jovens, podendo eles, a partir daí, construir de maneira ampliada uma
bagagem de saber corporal e histórico, podendo ser ministrada, junto da
Capoeira, a História do negro no Brasil, uma vez que esta luta-dança se
configura como um de seus maiores arquivos de informação.
3 – Até hoje a luta dos negros foi impulsionada pela defesa de seu
corpo pois por ele passam a discriminação (estigma corporal), a própria
caracterização de seu corpo como trabalho a ser utilizado (sobrevivência da
noção de trabalho encarnado), o arquivamento das informações processadas
no cotidiano (memória corporal) e as possibilidades de constituição de um
instrumento de defesa (resistência);
105
6 – E se as marcas de nossa sociedade são suficientemente grandes
em relação ao tempo bastante curto de que dispomos para imprimir o grau de
mudanças que a virada histórica que se espera exigirá a partir de breve, cabe a
nós, os intelectuais, uma insolente tarefa: refutar as bases do autoritarismo de
dentro de nossa cultura e ladear o povo na sua luta pela libertação do
autoritário e militarizado cotidiano que temos enfrentado.
AXÉ
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