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Vol. 33, abril 2015, DOI: 10.5380/dma.v33i0.

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DESENVOLVIMENTO
E MEIO AMBIENTE

Meio ambiente e desenvolvimento: imperativos para a pesquisa


e a formação. Reflexões em torno do doutorado da UFPR*

Magda ZANONI, Claude RAYNAUT

A Universidade Federal do Paraná (UFPR) iniciou Nos anos 50, prevaleceram concepções imitativas
em 1990 uma reflexão sobre a criação de um Curso de e quantitativas de desenvolvimento: tratava-se de fato
Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento, em de diminuir a distância entre o Norte e o Sul, através de
colaboração com estabelecimentos franceses de ensino investimentos financeiros, equipamentos e tecnologias
superior (Universidade Paris 7, Universidade de Bor- originários dos países industrializados. Esta concepção
deaux 2, Escola de Arquitetura Paris-La Villette Escola linear e reducionista do desenvolvimento se dava pela
de Altos Estudos em Ciências Sociais). As atividades de criação de enclaves externos, acentuando as desestrutu-
ensino iniciaram-se em agosto de 1994. Está destinado a rações entre setores “modernos” e “atrasados”.
formar professores, pesquisadores, planejadores, agentes O decênio seguinte foi marcado pela busca de um
de desenvolvimento, profissionais do setor econômico e desenvolvimento “integrado”, no qual foram conside-
membros de associações destinadas a operar na área de rados os conceitos de educação, as dimensões sociais,
formação e de implementação de políticas de desenvol- sanitárias e políticas, sem que se questionasse fundamen-
vimento sustentado. talmente o mimetismo. Era o período da “planificação
Este texto apresenta os fundamentos teóricos e me- do desenvolvimento”. Pouco tempo depois, o conceito
todológicos a partir dos quais foi elaborado o programa de “Nova Ordem Econômica Internacional” faz sua es-
de pesquisa e ensino acima referido. Expõe também, de treia e polariza os grandes debates internacionais sobre
modo concreto, o contexto social, econômico e político as relações Norte-Sul. A ideologia da independência
que no Paraná, e, mais amplamente, no Brasil, deu ori- nacional ganha importância.
gem a esta iniciativa e permitiu que fosse bem-sucedida. A problemática do meio ambiente, que tem origem
nos países do Norte, expande-se nos anos 70, alimentada
Do Ecodesenvolvimento ao Desenvolvimento pelo debate sobre os limites do crescimento. Nos países
Sustentado da América Latina, esta problemática foi percebida como
sendo de natureza conservacionista e neomalthusiana,
A partir dos anos 50, o aprofundamento das de- limitada, no essencial, ao fenômeno do crescimento
sigualdades entre países ricos e países pobres motiva a demográfico e da poluição, e contrária aos esforços de
elaboração de diversas estratégias de desenvolvimento. desenvolvimento realizados por esses países desde os

* Este texto foi originalmente publicado no Cadernos em Desenvolvimento e Meio Ambiente, volume 1 (1994). Os Cadernos foram criados
pelas iniciativa de Magda Zanoni e Claude Raynaut para abrir um debate sobre os fundamentos epistemológicos e metododológicos da interdis-
ciplinaridade no campo ambiental. Neste artigo, em particular, foram discutidos tais pressupostos no caso da fundação do Doutorado em Meio
Ambiente e Desenvolvimento que recém havia iniciado sua primeira turma. A tradução foi do professor Dimas Floriani, sociólogo.

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anos 30 (industrialização, modernização da agricultura, Os anos 80 viram emergir um novo termo de influ-
urbanização, transferência de tecnologia, modelos de ência anglo-saxão, o sustainable development, que foi
consumo e estilos de vida). Neste contexto regional, as utilizado pela União Internacional para a Conservação
preocupações sobre o meio ambiente apareciam como da Natureza em sua Estratégia Mundial da Conservação
elitistas, deslocadas, enquanto que os esforços de desen- (UICN, 1980).
volvimento e de crescimento, nestes países, não tinham Em ocasião da Conferência Mundial sobre a
atingido sequer seus limites. Conservação e o Desenvolvimento do IUCN (Ottawa,
O conceito de ecodesenvolvimento introduzido 1986), P. Jacobs, J. Gardner e D. Munro (1987, p. 17-
por Maurice Strong, Secretário da Conferência de 29) falavam do desenvolvimento sustentado e equitativo
Stockholm, e amplamente divulgado por Ignacy Sachs, como novo paradigma, citando como suas prioridades:
contribuiu para a evolução das ideias sobre os modelos – a integração da conservação e do desenvolvi-
e estilos de desenvolvimento na América Latina. Sachs mento,
introduziu a ideia de um “desenvolvimento endógeno e – a satisfação das necessidades humanas funda-
dependente de suas próprias forças, tendo por objetivo mentais,
responder à problemática da harmonização dos objetivos – realização da equidade e da justiça social,
sociais e econômicos do desenvolvimento com uma – busca da autodeterminação social e da diversi-
gestão ecologicamente prudente dos recursos e do meio” dade cultural,
(1980, p. 12). Esta visão superava as abordagens conser- – manutenção da integridade ecológica.
vacionistas e integrava o meio ambiente na problemática
do desenvolvimento. Em 1987, a Comissão Mundial sobre o Meio Am-
A difusão do conceito de ecodesenvolvimento foi biente e o Desenvolvimento retomou em seu relatório,
amplamente assegurada, sobretudo pelo Programa das conhecido como “relatório Brundtland”, este conceito
Nações Unidas para o Meio Ambiente, que o elegeu e propõe a seguinte definição: “desenvolvimento que
como um de seus eixos privilegiados de reflexão. Na responde às necessidades do presente sem comprometer
França, a Escola de Estudos Superiores em Ciências as possibilidades das gerações futuras de satisfazer suas
Sociais e a Casa das Ciências do Homem muniram-se de próprias necessidades” (Brundtland, 1988: 43). Dois
unidades de pesquisa sobre o desenvolvimento e vários conceitos são inerentes a esta noção: o de “necessidades”,
países do Terceiro Mundo, como o México, o Brasil, sobretudo aquelas dos mais destituídos, e a ideia que a
o Senegal e a Colômbia, formaram também grupos de situação de nossas técnicas e da nossa organização social
reflexão sobre o tema. pressiona, até o limite, a capacidade do meio ambiente
Em vésperas da Conferência das Nações Unidas para responder às necessidades atuais e futuras.
sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (Rio de A tradução francesa oficial de sustainable deve-
Janeiro, 1992), a plataforma Tlatelolco, elaborada pelos lopment é développement durable (desenvolvimento
representantes oficiais da região América Latina-Caribe, sustentado). Entretanto, o termo “durable” (sustenta-
integra, numa perspectiva de desenvolvimento endóge- do), contrariamente ao de “sustainable”, não exclui
no, a pesquisa de soluções econômicas, sociais e técnicas, que o desenvolvimento possa revelar-se insustentável
com o objetivo de frear o processo de degradação dos para a maioria da humanidade. Outras expressões são
recursos naturais atribuído, em parte, aos modelos de frequentemente empregadas, tais como “desenvolvi-
desenvolvimento adotados e às limitações impostas pela mento sustentado”, “desenvolvimento viável” ou ainda
dívida e os ajustes estruturais derivados desta. O conceito “desenvolvimento sustentável”. Essa diversidade de
de desenvolvimento se enriquece, então, de uma dimen- expressões empregadas é significativa de múltiplas de-
são humana, com seu corolário de “endogeneidade”. O finições agregadas ao termo, tanto na França como em
desenvolvimento endógeno delimita, assim, a posição outros lugares. J. Pezzey (1989), através de uma análise
dos atores como criadores de sua própria sociedade e bibliográfica, mostra que se há um consenso sobre cer-
de sua própria cultura. tos conceitos essenciais do “sustainable development”

10 ZANONI, M.; RAYNAUT, C. Meio ambiente e desenvolvimento: imperativos para a pesquisa e a formação. Reflexões...
(longo prazo, bem-estar social, solidariedade com as ge- De uma representação a outra, operam-se deslo-
rações futuras), os autores não deixam de divergir quanto camentos de tal maneira que o que era o objeto central
às opções políticas e técnicas: até que ponto a qualidade numa definição torna-se um elemento do meio ambiente
do meio ambiente e a distância entre ricos e pobres, por em outro. Uma harmonização das definições é necessária
exemplo, são fatores importantes do bem-estar social? para todo esforço de abordagem metódica.
Em que medida a acumulação de capital e os progressos Ela faz intervir a complexidade. Uma comple-
tecnológicos podem contribuir para reduzir a rapinagem xidade ligada à amplitude do campo de fenômenos a
(punções) sobre os recursos naturais? cobrir, da mesma maneira que à natureza não linear das
A inflação de termos e de definições traduz, é bem interações que fazem do meio ambiente um sistema. Os
verdade, uma preocupação que expressa as vias de uma componentes do meio ambiente, inicialmente dissocia-
mudança, a partir de conhecimentos disciplinares e de dos numa abordagem do pensamento que conduziu à ins-
experiências. Entretanto, se um denominador comum é tauração do recorte disciplinar, devem ser considerados,
comumente admitido, a dimensão ambiental faz parte novamente hoje, em seu conjunto, isto é, em função das
integrante do processo de desenvolvimento e não pode múltiplas interações que os unem.
ser tratada separadamente. Este conceito representa o Ela exige uma diversidade de escalas de aborda-
eixo central das discussões preparatórias da Conferência gem. Os processos compreendidos pela noção de meio
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desen- ambiente se desenvolvem através de múltiplas escalas de
volvimento da Conferência das ONG do Rio de Janeiro, espaço e tempo e movimentam uma enorme diversidade
1992; o desafio maior deste final de século consiste em de níveis de organização: o local e o global, o instante e
inventar, tanto no Norte como no Sul, novos modelos o tempo geológico, a molécula e o ecossistema devem,
de desenvolvimento. frequentemente, ser levados em conta na elaboração do
modelo explicativo. De acordo com o problema coloca-
do e de acordo com a maneira de como é apresentado,
A necessidade de uma abordagem holística do
privilegia-se diferentes níveis de apreensão – por exem-
meio ambiente plo, um geomorfólogo, um geógrafo e um agrônomo
não abordarão o estudo dos solos no mesmo nível, nem
A concepção de um desenvolvimento sustentado é com os mesmos critérios. Não se trata aqui, somente, de
inseparável da gestão dos recursos renováveis. Ela colo- diferenças formais, pois, para cada nível de análise, sur-
ca, pois, em primeiro lugar a questão da reprodução das gem propriedades que não existiam a nível inferior: uma
relações entre as sociedades humanas e seu meio ambien- célula não é mesma coisa que a soma de moléculas; uma
te. Ora, a noção de meio ambiente é, por si mesma, difícil floresta se diferencia da justaposição das árvores; uma
de captar por diversos motivos. Seguindo Jollivet e Pavé comunidade social não é a simples adição de indivíduos.
(1992), podemos explicitar algumas dessas dificuldades: A noção de meio ambiente é, pois, inseparável das
A noção de meio ambiente é multicêntrica. Isto noções de complexidade e de diversidade. Portanto, se
significa que a noção muda de conteúdo em função do se pretende progredir e não ficar prisioneiro de confron-
objeto central por meio do qual ela é pensada. De acordo tações entre pontos de vista, conceitos, níveis de apre-
com a visão de um sociólogo, um fisiologista ou um ensão – intrinsecamente válidos em seu conjunto – não
biólogo de populações, o termo poderá ser aplicado de se deve proceder a uma definição unificada. Por outro
forma alternativa: lado, é aconselhável, de maneira mais pragmática, de-
– ao contexto familiar, social ou cultural dos indi- senvolver alguns princípios básicos que constituem uma
víduos e dos grupos; plataforma a partir dos quais se viabiliza a comunicação
– ao meio bioquímico que influi sobre o funciona- entre os distintos pontos de vista.
mento de um organismo; O primeiro e sem dúvida o mais fundamental
– ao quadro natural e antropisado no qual se cons- desses princípios – que assume uma posição de axioma
titui e evolui uma população de seres vivos. básico – é que a compreensão dos processos ambientais

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passa pelo esforço de superar as análises setoriais, limi- dição de qualquer pretensão para enfrentar um desen-
tadas à pesquisa de causalidades lineares e reduzidas a volvimento sustentado – é necessário, ainda, colocar-se
um só nível de apreensão. Por sua própria natureza, os de acordo sobre o ponto de vista a partir do qual essa
problemas decorrentes do campo ambiental reclamam visão será operacionalizada.
uma ótica globalizante, holística, que destaca as inter- Para podermos continuar, parece-nos essencial
-relações entre fenômenos, as correspondências entre assegurar que, entre todas as representações possíveis
níveis de organização, a imbricação de ligações causais. do meio ambiente, sobretudo a que se refere à noção
É necessário manter a clareza sobre isto. Não se de desenvolvimento, deve colocar no centro de suas
pode pretender que toda pesquisa relativa ao meio am- preocupações o homem e as sociedades humanas e
biente deva desatar, por completo, o nó das inter-relações interrogar-se sobre as condições de sua reprodução e
presentes a partir do problema estudado. Ao contrário, a de seu desenvolvimento, o que significa dizer, sobre
diversidade do campo contemplado, a multiplicidade das seu vir a ser. Sob este ângulo, o homem e as sociedades
entradas possíveis, o caráter heterogêneo das questões a humanas não são mais considerados simplesmente como
tratar sugerem uma divisão clara das tarefas, em função convidados do meio que habitam – o que permite colocá-
dos objetivos precisos e limitados. O importante, e ino- -los “entre parênteses” quando se quer submeter o meio
vador, é a inserção de programas precisos na perspectiva sob a ótica de uma ciência objetiva. A partir de então,
do conjunto que inspira a identificação das temáticas, a homem e sociedades humanas fazem parte integrante
formulação dos problemas, e que fornece o quadro de desse meio do qual são, ao mesmo tempo, os sujeitos e
uma progressiva renovação das questões teóricas e me- os objetos, os atores e os produtos.
todológicas. É aqui que se situa a abordagem holística. Se este pré-requisito é admitido, ele instaura como
Levar em conta a globalidade não pode, de forma questão chave interações entre processos naturais, de
alguma, ser considerado como um ponto de partida, um lado (físico-químicos e biológicos), e de outro, as
mas como resultado. Não pode ser contraditória com condições de funcionamento dos sistemas sociais.
as abordagens de análises muito especializadas e muito O meio ambiente, assim concebido, inscreve-se
“avançadas”, uma vez que estas se inserem numa pro- numa representação muito ampla que se reúne no inte-
blemática de conjunto. rior de um mesmo sistema, englobando – e que pode ser
designado de ecosfera – dois subsistemas que interagem
e mesmo comungam elementos comuns, porém se or-
As implicações científicas desta abordagem
ganizam segundo propriedades estruturais e dinâmicas
diferentes:
Diante das exigências de renovação que impõe a A - O sistema Natureza: compreende o conjunto
definição de um novo campo de construção do saber, não de componentes biológicos e físico-químicos que inte-
se pode ficar preso a um discurso geral sobre as formas ragem no interior dos grandes domínios de organização
e os princípios. É absolutamente necessário indagar biológica: atmosfera, pedosfera, hidrosfera, geosfera.
sobre as práticas científicas a serem implementadas, Este sistema Natureza compreende uma dimensão que,
caso contrário corre-se o perigo de se limitar a simples embora fortemente artificializada – a ponto de ser às
declarações de intenção. vezes, como na cidade, um produto direto da ação huma-
na – não deixa de ser um processo da mesma ordem dos
meios naturais. Este sistema compreende, certamente,
A necessidade de reformulação de um campo
o homem, na perspectiva de organismo vivo – tomado
científico individualmente ou reunido em populações.
B - O sistema Sociedades: que compreende o con-
Ao admitir-se a necessidade de uma visão global junto de elementos e de processos cuja articulação par-
para analisar os fatos ambientais em toda a diversidade ticipa na organização, na reprodução e na evolução das
e complexidade de suas implicações – e isso é pré-con- relações sociais e dos fatos culturais. Aqui, as coerências

12 ZANONI, M.; RAYNAUT, C. Meio ambiente e desenvolvimento: imperativos para a pesquisa e a formação. Reflexões...
que se busca compreender enraízam-se nos processos tuir o que já fazem, com seus respectivos métodos, as
de produção e de circulação do sentido (representação, ciências naturais e sociais – nota-se que este campo se
valores, normas) que se inscrevem na história e permane- localiza na interface dos dois sistemas: no lugar onde
cem longamente autônomos em relação às determinações nenhuma compreensão é possível sem o apelo simultâneo
biológicas e físico-químicas. É verdade que nenhuma das propriedades dos dois sistemas. É sob esta forma que
organização social poderia existir sem uma base material: a visão holística, mencionada no ponto anterior, ganha
o próprio corpo dos homens que a compõe; os bens e os sentido e se estrutura.
objetos cuja produção, circulação e consumo permitem
a sua reprodução; as técnicas necessárias à fabricação
A referência necessária à interdisciplinaridade
desses bens e objetos. Mas essa base material somente
torna-se parte integrante do sistema Sociedades quando
contribui para produzir relações sociais e fatos de cultu- O enfoque acima definido constitui um desafio
ra, ou enquanto produto dessas relações e desses fatos. científico; exige um trabalho rigoroso de formulação
Cada um desses sistemas exige ser analisado em de questões precisas, definição de conceitos, elaboração
função de suas condições intrínsecas de funcionamento de métodos.
– e é isso que se esforçam em fazer as diferentes disci- Colocando o problema desta maneira, observa-se
plinas, no quadro da divisão do trabalho científico que que não há trabalho científico sobre o meio ambiente
orienta sua distribuição. fora do quadro da interdisciplinaridade.
O novo campo que se abre – o do meio ambiente É necessário, uma vez mais, entrar num acordo
considerado do ponto de vista do desenvolvimento sus- sobre o que se entende por interdisciplinaridade. A afir-
tentado – é o das inter-relações entre sistema Natureza mação da necessária colaboração entre disciplinas no
e sistema Sociedades. enfoque dos problemas ambientais não é nova: decorre
Adotar este tipo de representação global implica diretamente das exigências da ação. Na realidade, a to-
certas condições na maneira de abordar a questão – que mada de consciência da necessidade de uma abordagem
não é nova – das relações Homem/Natureza. Fixemos interdisciplinar tende a realizar-se fora do campo especu-
duas delas: lativo. A necessária colaboração entre disciplinas ganha
Quando se analisa o ser humano em sua interação densidade na prática social, cuja finalidade é intervir no
com os ecossistemas, não o consideramos somente como real e confrontar-se à complexidade do campo onde atua.
um organismo vivo entre outros, mas, também como o Essa exigência instrumental dificilmente acontece
elemento de um sistema social, sem o conhecimento do na prática, especialmente no domínio da colaboração
qual seu comportamento não tem sentido. Admitir isto entre as ciências naturais, as disciplinas do engenheiro
significa dizer que o imaterial – o ideal, para retomar e as ciências do homem. É muito raro verificar que os
a formulação de Godelier (1984) – pertence ao real programas chamados “multidisciplinares” assumam uma
do mesmo modo que os fatos materiais e constitui, no forma diferente da justaposição de trabalhos monodisci-
mesmo grau destes, um objeto legítimo e pertinente de plinares, cada um deles girando em torno de problemáti-
análise científica. cas que são valorizadas pelas respectivas comunidades
Não se separam os projetos de intervenção, re- científicas de referência. A “síntese” final aparece então,
lativos a um dos dois sistemas, das consequências que na melhor das hipóteses, como um exercício de estilo
possam vir a ter sobre o outro: não se pode conceber difícil visando oferecer, a posteriori, uma coerência um
um “desenvolvimento” das sociedades humanas em tanto artificial aos resultados obtidos de forma dispersa.
detrimento do sistema Natureza; da mesma forma, não É muito comum defrontar-se, neste domínio, com uma
se pretende proteger os meios naturais às custas de in- coleção de exposições monodisciplinares dispersas,
toleráveis disfunções no sistema Sociedades. onde cada uma se esforça para não invadir o território de
Se se pretende identificar, a partir disto, o campo seus parceiros. Apesar de repetidas tentativas para fazer
específico dos estudos ambientais – sem querer substi- aparecer o novo, partindo-se da aproximação forçada de

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diferentes especialistas sobre o mesmo terreno, fica cada um confronto entre as abordagens – confronto surgido,
vez mais claro que a interdisciplinaridade não se decreta, pelo menos na fase inicial, das exigências da prática,
mas que deve ser construída. uma vez que esta é, por definição, estranha aos recortes
Faz sentido falar de interdisciplinaridade, de uma entre disciplinas.
maneira geral e particular no campo do meio ambiente, se
existe desde o início identificação de questões reconhe-
As condições para uma colaboração entre as
cidas como pertinentes pelas disciplinas engajadas; além
disto, é necessária a elaboração de uma problemática disciplinas
comum que serve de base para uma divisão do trabalho
entre parceiros científicos – cada um explorando, com Um estudo dedicado, a partir de algumas expe-
seus conceitos e métodos, a parte que lhe cabe. É através riências concretas de pesquisa, a uma reflexão sobre a
deste custo que cada um poderá contribuir por elemen- prática de interdisciplinaridade entre Ciências da Na-
tos de respostas específicos a uma ou várias questões tureza e Ciên­cias Humanas, ressalta alguns problemas
formuladas em comum. importantes (Dobremez et al., 1990).
Mais acima, identificamos o campo das pesquisas A - Os Problemas de Metodologia. Se um acordo
ambientais que cobrem exclusivamente as questões que mínimo no plano teórico e geral constitui a precondição
se situam na interface do sistema “Natureza” e do sis- indispensável ao trabalho interdisciplinar, é na prática
tema “Sociedades”. Isto quer dizer que existem outras concreta da pesquisa que se estabelece o confronto entre
questões de grande interesse científico, concernentes a as disciplinas: confronto que deve produzir uma colabo-
cada um desses sistemas considerados autonomamente. ração. Para evitar que o programa se reduza a uma sim-
Significa dizer, também, que a regra do jogo científico ples justaposição de trabalhos, sem ligações recíprocas,
implica, obrigatoriamente, questionamentos cruzados como ocorre com frequência, e que acaba produzindo
entre as disciplinas (quando se trata de questões ambien- até conflitos entre equipes e pessoas, é indispensável
tais), sendo que nenhuma delas pode pretender sozinha alcançar uma rigorosa organização dos procedimentos
responder aos problemas levantados. da pesquisa coletiva.
Isso significa afirmar que a abordagem ambiental e Dois eixos desempenham um papel essencial na
interdisciplinar não é relativa aos objetos que se estuda, constituição dessa organização e funcionam como cate-
mas às questões que são colocadas a seu respeito. O gorias aplicáveis a todo programa.
corpo humano é um objeto de pesquisa puramente bio-
lógico se for considerado como um organismo vivo. É • O Tempo
assunto de reflexão puramente sociológica ou psicológica Uma pesquisa se desenrola em um dado período e
se for considerado como uma situação de dominação ou deve ordenar-se em função deste vetor.
um suporte de imagens e de símbolos. Deriva de uma – No plano a conceituação. Quer dizer que ela não
abordagem ambiental, isto é, interdisciplinar, se forem se desenvolve como uma pura e simples projeção de um
questionados os múltiplos fatores que condicionam protocolo rígido (contrariamente ao que se produz na
sua saúde. Pode-se desenvolver um raciocínio similar, pesquisa monodisciplinar, onde a repetição é garantia de
tomando como exemplos o ar, as árvores, o solo. rigor); ao contrário, dado o diálogo interdisciplinar e o
O essencial reside não no recorte que se faz dos confronto prático, a problemática tende a enriquecer-se,
objetos, mas na divisão das questões. Isto compreende a diversificar-se e a progredir com o tempo.
duas conclusões: – No plano da constituição concreta da pesquisa.
– a primeira que estabelece cientificamente o O estabelecimento de múltiplas leituras complementares
campo ambiental e a prática interdisciplinar através da sobre o concreto exige a aplicação de uma estratégia
elaboração inicial de uma problemática; que assuma um itinerário, sob forma de um calendário.
– a segunda que não pode nascer de uma reflexão
interna a cada uma das disciplinas, mas deve surgir de

14 ZANONI, M.; RAYNAUT, C. Meio ambiente e desenvolvimento: imperativos para a pesquisa e a formação. Reflexões...
• Os Níveis de Abordagem – Um ou vários programas operacionais. Um pro-
O trabalho coletivo deve organizar-se de maneira grama corresponde a uma parte da problemática, isto é,
que todos compartilhem de um conjunto de hipóteses de a uma articulação específica de hipóteses de trabalho e
trabalho e de objetivos que definam um rumo científico de questões cujo estudo implica uma “missão coletiva”
comum. Cada um deve saber o lugar que assume na ex- que requer a colaboração de diversas disciplinas. Em
ploração do problema comum identificado e com quem decorrência da amplitude e da complexidade do tema
deve colaborar para tanto; da mesma forma, conhecer envolvido, uma pesquisa interdisciplinar poderá con-
as operações concretas nas quais irá encontrar-se no templar apenas um ou vários programas. Estes poderão
trabalho de campo e em que condições precisas poderá frequentemente se suceder no tempo, em função do
aplicar os instrumentos de sua disciplina (a colaboração enriquecimento da problemática e da emergência de
de outros exige, às vezes, tolerar certas acomodações nas novas questões.
condições de sua própria prática). O esquema apresenta- – Operações relativas à pesquisa de campo. É atra-
do a seguir é uma tentativa de representar a organização vés delas que se executam os programas operacionais.
geral de um programa interdisciplinar. Este programa se Estes trabalhos serão monodisciplinares, na maioria das
subdivide verticalmente em vários níveis de abordagem, vezes, mas poderão também monitorar diversas discipli-
cada nível se desenvolvendo segundo um vetor temporal. nas, como nas pesquisas de múltiplos objetivos ou de
Podemos reconhecer: experimentos em condições reais. Assim, a escolha de
– A problemática geral do programa. Ela define: escalas de observação incompatíveis com as exigências
uma temática global; os campos de conhecimentos apro- de uma disciplina bem diferente, ou uma identificação
priados, um local (território e objetos de pesquisa); as estranha aos objetos de estudo, podem comprometer de
relações com a demanda social. Esta problemática não é, maneira definitiva o confronto dos resultados.
porém, definitiva, poderá ser desenvolvida e enriquecida Um programa interdisciplinar deve seguir um
no desenrolar do programa. procedimento caracterizado tanto pela coerência das

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escolhas efetuadas como pelo acerto entre os parceiros, outro precioso instrumento de reflexão coletiva pode ser
em todos os níveis representados aqui. O rigor não deve, constituído por uma rede de questionamentos recíprocos.
contudo, engendrar a rigidez e o dispositivo elaborado Longe de constituir aspecto secundário, a organi-
deve funcionar muito mais como um quadro de refe- zação prática da pesquisa constitui um aspecto essencial
rência do que um passo a seguir, do qual não se pode do trabalho interdisciplinar. As dificuldades derivadas
distanciar. A problemática de conjunto é necessariamente desse processo não são suficientemente tomadas em
conduzida para evoluir – e isto acontece sob a pressão consideração na maioria dos programas de pesquisa.
da “demanda social”. Pode-se colocar em andamento
programas operacionais, embora não previstos inicial-
A necessidade de criar recursos humanos para
mente. O mais importante é que qualquer mudança possa
ser identificada em função de um quadro de referência conduzir esta abordagem
global, para que se possa medir as repercussões, tanto do
ponto de vista do calendário como da articulação entre Depreende-se, pelo que foi dito até aqui, que
os diferentes níveis de abordagem e de colaboração entre o sistema de formação existente não responde, até o
as disciplinas. momento, aos novos desafios teóricos e metodológicos
B - A organização prática do trabalho. A coorde- postos pela abordagem interdisciplinar das inter-relações
nação dos trabalhos e a circulação das informações são entre o Sistema Natureza e o Sistema Sociedades, o
problemas típicos de todo trabalho de equipe. Eles se que equivale dizer, ao não atendimento da adoção de
multiplicam nos casos das pesquisas interdisciplinares, um enfoque científico que se adapte às exigências de
devido às diferenças que existem entre as representações, um enfoque dos problemas ambientais, em ternos de
os métodos e as linguagens das diversas disciplinas desenvolvimento sustentado.
envolvidas na cooperação. O recorte atual das formações se faz, ao contrário,
Por sua vez, a abordagem interdisciplinar é por si em base a uma hiperespecialização que torna, cada vez
portadora de confrontos e de controvérsias. Longe de mais difícil, a comunicação e a colaboração entre os
possuir uma característica acidental, as pesquisas inter- pesquisadores e os práticos das diferentes disciplinas.
disciplinares desempenham um papel heurístico cada vez As competências das quais se pode dispor atualmente,
mais fundamental, à medida que o debate ultrapasse o para tratar os problemas concretos de meio ambiente e
campo especulativo para alcançar o campo da prática. de desenvolvimento, são as que se constituíram através
Nestas condições, as questões de organização prática trajetórias pessoais, de indivíduos cujas experiência e
revestem uma importância particular. O emprego de engajamento permitiram superar o campo restrito da
técnicas correntes de comunicação, reuniões frequentes, disciplina, na qual se deu a formação inicial de cada um.
circulação de documentos... Entretanto, isto ainda é insu- Doravante, a necessidade se apresenta na formação
ficiente e torna-se indispensável a experiência concreta específica, capaz de produzir novos perfis de cientistas e
de um confronto das múltiplas leituras possíveis sobre a de práticos, dotados desde já de uma bagagem teórica e
mesma realidade. Isto só é possível mediante o encontro metodológica, permitindo-lhes uma abordagem global,
no próprio espaço concreto da pesquisa, em determinadas não mais setorial, dos problemas ambientais e de de-
etapas do seu cronograma. Da mesma forma, devem senvolvimento. É necessário também que esses novos
ocorrer operações comuns que obriguem confrontar os profissionais sejam preparados para dialogar e colaborar
detalhes das condições de coleta, de tratamento, forma- concretamente com outras disciplinas, sobre a resolução
lização e interpretação dos dados empíricos. É só a partir de questões científicas e práticas que não podem ser
dos confrontos em tomo dos métodos que os debates resolvidas no interior de apenas uma disciplina.
teóricos podem organizar-se com o máximo de eficácia. De que tipos de perfis se necessitam? Não de ge-
A interdisciplinaridade deve nutrir-se das questões neralistas pretensiosos de uma competência universal,
que as disciplinas apresentam umas para as outras; um que pretendem praticar sozinhos a interdisciplinaridade.
Necessita-se de especialistas, perfeitamente competentes

16 ZANONI, M.; RAYNAUT, C. Meio ambiente e desenvolvimento: imperativos para a pesquisa e a formação. Reflexões...
num campo disciplinar preciso (Biólogos, Agrônomos, para formular, de maneira rigorosa, as reivindicações
Médicos, Urbanistas, Engenheiros, Economistas, que são, por natureza, estranhas ao recorte da realidade
Geógrafos, Sociólogos, Antropólogos, etc.) mas que em campos científicos mas que têm necessidade de um
recebam uma formação complementar de alto nível que quadro conceitual para expressar-se com um rigor que
lhes permitam: lhes propiciará mais consistência.
– superar o quadro conceitual de sua disciplina de Ao reclamar uma melhor consideração dos proces-
base e conceber os seus limites; sos sociais na análise dos fatos ambientais, é necessário,
– problematizar da maneira mais ampla possível contudo, evitar cair na ilusão de que o “maior engaja-
questões de meio ambiente e de desenvolvimento, em mento das ciências humanas” colocadas a serviço de um
função de uma perspectiva teórica de conjunto, como enfoque holístico da análise dos fatos ambientais e de
aquela esboçada mais acima; desenvolvimento seria suscetível de dar aos atores uma
– compreender a linguagem, os objetivos científi- abordagem unificada dos fatos que se tornaria o funda-
cos e os métodos das outras disciplinas, a fim de poder mento científico de um consenso ou o instrumento para a
colaborar com elas. manipulação do real. Não se trata de atribuir ao social um
Retomando a distinção proposta por Vattimo cientismo ampliado para substituir ao que vem atuando,
(1992) pode-se dizer que a formação a ser concebida de- até o presente, sobre uma base exclusivamente técnica.
ve possibilitar, a cada um, a descoberta de novos paradig- Trata-se de evitar uma tentação “totalitária” que buscaria
mas, de novos modelos de apreensão do real – segundo no enfoque holístico suas justificativas científicas.
uma abordagem que ele qualifica de hermenêutica – no De qualquer maneira, a tentativa de assim proceder
lugar de se contentar de desenvolver o conhecimento estaria destinada ao fracasso, uma vez que os conflitos
e o saber-fazer no interior de apenas um paradigma – de identidade, os enfrentamentos de valores, as contra-
abordagem que ele designa como epistemológica. Como dições de interesses formam a própria matéria, da qual
ainda ele indica, a ideologia dominante da civilização se alimentam os processos sociais. É impossível fazer
industrial – adotada na maioria dos países em desenvolvi- a economia desses processos. Não há possibilidade de,
mento – superestimou até agora as ciências “duras” e as apenas pelo conhecimento, alcançar solução única para
disciplinas técnicas – percebidas como mais produtivas. um problema. Ao contrário, o conhecimento pode per-
Isto é particularmente marcante nas formações existentes mitir esclarecer a identificação das situações naturais,
no domínio ambiental, no qual os instrumentos de análise econômicas, sociais de um determinado contexto (é a
do sistema Sociedades são relegadas a segundo plano. própria finalidade da pesquisa) e oferecer a todos os par-
A diversificação dos paradigmas passa imperativamente ceiros envolvidos os meios de compreender as situações
por uma revalorização das ciências humanas, no interior (é o papel que se atribui à formação). Desta maneira, a
dos cursos de formação – de acordo com o modelo negociação se torna possível, apoiada em argumentos
Natureza/Sociedades, sobre o qual deve apoiar-se a válidos, tendendo a conciliar da melhor forma possível
abordagem do desenvolvimento sustentado. os interesses e as aspirações das partes em presença. É
Mais adiante, examinaremos as relações que exis- neste sentido que se pode dizer que os procedimentos
tem entre a aparição do novo campo de reflexão e de democráticos, amparados por um saber compartilhado,
pesquisa que tentamos demarcar, assim como a demanda podem oferecer uma flexibilidade nova para resolver
social que aparece como a instigadora. Se uma reflexão os problemas de meio ambiente e de desenvolvimento
global e interdisciplinar sobre as relações entre Sistema – contribuindo desta maneira, mesmo que de forma im-
Natureza e Sistema Sociedades responde a uma exigên- perfeita, à busca de um equilíbrio sustentado nas relações
cia científica, ela está igualmente ligada a exigências entre o Sistema Natureza e o Sistema Sociedades.
práticas. Isto quer dizer que esta nova abordagem não Em termos de formação, um tal projeto significa
deve permanecer restrita ao meio científico. Ela deve que os objetivos propostos deverão desdobrar-se em
inspirar os práticos do desenvolvimento e da gestão diversos níveis:
ambiental. Deve, também, oferecer ao público os meios

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 33, p. 9-30, abr. 2015. 17


– Do mundo científico e técnico que deverá analisar sua implementação seja tranquila, sobretudo quando se
os problemas e explorar os diferentes meios que estão trata de fazer com que homens e instituições colaborem
disponíveis para tanto. entre si. Diversos tipos de dificuldades aparecem no
– Dos responsáveis políticos e administrativos plano da cooperação científica entre disciplinas. Abor-
que deverão ser competentes para enunciar as questões daremos duas que nos parecem fundamentais.
práticas, de forma cientificamente adequada. A - Os territórios de poder. Cada disciplina de-
– Dos diferentes parceiros sociais que deverão senvolveu uma imagem de si própria, a partir da qual se
formular suas reivindicações, estabelecendo a ligação reconhece e interage com as comunidades dos cientistas.
entre suas aspirações e suas necessidades imediatas, Ela tende a fazer funcionar seu sistema de representação
por um lado, e as imposições de longo prazo de um científica como uma escala de valor: aceitar que outros
desenvolvimento sustentado, por outro. olhares possam ter idêntico valor que o seu, quando ana-
lisa seu objeto de estudo, pode parecer colocar em xeque
sua própria identidade; isto, sem considerar os aspectos
Problemas institucionais e sociais oriundos da
defensivos que uma tal atitude pode desencadear. Dito de
dinâmica desses objetivos maneira mais direta, construíram-se territórios de poder
sobre os territórios intelectuais, com as relações interpes-
Potencialidades e resistências dos sistemas de soais de dominação e de dependência que os viabilizam e
ensino e de pesquisa com os ganhos materiais e simbólicos que isto representa.
Um professor ou um pesquisador que batalhou durante
toda sua carreira para chegar a criar o departamento ou
Acabamos de ver que a interdisciplinaridade se o laboratório, símbolos emblemáticos de seu sucesso
revela como uma exigência científica e uma necessidade científico, que exerce sua tutela sobre estudantes e co-
prática, desde que se queira tratar de problemas de meio legas mais jovens e menos brilhantes, apresentará sérias
ambiente e de desenvolvimento, segundo uma perspec- resistências em relação a uma nova postura científica que
tiva não compartimentada. coloca em risco a lógica de seu procedimento. Por trás
A estrutura atual da pesquisa e da formação deve dos debates epistemológicos, nota-se essas resistências
constituir a base para a implementação deste novo enfo- mais do que qualquer outra coisa.
que. De fato, a interdisciplinaridade só será construída a B - Os procedimentos de avaliação. As comunida-
partir de disciplinas solidamente estabelecidas do ponto des científicas regulam seu funcionamento – consagram
de vista teórico e metodológico. É nas universidades e as filiações, sancionam as hierarquias – com base em
nos centros de pesquisa que se encontram atualmente os procedimentos de avaliação que cada disciplina estabe-
polos de excelência onde se realizam os trabalhos avan- leceu e que constituem a garantia do valor do trabalho
çados e onde a pesquisa de alto nível encontra abrigo. É intelectual consumado. No caso da formação, vale o
com este potencial que se deve trabalhar, dada a garantia controle da aquisição reconhecida de conhecimentos;
de qualidade que representa para a produção científica, no caso da pesquisa, legitimação da produção científica
sem a qual é tarefa vã pretender produzir algo inovador. original. A produção escrita deve satisfazer critérios
A pesquisa e a formação interdisciplinares, que traduzam a qualidade – publicação em revistas
necessárias à implementação de uma abordagem de com comitês editoriais, frequência de citações, etc. Tais
desenvolvimento sustentado, devem constituir-se a procedimentos constituem a forma pela qual a produção
partir daquilo que existe de melhor em cada uma das científica adquire reconhecimento. A reprodutibilidade
disciplinas envolvidas, ao contrário daquilo que poderia das observações num contexto onde os parâmetros são
considerar-se como a forma de um “menor denominador rigorosamente controlados é uma exigência fundamental
comum” científico. das ciências explicativas.
Mesmo se uma tal exigência parece ser amplamen- Esses diferentes critérios estão longe de serem
te aceita, no plano dos princípios, isto não significa que satisfeitos, no âmbito de nossa atuação. A complexidade

18 ZANONI, M.; RAYNAUT, C. Meio ambiente e desenvolvimento: imperativos para a pesquisa e a formação. Reflexões...
e a especificidade das situações analisadas torna a estrita expressas através da ação dos poderes públicos, como
reprodução das observações mais difícil ainda. O aspecto a manifestações mais informais que revelam as aspira-
prático dos problemas a resolver faz com que os resulta- ções ou as reivindicações mais ou menos organizadas e
dos sejam mais objeto de um uso social do que um caso contraditórias de categorias e de comunidades sociais.
para publicação. A novidade das questões colocadas e Em ambos casos, algumas questões são colocadas
dos métodos utilizados tornam precárias as condições à ciência. Isto ocorre nos casos de elaboração de relató-
usuais de referência e de legitimação – como as que rios (necessários sobretudo para o estabelecimento de
aparecem em revistas interdisciplinares reconhecidas, normas) ou na expectativa de soluções para problemas
no âmbito internacional, por exemplo – comprometendo mais concretos. Num caso como no outro, coloca-se a
assim a garantia do valor do trabalho realizado, segundo questão da produção do saber (tarefa da pesquisa) e da
esses critérios. transmissão deste saber em diferentes níveis, visando
Todos esses obstáculos, que remetem a verdadeiros torná-lo operacional. A Universidade, o lugar por exce-
problemas científicos, fazem com que nenhum indiví- lência da produção e da transmissão do saber, não poderia
duo, tomado isoladamente, possa escolher uma prática permanecer insensível às demandas que continuamente
interdisciplinar inovadora, sem colocar em perigo seu lhes são dirigidas.
futuro profissional. Apenas os cientistas, cuja posição A Universidade não pode limitar-se, apenas, a evo-
institucional está assegurada, poderiam correr este ris- car ritualisticamente a necessidade de “sair de sua torre
co: isto, porém, pôde contrariar as formas de interesse de marfim” e de levar em conta a demanda social. Não
estabelecidas e usuais. existe apenas uma, porém múltiplas demandas sociais
Feitas essas constatações, pode-se chegar à con- que refletem as contradições, os corporativismos e os
clusão de que para sair do impasse, o desafio deve ser conflitos que atravessam a sociedade. O Estado e seus
tomado a nível institucional; igualmente, deve-se pensar organismos são emissores de uma demanda – podendo
no estabelecimento de um quadro específico de legiti- expressar sua legitimidade à medida que a mesma ve-
mação do trabalho científico interdisciplinar – seja de nha revestida de forma democrática Da mesma maneira
maneira provisória até que um novo campo se estruture ocorre com a sociedade civil, com sua divisão de inte-
e que uma nova comunidade se forme, promovendo resses, seus confrontos e solidariedades. Cedo ou tarde,
seus próprios procedimentos de reconhecimento, de o engajamento das instituições universitárias, diante
avaliação e de validação. Não se trata de provocar a das diversas demandas que lhes são dirigidas, implicará
interdisciplinaridade através de uma prática voluntarista, escolhas e tomadas de posições que transcendem os
mas de oferecer as condições institucionais que permitam critérios exclusivamente científicos.
o exercício de uma vontade científica já em andamento. Para reduzir tais distorções, um esforço relevante
deve ser realizado a fim de contemplar as reivindicações
populares, as prioridades políticas e as exigências econô-
A relação com a demanda social
micas, para que ganhem sentido no campo científico. É
verdade que nem todos os parceiros potenciais dispõem
Quaisquer que sejam suas origens – mesmo que dos mesmos recursos para realizar esse esforço: as eli-
os cientistas tenham contribuído, algumas vezes, para a tes do poder e da economia dispõem de formação e de
tomada de consciência – os problemas ligados ao meio apoios técnicos que lhes facilitam o trabalho; a mesma
ambiente revestem, doravante, uma dimensão social que coisa não ocorre com os Movimentos Populares e, às
é exterior à ciência. Correspondem a situações cujas vezes, com as ONGs.
implicações escapam, em grande medida, do campo das A - O contexto geral das relações entre as universi-
preocupações científicas. São essas circunstâncias e suas dades e a demanda social no Brasil. Numa conjuntura de
manifestações coletivas que correspondem ao que se de- crise econômica e política, sobretudo no contexto de crise
signa sob o termo de demanda social. É uma noção vaga de identidade do Estado, a demanda social é veiculada
que pode ser aplicada tanto a formas institucionalizadas, principalmente pelas Organizações Não Governamentais

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 33, p. 9-30, abr. 2015. 19


e pelos Movimentos Associativos das mais diversas na- formação de dirigentes e de militantes de movimentos;
turezas. Estes se esforçam para suprir a incapacidade dos avaliação crítica das ações de desenvolvimento impostas
organismos públicos, no que se refere à formulação das pelas autoridades; produção de conhecimento para res-
demandas e dos meios adequados para seu atendimento. ponder a problemas específicos; difusão de informação
É muito comum, a nível local, as ONGs e as Associa- científica através de meios acessíveis.
ções substituírem o Estado nas ações relativas à saúde, Apesar da vontade expressa por ambas as partes,
educação, habitação, desenvolvimento agrícola. Neste visando a uma cooperação, algumas dificuldades apare-
contexto, a Universidade está cada vez mais voltada para ceram, dentre as quais se pode citar algumas:
colaborar com as ONG e os Movimentos Associativos – Uma mistura de papéis e uma confusão de rela-
que canalizam e organizam a demanda social. ções. Tanto mais as ONGs estão próximas da realidade
Esta questão foi diretamente abordada no Fórum social, mais elas sentem dificuldades de se relacionar
Rio 92, no painel Universidades, Movimentos Sociais, com a universidade. De parte de seus quadros, com os
Organizações Não Governamentais. Citamos aqui al- quais os universitários estão geralmente em contato, é
guns dos pontos enfatizados naquela ocasião. comum ocorrer uma confusão entre posições militantes
– As relações da universidade com a sociedade – inspiradas pela obtenção de relações de forças favorá-
civil estão condicionadas pelo papel que esta instituição veis no plano das lutas – e a preocupação de rigor e de
desempenha no conjunto das relações sociais e políti- prudência que guia o discurso científico. Esta mistura
cas. A universidade brasileira, ao longo de sua história, de papéis produz, em muitos casos, uma confusão nas
alinhou-se com as elites do Estado, das empresas e do relações. Isto é tanto mais verdadeiro na, medida em que
capital. Contribuiu diretamente para a consolidação do os movimentos sociais têm uma dimensão política; seus
modelo do atual desenvolvimento, que exclui milhões quadros militantes participam às vezes de tendências he-
de brasileiros dos benefícios do progresso. No contexto terogêneas em problemáticas variadas. Isto pode tornar a
da crise atual, espera-se mais do que nunca que a Uni- cooperação difícil com as equipes universitárias, porque
versidade possa desempenhar sua função de prestadora estas necessitam de objetivos científicos delimitados para
de serviço público e que se dedique a responder às elaborar sua problemática.
necessidades da maioria da população, em termos de – O acesso ao saber e ao conhecimento mútuo. A
produção e transmissão de conhecimento. demanda social, tal como chega às equipes científicas,
– A relação entre as universidades e as ONGs está é geralmente inspirada por situações vivenciadas, mas
subordinada a uma avaliação ética. As ONGs exigem é frequentemente formulada de uma maneira que a
conhecimento, mas elas também estão, habilitadas a torna dificilmente utilizável, como tal, num programa
oferecê-lo. A relação deve estabelecer-se com base na de pesquisa. Uma grande parte dos movimentos popu-
troca e não sob a forma de prestação de serviços. Mesmo lares desconhece a produção universitária, pois esta é
que esses contatos se devam, na maioria das vezes, às produzida sob uma forma que a torna inacessível aos
relações individuais fortemente personalizadas (entre não-especialistas e porque a seus quadros faltam noções
tais pesquisadores e tais responsáveis das ONGs, por de base que lhes permitam problematizar, em termos
exemplo), as relações entre universidades e ONGs ou científicos, as dificuldades concretas com as quais se
Movimentos Populares devem encontrar um apoio ins- confrontam. Inversamente, o meio universitário está
titucional. As universidades brasileiras devem abrir-se, muitas vezes divorciado da realidade vivida por seus
sob forma de convênio, com sindicatos, organizações interlocutores e não é sempre que se pode fazer a junção
sociais, religiosas, esportivas etc. É a este título que entre o saber construído e as necessidades daqueles que
poderão sobreviver às tentativas de privatização – quan- se dirigem à universidade. Para que a colaboração se
do não é o caso de sucateamento – diante das quais se tome frutífera, é indispensável estabelecer condições
expõem atualmente. de interconhecimento, quer dizer, uma troca de saberes.
– A contribuição das universidades pode assumir Essas condições estão distantes de se realizarem, daí a
múltiplas formas: estudos junto a movimentos populares; emergência de incompreensões e de dificuldades.

20 ZANONI, M.; RAYNAUT, C. Meio ambiente e desenvolvimento: imperativos para a pesquisa e a formação. Reflexões...
– A concorrência na obtenção de financiamentos. A instrumentos eficazes deve ocorrer simultaneamente
divergência de interesses institucionais pode ser acompa- com a conduta de uma reflexão científica aprofundada.
nhada de rivalidades mais palpáveis, na esfera da busca B - Algumas experiências brasileiras de resposta
de financiamentos. Os orçamentos das universidades universitária à demanda social. No Brasil, os problemas
se reduzem cada vez mais, o que não lhes permitem ambientais encontram suas raízes, em grande medida,
sequer garantir as condições mínimas de sobrevivência, nos processos de industrialização e de urbanização
obrigando-as a buscar fontes externas de financiamento acelerados que o país conheceu a partir dos anos 40. No
– sobretudo das agências bilaterais ou multilaterais de entanto, a expressão de uma tomada de consciência sobre
auxílio – para onde as ONGs se dirigem para buscar esses temas apareceu bem mais tarde, provocada pelo
financiamentos. Disto resulta uma situação de concor- aspecto claramente destruidor do modelo econômico,
rência que pode estar na origem das relações tensas. adotado durante o período da ditadura militar (1964-
– Os diferentes interesses institucionais. Os inte- 1985), na conjuntura eufórica do “milagre brasileiro”.
resses de instituições de natureza diferente nem sempre Essa tomada de consciência passou por diferentes
convergem. Embora a produção do conhecimento não etapas desde 1974: da proteção da natureza à sensibili-
constitua o principal objetivo das ONG, algumas delas zação crescente dos indivíduos e das populações à des-
são levadas a realizar pesquisas. Desta maneira, elas truição dos recursos naturais, até chegar hoje à adoção
entram neste campo, em concorrência com as universi- de uma nova ética do desenvolvimento que passa pela
dades, abordando a pesquisa em condições diferentes. busca de um modelo alternativo ao produtivismo e pela
As universidades são instituições cuja sobrevivência preocupação de uma qualidade de vida satisfatória para
está praticamente assegurada, independentemente de sua o conjunto da população.
produção imediata de conhecimento. Para reproduzir-se, Esta evolução é o resultado complexo do acúmu-
as ONGs e as Associações devem, ao contrário, prover lo de experiências locais ou regionais e da interação
constantemente o fluxo de financiamento e de adesão pa- de fatores econômicos, sociais, políticos e ecológicos
ra assegurar sua sobrevivência. Devem, portanto, provar específicos de cada situação local. É desta maneira que
sua eficiência aos olhos dos fornecedores de dinheiro e os movimentos sociais, oriundos dos conflitos agudos
de seus militantes. Estas distintas posições produzem, provocados pela explosão da refinaria de petróleo em
desde o início, atitudes divergentes no plano da pesquisa Cubatão, em São Paulo, pela construção da barragem de
e da produção do conhecimento. Assim, observa-se, do Itaipu no Paraná e de Tucuruí na Amazônia assumiram
lado das ONGs, uma valorização excessiva às vezes, do uma dimensão nacional, além de servir de exemplo para
curto prazo e da aplicabilidade da pesquisa; enquanto outros movimentos. Ademais, nos Estados diretamente
que no meio universitário, perde-se muitas vezes de envolvidos, os movimentos contribuíram para uma im-
vista a noção de utilidade social da produção científica, portante mobilização de certas equipes do governo, de
em benefício da busca de reconhecimento por parte de universitários e de agentes do movimento associativo.
uma pequena comunidade de pares. Estas perspectivas É em torno de tais temas concretos que se erigiu a coo-
divergentes tornam frequentemente a colaboração difícil. peração entre os meios científicos e as diferentes esferas
Não se deve perder de vista, por sua vez, que uma da demanda social.
formulação científica adequada só é possível se o marco Neste contexto geral, numerosos intelectuais e
conceitual, teórico e metodológico, existe para ser cum- cientistas se engajaram para colocar suas competências
prido. Vimos mais acima, em relação ao meio ambiente, a serviço dessas lutas. Diversos universitários brasilei-
que nos encontramos atualmente numa fase de constru- ros estabeleceram trocas com ONGs e com diferentes
ção do campo científico que exige ajustes, redefinições, movimentos sociais, em ocasião de conflitos relativos a
tentativas que nem sempre facilitam a problematização problemas ambientais. Dentre a multiplicidade de exem-
científica das questões concretas que emergem da socie- plos que se pode oferecer dessa colaboração, retivemos
dade civil ou das estruturas do Estado. Esta constatação alguns particularmente ilustrativos.
deve confirmar a convicção de que a elaboração de

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 33, p. 9-30, abr. 2015. 21


– Movimentos oriundos dos impactos sociais e apresentados como inevitáveis, era um empreendimento
ambientais das grandes barragens. Os movimentos perigoso querer forjar uma identidade comunitária cujo
sociais nasceram em resposta aos múltiplos impactos objetivo poderia aparecer oposto ao progresso. O apoio
desestabilizadores das grandes obras de barragens: de- trazido pelos cientistas foi, pois, determinante nesta
sestruturação das atividades econômicas preexistentes, caminhada. Permitiu colocar o debate num outro nível
crescimento desordenado da população, expulsão dos daquele que os partidários das barragens buscavam isolar
agricultores – cuja consequência foi a marginalização e e também reconsiderar a construção destas à luz de uma
o desemprego –, degradação ambiental. Este foi o caso análise crítica do modelo energético brasileiro.
da realização das grandes barragens do Alto Uruguai (Es- – As reservas florestais extrativas da Amazônia.
tado do Rio Grande do Sul). O Instituto de Planejamento A partir dos anos 1971/1975, o Estado amazônico do
Urbano e Regional (IPUR) da Universidade Federal do Acre conheceu uma verdadeira “febre de terras” – para
Rio de Janeiro foi solicitado para prestar apoio ao Mo- satisfazer ao desenvolvimento explosivo da pecuária
vimento dos Agricultores, vítimas daquelas barragens. extensiva. Imensos espaços foram assim desmatados.
Esta demanda foi feita através de uma ONG: o Centro Expulsos de seus territórios de exploração da Hevea, os
Ecumênico de Documentação e Informação (CEDI). seringueiros empreenderam diversas formas de resistên-
Uma ligação institucional, sob forma de acordo cia. Organizaram-se em movimento, sob a direção do
oficial, foi estabeleci da entre o CEDI e a Universidade Conselho Nacional dos Seringueiros que, muito rapida-
Federal do Rio de Janeiro. Seu objetivo era o apoio téc- mente, anexaram à sua luta reivindicatória propostas de
nico e de formação - com a edição de textos didáticos desenvolvimento e de proteção dos recursos naturais:
sobre as políticas energéticas, sobre as políticas e as a principal delas foi a criação de reservas de extração.
legislações relativas ao meio ambiente, sobre o desenvol- Estas representam a seus olhos “a reforma agrária dos
vimento regional e as barragens. Uma colaboração direta seringueiros”. Consistem em atribuir terras da União
teve lugar também com o Movimento dos Agricultores, – oriundas da tutela do Estado Federal – sob forma de
vítimas das barragens: contribuição para a reconstituição concessões de uso, para seringueiros organizados em
da história do movimento; análise da documentação cooperativas e em associações. Estas reservas são con-
sobre os estudos oficiais dos impactos; simulação do cebidas fora de toda atribuição de títulos individuais de
funcionamento das auditorias públicas. propriedade – mantendo-se a cultura e as formas tradi-
O engajamento desta instituição universitária foi cionais de organização e de trabalho dos seringueiros.
motivado pelo interesse ligado ao campo temático e pelas O objetivo é assegurar simultaneamente a conservação
competências que podia colocar a serviço deste proble- da floresta e o desenvolvimento das atividades eco-
ma. As pesquisas engajadas, preocupadas em responder nômicas, com o auxílio de tecnologias apropriadas.
aos critérios de rigor científico, possuíam uma dimensão Estas reservas são concebidas como uma alternativa às
política: seu objetivo era formular um saber que pudesse formas de exploração predatória da floresta amazônica.
ser transmitido aos movimentos populares e sobre o qual Estas reivindicações foram reconhecidas pelo Governo
pudessem apoiar suas práticas reivindicatórias. e um decreto definiu a existência e as condições de sua
Encontra-se nisto a ilustração perfeita de uma pro- criação em 1990.
dução científica que indaga sobre sua utilidade social e A implantação de um tal projeto implica um tra-
escolhe claramente seus parceiros entre os protagonistas balho de pesquisa científica e técnica que possa permitir
emergentes das lutas ambientais – protagonistas que lançar as bases de uma exploração sustentável dos recur-
podem, cada um deles, pretender formular uma demanda sos florestais e de um desenvolvimento das comunidades
social! O confronto com as empresas elétricas represen- de seringueiros. Um convênio foi firmado para esta fina-
tou um grande desafio para os movimentos populares, lidade entre a Universidade Federal do Acre e o Conselho
construídos em tomo da resistência à implantação au- Nacional dos Seringueiros. A ação dos pesquisadores e
toritária das grandes barragens. Diante de um discurso dos professores se exerce simultaneamente na esfera da
que se apoiava em argumentos técnicos e econômicos formação e da pesquisa de campo, com uma particular

22 ZANONI, M.; RAYNAUT, C. Meio ambiente e desenvolvimento: imperativos para a pesquisa e a formação. Reflexões...
exigência, qual seja, a de apresentar de maneira acessível relações entre o mundo da formação e da pesquisa, de
e prática os conhecimentos produzidos, colocando-os um lado e de outro, da demanda social.
ao alcance da população que possui um baixo nível de
escolaridade. Dentre as ações conduzidas pela Univer-
A criação do Doutorado em Meio Ambiente e
sidade do Acre, citam-se:
– Uma coordenação dos trabalhos de campo em 8 Desenvolvimento da Universidade Federal do
zonas de reserva extrativista do Vale do Acre. Paraná
– A participação de estudantes estagiários nos
trabalhos de pesquisa de campo. A formação doutoral proposta pela Universidade
– A formação de seringueiros em técnicas de en- Federal do Paraná é resultado de um trabalho de reflexão,
quete sobre seus sistemas de produção agro-florestais e iniciado em 1990, no contexto local da problemática
suas condições de vida. meio ambiente/desenvolvimento, no Brasil e em par-
ticular no Paraná. Extrai sua substância nas múltiplas
– A fixação das populações rurais nos assenta- reflexões e propostas formuladas em outros países da
mentos da reforma agrária. No quadro do processo de região da América Latina/Caribe, a partir da tomada de
reforma agrária, as atribuições de terras – assentamentos consciência dos limites dos modelos de desenvolvimento
– foram previstas em benefício dos camponeses sem existentes.
terra. É em grande parte o resultado das lutas conduzidas
pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, bastante
desenvolvido no Sul do Brasil. No Paraná, durante o O contexto internacional e regional
período 1983-1985, a Secretaria de Estado da Agricul-
tura envolveu agrônomos, sociólogos, economistas e Os objetivos desta formação universitária de pós-
diversos serviços do Estado no apoio aos assentamentos. -graduação estão em harmonia com as preocupações
Um convênio foi assinado, para esta finalidade, entre a expostas, em ocasião dos diferentes trabalhos e reuniões
Universidade Federal e o Departamento de Economia preparatórias da Conferência das Nações Unidas sobre
Rural da Secretaria de Estado da Agricultura. Os obje- Meio Ambiente e Desenvolvimento, ocorrida no Rio de
tivos eram os seguintes: Janeiro em 1992 e propostas na Agenda 21. Coincidem,
– A elaboração de diagnósticos nas áreas agrícola por sua vez, com as propostas do relatório Brundtland.
e econômica. Estes trabalhos ressaltam alguns princípios e ne-
– A troca de informações entre os movimentos cessidades fundamentais.
sociais e os serviços do Estado. – Antes de mais nada, a dimensão ambiental e a
– A colaboração nas negociações entre as comuni- problemática do desenvolvimento. A primeira constitui
dades camponesas e o Estado visando as operações de parte integrante dos processos de desenvolvimento e por
desenvolvimento integrado (produção, comercialização, esta razão não pode ser tratada isoladamente.
habitação, infraestrutura). – Em seguida, a fato de que a resolução dos pro-
Iniciativas muito semelhantes tiveram lugar no blemas de meio ambiente e de desenvolvimento passa
Estado vizinho São Paulo, mas neste caso a Universidade pela busca de soluções endógenas, isto é, que emanem
Estadual de Campinas manteve convênios diretos com os da vontade livre da sociedade e que se apoiem na rea-
Movimentos de Agricultores, sem passar por intermédio lidade socioeconômica, cultural e natural regional. Isto
das estruturas do Estado. implica a promoção de uma pesquisa científica, visando a
Numerosos outros exemplos poderiam ser citados, formação de competências para a implantação de planos
de colaboração entre os meios científicos e os movimen- nacionais de desenvolvimento, a produção e a gestão de
tos sociais. Esta colaboração constitui uma tradição com tecnologia para um desenvolvimento sustentado. Isto
raízes profundas, sem a qual não é possível entender, supõe igualmente o reconhecimento da importância das
no Brasil, as condições específicas nas quais se dão as especificidades culturais, especialmente no que se refere

Desenvolv. Meio Ambiente, v. 33, p. 9-30, abr. 2015. 23


ao conhecimento das populações locais sobre o meio zação das terras. A expansão da agricultura nas regiões
natural e sobre as modalidades de gestão e de utilização férteis do Norte e do Oeste do Estado, a partir dos anos
sustentável dos recursos. 40, produziu a desaparição de 83% da cobertura vegetal
– No que se refere à formação, a ênfase é colo- existente. No final de 50 anos, as superfícies cobertas de
cada sobre o reforço da capacidade de constituição dos florestas não representam mais do que 5% da superfície
recursos humanos, em particular no domínio específico total – concentradas na região Centro-Sul e no litoral.
da gestão de recursos naturais. A agricultura, fundada no princípio da revolução
Apesar de diversos centros de excelência em verde, empregou sistemas técnicos inadaptados, que não
formação e pesquisa na América Latina e Caribe, estes levaram em conta as necessidades de reprodução dos
estão distribuídos de forma desigual além de escassos recursos naturais e da fertilidade dos solos. As conse-
programas de formação na perspectiva da interdiscipli- quências foram desastrosas: apenas na região Noroeste,
naridade, principalmente nas áreas de desenvolvimento 1 milhão de hectares acusaram erosão, comprometendo
e da gestão integrada de recursos. as atividades agrícolas.
A Agenda 21, em seu capítulo 36, recomenda as Este tipo de agricultura está na origem, também,
universidades a jogar um papel de locomotiva na promo- do processo de acumulação da terra e do êxodo rural
ção ou na consolidação dos centros de excelência nacio- que é a sua consequência. No decênio 1970-80, ocorreu
nais ou regionais em pesquisa interdisciplinar, em relação a desaparição de mais de 100.000 estabelecimentos
às ciências do meio ambiente e do desenvolvimento. No agrícolas. O processo de acumulação fundiária atingiu
tocante à formação, a proposta é de uma profunda revisão particularmente os pequenos agricultores – posseiros,
dos cursos, a fim de garantir e desenvolver um enfoque meeiros, pequenos proprietários –, que representam
interdisciplinar na formulação de diagnósticos relativos 93% dos estabelecimentos desaparecidos. Isto se fez
ao meio ambiente e ao desenvolvimento, levando em acompanhar da redução de 800.000 hectares de superfí-
conta os aspectos socioculturais, econômicos, políticos cie consagrada às culturas alimentares e de um aumento
e suas inter-relações. A formação ou a consolidação das de 2,7 milhões de hectares em culturas agroindustriais
redes universitárias em cada país ou a nível regional deve (cama de açúcar para combustível) e em culturas de
conduzir à promoção da pesquisa de forma cooperativa, exportação (sobretudo de soja).
ao intercâmbio e à difusão da informação. Alguns fatos importantes da história recente contri-
Ademais, ao lado da formação universitária de 2.º e buíram para a formação e a consciência ecológica neste
3.º ciclo (graduação e pós-graduação), a Agenda 21 apoia Estado e à emergência de um contexto político original.
a implantação de programas de curta duração destinados A - A mobilização contra a inundação das terras
à formação de profissionais do setor privado, de agentes agrícolas pela barragem de Itaipu. O protesto iniciou
de desenvolvimento e de técnicos, com a finalidade de em 1983, com reivindicações de natureza estética: a
fornecer à população e às comunidades locais os serviços construção da barragem faria desaparecer as Sete Quedas
necessários, em especial, os primeiros cuidados com o do Iguaçu, conhecidas internacionalmente. Logo em
meio ambiente, especialmente nos meios urbano e rural seguida, o alagamento das terras agrícolas e a expulsão
desprotegidos. de 40.000 famílias camponesas evidenciaram os efeitos
sociais deste canteiro de obras. Poderosos movimentos
ecológicos, inspirados pela ADEA (Associação de De-
O contexto da iniciativa
fesa Ambiental do Paraná), iniciados num contexto de
proteção à natureza, foram seguidos por mobilizações
É necessário apresentar alguns aspectos históricos dos sindicatos de trabalhadores rurais e pelo Movimento
gerais da emergência da questão ambiental nesta região dos trabalhadores sem terra, auxiliados pela associação
do Brasil. O Estado do Paraná que sofreu desde os anos dos agrônomos do Estado do Paraná. Do protesto contra
1940-60 uma dinâmica de frente pioneira, mostra de o desaparecimento das Sete Quedas, da expulsão dos
maneira exemplar os impactos produzidos pela coloni- agricultores de suas terras, à denúncia da poluição dos

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agrotóxicos, emerge uma reflexão crítica ao modelo deste, a origem de um grande número de problemas
agrícola da revolução verde. Essas lutas forneceram as ambientais. Algumas das principais iniciativas tomadas
condições para a colaboração entre os meios científicos, pela equipe, podem ser citadas.
profissionais e os movimentos de origem popular. – Criação, no Instituto Agronômico do Paraná, de
B - Mobilização para a proteção da natureza e um Programa de pesquisa sobre os Sistemas de Produção
das culturas autóctones. Como prolongamento das lutas destinado a ponderar a abordagem dominante do modelo
contra o desaparecimento das Sete Quedas do Iguaçu, de desenvolvimento agrícola vigente.
constituíram-se movimentos ecologistas, cujo objetivo – Lançamento de um programa para o desenvol-
era a defesa dos últimos vestígios de um patrimônio na- vimento de uma agricultura alternativa, fundada na
tural e cultural: de início, pela defesa da Mata Atlântica gestão integrada dos solos e das águas, na agroflorestal,
e, posteriormente, contra a destruição da cultura Caiçara no melhoramento das raças animais e das variedades
– uma das últimas populações da região deixada de lado vegetais rústicas, na tração animal como forma de
pelo modelo de desenvolvimento da revolução verde. Em energia alternativa, na luta biológica, no melhoramen-
tomo destes objetivos, a Associação SOS Mata Atlântica, to das técnicas tradicionais (recuperação dos antigos
criada nos dois Estados vizinhos de São Paulo e Paraná, moinhos). Essas opções técnicas foram acompanhadas
jogou um papel de proa na proteção do patrimônio na- de operações na área de produção de alimentos (hortas
tural e cultural e principalmente na implantação de uma comunitárias, piscicultura rural, etc.) e de distribuição
legislação de proteção para a região. (mercados comunitários) e de proteção fundiária dos
C - O aparecimento de condições políticas favorá- pequenos agricultores.
veis para a elaboração de uma política ambiental, ligada – Programas de economia dos recursos: cons-
ao desenvolvimento local e regional. De 1983 a 1985, truções comunitárias de redes de distribuição elétrica
o poder local fica em mãos de uma geração de antigos com materiais de baixo custo, abertura de fontes para
líderes do movimento estudantil, de antigos exilados po- abastecimento de água em micropoços.
líticos na Europa ou na América Latina, de sindicalistas – Controle rigoroso da poluição, programas de
de longa data, de funcionários e de universitários demo- educação ambiental popular (água, ar, lixo).
cratas. Todos compartilhavam uma história de resistência Estas são algumas das iniciativas lançadas pela
à ditadura e uma sensibilidade para os problemas sociais equipe durante o período no qual exerceu o poder pú-
derivados do desenvolvimento agrícola e rural: degra- blico. Algumas delas alcançaram sucesso tendo sido
dação dos solos, expulsão dos camponeses sob o efeito adotadas em outros Estados do Brasil, outras conheceram
de grandes canteiros de obras ou como consequência da o fracasso. O importante, para compreender a situação
acumulação fundiária, êxodo rural. atual, é destacar que aqueles programas de ação estive-
Sob o efeito daquela influência, diferentes progra- ram na origem de uma dinâmica de colaboração entre
mas de pesquisa e de desenvolvimento foram empreendi- universitários e pesquisadores, por um lado e por outro,
dos em diversos Institutos no Estado. O Paraná foi o pri- de funcionários, técnicos e agentes de desenvolvimento
meiro Estado do Brasil a realizar consultas populares que (muitas vezes apoiados pelas respectivas associações
originaram a elaboração do Programa de Meio Ambiente profissionais).
do Estado do Paraná (PEMA), em 1984. Um Comitê Diante da instabilidade das estruturas políticas
de Estado foi formado, reunindo diversas Secretarias de e para responder aos problemas levantados por uma
Estado: Agricultura, Educação, Interior, Planejamento, colaboração, muitas vezes difícil, entre os diferentes
Saúde e Segurança Pública. Tinha por missão a aplicação parceiros que se encontravam no campo de ação, apa-
de políticas concebidas para aquela finalidade. rece a ideia de concentração em torno da Universidade,
A Secretaria de Estado da Agricultura e a Secretaria do esforço de formação a longo prazo, através do qual
do Interior foram pioneiras nesta iniciativa. Defenderam se constitua um capital humano adaptado aos desafios
uma visão crítica ao modelo vigente de desenvolvimento, colocados pela necessária renovação das estratégias de
identificando na abordagem exclusivamente tecnicista desenvolvimento.

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Ponto de partida da criação do Doutorado atividades de formação e de difusão junto às prefeituras,
associações, sindicatos e aos movimentos populares.
A vontade expressa desta maneira, encontra um
A Universidade Federal do Paraná é uma das
terreno de expressão favorável para uma colaboração
universidades federais mais antigas do Brasil. Era iden-
estreita entre a UFPR e a Universidade Francesa Paris
tificada como conservadora em suas manifestações, pri-
7. Esta colaboração se organiza ao redor do projeto de
vilegiando o desenvolvimento de polos tecnológicos, em
criação de um curso de pós-graduação e de um Centro
detrimento das ciências humanas e sociais. O confronto
de Pesquisa Interdisciplinar, Formação e Difusão em
com a problemática ambiental, como resposta a uma
Meio Ambiente e Desenvolvimento (NIMAD: Núcleo
demanda social, intermediada pelo aparelho político,
Interdisciplinar de Meio Ambiente e Desenvolvimen-
representou um desafio que implicou uma mudança no
to), criado em 1989 e que deve oferecer um quadro de
papel e na produção de um novo saber, capaz de respon-
colaboração aos professores da Universidade, oriundos
der às necessidades sociais, o que significa redefinir a
de diferentes disciplinas. Contatos posteriores foram
prioridade nas relações entre as sociedades e os meios
feitos com a Universidade de Bordeaux 2, que participa
que são explorados por estas.
hoje das atividades de formação e de pesquisa ligadas
Excluindo o contexto sociopolítico do Paraná, um
ao projeto.
certo número de fatores externos também contribuiu para
Repetimos aqui, pela sua importância, as etapas
favorecer a mudança de visão sobre o novo engajamento
seguidas para cumprir esta primeira etapa do projeto.
da Universidade.
– Consultar as autoridades universitárias sobre a
– Note-se, em primeiro lugar, que um movimento
importância que tal projeto de curso representava para
mais amplo produziu-se no Brasil, favorecendo o inte-
a Universidade.
resse das universidades pelos problemas ambientais. O
– Reunir os Departamentos de Ciências Humanas
ponto de partida foi um primeiro Seminário Nacional
e Sociais, de Ciências Naturais e de Disciplinas técnicas,
sobre a Universidade e o Meio Ambiente, que reuniu
tendo em vista um trabalho preliminar, destinado a iden-
em 1986 dezenas de instituições universitárias. Uma das
tificar o papel potencial e cada disciplina na abordagem
conclusões daquela reunião foi a implantação de cursos
das problemáticas ambientais.
de pós-graduação em Meio Ambiente em universidades
– Formar um núcleo central de professores, ligados
brasileiras. Desde então, desenvolveram-se alguns fóruns
a diferentes disciplinas e encarregados de elaborar um
de discussão permanente. Foram abordados temas de
pré-projeto, em suas dimensões práticas e teóricas.
reflexão sobre a necessidade de um enfoque interdisci-
– Organizar um seminário destinado a preencher
plinar, sobre a necessidade de novos conceitos teóricos,
um certo número de lacunas teóricas – em particular
sobre o papel social da produção do saber, sobre o con-
aquelas que estabelecem uma ligação entre meio am-
teúdo dos cursos. No último encontro, realizado em Belo
biente e desenvolvimento, buscando definir também os
Horizonte em 1992, foram sugeridas recomendações
avanços epistemológicos necessários para a implantação
contidas na Carta de Belo Horizonte. Os trabalhos de
da interdisciplinaridade.
seminários anuais publicados alimentaram e guiaram
– Organizar um seminário de balanço das experiên-
as discussões no seio das universidades interessadas na
cias relativas à formação’ e à pesquisa em meio ambiente
implantação de atividades de pesquisa, de formação e de
adquiridas pelas diferentes disciplinas sobre o tema.
difusão de conhecimentos na área ambiental.
Por essas diferentes etapas e a partir de um grupo
– Por sua vez, a Universidade Federal do Paraná
bem motivado, tratava-se afinal de contas de associar os
(UFPR) não pôde permanecer à margem da problemática
professores e seus departamentos, sublinhando o papel
local de destruição dos recursos naturais, evocados mais
indispensável que deveria jogar cada uma das disciplinas
acima. As conjunturas locais e regionais sensibilizaram
- no plano da formação e da pesquisa.
a nova direção democraticamente eleita, da mesma
maneira que um grupo de professores engajados já em

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As reações da Instituição Universitária formação que pudesse aproximar o campo ambiental,
bem como o das relações sociedade-natureza.
B - Outros obstáculos de natureza institucional. O
A realização deste projeto não se fez sem encontrar
NIMAD foi deliberadamente criado fora da estrutura de
obstáculos de diferentes espécies.
departamentos, a fim de promover a colaboração entre
A - Alguns obstáculos de natureza científica. Al-
estes últimos e para poder garantir respostas à demanda
guns eram ligados à dificuldade sentida para separar o
social, sem ter que depender das divisões institucionais.
objeto de estudo “meio ambiente” do campo das disci-
Uma mesma estratégia foi aplicada em muitas outras
plinas naturalistas (biologia, física, química, botânica,
universidades brasileiras (por ex.: Brasília, Campinas).
zoologia, etc.). Esta dificuldade se devia, por um lado,
Por isto, a constituição do NIMAD foi interpretada como
à impossibilidade, para estas disciplinas, de conceber
uma ameaça para os territórios de poder, que alegavam o
o papel que as ciências sociais poderiam desempenhar
problema de divisão das disciplinas. Apareceram então
na esfera da pesquisa. Porém, observou-se também
reações defensivas, sob o argumento de que um douto-
que as disciplinas como a antropologia e a sociologia
rado não pode pretender-se interdisciplinar, à medida
nem sempre percebiam, muito claramente, como elas
que deve ser o resultado de uma especialização. Esta
poderiam aplicar seus métodos e suas problemáticas
argumentação prosseguia, afirmando o caráter de gene-
específicas quando aplicadas ao meio ambiente. Dessas
ralista dos doutores egressos do curso, cujo perfil estaria
incompreensões, derivava uma certa falta de interesse
em contradição com o próprio caráter do doutorado que
da parte dos professores e dos pesquisadores solicitados
deve formar especialistas.
– o que se traduzia numa rotatividade elevada daqueles
Às reações derivadas deste confronto de poder
que estavam escalados para participar da organização do
agregavam-se outros obstáculos de natureza adminis-
curso. A consequência foi a ausência de aprofundamento
trativa: ausência de estruturas interdepartamentais,
na reflexão teórica.
previstas nos regimentos; impossibilidade de jovens
As diferenças de linguagem entre as disciplinas
professores, não detentores do título de doutor, de
não facilitaram o intercâmbio e as discussões. Isto se
participar de atividades de pesquisa e de formação de
deu particularmente no caso da comunicação entre as
nível doutoral; estes, no entanto, são os mais dinâmicos
Ciências Humanas de um lado e as Ciências Naturais e
e inovadores do corpo docente.
as disciplinas de Engenharia, de outro. As prioridades
Somente ao final de uma longa maturação que estes
de pesquisa, os métodos de trabalho, os esquemas de
diferentes obstáculos puderam ser superados. Muitos
interpretação do real, da mesma forma que os níveis
elementos foram importantes, neste sentido.
de análise não sendo os mesmos, de um grupo de dis-
– A ação determinada de um pequeno núcleo de
ciplinas para outro, o diálogo que visava a definição de
pessoas convencidas e que não se deixaram desencorajar,
plataformas de trabalho encontrou uma certa dificuldade
prosseguiram com a reflexão sobre o projeto e consegui-
para se estabelecer.
ram fazer avançar na sua conceitualização.
A herança de estruturas universitárias, derivada
– Uma explicitação dos objetivos do doutorado
do período anterior à democratização, também pesou.
permitiu a resolução da contradição aparente, entre as
Assim, em Sociologia, a maioria dos professores man-
exigências de especialização e as necessidades da inter-
teve-se ausente, sem grande ligação com as atividades
disciplinaridade. Ficou bem estabelecido que a formação
de pesquisa. A equipe mais dinâmica reduzia-se, assim,
doutoral se dirige para especialistas que já receberam
a um pequeno número de pesquisadores.
uma forte formação disciplinar e que vêm buscar os
No final de contas, pela ausência de participação
instrumentos teóricos e metodológicos necessários para
do Setor de Ciências Sociais e pela predominância do
lançar o diálogo, em torno dos problemas ambientais,
Setor das Ciências Físicas e Naturais, foi difícil, numa
com os cientistas de outras disciplinas.
primeira etapa, definir um programa de pesquisa e de

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– A firme vontade da direção da universidade, que representantes do Estado mostraram a necessidade de
se esmerou a aplainar os obstáculos administrativos, formação dos quadros do serviço público e da juven-
quando necessário. tude. Manifestaram a necessidade em “especialistas-
– A intervenção, durante as principais etapas, de -generalistas” cuja formação era concebida como
parceiros de universidades francesas que puderam, ao um meio para promover a mudança, no interior das
mesmo tempo, jogar um papel de mediação e constituir próprias estruturas político-administrativas. O desejo
uma garantia científica para o início do doutorado, para expressava-se, naquela ocasião, em ver nascer uma nova
o qual estava prevista sua contribuição nas respectivas universidade, que fosse capaz de sistematizar conceitos
áreas de competência: formação e enquadramento das e métodos necessários para tratar problemas complexos,
pesquisas. impossíveis de resolver apenas com o auxílio do enfoque
monodisciplinar.
Este confronto, através do aparelho de Estado,
As estruturas políticas e as organizações técnicas
com o apelo de uma utilidade social – já identificado
do desenvolvimento e do meio ambiente por um certo número de professores e pesquisadores –
conduziu ao reforço da dimensão do desenvolvimento
O contexto político e social da tomada de cons- na concepção do curso de formação e de pesquisa. Um
ciência da questão ambiental no Paraná foi acima terreno prioritário de ação foi definido, onde deveria
apresentado. No período de liberalização logo após o ser exercida a atividade de Pesquisa-Desenvolvimento:
regime militar, a demanda social que se expressou de trata-se da região litorânea que, tendo evitado até o pre-
maneira explosiva dirigiu-se de maneira prioritária para sente o efeito de homogeneização da grande agricultura,
as estruturas políticas locais – as quais vimos adotarem representa um meio diversificado nos planos natural e
opções progressistas, convergindo no sentido de uma socioeconômico. Pode-se encontrar no litoral um labo-
renovação de enfoque de desenvolvimento. ratório para o exercício prático da interdisciplinaridade
A - As circunstâncias de uma colaboração. O e a produção de diagnósticos de realidades complexas.
Estado do Paraná encontrou-se na linha de frente diante B - Os pontos de tensão. Apesar de um acordo de
das reivindicações populares. Num primeiro momento, conjunto sobre os grandes objetivos, a relação que se
adotou uma posição de vanguarda frente a essas reivin- estabeleceu entre o Estado e a Universidade Federal do
dicações: contribuiu para a sua organização. Em ocasião Paraná, em volta da problemática do meio ambiente e do
desta dinâmica, criou-se uma forma de consórcio entre desenvolvimento, a tensão não deixou de acompanhar
a universidade e as estruturas político-administrativas. esta aproximação.
A instituição universitária aspirava ter acesso a uma Um ponto importante de desarmonia residiu nas
utilidade social ampla – mais além da constituição e da diferenças de funcionamento das instituições: como
renovação das elites dirigentes –, contribuindo para a conciliar uma instituição universitária até então conser-
formação de funcionários, técnicos, quadros, agentes de vadora, elitista, comprometida com uma ideia contestada
desenvolvimento, e por intermédio disto, para melhorar do progresso, porém estável, com um Estado dinâmico,
as políticas públicas relativas à gestão dos recursos natu- preocupado com a realidade social, porém instável uma
rais, no quadro de um planejamento do desenvolvimento vez que sofre frequentes remanejamentos políticos. Para
rural e urbano. atenuar a falta de dinamismo de certos setores da univer-
Foi nestas bases que se estabeleceram as relações sidade, os quadros e os pesquisadores do Estado propu-
entre a Universidade Federal e o Estado do Paraná. seram, para a condução da formação de pós-graduação
Uma reunião conjunta, entre diversos departamentos da em Meio Ambiente e Desenvolvimento, a constituição
Universidade e das Secretarias de Estado da Educação, de um comitê paritário. A Universidade recusou esta
do Planejamento, da Agricultura, do Desenvolvimento proposta, uma vez que estava ligada à defesa de suas
Urbano e do Meio Ambiente foi organizada em presença prerrogativas, em matéria de atribuição de diplomas. Um
do Vice-Governador e do Reitor da Universidade. Os dos argumentos adiantados foi também – e aqui ressalta-

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-se as diferenças de estabilidade das instituições – que por um trabalho de surdina para superar a lentidão que
a Universidade não poderia colocar-se numa situação freia a evolução das estruturas de ensino e de pesquisa,
de dependência diante de instituições governamentais os obstáculos que se opõem à colaboração entre os múl-
cujas opções tornavam-se prisioneiras de reviravoltas tiplos parceiros (intelectuais, políticos, representantes
da vida política. do mundo econômico, responsáveis de movimentos
O conflito foi superado mediante a assinatura de populares) que estão envolvidos, de uma maneira ou
um protocolo de intenções entre a Universidade e as outra, quando se trata de conceber, sobre bases científicas
Secretarias de Estado do Paraná envolvidas no projeto. e sociais válidas, estratégias duradouras de desenvolvi-
Este documento estabelecia o papel de cada um dos mento, para em seguida colocá-las em prática.
parceiros, em vista dos seguintes objetivos: Uma pesquisa inovadora, a formação e a informa-
– Formar cientistas, técnicos e funcionários que ção são os alicerces de uma dinâmica destinada a consti-
respondam às necessidades da Universidade, do Estado tuir os recursos humanos necessários para alcançar um tal
e das populações. objetivo. O exemplo do Brasil, e mais precisamente, o da
– Elaborar novos conhecimentos, métodos, técni- experiência de criação do Doutorado em Meio Ambiente
cas que possam permitir a gestão e o planejamento de e Desenvolvimento na Universidade Federal do Paraná
sistemas complexos. permitiu ilustrar, de maneira concreta, as condições nas
– Conceber e gerar programas de desenvolvimento quais as soluções podem ser buscadas para responder a
sustentado, fundados na utilização racional dos recursos essa necessidade.
renováveis e no respeito às populações que os exploram. Trata-se, evidentemente, de um caso entre muitos
– Trabalhar para o desenvolvimento de uma re- outros – na América Latina e em outros lados. O objeto
de universitária nacional sobre o Meio Ambiente e o da Conferência sobre as Cátedras UNESCO de desenvol-
Desenvolvimento, privilegiando, nesta colaboração, as vimento sustentado que ocorreu na Universidade Federal
universidades das regiões as mais desprotegidas. do Paraná de 1º a 5 de julho de 1993 foi justamente o
de permitir o confronto de experiências variadas, a fim
de tentar extrair uma problemática comum, da mesma
Conclusão
maneira que os princípios de ação concreta, na área de
formação e de pesquisa.
Uma reflexão teórica e metodológica permite O presente texto pretende ser uma contribuição ao
mostrar que a colaboração entre Ciências Humanas, debate. Após esta reunião, a Universidade Federal do
Ciências da Natureza e disciplinas técnicas se coloca Paraná foi contemplada com uma Cátedra da UNESCO
no centro do campo do conhecimento e da ação, que se para o Desenvolvimento Sustentável, recebendo assim
estrutura em torno da noção de meio ambiente – e, mais um poderoso estímulo, devido a seu esforço para pro-
especificamente, de desenvolvimento sustentável. mover uma nova abordagem da pesquisa e da formação
Mas uma tal interdisciplinaridade não pode ser de- no campo de meio ambiente e desenvolvimento.
cretada. Ela se constrói. A longo prazo, com dificuldade,

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Referências

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30 ZANONI, M.; RAYNAUT, C. Meio ambiente e desenvolvimento: imperativos para a pesquisa e a formação. Reflexões...

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