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DESENVOLVIMENTO
E MEIO AMBIENTE
A Universidade Federal do Paraná (UFPR) iniciou Nos anos 50, prevaleceram concepções imitativas
em 1990 uma reflexão sobre a criação de um Curso de e quantitativas de desenvolvimento: tratava-se de fato
Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento, em de diminuir a distância entre o Norte e o Sul, através de
colaboração com estabelecimentos franceses de ensino investimentos financeiros, equipamentos e tecnologias
superior (Universidade Paris 7, Universidade de Bor- originários dos países industrializados. Esta concepção
deaux 2, Escola de Arquitetura Paris-La Villette Escola linear e reducionista do desenvolvimento se dava pela
de Altos Estudos em Ciências Sociais). As atividades de criação de enclaves externos, acentuando as desestrutu-
ensino iniciaram-se em agosto de 1994. Está destinado a rações entre setores “modernos” e “atrasados”.
formar professores, pesquisadores, planejadores, agentes O decênio seguinte foi marcado pela busca de um
de desenvolvimento, profissionais do setor econômico e desenvolvimento “integrado”, no qual foram conside-
membros de associações destinadas a operar na área de rados os conceitos de educação, as dimensões sociais,
formação e de implementação de políticas de desenvol- sanitárias e políticas, sem que se questionasse fundamen-
vimento sustentado. talmente o mimetismo. Era o período da “planificação
Este texto apresenta os fundamentos teóricos e me- do desenvolvimento”. Pouco tempo depois, o conceito
todológicos a partir dos quais foi elaborado o programa de “Nova Ordem Econômica Internacional” faz sua es-
de pesquisa e ensino acima referido. Expõe também, de treia e polariza os grandes debates internacionais sobre
modo concreto, o contexto social, econômico e político as relações Norte-Sul. A ideologia da independência
que no Paraná, e, mais amplamente, no Brasil, deu ori- nacional ganha importância.
gem a esta iniciativa e permitiu que fosse bem-sucedida. A problemática do meio ambiente, que tem origem
nos países do Norte, expande-se nos anos 70, alimentada
Do Ecodesenvolvimento ao Desenvolvimento pelo debate sobre os limites do crescimento. Nos países
Sustentado da América Latina, esta problemática foi percebida como
sendo de natureza conservacionista e neomalthusiana,
A partir dos anos 50, o aprofundamento das de- limitada, no essencial, ao fenômeno do crescimento
sigualdades entre países ricos e países pobres motiva a demográfico e da poluição, e contrária aos esforços de
elaboração de diversas estratégias de desenvolvimento. desenvolvimento realizados por esses países desde os
* Este texto foi originalmente publicado no Cadernos em Desenvolvimento e Meio Ambiente, volume 1 (1994). Os Cadernos foram criados
pelas iniciativa de Magda Zanoni e Claude Raynaut para abrir um debate sobre os fundamentos epistemológicos e metododológicos da interdis-
ciplinaridade no campo ambiental. Neste artigo, em particular, foram discutidos tais pressupostos no caso da fundação do Doutorado em Meio
Ambiente e Desenvolvimento que recém havia iniciado sua primeira turma. A tradução foi do professor Dimas Floriani, sociólogo.
10 ZANONI, M.; RAYNAUT, C. Meio ambiente e desenvolvimento: imperativos para a pesquisa e a formação. Reflexões...
(longo prazo, bem-estar social, solidariedade com as ge- De uma representação a outra, operam-se deslo-
rações futuras), os autores não deixam de divergir quanto camentos de tal maneira que o que era o objeto central
às opções políticas e técnicas: até que ponto a qualidade numa definição torna-se um elemento do meio ambiente
do meio ambiente e a distância entre ricos e pobres, por em outro. Uma harmonização das definições é necessária
exemplo, são fatores importantes do bem-estar social? para todo esforço de abordagem metódica.
Em que medida a acumulação de capital e os progressos Ela faz intervir a complexidade. Uma comple-
tecnológicos podem contribuir para reduzir a rapinagem xidade ligada à amplitude do campo de fenômenos a
(punções) sobre os recursos naturais? cobrir, da mesma maneira que à natureza não linear das
A inflação de termos e de definições traduz, é bem interações que fazem do meio ambiente um sistema. Os
verdade, uma preocupação que expressa as vias de uma componentes do meio ambiente, inicialmente dissocia-
mudança, a partir de conhecimentos disciplinares e de dos numa abordagem do pensamento que conduziu à ins-
experiências. Entretanto, se um denominador comum é tauração do recorte disciplinar, devem ser considerados,
comumente admitido, a dimensão ambiental faz parte novamente hoje, em seu conjunto, isto é, em função das
integrante do processo de desenvolvimento e não pode múltiplas interações que os unem.
ser tratada separadamente. Este conceito representa o Ela exige uma diversidade de escalas de aborda-
eixo central das discussões preparatórias da Conferência gem. Os processos compreendidos pela noção de meio
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desen- ambiente se desenvolvem através de múltiplas escalas de
volvimento da Conferência das ONG do Rio de Janeiro, espaço e tempo e movimentam uma enorme diversidade
1992; o desafio maior deste final de século consiste em de níveis de organização: o local e o global, o instante e
inventar, tanto no Norte como no Sul, novos modelos o tempo geológico, a molécula e o ecossistema devem,
de desenvolvimento. frequentemente, ser levados em conta na elaboração do
modelo explicativo. De acordo com o problema coloca-
do e de acordo com a maneira de como é apresentado,
A necessidade de uma abordagem holística do
privilegia-se diferentes níveis de apreensão – por exem-
meio ambiente plo, um geomorfólogo, um geógrafo e um agrônomo
não abordarão o estudo dos solos no mesmo nível, nem
A concepção de um desenvolvimento sustentado é com os mesmos critérios. Não se trata aqui, somente, de
inseparável da gestão dos recursos renováveis. Ela colo- diferenças formais, pois, para cada nível de análise, sur-
ca, pois, em primeiro lugar a questão da reprodução das gem propriedades que não existiam a nível inferior: uma
relações entre as sociedades humanas e seu meio ambien- célula não é mesma coisa que a soma de moléculas; uma
te. Ora, a noção de meio ambiente é, por si mesma, difícil floresta se diferencia da justaposição das árvores; uma
de captar por diversos motivos. Seguindo Jollivet e Pavé comunidade social não é a simples adição de indivíduos.
(1992), podemos explicitar algumas dessas dificuldades: A noção de meio ambiente é, pois, inseparável das
A noção de meio ambiente é multicêntrica. Isto noções de complexidade e de diversidade. Portanto, se
significa que a noção muda de conteúdo em função do se pretende progredir e não ficar prisioneiro de confron-
objeto central por meio do qual ela é pensada. De acordo tações entre pontos de vista, conceitos, níveis de apre-
com a visão de um sociólogo, um fisiologista ou um ensão – intrinsecamente válidos em seu conjunto – não
biólogo de populações, o termo poderá ser aplicado de se deve proceder a uma definição unificada. Por outro
forma alternativa: lado, é aconselhável, de maneira mais pragmática, de-
– ao contexto familiar, social ou cultural dos indi- senvolver alguns princípios básicos que constituem uma
víduos e dos grupos; plataforma a partir dos quais se viabiliza a comunicação
– ao meio bioquímico que influi sobre o funciona- entre os distintos pontos de vista.
mento de um organismo; O primeiro e sem dúvida o mais fundamental
– ao quadro natural e antropisado no qual se cons- desses princípios – que assume uma posição de axioma
titui e evolui uma população de seres vivos. básico – é que a compreensão dos processos ambientais
12 ZANONI, M.; RAYNAUT, C. Meio ambiente e desenvolvimento: imperativos para a pesquisa e a formação. Reflexões...
que se busca compreender enraízam-se nos processos tuir o que já fazem, com seus respectivos métodos, as
de produção e de circulação do sentido (representação, ciências naturais e sociais – nota-se que este campo se
valores, normas) que se inscrevem na história e permane- localiza na interface dos dois sistemas: no lugar onde
cem longamente autônomos em relação às determinações nenhuma compreensão é possível sem o apelo simultâneo
biológicas e físico-químicas. É verdade que nenhuma das propriedades dos dois sistemas. É sob esta forma que
organização social poderia existir sem uma base material: a visão holística, mencionada no ponto anterior, ganha
o próprio corpo dos homens que a compõe; os bens e os sentido e se estrutura.
objetos cuja produção, circulação e consumo permitem
a sua reprodução; as técnicas necessárias à fabricação
A referência necessária à interdisciplinaridade
desses bens e objetos. Mas essa base material somente
torna-se parte integrante do sistema Sociedades quando
contribui para produzir relações sociais e fatos de cultu- O enfoque acima definido constitui um desafio
ra, ou enquanto produto dessas relações e desses fatos. científico; exige um trabalho rigoroso de formulação
Cada um desses sistemas exige ser analisado em de questões precisas, definição de conceitos, elaboração
função de suas condições intrínsecas de funcionamento de métodos.
– e é isso que se esforçam em fazer as diferentes disci- Colocando o problema desta maneira, observa-se
plinas, no quadro da divisão do trabalho científico que que não há trabalho científico sobre o meio ambiente
orienta sua distribuição. fora do quadro da interdisciplinaridade.
O novo campo que se abre – o do meio ambiente É necessário, uma vez mais, entrar num acordo
considerado do ponto de vista do desenvolvimento sus- sobre o que se entende por interdisciplinaridade. A afir-
tentado – é o das inter-relações entre sistema Natureza mação da necessária colaboração entre disciplinas no
e sistema Sociedades. enfoque dos problemas ambientais não é nova: decorre
Adotar este tipo de representação global implica diretamente das exigências da ação. Na realidade, a to-
certas condições na maneira de abordar a questão – que mada de consciência da necessidade de uma abordagem
não é nova – das relações Homem/Natureza. Fixemos interdisciplinar tende a realizar-se fora do campo especu-
duas delas: lativo. A necessária colaboração entre disciplinas ganha
Quando se analisa o ser humano em sua interação densidade na prática social, cuja finalidade é intervir no
com os ecossistemas, não o consideramos somente como real e confrontar-se à complexidade do campo onde atua.
um organismo vivo entre outros, mas, também como o Essa exigência instrumental dificilmente acontece
elemento de um sistema social, sem o conhecimento do na prática, especialmente no domínio da colaboração
qual seu comportamento não tem sentido. Admitir isto entre as ciências naturais, as disciplinas do engenheiro
significa dizer que o imaterial – o ideal, para retomar e as ciências do homem. É muito raro verificar que os
a formulação de Godelier (1984) – pertence ao real programas chamados “multidisciplinares” assumam uma
do mesmo modo que os fatos materiais e constitui, no forma diferente da justaposição de trabalhos monodisci-
mesmo grau destes, um objeto legítimo e pertinente de plinares, cada um deles girando em torno de problemáti-
análise científica. cas que são valorizadas pelas respectivas comunidades
Não se separam os projetos de intervenção, re- científicas de referência. A “síntese” final aparece então,
lativos a um dos dois sistemas, das consequências que na melhor das hipóteses, como um exercício de estilo
possam vir a ter sobre o outro: não se pode conceber difícil visando oferecer, a posteriori, uma coerência um
um “desenvolvimento” das sociedades humanas em tanto artificial aos resultados obtidos de forma dispersa.
detrimento do sistema Natureza; da mesma forma, não É muito comum defrontar-se, neste domínio, com uma
se pretende proteger os meios naturais às custas de in- coleção de exposições monodisciplinares dispersas,
toleráveis disfunções no sistema Sociedades. onde cada uma se esforça para não invadir o território de
Se se pretende identificar, a partir disto, o campo seus parceiros. Apesar de repetidas tentativas para fazer
específico dos estudos ambientais – sem querer substi- aparecer o novo, partindo-se da aproximação forçada de
14 ZANONI, M.; RAYNAUT, C. Meio ambiente e desenvolvimento: imperativos para a pesquisa e a formação. Reflexões...
• Os Níveis de Abordagem – Um ou vários programas operacionais. Um pro-
O trabalho coletivo deve organizar-se de maneira grama corresponde a uma parte da problemática, isto é,
que todos compartilhem de um conjunto de hipóteses de a uma articulação específica de hipóteses de trabalho e
trabalho e de objetivos que definam um rumo científico de questões cujo estudo implica uma “missão coletiva”
comum. Cada um deve saber o lugar que assume na ex- que requer a colaboração de diversas disciplinas. Em
ploração do problema comum identificado e com quem decorrência da amplitude e da complexidade do tema
deve colaborar para tanto; da mesma forma, conhecer envolvido, uma pesquisa interdisciplinar poderá con-
as operações concretas nas quais irá encontrar-se no templar apenas um ou vários programas. Estes poderão
trabalho de campo e em que condições precisas poderá frequentemente se suceder no tempo, em função do
aplicar os instrumentos de sua disciplina (a colaboração enriquecimento da problemática e da emergência de
de outros exige, às vezes, tolerar certas acomodações nas novas questões.
condições de sua própria prática). O esquema apresenta- – Operações relativas à pesquisa de campo. É atra-
do a seguir é uma tentativa de representar a organização vés delas que se executam os programas operacionais.
geral de um programa interdisciplinar. Este programa se Estes trabalhos serão monodisciplinares, na maioria das
subdivide verticalmente em vários níveis de abordagem, vezes, mas poderão também monitorar diversas discipli-
cada nível se desenvolvendo segundo um vetor temporal. nas, como nas pesquisas de múltiplos objetivos ou de
Podemos reconhecer: experimentos em condições reais. Assim, a escolha de
– A problemática geral do programa. Ela define: escalas de observação incompatíveis com as exigências
uma temática global; os campos de conhecimentos apro- de uma disciplina bem diferente, ou uma identificação
priados, um local (território e objetos de pesquisa); as estranha aos objetos de estudo, podem comprometer de
relações com a demanda social. Esta problemática não é, maneira definitiva o confronto dos resultados.
porém, definitiva, poderá ser desenvolvida e enriquecida Um programa interdisciplinar deve seguir um
no desenrolar do programa. procedimento caracterizado tanto pela coerência das
16 ZANONI, M.; RAYNAUT, C. Meio ambiente e desenvolvimento: imperativos para a pesquisa e a formação. Reflexões...
num campo disciplinar preciso (Biólogos, Agrônomos, para formular, de maneira rigorosa, as reivindicações
Médicos, Urbanistas, Engenheiros, Economistas, que são, por natureza, estranhas ao recorte da realidade
Geógrafos, Sociólogos, Antropólogos, etc.) mas que em campos científicos mas que têm necessidade de um
recebam uma formação complementar de alto nível que quadro conceitual para expressar-se com um rigor que
lhes permitam: lhes propiciará mais consistência.
– superar o quadro conceitual de sua disciplina de Ao reclamar uma melhor consideração dos proces-
base e conceber os seus limites; sos sociais na análise dos fatos ambientais, é necessário,
– problematizar da maneira mais ampla possível contudo, evitar cair na ilusão de que o “maior engaja-
questões de meio ambiente e de desenvolvimento, em mento das ciências humanas” colocadas a serviço de um
função de uma perspectiva teórica de conjunto, como enfoque holístico da análise dos fatos ambientais e de
aquela esboçada mais acima; desenvolvimento seria suscetível de dar aos atores uma
– compreender a linguagem, os objetivos científi- abordagem unificada dos fatos que se tornaria o funda-
cos e os métodos das outras disciplinas, a fim de poder mento científico de um consenso ou o instrumento para a
colaborar com elas. manipulação do real. Não se trata de atribuir ao social um
Retomando a distinção proposta por Vattimo cientismo ampliado para substituir ao que vem atuando,
(1992) pode-se dizer que a formação a ser concebida de- até o presente, sobre uma base exclusivamente técnica.
ve possibilitar, a cada um, a descoberta de novos paradig- Trata-se de evitar uma tentação “totalitária” que buscaria
mas, de novos modelos de apreensão do real – segundo no enfoque holístico suas justificativas científicas.
uma abordagem que ele qualifica de hermenêutica – no De qualquer maneira, a tentativa de assim proceder
lugar de se contentar de desenvolver o conhecimento estaria destinada ao fracasso, uma vez que os conflitos
e o saber-fazer no interior de apenas um paradigma – de identidade, os enfrentamentos de valores, as contra-
abordagem que ele designa como epistemológica. Como dições de interesses formam a própria matéria, da qual
ainda ele indica, a ideologia dominante da civilização se alimentam os processos sociais. É impossível fazer
industrial – adotada na maioria dos países em desenvolvi- a economia desses processos. Não há possibilidade de,
mento – superestimou até agora as ciências “duras” e as apenas pelo conhecimento, alcançar solução única para
disciplinas técnicas – percebidas como mais produtivas. um problema. Ao contrário, o conhecimento pode per-
Isto é particularmente marcante nas formações existentes mitir esclarecer a identificação das situações naturais,
no domínio ambiental, no qual os instrumentos de análise econômicas, sociais de um determinado contexto (é a
do sistema Sociedades são relegadas a segundo plano. própria finalidade da pesquisa) e oferecer a todos os par-
A diversificação dos paradigmas passa imperativamente ceiros envolvidos os meios de compreender as situações
por uma revalorização das ciências humanas, no interior (é o papel que se atribui à formação). Desta maneira, a
dos cursos de formação – de acordo com o modelo negociação se torna possível, apoiada em argumentos
Natureza/Sociedades, sobre o qual deve apoiar-se a válidos, tendendo a conciliar da melhor forma possível
abordagem do desenvolvimento sustentado. os interesses e as aspirações das partes em presença. É
Mais adiante, examinaremos as relações que exis- neste sentido que se pode dizer que os procedimentos
tem entre a aparição do novo campo de reflexão e de democráticos, amparados por um saber compartilhado,
pesquisa que tentamos demarcar, assim como a demanda podem oferecer uma flexibilidade nova para resolver
social que aparece como a instigadora. Se uma reflexão os problemas de meio ambiente e de desenvolvimento
global e interdisciplinar sobre as relações entre Sistema – contribuindo desta maneira, mesmo que de forma im-
Natureza e Sistema Sociedades responde a uma exigên- perfeita, à busca de um equilíbrio sustentado nas relações
cia científica, ela está igualmente ligada a exigências entre o Sistema Natureza e o Sistema Sociedades.
práticas. Isto quer dizer que esta nova abordagem não Em termos de formação, um tal projeto significa
deve permanecer restrita ao meio científico. Ela deve que os objetivos propostos deverão desdobrar-se em
inspirar os práticos do desenvolvimento e da gestão diversos níveis:
ambiental. Deve, também, oferecer ao público os meios
18 ZANONI, M.; RAYNAUT, C. Meio ambiente e desenvolvimento: imperativos para a pesquisa e a formação. Reflexões...
e a especificidade das situações analisadas torna a estrita expressas através da ação dos poderes públicos, como
reprodução das observações mais difícil ainda. O aspecto a manifestações mais informais que revelam as aspira-
prático dos problemas a resolver faz com que os resulta- ções ou as reivindicações mais ou menos organizadas e
dos sejam mais objeto de um uso social do que um caso contraditórias de categorias e de comunidades sociais.
para publicação. A novidade das questões colocadas e Em ambos casos, algumas questões são colocadas
dos métodos utilizados tornam precárias as condições à ciência. Isto ocorre nos casos de elaboração de relató-
usuais de referência e de legitimação – como as que rios (necessários sobretudo para o estabelecimento de
aparecem em revistas interdisciplinares reconhecidas, normas) ou na expectativa de soluções para problemas
no âmbito internacional, por exemplo – comprometendo mais concretos. Num caso como no outro, coloca-se a
assim a garantia do valor do trabalho realizado, segundo questão da produção do saber (tarefa da pesquisa) e da
esses critérios. transmissão deste saber em diferentes níveis, visando
Todos esses obstáculos, que remetem a verdadeiros torná-lo operacional. A Universidade, o lugar por exce-
problemas científicos, fazem com que nenhum indiví- lência da produção e da transmissão do saber, não poderia
duo, tomado isoladamente, possa escolher uma prática permanecer insensível às demandas que continuamente
interdisciplinar inovadora, sem colocar em perigo seu lhes são dirigidas.
futuro profissional. Apenas os cientistas, cuja posição A Universidade não pode limitar-se, apenas, a evo-
institucional está assegurada, poderiam correr este ris- car ritualisticamente a necessidade de “sair de sua torre
co: isto, porém, pôde contrariar as formas de interesse de marfim” e de levar em conta a demanda social. Não
estabelecidas e usuais. existe apenas uma, porém múltiplas demandas sociais
Feitas essas constatações, pode-se chegar à con- que refletem as contradições, os corporativismos e os
clusão de que para sair do impasse, o desafio deve ser conflitos que atravessam a sociedade. O Estado e seus
tomado a nível institucional; igualmente, deve-se pensar organismos são emissores de uma demanda – podendo
no estabelecimento de um quadro específico de legiti- expressar sua legitimidade à medida que a mesma ve-
mação do trabalho científico interdisciplinar – seja de nha revestida de forma democrática Da mesma maneira
maneira provisória até que um novo campo se estruture ocorre com a sociedade civil, com sua divisão de inte-
e que uma nova comunidade se forme, promovendo resses, seus confrontos e solidariedades. Cedo ou tarde,
seus próprios procedimentos de reconhecimento, de o engajamento das instituições universitárias, diante
avaliação e de validação. Não se trata de provocar a das diversas demandas que lhes são dirigidas, implicará
interdisciplinaridade através de uma prática voluntarista, escolhas e tomadas de posições que transcendem os
mas de oferecer as condições institucionais que permitam critérios exclusivamente científicos.
o exercício de uma vontade científica já em andamento. Para reduzir tais distorções, um esforço relevante
deve ser realizado a fim de contemplar as reivindicações
populares, as prioridades políticas e as exigências econô-
A relação com a demanda social
micas, para que ganhem sentido no campo científico. É
verdade que nem todos os parceiros potenciais dispõem
Quaisquer que sejam suas origens – mesmo que dos mesmos recursos para realizar esse esforço: as eli-
os cientistas tenham contribuído, algumas vezes, para a tes do poder e da economia dispõem de formação e de
tomada de consciência – os problemas ligados ao meio apoios técnicos que lhes facilitam o trabalho; a mesma
ambiente revestem, doravante, uma dimensão social que coisa não ocorre com os Movimentos Populares e, às
é exterior à ciência. Correspondem a situações cujas vezes, com as ONGs.
implicações escapam, em grande medida, do campo das A - O contexto geral das relações entre as universi-
preocupações científicas. São essas circunstâncias e suas dades e a demanda social no Brasil. Numa conjuntura de
manifestações coletivas que correspondem ao que se de- crise econômica e política, sobretudo no contexto de crise
signa sob o termo de demanda social. É uma noção vaga de identidade do Estado, a demanda social é veiculada
que pode ser aplicada tanto a formas institucionalizadas, principalmente pelas Organizações Não Governamentais
20 ZANONI, M.; RAYNAUT, C. Meio ambiente e desenvolvimento: imperativos para a pesquisa e a formação. Reflexões...
– A concorrência na obtenção de financiamentos. A instrumentos eficazes deve ocorrer simultaneamente
divergência de interesses institucionais pode ser acompa- com a conduta de uma reflexão científica aprofundada.
nhada de rivalidades mais palpáveis, na esfera da busca B - Algumas experiências brasileiras de resposta
de financiamentos. Os orçamentos das universidades universitária à demanda social. No Brasil, os problemas
se reduzem cada vez mais, o que não lhes permitem ambientais encontram suas raízes, em grande medida,
sequer garantir as condições mínimas de sobrevivência, nos processos de industrialização e de urbanização
obrigando-as a buscar fontes externas de financiamento acelerados que o país conheceu a partir dos anos 40. No
– sobretudo das agências bilaterais ou multilaterais de entanto, a expressão de uma tomada de consciência sobre
auxílio – para onde as ONGs se dirigem para buscar esses temas apareceu bem mais tarde, provocada pelo
financiamentos. Disto resulta uma situação de concor- aspecto claramente destruidor do modelo econômico,
rência que pode estar na origem das relações tensas. adotado durante o período da ditadura militar (1964-
– Os diferentes interesses institucionais. Os inte- 1985), na conjuntura eufórica do “milagre brasileiro”.
resses de instituições de natureza diferente nem sempre Essa tomada de consciência passou por diferentes
convergem. Embora a produção do conhecimento não etapas desde 1974: da proteção da natureza à sensibili-
constitua o principal objetivo das ONG, algumas delas zação crescente dos indivíduos e das populações à des-
são levadas a realizar pesquisas. Desta maneira, elas truição dos recursos naturais, até chegar hoje à adoção
entram neste campo, em concorrência com as universi- de uma nova ética do desenvolvimento que passa pela
dades, abordando a pesquisa em condições diferentes. busca de um modelo alternativo ao produtivismo e pela
As universidades são instituições cuja sobrevivência preocupação de uma qualidade de vida satisfatória para
está praticamente assegurada, independentemente de sua o conjunto da população.
produção imediata de conhecimento. Para reproduzir-se, Esta evolução é o resultado complexo do acúmu-
as ONGs e as Associações devem, ao contrário, prover lo de experiências locais ou regionais e da interação
constantemente o fluxo de financiamento e de adesão pa- de fatores econômicos, sociais, políticos e ecológicos
ra assegurar sua sobrevivência. Devem, portanto, provar específicos de cada situação local. É desta maneira que
sua eficiência aos olhos dos fornecedores de dinheiro e os movimentos sociais, oriundos dos conflitos agudos
de seus militantes. Estas distintas posições produzem, provocados pela explosão da refinaria de petróleo em
desde o início, atitudes divergentes no plano da pesquisa Cubatão, em São Paulo, pela construção da barragem de
e da produção do conhecimento. Assim, observa-se, do Itaipu no Paraná e de Tucuruí na Amazônia assumiram
lado das ONGs, uma valorização excessiva às vezes, do uma dimensão nacional, além de servir de exemplo para
curto prazo e da aplicabilidade da pesquisa; enquanto outros movimentos. Ademais, nos Estados diretamente
que no meio universitário, perde-se muitas vezes de envolvidos, os movimentos contribuíram para uma im-
vista a noção de utilidade social da produção científica, portante mobilização de certas equipes do governo, de
em benefício da busca de reconhecimento por parte de universitários e de agentes do movimento associativo.
uma pequena comunidade de pares. Estas perspectivas É em torno de tais temas concretos que se erigiu a coo-
divergentes tornam frequentemente a colaboração difícil. peração entre os meios científicos e as diferentes esferas
Não se deve perder de vista, por sua vez, que uma da demanda social.
formulação científica adequada só é possível se o marco Neste contexto geral, numerosos intelectuais e
conceitual, teórico e metodológico, existe para ser cum- cientistas se engajaram para colocar suas competências
prido. Vimos mais acima, em relação ao meio ambiente, a serviço dessas lutas. Diversos universitários brasilei-
que nos encontramos atualmente numa fase de constru- ros estabeleceram trocas com ONGs e com diferentes
ção do campo científico que exige ajustes, redefinições, movimentos sociais, em ocasião de conflitos relativos a
tentativas que nem sempre facilitam a problematização problemas ambientais. Dentre a multiplicidade de exem-
científica das questões concretas que emergem da socie- plos que se pode oferecer dessa colaboração, retivemos
dade civil ou das estruturas do Estado. Esta constatação alguns particularmente ilustrativos.
deve confirmar a convicção de que a elaboração de
22 ZANONI, M.; RAYNAUT, C. Meio ambiente e desenvolvimento: imperativos para a pesquisa e a formação. Reflexões...
exigência, qual seja, a de apresentar de maneira acessível relações entre o mundo da formação e da pesquisa, de
e prática os conhecimentos produzidos, colocando-os um lado e de outro, da demanda social.
ao alcance da população que possui um baixo nível de
escolaridade. Dentre as ações conduzidas pela Univer-
A criação do Doutorado em Meio Ambiente e
sidade do Acre, citam-se:
– Uma coordenação dos trabalhos de campo em 8 Desenvolvimento da Universidade Federal do
zonas de reserva extrativista do Vale do Acre. Paraná
– A participação de estudantes estagiários nos
trabalhos de pesquisa de campo. A formação doutoral proposta pela Universidade
– A formação de seringueiros em técnicas de en- Federal do Paraná é resultado de um trabalho de reflexão,
quete sobre seus sistemas de produção agro-florestais e iniciado em 1990, no contexto local da problemática
suas condições de vida. meio ambiente/desenvolvimento, no Brasil e em par-
ticular no Paraná. Extrai sua substância nas múltiplas
– A fixação das populações rurais nos assenta- reflexões e propostas formuladas em outros países da
mentos da reforma agrária. No quadro do processo de região da América Latina/Caribe, a partir da tomada de
reforma agrária, as atribuições de terras – assentamentos consciência dos limites dos modelos de desenvolvimento
– foram previstas em benefício dos camponeses sem existentes.
terra. É em grande parte o resultado das lutas conduzidas
pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, bastante
desenvolvido no Sul do Brasil. No Paraná, durante o O contexto internacional e regional
período 1983-1985, a Secretaria de Estado da Agricul-
tura envolveu agrônomos, sociólogos, economistas e Os objetivos desta formação universitária de pós-
diversos serviços do Estado no apoio aos assentamentos. -graduação estão em harmonia com as preocupações
Um convênio foi assinado, para esta finalidade, entre a expostas, em ocasião dos diferentes trabalhos e reuniões
Universidade Federal e o Departamento de Economia preparatórias da Conferência das Nações Unidas sobre
Rural da Secretaria de Estado da Agricultura. Os obje- Meio Ambiente e Desenvolvimento, ocorrida no Rio de
tivos eram os seguintes: Janeiro em 1992 e propostas na Agenda 21. Coincidem,
– A elaboração de diagnósticos nas áreas agrícola por sua vez, com as propostas do relatório Brundtland.
e econômica. Estes trabalhos ressaltam alguns princípios e ne-
– A troca de informações entre os movimentos cessidades fundamentais.
sociais e os serviços do Estado. – Antes de mais nada, a dimensão ambiental e a
– A colaboração nas negociações entre as comuni- problemática do desenvolvimento. A primeira constitui
dades camponesas e o Estado visando as operações de parte integrante dos processos de desenvolvimento e por
desenvolvimento integrado (produção, comercialização, esta razão não pode ser tratada isoladamente.
habitação, infraestrutura). – Em seguida, a fato de que a resolução dos pro-
Iniciativas muito semelhantes tiveram lugar no blemas de meio ambiente e de desenvolvimento passa
Estado vizinho São Paulo, mas neste caso a Universidade pela busca de soluções endógenas, isto é, que emanem
Estadual de Campinas manteve convênios diretos com os da vontade livre da sociedade e que se apoiem na rea-
Movimentos de Agricultores, sem passar por intermédio lidade socioeconômica, cultural e natural regional. Isto
das estruturas do Estado. implica a promoção de uma pesquisa científica, visando a
Numerosos outros exemplos poderiam ser citados, formação de competências para a implantação de planos
de colaboração entre os meios científicos e os movimen- nacionais de desenvolvimento, a produção e a gestão de
tos sociais. Esta colaboração constitui uma tradição com tecnologia para um desenvolvimento sustentado. Isto
raízes profundas, sem a qual não é possível entender, supõe igualmente o reconhecimento da importância das
no Brasil, as condições específicas nas quais se dão as especificidades culturais, especialmente no que se refere
24 ZANONI, M.; RAYNAUT, C. Meio ambiente e desenvolvimento: imperativos para a pesquisa e a formação. Reflexões...
agrotóxicos, emerge uma reflexão crítica ao modelo deste, a origem de um grande número de problemas
agrícola da revolução verde. Essas lutas forneceram as ambientais. Algumas das principais iniciativas tomadas
condições para a colaboração entre os meios científicos, pela equipe, podem ser citadas.
profissionais e os movimentos de origem popular. – Criação, no Instituto Agronômico do Paraná, de
B - Mobilização para a proteção da natureza e um Programa de pesquisa sobre os Sistemas de Produção
das culturas autóctones. Como prolongamento das lutas destinado a ponderar a abordagem dominante do modelo
contra o desaparecimento das Sete Quedas do Iguaçu, de desenvolvimento agrícola vigente.
constituíram-se movimentos ecologistas, cujo objetivo – Lançamento de um programa para o desenvol-
era a defesa dos últimos vestígios de um patrimônio na- vimento de uma agricultura alternativa, fundada na
tural e cultural: de início, pela defesa da Mata Atlântica gestão integrada dos solos e das águas, na agroflorestal,
e, posteriormente, contra a destruição da cultura Caiçara no melhoramento das raças animais e das variedades
– uma das últimas populações da região deixada de lado vegetais rústicas, na tração animal como forma de
pelo modelo de desenvolvimento da revolução verde. Em energia alternativa, na luta biológica, no melhoramen-
tomo destes objetivos, a Associação SOS Mata Atlântica, to das técnicas tradicionais (recuperação dos antigos
criada nos dois Estados vizinhos de São Paulo e Paraná, moinhos). Essas opções técnicas foram acompanhadas
jogou um papel de proa na proteção do patrimônio na- de operações na área de produção de alimentos (hortas
tural e cultural e principalmente na implantação de uma comunitárias, piscicultura rural, etc.) e de distribuição
legislação de proteção para a região. (mercados comunitários) e de proteção fundiária dos
C - O aparecimento de condições políticas favorá- pequenos agricultores.
veis para a elaboração de uma política ambiental, ligada – Programas de economia dos recursos: cons-
ao desenvolvimento local e regional. De 1983 a 1985, truções comunitárias de redes de distribuição elétrica
o poder local fica em mãos de uma geração de antigos com materiais de baixo custo, abertura de fontes para
líderes do movimento estudantil, de antigos exilados po- abastecimento de água em micropoços.
líticos na Europa ou na América Latina, de sindicalistas – Controle rigoroso da poluição, programas de
de longa data, de funcionários e de universitários demo- educação ambiental popular (água, ar, lixo).
cratas. Todos compartilhavam uma história de resistência Estas são algumas das iniciativas lançadas pela
à ditadura e uma sensibilidade para os problemas sociais equipe durante o período no qual exerceu o poder pú-
derivados do desenvolvimento agrícola e rural: degra- blico. Algumas delas alcançaram sucesso tendo sido
dação dos solos, expulsão dos camponeses sob o efeito adotadas em outros Estados do Brasil, outras conheceram
de grandes canteiros de obras ou como consequência da o fracasso. O importante, para compreender a situação
acumulação fundiária, êxodo rural. atual, é destacar que aqueles programas de ação estive-
Sob o efeito daquela influência, diferentes progra- ram na origem de uma dinâmica de colaboração entre
mas de pesquisa e de desenvolvimento foram empreendi- universitários e pesquisadores, por um lado e por outro,
dos em diversos Institutos no Estado. O Paraná foi o pri- de funcionários, técnicos e agentes de desenvolvimento
meiro Estado do Brasil a realizar consultas populares que (muitas vezes apoiados pelas respectivas associações
originaram a elaboração do Programa de Meio Ambiente profissionais).
do Estado do Paraná (PEMA), em 1984. Um Comitê Diante da instabilidade das estruturas políticas
de Estado foi formado, reunindo diversas Secretarias de e para responder aos problemas levantados por uma
Estado: Agricultura, Educação, Interior, Planejamento, colaboração, muitas vezes difícil, entre os diferentes
Saúde e Segurança Pública. Tinha por missão a aplicação parceiros que se encontravam no campo de ação, apa-
de políticas concebidas para aquela finalidade. rece a ideia de concentração em torno da Universidade,
A Secretaria de Estado da Agricultura e a Secretaria do esforço de formação a longo prazo, através do qual
do Interior foram pioneiras nesta iniciativa. Defenderam se constitua um capital humano adaptado aos desafios
uma visão crítica ao modelo vigente de desenvolvimento, colocados pela necessária renovação das estratégias de
identificando na abordagem exclusivamente tecnicista desenvolvimento.
26 ZANONI, M.; RAYNAUT, C. Meio ambiente e desenvolvimento: imperativos para a pesquisa e a formação. Reflexões...
As reações da Instituição Universitária formação que pudesse aproximar o campo ambiental,
bem como o das relações sociedade-natureza.
B - Outros obstáculos de natureza institucional. O
A realização deste projeto não se fez sem encontrar
NIMAD foi deliberadamente criado fora da estrutura de
obstáculos de diferentes espécies.
departamentos, a fim de promover a colaboração entre
A - Alguns obstáculos de natureza científica. Al-
estes últimos e para poder garantir respostas à demanda
guns eram ligados à dificuldade sentida para separar o
social, sem ter que depender das divisões institucionais.
objeto de estudo “meio ambiente” do campo das disci-
Uma mesma estratégia foi aplicada em muitas outras
plinas naturalistas (biologia, física, química, botânica,
universidades brasileiras (por ex.: Brasília, Campinas).
zoologia, etc.). Esta dificuldade se devia, por um lado,
Por isto, a constituição do NIMAD foi interpretada como
à impossibilidade, para estas disciplinas, de conceber
uma ameaça para os territórios de poder, que alegavam o
o papel que as ciências sociais poderiam desempenhar
problema de divisão das disciplinas. Apareceram então
na esfera da pesquisa. Porém, observou-se também
reações defensivas, sob o argumento de que um douto-
que as disciplinas como a antropologia e a sociologia
rado não pode pretender-se interdisciplinar, à medida
nem sempre percebiam, muito claramente, como elas
que deve ser o resultado de uma especialização. Esta
poderiam aplicar seus métodos e suas problemáticas
argumentação prosseguia, afirmando o caráter de gene-
específicas quando aplicadas ao meio ambiente. Dessas
ralista dos doutores egressos do curso, cujo perfil estaria
incompreensões, derivava uma certa falta de interesse
em contradição com o próprio caráter do doutorado que
da parte dos professores e dos pesquisadores solicitados
deve formar especialistas.
– o que se traduzia numa rotatividade elevada daqueles
Às reações derivadas deste confronto de poder
que estavam escalados para participar da organização do
agregavam-se outros obstáculos de natureza adminis-
curso. A consequência foi a ausência de aprofundamento
trativa: ausência de estruturas interdepartamentais,
na reflexão teórica.
previstas nos regimentos; impossibilidade de jovens
As diferenças de linguagem entre as disciplinas
professores, não detentores do título de doutor, de
não facilitaram o intercâmbio e as discussões. Isto se
participar de atividades de pesquisa e de formação de
deu particularmente no caso da comunicação entre as
nível doutoral; estes, no entanto, são os mais dinâmicos
Ciências Humanas de um lado e as Ciências Naturais e
e inovadores do corpo docente.
as disciplinas de Engenharia, de outro. As prioridades
Somente ao final de uma longa maturação que estes
de pesquisa, os métodos de trabalho, os esquemas de
diferentes obstáculos puderam ser superados. Muitos
interpretação do real, da mesma forma que os níveis
elementos foram importantes, neste sentido.
de análise não sendo os mesmos, de um grupo de dis-
– A ação determinada de um pequeno núcleo de
ciplinas para outro, o diálogo que visava a definição de
pessoas convencidas e que não se deixaram desencorajar,
plataformas de trabalho encontrou uma certa dificuldade
prosseguiram com a reflexão sobre o projeto e consegui-
para se estabelecer.
ram fazer avançar na sua conceitualização.
A herança de estruturas universitárias, derivada
– Uma explicitação dos objetivos do doutorado
do período anterior à democratização, também pesou.
permitiu a resolução da contradição aparente, entre as
Assim, em Sociologia, a maioria dos professores man-
exigências de especialização e as necessidades da inter-
teve-se ausente, sem grande ligação com as atividades
disciplinaridade. Ficou bem estabelecido que a formação
de pesquisa. A equipe mais dinâmica reduzia-se, assim,
doutoral se dirige para especialistas que já receberam
a um pequeno número de pesquisadores.
uma forte formação disciplinar e que vêm buscar os
No final de contas, pela ausência de participação
instrumentos teóricos e metodológicos necessários para
do Setor de Ciências Sociais e pela predominância do
lançar o diálogo, em torno dos problemas ambientais,
Setor das Ciências Físicas e Naturais, foi difícil, numa
com os cientistas de outras disciplinas.
primeira etapa, definir um programa de pesquisa e de
28 ZANONI, M.; RAYNAUT, C. Meio ambiente e desenvolvimento: imperativos para a pesquisa e a formação. Reflexões...
-se as diferenças de estabilidade das instituições – que por um trabalho de surdina para superar a lentidão que
a Universidade não poderia colocar-se numa situação freia a evolução das estruturas de ensino e de pesquisa,
de dependência diante de instituições governamentais os obstáculos que se opõem à colaboração entre os múl-
cujas opções tornavam-se prisioneiras de reviravoltas tiplos parceiros (intelectuais, políticos, representantes
da vida política. do mundo econômico, responsáveis de movimentos
O conflito foi superado mediante a assinatura de populares) que estão envolvidos, de uma maneira ou
um protocolo de intenções entre a Universidade e as outra, quando se trata de conceber, sobre bases científicas
Secretarias de Estado do Paraná envolvidas no projeto. e sociais válidas, estratégias duradouras de desenvolvi-
Este documento estabelecia o papel de cada um dos mento, para em seguida colocá-las em prática.
parceiros, em vista dos seguintes objetivos: Uma pesquisa inovadora, a formação e a informa-
– Formar cientistas, técnicos e funcionários que ção são os alicerces de uma dinâmica destinada a consti-
respondam às necessidades da Universidade, do Estado tuir os recursos humanos necessários para alcançar um tal
e das populações. objetivo. O exemplo do Brasil, e mais precisamente, o da
– Elaborar novos conhecimentos, métodos, técni- experiência de criação do Doutorado em Meio Ambiente
cas que possam permitir a gestão e o planejamento de e Desenvolvimento na Universidade Federal do Paraná
sistemas complexos. permitiu ilustrar, de maneira concreta, as condições nas
– Conceber e gerar programas de desenvolvimento quais as soluções podem ser buscadas para responder a
sustentado, fundados na utilização racional dos recursos essa necessidade.
renováveis e no respeito às populações que os exploram. Trata-se, evidentemente, de um caso entre muitos
– Trabalhar para o desenvolvimento de uma re- outros – na América Latina e em outros lados. O objeto
de universitária nacional sobre o Meio Ambiente e o da Conferência sobre as Cátedras UNESCO de desenvol-
Desenvolvimento, privilegiando, nesta colaboração, as vimento sustentado que ocorreu na Universidade Federal
universidades das regiões as mais desprotegidas. do Paraná de 1º a 5 de julho de 1993 foi justamente o
de permitir o confronto de experiências variadas, a fim
de tentar extrair uma problemática comum, da mesma
Conclusão
maneira que os princípios de ação concreta, na área de
formação e de pesquisa.
Uma reflexão teórica e metodológica permite O presente texto pretende ser uma contribuição ao
mostrar que a colaboração entre Ciências Humanas, debate. Após esta reunião, a Universidade Federal do
Ciências da Natureza e disciplinas técnicas se coloca Paraná foi contemplada com uma Cátedra da UNESCO
no centro do campo do conhecimento e da ação, que se para o Desenvolvimento Sustentável, recebendo assim
estrutura em torno da noção de meio ambiente – e, mais um poderoso estímulo, devido a seu esforço para pro-
especificamente, de desenvolvimento sustentável. mover uma nova abordagem da pesquisa e da formação
Mas uma tal interdisciplinaridade não pode ser de- no campo de meio ambiente e desenvolvimento.
cretada. Ela se constrói. A longo prazo, com dificuldade,
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