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Introdução

A ESCOLA COMO CRUZAMENTO DE CULTURAS

A escola e o sistema educativo em seu conjunto podem ser entendidos como uma
instância de mediação entre os significados, os sentimentos e as condutas da co-
munidade social e o desenvolvimento particular das novas gerações. Quando se
questiona o próprio sentido da escola, sua função social e a natureza da atividade
educativa (como conseqüência das transformações e das mudanças radicais tanto
no panorama político e econômico como no terreno dos valores, das idéias e dos
costumes que compõem a cultura, ou as culturas da comunidade social), nós,
docentes, aparecemos sem iniciativa, isolados ou deslocados pela avassala-
dora força dos fatos, pela vertiginosa sucessão de acontecimentos que torna-
ram obsoletos nossos conteúdos e nossas práticas. Como não podia ser de
outra maneira, nós, docentes, vivemos no olho do furacão da inegável situa-
ção de crise social, econômica, política e cultural que vive nosso meio no
final desse milênio.
Parecemos carecer de iniciativa para enfrentar novas exigências porque, afi-
nal de contas, nos encontramos encurralados pela presença imperceptível e perti-
naz de uma cultura escolar adaptada a situações pretéritas. A escola impõe, lenta-
mente, mas de maneira tenaz, certos modos de conduta, pensamento e relações
próprios de uma instituição que se reproduz a si mesma, independentemente das
mudanças radicais que ocorrem ao redor. Os docentes e os estudantes, mesmo
vivendo as contradições e os desajustes evidentes das práticas escolares domi-
nantes, acabam reproduzindo as rotinas que geram a cultura da escola, com o
objetivo de conseguir a aceitação institucional. Por outro lado, as forças sociais
não pressionam, nem promovem a mudança educativa da instituição escolar por-
que são outros os propósitos e as preocupações prioritárias na vida econômica da
sociedade neoliberal e, pelo menos, a escola continua cumprindo bem a função
social de classificação e creche, sem interessar demasiado o abandono de sua
função educativa.
12 A. r. PÉREZ GÓMEZ

Está claro que a escola vigente e que conhecemos praticamente inalterável e


igual a si mesma, há muitas décadas, salvo interessantes exceções, corresponde à
cultura moderna. Na melhor das hipóteses, a escola, que sempre seguiu as tendências
das exigências e das demandas sociais, respondeu aos padrões, aos valores e às
propostas da cultura moderna, inclusive quando proliferam por todo lado as manifes-
tações de suas lacunas, deficiências e contradições. É preciso, portanto, analisar os
valores que definem a modernidade e sua progressiva deterioração para compreen-
der tanto o valor social como a fossilização e a deterioração de sua ferramenta mais
apreciada, a escola.
Por exemplo, o esmagador poder de socialização que adquiriram os meios de
comunicação de massa apresenta desafios novos e insuspeitos para a prática edu-
cativa na escola. A revolução eletrônica que presidiu os últimos anos do século XX
parece abrir as janelas da História a uma nova forma de cidade, de configuração do
espaço e do tempo, das relações econômicas, sociais, políticas e culturais; enfim,
um novo tipo de cidadão com hábitos, interesses, formas de pensar e sentir emer-
gentes. Uma vida social presidida pelos intercâmbios a distância, pela supressão
das barreiras temporais e pelas fronteiras espaciais. A esta nova maneira de esta-
belecer as relações sociais e os intercâmbios informativos deve corresponder um
novo modelo de escola.
Um dos aspectos mais relevantes deste momento de transição e mutação
substancial da cultura pública é, precisamente, a recuperação da interpreta-
ção cultural da vida social como eixo da compreensão das interações huma-
nas. É particularmente importante esta interpretação culturalista da vida polí-
tica e social, porque se produz numa época caracterizada precisamente pelas
mudanças radicais, profundas, generalizadas e vertiginosas na configuração
da cultura. Como afirma Racionero (1993, p. 29): "Antes havia uma cultura po-
pular - o folclore - e a alta cultura, de Goethe e Mozart; agora há, no campo,
restos de folclore; na cidade há cultura de massas e, em alguns bairros, ricos
textos de Goethe e Mozart. A cultura de massas é o Parque Jurássico". Não é
difícil imaginar a relevância substancial desta interpretação cultural da vida atre-
lada à consciência de sua relatividade, contingência e provisoriedade para de-
terminar a incerteza e a ambigüidade que percorre uma de suas instituições-
chave: a escola.
É interessante, na minha opinião, ampliar essa interpretação culturalista
para a compreensão da vida da escola, dos modos de intercâmbio e dos efeitos
que provoca nas novas gerações. Por isso, pareceu-se extremamente útil en-
tender a escola como um cIu~.mento de culturas que provocam tensões, aber-
'" '- turas, restnÇ6e;;e;;-n-'_as1es na ~nstrução de signIficados. Ao interpretar os
fator;s que intervêm na vida escolar como culh;as, estou ;;ssaltando o caráter
sistêmico e vivo dos elementos que influem na determinação dos intercâmbios
de significados e nas condutas dentro da instituição escolar, assim como a natu-
reza tácita, imperceptível e pertinaz dos influxos e elementos que configuram a
cultura cotidiana. Com este propósito, parece-me imprescindível aclarar o con-
ceito de cultura que vamos utilizar no desenvolvimento do presente discurso para
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLlBERAL 13

poder analisar e compreender a complexa rede de culturas que se entrecruzam


na vida da escola.

o CONCEITO DE CULTURA

Uma das primeiras formulações do termo cultura se deve ao antropólogo Edward


B. Tylor, o qual a define como "aquele todo complexo que inclui conhecimentos,
crenças, arte, leis, moral, costumes e qualquer outra capacidade e quaisquer ou-
tros hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade". A
partir desta primeira formulação no campo da antropologia clássica, prevaleceu a
interpretação da cultura como uma complexa herança social, não-biológica, de
saberes, práticas, artefatos, instituições e crenças que determinam a controvertida
textura da vida dos indivíduos e dos grupos humanos (Malinowski, Sapir, Mead).
A cultura aparece como o contexto simbólico que circunda, de maneira per-
manente e de forma relativamente perceptível, o crescimento e o desenvolvimen-
to dos indivíduos e dos grupos humanos. Ou como afirma a Unesco: "A cultura é
o conjunto de conhecimentos e de valores que não é objeto de nenhum ensino
específico e que, no entanto, todos os membros de uma comunidade conhecem"
(Finkielkraut, 1990, p: 98).
Em que consistem, como se formam, desenvolvem, transmitem e transfor-
mam tais produtos simbólicos que constituem a cultura, e como são reproduzi-
dos, assimilados e recriados pelos indivíduos e pelos grupos: este é o eixo funda-
mental de estudo e de discrepância da antropologia e o resto das ciências huma-
nas, e que tantas repercussões causam na concepção da educação e da escola.
Como afirma Finkielkraut (1990), a cultura tem uma potente dimensão po-
pular e tradicional, é o espírito do povo a que cada um pertence e que impregna,
ao mesmo tempo, o pensamento mais elevado e os gestos mais simples da vida
cotidiana. E, neste sentido, o conceito de cultura popular se complica quando a
evolução econômica, política e tecnológica estende seus horizontes a limites in-
suspeitos, de modo que o contexto de influências cotidianas e próximas se uni-
versaliza como conseqüência da onipresença e do poder sedutor dos meios de
comunicação de massa.
Naturalmente, cada pessoa possui raízes culturais ligadas à herança, à memória
étnica, constituídas por estruturas, funções e símbolos, transmitidas de geração em
geração por longos e sutis processos de socialização. É óbvio também que cada indi-
víduo, antes de poder decidir sua própria proposta de vida, se encontra imerso na
imanência de sua comunidade, nas coordenadas que configuram o pensar, o sentir e o
agir legítimo em seu grupo humano. Mas cada vez se torna mais evidente que a
herança social que cada indivíduo recebe, desde seus primeiros momentos de desen-
vol vimento, já não se encontra constituída primordial nem prioritariamente por sua
cultura local. Os influxos locais, ainda importantes, se encontram substancialmente medi-
atizados pelos interesses, expectativas, símbolos e modelos de vida que se transmitem
através dos meios telemáticos.
14 A. L PÉREZ GÓMEZ

Parece evidente que o contexto cultural que tanto potencia como restringe as
possibilidades de desenvolvimento do indivíduo humano mudou substancialmente
de forma acelerada nas últimas décadas para mostrar sua natureza flexível, com-
plexa, incerta, plural e diversificada. As raízes locais da cultura que definiram o
cenário próximo em que cada indivíduo incorporava a herança social, e que lhe
proporcionavam tanto a plataforma de lançamento como o horizonte de expecta-
tivas, perderam não apenas sua supremacia como também sua própria e original
identidade, atuando, em todo caso, ao mesmo tempo e de forma mediatizada com
os poderosos instrumentos de comunicação social. Com isso, parece que o indi-
víduo das sociedades do fim do século XX ampliou de maneira assombrosa seus
horizontes, seus recursos e suas expectativas culturais à custa, inevitavelmente,
de perder sua segurança.
Por outro lado, o conceito de cultura, apesar da força recuperada como re-
curso explicativo das interações humanas, não pode ser entendido sem se identi-
ficar as estreitas relações que mantém com o marco político, econômico e so-
cial no qual é gerado e com o qual interage. Se os produtos simbólicos das
interações humanas de um grupo social - isto é, o conjunto de significados,
expectativas e comportamentos - se enraízam e sobrevivem é porque mani-
festam um certo grau de funcionalidade para se desenvolver nas condições
sociais e econômicas do meio. Agora, estas relações já não podem ser consi-
deradas nem unilaterais nem dependentes, como a interpretação mecanicista
do desenvolvimento histórico impôs em grande parte do pensamento moder-
no. É evidente que os produtos culturais se geram tão adaptados, em certa
medida, ao contexto natural, econômico ou social, que mantêm, ao mesmo
tempo, um certo e irredutível grau de autonomia que provoca disfunções,
bloqueios, alternativas e, inclusive, a transformação das condições de tal con-
texto (Carspecken, 1992).
Se o conceito de formação cultural parece substituir o clássico conceito de
classe social, na minha opinião não é porque tenham deixado de existir as dife-
renças sociais em virtude do nível econômico, nem porque começam a ter mais
importância os problemas referentes à nacionalidade, à etnia, à linguagem ou à
religião, como coloca Bell (1996), esquecendo que em todos eles subjaz algum
problema relacionado com ajustiça e com a igualdade na produção e na distribui-
ção de bens; a substituição parece-me necessária para evitar a interpretação me-
canicista nas relações entre as condições econômicas e as elaborações simbólicas
dos grupos humanos. Precisamente, porque não se confirmam ditas relações me-
cânicas, porque existe um certo grau de autonomia na elaboração de significados,
expectativas e comportamentos dos indivíduos e dos grupos humanos, os limites
e as fronteiras entre eles se esfumam e confundem. Neste sentido, o conceito de
proletariado ou burguesia deixa de ter valor para compreender os comportamen-
tos individuais e os movimentos sociais. A relativa autonomia da produção sim-
bólica, a qual constitui o conceito de cultura, permite uma análise mais flexível,
dinâmica e diversificada para compreender a pluralidade e a complexidade do
comportamento humano.
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLlBERAL 15

Em todo caso, e como afirma Carspecken (1992, p. 508), existem importan-


tes razões para não provocar uma separação radical entre a cultura, a política e a
economia. Os fenômenos culturais não podem ser considerados, de maneira ide-
alista, como entidades isoladas; para entendê-Ias, é preciso situá-Ias dentro do
--------..........
conflito das relações sociais nas quais adquirem significação.(Cultura e pod~
não fazem parte de diferentes jogos lingüísticas, mas constituem um casamento "
indissolúvel na vida cotidiana .

...os processos cultu~ se encontram intimamente conectados com as r<WlçQ~ssociaÍJ,


em especial com a formação das classes sQfiais, com as divisões sexuais, com a e§.tIJ!:'
turação racial das relações sociais, e com a opressão da .idade como uma forma de
dependência (...) a cultura implica poder e ajuda a produzir assimetrias nas habilidades
dos indivíduos e grupos sociais para definir e atender suas necessidades. (...) a cultura
nem é um campo autônomo nem tampouco um campo determinado externamente, mas
um espaço de diferenças e de lutas sociais (Johnson, 1983, p. 3, em Carspecken, 1992,
p.Sl0)

~t~)1993), por sua vez, também estabelecereI ações de interdependência


e de ~mia entre a cultura e a estrutura social ao considerar a cultura como o
tecido de significados em função do qual os humanos interpretam sua experiên-
cia e guiam sua ação, e ao definir a estrutura social como a forma que adquire a
ação, como a rede atualmente existente de- relações sociais. As relações sociais,
por um lado, se configuram de uma maneira determinada tanto pelas exigências
econômicas e políticas Gomo pelas intemretações subjetivas ue orienta.!lUUlÇãp
dos jndiyid_UQs.~.-cio.s..gàp..os.Põr out~o ladõ~ õ' tecido d~ significados que orien-
tam a interpretação e a ação dos sujeitos se configura tanto em função das exigên-
cias sociais, econômicas e políticas como das resistências.e.alternativas que se
geram e se aceitam como possíveis, oorrruIldO im~inário dos ~os e da
coletividade. É sugestivo, neste sentido, o pensamen. to de ..Gee.r.tz (1973, p. 5),
\ quando afirma que: "<2.-~0n.l~QlJLunu:miwal ~s.E.~.~~~em red~s ~.~2i,g]..iii~
\
..j qu~ ~1~fl1..e.smo"aj.udoua tecer", - ~-,-"'--_.~~
• < Esta interpretação do conceito de cultura como o tecido de significados,
expectativas e comportamentos, discrepantes ou convergentes, que um grupo hu-
mano compartilha, requer, ao mesmo tempo, tomar consciência do caráter flexí-
vel e plástico do seu conteúdo. As produções simbólicas não podem ser entendi-
das como as produções materiais. As relações mecânicas entre elementos con-
fundem mais que esclarecem a verdadeira natureza das interações humanas. Con-
forme afirmam reiteradamente pensadores de origem tão distinta como Bruner,
Van Maanen ou Geertz, a cultura é um texto ambíguo, inacabado, metafórico,
que requer constante interpretação. A cultura, como fenômeno fundamental e
radicalmente interativo e hermenêutico, requer interpretação mais do que expli-
cação causal. Conhecer, inclusive, a própria cultura é um empreendimento sem
fim. O próprio fato de pensá-Ia e repensá-Ia, de questioná-Ia ou compartilhá-Ia supõe
seu enriquecimento e sua modificação. Seu caráter reflexivo implica sua natureza
cambiante, sua identidade autoconstrutiva, sua dimensão criativa e poética.
16 A. I. PÉREZ GÓMEZ

Quando o homem organiza racionalmente não faz mais do que reproduzir, repetir ou
prolongar formas já existentes. Mas quando organiza poeticamente, dá forma ao caos,
e esta ação, que é, talvez, a melhor definição da cultura, se manifesta com uma clareza
esmagadora no caso da arte. (Castoriadis, 1993, p. 47)

Este aspecto reflexivo é um eixo crucial para a interpretação dos assuntos


humanos. A diferença substancial entre os processos de socialização espontânea
e os de educação intencional é o propósito decidido e sistemático desta última de
favorecer o desenvolvimento da consciência de suas possibilidades reflexivas
nos indivíduos, de voltar-se sobre si mesmos e sobre seus próprios processos de
socialização, para entender como se está configurando em cada um o tecido de
significados que compõem sua cultura e para decidir sobre sua permanência ou
modificação. Como veremos ao longo dos próximos capítulos, a educação é en-
tendift<Lno"'presente discurso como um complexo processo de enculturação*~
volt~~P!~ si mes~o:re--rfexivariiente, para entender suasorfgens, senfi~
- -" tos no desenvolvimento individual e coletivo. Por isso, é imprescindível entender
- ----- - ------
os mecanismos explícitos e tácitos de intercâmbio cultural de significados para
co preendere estimular os processos de reflexão educativa.
Corno sínt~se' onvém destacar dois aspectos do conceito de cultura de es-
ecial relevâlíôiã para nosso discurso posterior: em primei~.::.
(/'JJ ..r~ têmko e inter-relacionado dos elementos simbólicos que constituem a rede de
~ 'significãctos compartilhados:<Ie ~odo q~e se evitem~as interpretações unilaterais
e reducionistas. Em segundo lugar, sua natureza implícita, o caráter tácito, supos-
tamente, da maioria de seus conteúdos. As culturas. funcionam como padrões de
• - __ r- ~---

i.~ercâmbio precisamente porque formam.uma c:oe~el1_te rede de significados com-


partilhados que os indivíduos, em geral, não questionam e que são admitidas
como marcos úteis ~ presente~ nos processos de cOl!!~nica~ão. Os IgõfficacISs')se

1
- ._~~
objetivam em c mpoi-tamentos~ em artefatos
contexto institucional e que são~i~o~
--_
--- e em rituais ...•.que formam a pe e do
como impre~díveis e inquestioná-
/ _ye~ por seu caráter prévio à int~rvenção dos agen~. ----- - -------

A ESCOLA COMO CRUZAMENJO. DE CULTURAS

Todas estas características do c~ceito de cult~ - c..Q!!figu~


ter indeterminado e ambíguo, aberto à inte retação, n-"'a-'-'tu'--'r...:.e_z
__
a...:.i_m...!;p:....l_íc_l~
con-
teúdos, relevância vital de suas determinações, ambivalência de seus influxos, os
--.- - .. ~
qUalS representam tanto plataformas que abrem póssibilidades como marcos que
restringem perspectivas - me parecem de enorme transcendência para a compre-
ensão dos fenômenos de socialização e educação que ocorrem no cenário da es-
cola. O enfoque cultural não supõe uma simples mudança de denominações, mas
de perspectiva. A análise do que realmente acontece na escola e dos efeitos que

* N. de T. Processo pelo qual a pessoa adquire os usos, as crenças, as tradições, etc., da sociedade
em que vive.
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 17

tem nos pensamentos, nos sentimentos e nas condutas dos estudantes requer des-
cer aos intercâmbios subterrâneos de significados que se produzem nos momen-
tos e nas situações mais diversas e inadvertidas da vida cotidiana da escola. ~
~ife~_~~s_cultu[as ue s~r.~ uzam no espaço escolarJ!!!.m:s<gnam o sentido
dos intercâmbios e o valorJia~Jr,ªns~9ões em mero às quais se desenvolve a co~s-
*
trução de significados de cada indivía~---~---
- Com este propósito e levando em conta a complexidade do termo cultura
anteriormente desenvolvido, me parece necessário tornar mais definido o concei-
to que utilizarei adiante. Considero5!Jtüiã}:omo o conjunto de significados, ex- 6
p~ctativas.-e comportamentos compartilhada por um eterminado grupo sQcial, \
o gual facilitá eOrdena, limita e potenciaõS·intercâmbiÔs'-socials, as produções"
s'imbólicas-emateriai s-e as realizações individuais e coletivas dentro ~ um mar- '1"_

co espacial e temporal determ!.!1_~do..: A cultura, ortanto, é o resultado da constru- ~ \


ção social, contingente à . ões materiais, sociais e espirituais que dominam ~
um espaço e um tempo. x ressa-se em significados, valores, sentimentos, cos- A_~
tumes, rituais, instituições e objê os, sentimentos (materiais e simbólicos) que Ó r-
circundam a vida individual e coletiva da comunidade. Como conseqüência de .>
seu caráter contingente, parcial e provisório, ela não é um algoritmo matemático \~
que se cumpre indefectivelmente. Deve ser considerada sempre como um texto \~
ambíguo, que é necessário interpretar indefinidamente (Bruner, 1992). Por isso,
viver um3-c~k..ckJa artici ar sup.Q.e.reinterpretá-Ia, rep..Ioduzi:@, assim como
lraITsfõj:má-la. A cultura potencia tanto guanto limita., abre ao mesmo tempo que
restringe o horizonte de imaginação e prática dos que a vivem. Por outro lado, a
natureza de cada cultura determina as possibilidades de criação e desenvolvi-
mento interno, de evolução ou estancamento, de autonomia ou dependência indi-
vidual.
Em outras ocasiões (Pérez Gómez, 1993, 1995), já propus considerar a es-
cola como um espaço e.cológico ~~ruz~to de cultur~, cuja responsabilida-
de específica, que a distingue de outras instituições e instâncias de socialização e
. lhe confere sua própria identidade e sua relativa autonomia, é a..medjsLÇgQ.ld}!x!.:..
va daqueles influxos plurais que as diferentes culturas exercem de forma perma-
r--7ente sobre as novas gerações, para facilitar seu desenvolvimento educativo. O
responsável definitivo da natureza, do sentido e da consistência do que os alunos
e as alunas aprendem em sua vida escolar é este vivo, E.~do ~_om.ple o_cru~-
-mento de JJl.t~ que se produz na escola, entre as propostas da..cu.l.tI&racríticq,.
~ . alojada nas disciplinas científicas, artísticas e filosóficas; as~~inações da ~
- cultura acadêmica, refletida nas definições ~e constituem c(currículo' os influ- '.',
Ç,. xos da cJi;!turiLs.o.cjqJ, constituída pelo valores hegernônicos .Q.. ~nári~
~ . as pressões do cotidiano da cu/tura institucwna , presente nos papéis, na;rnor)
~ Cm5 nas rotinas e nos ritos próprios da eseola7omo instituição específica; eas
Cãracterísticas da cL!t.t.liIJJ...ex.pe.rie~, adquirida indi vidU(~lme .te-p~ atra-
I
J
-vés da experiência nos ·flt-&Gâmbi.o..s~~_sJ2Qnt~!2~j_C_Om e.UJ!le.L0'
No presente trabalho, proponho-me a analisar detidamente os diferentes as-
pectos que compõem cada uma destas culturas ue interagem no es aço escolar,
e cujo conhecimento pode nos ajudar a tornar claro o conjunto de fatores plurais
18 A. I. PÉREZ GÓMEZ

que condicionam os processos de ensino e de aprendizagem e que, freqüente-


me1!!.~J9~ª.!lljPfluídos no providencial conceito "guarda-chuva" denominado
€!rículo oculto!Torres, 1991, Apple, 1989). É evidente que os e~~~a.n~es apren-
d~ e muito menos, em todo casàã1g![çW'er~n1ê;"ãõ que lhes é ensI=
nado intenclOna me Te-tl"õêúITicutô'"ê'XplTéltõ~Tanto os i~te~;âm lOS iCãÕêfrItêôs
êõmü"õs·lTIle-rcârITl5iu pessoãlsOuâsrêlaçõ~s institucionais se encontram medi-
ati~~d?s pelal§.fp...llI~)b'ü:~lIi~cultik~~~I~e·-s~ ~:nre~-re~a~i~m~r::neste .~~
artlflcIal, e que constituem uma nca e espessa tela de significàdósêde expectati-
vas por onde transita cada sujeito em formação, precisamente no período mais
ativo na construção de seus significados e de sua identidade. Esta perspectiva
cultural pretende estimular nossa sensibilidade ante a decisiva influência sociali-
zadora e educativa dos múltiplos elementos subterrâneos, tácitos e imperceptí-
veis que constituem a vida cotidiana da escola. Os-ritos, os 00 tumes, as formas
-- de organizar o espaço e o tempo, €foll;~
ão-çliscutidos as idéias o~-
~r'''' s:.ntes, as expectativas não-questionadas, os interesses Í11Go!:fessáveis, OS~7
=r r- •.•.~os\aprendidos e reproduzidos de forma mecânica, os oteirossubentendidos ...
~~ (sa
..•.•.. todos elementos fundamentais
. de cada uma das culturas éda rede específica
que se articula no cruzamento d~las, cuiQinfl xo real no inter-relaçionamento e
X.
C_"",... na construção de significado6:riii!.i'F.2E~[9S0 quanto mais i ~~tível.t
A função educativa da escola, como veremos no desenvolvimento do pre-
sente trabalho, é precisamente oferecer ao indivíduo a possibilidade de detectar e
entender o valor e o sentido dos influxos explícitos ou latentes, que está receben-
do em seu desenvolvimento, como conseqüência de sua participação na comple-
xa vida cultural de sua comunidade. A primeira responsabilidade do docente,
portanto, é submeter sua prática e seu contexto escolar ao escrutínio crítico, para
com reender a trama oculta de intercâmbio de significados que constituem a rede
-;Imbólic~ue sêfõrri1ãrÜõs-estücTãii"iêS":-
A escõiãéfevereflêtir so re siíÍ~~;ma
~~~ •• - ~""""'~;t\ •• ~,.;:;>'._- ...••.•.•.. ..-_, _

para poder se oferecer como plataforma e ucativa, a qual tenta aclarar o sentido
e os mecanismos através dos quais exerce a ação da influência sobre as novas
gerações.
Meu propósito, ao dese Y9 y.e~ a uma d culturas ue se entrecruzam
r
no e_~pa
-.,
6 esco ar,
~_~",.
e oferecer instrumentos teóricos, linhas de análise que aci I-
tem a indagação e a compreensão da complexidade de fenômenos explícitos e
latentes que configuram a rica vida da sala de aula e da escola. Não são mais do
que pontos de partida e vias de indagação que pretendem abrir novos horizontes
à pretensão de entender os fluxos reais que pressionam a construção de significa-
dos naqueles que vivem na escola.
As diferentes culturas que se cruzam na escola sofrem, de forma indesculpá-
vel, as implacáveis determinações da complexa vida contemporânea; por isso, a
pretensão de intervir educativamente no desenvolvimento das futuras gerações
requer a compreensão de influxos sutis, onipresentes e freqüentemente invisí-
veis, porque fazem parte do cotidiano. As ferramentas de análise e os esquemas
de interpretação que ofereço aqui obviamente também não escapam à complexi-
dade e à contingência. Meu desejo é que, apesar da inevitável dificuldade do
conteúdo de alguns capítulos, as interpretações que apresento possam servir aos
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLlBERAL 19

docentes para entender e apreender melhor o valor de nossos propósitos e proce-


dimentos, assim como o sentido e a força das circunstâncias em que trabalhamos.
No tocante aos agradecimentos, gostaria de render uma sincera homenagem
a meus colegas docentes, professores e professoras dos diferentes níveis educati-
vos, os quais, com suas práticas inovadoras, com suas preocupações e interroga-
ções e com seus emotivos e intensos debates, mantiveram em mim a ilusão de
uma busca interminável, mas esperançosa, de melhores formas de fazer e de mo-
dos mais eficazes de entender a complexidade e a relevância da prática educativa
em meio à incerteza das condições pós-modernas de nosso cenário vital. Sirva
esta pequena homenagem para comunicar ao mesmo tempo minha convicção da
extraordinária relevância das práticas individuais e coletivas de renovação peda-
gógica da vida escolar, e meu desejo de estimular as experiências que se propõem
a converter a escola num espaço agradável de vivência e recreação livre e consci-
ente da cultura.
1 A Cultura Crítica

Nas ciências sociais, havemos de acrescentar ao instável caráter de todo conhecimento


empírico a "subversão" que compreende a reintegração do discurso científico social nos
contextos que analisa. A reflexão, cuja versão formalizada são as ciências sociais (um
gênero específico de conhecimento especializado), é fundamental para a índole reflexi-
va da modernidade em seu conjunto. (...) a questão não está em que não exista um mun-
do social estável para ser conhecido, mas que o conhecimento desse mundo contribui
para seu caráter mutável e instável. (Giddens, 1993, p. 47-51)

E
ntendemos por~alta cultura ou ~ultura intel~ual o conjunto
de significados e produções que, nos diferentes âmbitos do saber e do
fazer, os grupos humanos foram acumulando ao longo da história. É um
saber destil~do pelo contraste e o escr{ltínio público e sistemático, pela ~rítica e
reformulação permanente, que se aloja nas disciplinas científicas, nas produções
artísticas e literárias, na especulação filosófica, na narração histórica ... Esta cul-
tura crítica evolui e se transforma ao longo do tempo e é diferente para os diferen-
tes grupos humanos.
Não é difícil constatar uma crise atualmente na cultura intelectual e como esta
situação de crise influi de modo substancial no âmbito escolar, provocando, sobretudo
entre os docentes, uma clara sensação de perplexidade, ao comprovar como se des-
vanecem os fundamentos que, com maior ou menor grau de reflexão e consciente
aceitação, legitimam ao menos teoricamente sua prática. Quais são os valores e os
conhecimentos da cultura crítica atual que merecem ser trabalhados na escola? Como
se identificam e quem os define?
É evidente que, nas últimas décadas, vivemos uma inevitável sensação de
crise interna e externa da configuração moderna da cultura crítica que legitimou,
ao menos teoricamente, a prática docente em nossas escolas. A cultura científica
e o modelo de racionalidade vigente na sociedade ocidental se desvanece. A mo-
dernidade, a idéia de progresso linear e indefinido, a produtividade racionalista, a
22 A. r. PÉREZ GÓMEZ

concepção positivista, a tendência etnocêntrica e colonial a impor o modelo de ver-


dade, bondade e beleza próprios do Ocidente como modelo superior, e a concepção
homogênea do desenvolvimento humano que discrimina e despreza as diferenças de raça,
de sexo e de cultura ..., tudo isso se desmorona ante as evidências da história da humani-
dade no século XX, coalhada de catástrofes e hostilidade.
Diante do desvanecimento da racionalidade moderna, aparece a crítica interna e
externa, cujo máximo expoente é o pensamento denominado pós-moderno. Analisar e
entender o sentido complexo e plural de pensamento e ideologia pós-modernos são
chaves para compreender os influxos culturais que penetram a vida da escola. Como
se define o marco cultural público e intelectual na sociedade, na escola, no docente e
na aula, será um fator decisivo para compreender o peculiar intercâmbio cultural que
se estabelece na instituição educacional.
A crise da cultura intelectual se manifesta na evidente ou oculta transforma-
ção dos critérios que, em diferentes âmbitos, se utilizam para estabelecer os mar-
cos simbólicos de referência em tomo da definição do verdadeiro, do justo, do
belo e do útil. Este período de transição a partir da cultura moderna se denomina,
de forma ampla e um tanto ambígua, pós-modernidade. Depois de caracterizar mais
especificamente este conceito, nos deteremos em três aspectos que parecem essenci-
ais para compreender a profundidade da mudança da cultura crítica: o relativismo
cultural, os critérios de racionalidade e as transformações epistemológicas.

PÓS-MODERNIDADE

A complexidade e a diversidade do pensamento pós-moderno, assim como a mul-


tiplicidade de suas denominações, aconselham que nos detenhamos numa tentati-
va de aclaramento conceitual, pois nos encontramos num momento particular-
mente delicado, confuso e emergente. O velho, como dizia Gramsci, não acaba de
morrer e o novo não acaba de nascer. Ou, como adverte mais recentemente A.
Gorzt, ao falar sobre o futuro imediato da Europa, diante do perigo de que um
mundo se veja submerso na barbárie, antes de que outro tenha tempo de nascer.
Mas há mais, não está claro se o que nasce é uma negação superadora do velho ou
uma radicalização de suas possibilidades não-realizadas.

o difuso conceito de pós-modernidade

Para começar, podemos afirmar, de acordo com Lyotard, um de seus máximos


expoentes, que a pós-modernidade se caracteriza pelo desvanecimento e pela
carência de fundamento dos grandes relatos que balizaram a história do Ocidente
nos últimos séculos.

A condição de pós-modernidade se distingue por uma espécie de desvanecimento da


"grande narrativa" - a "linha de relato" englobadora mediante a qual somos colocados
na história como seres que possuem um passado determinado e .um futuro previsível.
(Giddens, 1993, p. 16)
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 23

Como sua denominação, de modo intencional parece indicar, o prefixo "pós"


nos leva inevitavelmente ao substantivo modernidade, para negá-Ia ou para indi-
car sua superação, mas em todo caso indicando que a modernidade continua sen-
do o núcleo fundamental de atenção e de debate. E estará, portanto, em estreita
relação com a definição que se faz desta época da humanidade em que se começa
a caracterizar a pós-modernidade.
Com o triunfo da Revolução Francesa, parecem se consolidar as idéias do
Iluminismo, instaurando-se o império da razão, que constrói os grandes relatos
tanto para explicar de novo a história passada da humanidade e lhe conferir um
sentido incontestavelmente evolutivo como para garantir a continuidade do acon-
tecer histórico, desenhando os perfis concretos do imediato devenir, as peculiari-
dades do desenvolvimento futuro pelo caminho do progresso inquestionável.
Os "grandes relatos" se constituem no marco interpretativo privilegiado da
história da humanidade, impondo uma representação ordenada e com sentido ao
devenir errático dos acontecimentos humanos. Pretendem abarcar toda a humani-
dade, atingindo todas suas dimensões fundamentais de experiência individual e
coletiva. Em particular, os cânones que definem a Verdade, a Bondade e a Beleza.
A característica' mais definidora da modernidade é, sem dúvida, a aposta
decidida pelo império da razão como o instrumento privilegiado nas mãos do ser
humano que lhe permite ordenar a atividade científica e técnica, o governo das
pessoas e a administração das coisas, sem o recurso de forças e poderes externos
nem sobrenaturais.

A concepção clássica da modernidade é, pois, antes de mais nada, a construção de uma


imagem racionalista do mundo que integra o homem na natureza e que recusa todas as
formas de dualismo do corpo e da alma, do mundo humano e da transcendência. (Tourai-
ne,1993,p.47)

A fé cega no império da razão levou à busca de um único modelo da Verda-


de, do Bem, e da Beleza; a estabelecer o procedimento perfeito e objetivo da
produção do conhecimento científico, assim como à derivação lógica, precisa e
mecânica de suas aplicações tecnológicas, primeiro no âmbito da natureza, de-
pois no das relações econômicas e, por último, no governo político das pessoas e
dos grupos sociais; a conceber o modelo ideal de organização política; a reafir-
mar o sentido linear e progressivo da história; a privilegiar o conhecimento dos espe-
cialistas e das vanguardas; a estabelecer uma hierarquia entre as culturas; a definir um
modelo ideal de desenvolvimento e comportamento humano, precisamente o ociden-
tal; e, em todo caso, a legitimar a imposição social, interna e externa, destes modelos.
Enfim, a impor como privilegiada uma forma particular de civilização.
Apesar dos inquestionáveis avanços dos grupos humanos neste período, as
ambiciosas promessas dos grandes relatos e a fé inquebrantável no poder da ra-
zão (definida habitualmente como única e com maiúscula) se chocam inevitavel-
mente com a frustrante linguagem de fatos e acontecimentos dolorosos e decep-
cionantes para a humanidade. Como recolhe e lamenta Enrique Gervilla (1993),
no século da consolidação definitiva da racionalidade, a modemidade, tão orgu-
U A. r. PÉREZ GÓMEZ

lhosa e segura do poder da razão e da esperança de felicidade, vê frustrados seus


projetos diante de acontecimentos históricos tão desprovidos de razão, como as duas
guerras mundiais; Hiroshima, Nagasaki; o extermínio provocado pelos nazistas; as
invasões russas de Berlim, Praga, Budapeste, Polônia; as guerras do Vietnã e do
Golfo Pérsico; a crise dos Bálcãs: Croácia e Sérvia; o desastre de Chernobyl; a fome;
a greve; a imigração; o racismo e a xenofobia; a desigualdade norte-sul; as políticas
totalitárias; a destruição de alimentos para manter os preços; a corrida armamentista;
as armas nucleares, etc.
Então, é na própria linha de flutuação do enorme transatlântico dos sonhos mo-
dernos que o poderoso míssil pós-moderno pretende atingir, provocando o despertar
coletivo de uma ilusão - sonho ou pesadelo, conforme se olhe - adorável e enganosa,
que nunca, na realidade, se desenrolou senão como representação social que preten-
dia legitimar o contraditório devenir concreto. Daí a complexidade, a amplitude e a
relevância de sua incidência, pois afeta a todas as dimensões constitutivas da legitimi-
dade moderna: a racional idade do pensar e do fazer em todos os âmbitos - político,
econômico, social, cultural, científico, etc.
Em contraposição à pretendida coerência, continuidade e ao pretendido sen-
tido teleológico dos grandes relatos modernistas se afirma a necessidade de acei-
tar a descontinuidade, a carência de fundamentos e o sentido teleológico da razão
e da história, a diversidade e a incerteza corno sinais de identidade mais modestos
do indubitável errático devenir humano. A pós-modemidade diz adeus aos gran-
des princípios para se abrir a uma "episteme" de indeterminação, descontinuida-
de e pluralismo (Gervilla, 1993).

Seus traços mais conspícuos - a dissolução do evolucionismo, o desparecimento da


teleologia histórica, o reconhecimento de sua minuciosa, constitutiva reflexibilidade,
junto com a evaporação da privilegiada posição do Ocidente - nos conduzem a um novo
e perturbador universo de experiência. (Giddens, 1993, p. 58)

Ao rastrear as origens do pensamento pós-moderno, certamente podem se en-


contrar influências múltiplas na história do pensamento, tanto na antropologia e nas
demais ciências sociais corno especialmente na filosofia ou na arte. Alguns relacio-
nam o pensamento pós-moderno com o ressurgir do romanticismo, e inclusive, com as
ideologias totalitárias e irracionais. Sem dúvida, parece que seus precursores mais
imediatos podem ser Nietzsche e Heidegger, e seus representantes mais característi-
cos os pós-estuturalistas Foucault e Derrida, Gadamer, Lyotard, Deleuze, Lypovetsky,
Baudrillard e Richard Rorty. No entanto, ao não formar escola nem corrente especí-
fica além de representantes singulares, convém abordar retalhos de pensamento pós-
moderno espalhados em todos os âmbitos do saber e da cultura.
De qualquer maneira, esta tão interessante quanto preocupante impressão geral
de falta de fundamento deve ser indagada à luz, mesmo que seja tênue, da análise dos
termos que freqüentemente se confundem, obscurecendo seu conteúdo. Tornando em
parte o pensamento de Hargreaves (1996) e Schwandt (1994), caberia distinguir entre
pós-modernidade, pensamento pós-moderno e pós-modernismo.
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 25

A pôs-modemidade, ou condição pós-moderna, poderia ser definida como uma


condição social própria da vida contemporânea, com algumas características econô-
micas, sociais e políticas bem-determinadas pela globalização da economia de livre
mercado, pela extensão das democracias formais como sistema de governo e pelo
dominio da comunicação telemática que favorece a hegemonia dos meios de comuni-
cação de massa e o transporte instantâneo da informação a todos os cantos da Terra.
O pensamento pós-moderno oufilosofia pós-moderna se refere ao pensamento
filosófico e científico que se desenvolve tanto pela crítica histórica aos desenvolvi-
mentos unilaterais e insatisfatórios da modernidade como à proliferação de alternati-
vas marginais e à cobertura intelectual das condições sociais e formas de vida que
caracterizam a pós-modernidade. A filosofia pós-moderna é o que mais se identifica
com o termo genérico pós-modernidade que se utiliza habitualmente. Refere-se a um
pensamento que enfatiza a descontinuidade, a carência de fundamento, a plural idade,
a diversidade e a incerteza na cultura, nas ciências, na filosofia e nas artes.

Adotar uma posição teórica pós-moderna implica a negação da existência de pensamen-


to fundacional, sobre a base de que não existe nenhuma realidade social apreensível
além dos signos· da linguagem, da imagem e do discurso. (Hargreaves, 1996, p. 44)

O pós-modernismo, por outro lado, se refere à cultura e à ideologia social


contemporâneas que se desprendem e, ao mesmo tempo, legitimam as formas de
vida individual e coletiva derivadas da condição pós-moderna. Nesse conceito,
deve-se incluir a cultura "popular", caracterizada pela mescla de tolerância, indi-
ferença, pluralidade, ambigüidade e relativismo, a qual está se gerando na socie-
dade global de intercâmbio mercantil e financeiro, em tomo do qual se movem a
economia, a política e a vida social dos grupos humanos já integrados ou excluí-
dos na denominada "aldeia global".
Embora o termo genérico de pós-modernidade englobe a todos estes fenô-
menos e a todas estas representações e assim o utilizemos no futuro, convém ter
presente que alude a fenômenos e a conteúdos que podemos distinguir e especifi-
car, apesar de suas óbvias interações e dependências. Não convém esquecer que
tanto a filosofia pós-moderna como fundamentalmente o pós-modernismo são,
em última instância, um efeito da pós-modernidade; são uma parte do fenômeno
mais amplo denominado condição pós-moderna.
Afinal de contas, pós-modernismo e filosofia pós-moderna aludem a uma
mesma realidade, situada em dois planos de diferente nível: a representação
vulgar e a representação reflexiva. A primeira é gerada por incorporação pas-
siva e acrítica do pensamento e da cultura dominante. A segunda, pelo con-
trário, exige um esforço permanente de reflexão, argumentação e abertura à
crítica e ao escrutínio público. Como veremos no capítulo correspondente, as
peculiaridades da ideologia e da cultura popular pós-modernas, o pós-moder-
nismo, pertencem ao que denomino cultura social, e será, portanto, objeto de
análise em seu momento. No presente capítulo, dedicado à cultura crítica ou
alta cultura, nos deteremos na análise do pensamento e da filosofia pós-mo-
derna.
_6 A. r. PÉREZ GÓMEZ

Em todo caso, devo advertir que estes esforços de classificação e discernimento


de categorias são mais típicos da herança moderna que do ethos pós-moderno, para
o qual seria estranho, difícil e, inclusive, contraproducente distinguir entre filosofia
pós-moderna e pós-modernismo, por exemplo, como duas categorias substancialmen-
te distintas, já que ambas podem se nutrir do mesmo discurso e suas diferenças po-
dem ser provisórias, parciais e situacionais.

Características que adornam a pós-modernidade

... 0 pós-modernismo postula a natureza essencialmente híbrida do mundo, recusando a


possibilidade de categorias puras de qualquer tipo. É um mundo de casamentos mistos:
entre as palavras e as coisas, o poder e a imaginação, a realidade material e a construção
lingüística. Levada ao limite, a desconstrução expressa nosso senso da natureza descon-
tínua, fragmentada e fraturada da realidade, cuja condição incerta fica representada pelo
uso persistente das aspas. (SpiegeI 1993, p. 4)

Derivada de seus postulados nucleares, em que se afirma a carência de fun-


damento racional definitivo, a descontinuidade e a ausência de sentido da histó-
ria, o desvanecimento dos grandes relatos e a abertura à pluralidade e à incerteza,
pode-se situar uma complexa constelação de peculiaridades que definem o pen-
samento pós-moderno, entre as quais cabe destacar as seguintes:
- Perda de fundamento da racionalidade. A primeira conseqüência do desvane-
cimento dos relatos, e talvez, um de seus fatores interativos substanciais, é a perda de
fundamento da racionalidade em todos os âmbitos, especialmente na ciência e na
moral. Como afirma Hargreaves (1996), quando se dissolve a certeza moral e cientí-
fica, a única realidade que parece inteligível é a linguagem, o discurso, a imagem e o
texto. A verdade, a realidade e a razão são construções sociais relativas e contingen-
tes, são versões, talvez privilegiadas pelos grupos de poder, de uma fluida e mutável
realidade plural tal e como é representada e interpretada por diferentes perspectivas e
"vozes" relativamente dominantes ou marginais. Impõe-se, portanto, o pensamento débil
(Vattimo, 1995), tateante, prudente, consciente de sua constitutiva relatividade e con-
tingência. (Não deve se confundir com o pensamento único que impõe a ideologia
social dominante como norma de atuação e critério de legitimidade.)
- Perda dafé no progresso. Um dos primeiros sintomas que se detectam no
pensamento pós-moderno é a falta de fé no progresso, a dissolução da crença na
possibilidade de desenvolvimento ilimitado da sociedade humana ao se apoiar
nas surpreendentes possibilidades abertas pela ciência e pela técnica. A perda da
fé no progresso linear, cumulativo e ilimitado é um elemento-chave no desvane-
cimento dos grandes relatos modernistas. Não apenas se impõe a impressão de
que a história não tem um sentido único, evolutivo, como também aparece com
bastante clareza que a história, como diz Giddens (1993), não conduz a nenhuma
parte predeterminada, senão que supõe um transitar errático e descontínuo que
provoca tanto satisfação como sofrimento para a comunidade humana.
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 27

- Pragmatismo como forma de vida e de pensamento. Esgotada a retórica


dos grandes relatos, o pensamento e a vida cotidiana se refugiam em pretensões e
perspectivas mais modestas. Impõe-se um pensamento pragmático colado à reali-
dade cotidiana local e conjuntural; a busca do prazer e da satisfação do presente,
sem demasiada preocupação nem por seus fundamentos nem por suas conse-
qüências. O consenso temporal e conjuntural é proposto como objetivo e como
estratégia do-indivíduo e da comunidade, na supremacia das denominadas políti-
cas de vida sobre as políticas de emancipação (Rorty, 1989; Mardones, 1991).
Como propõe Giddens (1993), a "ética do pessoal" é um traço fundamental da
política de vida, como as mais consolidadas noções de justiça e igualdade o são
para as políticas emancípatórias.'
- Desencanto e indiferença. A perda da fé no progresso e a carência de fun-
damento estável e seguro do saber e do fazer conduzem à generalização do desen-
canto, à indiferença e, com freqüência, ao cinismo, o que supõe, como afirma Barce-
llona (1990), o triunfo do caráter sem fundamento, artificial, contingente e polimorfo
do mundo contemporâneo. O ser humano, sem fundamento e sem horizonte definido,
tem que aprender a viver a incerteza e o sem-sentido teleológico do presente. Do
desencanto da cultura crítica à ética do vale-tudo, e ao cinismo de aproveitar a injus-
tiça em benefício próprio, não há senão uma débil fronteira que a ideologia pós-mo-
derna e a cultura social dominante ultrapassam de forma permanente.
- Autonomia, diversidade e descentralização. Em todas as ordens de vida
individual e coletiva, impõe-se a exigência da autonomia, o respeito à diversida-
de e a conveniência da descentralização. Cada indivíduo, cada grupo, cada comu-
nidade deve assumir a responsabilidade de seu concreto e próximo transitar no pre-
sente. Como afirma Hargreaves (1996), a diversificação e a descentralização atingem
os mais diferentes domínios da vida pós-moderna, desde a economia até a afetivida-
de. "As economias pós-modernas se constroem sobre a produção de pequenas mer-
cadorias mais do que de grandes, serviços mais do que manufaturas, sofware mais do
que hardware, informação e imagens mais do que produtos e coisas. Política e admi-
nistrativamente, a necessidade de flexibilidade se reflete em estruturas de tomada de
decisões mais horizontais e descentralizadas, na redução da especialização e na con-
fusão e mescla de papéis e fronteiras" (p. 9).
- Primazia da estética sobre a ética. Quando a ausência de fundamentação
racional estável do saber e do fazer nos situa no confortável refúgio da lingua-
gem, do discurso, dos textos e das imagens, é fácil compreender que a areia mo-
vediça do debate ético desapareça diante do surgimento das deslumbrantes rou-
pagens estéticas. As aparências, as formas, a sintaxe e o discurso ocupam todo o
território da representação. O meio é a mensagem, e a forma desaloja o conteúdo, ou
melhor, se configura como o conteúdo manejável. Como afirma V ázquez Rial (1992,
p. 2), "os pós-modernos não chegarnjamais à exaltação épica, mas lhe abrem a porta,
com preguiçosa elegância, ao negar o pão e o sal às idéias de Razão e Progresso, e ao
submeter a função à forma e a ética à estética".
28 A. I. PÉREZ GÓMEZ

- Crítica ao etnocentrismo e à universalidade. Aparece com clareza que


nem a história conduz necessariamente a uma única e privilegiada forma de
cultura, a ocidental, nem podem tampouco ser afirmados assim sem mais nem
menos traços universais da espécie humana, que se impõem como naturais a
todas as formas particulares e heterogêneas de desenvolvimento cultural di-
ferenciado. A dissolução da fundamentação racional conduz, com facilidade,
à afirmação do relativismo. Se não há uma forma ótima, racionalmente fun-
dada, de ser no mundo, qualquer configuração cultural ou qualquer modo de
ser individual ou coletivo pode reivindicar sua legitimidade. Encontramo-nos
diante do abismo de afirmar que vale-tudo pelo mero fato de existir, frente à
dificuldade de encontrar critérios de discernimento e contraste, entre o res-
peito à di versidade e a afirmação do relativismo, da incomensurabilidade de
culturas e comportamentos.
- Multiculturalismo e aldeia global. O respeito às diferenças pessoais, gru-
pais ou culturais leva o pensamento pós-moderno à afirmação da tolerância, à
aceitação teórica do "outro", à justaposição cultural e, inclusive, à mestiçagem e
interculturalismo. No entanto, ójogo real de intercâmbios comerciais de objetos
e informações na sociedade global de livre mercado não conduz à aceitação da
diferença e da diversidade em sua versão original, nem à igualdade radical de
oportunidades no intercâmbio cultural, mas à imposição sutil dos padrões cultu-
rais dos grupos com poder econômico e político e à divulgação selecionada da
cultura e dos pensamentos alheios, "estranhos", fronteiriços, que em sua versão
light podem, inclusive, se transformar em lucrativas mercadorias.
A este respeito, BarcelIona (1990) considera que os meios de comunicação
de massa são um redutor da complexidade das diferenças a um denominador
comum. Echeverría (1993) acrescenta que telépolis é a aldeia global onde se pro-
duzem, sem limite espacial nem temporal, os intercâmbios acelerados entre indi-
víduos e culturas, acercando as diferenças e gerando homogeneidade através do
"indiferente" universo telemático.
- Ressurgimento do fundamentalismo, do localismo e do nacionalismo.
Apoiados na legitimidade das diferenças e impulsionados pela necessidade
de afirmar a identidade própria de cada grupo na aldeia global da indiferença
do mercado, assistimos, no final do século, ao ressurgir virulento da prática dos
nacionalismos, dos localismos, dos fundamentalismos e, inclusive, dos racismos, ve-
lhos e conhecidos companheiros da história da humanidade. A emergência prática do
fenômeno leva atrelada a elaboração e a difusão do discurso teórico de fundamenta-
ção e legitimação. Como afirma Barcellona (1990), a busca de identidade num mun-
do anônimo de intercâmbios mercantis desiguais, injustos e discriminatórios; a defe-
sa frente à angústia do indiferenciado conduzem, com freqüência, e de forma violen-
ta, à afirmação irracional da diferença, da identidade particular inclusive à custa da
negação e da exclusão do "outro".
- Historicismo, o fim da história. O pensamento pós-moderno parece se
mover em sua concepção sobre a história entre a afirmação do relativismo (os
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 29

acontecimentos só têm sentido em seu contexto e não formam um fio condutor


que possa explicar a evolução como continuidade) e a afirmação do fim da histó-
ria (Fukuyama). Esta concepção supõe o ressurgimento de um etnocentrismo tem-
poral ao afirmar que a humanidade, ao menos a ocidental, entrou num novo está-
gio, no qual pára, definitivamente, a evolução social, econômica, política e cultu-
ral, pois as chaves estruturais encontradas e consolidadas (democracia formal e
livre mercado) permitemjá a plural idade, a plasticidade e a flexibilidade necessá-
rias para não se ter que modificá-Ias como exigência do desenvolvimento.

Pós-modernidade ou radicalização da modernidade

Levando em consideração as importantes contribuições que o pensamento pós-


moderno ofereceu, sacudindo a consciência adormecida de uma modernidade
comodamente assentada na racionalidade instrumental, convém, no entanto, re-
cordar a relevante polêmica sobre sua origem e sobre seu desenvolvimento pelas
implicações que podem se derivar sobre a continuidade da cultura crítica. O pen-
samento pós-moderno supõe uma ruptura radical com a modernidade? Ou, pelo
contrário, é, antes, um desenvolvimento mais evoluído de alguns princípios subs-
tanciais do próprio pensamento moderno, submetidos e silenciados pelo predo-
mínio de uma maneira de conceber a racionalidade favorável às peculiaridades
políticas e econômicas daquela épocav- .
A maioria dos filósofos da escola de Frankfurt, com Habermas como um de
seus últimos representantes, considera que a maior parte das colocações críticas
presentes no discurso pós-moderno é uma clara manifestação das possibilidades
da própria razão defendida pelo Iluminismo, para refletir criticamente sobre os
processos e os efeitos de seu próprio desenvolvimento. Neste sentido, Sebreli
(1992) afirma que os aspectos mais perversos da modernidade podem ser critica-
dos pela própria razão moderna, sem necessidade de recorrer a nenhuma irracio-
nalidade pós-moderna. Um argumento complementar é feito por Agnes Heller
(1992) ao afirmar que "o pós-modernismo é o herdeiro direto do antiautoritaris-
mo da última geração modernista" (p. 15).
É evidente que a cultura crítica se move na atualidade sobre fundamentos e
expectativas bem diferentes daqueles que motivaram e definiram os propósitos
do Iluminismo e que definiram (entre outros aspectos do desenvolvimento eco-
nômico, político e social) a função social da escola, sua finalidade instrutiva e sua
natureza universal. Mas, talvez, seja uma frivolidade considerar que as colocações
críticas atuais supõem a remoção ou a dissolução total daqueles pressupostos.
Em princípio, é fácil mostrar que tampouco se desenvolveu um único e uni-
forme pensamento sobre a interpretação e o governo das pessoas, da natureza e
dos artefatos. As posições críticas, céticas e alternativas se produziram ao longo
de todo o período de vigência da denominada modernidade (romantismo, anar-
quismo, psicanálise, niilismo ...). O que se pode afirmar é que tais posições se
manifestaram como marginais e minoritárias, embora nem por isso carentes de
30 A. r. PÉREZ GÓMEZ

influência e significação. A razão instrumental, a concepção evolucionista e linear


da história que conduz ao etnocentrismo ocidental e à crença ingênua no progresso
ilimitado foram eixos da cosmovisão hegemônica; são as manifestações da ideologia
que triunfou, mas que não conseguiu afogar outros desenvolvimentos discrepantes
que se mostram, à medida que o desenvolvimento moderno vai descobrindo suas
debilidades e insuficiências.
Giddens (1993, p. 56-57) reafirma esta colocação ao considerar que:

a ruptura com as visões providenciais da história, a dissolução da fundamentação junto


ao surgimento do pensamento contrafático orientado-para-o-futuro e o "esvaziamento"
do progresso pela mudança contínua são tão diferentes das perspectivas essenciais do
Iluminismo quanto assegurar a opinião de que se produziram transações de longo alcan-
ce. No entanto, referir-se a essas transações como pós-modernidade é um erro que atra-
palha a apropriada compreensão de sua natureza e implicações. As disjunções que ocor-
reram devem ser vistas, em princípio, antes como resultantes do auto-aclaramento do
pensamento moderno, enquanto que os resíduos da tradição e da visão provincial se
dissipam. Não fomos "além" da modernidade; ao contrário, precisamente, estamos vi-
vendo a fase de sua radicalização.

Neste mesmo sentido e de acordo com Savater (1994), podemos discorrer


sobre uma modernidade iluminista e sobre uma modernidade romântica, não de
modernidade e reação antimoderna. Ou talvez, dizendo melhor, afirmar que a
atitude racionalista instrumental e
a atitude romântica são duas versões contra-
postas e, quem sabe, complementares, em todo caso legítimas, da própria assun-
ção ilurninista do destino da humanidade dentro dos confins de sua autonomia.

A crítica romântica ajudou a utilizar, a estilizar e a aprofundar a noção iluminista da


humanidade universal, não simplesmente a desmenti-Ia. Seu grito de protesto contra a
instrumentalização sem limites do real e a submissão de toda criação humana ao mero
propósito de funcionalidade não perdeu vigência; pelo contrário, cada vez é mais mo-
derna. Sem uma fundamental dose de reticência romântica, não acho que alguém possa
hoje se considerar verdadeiramente iluminista (p. 15).

Por outro lado, como afirma Giddens (1993), um elemento-chave da crença


na supremacia da razão é sua intrínseca potencialidade reflexiva. E, se é bem fácil
comprovar como a concepção dominante esqueceu as conseqüências que se deri-
vam desta potencialidade para compreender a relatividade, a provisioridade, a
fluidez, a plasticidade e a incerteza que acompanham toda construção social da
espécie humana, não resta dúvida de que a reflexividade se afirma ao mesmo
tempo que se invoca a capacidade racional dos indivíduos e dos grupos humanos
de pensar sobre si mesmos.
As conseqüências não-previstas da ação humana individual ou socialmente
considerada são elementos determinantes da qualidade e da natureza do desen-
volvimento. Mas o verdadeiramente relevante é chegar a compreender que as
conseqüências não-previstas não são só nem, acima de tudo, erros no plano ou
no desenvolvimento de qualquer programa de intervenção humana, mas um
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 31

componente inevitável dele pelo caráter reflexivo da razão, porque o conhecimento


que vai se adquirindo condiciona substancialmente os passos seguintes do processo
de intervenção.
A reflexividade é a capacidade de voltar-se sobre si mesmo, sobre as constru-
ções sociais, sobre as intenções, as representações e as estratégias de intervenção.
Supõe a possibilidade, ou melhor, a inevitabilidade de utilizar o conhecimento à medida
que vai sendo produzido para enriquecer e modificar não apenas a realidade e suas
representações, como também as próprias intenções e o próprio processo de conhe-
cer. O conhecimento cria a realidade, ao menos aquela que condiciona a interpreta-
ção, a valoração e a intervenção do indivíduo e da coletividade. Como afirma Giddens
(1993) e Hargreaves (1996), as estruturas sociais assim como os esquemas pessoais
são, ao mesmo tempo, o contexto condicionante e o efeito condicionado da interação
humana; por isso, são sempre e ao mesmo tempo poderosos marcos para potenciar,
orientar e restringir as possibilidades de ação e os precários cenários vulneráveis à
mudança que provoca tal ação.
Podemos afirmar, obviamente, que este caráter reflexivo da razão não é o
que se impõe na ideologia dominante durante a modernidade, ao menos assumido
até suas últimas conseqüências. É, antes de tudo, o caráter mecânico da lógica
instrumental o que se estende e domina em todos os âmbitos do saber e do fazer.
Tampouco pode se afirmar com justiça que não tenha se produzido nem utilizado
em múltiplas ocasiões a dimensão crítica e reflexiva do conhecimento racional, e
que esta, portanto, não seja uma possibilidade, talvez pouco explorada, do pensa-
mento moderno.
Por outro lado, não é difícil comprovar como ao final do século XX, em
plena vigência do pensamento pós-moderno, nos encontramos frente ao mesmo
dilema na compreensão da atividade humana, que se colocava nas origens da
modernidade e que motivou a construção dos grandes relatos. Os interesses pri-
vados parecem necessariamente em confronto com os interesses públicos, a liber-
dade individual com a identidade coletiva, a primazia criativa do mercado com o
valor social e a garantia das instituições. E, como naquela época, são produzidos
os grandes relatos contraditórios e em confronto: o liberal e o socialista, ambos
sob o patrocínio da razão; também na atualidade, os termos do dilema aparecem
abertos e demandam a intervenção reflexiva do pensamento racional e emocional.
Parece evidente que tanto a prática da condição pós-moderna como a elabo-
ração teórica concomitante se inclinam abertamente para a primazia do livre mer-
cado e o livre e arbitrário jogo dos interesses privados. No entanto, por todos os
lugares, e com maior virulência nas zonas desfavorecidas, emerge, inclusive de
maneira irracional, a afirmação da identidade, a busca de refúgio institucional na
religião, na nação, na raça, na etnia, na seita ... como contrapeso indispensável
para restaurar, de outra maneira, o equilíbrio perdido do perene dilema. Esta con-
traposição entre o interesse público e os interesses privados atravessará todo o
destino da modernidade até o presente, constituindo a divisória entre as duas
vertentes da herança legada pelo Iluminismo: a vertente liberal frente à vertente
socialista.
32 A. r. PÉREZ GÓMEZ

Também pode-se afirmar que a lógica da racionalidade instrumental, tão pura-


mente característica da modernidade, da industrialização e do progresso, permanece
intacta, ao menos como "guarda-chuva" protetor de um dos pilares intocáveis da
condição pós-moderna, a organização da economia em função das leis do livre mer-
cado, no qual se legitimam os meios, qualquer meio ou estratégia, em função de sua
potencial idade para produzir o fim último da rentabilidade.
Levando em consideração este conjunto de argumentos, é preferível, em minha
opinião, entender a crítica radical própria do pensamento pós-moderno como uma
exploração plural, diversificada, irreverente e sem restrições do caráter reflexivo da
razão individual e coletiva. Cada indivíduo, cada grupo, cada cultura, subcultura ou
etnia implica a possibilidade de questionar as formas de representação herdadas ou
compartilhadas e gerar, por sua vez, novas perspectivas convencionais ou alternati-
vas, reafirmando e exagerando os traços típicos da época moderna ou contradizendo
aqueles pressupostos, e desvelando ou potencializando as dimensões silenciadas ou
reprimidas na modernidade.
De acordo com as colocações de Forlari (1992), Touraine (1993), Finkie-
lkraut (1990) e Sebrel i (1992), na própria proposta modernista da filosofia do
Iluminismo se encontram tanto o princípio do exagero unilateral da razão instru-
mental, que supõe a submissão "ea dependência do homem a uma suposta e exter-
na verdade universal, como a busca crítica e a denúncia de seus limites e contra-
dições. Já não se pode falar de uma razão universal como fundamento do pensar
e do fazer, mas de diferentes razões que sustentam interesses diferentes e, fre-
qüentemente, contraditórios entre si.
A existência óbvia de rupturas e descontinuidades não supõe, na minha opi-
nião, a negação de todo o legado histórico, mas a possibilidade de sua utilização
irreverente e heterodoxa. Apoiamo-nos nas construções passadas, nas aquisições
históricas da humanidade para utilizá-Ias seja em sua continuidade e aperfeiçoa-
mento, seja em sua transformação radical, invertendo o sentido, o funcionamento
e a sua estrutura. É impossível, além de ridículo, desprender-se absolutamente da
roupagem simbólica ou material que os grupos humanos criaram ao longo da
história, tanto em seu processo de hominização como no mais diversificado proces-
so de socialização. Por isso, podemos afirmar com Touraine que estamos nos moven-
do num fluxo permanente entre a afirmação e a negação do sentido e da funcionalida-
de das construções sociais, apoiando-nos, inevitavelmente, naquelas que afirmamos
ou negamos. E, nesse mesmo sentido, tudo é moderno e antimoderno, até o ponto de
que não exageraríamos dizendo que o signo mais seguro da modernidade é a mensa-
gem antimoderna que emite. "Em sua forma mais ambiciosa, a idéia de modernidade
foi a afirmação de que o homem é o que faz" (Touraine, 1993, p. 13).

o vazio do pensamento pós-moderno

Sem entrar neste momento numa análise exaustiva e crítica dos pressupostos e
das propostas do pensamento pós-moderno, parece-me conveniente destacar duas
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 33

contradições fundamentais que impregnam e contaminam a verossimilhança de tais


colocações, e um aspecto, que em forma de verniz onipresente, percorre o complexo
pensamento pós-moderno.
A primeira contradição se refere à afirmação da carência absoluta de funda-
mentação do pensamento racional. Habermas, Turner e Finkielkraut alimentam o
pensamento de Hargreaves (1996) quando colocam que recusar toda possibilidade
de pensamento fundacional da realidade social é não apenas inútil na prática como
também é filosoficamente inconsistente. Para recusar a existência da razão, temos
que utilizar as ferramentas da razão. Uma coisa é -legítima, na minha opinião - negar
a existência de um único, melhor e definitivo fundamento à racionalidade da repre-
sentação e da ação social, e outra muito diferente é negar a possibilidade de qualquer
tipo de fundamentação, mesmo plural, contingente e provisória, mas defensável e
argumentável, à interpretação da realidade e às propostas de intervenção social.
A segunda contradição, estreitamente relacionada com a anterior, se refere à
afirmação do absoluto relativismo cultural. Na minha opinião, a crítica pós-mo-
derna, em defesa da identidade das diferentes culturas e de uma concepção mais
flexível e pragmática do ser humano, chega, com freqüência, a propor e a enalte-
cer o relativismo mais absoluto e grosseiro, que afirma a irredutibilidade das dife-
renças culturais inclusive para o conhecimento, o que conduz à defesa da inco-
mensurabilidade e da incomunicação, e em conseqüência ao relativismo ético do
vale-tudo e nada se pode propor como melhor.'
Entendo que o relativismo absoluto, ao defender a identidade inviolável de
cada cultura particular, perde também a consciência do caráter histórico e contin-
gente das produções culturais e humanas, as quais, como tais, não têm nenhuma
identidade necessária, perene e natural. As elaborações da cultura são contingen-
tes ao equilíbrio singular de forças e interesses dos grupos sociais ao longo do
processo histórico, e, portanto, seus valores, significados e padrões de comporta-
mento devem ser questionados a partir de cada cultura e mediante a comunica-
ção, o diálogo e o contraste intercultural.
O último aspecto que me parece conveniente comentar nesta breve introdu-
ção à cultura intelectual gerada nesta etapa de crise e transição é o caráter elitis-
ta, obtuso e meta-abstrato do pensamento e, em especial, de sua expressão lin-
güística. Como bem conhecem os mais significativos defensores da filosofia e do
pensamento pós-moderno, a linguagem se transforma tanto em instrumento de
comunicação e aproximação como de expressão subjetiva e de exclusão social. O
distanciamento talvez abusivo que apresenta o discurso culto pós-moderno, da
maneira de entender e expressar os problemas da vida cotidiana, torna muito
difícil a apreensão e a utilização democrática deste discurso, convertendo-se no
código restrito de um grupo seleto da elite do saber. Quando, para a maioria dos
indivíduos, a linguagem do pensamento pós-moderno é ininteligível, só a vulgariza-
ção ideológica e interessada que transmitem os poderosos meios de comunicação,
ou seja, o pós-modernismo, está disponível para ser utilizada como recurso de
interpretação e tomada de decisões na vida social cotidiana. Em vez de proporcionar
ferramentas conceituais para compreender o sentido complexo e oculto da condição
34 A. r. PÉREZ GÓMEZ

pós-moderna, muitas vezes o pensamento pós-moderno se transforma direta ou


indiretamente em instrumento de exclusão e, inclusive, de justificação e legitimação
da própria exclusão dos mais desfavorecidos, provocada pelas condições econômicas
e sociais da pós-modernidade.

ETNOCENTRISMO, RELATIVISMO E UNIVERSALIDADE

Um dos aspectos em que se reflete com mais intensidade a crise atual da cultura
intelectual é o grau de tensão que, ao longo da última metade do século, adquire
a polêmica entre relativismo e universalidade, matizado pelo constante renascer
das tendências etnocêntricas. Em minha opinião, esta polêmica não pode ser en-
frentada de maneira dicotômica; nela se encontram presentes, ao menos, três com-
ponentes em mútua interdependência e relativa autonomia: o indivíduo, a cultura
singular e a aspiração à comunidade universal, o que requer três níveis de análise
independentes e complementares.

Etnocentrismo

As contribuições do pensamento ao longo de todo o século XX, em particular as


procedentes do campo da antropologia, provocaram o desprestígio, ao menos
teórico, de toda posição etnocêntrica. As múltiplas formas de vida que os grupos
humanos foram construindo ao longo da história nos diferentes territórios não po-
dem ser localizadas numa linha ascendente de progresso e perfeição, não formam
estágios consecutivos de uma progressiva marcha triunfal para horizontes predeter-
minados. Não existem critérios únicos, universais e livres de influxo cultural concre-
to para determinar o valor de cada cultura em relação a eles e sua localização no
ranking cultural, nem, caso existissem, poderiam facilmente ser aplicados à comple-
xidade e à diversidade de formas que a vida cultural de cada grupo humano adquire.
Parece evidente que a proposta iluminista de extensão do conhecimento e da
razão como elementos substanciais para o desenvolvimento dos povos e da orga-
nização das sociedades, ao ser feita a partir de uma plataforma cultural concreta,
se encontra impregnada do vírus etnocêntrico ao privilegiar como critérios de raciocí-
nio e valoração universal algumas formas concretas de conceber a realidade e de
interpretar as aspirações dos grupos humanos à verdade, à bondade, à beleza e à
felicidade. Não é difícil comprovar como os desenvolvimentos concretos de tais
colocações modernistas e iluministas supuseram, na prática, a desvalorização e,
inclusive, o desprezo e a exclusão de outros grupos culturais e de outras classes
sociais. Como afirma VareI a (1991), o Iluminismo, enquanto objeto da história e
da difusão de idéias, deve ser considerado como um movimento sociocultural
que pôs em prática mecanismos diversos para se legitimar como único sujeito
cultural. No mesmo sentido, incide Finkielkraut (1990) quando afirma que " ... 0
pensamento do Iluminismo é culpado por haver instalado esta crença no coração do
Ocidente, confiando a seus representantes a exorbitante missão de garantir a promo-
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 35

ção intelectual e o desenvolvimento moral de todos os povos da Terra (...) O rei está
nu: nós, europeus da segunda metade do século XX, não somos a civilização, apenas uma
cultura especial, uma variedade fugitiva e perecível do humano" (p. 62, 63).
As tendências etnocêntricas, que supõem a valoração do próprio como uma
categoria universal e a exclusão do alheio como subprodutos marginais já supe-
rados pela própria história, nunca podem ser consideradas superadas. Não se
trata nem exclusiva nem prioritariamente de um vício ideológico das sociedades
primitivas, mas sim de um mecanismo às vezes sutil, às vezes grosseiro de poder,
e como tal é utilizado com freqüência nos conflitos de interesses entre indiví-
duos, grupos e culturas.
Parece evidente, neste sentido, que a imposição de uma cultura sobre outras não
se restringe à época dos impérios. Em cada período histórico, renovam-se as formas
de dominação e se especializam os mecanismos de intervenção, de modo que a impo-
sição etnocêntrica se toma mais sutil e invisível, acomodada às exigências e às possi-
bilidades de cada época. Por exemplo, como destaca Fred Halliday, "não há nada
mais etnocêntrico que a ênfase que se está dando ao ano 2000. Talvez, acrescentemos
nós, o empenho em fixar Oriente e Ocidente de acordo com nossa particular localiza-
ção geográfica neste maltratado globo" (Menéndez deI Valle, 1995, p. 51).
O etnocentrismo tampouco é exclusivamente uma tendência própria da cultura
dominante. Como instrumento de poder, funciona de forma profusa dentro de cada
cultura e de cada grupo humano para legitimar culturalmente, na maioria dos casos, a
dominação dos mais poderosos e, em outros muitos, para referendar e blindar as
próprias posições. De todas as formas, parece evidente que, como afirma Gala (1993):
"As xenofobias possuem causas econômicas mais do que raciais: os ricos são recebi-
dos bem em todos os lugares, os pobres, em nenhum".
Do ponto de vista do desenvolvimento e intercâmbio do conhecimento, o
etnocentrismo atua como um recalcitrante obstáculo epistemológico, porque tor-
na impossíveis a análise e a escolha racional. Ao estabelecer a prioridade inques-
tionável das próprias representações, por ser o reflexo da superioridade cultural
adquirida no desenvolvimento histórico, dá por resolvidos, a priori, os proble-
mas e as questões que teria que submeter a estudo e a discussão. O etnocentrismo
promove tanto a exclusão injusta e injustificada do alheio como a cômoda conformi-
dade com o próprio. Em uma mesma tendência se unem, pois, dois dos aspectos mais
desagregadores para o desenvolvimento do conhecimento, a certeza e a ignorância. A
certeza inquestionável do próprio e a ignorância depreciativa do alheio.
É fácil reconhecer como a escola, filha privilegiada do Iluminismo moder-
no, exerceu e continua exercendo um poderoso influxo etnocêntrico. A escola
está reforçando de maneira persistente a tendência etnocêntrica dos processos de
socialização, tanto na delimitação dos conteúdos e valores do currículo que refle-
tem a história da ciência e da cultura da própria comunidade como na maneira de
interpretá-los como resultados acabados, assim como na forma unilateral e teóri-
ca de transmiti-los e no modo repetitivo e mecânico de exigir sua aprendizagem.
A crítica desapiedada, principalmente da antropologia, ao etnocentrismo do
pensamento iluminista em suas principais realizações, assim como as exigências
36 A. L PÉREZ GÓMEZ

econômicas e políticas da condição pós-moderna provocaram o surgimento e o de-


senvolvimento de sua tendência oposta: o relativismo, Veremos, no entanto, que, leva-
do a suas últimas conseqüências, o pensamento relativista pode ser considerado uma
manifestação peculiar do etnocentrismo.

Relativismo

Apoiado com maior ou menor propriedade nos estudos antropológicos do século


XX, entre os quais podemos destacar os de Malinowski, Mead, Boas, Sapir e
Lévi-Strauss, o pensamento pós-moderno abraça definitivamente e sem restri-
ções a orientação relativista. Como afirma Lévi-Strauss (em Finkielkraut, 1990,
p. 58), já é hora de "terminar de uma vez por todas com a idéia ao mesmo tempo
egocêntrica e ingênua segundo a qual 'o homem está inteiramente refugiado num
só dos modos históricos ou geográficos de seu ser'''. Pelo contrário, convém não
esquecer que qualquer forma de existência individual ou coletiva é o resultado
contingente de um complexo processo de construção social ao longo de um pe-
ríodo histórico concreto, num espaço também determinado. São as formas da
cultura as que, inclusive, determinam em grande parte o ritmo e o sentido da
evolução biológica. "Longe de se perguntar se a cultura é ou não função da raça,
descobrimos que a raça, ou o que se entende geralmente por esse termo, é uma
função, entre outras, da cultura" (Lévi-Strauss em Sebreli, 1993, p. 51).
Cada cultura aparece como uma rede de significados, símbolos e comporta-
mentos com sentido em si mesma, gerada como resposta às peculiares circunstân-
cias que rodearam a comunidade. Os critérios e as normas que regem os compor-
tamentos e as expectativas coletivas encontram sua legitimidade para manter a
coesão desta comunidade e garantir as aspirações individuais nas singulares con-
dições de vida que definem seu contexto. Por isso, de nenhuma formação cultural
concreta podem se extrair, legitimamente, critérios gerais válidos e úteis para
julgar a qualidade antropológica de outra formação cultural distinta, nem sequer pa-
drões de compreensão generalizados que possam se aplicar à interpretação de qual-
quer processo ou produto cultural. O sentido das práticas culturais só pode ser extra-
ído da sua compreensão radical, ou seja, da vivência interna e da experiência compar-
tilhada que geram os significados comuns e as diferenças individuais.
Da aceitação da contingência histórica e social das formações culturais, o
pensamento pós-moderno desliza, de maneira vertiginosa, para a afirmação da
incomensurabilidade das culturas, da impossibilidade não apenas de estabelecer
comparações valorativas entre elas, como, inclusive, de contrastar seus significa-
dos e comportamentos e, em última instância, de compreender realmente seu
sentido se não for de dentro delas. Não existe nenhum espaço fora de cada cultu-
ra que permita a observação objetiva nem apropriada, e, menos ainda, a valoração
conseqüente. As culturas não são realidades objetivas, mas redes subjetivas de
significação compartilhada que se retorcem sobre si mesmas para reafirmar ou
para transformar suas representações e seus valores, em função de peculiaridades
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 37

que não se repetem. Somente de dentro, sofrendo e gozando suas determinações,


pode-se compreender e questionar sua virtualidade antropológica.
O rei ativi smo pós-moderno abarca todos os âmbitos da construção cultural: co-
nhecimentos, representações, criações artísticas, normas, comportamentos, valores,
instituições ... Talvez seu máximo expoente seja o relativismo lingüístico que deriva da
hipótese elaborada por Whorf e Sapir, segundo a qual a linguagem determina o pensa-
mento do indivíduo e da coletividade, de tal modo que as características idiomáticas de
cada cultura ou de cada grupo humano não só condicionam suas possibilidades comu-
nicativas como inclusive seus hábitos perceptivos, seus esquemas de pensamento e
suas estratégias de ação. A linguagem é mais do que o continente da representação,
é o marco que permite elaborá-Ia e organizá-Ia no pensamento. A linguagem, enfim, é
a realidade.
Outra manifestação do relativismo do pensamento pós-moderno é o histori-
cismo radical, o qual afirma a imanência radical e insuperável de toda realidade
individual e social às coordenadas históricas em que se desenvolve. As informa-
ções transistóricas ou os contrastes e as comparações entre épocas carecem de
sentido ao se dissolver o cenário histórico concreto que as configurou. Não ape-
nas se nega a possibilidade de buscar o sentido da história e seu horizonte teleo-
lógico, como também a mera possibilidade de compreensão de épocas diferentes
e distantes, cujo contexto desapareceu.
Por último, talvez a versão relativista mais típica do pensamento pós-moderno
seja o ecletismo radical. Mescla de hedonismo com funcionalismo extremo, a versão
pós-moderna do ecletismo pretende legitimar o princípio diretriz da cultura de mas-
sas do fim do século: "vale-tudo". Como afirma Finkielkraut (1990, p. 116):

Seus adeptos não aspiram a uma sociedade autêntica em que todos os indivíduos vivam
comodamente em sua identidade cultural, mas uma sociedade polimorfa, um mundo
heterogêneo que ponha todas as formas de vida à disposição de cada indivíduo. Pregam
menos o direito à diferença do que à mestiçagem generalizada, o direito de cada um à
especificidade do outro.

N a minha opinião, a crítica justificada ao egoísmo míope e interessado do etno-


centrismo em todas as suas manifestações, assim como a aceitação da contingência,
da parcialidade e da provisoriedade de toda interpretação, não deve conduzir neces-
sariamente à afirmação do relativismo absoluto. Afirmar o respeito às diferenças
individuais·e culturais, como faz a declaração dos direitos humanos desde sua primei-
ra manifestação, não implica, em absoluto, afirmar o isolamento, a incomensurabilida-
de e a impossibilidade de compreender as culturas alheias. A afirmação das diferen-
ças não pode esquecer a existência de importantes aspectos comuns na experiência
humana mais diversificada. É o que Bruner (1997) denomina as restrições inevitáveis
à hipótese perspectivista.

Como alguém pode conservar a autonomia, a personalidade e a subjetividade sem esco-


lha e, ao mesmo tempo, recusar a compreensão e o conhecimento como fonte da valida-
ção ou não-validação das normas morais? .. Invoquei Kant (na apresentação de Derri-
38 A. I. PÉREZ GÓMEZ

da), e Foucault (na minha) para apoiar a seguinte sugestão: a diversidade de visões do
mundo, filosofias, metafísicas e fé religiosa não impede o surgimento de um ethos
comum, a menos que uma das visões do mundo determine por completo os manda-
mentos e as proibições, e que o faça não apenas para seus próprios seguidores como
também com uma aspiração universalizante. (Heller, 1992, p. 33)

São vários os argumentos que me fazem pensar na debilidade da defesa radi-


cal do relativismo absoluto:
- Em primeiro lugar e, em minha opinião, a chave para entender o resto das
críticas é a afirmação absoluta da diferença e da identidade própria como realida-
de inquestionável. Manter esta posição supõe não compreender ou não aplicar,
em todas as suas conseqüências, a consciência da relatividade histórica e social
de toda interpretação e elaboração cultural. Se utilizamos este convencimento
para negar as afirmações etnocêntricas sobre a existência de culturas superiores,
também deveríamos aplicá-lo à compreensão de nossa própria cultura ou a qual-
quer cultura como uma construção social e histórica contingente e relativa; por-
tanto, tão respeitável como questionável. Nossa própria identidade e a de qual-
quer indivíduo ou grupo é uma concretização contingente, cujo processo de cons-
trução pode ser analisado e compreendido à luz dos múltiplos influxos recebidos
e das complexas interações em que se desenvolveu. Isto é, através de um proces-
so de desconstrução (Foucault, 1970, 1971).
Nem em seu processo nem em seus resultados, ninguém pode afirmar que
uma identidade cultural concreta seja a melhor das elaborações possíveis. Sem-
pre pode ser objeto de análise e de consciente transformação. E, precisamente, os
recursos para seu estudo e escrutínio provêm, sobretudo, do distanciamento, da
atenção às posições internas alternativas, assim como da separação das rotinas
etnocêntricas, da aceitação e da compreensão de formulações culturais alheias.
Esta afirmação crítica da identidade e da diferença como categorias absolutas
supõe, sem dúvida, outra versão do etnocentrismo, embora seja, em alguns casos,
um egocentrismo defensivo e compreensível por pertencer a culturas minoritárias
e subjugadas no panorama internacional.
Neste sentido, devem se entender também os fenômenos externos do nacio-
nalismo e do fundamentalismo, os quais analisaremos mais minuciosamente no
capítulo referente à cultura social. É certo que ambos podem ter uma inquestioná-
vel motivação histórica: por um lado, na submissão e na dependência imperialista
ou, por outro, na acelerada imposição de uma cultura mundial indiferente e arra-
sadora - o pensamento "único" -, elaborada pelas exigências de uma forma de
conceber a economia que se estende e se impõe a todos os cantos. No entanto, a
compreensível reação de defesa dos grupos e das culturas mais desfavorecidos,
reafirmando a clausura endogâmica de sua cultura e recusando, desprezando e
excluindo qualquer influência exógena, geralmente se resolve contra os direitos
individuais dos membros da própria comunidade, em particular dos menos inte-
grados, desfavorecidos, alternativos e marginais. Em todo caso, o triunfo do gru-
po homogêneo, natural, dilui as responsabilidades pessoais limitando as possibi-
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 39

lidades de autonomia e diferenciação interior. Este convencimento faz Sebreli


(1992) afirmar que "ninguém menos livre que um selvagem é escravo do passa-
do, dos antepassados, das tradições, dos tabus, dos deuses, dos chefes, das rela-
ções familiares, da linhagem, das tribos, da discriminação sexual, de infinidade
de leis não-escritas, mas nem por isso menos opressivas" (p. 126-127).
A reação contra o etnocentrismo dos outros tem provocado, com lamentável
freqüência, a imposição autoritária do etnocentrismo próprio; assim como tam-
bém a reação contra a imposição cultural indiferente e anônima que difunde a
economia mundial do livre mercado está provocando, de maneira reiterada, o
refúgio dos indivíduos no "guarda-chuva" tribal, étnico ou religioso que impõe a
vontade inquestionável e fanática da coletividade, sempre interpretada por uns
poucos. Por isso, Gabriel Jackson (1994, p. 12) declara que "quanto mais se inter-
nacionaliza a economia, e mais a controlam forças incompreensíveis para a maio-
ria, rnaís gente necessita .recnnerar SlJE .identidade .nnma combinação Jocal únjca
de elementos étnicos, religiosos e nacionais. Os ideais universais não podem com-
petir com o tribalismo quando forças universais existentes têm um impacto extre-
mamente negativo sobre a vida das pessoas".
- Em segundo lugar, a defesa acrítica da identidade inquestionável de cada
formação cultural mitifica o conceito de cultura como uma etérea rede harmônica
de consensos, propósitos e satisfações compartilhadas. Em conseqüência disso, é
fácil ignorar e desprezar o peculiar, instável e freqüentemente injusto equilíbrio
entre discrepâncias e conflitantes aspirações e necessidades que implica cada for-
mação social. Como afirma Sebreli (1992), a categoria antropológica de cultura
subestima as semelhanças entre todas as culturas, a unidade do gênero humano,
marcando demasiado as diferenças. Além disso, superestima a unidade interior
de cada cultura e dissimula as diferenças que surgem em seu seio. Os antago-
nismos são tão constitutivos como os consensos na elaboração da cultura. E a
forma concreta que adotam num espaço e num tem tempo dados, por contin-
gente, é tão respeitável quanto questionável e merecedora de escrutínio pú-
blico permanente.

Uma das contradições fundamentais do relativismo cultural consiste em que o respeito


às culturas alheias, o reconhecimento do outro, leva inevitavelmente a admitir culturas
que.não reconhecem nem respeitam ao outro. (Sebreli, 1992, p. 61)
O relativismo limita seu igualitarismo a respeitar as diferenças, mas esquece que essas
diferenças podem ser a conseqüência da desigualdade ... O relativismo cultural significa
imparcial tolerância para o assassinado e o assassino, para o torturado e o torturador,
para o oprimido e o opressor, para a vítima e o verdugo. (Sebreli, 1992, p. 68)

- Em terceiro lugar, o ecletismo radical do pensamento pós-moderno supõe,


no final das contas, a confusão entre o ser e o dever ser, ou melhor, parece deduzir
o dever ser ou a alternativa desejável apenas da maneira existente, ou da pura
possibilidade de permanecer e triunfar no intercâmbio do livre mercado. O deba-
te ou a reflexão sobre experiências compartilhadas ou alheias não parece ter mais
valor do que sua cotização no intercâmbio mercantil.
40 A. 1. PÉREZ GÓMEZ

Se não queremos confundir o ser com o dever ou poder ser, a existência


concreta com as possibilidades alternativas de ser, devemos respeitar a identidade
de qualquer indivíduo ou grupo, de qualquer cultura, somente como uma das
formas possíveis que pode adotar a plasticidade do humano, cuja qualidade an-
tropológica deve sempre estar exposta ao escrutínio público. Além disso, toda
identidade deve ser considerada como uma forma flexível que possa se transfor-
mar, e de fato se transforma permanentemente.
Agora, a crítica ao relativismo absoluto não pode significar de modo algum
a volta às essências, o reconhecimento de uma forma convencional e "natural"
própria do ser humano que pode se universalizar e, portanto, ser exportada a
partir da cultura hegemônica mais desenvolvida. Não deve significar nem a volta
ao etnocentrismo nem a negação do relativismo como consciência da contingên-
cia histórica e social de toda formação cultural.
Como afirma A. Heller (1992), o relativismo absoluto está ganhando terre-
no principalmente porque é o resultado de uma importante mudança sociológica:
a erosão das elites culturais. Encurralados pela queda do muro de Berlim, os
intelectuais de esquerda parecem submersos na perplexidade, na passividade e
no isolamento. Nesta longa travessia do deserto, e para evitar a acusação injusti-
ficada de dogmatismo ou certeza modernista, abandonaram a crítica ao relativis-
mo à custa de alguns liberais ou meramente conservadores como Popper, Bloom,
Revelou Fukuyama (Sebreli, 1992).
Por isso, talvez seja agora mais necessário do que nunca indagar o significa-
do do controvertido dilema "diferença-universalidade".

Universalidade e diferença

Tal como definimos os propósitos e as características da cultura crítica, da cultura


reflexiva (que, mediante o escrutínio e o contraste público, sistemático e crítico,
vai gerando uma rede de depurados, embora provisórios e parciais, significados
compartilhados), o aspecto fundamental de seu esforço conduz ao esclarecimento
do problema da universalidade. Quais aspectos compartilhados e comuns na ex-
periência dos diferentes grupos e culturas humanos podem ser considerados uni-
versais, ainda que seja de modo sempre provisório? E como fazê-lo se queremos
evitar o fácil deslizamento para o etnocentrismo?
Parece evidente que os conteúdos concretos, os modelos de vida e os planos
de cada sociedade são sempre - ao menos em parte - singulares, não se repetem;
portanto, ligados a um contexto que lhes confere significação e sentido. Desse
modo, não podem ser utilizados como componentes de uma pretensa identidade
universal do gênero humano. Parece, em princípio, que a tendência à universali-
dade deve ser melhor compreendida como um diálogo entre culturas a favor de
uma civilização tolerante que facilite a sobrevivência (Savater, 1997); como um
processo de construção de significados e entendimentos compartilhados a partir
do respeito às diferenças. Este processo de construção cooperativa se apóia, so-
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLlBERAL 41

bretudo, no acordo sobre procedimentos que evidentemente especificam valores


mais do que em conteúdos concretos, definições e projetos sobre o modelo de
sociedade ou cultura ideal.
Assim, por exemplo, se aceitamos como fundamento do respeito às diferen-
ças culturais o caráter histórico e contingente de toda formação cultural, não é
difícil admitir a exigência de utilizar esse mesmo fundamento para desmistificar
o caráter natural que pretendem adquirir alguns elementos internos da própria
cultura, e aceitar ao menos a possibilidade de que o intercâmbio conceitual, expe-
riencial e crítico, não meramente mercantil, entre diferentes culturas, seja uma
estratégia ou um procedimento enriquecedor da própria bagagem cultural. Esta é
a tarefa fundamental das ciências humanas, o objetivo da cultura crítica ou cultu-
ra intelectual: promover a reflexão compartilhada sobre as próprias representa-
ções e facilitar a abertura ao entendimento e à experimentação de representações
alheias, distantes e afastadas no espaço e no tempo.
Finkielkraut (1990) expressa-o com toda clareza quando se interroga:

Por que as ciências humanas? Porque, fundadas a partir da comparação, demonstram a


arbitrariedade de nosso sistema simbólico. Porque ao mesmo tempo que transmitem
nossos valores, denunciam sua historicidade. Porque para elas estudar uma obra é recu-
perar o autor, prendê-lo em seu particularismo C ..) Porque a cultura de prestígio não é mais
do que a expressão fragmentada de um âmbito mais vasto que inclui o alimento, o vestuário,
o trabalho, os jogos (...) E porque ao fazer com que o cultural abarque assim o cultivado,
matam dois coelhos com uma cajadada só: nos impedem ao mesmo tempo de nos compra-
zermos em nós mesmos e conformar o mundo à nossa imagem e semelhança. (p. 100-101)

Por isso, a tendência à universalidade, própria da cultura pública elaborada


pelas ciências humanas, em nada é inimiga do respeito à diferença. Pelo contrá-
rio, é uma de suas exigências constitutivas. Não existem identidades naturais pe-
culiares, inquestionáveis acima das possibilidades dos grupos humanos concre-
tos para construir com autonomia seu modo de ser e existir, nem existe um desti-
no universal que se imponha como modelo uniforme a ser imitado sobre qualquer
cultura, grupo ou indivíduo. No entanto, admitindo o caráter contextual, diferen-
ciador e criativo de todo processo de construção individual ou compartilhado,
cada dia parece mais evidente que o desenvolvimento dos diferentes grupos hu-
manos que compõem as culturas na sociedade global da informação facilita e
requer a intercomunicação. Torna-se inevitável aceitar a exigência de um proces-
so de construção compartilhada, a adoção de acordos, o intercâmbio de pareceres
e interesses e a busca de representações e valores comuns que permitam praticar
procedimentos consensuais. A sobrevivência da espécie e a satisfação de seus
membros dependem deste processo de construção compartilhada. Agora, não se
pode esquecer que os recursos sobre os quais se levanta a construção comparti-
lhada são as elaborações singulares de indivíduos e grupos que se caracterizam
por sua diversidade, autonomia e divergência.
Este processo de construção global compartilhada é o que diferentes autores
denominam a tendência civilizatária da humanidade (Savater, 1994, 1997; Eche-
42 A. L PÉREZ GÓMEZ

varrfa, 1994; Cruces, 1992; Heller, 1992; Harent, 1993; Sebreli, 1992) e que, em
muitos casos, se confundiu com a imposição etnocêntrica da poderosa civilização
ocidental contemporânea, como na proposição atual de Fukuvama."
Cabe matizar um pouco mais a diferença entre cultura e civilização. Parece
comum, embora com uma carga e um significado plural, o entendimento da cul-
tura como uma construção singular, própria de um grupo humano situado num
contexto local e numa época concreta, independentemente da magnitude de sua
influência; enquanto que, por civilização, se entende a tendência humana indivi-
dual e coletiva de se distanciar e superar as restrições da própria cultura para
integrar-se ou construir um horizonte mais amplo e universal.>
Em todo caso, não é uma distinção isenta de controvérsia. Por um lado, é muito
fácil sucumbir à tentação de considerar como cultura as formações alheias e inferio-
res, e como civilização o estado superior que alcançou a cultura própria no conflitante
devenir histórico, ao superar estágios pretéritos de constrição localista, como assim
tem ocorrido freqüentemente com a cultura ocidental. Por outro lado, o conceito de
civilização é um conceito vago e etéreo,já que supõe em certa medida o deslocamen-
to dos significados, a descontextualização das produções simbólicas; como se não
fosse também contingente a uma época e a um espaço com características geográfi-
cas, econômicas e políticas concretas e determinadas historicamente.
O desenvolvimento de cada cultura - sempre e quando abandona a funda-
mentação divina ou dogmática de suas representações, valores, instituições e com-
portamentos, assim como o desenvolvimento de cada indivíduo (Piaget, Vygotsky)
- requer um processo singular de descentralização, de estranhamento, de distân-
cia crítica para compreender os fundamentos contingentes e os interesses pas-
sados ou presentes que geram suas atuais determinações. É oportuno lembrar
aqui o pensamento de Hôrderlin ao afirmar que uma civilização somente al-
cança a plenitude se é capaz de se pôr em contradição, de "se estranhar" em
relação à sua própria identidade para fecundar-se com sua "alteridade" (Ar-
gullol e Trías, 1992, p. 99).
Em princípio, a colocação parece coincidir com as propostas do Iluminismo:
libertar-se dos preconceitos, dos mitos e dos pressupostos inquestionáveis de cada
cultura, utilizando o conhecimento e a experiência compartilhada. No entanto,
em lugar de propor o modelo próprio construído pelo Ocidente como recurso de
análise e marco de valoração, a proposta atual supõe enriquecer-se com os mode-
los alheios e, em particular, com os debates e contrastes racionalizados e experi-
mentados entre culturas. Concordo com Savater (1994) quando declara que à
medida que a cultura vai se sofisticando, tornando-se mais reflexiva e menos
impulsiva, concebe a si mesma como uma forma de vida entre outras, talvez pre-
ferível, embora não mais garantidamente humana que outras modalidades vizi-
nhas; "a esse transcender sua própria clausura auto-sufiente, que em menor ou
maior grau se encontra em todas as culturas, podemos chamar-lhe a perspectiva
civilizada" (Savater, 1994, p. 12).
Assim, pois, derrotadas as injustificadas e ambiciosas pretensões de univer-
salizar um modo concreto de exercer a racionalidade, de conceber a verdade, a
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 43

bondade e a beleza, próprias da cultura ocidental; atualmente, parece plausível a


tentativa de propor um procedimento formal para facilitar a compreensão, o en-
tendimento mútuo e a construção conjunta de marcos globais de convivência que
permitam e estimulem a diversidade. O fundamento desta esperança é a compre-
ensão e o aprofundamento no caráter simbólico de todo processo, individual e/ou
grupal de construção de significados próprios de todo indivíduo da espécie hu-
mana. Este caráter simbólico aclara e legitima tanto os aspectos singulares e di-
versos como os aspectos comuns dos significados, ao entender a inevitável di-
mensão polissêmica de toda representação humana, em parte ligada aos referen-
ciais comuns, em parte dependente de processos subjetivos idiossincráticos. A
consciência deste processo universalmente compartilhado de construção contin-
gente de significados facilita a abertura para o outro e o entendimento das dife-
renças. Se somos conscientes do caráter polissêmico de todas as nossas represen-
tações culturais, individuais ou coletivas, é fácil admitir a contingência de nossas
crenças e convicções e, conseqüentemente, estabelecer pontes para a mútua com-
preensão e para o respeito às convicções alheias.
A perspectiva civilizada supõe um modesto, mas inestimável, propósito com-
partilhado de superar as próprias restrições que cada cultura provoca, inevitavel-
mente, em seus membros, identificando suas contradições, questionando seus
mitos, abrindo seus limites, estimulando o intercâmbio com as representações alhei-
as e provocando sua permanente recriação com materiais próprios e estranhos. Uma
veZ mais, Finkielkraut (1990) coloca-o com toda clareza: "O objetivo continua sendo
o mesmo: destruir o preconceito, mas, para consegui-lo, já não se trata de abrir os
demais à razão, mas a gente mesmo se abrir à razão dos demais" (p. 61).
Além da simples dicotomia entre relativismo e etnocentrismo, entre identidade
diferencial de cada povo e universalidade homogênea da espécie, entre indivíduo e
coletividade, aparece cada dia mais claro que a compreensão do desenvolvimento
humano se faz mais complexa, distinguindo muitos níveis e círculos de influência.
Na sociedade global da informação telemática que nos toca viver, cabe distinguir, em
minha opinião, ao menos três círculos claros de mútua interdependência e relativa
autonomia: o indivíduo, o grupo cultural e a coletividade humana. Os influxos que
contribuem para formar a identidade de cada indivíduo e de cada grupo não podem se
limitar ao cenário concreto de suas relações próximas; provêm fundamentalmente
das comunicações internacionais da humanidade, dos intercâmbios na aldeia global,
dos inumeráveis estímulos de informação que cada um processa a seu modo, media-
dos pela cultura de seu grupo e por seus próprios e idiossincráticos esquemas de
compreensão. Giddens expressa-o com força no seguinte texto:

o local e o global, em outras palavras, se tramaram inextricavelmente ... A comunidade


local deixou de ser um lugar saturado de significados familiares e sabidos de todos, para
se converter, em grande parte, em expressão localmente situada de relações distantes.
(Giddens 1993, p. 106)

Nenhum dos três círculos pode por si mesmo explicar a complexidade, a


diversidade e a convergência das redes de significados e comportamentos. Os três
44 A. I. PÉREZ GÓMEZ

são necessários, inevitáveis e complementares. Nenhum dos três pode se considerar


entidade, nem auto-suficiente nem natural. Pelo contrário, são construções inacaba-
das, móveis e contingentes em processo permanente de consolidação e de recriação.
A humanidade universal não existe mais como projeto, como propósito decidido de
consensuar os procedimentos e os valores que permitam a satisfação mais generaliza-
da. As culturas são entidades plurais e complexas transitadas pela contradição e con-
fronto tanto como pelos acordos e convergências sempre provisórios, em virtude do
equilíbrio de forças dos interesses em jogo. Os indivíduos são entidades singulares
em permanente processo de construção, divididos entre os diferentes sistemas de
categorização, normas de conduta, significados e expectativas que requerem os dis-
tintos cenários em que nos toca viver - cada dia mais, mais diferentes e mais efêmeros
-, tentando elaborar um conjunto pessoal coerente, uma rede própria de significados
com sentido, a partir de tão manifesta e freqüentemente contraditória diversidade.
O problema atual da cultura crítica se situa, na minha opinião, na necessida-
de de elaborar compreensões flexíveis e plásticas deste complexo equilíbrio de
interação entre estes três níveis fundamentais, em que se desenvolve a vida dos
indivíduos e dos grupos. Compreensões que respeitem a complexidade das inte-
rações, assim como a autonomia relativa dos sujeitos, e que estimulem as cria-
ções diversificadas tanto como os procedimentos de comunicação e construção
compartilhada. O intercâmbio cultural está produzindo um curioso fenômeno ao
mesmo tempo centrífugo e centrípeto no sentido que expõe Mosterin (1993):

o processo de difusão cultural parece conduzir a uma situação característica tanto por
uma maior variação intracultural como por uma maior homogeneidade intercultural. Os
acervos culturais das diversas populações humanas cada vez se parecem mais entre si,
ao mesmo tempo que internamente se diversificam mais e mais, mediante a crescente
admissão de memes exógenos." (p. 104)

Agora, não podemos perder de vista que a cultura, neste caso a cultura críti-
ca, é um processo de elaboração simbólica em grande medida determinado pelas
condições econômicas, sociais e políticas do contexto no qual se produz. E as
características do contexto atual estão definidas pelas condições da pós-moderni-
dade. A globalização dos intercâmbios econômicos dentro das regras do livre
mercado exige a ruptura das barreiras físicas e simbólicas, as quais restringem as
possibilidades de intercâmbio comercial e a extensão universal do benefício como
princípio regente das transações. Conforme veremos no capítulo dedicado à cul-
tura social, este processo requer e estimula o desenvolvimento de alguns valores
e princípios de compreensão e comportamento que constituem o que se denomina
o pensamento único. A globalização e o pensamento único não podem ser con-
fundidos de modo algum com a universalidade, com as aspirações de construir os
marcos universais de convivência humana, respeitosos com as diferenças e com-
prometidos com a construção compartilhada. Como afirma Baudrillard (1996):

As palavras globalização e universalidade não significam a mesma coisa. São, antes de


tudo, termos excludentes. A globalização se refere a técnicas, mercado, turismo e infor-
mação. A universalidade é a dos valores, a dos direitos humanos, a das liberdades, a da
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLlBERAL 45

cultura e a da democracia (...) Realmente, o universal morre na globalização (...) A


globalização dos intercâmbios põe fim à universalidade dos valores (...) É o triunfo do
pensamento único sobre o pensamento universal. (p. 4)

Enfim, a tendência atual da economia mundial de livre mercado de estender


e difundir o pensamento único, a verdade única, o mercado único, o mundo úni-
co, a argumentação única e a hierarquia de valores única, o pensamento eclético
das mesclas indiferentes e a convergência na trivialidade, deve ser considerada,
em minha opinião, a ideologia concreta da condição pós-moderna. Não supõe
uma elaboração reflexiva, uma opção compartilhada a partir do debate e do con-
traste público, nem um pensamento crítico ou provocador, é a assunção espontâ-
nea e passiva das exigências econômicas, políticas e sociais de uma maneira con-
creta de configurar as condições de existência: a pós-modernidade. Neste senti-
do, é ilustrativo o pensamento de Baudrillard (1996) quando coloca que a globa-
lização faz tábua rasa de todas as diferenças e de todos os valores, inaugurando
uma (in)cultura perfeitamente indiferente. E uma vez que desapareceu o univer-
sal, só resta a tecnoestrutura mundial onipresente frente às singularidades que se
tornaram selvagens e entregues à sua própria dinâmica.
No mesmo sentido, me parece esclarecedor o seguinte texto de Savater (1994):

A universalização de um único conceito do justo não remediou as injustiças, mas as


agrupou todas sob um mesmo padrão, cujo funcionamento econômico as torna inevitá-
veis, exarcerbou-as pelo agravamento comparativo, já não entre ricos e pobres dentro de
um mesmo país, mas entre países ricos e pobres; destruiu os mecanismos locais compen-
satórios sem substituí-los por nenhum outro de alcance universal e acrescentou à nomi-
nata mais uma injustiça: a de aniquilar ou desfigurar a pluralidade de identidades cultu-
rais até submetê-Ias todas a um projeto omnicompreensivo, segundo o modelo ocidental
- e, mais especificamente, americano - baseado no individualismo possessivo, no utili-
tarismo, no consumismo e na trivialização espetacular da vida espiritual. (p. 10)

A globalização volta a romper o delicado e criativo equilíbrio entre univer-


salidade e diversidade cultural, ao dissolver o enriquecedor movimento dialético
entre os indivíduos dentro de sua cultura e entre as culturas dentro da aspiração à
civilização universal. O indivíduo se faz humano porque pertence a uma cultura
concreta, não por estar dotado da capacidade abstrata de pertencer a qualquer
uma. O movimento divergente das criações individuais e grupais, em formações
culturais flexíveis mas diferenciadas, supõe a riqueza das elaborações simbóli-
cas, a exploração diversificada das possibilidades emergentes na comunidade
humana. A negação das identidades culturais como pontes intermediárias entre a
globalização anônima e o indivíduo isolado conduz inevitavelmente ao desampa-
ro individual, à passividade política, à desmobilização social, ao individualismo
raquítico do refúgio no consumo à homogeneidade trivial. A diversidade conver-
tida em mera mercadoria, em simples artigo de consumo, conduz, na realidade, à
uniformidade substantiva, adornada de diversidade superficial; não supõe a bus-
ca de alternativas nos modos de organização social e de vivência individual.
46 A. I. PÉREZ GÓMEZ

Levando em conta, portanto, o delicado equilíbrio que configura a relação


de autonomia e interdependência entre estes três níveis, o propósito educativo da
escola deve se fortalecer na atualidade mais do que em épocas anteriores, pois o
déficit do desenvolvimento das novas gerações não irá se situar fundamental-
mente na carência de estímulos e informações, mas na dificuldade para incorpo-
rá-Ias de modo criativo e pessoal. Sem precisar cair no extremo de afirmar o
relativismo absoluto, a indiferença ética do "vale-tudo", nem a identidade inques-
tionável das diferentes culturas, parece necessário reconhecer que a escola não
pode transmitir nem trabalhar dentro de um único marco cultural, um único mo-
delo de pensar sobre a verdade, o bem e a beleza. A cultura ocidental, que tem
orientado e freqüentemente constringido as proposições da escola em nosso âm-
bito, se quebra em um mundo de relações internacionais, de intercâmbio de infor-
mação em tempo real, de deslocamento de pessoas e grupos humanos. Por isso,
os docentes e a própria instituição escolar se encontram diante do desafio de
construir outro marco intercultural mais amplo e flexível que permita a integra-
ção de valores, idéias, tradições, costumes e aspirações que assumam a diversida-
de, a plural idade, a reflexão crítica e a tolerância tanto como a exigência de elabo-
rar a própria identidade individual e grupal.

RAZÃO E ÉTICA: PARA UMA NOVA RACIONALIDADE


DA REPRESENTAÇÃO E DA AÇÃO

... não há, qual tesouro oculto e por descobrir, nenhum significado no ser, no mundo, na
história, em nossa vida; [o certo é] que nós criamos o significado sobre um fundo
sem fundo, que damos forma ao caos mediante nosso pensamento, nossa ação, nos-
so trabalho, nossas obras, e que este significado não tem nenhuma 'garantia' exte-
rior a ele mesmo (Castoriadis, 1993, p. 47).

Outro aspecto fundamental da perplexidade da cultura crítica de nossos dias,


que considero chave para entender o fracasso do sistema educativo e a incerteza
de seus agentes, é a perda dos fundamentos clássicos da racionalidade modernista
sem que tenham aparecido outros com a suficiente estabilidade e aceitação para
serem considerados orientadores das práticas sociais. Para entender as caracterís-
ticas desta nova racionalidade da representação e da ação, vou me deter nos seguin-
tes aspectos: a análise da fundamentação racional da representação e da ação, a plura-
lidade de posições éticas e a possibilidade de uma ética procedi mental que estimule o
consenso argumentado e, por último, o dilema liberdade-igualdade como expoente
das opções de valor que percorrem a vida dos indivíduos e dos grupos humanos.

Falta de fundamentação e desnudamento como eixos da racionalidade

Secularizar a razão significa situar seus agentes mais genuínos, a ciência e a tecnologia,
em seu próprio âmbito de incumbência, sem que se pretenda derivar deles inferências
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLlBERAL 47

indevidas que só se apóiam em crenças. Significa compreender os limites inerentes à razão,


único modo de aproveitar seus alcances e possibilidades. Somente uma razão fronteiriça,
consciente ao mesmo tempo de seus limites e de seus alcances, pode servir de antídoto a
uma Razão (com maiúscula) que atrai para si os atributos do sacro. (Trias, 1997)

Já vimos como o historicismo é uma forma de relativismo cultural aplicado


ao tempo, o qual que afirma a contingência e a singularidade de todo aconteci-
mento humano. Cada momento histórico tem significado em si mesmo, é único e
não se repete e, portanto, é vã toda tentativa de encontrar leis históricas universais
que expliquem o devenir e sobre as quais se possa elaborar um programa de
previsão e controle dos futuros acontecimentos. Cada contexto histórico, ao pos-
suir seus próprios valores, é incomensurável com outros contextos. O aspecto
geralmente aceito do historicismo é sua interpretação imanente dos fenômenos
humanos, que recusa toda pretensão de explicar a história pela intervenção de
providenciais forças exteriores, ou dos desígnios inapeláveis da natureza. Seu
"calcanhar de Aquiles" e seu componente mais perverso são a interpretação prag-
matista e conservadora que faz do presente entidade consolidada e definitiva, ao
confundir o ser com o dever ser e com as possibilidades alternativas de ser. Com
muita freqüência, como afirma Sebreli (1992), o historicismo serve de justificati-
va teórica à pretensão conservadora de deslegitimar toda alternativa e despresti-
giar todo movimento, denominado voluntarista ou utópico, que pretende questio-
nar as formas convencionais atuais e propor caminhos de transformação.
Em todo caso, é óbvio que os fundamentos modernos que propunham um
governo racional da história que permitiria superar a contingência e programar o
progresso se desvaneceram ruidosamente. Os acontecimentos humanos indivi-
duais e coletivos se mostraram em grande medida sempre imprevisíveis, mesmo
inclusive depois do Iluminismo, quando o pensamento ocidental parece assumir
as rédeas do destino, abandonadas anteriormente às mãos dos deuses, dos mitos
ou da natureza. E nada mais eloqüente, neste sentido, do que repassar as vicissi-
tudes humanas ao longo do século XX, ou de qualquer época, para compreender
o sonho idealista e perigoso de uma razão universal à margem e acima da história.
Pelo contrário, uma revisão sincera dos acontecimentos históricos parece apoiar a
idéia de que, freqüentemente, a história é a louca corrida de um cavalo selvagem, e
dificilmente domesticável, que a qualquer momento toma a romper os limites da
racionalidade convencional para manifestar sua radical arbitrariedade. A única regu-
laridade histórica é a segura ocorrência de novas irregularidades (Gil Calvo, 1995).
Um exemplo claro deste comportamento radicalmenteindeterminado são as
evidências que se agrupam sob o conceito de heterogonia da história, ou seja, os
homens freqüentemente produzem na natureza, nos demais e em si mesmos o que
não desejam, inclusive quando parecem animados pelas melhores intenções. As
conseqüências indesejáveis ou imprevistas das ações humanas, ou das normas e
leis sociais, freqüentemente deslizam de tal maneira pelo declive alternativo, ou
não-programado, que chegam inclusive a contradizer e a negar, de modo perver-
so, os propósitos iniciais. Nos assuntos humanos, sociais, os resultados subver-
tem com demasiada freqüência os objetivos propostos, até o ponto de, como afir-
48 A. I. PÉREZ GÓMEZ

ma Gil Calvo (1995), a heterogonia dos fins ter se transformado em autonomia


dos acontecimentos: a independência dos resultados de qualquer propósito. "O pro-
blema é que a razão histórica parece haver perdido a razão: já não é nem racional nem
astuta, mas, como registra Shakespeare em Macbeth, é apenas uma história narrada
por um idiota, cheia de som e fúria, que carece de sentido" (p. 13-14).
São três, no meu modo de ver, os principais argumentos para compreender este
reiterado fenômeno e negar, assim, a possibilidade de programar racionalmente o
desenvolvimento completo do futuro dos indivíduos ou dos grupos humanos.
Em primeiro lugar, o caráter permanentemente aberto e inacabado do desen-
volvimento individual e social. Como já comentamos no trecho anterior, a nature-
za reflexiva do conhecimento humano, que se volta de vez em quando sobre si
mesmo para se modificar ao mesmo tempo que se compreende, envolve todo
processo evolutivo individual ou coletivo numa interminável espiral de ação e de
reflexão que se recria constantemente. Este caráter aberto se manifesta também
na evidente indefinição racional de aspectos importantes que compõem as ten-
dências do ser humano: emoções, sentimentos, atitudes.
Em segundo lugar, e como conseqüência óbvia deste primeiro pressuposto,
o crescimento acelerado da complexidade, entendida em termos de diversidade,
incerteza e interdependência. O extraordinário volume de interações, em incre-
mento vertiginoso, dentro de cada indivíduo e entre os indivíduos e os grupos, de
influxos plurais e interesses diversos e até contraditórios, torna em boa medida
imprevisível e, portanto, incerto o comportamento dos indivíduos e dos grupos
humanos. A complexa rede de significados que urdem as interações humanas, de
componentes diversos e contraditórios, pode ser entendida como mediadora in-
certa ou ambígua do sentido do pensamento e da ação, pois depende da peculiar
combinação de significados e interesses que se concretizam e que se mesclam em
cada ocasião. O inter-humano funda o humano em um processo complexo de
múltiplas interações. Como afirma Hayeck, a tarefa coletiva de programar o pro-
gresso é tão difícil de realizar quanto a tarefa pessoal de programar a felicidade.
Em terceiro lugar, outro elemento tão importante como pouco estudado, que
interage com os precedentes para gerar diversidade, ameaçar a lógica da progra-
mação e provocar, inclusive, a heterogonia e a perversão das intenções, é o acaso,
entendido como aleatoridade nos acontecimentos e como oportunidade na com-
binação de influxos e interesses presentes nas interações. Sem confundir a contin-
gência com o acaso, posto que aquela responde a uma convergência concreta de
circunstâncias cuja gênese pode ser rastreada, não se pode descartar a intervenção do
acaso como mais um elemento na determinação da convergência destas circunstânci-
as neste momento concreto. Como afirma Gil Calvo (1995):

Posto que a história decorre em sentido irreversível, cada acontecimento que se produz
a reestrutura por inteiro, determinando um fluxo de sucessos descontínuos comple-
tamente imprevisíveis e contingentes. Esta é a fonte mais indomável de incerteza e
acaso. (p. 107)
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 49

Por tudo isso, parece que a postura mais honesta e racional é reconhecer e
assumir a indeterminação, aceitar ao menos intelectualmente a carência de funda-
mento definitivo de nossos propósitos e pressupostos de compreensão e de ação.
Assumir o desnudamento ineludível e a contingência constitutiva do ser hu-
mano nos prepara para apresentarmo-nos de maneira mais modesta e tolerante
nos encontros com os demais, dentro e fora de nosso grupo e de nossa cultura.
Aceitar a caducidade e a precariedade da existência tanto dos indivíduos como
das culturas empurra para a abertura e para a cooperação, sem dúvida com mais
facilidade do que a crença numa suposta razão universal, cuja posse exclusiva ou
de forma prioritária cada um reivindica a partir de seu localismo particular, inclu-
sive à custa da autodestruição. Como sugere Forlari (1992), devemos celebrar a
emergência de um pensamento do parcial, que não impõe, mas argumenta, que
não supõe verdades transcendentais a seus enunciados e, por isso, assume a "de-
bilidade" intrínseca de qualquer postulado, o qual facilita o entendimento embora
não necessariamente o consenso.
A este respeito, é oportuno lembrar Weber, que não compartilhava o otimis-
mo iluminista que considerava que o progresso técnico seria convertido direta-
mente em progresso moral. Pelo contrário, afirmava que, mais além do naturalis-
mo ou da explicação divina, é necessário vincular a razão com a história, mas não
como fez o pensamento modernista ao entronizar sua própria concepção da razão
e converter a história em subproduto de sua intervenção, mas considerando a
razão como uma clara entidade histórica, condicionada pelos interesses e contin-
gências que, em cada época, definem os intercâmbios humanos. A razão não se
encontra à margem da história e seus condicionamentos; pelo contrário, têm suas
limitações e requerem controles e contrapesos. Não existe uma razão universal
independente, apenas razões, talvez poderosas, mas elaboradas sempre dentro de
coordenadas sociais e políticas concretas. A plural idade e a igualdade de oportu-
nidades para discrepar, isto é, para contrastar as diferentes razões, talvez seja o
melhor contrapeso da tendência impositiva da razão universal.
Enfim, destronada a razão universal, voltamos necessariamente o olhar às dife-
rentes justificativas das razões parciais. Movemo-nos inevitavelmente no terreno da
valorização ética das posições e dos comportamentos, a qual analisaremos a seguir.

Pluralidade e perplexidade no terreno da ética

Tanto o relativismo cultural como o historicismo, em suas diferentes versões,


transportam a crise ao questionar o fundamento definitivo de qualquer forma de
interpretar a realidade, de valorizá-Ia e de prescrever normativamente a interven-
ção correta. No fundo da racionalidade da representação e da ação, subjaz o pro-
blema ético da fundamentação racional dos valores, a busca de critérios que legi-
timem as opções do pensamento e da ação.
Precisamente, quando o vendaval pós-moderno questiona a possibilidade
dessa fundamentação racional dos valores, abrindo de par em par as portas para o
50 A. I. PÉREZ GÓMEZ

desfalecimento normativo, para a justificativa pragmática de todo comportamen-


to sob o providencial "guarda-chuva" do "vale-tudo", todo o mundo invoca a
ética como pretexto escorregadio, mas imprescindível, para regular os intercâm-
bios humanos e para evitar a consolidação majoritária dos comportamentos pú-
blicos fanáticos, sensacionalistas, demagógicos ou corruptos.

A erosão das formulações éticas fundamentadas

Em suas diversas formulações, as proposições éticas se moveram entre a ética de


princípios e a ética das conseqüências.
A ética deontolágica, dos princípios ou das convicções, tem em Ken: seu
máximo expoente e defensor. Sua proposta principal é que o bom e o mau do
ponto de vista ético não está em função do resultado de um comportamento, mas
do dever, dos princípios que guiam os propósitos e as ações. Em conseqüência,
Kant propõe que todas as pessoas atuem de tal maneira que os princípios que
regem seus atos possam se converter em normas universais. Isso supõe aceitar a
exigência de considerar as outras pessoas como fins, nunca como meios.
O problema fundamental que se coloca à concepção kantiana é precisamente
concretizar o valor desses princípios em situações concretas tão complexas e di-
versificadas, nas quais possam aparecer não uma única, mas múltiplas interpreta-
ções discrepantes e, inclusive, conflitantes e contraditórias daquele princípio ge-
ral. O mais difícil de sustentar, na atualidade, é a incondicionalidade dos princí-
pios categóricos que os faz valer independentemente de suas conseqüências e dos
contextos (Muguerza, 1986). A rigidez destas proposições as torna inviáveis, pois
provocam, freqüentemente, o fracasso político das práticas que se inspiram nelas.
Por outro lado, como já vimos anteriormente, não existe uma plataforma exterior
e transcendental a partir da qual se possa ditar a interpretação correta. O perigo da
ética de princípios é que, com muita facilidade, deriva numa ética fundamentalis-
ta em que os fins justificam os meios, e em nome de convicções sagradas ou
nobres se cometem as mais terríveis atrocidades.
A outra perspectiva alternativa clássica é a ética utilitarista, das conseqüên-
cias. Propõe considerar como princípio ético regente do comportamento a análise
das conseqüências dos atos e sua adequação aos fins previstos. Pode-se conside-
rar, em suas últimas conseqüências, uma ética da relação meios-fins, custo-bene-
fício. Será bom tudo o que nos conduz aos objetivos e às finalidades a que nos
propomos. Agora, é evidente que os fins não podem justificar os meios, e que
determinados meios, por si mesmos, produzem conseqüências indesejáveis inde-
pendentemente de alcançarem o fim previsto de maneira rápida e eficaz. Em sua
última versão, formulada por Weber como a ética da responsabilidade, o objeto
da valoração ética são as conseqüências dos atos e não suas intenções ou motiva-
ções, que permanecem ignoradas porque não alteram a valoração ética do com-
portamento. Somos responsáveis pelas conseqüências de nossos atos, previstos
ou não, definidas como objetivos ou como efeitos colaterais dos meios utilizados,
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLlBERAL 51

não das motivações pessoais e privadas. O problema fundamental desta última


versão está em que, dadas a abertura e a complexidade das interações humanas,
não podemos reconhecer a priori até onde chegarão as conseqüências de nossa
decisão. A complexidade dos processos e a intervenção exógena na determinação
de suas conseqüências sempre nos tornam, em parte, apenas relativamente res-
ponsáveis por nossas decisões. Por outro lado, continua de pé o problema da
definição ética dos critérios de qualidade das conseqüências, sejam ou não atribu-
íveis a uma única vontade.
Para atender a estas objeções, o próprio Weber aceita e propõe a referência a
"imperativos éticos" formais como formulação dos direitos humanos, definidos
de forma genérica sem referência a nenhuma modalidade específica de organiza-
ção econômica ou política. A necessidade de superar a tensão ética (o inevitável
conflito entre valores) conduz ao acordo intersubjetivo sobre princípios básicos,
aceitos pela coletividade, não como condutas concretas, mas como procedimen-
tos formais, isto é, as condutas individuais ou coletivas devem respeitar esses
princípios de procedimento, quando elaboram suas estratégias e políticas, embo-
ra essas políticas definam, depois, de maneira singular e diversificada a organiza-
ção dos intercâmbios e da vida comunitária. Os imperativos éticos não suprimem,
por isso, o conflito entre os valores das diferentes formas de vida; somente permi-
tem o diálogo, a compreensão e a tolerância da pluralidade. Esta ética não julga
os atos nem por seus fins nem por seus resultados, mas pelos meios utilizados:
são os procedimentos (não as intenções nem as conseqüências) a única coisa que
pode justificar a legitimidade de uma ação. Serrano Gómez (1994) nos lembra
neste debate que a distinção entre "valores culturais" e "imperativos éticos" per-
mite a Weber recusar tanto a pretensão de identificar os valores próprios de uma
forma de vida com a universalidade como a afirmação da incomensurabilidade
própria do relativismo histórico, ou seja, podemos perseguir imperativos de pro-
cedimento que superem as restrições dos contextos culturais e se proponham, por
exemplo, a facilitar a convivência entre os povos, os indivíduos e as culturas."
Dando mais um passo sobre a proposta anterior, Habermas, Rorty e Gada-
mel' propõem com matizes diferentes o desenvolvimento de uma ética procedi-
mental, que pretende superar, integrando, as proposições da ética da responsabi-
lidade e da ética da convicção.f O procedimento que propõem Habermas e Apel
é o respeito e a facilitação da comunicação ilimitada. Isso equivale a garantir as
possibilidades de igualdade de acesso e intervenção de todos os interIocutores no
processo de comunicação. Para Rorty, as dificuldades de participação igualitária
nos intercâmbios de comunicação não se encontram apenas na disparidade de
condições externas e na existência de obstáculos e pressões exógenas, mas nas
próprias condições subjetivas (capacidades, interesses, atitudes, assim como tra-
dições culturais) que necessitam ser reconstruídas criticamente. Gadamer, por
sua vez, com o objetivo de facilitar tal processo de redescrição inter e intrasubje-
tiva, propõe o diálogo como estratégia permanente e inesgotável de redefinição
constante das condições, dos processos e dos resultados da comunicação e intera-
ção humanas. Isso requer, na sua opinião, assumir de forma clara a inevitabilida-
52 A. I. PÉREZ GÓMEZ

de do conflito de interpretações como conseqüência da debilidade ontológica da


realidade humana em todos os campos da experiência. O diálogo é a contraparti-
da inevitável da debilidade."
Esta ética discursiva ou procedi mental não proporciona orientações de con-
teúdo, mas um procedimento repleto de pressupostos que devem garantir a igual-
dade na comunicação e a imparcialidade do próprio procedimento. Esta ética é a
base dos procedimentos democráticos. Como afirma Serrano Gómez: "O consen-
so democrático não pressupõe um acordo em tomo de todos os problemas que
afrontam a sociedade, somente implica um acordo sobre o marco institucional em
que deve se mover o dissenso" (1994, p. 199).

Dos procedimentos aos conteúdos: o dilema igualdade-liberdade

Reconhecer a ausência de fundamento definitivo, tanto do conhecimento como


da orientação da ação, não significa nada mais de que os indivíduos e os grupos
humanos devem construir, de maneira permanente, o sentido de suas representa-
ções e a legitimidade de suas práticas. Não há fontes universais nem transcenden-
tes que proporcionem definitivamente esse fundamento. Por isso, é inevitável
entrar na discussão dos conteúdos, dos marcos valorativos, contingentes e par-
ciais que condicionam inevitavelmente a representação e a ação.
O dilema entre a aspiração humana à igualdade e a tendência à liberdade
resume, na minha opinião, o eixo básico em torno do qual gira o resto dos compo-
nentes do marco valorativo que cada indivíduo e cada comunidade concretizam
de forma diferenciada. Este dilema foi expresso de muitas formas ao longo da
história: solidariedade-competitividade, socialismo-liberalismo, interesse públi-
co- interesses privados, identidade cultural-diversidade, instituições-mercado ...
Para analisar mais detidamente suas implicações, vou me servir do excelente de-
senvolvimento que faz Gil Calvo (1995) da contraposição entre os interesses pú-
blicos que se alojam nas instituições, e os interesses privados que se refugiam nas
exigências de livre mercado, sem esquecer que a contraposição assim definida
supõe uma forma particular de entender a igualdade e a liberdade, que não esgota
de modo algum suas múltiplas implicações.
Parece evidente que é a partir da modernidade que se definem, com clareza,
os termos opostos de ambos marcos de representação e de ação, transformando-
se nos grandes relatos ou metanarrativas que governaram a teoria e a prática do-
minantes até nossos dias: a tendência liberal herdada de Hume, Smith, Ricardo,
entre outros, que define o progresso como o mais livre desenvolvimento do pró-
prio interesse privado, e a tendência socialista, herdada do romantismo revoluci-
onário, das utopias sociais e do pensamento marxista, que o define como a impo-
sição deliberada do interesse público (Gil Calvo, 1995).
A vertente liberal propõe e defende que o intercâmbio livre e aberto entre os
indivíduos, sem nenhuma trava institucional, é a melhor e única estratégia para
preservar a liberdade de cada indivíduo e o bem público da maioria. A liberdade
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLlBERAL 53

de criar, propor, fazer, construir, intercambiar supõe para eles a essência do indi-
víduo, o motor do progresso e a garantia da distribuição justa e eqüitativa, segun-
do os méritos, os esforços e as capacidades de cada um. A tendência liberal assu-
me o princípio da eficiência, da ótima relação meios-fins, própria da racionaliza-
ção instrumental, e da ética das conseqüências, como o elemento principalmente
responsável do desenvolvimento da civilização: a revolução industrial, o capita-
lismo, o progresso científico e suas aplicações tecnológicas. As diferenças so-
ciais, a pobreza, a discriminação e a exclusão das minorias são consideradas como
efeitos colaterais, tributos inevitáveis ao desenvolvimento e ao progresso que
beneficia a maioria. Da mesma maneira procede a natureza vegetal e animal,
através da seleção natural para garantir a sobrevivência e a evolução. O bem da
maioria, e do progresso, parece requerer o sacrifício das minorias.
A tendência socialista, pelo contrário, defende que os intercâmbios livres
entre os indivíduos, grupos, sociedades ou culturas exigem, como lembra reitera-
damente Durkheirn, normas e instituições que os regulem para evitar o conflito, o
enfrentamento permanente e a consolidação da lei da selva. Preservar e recriar o
tecido institucional e as normas culturais que garantam a igualdade de oportuni-
dades nos intercâmbios são tão importantes para esta tendência como a iniciativa
privada se desejamos conseguir uma mínima estabilidade social que permita o
desenvolvimento social e a felicidade individual. Sem uma mínima garantia de
igualdade de oportunidades, as formações sociais não adquirem a legitimidade
requerida para encontrar a estabilidade. E a igualdade e a legitimidade social se
assentam no respeito à identidade cultural, ao valor das instituições primárias,
das tradições e das normas que a cultura foi criando para proteger o indivíduo, em
particular os mais desfavorecidos, das forças do destino e dos enfrentamentos
históricos da livre concorrência. Estas mesmas instituições e normas culturais são
consideradas pelos partidários do liberalismo como um freio e um lastro insupor-
tável que impedem o desenvolvimento criador da livre iniciativa ..
À luz do debate precedente sobre fundamentação racional da representação
e da ação, ambas tendências requerem uma importante reconstrução. A tendência
liberal e suas manifestações atuais no neoliberalismo não podem ignorar que a
ausência de fundamentação racional definitiva requer o acordo explícito e perma-
nente dos indivíduos e dos grupos, através de suas instituições, para garantir as
regras do jogo do livre intercâmbio. De outro modo, a lei do mais forte provoca-
ria a forma permanente ou a dominação autoritária ou a instabilidade, o enfrenta-
mento e o sofrimento como fenômenos concomitantes ao desenvolvimento da
livre concorrência. A vertente socialista não pode esquecer que a igualdade é uma
plataforma de progresso somente quando se apóia na liberdade, e que o fortaleci-
mento da identidade cultural, das instituições básicas, do carisma dos indivíduos
e dos povos, assim ~omo a'imposição da homogeneidade interpretativa, como
desculpa para garantir a igualdade, são obstáculos definitivos para o processo de
autonomia e de autodeterminação dos indivíduos e dos grupos sociais. Como a
história recente se encarregou de demonstrar, o simples desenvolvimento de com-
plexas instituições e normas burocráticas não garante por si mesmo a igualdade e
54 A. L PÉREZ GÓMEZ

impede o desdobramento criador da liberdade. Pelo contrário, o desenvolvimento


exasperado da burocracia apenas gerou a conservação e a reprodução sistemática
de costumes e privilégios, assim como o estímulo à dependência, à passividade e
ao localismo.
Em suas formulações atuais, as diferenças teóricas e estratégicas não pare-
cem ser tão radicais. Como afirma Bobbio (1995a),

podemos considerar igualitários aqueles que, ainda que não ignorem que os homens são
tão iguais quanto desiguais, apreciam principalmente e consideram mais importante para
uma boa convivência os que lhes são semelhantes; não-igualitários, por outro lado, aos
que, partindo do mesmo juízo de fato, apreciam e consideram mais importante, para
conseguir uma boa convivência, sua diversidade. (p. 146)

A autonomia do indivíduo e dos grupos requer a afirmação do respeito à


diversidade. O problema se coloca quando a diversidade se converte não em fon-
te de riqueza para os intercâmbios humanos, mas em fator de discriminação, ao
valorar de forma muito desigual, nas atuais condições de divisão social do traba-
lho e distribuição tão desigual da riqueza, as distintas posições que constituem a
diversidade.
Enfim, estamos de novo confrontados com um dilema sem resolução e, ao
que parece insolúvel, a dissociação que se produz na modemidade entre Sujeito e
Razão. Ao se impor esta aos sujeitos, nos propósitos e nas estratégias dos grandes
relatos, permanece aberta e engrandecida nas formulações atuais do neoliberalis-
mo do mercado global, que parece conceber a sociedade como um mercado sem
atores. Por outro lado, como sugere Touraine (1993), a Razão e o Sujeito se exigem
ineludivelmente. Sem a Razão, o Sujeito se encerra na obsessão de sua identidade;
sem o Sujeito, a Razão se converte no instrumento do poder. Neste século, conhece-
mos ao mesmo tempo a ditadura da Razão e as perversões totalitárias do Sujeito.

Abertura, discrepância e convergência entre sujeito e razão: a prática democrática

Para inventar ídolos novos não vale a pena ser iconoclasta. (Gala, 1995, p. 102)

Dos debates e das elaborações anteriores, parece se derivar a necessidade de


um pensamento que assuma a pluralidade e a contingência dos fenômenos e das
interpretações, apto para captar a multidimensionalidade das realidades sociais e
a riqueza e a diversidade de projeções imaginárias e criativas, para reconhecer o
jogo de ações e reações, do consolidado e do possível, para enfrentar as comple-
xidades sem ceder ao maniqueísmo, ou aos reducionismos tenocráticos (Morín,
1993).
Ao aceitar a carência de fundamentação definitiva das representações e ações,
ao assumir a falta de fundamento como destino e o desnudamento como base de
contraste e colaboração, aceitei, em conseqüência, a concepção hermenêutica da
verdade não como adequação à realidade, mas como abertura e vivência reflexi-
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 55

va, como construção e projeto. E isso, como afirma Vattimo (1995), não supõe de
modo algum uma reivindicação "do local" sobre "o global", uma redução "paro-
quial" da experiência do verdadeiro. Isso significa, em princípio, a abertura da
racionalidade aos territórios proibidos, exclusivo da razão instrumental: o mito, a
estética, a intuição, a ideologia, a busca hermenêutica, o desejo etc., todos aque-
les aspectos que, mesmo resistindo a um comportamento lógico ou mecanicista,
inclusive a uma análise racional, apresentam importantes dimensões, presentes
na representação e na ação dos indivíduos e dos grupos.
O mito, por exemplo, ou as superstições ou as crenças religiosas, são ele-
mentos que não suportam a análise racional e que, no entanto, se encontram en-
raizados na cultura dos grupos humanos, de tal modo que é difícil encontrar exem-
plares individuais ou coletivos que não tenham recorrido a seu refúgio em algu-
ma ocasião, para enfrentar a incerteza e para escapar da ansiedade que provoca o
mistério, o desconhecido e o inevitável. Desconsiderar esta dimensão tão rele-
vante e difundida da espécie humana, por não encaixar nos padrões de análise
racional em uso, acredito que deve ser qualificada com toda propriedade de atitu-
de irracional. Lévi-Strauss já aconselhava não opor magia e ciência, mas conside-
rá-Ias como dois modos desiguais de conhecimento. O mito e a razão são dois
pólos de referência irredutíveis, mas inevitáveis, da história das culturas. O mito
sem razão se converte em magia e despotismo, a razão sem mito se converte
facilmente num artiffcio lógico, descamado de desejo, à imagem e semelhança do
processamento mecânico dos computadores.

Interesse pelo mito sempre houve. Durkheim falava deles como dos doadores de senti-
do à sociedade; Lévi-Strauss condicionava a possibilidade de um verdadeiro humanis-
mo a seu reconhecimento; para Blumenberg, é o mito que pode baixar a crista do prin-
cípio de realidade; Kolakovski os traz como dados para compensar os limites da razão
científica ... (Mate, 1994, p. 2)

O caráter inacabado do indivíduo e seu misterioso destino provocam e quase


exigem a fabulação mitológica, que em cada época e em cada cultura adquire
roupagens, dimensões e sentidos diferentes. O mito não deve ser considerado
perigoso a não ser quando ultrapassa seu território, quando se converte em subs-
tituto da razão, impondo como certezas inquestionáveis para todos e para sempre
suas concretas e peculiares formulações, ritos e normas éticas de comportamento.
Do mesmo modo, as crenças religiosas só podem ser consideradas inadmis-
síveis quando perdem sua consciência de formulação mítica, quando, ao se es-
quecer de sua origem cultural e se converter em dogmas (quase consubstancial
com seu próprio caráter), se impõem a qualquer preço como necessárias e inques-
tionáveis para o resto dos infiéis. O desenvolvimento da razão como abertura
requer, a este respeito, a promoção do laicismo não como um tipo de crenças ou
de negação delas, mas como uma forma especial, aberta, tolerante e reflexiva, de
ter as crenças próprias, sejam quais forem (Savater, 1996).
Outro aspecto importante da exigência de abertura é a recuperação do deba-
te ideológico. As ideologias, as formulações utópicas ou as cosmovisões gerais
-6 A. I. PÉREZ GÓMEZ

podem desempenhar um papel relevante na mobilização, no intercâmbio e no


contraste público de idéias, sempre e quando sejam conscientes de seu caráter
contingente e parcial, de que respondem a interesses determinados, e que, portan-
to, se apresentam como alternativas concretas a uma confrontação plural e tole-
rante. Por outro lado, é inevitável a produção ideológica, a emergência de propos-
tas que confiram sentido à atividade cotidiana, mais além da simples mecânica
dos fatos. Como define Morín (1993): "A idéia de um homem 'desalienado' é
irracional: autonomia e dependência são inseparáveis, posto que dependemos de
tudo o que nos alimenta e nos desenvolva: estamos possuídos pelo que possuí-
mos: a vida, o sexo, a cultura" (p. 4).
Se a produção ideológica é inevitável e constitutiva do ser humano, como a
criação de fantasias, mitos ou sonhos, e influi de forma importante na determina-
F20 do nensarnento. dos sentimentos e das condutas, a atitude racional provocar é

conscientemente a reflexão sobre elas, o contraste, a crítica e a reformulação per-


manente. Os que proclamam, como Fukuyama, o fim das ideologias, não só estão
impedindo seu tratamento público e racional como que ao mesmo tempo estão
convertendo sua própria ideologia num verdadeiro obstáculo ao desenvolvimen-
to do conhecimento, pois universalizam, de forma irresponsável e dogmática,
critérios e interpretações claramente particulares.
Neste sentido, cabe apresentar o valor inestimável do pensamento utópico
que, quando é consciente de sua radical origem histórica, provoca o distancia-
mento do presente, rompe os limites da racionalidade já consolidada, abre alter-
nativas para o pensamento criador e oferece horizontes às aspirações silenciadas
ou condenadas em cada época. Como afirma Argullol e Trias (1992, p. 96):

as perspectivas utópicas são convenientes porque entranham a necessidade de pôr à prova,


e a vontade de modificar, o próprio espaço em que a gente se encontra. São, para chamá-Ias
com outro nome, as perspectivas do desejo ... O pior que poderia nos acontecer seria aceitar
uma sociedade, e uma vida, sem desejo. O desejo sempre implica uma tensão entre o espaço
que habitas e um espaço eventual que se projeta em tua mente e em tua sensibilidade.

Incerteza como efeito concomitante da falta de fundamentação e da abertura

Parece, portanto, inevitável que a conquista da autonomia leva atrelada não ape-
nas a responsabilidade de assumir a orientação do próprio destino, como também
a exigência de tomar decisões a partir do território em que habitam a dúvida e a
incerteza, sempre insuperável em certa medida. Sem destino pré-fixado e sem de-
terminações externas, culturais ou sobrenaturais, que fixem de forma definitiva o
rumo de sua atividade, o indivíduo autônomo se defronta com a necessidade de cons-
truir e reconstruir permanentemente a orientação de seu presente contínuo, de se
construir como sujeito. Não quer dizer que o sujeito humano não se encontre profusa-
mente condicionado pelos hábitos adquiridos, pelas rotinas e rituais de sua cultura,
pelas normas e instituições, pela rede de significados que constituem seu território
simbólico, e pelos papéis que desempenha; o relevante de sua condição autônoma é a
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 57

consciência de que todos estes aspectos são tão ineludíveis companheiros como con-
tingentes criações. Todos são produto do desenvolvimento histórico, do acaso e da
necessidade conjuntural, de interesses, conflitos e acordos concretos, e frente a todos
eles deve se perguntar a validade antropológica de suas contribuições ou limitações.
A construção do sujeito autônomo nas condições concretas que em cada
cultura impõem as instituições, as normas, os intercâmbios materiais e a rede de
significados dominante e que se especificam de maneira peculiar para cada indi-
víduo e para cada grupo humano parece situar-se no modo como cada um confi-
gura, matiza e organiza a multiplicidade de papéis que há de desempenhar na
complexidade de sua vida cotidiana. A incerteza generalizada da espécie humana
frente à construção de seu sentido se especifica na prosaica escolha de limitadas
alternativas que a cada sujeito se apresentam, na complexa rede de papéis que sua
existência requer. De todo modo, sejam poucas ou muitas as alternativas à sua
disposição, o problema do sentido de sua existência permanece sempre presente,
e em alguma medida sempre em suas mãos.

Racionalidade procedimental, ação e democracia

Reconhecer o caráter histórico da razão, assim como a necessidade de abertura às


dimensões mais emotivas e menos lógicas dos fenômenos humanos, não implica,
inevitavelmente, afirmar a arbitrariedade, nem tampouco a incomensurabilidade
das culturas ou das épocas históricas próprias do relativismo cultural e do histori-
cismo em suas versões mais radicais. Como já indicamos anteriormente, Weber
inicia a busca de uma concepção formal-procedi mental da razão que será conti-
nuada por Rorty, por Gadamer e, em especial, por Habermas. Esta perspectiva
assume o caráter histórico da razão e da variabilidade e contingência de todos os
seus conteúdos, mas afirma que a universalidade da razão pode ser buscada nos
procedimentos que permitem revisar criticamente as crenças e os conhecimentos
da própria cultura (Serrano, 1994).
A racionalidade procedi mental se propõe estabelecer procedimentos inter-
subjetivos e interculturais (este é seu ponto mais controvertido), que permitam
enfrentar a análise e o questionamento da legitimidade das próprias construções
simbólicas e de suas aplicações na vida cotidiana. Procedimentos que facilitem o
diálogo e a comunicação intersubjetiva para entender os pressupostos alheios e
contrastar as próprias elaborações, detectar e enfrentar as contradições, as distor-
ções e os mal-entendidos que aparecem, inevitavelmente, nos processos de co-
municação intra e intercultural. Os procedimentos formais não definem uma for-
ma de vida concreta nem um conteúdo cultural específico, mas se referem, sim, a
princípios e a valores gerais, em relação aos quais devemos estabelecer um con-
senso prévio se queremos ter acesso ao terreno da comunicação criadora. Não
resta dúvida de que, embora dentro do jogo de procedimentos cabem uma multi-
plicidade e uma disparidade de concretizações culturais, o desacordo em ques-
tões substantivas básicas (por exemplo, a tolerância, a liberdade, a igualdade e o
58 A. L PÉREZ GÓMEZ

respeito à diferença) pode se traduzir em desacordo em relação aos procedimen-


tos que impedem a comunicação.

A complexidade das sociedades modernas implica que nelas não existe nem um centro
que possa representar a totalidade social, nem a possibilidade de reduzir a pluralidade
das posições valorativas a um consenso único. A aceitação do público, portanto, não
pode se vincular a um conteúdo concreto da decisão, mas aos procedimentos que permi-
tem tomar decisões. (Luhmann, em Serrano, 1994, p. 28)

Talvez seja Habermas quem tenha desenvolvido com mais detalhes as ca-
racterísticas da racionalidade procedi mental situada nos processos de comunica-
ção.'? O aspecto que mais nos interessa de sua proposição é a insistência tanto no
caráter formal e procedi mental de sua racionalidade comunicativa como na con-
cretização destes procedimentos em pressupostos e estratégias que garantam a
igualdade de oportunidades dos interlocutores, de modo que possa se efetuar um
intercâmbio aberto e respeitoso em que se evidencie a força do melhor argumen-
to. Não por acaso, os pressupostos e os valores que subjazem em sua proposta
são os requisitos ligados à constituição democrática da vida social. Nestes proce-
dimentos, voltamos a encontrar os valores básicos que aproximaram tanto como
confrontaram os grupos humanos ao longo da história: a igualdade e a liberdade.
Sem liberdade para criar e para expressar as próprias convicções, a comunicação
carece de interesse; sem a igualdade de oportunidades dos interlocutores, a co-
municação se desequilibra e desliza para a persuasão, o domínio e a imposição.
A racionalidade da representação e a racionalidade da ação parecem convergir
na afirmação radical dos procedimentos democráticos como pressupostos ótimos,
tanto para a produção, a difusão e a crítica do conhecimento como para o entendimen-
to e a organização da convivência. Portanto, o problema da cultura crítica se situa, na
minha opinião, no debate complexo e delicado sobre os pressupostos e os valores que
subjazem nos procedimentos do intercâmbio democrático e na identificação desses
mesmos procedimentos nos diversos âmbitos do saber e do fazer: na produção de
conhecimentos, na tomada de decisões na vida cotidiana e no controle do poder.
A democracia não pode, deste modo, se identificar com um modelo de orga-
nização concreta da economia, da política e da cultura, nem sequer com um mo-
delo ideal de reconciliação e harmonia. A democracia é um esquema formal, em
permanente construção, de procedimentos para enfrentar, mediante o diálogo, a
informação compartilhada, o debate e a decisão majoritária, os inevitáveis confli-
tos, desacordos e discrepâncias que aparecem na organização dos intercâmbios
no mundo da vida. Ou, como afirma Savater (1995), a democracia é um concerto
discordante, uma harmonia cacofônica, pelo que exige mais relaxamento no cole-
tivo e maior maturidade responsável no pessoal do que nenhum outro sistema
político. Agora, as condições que determinam o mundo dos intercâmbios mate-
riais e simbólicos, ou seja, as condições políticas, econômicas e culturais de uma
sociedade concreta não são indiferentes em relação à garantia dos procedimentos
que requerem o intercâmbio democrático. A liberdade e a igualdade como valo-
res imprescindíveis para a participação se encontram melhor atendidas por al-
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 59

guns sistemas sociais que por outros. E esta é a grandeza e a miséria da democra-
cia humana: facilita o contraste de pareceres e de experiências entre os indivíduos
e os grupos na busca contínua do melhor sistema de vida, mas não garante sua
realização. Podemos chegar a um acordo, depois do debate e da experimentação,
sobre os sistemas que não conduzem à satisfação e não favorecem o intercâmbio
democrático, mas não podemos definir racionalmente de forma positiva o sistema
concreto adequado. Somente podemos estabelecer hipóteses de trabalho e de ex-
perimentação.
Entre estas hipóteses de trabalho, podemos, de acordo com Savater (1995) e
Aranguren (1991), elencar algumas, referentes às atitudes básicas que requer o
procedimento democrático:
- Em primeiro lugar, afirmar a idéia de pluralidade e tolerância contra a
imposição de uma única ou melhor forma de pensar e de ser. Como desenvolve-
mos amplamente, o caráter inacabado, aberto e reflexivo, assim como a indeter-
minação natural da espécie humana fundamentam a diversidade de concretiza-
ções individuais e culturais. Pode-se ser cidadão de muitas maneiras e deve exis-
tir sempre uma área de livre disposição existencial, na qual as leis e as normas
culturais não devem incidir, a não ser para proteger o próprio direito dos demais.
Neste sentido, coincide Savater com a defesa que I. Berlin faz da liberdade nega-
tiva como valor individual que permite que o indivíduo se negue a qualquer com-
portamento que considere desumano por mais que o garanta um procedimento,
legitime-o uma maioria ou o sancione um conceito de razão. A diversidade e o
respeito às minorias são tão importantes na democracia como o governo das maio-
rias. Neste sentido, convém ressaltar que a democracia deve se defender ativa-
mente contra a intolerância militante dos que querem impor uma única forma de
pensar ou de viver. A democracia requer uma disposição combativa a favor da
pluralidade e do respeito às diferenças.
- Em segundo lugar, a democracia não pode se reduzir a um conjunto de
procedimentos formais para garantir os processos eleitorais. Como já destacamos
anteriormente, é um conjunto de procedimentos em que subjazem princípios e
valores que definem de forma genérica um estilo de vida individual e coletivo,
tolerante e respeitoso com a pluralidade de formas concretas de existir e compro-
metido, mediante a participação ativa, com a defesa dos direitos que garantam a
convivência na pluralidade. A democracia é uma forma de vida que inunda os
esquemas de pensamento, de sentimento e de conduta dos indivíduos e dos gru-
pos humanos com plural idade e tolerância, para potenciar a liberdade e com com-
promisso solidário para lutar pela igualdade.
- Em terceiro lugar, é necessário distinguir entre as pessoas e suas idéias ou seus
costumes. As idéias e os costumes são realizações particulares que devem ser discu-
tidas e criticadas sem nenhuma restrição. Esta é a base da racionalidade da represen-
tação e da ação na perspectiva procedimenta1: o debate permanente e ilimitado das
idéias e das propostas de ação, em busca do melhor argumento. As pessoas são sem-
pre respeitáveis, mas as idéias devem ser sempre debatidas e questionadas.
60 A. I. PÉREZ GÓMEZ

- Em quarto lugar, é preciso estimular a descentralização indi vidual e cultu-


ral, ou seja, provocar o interesse intelectual inclusive por aquilo do qual discorda-
mos. A ruptura do localismo cultural e do egocentrismo pessoal é um requisito do
desenvolvimento democrático do conhecimento e da organização política, em
particular na sociedade sem barreiras de final do século. A descentralização é a
alma do progresso e do crescimento nas formas e nos conteúdos das representa-
ções individuais e coletivas que garantam a liberdade.
- Em quinto lugar, as condições de participação no intercâmbio comunicati-
vo requerem especial sensibilidade à igualdade de oportunidades. A racionalida-
de comunicativa, fundamento da organização democrática da convivência, se
converte num puro e falso artifício se os indivíduos não têm possibilidades reais
de participação, ou se as diferenças individuais se convertem em desigualdade ou
discriminação. As condições de participação nos procedimentos formais entram
em cheio na análise das formas concretas de produção e distribuição do conheci-
mento, dos bens e do poder. É particularmente importante este aspecto pela es-
treita relação que, na sociedade contemporânea, se estabelece entre a opinião
pública e a propriedade privada dos meios de comunicação de massa.
- Em sexto lugar, é necessário destacar que, sem informação e sem debate pú-
blico permanente sobre as decisões que afetam a coletividade, os intercâmbios e o
desenvolvimento da vida cotidiana, dificilmente pode existir uma participação racio-
nal e fundamentada. Não podemos esquecer que este aspecto é cada dia mais relevan-
te, pela dificuldade e pela complexidade dos processos e dos mecanismos que regem
a vida econômica, política e cultural das sociedades contemporâneas. A dimensão
mundial dos fenômenos, a especialidade técnica das estratégias e o volume inabarcá-
vel de informações tomam freqüentemente opacas e anônimas a origem e a trama de
fatores que condicionam os intercâmbios da vida cotidiana. O debate público é a
melhor estratégia para provocar a reflexão plural sobre a saturação de informações.

CRISE EPISTEMOLÓGICA: A MUDANÇA


DE REGIME NAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Pelo plácido oceano da epistemologia e de seu principal sucedâneo, a chamada Filosofia da


Ciência navegava, todo orgulho e ostentação, o último grande navio deste século maléfico,
o falsacionismo do Sr. Popper, um transatlântico que formava no céu, com o vapor que saía
de suas caldeiras, umas nuvens com a bela forma de um sonho: a velha utopia - mecanicista
- de uma Razão construída à imagem e semelhança da Lógica Formal... Navegava, placida-
mente, o barco popperiano por esse mar morto quando, de repente, de uma minúscula bar-
quinha, na verdade sem filiação nem bandeira, se soltou um petardo, um fragmento teórico
- um livro intitulado A estrutura das revoluções científicas - que foi explodir na mesma
linha de flutuação do trambolho, que voou para sempre pelos ares. (Meana, 1996, p. 4-14)

Sirva esta bela e lúcida descrição narrativa, a qual lembra inevitavelmente a


famosa história de Bogart e Hepbum em Uma aventura na África contra a mari-
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 61

nha alemã, como expressão da mudança radical que se produz na concepção dos
saberes humanos e sociais, na segunda metade do século XX e, talvez, com mais
contundência, em suas três últimas décadas. Uma silenciosa, mas demolidora,
revolução metodológica e epistemológica percorreu as ciências sociais, direcio-
nando definitivamente seu enfoque para orientações e perspectivas tanto inter-
pretativas como construtivistas.
A crise da cultura pública se manifesta neste sentido como uma profunda e
radical revisão dos pressupostos epistemológicos que orientaram o desenvolvi-
mento do conhecimento em todos os âmbitos do saber, mas com especial trans-
cendência, significação e virulência no âmbito das ciências sociais, até o ponto de
poder afirmar, nos termos que continha a dinamite da barquinha kuhniana, que
nos encontramos evidentemente diante de um novo paradigma. O sistema básico
de crenças, de princípios e de visões gerais sobre a realidade e sobre o conheci-
mento, que guiam, condicionam e potenciam o trabalho dos investigadores, dos
intelectuais, dos políticos e dos práticos, foi subvertido de forma tão radical que
não só afeta o problema da escolha de métodos de produção e difusão do conhe-
cimento, mas especialmente, e de forma clara, a própria concepção do conheci-
mento (epistemologia) e a própria consideração da realidade (ontologia). Neste
sentido, Vattimo (1995) apresenta a hipótese de que a hermenêutica ocupou nos
anos oitenta e noventa o lugar do marxismo nos cinqüenta-sessenta e do estrutu-
ralismo nos sessenta-setenta.
O niilismo de Nietzsche; a fenomenologia de Husserl, Heidegger, Sartre,
Merleau-Ponty, Alfred Schutz, Peter Berger e Thomas Luckman; a hermenêutica
de Dilthey, Geertz, Gadamer, Ricoer; a etnografia de Malinowski, Erickson,
Wolcott, LeCompte, Goetz; a etnometodologia de Garfinkel, Mehan, Wood e Ci-
courel; o interacionismo simbólico de Mead, Blumer, Spradley, e Bogdan e Bik-
len; a teoria da ação comunicativa de Habermas, Kemmis e Zeichner; o constru-
tivismo de Gergen, Guba e Lincoln, e as posições radicais dos desconstrucionis-
tas Foucault, Derrida, ou as mais moderadas de Vattimo e Levinas ... , cada um
com sua contribuição específica, singular e diferenciada, impulsionou esta sub-
versão paradigmática que se define pelo trânsito da objetividade à subjetividade,
da explicação à compreensão interpretati va, do descobrimento à construção. Pode-
se afirmar, sem demasiado risco, que a maior parte da filosofia atual fala esta
linguagem.
Enfim, o distanciamento e a recusa dos modos de fazer e pensar próprios do
positivismo e do método hipotético dedutivo, que tão surpreendentes resultados
proporcionaram no âmbito das ciências naturais e experimentais I I, se devem à
consciência clara da identidade peculiar do sujeito humano, seus pensamentos,
afetos, condutas, valores e produtos simbólicos. Como afirmam Guba e Lincoln
(1995), o comportamento humano, ao contrário dos objetos físicos, não pode ser
compreendido sem referência aos significados, aos sentimentos e aos propósitos
que os atores humanos vinculam a suas atividades. A compreensão destes signi-
ficados exige a atenção ao contexto e à história que os condiciona e matiza, assim
como a preocupação por entender o comum e o singular. O conhecimento prático, as
62 A. I. PÉREZ GÓMEZ

intenções latentes, o sem-sentido, o absurdo, os valores não-confessados, as contradi-


ções explícitas ou tácitas, os conjuntos vagos, as intuições sem organizar sistematica-
mente, todos são elementos tão decisivos no comportamento individual e grupal que
devem ter acolhida no processo de interpretação dos fenômenos humanos.
O paradigma interpretativo, qualitativo, naturalista ou construtivista, con-
forme suas múltiplas denominações, enfatiza a natureza socialmente construída
da realidade, a estreita relação entre o investigador e a realidade investigada, as
exigências e as constrições situacionais que determinam a investigação, o com-
ponente valorativo presente em todo o processo de investigação. Por isso, se con-
cebe a produção de conhecimento válido e relevante como um processo de cons-
trução de novos significados e representações, a partir do contraste das interpre-
tações que os diferentes sujeitos participantes oferecem da situação que vivem. A
afirmação de Nietzsche - "não há fatos, mas interpretações" - resume de forma
magistral a natureza e a envergadura da mudança atual ao expressar a relação
entre a ausência de objetividade e o caráter interpretativo da experiência humana.
Por outro lado, como afirma Giddens (1993), todas as formas da vida social
estão em parte constituídas pelo conhecimento que os atores possuem sobre elas.
Os valores, os conhecimentos e as intenções formam parte substancial da própria
realidade que pretendemos conhecer, concedendo-lhe um dinamismo e uma aber-
tura que complica tanto sua natureza como seus possíveis desenvolvimentos e,
naturalmente, seu conhecimento.

Encontramo-nos num mundo totalmente constituído através do conhecimento aplicado


reflexivamente, mas onde, ao mesmo tempo, nunca podemos estar seguros de que não
será revisado algum elemento dado desse conhecimento ... Nas ciências sociais, temos
de acrescentar ao instável caráter de todo conhecimento empírico a "subversão"
que compreende a reintegração do discurso científico social aos contextos que analisa.
(Giddens, 1993, p. 47)

Como conseqüência da reflexibilidade, os fenômenos humanos se caracterizam


pela singularidade e plasticidade que lhes conferem sua capacidade de aprendizagem,
assim como seu caráter emergente, e pela sua abertura permanente a novas formas ou
modos de ser que supõem a reconstrução de suas formulações prévias. O conheci-
mento dos fenômenos humanos, portanto, deve cobrir os aspectos comuns e os as-
pectos singulares, os fatos e os valores, as manifestações observáveis e as interpreta-
ções, os componentes já consolidados e os que se encontram em processo de forma-
ção, os elementos reais, já existentes, e as possibilidades ainda inéditas, o dominante
e o marginal. Todos eles são fatores que condicionam ou podem interferir nas repre-
sentações, nas expectativas e nas ações dos indivíduos e dos grupos.
É evidente que o próprio conhecimento se contamina com a flexibili-
dade, a parcialidade e a precariedade que caraterizam os fenômenos huma-
nos. O conhecimento em ciências sociais não pode ser mais do que uma
peculiar interpretação, sem dúvida mais contrastada e melhor elaborada e
argumentada, mas afinal de contas uma interpretação provisória e parcial
de uma realidade também efêrnera. A realidade não é estável porque o pró-
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 63

prio conhecimento dela a modifica, contribui para sua transformação. O


conhecimento não é objetivo, nem é estável, porque faz parte da própria
realidade conhecida, porque é uma representação subjetiva, porque, afinal
de contas, é uma construção interessada, condicionada pelos fluxos de po-
der, pelo intercâmbio de tensões e interesses dessa mesma realidade. As-
sim, pois, a dialética entre conhecimento e realidade, entre objeto e sujeito,
constantemente apaga os limites entre ambos, confundindo-se em um jogo
interminável de espelhos, em um espiral de influxos convergentes e diver-
gentes. Como afirma Vattimo (1996): "Poucos acreditam, hoje em dia, que
uma proposição verdadeira seja aquela que reflete objetivamente as coisas,
cada vez mais se considera verdadeiro o que é argumentável diante de uma
comunidade de especialistas. Isto é, a intersubjetividade substituiu a objeti-
vidade" (p. 12). As construções não são mais ou menos verdadeiras num
sentido absoluto de correspondência com a realidade, mas mais ou menos
informadas, contrastadas, argumentadas. A Verdade, com maiúscula, é a
melhor construção, a mais sofisticada (elaborada) sobre a qual há consenso
numa época concreta (Guba e Lincoln, 1995).
A mudança é tão radical que, como veremos mais adiante, algumas interpreta-
ções consolidadas no pensamento pós-moderno atual reduzem o conhecimento em
ciências sociais ao território da análise lingüística, à interpretação e à tradução de
textos. Ao afirmar que a única realidade constatável é a linguagem, esta interpretação
radical freqüentemente aliena a possibilidade de compreender os determinantes polí-
ticos, econômicos e culturais que condicionam a distinta apreensão e a utilização da
linguagem por parte dos indivíduos e dos grupos humanos (Giroux e McLaren, 1994).
Compreender a amplitude e a relevância desta mudança substantiva de para-
digma requer que nos detenhamos nas repercussões ontológicas, epistemológicas
e metodológicas apresentadas tanto na investigação social e educativa como nas
práticas de difusão e aplicação do conhecimento.

Peculiaridades epistemológicas da perspectiva interpretativa e construtivista

Pode-se dizer que a corrente interpretativa e construtivista se configura como tal


dentro dos limites de nosso século, e que só em suas últimas décadas, desde os
anos setenta até nossos dias, está alcançando reconhecimento oficial e acadêmico
no âmbito educativo.

o plano ontolôgico: a construção social da realidade social.


Entre o realismo histórico e o relaiivismo radical

No plano ontológico, o paradigma construtivista e interpretativo se move entre o


realismo histórico e o relativismo. O realismo histórico afirma a existência de
uma realidade social construída historicamente, e, portanto, provisória e contin-
64 A. I. PÉREZ GÓMEZ

gente. Esta realidade pode ser aprendida, pois, embora em princípio seja uma
realidade plástica e contingente, foi configurada ao longo do tempo pelo influxo
de fatores sociais, econômicos, políticos, culturais, étnicos e de gênero, cristali-
zando em estruturas que, embora provisórias, contingentes e mutáveis, podem se
considerar reais, ao condicionar a vida dos grupos humanos. O relativismo afirma
a existência de múltiplas realidades sociais em virtude não apenas da história
diferencial de grupos humanos, como também das distintas perspectivas subjeti-
vas a partir das quais se constrói.
O enfoque construtivista e interpretativo considera que a realidade social
tem uma natureza constitutiva radicalmente diferente da realidade natural. O mundo
social não é nem fixo, nem estável, mas dinâmico e mutável por seu caráter inaca-
bado, subjetivo, intencional e construtivo.
Por um lado, a vida social é a criação convencional dos indivíduos, grupos e
comunidades ao longo da história. As complexas - bem como mutáveis - rela-
ções condicionadas, de conflito ou colaboração, entre os indivíduos, grupos e
sociedades foram criando o que denominamos realidade social. Assim, pois, os
modos de pensamento e de comportamento individual ou coletivo, bem como as
normas de convivência, os costumes e as instituições sociais são o produto histórico
de um conjunto de circunstâncias que os homens constroem de forma condicionada,
ou seja, que as elaboram ativamente tanto como passivamente as suportam,
Se a realidade social é uma criação histórica, relativa e contingente, do mes-
mo modo que se constrói pode se transformar, reconstruir ou destruir. É uma
realidade em si mesma inacabada, em contínuo processo de criação e mudança.
Por isso, não pode se conceder o caráter de realidade somente às manifestações
atuais das estruturas sociais dominantes, aos costumes, às normas, às leis, às ins-
tituições e às idéias hegemônicas. As forças, as idéias e os comportamentos mar-
ginais, assim como as possibilidades, ainda não exploradas, de estabelecer outros
modos de relações sociais ou educativas, são também elementos relativamente
silenciados da realidade.
Por outro lado, no enfoque construtivista se mantém com rotundidade que, no
âmbito social, tão importantes são as representações subjetivas dos fatos como os
próprios fatos: os fatos e os valores. Ou melhor, os fatos sociais são redes complexas
de elementos subjetivos e objetivos. Tão importantes são as características observá-
veis de um acontecimento como a interpretação subjetiva que lhe concedem os que
participam nele. Não pode se compreender um fenômeno social ou educativo sem
entender as interpretações subjetivas dos que de, uma ou outra forma, o vivem.
Não existe, então, uma única realidade no âmbito do social em geral e do
educativo em particular, mas múltiplas realidades, em correspondência com os
múltiplos olhares de quem as vive. A partir de cada uma destas se oferecem pers-
pectivas diferentes, matizadas de forma singular pelo sujeito ou pelo grupo. Os
indivíduos são agentes ativos que constroem, de forma condicionada, o sentido
da realidade em que vivem.
Assim, pois, para compreender a complexidade real dos fenômenos sociais,
é imprescindível chegar aos significados, aos valores e aos interesses, ter acesso
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLlBERAL 65

ao mundo conceitual dos indivíduos e às redes de significados compartilhados


pelos grupos, comunidades e culturas. A complexidade da investigação social em
geral e educativa em particular reside precisamente nesta necessidade de ter aces-
so aos significados, posto que estes só podem ser captados de modo situacional,
no contexto dos indivíduos que os produzem e intercambiam e através dos signi-
ficantes lingüísticos. Os comportamentos do sujeito, seus processos de aprendi-
zagem e as peculiaridades de seu desenvolvimento somente podem ser compre-
endidos se formos capazes de entender os significados que se geram em seus
intercâmbios com a realidade social, ao longo de sua singular biografia. Entende-
mos por significados tanto as idéias como os valores, os sentimentos, as atitudes
e os interesses dos sujeitos humanos individual ou coletivamente considerados.
Nas palavras de Geerzt (1993), o homem é um animal suspenso em redes de
significados que, em grande parte, ele mesmo contribuiu para tecer. 12
Em síntese, são dois os pressupostos básicos que formam a ontologia cons-
trutivista e interpretativa:
- O caráter radicalmente inacabado dos fenômenos sociais, sua dimensão
criativa, autoformadora, aberta à mudança intencional.
- A dimensão serniótica dos mesmos. A relação em parte sempre indeterrninada
e, portanto, polissêrnica, entre o significante observável e o significado latente.

o plano epistemolôgico: a interpretação e a construção de significados

As posições epistemológicas do paradigma construtivista interpretativo podem ser


consideradas subjetivistas e transacionais, uma vez que consideram que o investiga-
dor e o objeto de investigação se encontram inevitavelmente vinculados de maneira
interativa, até o ponto em que os descobrimentos e os conhecimentos produzidos se
criam e constroem conforme o investigador evolui e como conseqüência de seu modo
de proceder, dos valores e dos propósitos que o animam, e, além disso, das condições
materiais, sociais e profissionais que pressionam sua atividade. Veremos a seguir as
principais características destas posições epistemológicas.
- O investigador e os sujeitos implicados na realidade investigada como
elementos essenciais na produção de conhecimento. Para o enfoque interpretati-
vo e construtivista, todo processo de investigação é, em si mesmo, um fenômeno
social e, como tal, é caracterizado pela interação. Desse modo, inevitavelmente, a
realidade investigada é condicionada em certa medida pela situação de investiga-
ção, pois reage ante o que investiga ou ante a própria situação experimental. De
maneira similar, o investigador é influenciado pelas reações da realidade estuda-
da, pelo conhecimento que vai adquirindo, pelas relações que estabelece, pelos
valores que intercambia e pelos significados que compartilha. Se o influxo de
interação existe de qualquer maneira, sendo praticamente impossível neutralizá-
10 sem modificar, alterar e restringir a riqueza da realidade social, pondo ao mes-
mo tempo em risco o próprio processo de investigação, o correto é reconhecê-Io,
compreender seu alcance e suas conseqüências.
66 A. I. PÉREZ GÓMEZ

Sem vivências compartilhadas, não se alcança a compreensão do mundo dos


significados, não se entendem os contextos que sempre induzem e matizam os
significados individuais e grupais. Sem se envolver afetivamente, não existe au-
têntico conhecimento dos processos latentes, ocultos e subterrâneos que caracte-
rizam a vida social dos grupos e das pessoas.
A perspectiva interpretativa se situa na corrente epistemológica construti-
vista, no sentido plural e dialético de construtivismo que defendem, por exemplo,
Blumer (1969), Stake (1995), Winter (1989), Woods (1992), Guba e Lincoln
(1995), Denzin e Lincoln (1995), no qual se diluem as fronteiras rigorosas entre
ontologia e epistemologia.

- Compreender a realidade social não implica necessariamente prever e


controlar. No enfoque construtivista e interpretativo, a finalidade da investigação
não é a previsão nem o controle, mas a compreensão dos fenômenos e a formação
dos que participam neles para que sua atuação seja mais reflexiva, rica e eficaz. O
objetivo da investigação não é a produção de leis ou generalizações independen-
tes do contexto, uma vez que se considera que a compreensão dos significados
não pode se realizar independentemente do contexto. As generalizações em ciên-
cias sociais, se afirma, são sempre provisórias, parciais e probabilísticas, restritas
a um espaço e a um tempo determinados e, em todo caso, interpretáveis de manei-
ra específica em cada contexto singular.
Os fenômenos sociais existem, sobretudo, na mente das pessoas e na cultura
dos grupos que interagem na sociedade, e não podem ser compreendidos a menos
que emenàarnos os vaiores e as ióêias óos que parúcrparn neles. "Emoora nos
fenômenos sociais possamos encontrar pautas comuns, elementos convergentes,
aspectos que se repetem, etc., as generalizações que se extraiam de sua compre-
ensão não podem ser aplicadas mecanicamente nem ao conhecimento nem à pre-
visão e nem ao controle de outras realidades sociais ou de outras experiências,
posto que o significado daquelas é em parte situacional e se especificará agora de
maneira distinta, própria e particular neste grupo social concreto.
A perspectiva interpretativa não nega, portanto, a existência de aspectos co-
muns, a possibilidade de identificar padrões comparativos de comportamento,
compreensão e sensibilidade, inclusive a conveniência de estabelecer categorias
a partir dos atributos definitórios de pessoas, grupos ou comportamentos. O que a
perspectiva interpretativa e construtivista recusa é que tais padrões ou categorias
constituam toda a realidade, ou esgotem seu conhecimento, e inclusive que qual-
quer realidade social possa ser compreendida ao ser reduzida a uma categoria. As
realidades sociais e individuais sempre apresentam matizes diferenciais, aspectos
específicos que singularizam as situações, os acontecimentos ou os comporta-
mentos, de modo que a compreensão de sua identidade exige a atenção tanto aos
aspectos comuns como aos matizes singulares que especificam qualquer categoria.
Em conseqüência, a investigação interpretativa se preocupará em compreen-
der tanto os aspectos comuns como os aspectos singulares, anômalos, imprevis-
tos, diferenciadores. Estes aspectos não apenas oferecem a oportunidade de co-
nhecer a nova realidade, a riqueza da diversidade e a diferença individual e gru-
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 67

pal, ou seja, o comportamento dos indivíduos e dos grupos diante dos aconteci-
mentos insólitos, como são em si mesmos indispensáveis para compreender o
sentido da realidade estudada, a qual se identifica precisamente pelos matizes
singulares e diferenciais. Sem o conhecimento do singular, escapa o sentido pró-
prio de qualquer realidade humana.
Em educação, esta consideração é a mais importante, se se pode dizer, por-
que o objetivo de toda prática educativa - facilitar a reconstrução do conheci-
mento experiencial do aluno - não pode se entender nem se desenvolver sem o
respeito à diversidade, às diferenças individuais que determinem o sentido, o rit-
mo e a qualidade de cada um dos processos de aprendizagem e desenvolvimento.
- O conhecimento como hipótese de trabalho. Intervenção deliberativa ver-
sus intervenção tecnológica. Dentro do enfoque construtivista e interpretativo, se
propõe uma utilização sempre hipotética e contextual do conhecimento adquiri-
do, já que se pressupõe a singularidade em parte irredutível das situações sociais,
por efeito das interações em certa medida sempre imprevisíveis dos indivíduos e
dos grupos que compõem tal espaço ecológico social. A teoria não dita direta-
mente a prática.
Dentro desta perspectiva, os conhecimentos teóricos são concebidos como
ferramentas conceituais que adquirem sua significação e sua potencialidade den-
tro de um processo discursivo de busca e intervenção na realidade; são instru-
mentos para enriquecer a deliberação. Os conhecimentos derivados de outras in-
vestigações ou experiências pessoais ou alheias devem ser utilizados sempre como
hipóteses de trabalho, como ferramentas que ajudam a indagar e a relacionar,
nunca como proposições explicativas das relações entre elementos e fatores, con-
sideradas universalmente válidas.
A cooperação e o contraste entre os diferentes indivíduos ou grupos que partici-
pam da realidade social, e entre estes e os agentes externos, é chave em todo o proces-
so de reconstrução dos significados da vida social. Superar o ego ou etnocentrismo
das interpretações localistas dos indivíduos e dos grupos é um objetivo prioritário de
toda a investigação desenvolvida dentro do enfoque interpretativo.
Por outro lado, a convicção de que o conhecimento sobre qualquer realidade
social deve estar estreitamente vinculado aos determinantes sempre mutáveis e
situacionais da ação, e de que a única forma de estabelecer um controle racional
sobre eles é a participação democrática dos que se encontram envolvidos nela,
concede um valor de primeira ordem à informação e à disseminação democrática
do conhecimento que vai se elaborando na investigação ao correr da reflexão
sobre a ação. A metáfora espacial de translação vertical do conhecimento de cima
para baixo, da teoria à prática, da reflexão à ação, da investigação à técnica, não
se combina com as características éticas de uma intervenção democrática. O co-
nhecimento que pretende ser formativo e que se propõe à transformação demo-
crática da realidade só pode favorecer tal pretensão se se produz, transforma e
utiliza democraticamente, se emerge da intervenção democrática na realidade, se
depura no debate aberto entre os participantes e se experimenta e avalia em estru-
turas de controle democrático (Goodman, 1989).
68 Â. t. PÉREZ GÓMEZ

- O contexto como situação relacional. Tanto a realidade estudada - a rede


de sigmiiceáos que tomam pccolisr a viDa DOSinDivfDlJos e DOSgrupos, cunurss
e sociedades - como o conhecimento produzido no processo de investigação -
novos significados reconstruídos a partir do intercâmbio aberto de perspectivas-
são construções sociais que refletem interesses, valores e ações (Habermas, 1971;
Foucault, 1971; Rorty, 1989).
Como compreender a formação dos significados como construções sociais?
Seguindo as propostas do interacionismo simbólico (Mead, Blumer), a perspecti-
va interpretativa se apóia em três premissas: os seres humanos agem sobre a rea-
lidade dos objetos, dos seres vivos, dos artefatos ou das instituições, em função
dos significados que estes têm para eles; tais significados se geram na interação
social, na comunicação entre indivíduos; os significados se consolidam e se mo-
dificam através de um processo de interpretação: os sujeitos selecionam, compro-
vam, eliminam, reagrupam ou transformam os significados à luz da situação em
que se encontram e em função dos propósitos de sua ação.
Neste empenho por esclarecer a formação dos significados, parece de uma
importância-chave entender a complexa rede de fatores que condicionam as ma-
neiras em que os indivíduos, incluídos os investigadores, interpretam suas expe-
riências e suas situações dentro dos concretos sistemas e estruturas econômicos,
sociais e políticos em que vivem. Tais fatores são de natureza posicional ou situ-
acional. Ou seja, os aspectos mais importantes que constituem nossa identidade,
tais como o gênero, a raça, a classe social ou a idade, etc., mais que qualidades
essenciais são indicadores da posição que cada um ocupa no mundo de relações
que o formam. Seus efeitos e suas implicações mudam em função do contexto,
em virtude da rede de relações em que se enquadram. Podem ter muita importân-
cia em um contexto de relações concreto e ser totalmente indiferentes em outro
contexto de interação, porque o significado não se situa naquelas pretensas quali-
dades essenciais ou naturais, mas se constrói em função dos interesses que gera o
contexto de interação.
Por isso, todo conhecimento, ou melhor, todo processo de construção de
significados, incluído, naturalmente, o conhecimento especializado ou "científi-
co", se encontra situacionalmente condicionado e, para entender seu valor, seus
efeitos e suas implicações, é importante identificar as posições e os marcos de
referência, a partir dos quais os indivíduos ou os grupos humanos, os leigos ou os
acadêmicos elaboram suas interpretações, análises, juízos de valor e programas
de intervenção.
Em síntese, o enfoque interpretativo-construtivista propõe um novo olhar,
uma nova leitura da clássica dialética sujeito versus objeto, supra-estrutura ideo-
lógica versus condições objetivas. As condições objetivas não determinam direta
nem mecanicamente as construções simbólicas; ao contrário, atuam filtradas pelas
interpretações que os sujeitos e os grupos fazem do sentido de tais condições objeti-
vas. Mas, por sua vez, para compreender a gênese e a significação de tais interpreta-
ções, temos de considerar as condições objetivas que configuram de longe ou de
perto o contexto de relações. Agora, e esta é a contribuição diferencial desta perspec-
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 69

tiva, não pode se considerar estas condições objetivas qualidades essenciais deterrni-
nantes por si mesmas dos comportamentos, mas elementos de uma rede de interações
em que se move cada indivíduo. A influência real das condições objetivas depende da
interpretação que cada indivíduo faz de sua importância, em virtude da relevância e
da significação que adquiriram no espaço concreto de suas interações mais próximas:
família, amigos, âmbito profissional, grupo cultural, meio acadêmico ...
Mais que pelas condições objetivas, materiais, econômicas ou políticas, o
indivíduo se encontra encurralado e potenciado pela posição relativa que ocupa
em seu mundo próximo de interação. A partir desta opinião, definida pela rede de
interações, interpreta tanto suas possibilidades de pensar, ser e fazer como a im-
portância das condições objetivas em que vive. Por isso, o objetivo primário da
investigação e da ação na perspectiva interpretativa é o mundo das interações, a
rede de intercâmbios em que se elaboram e filtram as interações com as quais os
sujeitos orientam suas vidas.
Agora, se, como explicitamente coloca Denzin (1995), não existe nenhum
olhar objetivo nem neutro nem no observador nem nos indivíduos observados,
mas que todas as percepções e as representações se encontram inevitavelmente
contaminadas pelo filtro da linguagem, do gênero, da classe social, da raça; en-
fim, pela posição que cada um ocupa em seu mundo próximo de relações e na
estrutura social da comunidade, a postura mais honesta na investigação é propor-
cionar as diferentes representações implicadas em cada situação, sob o modo de
histórias ou relatos particulares que discordam ou convergem, e em todo caso
ajudam a entender um pouco melhor a complexa rede de significados e os proces-
sos de sua diversificada formação, tanto pela complementaridade de alguns da-
dos que fornecem como pela singularidade e discrepância de alternativas que
podem estar presentes. O verdadeiramente importante é que as condições de li-
berdade e motivação dos participantes permitam um diálogo honesto, aberto e
sem restrições para produzir novos significados e novas interpretações, melhor
argumentados, apoiados em melhores evidências intersubjetivas.
- Construção e desconstrução na elaboração de significados. Fica claro,
nesta perspectiva, que, na interpretação, os indivíduos se valem de suas próprias
categorias e de seus próprios preconceitos para se aproximar dos fenômenos que
pretendem compreender; que, como afirma Gadamer (1975a, 1975b, 1992), nun-
ca é possível transcender a perspectiva histórica a partir da qual se interpreta, ou
seja, desde a tradição. Mas, é possível e imprescindível, se queremos explorar as
possibilidades do conhecimento, rastrear a gênese histórica e social dessas mes-
mas categorias e desses mesmos preconceitos que se formaram no indivíduo e no
grupo, como conseqüência de intercâmbios reiterados e concretos.
Construir ou reconstruir novos significados a partir das próprias categorias
requer conectar nossos esquemas com as tradições do grupo ou da cultura, em
cujas redes se forjaram as interações. Comparar, dialogar, contrastar, relacionar e
discordar com as tradições ou as orientações do pensamento público é a única
maneira de encontrar o sentido, a potencialidade e as limitações de nossas pró-
prias elaborações e de fazê-Ias inteligíveis aos demais.
70 A. I. PÉREZ GÓMEZ

Agora, como já indicávamos no ponto anterior, situar os próprios esquemas


de pensamento ou a investigação na rede de interações simbólicas, nas tradições
públicas do grupo e da cultura em que nos movemos é um requisito imprescindí-
vel, mas insuficiente, para compreender os motivos e as características da gênese
dos significados, assim como as possibilidades de sua transformação. É necessá-
rio empreender um difícil processo de desconstrução, de análise transversal e
descendente para entender os influxos que as formas de vida, que as condições de
existência historicamente configuradas por interesses dominantes e pela inter-
venção do acaso foram sedimentando nas redes atuais de interação e nos signifi-
cados que circulam.
Os processos de desconstrução (Foucault, Derrida) dissolveram a ilusão de
continuidade e sentido do desenvolvimento histórico na linha de um progresso
inquestionável. Puseram a descoberto as contradições e as descontinuidades ao
mesmo tempo que a complexidade e a multivalência dos influxos e motivações
que geram os significados e os comportamentos dos indivíduos e dos grupos
humanos. A desconstrução tem, na minha opinião, o valor não de descobrir o
sem-sentido, mas o sentido contraditório e poli valente dos acordos e das contra-
dições. Qualquer pressuposto da ordem individual ou social dado por válido pode
e deve se submeter à indagação desconstrutiva para compreender suas motiva-
ções e conseqüências não-confessadas e, com isso, provocar conscientemente
sua reconstrução.
O construtivismo sem desconstrução é, na melhor das hipóteses, uma ingê-
nua ilusão de autonomia que só consegue, posteriormente, reproduzir o existente,
inventando enganosas aparências de novidade. São os materiais pessoais ou so-
ciais com os quais construímos que estão infectados de significação histórica,
cujo sentido e valor devemos questionar e indagar antes de nos apoiar em sua
utilização.

Plano metodológico: diálogo e pluralidade

Em coerência com os pressupostos ontológicos e epistemológicos, as propostas


metodológicas do paradigma construtivista e interpretativo enfatizam o diálogo,
a dialética, a hermeneusis e a interação prolongada entre investigador e realida-
de investigada, no cenário habitual e natural da prática. Como afirmam Guba e
Lincoln (1995), o propósito final da investigação interpretativa é elaborar uma
construção consensual da realidade que seja mais informada e argumentada do
que todas as precedentes, tanto dos agentes práticos como, naturalmente, as do
próprio investigador. A investigação construtivista é inerentemente multimetodo-
lógica, utilizando todos aqueles procedimentos que possam enriquecer a inter-
pretação. Entre seus elementos mais relevantes, podemos destacar os seguintes:

- A indução, a dedução e a abdução como procedimentos de uma lógica


plural. O enfoque construtivista e interpretativo prefere seguir uma estratégia de
investigação plural e diversificada que inclui tanto uma lógica mista, indutivo-
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 71

dedutiva, como uma lógica comparativa, abdutiva, metafórica, de modo que se


produza constantemente uma interação entre as teorias ou as hipóteses de traba-
lho e os dados, os enfoques e os acontecimentos.
É certo que a maioria das correntes e perspectivas de investigação que se agru-
pam neste paradigma, em particular aquelas que trabalham no campo da etnografia,
privilegia a lógica indutiva por entender que é a que respeita a natureza da diferença
e da singularidade dos acontecimentos e sentimentos humanos. No entanto, assume-
se a inferência como procedimento que não fundamenta teorias nem generalizações
universais independentes do contexto. Não apenas porque os fatos em que nos apoi-
amos estão determinados pela perspectiva interpretativa a partir da qual os observa-
mos, como porque diferentes perspectivas teóricas podem receber igual apoio do
mesmo conjunto de fatos. Nunca é possível porindução chegar a uma única e incon-
testável teoria, a partir de um conjunto coerente de fatos (Guba e Lincoln, 1995).
No entanto, Castafíares (1992) afirma que frente à dedução, que é uma infe-
rência analítica e só permite explicar nosso conhecimento, a indução é sintética e
permite ampliá-lo, Mas existe, além disso, outro tipo de raciocínio sintético que
Peirce chama hipótese ou abdução. Este tipo de inferências abdutivas permite
explicar um fato que aparece como surpreendente ao considerá-lo, hipotetica-
mente, como o resultado de aplicar uma regra a um caso, ou ao compreendê-lo
num processo comparativo com situações já conhecidas. Pode-se considerar a
abdução como uma inferência transversal, em que inferimos um significado sem-
pre provisório da situação atual por comparação e contraste, com situações previ-
amente interpretadas. Baseamo-nos nas semelhanças e nas diferenças entre casos
para avançar novas representações ou interpretações, que, na forma de tentativa,
incrementam as idéias e as hipóteses que orientarão nossa busca.
Como nos lembra Castafíares (1992), a abdução é uma inferência baseada na
iconicidade, posto que o ícone é um signo que mantém com seu objeto uma rela-
ção de semelhança, e pode se constatar como os procedimentos abdutivos são
muito mais freqüentes do que se poderia imaginar em princípio. Na realidade, regu-
lam quase todos os nossos processos comunicativos. A abdução possui a eficácia de
toda comparação. Mas quanto mais distância exista entre os elementos da compara-
ção, maior criatividade será necessária para encontrar o elemento comum. Todo mun-
do é capaz de fazer comparações; mas nem todo mundo é capaz de criar uma metáfo-
ra feliz ou uma hipótese que resolva um delicado problema científico.
Num sentido similar, muitos autores hermenêuticos reivindicam o valor cog-
noscitivo das metáforas, que já não podem ser consideradas como anomalias de
linguagem, mas como expressões de vida que enriquecem nossos significados e
interpretações e que serão estímulos na produção e na difusão do conhecimento,
sempre que sejam consideradas como tentativas de aproximações, como hipóte-
ses relativamente arriscadas que provocam a reflexão e a busca. (Johnson, 1987;
Lakoff, 1987; Sola, 1995; Bowers e Flinders, 1990). Lakoff e Johnson (1980)
sugerem que as metáforas proporcionam coerência a nossa experiência ao servir
como guias para a ação futura. Nesse mesmo sentido, são esclarecedoras as pala-
vras de M. Green (1989, p. 283) quando afirma que:
72 A. I. PÉREZ GÓMEZ

...através das metáforas o doutor pode imaginar as vivências de seus pacientes, o que não
tem dor pode imaginar quem a padece, os que vivem no centro aos que estão na perife-
ria. O forte pode imaginar o fraco. As vidas luminosas, os que vivem na escuridão. Os
poetas em seu crepúsculo podem imaginar os limites do fogo estelar. Nós, desconheci-
dos, podemos imaginar o coração familiar dos desconhecidos.

Em certa medida, e dada a radical indeterminação de toda teoria em ciências


sociais, todo conhecimento é um conhecimento metafórico.
Até os paradoxos podem ser considerados ferramentas da complexidade
humana. É característico do paradoxo como forma de conhecimento ser opaco a
interpretações dilemáticas ou conflitantes. Um paradoxo não é um dilema que
possamos resolver, nem um obstáculo que possamos enfrentar, mas um lugar em
que vivemos (Cruces, 1994). Entender as próprias situações paradoxais que atra-
vessam nossa existência e nosso pensamento é relevante para entender muitos
dos confusos e aparentemente impenetráveis comportamentos alheios.
- Mergulhar na complexa, mutável e contraditória realidade social. O pro-
pósito da investigação interpretativa não é comprovar hipóteses, mas mergulhar
na complexidade dos acontecimentos reais e indagar sobre eles com a liberdade e
a flexibilidade que requeiram as situações, elaborando descrições e abstrações
sempre provisórias dos dados, as quais devem ser utilizadas como hipóteses sub-
seqüentes de busca e de trabalho.
Dentro desta estratégia de investigação, não se estabelecem limitações nem
restrições, nem de partida nem de chegada, no estudo de um ambiente natural.
Todas as variáveis que intervêm merecem ser consideradas em princípio, até que
um primeiro conhecimento delas e de seu funcionamento na situação concreta
objeto de estudo permita estabelecer uma ordem provisória de propriedades quanto
à importância dos diferentes influxos e, como conseqüência, determinar focos
mais concretos e singulares de análise. Os acontecimentos anômalos e imprevistos,
as variáveis ou os fatores estranhos são sempre bem-vindos. Tais sucessos emergen-
tes supõem ocasiões verdadeiramente importantes para compreender o funcionamen-
to da realidade, devido ao fato de alterarem a rotina e porem a descoberto conflitos,
interesses, necessidades e comportamentos, habitualmente ocultos e soterrados.
O plano de investigação é, portanto, um plano flexível de enfoque progressi-
vo, sensível às mudanças e às modificações nas circunstâncias físicas, sociais ou
pessoais que possam supor influxos significativos para o pensamento e a ação
dos indivíduos e dos grupos. Não há, portanto, variáveis estranhas, cujo influxo
perturbador tenha que neutralizar. O plano se denomina de enfoque progressivo
porque no processo de investigação vão se produzindo sucessivas concretizações
na análise e na focalização, conforme vai se evidenciando a relevância dos dife-
rentes problemas ou a significação dos distintos fatores. 13
Compreender a realidade da vida de qualquer organização ou a realidade
social e intervir racionalmente nela requer enfrentar a complexidade, a diversida-
de, a singularidade e o caráter evolutivo desta realidade, embora esta pretensão
dificulte o processo de busca de relações e significados. Somente vinculando os
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLlBERAL 73

acontecimentos ao contexto, à situação concreta em que se produzem e à história


do grupo, é que se pode entender os significados aparentemente contraditórios,
os acontecimentos imprevistos e surpreendentes, as condutas "anômalas" e "es-
tranhas".
- A sensibilidade e a competência do investigador e dos agentes envolvidos
como instrumentos de investigação. O enfoque interpretativo e construtivista pro-
põe a sensibilidade e a competência profissional do investigador, e de todos os
participantes, como os melhores e insubstituíveis instrumentos para captar a com-
plexidade e a polissemia dos fenômenos sociais, assim como para se adaptar com
flexibilidade às mudanças e ao surgimento de acontecimentos imprevistos e anô-
malos. A formação dos investigadores e dos participantes se converte, portanto,
num requisito complementar, daí que os processos de investigação se transfor-
mam simultaneamente em processos de formação.
Para cumprir esta função, a investigação se converte num estudo de casos
dentro do enfoque construtivista, porque só pode se interpretar completamente os
acontecimentos dentro do caso que lhes dá significação. A este respeito, e para
poder compreender o caso em sua integridade e complexidade, propõem-se os
seguintes procedimentos metodológicos que aqui vamos apenas enunciar:
- A observação externa ou participante. Isso supõe permanências prolonga-
das do ou dos investigadores no meio escolar, observando, participando, direta-
mente ou não, na vida desta realidade social, para registrar os acontecimentos, as
redes de condutas, os esquemas de atuação comuns ou singulares, habituais ou
insólitos. A observação no campo parece imprescindível para ir um pouco além
das meras verbalizações sobre o pensamento ou a conduta, descobrir a desconti-
nuidade entre as palavras e os fatos, indagar os pensamentos e as teorias implíci-
tas e detectar o reflexo na prática das representações subjetivas.
- A entrevista com os diferentes estamentos ou grupos diferenciados. Seu
objetivo prioritário é captar as representações e as impressões subjetivas, relati-
vamente elaboradas dos participantes, a partir de sua própria perspectiva, com a
intenção de esclarecer a inevitável polissemia das manifestações observáveis. Os
diferentes modos e tipos de entrevistas, relativamente estruturados e elaborados,
pretendem indagar nas diferentes representações, no pensamento e nas atitudes,
superando as verbalizações imediatas e habituais, buscando os pontos críticos, as
teorias implícitas, as proposições latentes, os processos contraditórios nas própri-
as crenças e esquemas mentais, assim como nas relações entre o pensamento e os
modos de sentir e o pensamento e os modos de agir. A entrevista é um instrumento e
uma ocasião inigualável para propiciar a construção compartilhada do conhecimento
através do diálogo e do contraste, sempre que se estimule uma interação real entre as
idéias dos participantes entre si e com o investigador (Carspecken, 1992).14
- A triangulação, ou seja, o contraste plural de fontes, métodos, informa-
ções, recursos. Seu objetivo é provocar o intercâmbio de pareceres ou o contraste
de registros ou informações. Comparar as diferentes perspectivas dos diversos
agentes com as quais se interpretam os acontecimentos é um procedimento indis-
74 A. I. PÉREZ GÓMEZ

pensável, tanto para aclarar as distorções e os desvios subjetivos que necessaria-


mente se produzem na representação individual ou grupal da vida cotidiana como
para compreender a origem e o processo de formação de tais representações sub-
jetivas (Denzin, 1989a, 1989b; Fielding e Fielding, 1986; Stanley, 1992; Flick,
1992).
A triangulação oferece a possibilidade a todos os participantes de relativizar
suas próprias concepções, admitir a possibilidade de interpretações distintas e
inclusive estranhas, enriquecer e ampliar o âmbito da representação subjetiva e
construir mais criticamente seu pensamento e sua ação.
- Como apoios a estes procedimentos básicos se utilizam intensamente ins-
trumentos de registro e relato de dados, reflexões, impressões e acontecimentos:
o diário de campo, no qual se costuma registrar, sem excessiva preocupação com
a estrutura, ordem e esquematização sistemática, a corrente de acontecimentos e
impressões que o investigador observa, vive, recebe e experimenta durante sua
estada no campo, neste caso a escola e a aula; o diário do investigador, no qual,
de forma mais repousada, ordenada e sistemática, se organizam os dados e se
expressam as reflexões sobre eles, elaborando as impressões e propondo as futu-
ras linhas de observação, assim como os focos problemáticos de análise que se-
jam considerados mais relevantes; registros técnicos: gravações em vídeo e áudio
para reter, além da própria lembrança seletiva do investigador, reflexos da reali-
dade observada ou das representações indagadas através da entrevista.
- Contraste metodolágico e pluralidade de perspectivas. No enfoque cons-
trutivista-interpretativo, também o rigor e a relevância são preocupações funda-
mentais, mas se abordam a partir de concepções, pressupostos e objetivos bem
diferentes.
Em primeiro lugar, parte-se do convencimento de que a replicabilidade de
uma investigação no marco natural e específico de cada realidade social não é um
objetivo possível, nem sequer desejável. No mundo "natural", ecológico, da vida
social nunca se repetem de maneira exata nem as mesmas situações, nem os mes-
mos acontecimentos, nem a mesma seqüência de fenômenos, nem as mesmas atitu-
des e emoções subjetivas. Portanto, pretender a replicabilidade é ignorar o caráter
singular, evolutivo e histórico dos processos sociais com a pretensão de impor, ou
supor, um modelo único de atuação e intercâmbio, de relações e comportamentos.
Em segundo lugar, a credibilidade da investigação é um objetivo claro que
requer constatar a consistência dos dados, mas não se pretende encontrá-Ia na
replicabilidade e no mimetismo dos processos, mas no contraste permanente das
indagações, das inferências provisórias e das hipóteses de trabalho que vão se
decantando como fruto da reflexão, do debate e do contraste.
A consistência e o rigor dos dados e das conclusões provisórias pretendem
ser alcançados mediante procedimentos metodológicos que ressaltam a identifi-
cação de diferentes pontos de vista e perspectivas ou ângulos diferenciadores,
mediante o debate reflexivo de perspectivas subjetivas e o contraste permanente
das elaborações teóricas com os registros múltiplos da realidade. 15
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 75

Quanto à preocupação pela validade, o objetivo prioritário do enfoque inter-


pretativo não é estabelecer a correspondência verdadeira entre os dados e as infe-
rências teóricas, entre a realidade e uma teoria privilegiada que a explica. Na
investigação interpretativa, não se conclui com uma explicação teórica como úni-
ca ou prioritária. Nos informes de estudo de casos, por exemplo, se oferecem os
diferentes pontos de vista, interpretações teóricas, gerados pelos distintos grupos
de agentes que vivem em um mesmo marco social, incluído o do próprio investi-
gador, estimulando a atitude de contrastes e indagação do próprio leitor, ao refle-
tir e ao elaborar as próprias informações sobre aqueles acontecimentos. Por outro
lado, ao insistir permanentemente na necessidade de triangulação, comprovação
e contraste das diferentes interpretações subjetivas com os próprios fatos regis-
trados e com as interpretações de outros indivíduos e grupos internos e externos
aos próprios acontecimentos, este modelo de investigação oferece uma base mais
rica e rigorosa para conferir validade interna à própria investigação. Como afir-
ma Walker (1989), a obsessão por evitar o erro pode interferir em muitas experi-
ências humanamente importantes, como a espontaneidade, atenção, prazer, jogo,
amor e aventura, assim como também com a capacidade de suspender a incredu-
lidade necessária para as experiências artísticas e literárias.
Quanto à validade externa, ou transferibilidade dos resultados, convém res-
saltar que, ao investigar sem alterar as condições do meio cotidiano, as elabora-
ções teóricas que se construam como conseqüência do contraste, embora se propo-
nham sempre como provisórias e hipotéticas, são, em princípio, mais úteis para com-
preender e atuar sobre esse mesmo cenário. Ao mesmo tempo, e pelas mesmas ra-
zões, tais proposições apresentam maior poder de transferência hipotética a quais-
quer outros cenários complexos e "naturais" que apresentem semelhanças desta-
cáveis com o cenário estudado. Para que esta operação de transferência seja minima-
mente legítima, é imprescindível comprovar a semelhança de tais contextos diferen-
ciais, detectando a estrutura de fatores que constituem os gonzos de compreensão de
cada um deles, identificando os elementos comuns e os elementos diferenciais.
A transferência construtivista requer, portanto, elaborar descrições substanciais. 16
A transferência nunca é proposta como uma atividade mecânica, mas como
um apoio ao inevitável processo de estudo e compreensão da nova realidade edu-
cativa que queremos entender. Somente apoiando-nos em descrições minuciosas
e densas dos contextos estudados, poderemos manejar ferramentas conceituais
adquiridas em um contexto para a compreensão de outro.
- Caráter vivo e existencial das narrações. Os informes de investigação
elaborados dentro da perspectiva construtivista e interpretativa pretendem ser
menos esquemáticos e conclusivos. Não têm modelos-padrão de uso generaliza-
do, são antes o reflexo fiel do estilo singular de indagar e comunicar do próprio
investigador. Pretende-se que o informe aproxime o leitor, na medida do possível,
da realidade viva dos fenômenos estudados, para o que se requer um estilo ágil,
narrativo e colorido, utilizando em grande parte a linguagem dos próprios indiví-
duos ou grupos, cujas perspectivas e interpretações da realidade se apresentam e
contrastam no próprio informe.
76 A. I. PÉREZ GÓMEZ

Parte-se do convencimento de que a audiência privilegiada em todo informe


de investigação interpretativa são os agentes que participam nos intercâmbios da
realidade investigada, assim como aqueles práticos de contextos, talvez distantes,
que se encontram envolvidos em processos de intervenção e transformação da rea-
lidade similares aos estudados no presente contexto. Por isso, a linguagem utilizada
no informe não deve estar reservada aos intelectuais especializados da comunidade
de acadêmicos, mas sim acessível aos intelectuais práticos que intervêm na realidade
e se defrontam com problemas educativos em parte parecidos, em parte diferentes. Se
se pretende que o leitor compreenda a realidade a partir da perspectiva dos que vivem
nela, será necessário elaborar um informe repleto de descrições densas que caracteri-
zem o contexto, configurado por suas peculiaridades mais distintivas, assim como de
narrações vivas que aproximem a gênese e a história dos acontecimentos e as conse-
qüências das diferentes ações e reações dos indivíduos e dos grupos.
Convém lembrar, aqui, que os diferentes estilos de redação dos informes
respondem não apenas a preferências estilísticas pessoais como também a con-
cepções sobre a investigação e, em especial, sobre a função do conhecimento que
se oferece aos leitores. Conforme os interesses e os propósitos de cada investiga-
ção e as peculiaridades dos agentes envolvidos, os informes e as narrações deri-
varão para algum destes estilos ou para uma combinação deles. 17

A CULTURA CRÍTICA E A FUNÇÃO EDUCATIVA DA ESCOLA

Não é difícil constatar que a crise atual na cultura crítica está influindo substanci-
almente no âmbito escolar, provocando, sobretudo entre os docentes, uma clara
sensação de perplexidade, ao comprovar como se desvanecem os fundamentos
que, com maior ou menor grau de reflexão, legitimam ao menos teoricamente sua
prática. Quais são os valores e os conhecimentos da cultura crítica atual merecem
ser trabalhados na escola? Como se identificam e quem os define?
A escola, que durante estes séculos tanto contribuiu para a difusão do conhe-
cimento, para a superação da ignorância e das superstições que escravizavam o
indivíduo, para a preparação dos cidadãos e para a diminuição da desigualdade,
foi o fiel reflexo dos valores e das contradições da cultura moderna. Nela, pode-
mos encontrar o exagero e, inclusive, a caricatura dos traços mais característicos
da modernidade. Não apenas se abraçou a concepção positivista do conhecimen-
to científico e suas aplicações tecnológicas, como inclusive a aventura do conhe-
cimento humano foi apresentada na escola despojada da riqueza dos processos,
oferecendo-se como um conjunto abstrato de resultados objetivos e descarnados.
Do mesmo modo, o conceito de cultura valiosa se restringe às peculiaridades da
civilização ocidental, sua história e suas pretensões, propondo como natureza
humana os traços que definem o modelo de ser humano, sociedade, verdade,
bondade e beleza, que constituem o cânone clássico do Ocidente. Em conseqüên-
cia, a escola não apenas ignora as peculiaridades e as diferenças do desenvolvi-
mento individual e cultural, impondo a aquisição homogênea, a maioria das ve-
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 77

zes sem sentido, dos conteúdos perenes da humanidade, como também esquece ou
despreza em geral os processos, as contradições e os conflitos na história do pensar e
do fazer, e restringe o objetivo do ensino ao conhecimento, desatendendo, assim, o
amplo território das intuições, das emoções e das sensibilidades, assim como as exi-
gências contemporâneas das mudanças radicais e vertiginosas no panorama social.
Por outro lado, sem necessidade de cair no extremo de afirmar o relativismo
absoluto, a indiferença ética do "vale-tudo", nem a identidade inquestionável das
diferentes culturas, parece necessário reconhecer que a escola não pode transmi-
tir nem trabalhar dentro de um único marco cultural, um único modelo de pensar
sobre a verdade, o bem e a beleza. A cultura ocidental, que orientou e, freqüente-
mente, sufocou as proposições da escola em nosso âmbito, se esfacela em um
mundo de relações internacionais, de intercâmbio de informação em tempo real,
de trânsito de pessoas e grupos humanos. Por isso, os docentes e a própria insti-
tuição escolar se encontram diante do desafio de construir outro marco intercul-
tural mais amplo e flexível que permita a integração de valores, idéias, tradições,
costumes e aspirações que assumam a diversidade, a pluralidade, a reflexão críti-
ca e a tolerância.
Como teremos oportunidade de desenvolver no capítulo dedicado à cultura
acadêmica e à caracterização do ensino educativo, a finalidade prioritária da es-
cola deve ser fomentar e cuidar a emergência do sujeito. Se já não cabe esperar
certezas absolutas nem das ciências, nem das artes, nem da cultura, nem da filo-
sofia tanto em relação aos conhecimentos como em relação aos valores para or-
denar o intercâmbio humano e a gestão dos assuntos públicos; se as certezas
situacionais devem surgir da busca compartilhada, de argumentos apoiados na
reflexão pessoal, no contraste de pareceres e na experimentação e na avaliação de
projetos democraticamente estimulados e controlados; se a gestão da vida públi-
ca, de modo que ampare a liberdade individual, garanta a igualdade de oportuni-
dades e proteja as manifestações diferenciais e as propostas minoritárias, há de
ser o resultado do consenso, da participação democrática, informada e reflexiva
dos componentes da comunidade social; a emergência e o fortalecimento do su-
jeito se situam como o objetivo prioritário da prática educativa. Portanto, a ênfa-
se não deve se situar nem na assimilação da cultura privilegiada, seus conheci-
mentos e seus métodos, nem na preparação para as exigências do mundo do tra-
balho ou para o encaixe no projeto histórico coletivo, mas no enriquecimento do
indivíduo, constituído como sujeito de suas experiências, pensamentos, desejos e
afetos. Toda vez que tal enriquecimento do sujeito requer estruturas democráticas
que favoreçam e estimulem os intercâmbios culturais mais diversificados, a rei-
vindicação do sujeito supõe, ao mesmo tempo, a liberdade pessoal e o desenvol-
vimento da comunidade.

Notas

1 Niklas Luhmann [citado por Barcellona (1990)] escreveu com todas as letras ao afirmar que o
direito moderno responde, essencialmente, a uma estratégia oportunista e que é absolutamente
78 A. L PÉREZ GÓMEZ

contingente, convencional e mutável, e que os próprios direitos fundamentais são uma mera
regulamentação de fronteiras entre esferas de poder que podem ser, constantemente, ultrapassa-
das pelos poderes.
2 A este respeito me parece interessante lembrar o pensamento de Forlari (1992), quando afirma
que: "Da cultura pós-moderna, e mais ainda das teorias sobre o pós-moderno, cabe recuperar
não poucas coisas que a modernidade ignorou: corporeidade, instante, limites do Logos, não-
universalização de normas, micropolítica, valoração do estético e expressivo, recusa aos exces-
sos do militarismo e da Razão, tolerância, admissão da multiplicidade, desmistificação dos
princípios e do papel da ciência e da técnica ... " (p. 92).
3 É outra manifestação do mesmo problema que coloca Colom (1994) quando afirma que: " ... a
pós-modernidade é, antes de mais nada, a filosofia da desmistificação, da dessacralização, a
filosofia que desvela a derrubada dos velhos ídolos. As repercussões no terreno da ética são
graves: já não existem imperativos categóricos, não há evidências apodícticas. Ética e sociolo-
gia, moral e política se confundem ou se identificam. Valores sociais e valores morais se entre-
mesclam sem possibilidade de estabelecer fronteiras entre ambos (p. 51).
4 A este respeito, é interessante a polêmica entre Fukuyama e Huntintong, dois autores cujas
posições foram amplamente difundidas no âmbito acadêmico e nos meios de comunicação de
massa. Francis Fukuyama é um convencido representante da modernidade ocidental, apresen-
tando-a como o estágio superior da evolução humana. Desprezando os particularismos de ou-
tras culturas, sem dúvida inferiores, proclama o fim da história e das ideologias porque, com a
implantação das democracias formais e o êxito do livre mercado, concluímos o penoso peregri-
nar da espécie humana, cujo futuro se caracteriza pelo propósito de estender a ideologia demo-
crática a todos os povos ("The End of History?". The National Interest, Washington, verão de
1989). Huntington, pelo contrário, considera que a perda de interesse e atualidade nos grandes
relatos de natureza econômica, política e social está conduzindo ao fortalecimento das posições
culturais dos diferentes povos. Longe de estender a idéia ocidental da democracia como modelo
de organização política e de convivência, cada uma das grandes culturas se fortalece em seu
isolamento e clausura, chegando a constituir no futuro a fonte principal de conflitos e confron-
tos na humanidade.
5 Para Huntington (em Ruiz Elvira, 1993, p. 8), a distinção é necessária e útil na atualidade,
porque, na era pós-moderna do intercâmbio universal, os conflitos ou os acordos vão se produ-
zir principalmente entre civilizações. Entende-se por civilização a cultura mais ampla com a
qual pode se identificar um indivíduo. Ou seja, é o conjunto mais amplo de grupos humanos ou
nacionais que compartilham uma cultura, às vezes uma língua e quase sempre uma religião. Na
atualidade, distingue as seguintes: Islârnica, Ocidental, Africana, Hindu, Confuciana, Eslava
Ortodoxa, Latino-americana e Japonesa. Assim colocado, é duvidosa a validade interpretativa e
operativa do conceito, pela confusão que pode produzir tanto na definição interna de cada civi-
lização como na distinção entre elas.
6 Segundo Monsterin, um meme é uma unidade de informação aprendida pelo indivíduo median-
te imitação ou observação da conduta adulta de sua cultura. "Para designar as unidades de
transmemória como a mimesis (imitação)" (p. 76) ... Os memes são unidades de informação
cultural no sentido de pedaços elementares de cultura" (Monsterin, 1993, p. 78).
7 É necessário lembrar com Serrano que Weber entende os "direitos humanos" como "imperati-
vos éticos" formais, pois não definem uma modalidade específica de organização social ou
política concreta. Neles, simplesmente se estabelece que quaisquer que sejam as decisões que
numa sociedade se tomem em relação à sua organização e às suas políticas, estas só poderão ter
uma legitimidade legal racional se os procedimentos que levaram a essas decisões respeitam as
exigências dos direitos fundamentais, e se estes são garantidos pelo conteúdo dessas decisões.
Trata-se de distinguir entre as normas que garantem a contínua abertura da discussão sobre o
legítimo e o ilegítimo (imperativos éticos) e as normas que cada sociedade, grupo ou indivíduo
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 79

aceita como legítimas (valores culturais). Estes dois tipos de normas possuem uma dignidade
distinta, porque são os imperativos éticos os que devem adquirir uma prioridade se se quer
conciliar a plural idade com a integridade da unidade social e com a de cada um de seus mem-
bros (Serrano Gómes, 1994, p. 121).
8 Savater (1994) considera que esta tentativa de instaurar uma ética procedi mental tem alguma
relação com as pretensões formalistas da ética kantiana. Por isso, afirma que também os requi-
sitos da comunidade ideal da comunicação a que aspiram tendencialmente as proposições de
Jürgen Habermas e de Karl Otto Apel configuram uma espécie de igualitarismo dialogante,
cuja linhagem remonta explicitamente ao formalismo kantiano.
9 Convém lembrar aqui que, sobre esta ética de procedimentos Stenhouse, constrói sua proposta
de currículo processual, no qual o importante é identificar os princípios de procedimento que
devem reger os intercâmbios e que, enfim, são a concretização dos valores educativos consen-
suados pela comunidade.
10 Neste sentido, me parece oportuno lembrar os princípios em que se sustenta a teoria da raciona-
lidade comunicativa de Habermas, brilhantemente sintetizados por Serrano Gómez (1994):
a) O entendimento é um telos interno da linguagem.
b) O entendimento racional se apóia nas pretensões de validade (verdade, retidão e veracida-
de) inscritas na força ilocucionária dos atos da fala.
c) O meio racional para questionar as pretensões de validade e buscar o restabelecimento do
entendimento é o discurso.
d) O discurso deve se sustentar na força do melhor argumento, isto é, o discurso requer a
supressão de toda coação alheia à lógica da argumentação.
e) A argumentação racional tem uma série de pressupostos que define uma "situação ideal de
fala". Esses pressupostos estão constituídos por uma série de normas em que se estabelece a
necessidade de reconnecimento recíproco dos participantes no discurso como "pessoas" (isto
é, sujeitos de direitos e deveres iguais), assim como pelo acordo de recusar toda coação que
não seja a do melhor argumento (p. 215-216).
Toulmin (1990) considera que o paradigma positivista, cujas bases remontam até Descartes e
ewton, para bem ou para mal dominou o pensamento e a investigação natural e social desde
então até nossos dias. As características essenciais deste pensamento racionalista são as seguin-
tes: ênfase e prioridade para a lógica formal sobre a retórica e para a prova sobre a argumenta-
ção; orientação ao desenvolvimento de princípios abstratos e generalizações, desprezando o
estudo dos casos individuais, concretos, diversos; esforço na elaboração de teorias fundamen-
tadas na estrutura permanente da vida, independentes do espaço e do tempo, mais do que na
exploração dos cambiantes e contextualizados problemas da prática diária.
- A versão mais extrema está representada pelo relativismo radical em suas duas vertentes prin-
ipais: a primeira é o "irrealismo" de Nelson Goodman (1984) para quem é necessário relativi-
zar a importância da ontologia, e saindo da polêmica entre idealismo e realismo, considera que
. do se situa num processo interminável de construções de significados sobre construções de
ignificados anteriores. A segunda pode ser agrupada em torno do relativismo lingüístico de
Gergen (1985) e Fish (1989), para os quais a linguagem é a única realidade que podemos co-
- ecer. Os instrumentos de elaboração, interpretação e comunicação de significados são sím-
Ios lingüísticos, cuja emergência, desenvolvimento e transformação podemos seguir, anali-
e comparar.
este respeito, convém lembrar os seguintes princípios metodológicos que Spindler (1982)
propõe:
- A observação deve ser contextualizada.
- As questões e as interrogações devem emergir à medida que o estudo progride.
- A observação deve ser prolongada e repetitiva.
- Deve-se descobrir o ponto de vista dos nativos (participantes).
80 A. L PÉREZ GÓMEZ

- Devem-se realizar esforços para entender o conhecimento sociocultural dos participantes.


- Os instrumentos são gerados no campo.
- Deve-se adotar uma perspectiva transcultural.
- Deve-se explicitar o conhecimento tácito.
- A investigação deve perturbar o contexto o menos possível.
- Deve-se obter o conhecimento dos participantes de uma maneira natural.
14 Carspecken desenvolve um interessante esquema de processo de investigação interpretativa em
que inclui a entrevista em suas diferentes formas, como o instrumento-chave da construção de
significados. Neste processo, distingue cinco fases que se requerem e complementam:
- Coleta monológica de dados. Nela, a entrevista se propõe a recolher da maneira mais neutra
possível, e com a menor interferência do investigador, os pensamentos, os afetos e as rea-
ções do entrevistado.
- Análise reconstrutiva preliminar. Através da qual se pretende uma primeira aproximação
ordenada ao esquema interpretativo do interlocutor.
- Geração dialogada de dados. Aqui se pretende construir significados com a participação
ativa dos interlocutores através do diálogo, do contraste e da discussão.
- Descrição do sistema de relações. Supõe uma primeira tentativa de construir uma compre-
ensão mediante a descrição do sistema de relações que definem a posição e os intercâmbios
dos participantes. Este propósito requer a participação contínua dos interlocutores, reafir-
mando, corrigindo e propondo perspectivas de análise, e esquemas de interpretação dos
significados a partir da perspectiva subjetiva dos interessados.
- Explicação do sistema de relações. Isso supõe uma tentativa de relacionar a rede de signifi-
cados identificada com os contextos sociais e com as determinações econômicas e políticas
em que ocorrem. Isso supõe estabelecer um esquema de interpretação que relacione os espa-
ços e os cenários sociais com as redes de relações dos grupos sociais. O debate em grupo é
uma ferramenta fundamental no presente estágio.
15 Como estratégias básicas se utilizam as seguintes, de Guba e Lincoln (1983):
Cautela e pluralidade metodológica. Supõe partir do convencimento de que não há uma
perspectiva privilegiada e objetiva da realidade; ao contrário, todas as perspectivas se en-
contram dirigidas e condicionadas por um conjunto de interesses, necessidades, propósitos,
formas de pensar e sentir e, portanto, são todas e cada uma tão insuficientes como necessá-
rias para compor o marco de interações que desenham a realidade fluida e complexa dos
intercâmbios na aula. Para cobrir esta pretensão, é recomendável o pluralismo metodológi-
co; todos os métodos racionais podem oferecer dados interessantes, mas nenhum definitivo;
por isso, se favorecem os processos de triangulação de instrumentos, de procedimentos me-
todológicos, de fontes de informação e de perspectivas de análise (FLICK, 1992).
Réplica paralela. Às vezes, é recomendável e possível a constituição de duas equipes de
investigação que, paralelamente, estudam a mesma realidade e contrastam e discutem suas
descobertas e elaborações, relacionando-as estreitamente com seus procedimentos de busca,
análise e interpretação.
Auditoria. Propõe-se como um procedimento para comprovar a consistência dos dados, as-
sim como dos próprios processos de busca, análise, reflexão e interpretação. A auditoria é
concebida como uma revisão minuciosa da investigação, abrangendo suas fases, fontes, pro-
cessos, decisões, documentos, discussões e interpretações. Durante todo o processo de in-
vestigação, é necessário oferecer pistas claras de revisão dos processos e das seqüências, de
modo que, a qualquer momento, investigadores externos ou agentes internos possam com-
provar a credibilidade dos dados e registros, assim como a racional idade das decisões. Os
diários de campo e os diários de investigação são materiais de valor inestimável para o
desenvolvimento da auditoria.
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 81

16 Denzin (1989) afirma que uma descrição rica e substancial deve conter as seguintes caracterfs-
ticas: 1) proporcionar o contexto da ação, 2) estabelecer as intenções e os significados que
orientam a ação, 3) apresentar a ação como um texto que pode ser, portanto, objeto de múltiplas
interpretações.
17 Van Manem (1992) distingue três estilos de redação de informes etnográficos: "Narrações realis-
tas ... proporcionam um retrato demasiado direto, um relato de fatos da cultura estudada, livre de
considerações sobre como o investigador produz tal retrato. Narrações confidenciais ... como o nome
indica, enfocam mais o investigador do que a cultura estudada. Narrações impressionistas ... são
relatos personalizados de momentos fugazes do trabalho de campo, expressos de forma dramática.
Por isso, abrangem elementos de ambos os estilos, realistas e confidenciais" (p. 7).

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