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A partir do Sínodo de Laodicéia (360), os livros da Bíblia são chamados canônicos por
que a Igreja os reconhece como normativos para a fé e para a vida dos fiéis sobre a base
do seu conteúdo objetivo.
O nome apócrifo é aplicado pelos católicos a certos escritos judaicos e cristãos que
tiveram a pretensão à autoridade divina mas que, de fato, não são Escrituras inspiradas.
Os apócrifos do AT são atribuídos a vários patriarcas e profetas e refletem as idéias
religiosas e morais do mundo judaico do século II a.C. ao século I d.C. Os apócrifos do
NT são de origem cristã e são atribuídos a apóstolos; eles refletem as crenças, doutrinas
e tradições de certos círculos, tanto ortodoxos como heréticos dos primeiros séculos da
Igreja.
2. A Formação do Cânon
No século I d.C., os judeus tinham uma coleção de livros que eles sustentavam serem
inspirados por Deus e nos quais viam a expressão da vontade divina, uma regra de fé e de
prática. Temos o testemunho de Josefo (Contra Apião 1,8), de 4 Esdras (14,37-48) e do
Talmude. Esses livros incluem todos os nossos livros protocanônicos. Os livros eram
distribuídos entre três divisões: Lei, Profetas e Escritos. Essa divisão parece testemunhar
a crença numa cronologia dos escritos. O Pentateuco (a Lei) recebeu a sua forma final no
século V e, desde o tempo de Esdras, os judeus aceitaram e reconheceram oficialmente a
coleção como um código sagrado. A maioria dos livros que forma a segunda divisão teria
sido aceita por volta do mesmo tempo. Contudo, a coleção não pode ter sido finalmente
fechada até algum tempo depois do último dos profetas (o autor de Zc 9-14), século IV.
O Eclesiástico afirma que a lista de livros proféticos estava completa antes de 180 a.C.
(Eclo 46,1-49). Podemos dizer que a coleção profética foi fixada na primeira metade do
século II a.C. O terceiro grupo parece ter se desenvolvido em torno da coleção dos
Salmos. Cinco livro (os Megilloth = Rolos: Ct, Rt, Lm, Ecl, Est) eram lidos na liturgia
das grandes festas. A obra do Cronista (Cr, Esd e Ne) vem no fim da lista. Podemos
concluir que o grupo se formou entre o século IV e o fim do século II.
Deve ser notado que nenhuma das três coleções foi estabelecida por uma decisão oficial.
Então não surpreende o fato de serem encontradas diferentes perspectivas. Os fariseus
aceitavam as três coleções, mas os saduceus, por exemplo, consideravam apenas o
Pentateuco como canônico. Por outro lado, em Alexandria e em Qumran (essênios) se
acreditava que Deus ainda não tinha falado a sua última palavra e que uma mensagem
inspirada ainda podia ser aceita. Assim, na Diáspora (judeus dispersos), foi acertado que
os nossos livros deuterocanônicos tinham uma autoridade real e os essênios atribuíram
símile poder aos livros de sua seita.
No tempo de Cristo, havia ainda alguma incerteza sobre a canonicidade de certos livros.
Foi só depois da destruição de Jerusalém (70 d.C.) que um grupo de doutores judeus, que
procurava preservar aquilo que restava do passado, se reuniu em Jâmnia (= Yavne, a uns
45 km a oeste de Jerusalém), por volta do ano 90 d.C., e aceitaram o cânon dos fariseus.
Essa decisão talvez tenha sido tomada por causa dos cristãos que tinham adotado a Bíblia
Grega (LXX). Por isso os nossos livros deuterocanônicos foram rejeitados. A decisão do
Concílio de Jâmnia foi apenas para os judeus. No tempo da Reforma (século XVI) os
protestantes, desejando fazer traduções diretamente do hebraico, terminaram por
considerar o cânon judaico como o cânon autêntico.
Os Evangelhos, mesmo não sendo os escritos mais antigos do NT, foram os primeiros a
serem colocados em pé de igualdade com o AT e reconhecidos como canônicos. Por volta
do ano 140, Pápias, bispo de Hierápolis, na Frígia, conhece Marcos e Mateus. Justino (c.
de 150) cita os Evangelhos como autoridade. Hegésipo (c. de 180) fala da “Lei e Profetas
e do Senhor”. Os mártires de Scilla, na Numídia (180) têm como escritos sagrados, “os
livros e as epístolas de Paulo, homem justo”; somente o AT e os Evangelhos eram
chamados de “Livros”, isto é, escrituras. Os escritos dos Padres Apostólicos fornecem
certa prova de que desde as primeiras décadas do século II, as grandes igrejas possuíam
um livro ou grupo de livros que eram comumente conhecidos como “Evangelho” e a que
se fazia referência como a um documento que tinha autoridade e era universalmente
conhecido.
É provável que já pelo fim do século I ou começo do século II, treze epístolas paulinas
(excluindo Hebreus) fossem conhecidas na Grécia, Ásia Menor e Itália. Todos os
manuscritos e textos das epístolas paulinas resultaram de uma coleção que se harmoniza
com nosso Corpus paulinum. É verdade que as primitivas coleções mostraram variações
na ordem das epístolas, mas o número de escritos permanecia o mesmo. Não há citação
de Paulo que não seja tirada de uma das epístolas canônicas, embora seja certo que o
Apóstolo escreveu outras cartas. Assim por volta do ano 125, havia dois grupos de
escritos que possuíam a garantia apostólica e cuja autoridade era reconhecida por todas
as comunidades que os possuíam.
Sobre os outros escritos temos poucos relatos na primeira metade do século II. Clemente
conhecia Hebreus; Policarpo conhecia 1 Pedro e 1 João; Pápias conhecia 1 Pedro, 1 João
e Apocalipse. Na segunda metade do século, Atos, Apocalipse e, pelo menos, 1 João e 1
Pedro eram considerados canônicos; eles tomaram o seu lugar ao lado dos evangelhos e
das epístolas paulinas.
Podemos notar quatro fatores que influenciaram a formação do cânon do NT: 1) os muitos
apócrifos que a Igreja rejeitou; 2) a heresia de Marcião, que tinha estabelecido o seu
próprio cânon, o qual consistia de um Lucas corrigido e das epístolas de Paulo (excluindo
as pastorais e Hebreus); 3) os heréticos montanistas, que reivindicavam revelações
adicionais do Espírito Santo; 4) a grande abundância de escritos gnósticos;
As dificuldades sobre alguns escritos podem ser justificados por alguns motivos: o fato
que alguns escritos do Novo Testamento eram em origem destinados às comunidades
locais envolvidas em problemas particulares; as dificuldades de comunicação entre as
comunidades; abusos da parte de correntes heterodoxas (o uso do Apocalipse pelos
milenaristas); as incertezas sobre a conformidade com o pensamento apostólico de alguns
escritos (por exemplo, a carta de Judas que cita o livro apócrifo de Enoch).
O Magistério tomará uma posição sobre o cânon, tanto do NT quanto do AT, no concílio
de Florença (1441), fornecendo o elenco dos livros bíblicos segundo o cânon longo; no
concílio de Trento (1546) que definirá, depois de qualquer discussão, o cânon de
Florença.
Em que coisa a Igreja se apoia para definir o cânon dos livros sagrados? Uma primeira
resposta, que precisa uma reflexão, nos é dada pelo último concílio, segundo o qual é “a
mesma tradição que faz a Igreja conhecer o cânon dos livros sagrados” (DV 8). Porém a
tradição precisa, por sua vez, de critérios para ter certeza de qual tradição se trate: por
exemplo, se esteja em jogo a tradição apostólica, ou simplesmente uma tradição
eclesiástica.
Esta é a questão dos critérios de canonicidade que foi objeto de disputas sobretudo a partir
do século XVI com Erasmo e com os protestantes. Erasmo espalhou as dúvidas dos
primeiros séculos sobre a origem apostólica de Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse, e de
algumas perícopes evangélicas, tais como Mc 16,9-20; Lc 22,43s; Jo 7,57-8,11. Estas
seções foram submetidas ao juízo do Concílio de Trento que, depois de ter exibido o
elenco definitivo da Bíblia, declarou: “Se alguém não aceitar como livros sagrados e
canônicos estes livros, inteiros com todas as suas partes, assim como se é costume lê-los
na Igreja católica e se encontrem na edição antiga da Vulgata latina, e desprezará as
preditas tradições, seja anátema” (DS, 1501).
Não podemos negar que a fixação do cânon é um ato da Igreja, ou da Tradição, que opera
na Igreja. O concílio de Trento acrescenta para a definição do cânon dois argumentos: o
uso de ler determinados livros na Igreja e a sua presença na Vulgata latina. Na verdade
esses dois argumentos servem para dizer que se reconhecem como canônicos aqueles
livros que a tradição da igreja lê.
Repetimos de novo a pergunta: de onde vem a certeza para a Igreja sobre os livros
canônicos? É claro que à Igreja não foi dada uma revelação especial sobre isso. Assim a
resposta é: a Igreja, querendo exprimir fielmente a mensagem de Cristo, reconheceu
sempre mais claramente a insuperável importância daqueles 27 escritos que lhe eram
transmitidos desde a idade apostólica.
Tal juízo cai no risco de se tornar um princípio seletivo que poderia conduzir a excluir
alguns livros do cânon comumente aceito. Por isso não faltaram as reações dentro do
próprio mundo protestante. O. Cullmann observou, por exemplo, que qualquer escolha
dentro do cânon é necessariamente subjetiva e arbitrária. Por isso ele propõe que a
História da Salvação seja o elemento unificante de toda a Bíblia.
Nem mesmo à Igreja católica deve escapar esta questão. Ela deve perguntar-se se ela, no
defender a definição de Trento sobre a integridade do cânon, não tem insistido demais na
idêntica autoridade de todos os escritos bíblicos. Certamente a afirmação da idêntica
canonicidade de todos os livros é válida na medida em que se assume um conceito formal
de canonicidade: todos os escritos da bíblia têm para a Igreja valor canônico e autoridade,
mas precisa prestar atenção ao problema do idêntico valor dos escritos canônicos. Em
fato a Igreja se refere de preferência a determinados textos bíblicos, como diz a Dei
Verbum: “Ninguém esqueça que, entre toda a Escritura, também do NT, os evangelhos
se sobressaem” (n. 18).
O que afirmamos (católicos) não é a questão do “cânon no cânon”, pois isso poderia ser
uma nova empresa na linha de Marcião, mas precisamos reconhecer que nós hoje não
temos condições de julgar a validade dos escritos que se direcionavam a cristãos em
situações muito diversas da nossa. É lógico que alguns livros da Bíblia têm maior valor
que outros (cf. DV 18, UR 11). Mas isso não significa que se deva introduzir uma
distinção no cânon bíblico, como se houvesse livros inspirados e livros não inspirados,
ou livros mais inspirados e livros menos inspirados.
O acolhimento de todos os livros bíblicos com todos as suas partes não contradiz a
exigência de interpretar a Escritura partindo do seu centro hermenêutico, Cristo. O fato
que a Igreja permaneça fiel a todo o cânon não significa que cada particular proposição
ou passo bíblico exprima, na mesma medida, a palavra de Deus.